status quo - Editora Vida Nova - Vida Novagico do século I, porém muito mais como identi-dade e...

148
A ABBÁ. Ver ADOÇÃO, FILIAÇÃO; DEUS; ELEMENTOS LITÚRGICOS; ORAÇÃO. ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO 1. A legitimidade de uma abordagem sociocientífica 2. As vantagens da interpretação sociocientífica 3. Problemas da interpretação sociocientífica 4. Estudos de casos na interpretação sociocientífica 5. Conclusão 1. A legitimidade de uma abordagem sociocientífica A interpretação de Paulo e suas cartas é tarefa necessariamente histórica (embora de modo algum exclusivamente). O apóstolo Paulo foi personagem histórico. Como textos gregos anti- gos de forma epistolar identificável, as cartas* são artefatos humanos de um tempo e um lugar determinados da Antiguidade. Além disso, o conteúdo das cartas (inclusive as idéias, os acontecimentos, os problemas e as pessoas aos quais elas fazem referência), seu caráter alta- mente motivador e os leitores aos quais eram dirigidas, tudo atrai e justifica a análise históri- ca e histórico-literária. Isso não quer dizer que a verdade da qual Paulo e suas cartas dão teste- munho restringe-se ao que o método histórico define. Isso limitaria de modo injustificável a autoridade do apostolado de Paulo e a verdade* de seu Evangelho* ao que pode ser determina- do de acordo com os cânones da historiografia secular contemporânea — como se, por exem- plo, a verdade da mensagem paulina a respei- to de uma “nova criação”* por intermédio do Cristo* crucificado e ressuscitado fosse apenas uma questão da prova histórica para a crucifi- xão* e o túmulo vazio. Contudo, não há dúvi- da para os leitores modernos de Paulo de que a interpretação adequada de suas cartas e da A.p65 28/03/2008, 15:19 1

Transcript of status quo - Editora Vida Nova - Vida Novagico do século I, porém muito mais como identi-dade e...

A

ABBÁ. Ver ADOÇÃO, FILIAÇÃO; DEUS; ELEMENTOS

LITÚRGICOS; ORAÇÃO.

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICASA PAULO

1. A legitimidade de uma abordagemsociocientífica

2. As vantagens da interpretaçãosociocientífica

3. Problemas da interpretaçãosociocientífica

4. Estudos de casos na interpretaçãosociocientífica

5. Conclusão

1. A legitimidade de uma abordagemsociocientífica

A interpretação de Paulo e suas cartas é tarefanecessariamente histórica (embora de modoalgum exclusivamente). O apóstolo Paulo foipersonagem histórico. Como textos gregos anti-gos de forma epistolar identificável, as cartas*

são artefatos humanos de um tempo e um lugardeterminados da Antiguidade. Além disso, oconteúdo das cartas (inclusive as idéias, osacontecimentos, os problemas e as pessoas aosquais elas fazem referência), seu caráter alta-mente motivador e os leitores aos quais eramdirigidas, tudo atrai e justifica a análise históri-ca e histórico-literária. Isso não quer dizer quea verdade da qual Paulo e suas cartas dão teste-munho restringe-se ao que o método históricodefine. Isso limitaria de modo injustificável aautoridade do apostolado de Paulo e a verdade*de seu Evangelho* ao que pode ser determina-do de acordo com os cânones da historiografiasecular contemporânea — como se, por exem-plo, a verdade da mensagem paulina a respei-to de uma “nova criação”* por intermédio doCristo* crucificado e ressuscitado fosse apenasuma questão da prova histórica para a crucifi-xão* e o túmulo vazio. Contudo, não há dúvi-da para os leitores modernos de Paulo de quea interpretação adequada de suas cartas e da

A.p65 28/03/2008, 15:191

2Aa

teologia que expressam exige a perspectiva his-tórica que o método histórico almeja dar.

Mas se a história é importante (o que já estáamplamente reconhecido) as ciências humanasem geral também o são (o que ainda não estátão amplamente reconhecido). Há diversas ra-zões para isso. Primeiro, mais que outros textosdo NT, as cartas paulinas nos possibilitam umacesso sem igual ao apóstolo como personali-dade singular e complexa. De um jeito que osevangelhos não fazem por Jesus, as cartas nosapresentam Paulo em primeira mão. É natural elegítimo, portanto, verificar se as abordagens apartir da psicologia e da psicanálise aprofundamou não nosso entendimento do tipo de pessoaque Paulo era, a natureza de sua experiência dechamado (ou “conversão”), a forma como secomportava como líder, os tipos de instruçãoque dava e a maneira como o fazia etc. Se, comomuitos concordam, é difícil enquadrar Paulo,pode ser que fatores conscientes ou inconscien-tes da constituição física e moral paulina tives-sem um papel a desempenhar. Pode ser tambémque fatores psicológicos ajudem a explicar ascomplexidades da interação entre Paulo, seusseguidores e seus adversários.

Segundo, não há dúvida de que Paulo estavaprofundamente envolvido com a sociedade deseu tempo e que suas cartas são dirigidas de mo-do explícito a grupos de fiéis aos quais ele sesentia ligado por fortes laços de parentesco espi-ritual. Em outras palavras, não é possível enten-der Paulo em termos puramente individuais. Suaidentidade e seu autoconhecimento estavam liga-dos aos daqueles aos quais ele próprio se sentiuligado — a Cristo como “Senhor”*, ao povo deIsrael*, seus “irmãos”, os de sua raça (Rm 9,3),aos grupos de fiéis que ele criara na fé, a seuscolaboradores no ministério apostólico, a figurasde autoridade em Jerusalém* e a figuras de auto-ridade em Roma*. Assim, além de uma dimen-são psicológica para a interpretação de Paulo esuas cartas, há também uma importante dimen-são sociológica. Isso requer o uso do tipo demodelos que possibilitam a análise sociológica.É provável que esses modelos sejam tão rele-vantes para o entendimento da situação dos des-tinatários das cartas paulinas quanto para o en-tendimento da situação de Paulo.

Terceiro, o compromisso de Paulo com a so-ciedade de seu tempo assumia, com freqüência,a forma de uma provocante reinterpretação dossímbolos culturais dominantes naquela socie-dade. Basta lembrar a controvérsia mordaz quePaulo gerou em um ou outro contexto a respei-to de questões como a observância da Torá, acircuncisão*, a confraternização à mesa, o lu-gar das mulheres (ver Homem e mulher) naassembléia cristã e a legitimidade ou não decomer carne oferecida a ídolos* para percebercomo Paulo parecia subversivo aos que apoia-vam o status quo cultural. Mas é provável quefalte precisão às tentativas de determinar o sen-tido e a importância desses símbolos culturais,para Paulo e para seus adversários, se elas nãofizerem uso de instrumentos críticos para a aná-lise da cultura. Esses instrumentos são os queforam desenvolvidos e praticados na disciplinada antropologia social (ou cultural). Assim, paraa interpretação de Paulo, além das dimensõespsicológicas e sociológicas, há também dimen-sões antropológicas.

2. As vantagens da interpretaçãosociocientífica

Antes de passar para estudos de casos especí-ficos da aplicação das ciências sociais à interpre-tação de Paulo, vale a pena resumir em um nívelgeral as vantagens e desvantagens do método.Começo pelas vantagens.

2.1. Relações sincrônicas. Como já foi su-gerido, a interpretação sociocientífica é desen-volvimento natural da interpretação histórica dePaulo. Se o método histórico e histórico-lite-rário nos ajuda a decifrar não só o sentido dascartas de Paulo, mas também o mundo das pes-soas e dos acontecimentos aos quais as cartasse referem, então essas outras ciências humanasnos ajudam a levar esse processo adiante. Elaspossibilitam o que o antropólogo C. Geertz cha-ma de “descrição densa” na interpretação domundo por trás do texto. Assim, onde a análisehistórica se concentra em relações diacrônicas,em relações de causa e efeito no tempo, a aná-lise sociocientífica chama atenção especial pararelações sincrônicas, para o jeito como o sentidosurge da interpretação do relacionamento de umator social com o outro dentro da rede complexa

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:192

3A a

de sistemas e padrões sociais de comunicaçãoculturalmente determinados.

Por exemplo, onde a crítica histórica das car-tas paulinas procura responder a questões de au-toria, cronologia*, seqüência, lugar de redação,identidade dos destinatários etc., a crítica socio-científica procura determinar por que Paulo es-creve cartas, que função as cartas desempenhamem relação à identidade e à autoridade de Paulocomo apóstolo*, quem precisava de cartas derecomendação e para que fim (cf. Rm 16,1-2),que fatores influenciavam a decisão paulina deescrever em vez de visitar em pessoa (cf. 2Cor10,1-12) e a maneira como as cartas paulinaseram recebidas (ver também Petersen, 1985).

2.2. Um corretivo ao “docetismo teológico”.A crítica sociocientífica apresenta um corretivoàs interpretações de Paulo que sofrem do que échamado “docetismo teológico”: a suposição deque o importante a respeito de Paulo e suas cartassão as idéias teológicas, independentemente deestarem inseridas na vida de pessoas e comuni-dades — idéias como justificação* pela fé*, oureconciliação (ver Paz, reconciliação), ou novacriação* em Cristo, ou os dons* do Espírito*,ou a Igreja* como o corpo de Cristo*. A tendên-cia a separar essas doutrinas de seu lugar históri-co, social, cultural e concreto na vida de Paulo ede seus companheiros de fé é refutada de manei-ra bastante positiva e esclarecedora pela determi-nação de uma análise sociocientífica para encon-trar os corpos no corpo de Cristo, ver como asrelações entre o senhor e o escravo são afetadaspela reconciliação, ver como a justificação afetaquem come com quem e quem dorme com queme observar se as mulheres entendem e praticama nova criação em Cristo de modo diferente doshomens e, nesse caso, por quê. Em outras pala-vras, o cristianismo paulino passa a ser vistonão mais como uma espécie de seminário teoló-gico do século I, porém muito mais como identi-dade e compromisso que grupos de pessoas de-senvolvem no contexto de uma vida comum, on-de as coisas importantes não são apenas crençasabsorvidas de algum modo por iniciativa pró-pria, mas sim crenças que moldam (e por suavez são moldadas por elas) as preocupações, asexperiências, a política e as obrigações da vidacotidiana (ver também Elliot, 1981, 1-20).

2.3. Modelos para preencher as lacunas.As ciências sociais também são importantes paraajudar a preencher as lacunas em nosso entendi-mento de Paulo e suas cartas. Precisamente por-que nosso conhecimento se baseia em textosfragmentários — algumas das cartas paulinasmais a prova secundária dos Atos dos Apóstolose das cartas subseqüentes de membros da escolapaulina —, é proveitoso ter modelos de interpre-tação que permitam juntar os fragmentos emum todo explicativo maior, de uma forma que,embora hipotética, esteja, mesmo assim, sujeitaaos controles dos próprios modelos interpretati-vos e das analogias usadas. Por exemplo, a socio-logia da seita é organizada para ajudar a respon-der a perguntas deste tipo: Como era tornar-secristão no século I? Por que as formas de lingua-gem e pensamento da apocalíptica são tão pre-dominantes nas cartas paulinas? Como a conver-são afetava as relações domésticas? Por que hátanta tensão no ensinamento paulino entre liber-dade e conformidade? Por que comer carne ofe-recida aos ídolos é tão controverso e por quePaulo segue um tom conciliatório (cf. 1Cor 8),enquanto o autor do Apocalipse é tão inflexívelem sua oposição (cf. Ap 2,14.20)? Ao chamara atenção para a importância da definição delimites e a manutenção desses limites para asobrevivência de pequenos grupos religiosos,as ciências sociais possibilitam uma interpre-tação mais holística do cristianismo paulino etambém tornam acessíveis novos discernimen-tos a respeito de problemas antigos e com fre-qüência não resolvidos.

2.4. Para entender a nós mesmos como lei-tores. Outra vantagem obtida das ciências sociaisé a contribuição que elas dão a nosso autoco-nhecimento como leitores das cartas paulinas.Para qualquer leitor da Escritura, a tentação éprocurar ali um reflexo da própria imagem. Éprovável que o luterano ali encontre o apóstoloda justificação pela fé; o carismático encontreo Paulo que ensina a respeito dos “dons espiri-tuais”; o protestante encontre o Paulo pregadore mestre do Cristo crucificado; o católico ro-mano encontre o Paulo apóstolo que, juntamen-te com Pedro e os outros apóstolos, institui aIgreja e ensina os sacramentos; é provável quea feminista encontre o Paulo liberacionista ou

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:193

4Aa

o Paulo misógino etc. Como sistematicamentechamam a atenção para as dimensões socioló-gicas do mundo por trás do texto, as ciênciassociais formulam simultaneamente a pergunta:Quais são as dimensões sociológicas do mundona frente do texto, o mundo do leitor? Até queponto a maneira como lemos e interpretamosPaulo é influenciada pelos determinantes so-ciais de nossa identidade, como sexo, classe,raça e religião? Uma percepção desse tipo aju-da o leitor a evitar interpretações de Paulo etno-cêntricas ou “tribais” inconscientes e, ao mes-mo tempo, oferece a possibilidade de se apro-priar de Paulo de maneira mais responsável.

2.5. Vantagens para a teologia e a ética.Uma última vantagem que vale a pena mencio-nar é a vantagem para a teologia e a ética*. Devi-do ao lugar fundamental de Paulo na formaçãodas crenças, das práticas e do autoconhecimentodos seguidores de Cristo, no século I e subse-qüentemente, é essencial para a integridade da fée do discipulado cristão que a verdade do teste-munho paulino de Cristo seja, em todas as suasdimensões, submetida ao escrutínio de todas asdisciplinas de pesquisa crítica, inclusive as ciên-cias sociais. A fé que busca o entendimento (nadefinição que Santo Anselmo deu à teologia)precisa incluir a fé que busca o entendimentosociocientífico. Em alguns pontos, isso ajudaos intérpretes a perceber que a verdade do teste-munho paulino enfrenta bem o escrutínio — co-mo, por exemplo, a primazia que ele dá ao amor(agap¶) como a característica definidora da co-munidade cristã (cf. 1Cor 13). Em outros pon-tos, leva os intérpretes a questionar a verdade dotestemunho paulino — como, por exemplo, oensinamento que ele transmite a respeito de ohomem ser a “cabeça” e dos símbolos de dife-renciação em 1 Coríntios 11,2-16 e 14,33-36.

3. Problemas da interpretação sociocientíficaSe existem vantagens óbvias no emprego demodelos das ciências sociais como estratage-mas heurísticos na interpretação paulina, exis-tem também dificuldades e perigos — emboraestes não sejam necessariamente exclusivos dainterpretação sociocientífica.

3.1. Anacronismo. Um dos problemas é odo anacronismo, de tomar modelos e métodos

sociológicos que se formaram na análise deorganizações, grupos ou sociedades modernase usá-los como instrumentos de análise para ainterpretação de grupos e sociedades da Anti-guidade. Essa crítica é feita, por exemplo, atentativas como a de J. G. Gager de descrever ocristianismo mais primitivo como movimentomilenário, pela analogia dos cultos da carga es-tudados por antropólogos como K. Burridge eP. Worsley. A mesma crítica é feita à aplicaçãoque E. Troeltsch fez da tipologia religiosa dasseitas (adotada depois por H. R. Niebuhr e B.Wilson, entre outros) a desenvolvimentos empadrões sociais na Igreja primitiva.

3.2. Raciocínio circular. Um segundo pro-blema também é metodológico: o da forma cir-cular, de começar com um modelo sociocientí-fico e descobrir que, estranhamente, o modeloautentica a si mesmo, em especial quando asprovas são fragmentárias. E. Gellner é persuasi-vo ao argumentar que as teorias psicológicas epsicanalistas são propensas a esse perigo, nãomenos importante porque os indícios que pare-cem ser contrários aos fatos explicam-se nostermos da própria teoria, como “resistência”,“transferência” ou “regressão” ou, de maneiramais geral, manifestação do “inconsciente”.Aqui, claro, o problema é que a teoria não estásujeita a falsificação. Por ser capaz de explicartanta coisa, ela corre o risco de não explicarabsolutamente nada. Como outro exemplo daforma circular, as tentativas de interpretar Paulonos termos da sociologia de autoridade carismá-tica exposta por M. Weber são prejudicadas porestar o problema da tipologia de Weber enrai-zado no estudo do cristianismo primitivo queele realizou.

3.3. Reivindicar demais. Outro problemada exegese sociocientífica é a tendência a rei-vindicar demais, o que resulta em reduzir de-terminado fenômeno histórico-religioso a seuspretensos determinantes sociológicos. A socio-logia funcionalista em especial está sujeita aeste problema, como vemos na tentativa inova-dora de W. Meeks de explicar a conversão àsIgrejas paulinas como função das experiênciasdos membros da “inconsistência da posição so-cial” no mundo mais amplo (Meeks, 1983).Nesta perspectiva, os de fora que eram atraídos

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:194

5A a

ao Evangelho de Paulo participavam das as-sembléias cristãs porque ali encontravam umethos e uma identidade que resolviam as ten-sões de posição social e de identidade experi-mentadas por eles fora das assembléias. Essahipótese tem valor, já que chama a atenção paraa possível — até mesmo provável — influên-cia de forças psicossociais e socioeconômicasnos convertidos ao cristianismo. Entretanto, elaé problemática na medida em que afasta a aten-ção da maneira como os participantes vêem ascoisas e deprecia as dimensões intelectuais, es-pirituais/místicas e emocionais da transforma-ção que a conversão sem dúvida envolvia (cf.1Ts 1,9-10; Gl 1,16-17; Fl 3,2-11).

3.4. As limitações das estatísticas. Um pro-blema relacionado é que as teorias sociocientífi-cas tendem a operar com base em julgamentosestatisticamente avaliados a respeito do que énormal em um grupo ou sociedade — daí a im-portância do questionário na coleta de dados so-ciocientíficos. Não só é óbvio que tais procedi-mentos sejam difíceis de ser aplicados no estu-do da Antiguidade: é também o caso que a essesprocedimentos foi incorporado um preconceitocontra o papel único, específico e criativo do in-divíduo. Assim, por exemplo, embora seja es-clarecedora para estabelecer o surgimento e o pro-gresso do cristianismo dentro do contexto de umasuposta luta de classes no mundo antigo, a teoriasocial marxista faz, provavelmente, menos quejustiça à interpretação do Evangelho e da mis-são de Paulo, essa figura bastante peculiar.

3.5. Pressuposições pós-iluminismo. Porfim, é importante estar ciente de que, como to-das as teorias de interpretação, as ciências so-ciais têm uma história. Suas raízes estão no ateís-mo pós-iluminismo e na hermenêutica da sus-peita, segundo a qual a teologia e a religião têmposição epifenomenal somente como produtosde outras forças e outros interesses, quer sejamo inconsciente humano (Freud), o conflito declasses (Marx), a manutenção da sociedade(Durkheim), a legitimação da autoridade patriar-cal (feminismo) ou outros quaisquer. Os intér-pretes de Paulo que estão dentro de uma tradiçãode fé cristã precisam se conscientizar dessa his-tória. Essa conscientização tem no mínimo doisefeitos. Por um lado, atua como salvaguarda

contra permitir que o projeto da interpretaçãopaulina se volte inadvertidamente para uma dire-ção secularizadora, afastada dos imperativosevangélicos de todas as comunidades de fé, paraas quais as cartas de Paulo fazem parte do cânonda Escritura e são fonte contínua de inspiração.Por outro lado, na medida em que um ateísmoe uma hermenêutica da suspeita muitas vezesse desenvolveram como reação contra o que J.Bowker chama de “insanidades permitidas” dareligião, então pode ser que o intérprete de Pauloacolha discernimentos hermenêuticos das ciên-cias sociais que possibilitem um compromissomais claro com a verdade do testemunho paulinoe os problemas dela.

4. Estudos de casos na interpretaçãosociocientífica

A melhor maneira de perceber o que está en-volvido neste tipo de abordagem a Paulo talvezseja tomar exemplos específicos como estudosde casos. Outras avaliações deste tipo tendem aagir pelo exame da obra de estudiosos impor-tantes no campo da exegese sociocientífica(e.g., Garrett). O presente relato considera, emvez disso, uma série de tópicos ou temas dascartas paulinas.

4.1. Teologia paulina da cruz. A mensagemda cruz e de Cristo crucificado é essencial parao entendimento paulino do Evangelho (cf. 1Cor1,17–2,5; Rm 8,31-34; ver Cruz, Teologia da).Para o teólogo contemporâneo, essa é, acertada-mente, uma doutrina fundamental no corpuspaulino. Entretanto, da perspectiva das ciênciassociais, a doutrina da cruz é também e ao mesmotempo um constructo social, parte de uma redede sentidos concretizados em padrões e relaçõessociais. O poder* da mensagem da cruz para “osque estão sendo salvos” (1Cor 1,18) não é só umpoder espiritual/místico: é também cultural esocial. Sua estrutura, sua inovação e sua forçaretórica* como negação, revogação ou transfor-mação dos valores culturais dominantes no mun-do paulino (cf. 1Cor 1,22-25) propiciaram a basepara desenvolver um mundo simbólico alterna-tivo e uma sociedade alternativa (a ekkl¶sia) comlimites de grupo, padrões sociais, estrutura deliderança, ethos, ordem moral, vocabulário, cultoe normas de comportamento próprios.

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:195

6Aa

Além disso, se perguntarmos por que ela étão essencial para a pregação e o autoconheci-mento de Paulo, e por que ele defende seuEvangelho tão veementemente a esse respeito,a resposta pode ser vista não só como umaquestão do que Paulo considera a verdadequanto a Deus e a Cristo, mas também comouma questão das relações sociais de Paulo comas várias comunidades cristãs nas quais ele rei-vindica autoridade* como apóstolo. O Evange-lho paulino e a autoridade paulina estão entrela-çados de maneira inextricável (Gl 1,6-17). Suadoutrina da cruz e seu papel e sua posição nassociedades cristãs como apostolos são duas fa-ces da mesma moeda; e a autoridade de Paulodepende de sua capacidade de transmitir comeficiência a mensagem da cruz juntamente comseus corolários culturais e socioeconômicos. Eletenta fazer isso pregando-a (qualquer que sejaa falta de sutileza retórica, cf. 1Cor 2,3-4), en-sinando e escrevendo cartas a respeito dela epersonificando-a em seu estilo de vida e em suapessoa. Portanto, não é coincidência que Paulo“se orgulhe” de suas experiências de sofrimen-to* e humilhação (cf. 1Cor 4,9-13; 2Cor 4,7-12; 6,3-10; 11,21b-33), pois são essas expe-riências que lhe permitem unir-se mais estreita-mente com o Cristo crucificado e reivindicar aautoridade para servir com mais eficiência demediador entre Cristo e seus companheiros defé. Isso ele faz pela imitatio Pauli — “Sede meusimitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1;cf. Fl 3,17; 4,9; ver Imitação). Os limites dessetipo de abordagem tornam-se evidentes se afir-mamos que a pregação paulina da cruz é questãoapenas de sua autoridade pessoal como apósto-lo, e que a verdade da mensagem é questão ape-nas de sua eficácia para possibilitar a inovaçãosocial. Esse tipo de redução em linhas funciona-listas, porém, não é parte integrante da aborda-gem em si. Por outro lado, o benefício potencialde uma interpretação sociocientífica é que o in-térprete recebe um método que esclarece os co-rolários e as ligações culturais e sociais do Evan-gelho de Paulo. De doutrina importante, masum tanto intangível, a cruz passa a ser conside-rada também uma realidade social incorporada(metafórica e literalmente) ao autoconhecimentoe aos padrões sociais dos primeiros cristãos e

um de seus apóstolos principais (ver tambémBarton, 1982; Meeks, 1982).

4.2. A ressurreição de Cristo. A doutrinapaulina da ressurreição* de Cristo também podeser interpretada em termos sociocientíficos. Tra-dicionalmente, esta doutrina é abordada com ouso de questões de historicidade (o tipo de per-gunta: “o que realmente aconteceu?”) ou de teo-logia sistemática (o tipo de pergunta: “o queisso nos diz a respeito de Deus/Cristo/escatolo-gia etc.?”). Essas são preocupações fundamen-tais e inteiramente legítimas, que têm a ver, pelomenos em parte, com as proclamações da verda-de da fé cristã para as quais o testemunho dePaulo é decisivo. Mas é legítimo também per-guntar se o sentido e a importância da ressurrei-ção de Cristo são esgotados por essas aborda-gens tradicionais. A crença paulina na ressurrei-ção de Cristo não faz parte da realidade socialde Paulo e suas Igrejas tanto quanto a doutrinada cruz? Nesse caso, em que sentido? Essas sãoperguntas sociocientíficas e são possíveis diver-sas respostas (cf. Meeks, 1982; Barton, 1984).

Primeiro, a ressurreição de Cristo por Deusproporciona a raison d’être da inovação funda-mental nos padrões sociais representados pelacomunidade cristã. Em Romanos 4,16-25, Pauloafirma que assim como a ressurreição dos cor-pos mortos (isto é, impotentes) de Abraão e Sarapossibilitou a criação de um povo eleito, a res-surreição do Jesus morto possibilita a realizaçãoda promessa a Abraão na criação da comunidadede fé que agora consiste de judeus e também degentios. O Deus “que faz viver os mortos e cha-ma à existência o que não existe” (Rm 4,17) é oDeus que chama à existência esta nova comuni-dade universalista dos justificados que até agorase acreditava ser um ideal só alcançável no futu-ro escatológico. Do ponto de vista da sociologiado conhecimento, portanto, a ressurreição cons-titui o “pálio sagrado” (segundo P. Berger) dosconventículos cristãos. Legitima a existência de-les pela referência a um ato de Deus e propiciao fundamento para sua forma carismática e re-cente de sociedade.

Segundo, a singularidade da crença paulinana ressurreição — que Deus ressuscitou nin-guém menos que Jesus — dá singularidade àcomunidade. A elaboração do sentido da res-

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:196

7A a

surreição para Jesus é, ao mesmo tempo, elabo-ração de seu sentido para a comunidade dosque crêem em Jesus. Em outras palavras, o au-toconhecimento da comunidade reflete-se emsuas representações do Cristo crucificado e res-suscitado e é por elas ampliado. Assim, segun-do Romanos 1,4, Jesus foi estabelecido “Filhode Deus” por sua ressurreição dentre os mor-tos. É digno de nota que o nome dado aos fiéiscorresponda diretamente. Eles são “filhos deDeus”, “filhos adotivos” e “co-herdeiros deCristo” (Rm 8,14-17; ver Adoção, filiação). Aidentidade do ressuscitado determina a identi-dade das comunidades dos que crêem nele.Além disso, a autoridade na comunidade é tam-bém de um tipo especial. Está nas mãos dosque afirmam ter sido testemunhas da ressurrei-ção (cf. 1Cor 9,1; 15,8-9).

Terceiro, como ressurreição daquele que foicrucificado vergonhosamente, a ressurreiçãoserve de teodicéia poderosa. As ameaças anômi-cas à vida comunitária representadas pela mortede Jesus e pelo sofrimento e pela morte de outrosmembros da comunidade estão superadas. O lí-der crucificado é reincorporado à comunidadecomo Senhor ressuscitado e celeste; e seu triunfosobre a morte, repetidamente afirmado em cre-dos*, hinos* e rituais (do batismo), torna-se sím-bolo poderoso da verdade do Evangelho e dacontinuidade e da integridade da comunidade.

Finalmente, a crença na ressurreição fun-ciona como estímulo à mudança social e cultu-ral no cristianismo paulino. O padrão bináriomorte–ressurreição conduz a isso, pois propor-ciona uma estrutura de pensamento particular-mente acessível à descrição de alternativas, pro-gressões e transformações, todas as quais aju-dam a estabelecer os limites e contornos danova comunidade. Essa transformação tem umaspecto somático (cf. Rm 6,12-14). Portanto,ela tem também, necessariamente, um aspectosocial (cf. 1Cor 6,12-20). No entanto, mudançademais ou mudança do tipo errado pode serprejudicial; assim, é digno de nota onde Paulose abstém de apelar à fé da ressurreição. Exem-plo característico é Romanos 13,1-7, em queuma doutrina pragmática e conservadora deobediência política baseia-se em apelos à sobe-rania de Deus e à voz da consciência*, não à

doutrina talvez mais subversiva da ressurreição(ver Autoridade civil).

É preciso realizar mais trabalho nesta área,mas novamente é possível ver que as possibi-lidades aventadas por questões das ciências so-ciais só são inúteis se distorcem fundamental-mente o sentido das cartas paulinas ou se des-viam de seu sentido verdadeiro. Entretanto, assugestões feitas aqui a respeito da ressurreiçãomostram, ao contrário, que as ciências sociaisdão importante contribuição ao que Meeks de-nominou “hermenêutica da personificação so-cial” (Meeks, 1986).

4.3. Apoio financeiro e material. Passar dacruz e da ressurreição para os meios paulinosde apoio financeiro e material talvez pareça ummovimento do sublime para o banal — mas asaparências enganam; e são precisamente as ciên-cias sociais que ajudam o intérprete de Paulo aperceber não só que esta é uma questão impor-tante, mas também por que é importante (verApoio financeiro).

O leitor cuidadoso das cartas paulinas sesurpreende, talvez, com a quantidade de refe-rência a assuntos de dinheiro e questões rela-cionadas, como padrões de subsistência. Ogrande teólogo da graça* e da reconciliaçãoparece indevidamente preocupado com assun-tos mundanos de diretrizes financeiras e empre-go (cf. 1Ts 2,1-12; 1Cor 4,8-13; 9,1-18; 2Cor8-9; 11,7-11). Qual a razão disso? Por que di-nheiro e trabalho interessam a Paulo? É umadica para um aspecto importante do autoconhe-cimento de Paulo como apóstolo de Cristo quemenosprezamos em nosso enfoque caolho noteólogo Paulo?

O assunto vem à tona logo no início da cor-respondência paulina preservada. Em 1 Tessalo-nicenses 2,3-12, Paulo defende a autenticidadede seu Evangelho afirmando que não prega porganho pecuniário. Suas palavras não têm “se-gundas intenções de lucro”; e ele não usa suaautoridade apostólica para fazer exigências fi-nanceiras e materiais de seus leitores. Assim,no autoconhecimento paulino há um elo claroentre a legitimidade de sua mensagem e o pa-drão de sua subsistência material. Paulo sabeque o dinheiro fala. Acima de tudo, mantendo aindependência financeira, Paulo está apto a pro-

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:197

8Aa

teger e assegurar a independência e a integridadede seu Evangelho. É “o Evangelho” de Deus*(1Ts 2,2) e não está sujeito nem é influenciadopor transações financeiras: por isso não é vul-nerável à acusação de ser planejado e modela-do a fim de “agradar aos homens” (1Ts 2,4).Além do mais, o próprio Paulo é “apóstolo deCristo” (1Ts 2,7). Ele não pertence a um ben-feitor humano, mas a um benfeitor celeste; e aindependência financeira ajuda a expressar egarantir isso. Paulo sabe muito bem que o di-nheiro é fonte de poder e influência, que aceitare dar dinheiro cria obrigações entre as pessoas eas une em relações de subordinação e domínio.Por isso, ele trabalha para si: “foi trabalhandodia e noite, para não ser dependente de nenhumde vós, que vos anunciamos o Evangelho deDeus” (1Ts 2,9).

É preciso fazer mais análises do tipo so-ciocientífico no que agora percebemos ser umaspecto altamente esclarecedor da prática mis-sionária* paulina. As contribuições mais im-portantes até agora foram feitas por B. Holm-berg (1978), R. Hock (1980) e G. Theissen(1982). Eles mostram que os meios de sustentopaulino relacionam-se intimamente com a inte-gridade de seu Evangelho e a legitimidade deseu apostolado e que, ao trabalhar de formasacrifical para se sustentar, Paulo estabeleceuma consistência entre sua prática e o Evange-lho que prega (cf. 1Ts 2,8). Evangelho e após-tolo são um só: e a recusa de Paulo a se adaptara normas culturais que consideram o trabalhobraçal degradante expressa e personifica os dis-cernimentos que transformam a cultura do Evan-gelho que ele prega. Além disso, ao apresentaro Evangelho “gratuitamente” (1Cor 9,18) combase em seu trabalho na oficina como fabri-cante de tendas* ou artesão do couro, Paulopode alcançar os que estão na parte inferior daescala social. Com efeito, aí está um Evangelhoque não vincula o ingresso a um laço financeirooneroso e é apresentado por alguém que é, elepróprio, trabalhador braçal. Portanto, é sur-preendente que o apóstolo capaz de descer nomundo a fim de conquistar a maioria das pes-soas (i.e., os pobres) seja também o que assumeoutra obrigação financeira — a coleta — paraos fiéis empobrecidos da Igreja de Jerusalém

(cf. 2Cor 9)? Talvez valha a pena observar queneste ponto da interpretação de Paulo uma sig-nificativa convergência de interesse entre asciências sociais e a teologia da libertação tor-na-se possível.

4.4. Alimento e confraternização à mesa.Outro assunto mundano que parece exigir umaparte considerável da atenção paulina tem a vercom o alimento*, o ato de comer e as refeições.Esses assuntos parecem dominar quase comple-tamente os contatos de Paulo com os cristãos deCorinto (cf. 1Cor 8,1-13; 9,4.7.8-12.13-14.22;10,1-31; 11,17-34), mas não se restringem a eles,como mostra Romanos 14. Por tradição, e muitoapropriadamente, a interpretação desses textosconcentra-se em uma série de questões impor-tantes. Primeiro, existem questões históricas eexegéticas, como: Quem são os “fracos” e os “for-tes”*? ou Qual é a natureza da suposta heresiagnóstica que Paulo tenta combater? etc. Segun-do, existem questões teológicas, como o entendi-mento paulino da Ceia* do Senhor em 1 Coríntios10 e 11, ou a idéia paulina do papel da consciên-cia* na vida de discernimento cristão, ou a dou-trina paulina da Igreja*. Terceiro, existem ques-tões morais e pastorais relacionadas ao problemado “irmão mais fraco” e aos limites da liberdadecristã ou à questão dos limites da condescendên-cia do fiel com “o mundo”. Essas preocupaçõessão inteiramente válidas. Entretanto, de uma pers-pectiva sociocientífica, falta uma dimensão im-portante, que lance uma luz nova em por quequestões relativas a alimento e refeições recebema proeminência que elas têm nas cartas paulinas,por que essas questões geram ansiedade e porque Paulo reage do jeito que reage.

De um ponto de vista sociocientífico, o ali-mento e as refeições são um meio simbólicofundamental pelo qual um grupo ou uma socie-dade expressa seus valores e sua identidade. Oque é natural (alimento e a ingestão corporal dealimento) transforma-se em algo cultural ao terde manter e expressar sentidos sociais. Comoos antropólogos C. Lévi-Strauss, M. Douglas eE. Leach demonstraram, o alimento constituium sistema de comunicação, e cozinhar e comerconstituem uma espécie de linguagem pela qualum grupo se define. Há uma relação simbólicaentre o alimento ingerido pelo corpo físico e a

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:198

9A a

identidade e o autoconhecimento do corpo so-cial. Em outras palavras, o modo de lidar comos alimentos é um barômetro das relações so-ciais e um mecanismo para criar ou destruir asociabilidade. Como o alimento se comunica —a semiótica do alimento — varia enormemente,mas em geral tem a ver com: 1) o tipo de comidae bebida que as pessoas consomem ou de quese abstêm — carne ou verdura “pura” ou “im-pura”, cozida ou crua, bebida alcoólica ou não-alcoólica etc; 2) o tempo e a freqüência de comer(ou jejuar); 3) o tempo de preparar e o tempotomado pelo preparo da refeição; 4) a quantidadede alimento consumida; 5) com quem as refei-ções são partilhadas e quem é excluído da re-feição; 6) a geografia simbólica da refeição —quem senta onde e por quê, onde as mulheressentam em relação aos homens, se a refeição étomada em particular ou em público etc.; 7) asroupas vestidas pelos participantes; 8) sons ousilêncios apropriados durante a refeição etc. (vertambém Barton, 1986).

Quando visto nessa luz, o grau de atençãoque Paulo dedica à instrução de seus gruposquanto à correta organização da confraterniza-ção à mesa torna-se muito mais inteligível. Ve-mos, por exemplo, que onde comer carne consa-grada a ídolos* corre o risco de transmitir amensagem que o limite importantíssimo entrefidelidade aos ídolos e fidelidade ao senhoriode Cristo foi transigido, Paulo exige extrema vi-gilância e, onde necessário, a separação. Ondeas refeições dos fiéis expressam apenas dissen-são e divisão, Paulo exige uma confraternizaçãoà mesa que promova e expresse solidariedade.Onde as refeições se transformam em oportuni-dade para consumo conspícuo de uma formaque separa os membros ricos dos pobres, Pauloexige o autocontrole e a hospitalidade em con-sideração pelos outros. Acima de tudo, Pauloinstitui um tipo diferente de refeição: “a refeiçãodo Senhor” (kyriakon deipnon). Antropologica-mente falando, essa refeição funciona como ri-tual de incorporação. O ato de se reunir paracomer, a recitação da tradição da última ceia, apartilha do “pão” e do “cálice”, a lembrança ea proclamação e os atos de introspecção morale social permitem às pessoas de grupos domésti-cos separados (e potencialmente concorrentes)

mudar seus padrões de fidelidade sem a ameaçade humilhação e reconstituir-se como membrosde uma nova sociedade que eles representamcomo uma casa de fé única e transformada ba-seada no amor*.

Uma leitura sociocientífica de Paulo dessamaneira só é inútil se desvia a atenção das pro-fundas questões teológicas, eclesiológicas e éti-cas que surgem em uma carta como 1 Coríntios.Entretanto, é possível argumentar em contrárioque, longe de distrair a atenção, essa leitura pos-sibilita maior profundidade para interpretar e in-corporar Paulo porque os ossos da doutrina pau-lina ganham carne e sangue e recobram a cons-ciência em seu meio social e cultural. Mudandoum pouco a metáfora, o corpo do pensamentopaulino relaciona-se com Paulo e seus compa-nheiros de fé como corpos individuais e comPaulo e seus companheiros de fé como “o corpode Cristo” dentro do corpo maior das cidades esociedades nas quais viviam. B. L. Malina(1981), G. Theissen (1982), W. A. Meeks (1983),L. W. Countryman (1988) e J. H. Neyrey mostra-ram uma pista importante nessa direção para ainterpretação de Paulo.

4.5. Autoridade apostólica e ordem da Igreja.Como último estudo de caso, merecem atençãoo tema da autoridade apostólica de Paulo e aquestão da ordem nas Igrejas paulinas. Este étema importante, teológica e eclesiologicamen-te. Teologicamente, tem ligação com a autenti-cidade do Evangelho de Paulo e seu testemu-nho de Cristo e com o valor a ser conferido asuas cartas e às cartas que lhe são atribuídasno cânon*. Eclesiologicamente, tem ligaçãocom a legitimidade de toda a tradição da refor-ma e as tentativas associadas e subseqüentes dedefinir a ordem da Igreja em termos de carismaem vez de posição, espírito em vez de lei.

Entretanto, quando é adotada uma aborda-gem sociocientífica, é digno de nota que o de-bate tradicional dos estudiosos concentre-se nasidéias de Paulo e que seja dada pouca atençãoaos fenômenos sociais — como se para suben-tender que as idéias paulinas surgiram, de algummodo, desligadas e livres de seu contexto sociale histórico. Os tipos de fenômenos para os quaiso cientista social chama a atenção são: 1) a dis-tribuição do poder nos grupos paulinos e entre

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:199

10Aa

eles, inclusive os efeitos do sistema universalde patrão-cliente e relações com o benfeitor naAntiguidade romana; 2) relações entre os gru-pos paulinos e a Igreja de Jerusalém*, inclusivea importância da coleta* de Paulo para Jerusa-lém; 3) os efeitos de diferenças de riqueza, digni-dade, posição social, sexo e afiliação étnica empapéis e funções nas Igrejas; 4) a influência nasIgrejas de padrões de relacionamento social eordem comunitária praticados na sociedade emgeral — quer os da cidade (polis), quer os daassociação voluntária (collegium, synag∞g¶ etc.)ou da casa* (oikos); 5) o papel dos colaborado-res*, emissários e representantes locais dePaulo; 6) os meios de comunicação e sua efi-ciência relativa, inclusive as cartas de Paulo esuas visitas pessoais; 7) a evidente disposiçãode Paulo a adotar um estilo de vida visivelmenteliminar — culturalmente anômalo, sociopoliti-camente provocativo, financeiramente indepen-dente, fisicamente perigoso etc.

Principalmente nas últimas décadas, impor-tantes contribuições foram feitas nesta área, deum tipo de história social (e.g., Martin, 1990)e de um tipo sociocientífico (e.g., Holmberg,1978; Petersen, 1985; Watson, 1986; MacDo-nald, 1988). Os benefícios são evidentes. Pri-meiro, essas abordagens revelam a complexida-de da autoridade apostólica paulina e da ordemda Igreja nos grupos paulinos (ver Ordem egoverno da Igreja). Mostram que a atenção aoque Paulo ensina não é base suficiente parauma interpretação adequada da eclesiologiapaulina. Na verdade, de uma perspectiva socio-científica, usar uma categoria como “eclesiolo-gia” é correr, logo de início, o risco de reduziruma realidade social bastante complexa e mul-tifacetada a uma estrutura de referência unidi-mensional e doutrinal.

Segundo, essas abordagens ajudam a com-bater uma idealização muitas vezes apologéticae polêmica da autoridade apostólica paulina eda vida dos grupos paulinos. Essa é uma ten-dência muito forte entre aqueles para quem épossível invocar o Paulo “apóstolo da liberda-de” ou “apóstolo do Espírito livre” como basepara justificar — correta ou erradamente — areligião informal, de pequenos grupos, contraa religião hierárquica, institucionalizada (ver

Catolicismo primitivo). É uma forte tendênciatambém entre os que querem denegrir certotipo de Igreja, que é “legalista” ou “ligada àtradição” (segundo o padrão que se imagina tersido o da Igreja de Jerusalém) em favor de ou-tro tipo de Igreja que é “guiada pelo Espírito”e “participativa” (segundo o padrão que se ima-gina ter sido o de Paulo e seus grupos).

Terceiro, as abordagens sociocientíficaspermitem-nos ver que o processo de institucio-nalização ou (segundo M. Weber) de rotiniza-ção, evidente no período paulino e pós-paulino,não é, necessariamente, um desenvolvimentoretrógrado, a queda de uma idade de ouro caris-mática. Pelo contrário, desde o início, a autori-dade carismática de Paulo relacionou-se inti-mamente com tipos tradicionais e institucionaisde autoridade (em Antioquia e Jerusalém), e épossível afirmar que a rotinização foi essencialpara que o impulso e o ímpeto originais doEvangelho fossem preservados e transmitidos.

5. ConclusãoAs abordagens à interpretação neotestamentá-ria de uma perspectiva sociocientífica florescemrapidamente e começam a exercer impacto signi-ficativo em nosso entendimento de Paulo e suascartas (ver também Baron, 1992). Aqui restaarriscar uma sugestão para o debate contínuo epossíveis meios de prosseguir. A proposta é queseja dada mais atenção à história e à prática dainterpretação paulina de um ponto de vistaespecificamente sociocientífico. Em outras pala-vras, a interpretação sociológica de Paulo preci-sa ser acompanhada da interpretação sociológicados leitores e intérpretes paulinos.

Esse processo talvez nos torne mais cons-cientes de como, no passado e no presente, osinteresses ideológicos dos intérpretes domina-ram o apóstolo Paulo e as Igrejas de Paulo —voluntária ou involuntariamente, para o bem epara o mal. K. Stendahl deu um importanteprimeiro passo a este respeito em seu ensaio“Paulo e a consciência introspectiva do Ociden-te” (1963, in Stendahl, 1977), onde afirma quea doutrina paulina de justificação* foi detur-pada por ter ficado presa a uma antropologiaagostiniana e subseqüentemente luterana e (maistarde ainda) freudiana, concentrada na cons-

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:1910

11A a

ciência introspectiva do indivíduo. Mais recen-temente, intérpretes feministas e da libertaçãousaram discernimentos tirados da sociologia doconhecimento para questionar a adequação de(respectivamente) interpretações androcêntri-cas e do primeiro mundo de Paulo e possibilitarum processo de “conscientização” de uma for-ma que tenha implicações potencialmente radi-cais (Fiorenza, 1983).

De um jeito bastante novo, então, as ciênciassociais e a hermenêutica relacionada da suspeitaconfrontam o intérprete de Paulo com o proble-ma da teologia e da ética da interpretação. Isso,por sua vez, requer, por parte dos intérpretes,certo grau de autoconhecimento hermenêuticoque é, ao mesmo tempo, exigente e revigorador(cf. Thiselton, 1992). A luta para definir o “cen-tro”* da teologia e do autoconhecimento paulinocomo apóstolo no contexto social e político delepassa a ser considerada agora parte da luta dointérprete e das diversas comunidades de inter-pretação para definir o centro da teologia e doautoconhecimento deles nos contextos sociaise políticos deles. O que dá solidez a este proces-so interpretativo tem a ver, em parte, com a so-lidez dos métodos de interpretação usados — eaqui os modelos das ciências sociais têm umpapel a desempenhar ao lado de outros métodosde um tipo histórico e literário-exegético. Mastambém tem a ver (segundo os termos de D.Kelsey) com certas “decisões políticas” porparte do intérprete e da comunidade da qualele é membro. É aí que a teologia e a ética deinterpretação se envolvem e onde, mais umavez, as ciências sociais têm um papel signifi-cativo a desempenhar.

Ver também APÓSTOLO; AUTORIDADE; COR-PO DE CRISTO; ORDEM E GOVERNO DA IGREJA;CRUZ, TEOLOGIA DA; ESCATOLOGIA; APOIO FINAN-CEIRO; ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS

DIETÉTICAS JUDAICAS; HERMENÊUTICA/INTERPRE-TAÇÃO DE PAULO; AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS

MISSIONÁRIAS.

BIBLIOGRAFIA: S. C. Barton. “Paul and the Cross:A Sociological Approach”. Theology 85, 1982,13-19; Idem. “Paul and the Resurrection: A So-ciological Approach”. Religion 14, 1984, 67-75;Idem. “Paul’s Sense of Place: An Anthropologi-

cal Approach to Community Formation in Co-rinth”. NTS 32, 1986, 225-246; Idem. “TheCommunal Dimension of Earliest Christianity:A Critical Survey of the Field”. JTS 43, 1992,399-427; L.W. Countryman. Dirt, Greed andSex. Philadelphia, Fortress, 1988; J. H. Elliott.A Home for the homeless. Philadelphia, Fortress,1981; E. S. Fiorenza. In Memory of Her. NewYork, Crossroad, 1983; J. G. Gager. Kingdomand Community: The Social World of EarlyChristianity. Englewood Cliffs, NJ, Prentice-Hall, 1975; S. R. Garrett. “Sociology of EarlyChristianity”. ABD VI, 89-99; R. F. Hock. TheSocial Context of Paul’s Ministry. Philadelphia,Fortress, 1980; B. Holmberg. Paul and Power.Lund, CWK Gleerup, 1978; M. Y. MacDonald.The Pauline Churches. Cambridge, UniversityPress, 1988; B. L. Malina. The New TestamentWorld. Atlanta, John Knox, 1981; D. B. Martin.Slavery as Salvation. New Haven, Yale Univer-sity, 1990; W. A. Meeks. “The Social Contextof Pauline Theology”. Int 37, 1982, 266-277;Idem. The First Urban Christians. New Haven,Yale University, 1983; Idem. “A Hermeneuticsof Social Embodiment”. HTR 79, 1986, 176-186; J. H. Neyrey. Paul, in Other Words.Louisville, Westminster/John Knox, 1990; N. R.Petersen. Rediscovering Paul: Philemon and theSociology of Paul’s Narrative World. Phi-ladelphia, Fortress, 1985; K. Stendahl. PaulAmong Jews and Gentiles. Philadelphia, For-tress, 1976; G. Theissen. The Social Setting ofPauline Christianity. Philadelphia, Fortress,1982; A. C. Thiselton. New Horizons in Herme-neutics. Grand Rapids, Zondervan, 1992; F.Watson. Paul, Judaism and the Gentiles. Cam-bridge, University Press, 1986.

S. C. BARTON

ABRAÃOPaulo faz de Abraão a figura-chave no desen-volvimento de sua argumentação nas cartas aosGálatas* e aos Romanos*. Ele utiliza Abraão demaneira menos significativa em 2 Coríntios*.Abraão figura proeminentemente na literaturajudaica contemporânea de Paulo, e essas tradi-ções formam um pano de fundo contra o qualfica mais fácil entender o uso que Paulo faz deAbraão em suas cartas.

ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1911

12Aa

1. Abraão no AT e na literatura judaica.2. Abraão em Gálatas.3. Abraão em Romanos.4. Abraão em 2 Coríntios.

1. Abraão no AT e na literatura judaicaA importância do papel desempenhado pelospatriarcas aumentou incessantemente para opovo judeu depois que este voltou do exílioem Babilônia. Abraão foi uma das figurasimportantes com um prestígio que se refletiuna literatura judaica extrabíblica e no NT.

1.1. Abraão no AT. As narrativas mais tar-dias de Abraão baseiam-se nas histórias do pa-triarca contadas no Gênesis. A descrição da vidade Abraão encontra-se no primeiro livro da Bí-blia hebraica, desde a inclusão na genealogia deseu pai, Térah (Gn 11,27), até a morte e o sepul-tamento (Gn 25,7-10). Os principais aconteci-mentos da vida de Abraão são a partida da terranatal (Gn 12,1), as estadas no Egito e em Guerar(Gn 12,10-20; 20,1-18), o combate contra osreis (Gn 14,1-16), o encontro com Malki-Sédeq(Gn 14,17-20), a aliança que Deus* fez com ele(Gn 15,7-21; 17,2.4), a união com Hagar e onascimento de Ismael (Gn 16,1-15), o manda-mento divino da circuncisão para Abraão e seusdescendentes (Gn 17,9-14), a promessa do nasci-mento de Isaac (Gn 17,15-21), o nascimento deIsaac (Gn 21,1-7), a proposição do sacrifíciode Isaac (Gn 22,1-19) e a morte e o o sepulta-mento de Sara (Gn 23,1-20).

No relato do Gênesis encontram-se quatrotemas principais: as promessas de Deus de queAbraão teria muitos descendentes (Gn 12,2;13,16; 15,5; 17,2.4; 22,17) e a dádiva de umaterra (Gn 12,7; 13,14-15; 15,7), a obediência deAbraão (12,1-4; 17,1; 22,16-18) e a bênçãosubseqüente de todas as nações por intermédiode Abraão (Gn 12,3; 22,18).

No AT Abraão atua de três maneiras princi-pais. Primeiro, ele é o pai do povo judeu (Gn25,19; 26,15.24; 28,13; 32,9; 48,15-16; Ex 3,6;Dt 1,8; 6,10; 9,5; 30,20; Js 24,3; 1Cr 1,27-28.34;16,13; Sl 105,6; Is 41,8; Jr 33,26; Mq 7,20).Segundo, ele é a fonte original de bênçãos parao povo judeu (Gn 26,24; 28,4; 35,12; 50,24; Ex2,24; 6,3-8; 32,13; 33,1; Nm 32,11; Dt 1,8; 6,10;9,5.27; 29,13; 30,20; 34,4; 2Rs 13,23; 1Cr 16,15-

16; 2Cr 20,7; Sl 105,7-11.42; Is 51,2; Mq 7,20).Terceiro, seu nome é usado para identificar oDeus do povo judaico como “o Deus de Abraão”(Gn 28,13; 31,42.53; 32,9; Ex 3,6.15-16; 4,5;1Rs 18,36; 1Cr 29,18; 2Cr 30,6; Sl 47,9).

Abraão atua de três outras maneiras dignasde nota. A obediência a Deus e suas leis (Gn26,4-5; ver também Ne 9,7-8) foi a base para abênção de seus descendentes. A compaixão deDeus pelo povo judeu é, às vezes, invocada nasbases de sua aliança com Abraão (Dt 9,27; 2Rs13,23; Mq 7,18-20). Por último, Deus tiraAbraão do meio da idolatria* (Js 24,2-3).

1.2. Abraão na literatura judaica primitiva.Os autores da literatura judaica de 200 a.C. a200 d.C. recorreram a muitos dos mesmos te-mas encontrados nos relatos do AT, conformesuas situações particulares. Josefo e Fílon des-crevem Abraão como alguém que assimila acultura pagã, em especial a cultura helenística(e.g., Josefo, Ant. 1,8,2 §§166-168; Fílon, Abr.88). Em outros textos, Abraão é alguém quese afasta da influência pagã (Jub 22,16; Pseu-do-Fílon, AntBíb 6,4). Os autores desses textostêm motivos apologéticos e didáticos. Os ju-deus são instruídos para viverem suas situaçõesrespectivas da mesma maneira que Abraão édescrito vivendo em um contexto específico.

Nesses textos encontram-se quatro temasprincipais. Primeiro, a ênfase em Abraão, mo-noteísta obstinado, muitas vezes descrito comopioneiro, prevalece em textos palestinos e daDiáspora, de 200 a.C. a 200 d.C. (Jub 11,16-17;12,1-5.16-21; 20,6-9; Pseudo-Fílon, AntBíb 6,4;Josefo, Ant. 1,7,1 §154-157; Fílon, Abr. 68-71,88; ApAbr 1-8). Segundo, Deus estabelece comAbraão uma aliança* pela qual seus descenden-tes são abençoados (Jub 15,9-10; Pseudo-Fílon,AntBíb 7,4; 1QapGen 21,8-14) e recebem com-paixão (Pseudo-Fílon, AntBíb 30,7; SlSal 9,8-11;TLev 15,4; AssMo 3,8-9). Entretanto, às vezes épreciso obedecer às condições da aliança, a fimde permanecer nela (Jub 15,26-27). No devidotempo, outras nações também seriam abençoa-das (Sr 44,21). Terceiro, o caráter de Abraão éelogiado. Ele é justo (TAbr 1,1A), hospitaleiro(TAbr 1,1-3A; Fílon Abr. 107-110; Josefo Ant.1,11,2 §196) e virtuoso (Josefo, Ant. 1,7,1 §154;Fílon, Abr. 68). É fiel (Sr 44,20; 1Mc 2,52; Jub

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1912

13A a

17,17-18), ama a Deus (Jub 17,18) e é até cha-mado amigo de Deus (CD 3,2-4). Josefo afirmaque Abraão e sua descendência são recompen-sados por causa da virtude e religiosidade dopatriarca (Ant. 1,13,4 §234). Quarto, Abraão vi-veu segundo a lei mosaica (Jub 15,1-2; 16,20;Sr 44,20) ou a lei natural/filosófica (Fílon, Abr.3-6). Abraão está vivo (4Mc 7,19; 16,25; TLev18,14; TJud 25,1; TBen 10,6) e louva os quemorrem por guardarem a lei (4Mc 13,13-18).Abraão confirmou a aliança ao ser circunci-dado (Sr 44,20). Além disso, Abraão é dignode nota por seus poderes de intercessão (TAbr18,10-11A) e sua ascensão aos céus, onde re-cebe a revelação (Pseudo-Fílon, AntBíb 18,5;TAbr 10-14; ApAbr 15,4-30).

2. Abraão em Gálatas2.1. A situação na Galácia. A própria carta

deixa claro que cristãos de origem pagã faziamparte da comunidade da Galácia (Gl 4,8), e nomeio deles havia algumas pessoas que contesta-vam o Evangelho de Paulo e perturbavam essesrecém-convertidos (Gl 1,7-9; 5,8-10). Essas pes-soas persuadiam os pagãos convertidos a obede-cer aos preceitos da lei* mosaica (Gl 3,1-2; 4,8-10), em especial a circuncisão* (Gl 5,2-3; 6,12-13). Em vista dos indícios contidos na carta, pa-rece mais provável que os adversários de Paulo*fossem judeu-cristãos (Gl 4,30; Paulo alude a“outro evangelho” em Gl 1,6-9; ver Judaizantes).

Muitos biblistas observam que Abraão deveter desempenhado um papel fundamental nosargumentos dos adversários de Paulo. Por exem-plo, J. C. Beker afirma que os adversários dePaulo eram os que achavam que não bastava osgentios* se voltarem para Cristo. A fim de tercerteza de que estavam sob a bênção de Deus eeram verdadeiros filhos de Abraão, tinham departicipar plenamente da Torá (Beker, 42-44).

2.2. O texto de Gálatas.2.2.1. Gl 3,1–3,14. O tom zangado de Paulo

é evidente desde o início da Carta aos Gálatas,pois omite a passagem de ação de graças quegeralmente encontramos em suas cartas. Ele oschama de “estúpidos” (Gl 3,1.3), por se deixa-rem seduzir (Gl 3,1) para obedecer aos requisitosda lei (Gl 3,2.3.5). As perguntas mordazes de

Gl 3,1-5 servem para destacar os temas da argu-mentação que vem em seguida.

Nessas perguntas sarcásticas, Paulo estabe-lece uma antítese entre a “prática da lei”* (erg∞n

nomou) e escutar a “mensagem da fé” (ako¶s

piste∞s). Deus operou milagres entre eles emvirtude da “prática da lei” ou porque eles escu-taram “a mensagem de fé?” (Gl 3,5). Aqui, aprincipal preocupação de Paulo é alertar os leito-res para o contraste entre “ouvir a mensagem defé” e a “prática da lei”, e para que eles conside-rem o erro grave em que incorreram.

O argumento que Paulo tira da Escritura, aresposta que ele mesmo dá a suas perguntas re-tóricas anteriores (Betz, 130), gira em torno deAbraão: “Visto que Abraão teve fé em Deus eisto lhe foi tido em conta de justiça” (Gl 3,6).B. Byrne afirma que o uso de kath∞s (“vistoque”) subentende que o que se segue correspon-de ao que acabou de ser descrito (Byrne, 148).Abraão é o que acreditava em Deus e, pela açãode Deus, foi tido como justo. Isso correspondeao Espírito enviado por Deus por causa da fé doscrentes gálatas. A recepção do Espírito peloscrentes gálatas é paralela à recepção de justiça*por Abraão (Barclay, 80; ver Espírito Santo).

Ao se basear em Abraão para analisar o con-traste entre a fé e as obras, Paulo vê Abraão deum jeito novo. Antes, o judaísmo visualizavajuntas a fé de Abraão e suas obras. Por exemplo,em Jubileus, Abraão não só é o primeiro a seseparar da família e adorar o Deus* Criadorúnico (Jub 11,16-17; 12,16-21), mas tambémobserva os preceitos da lei mosaica como a Festadas Tendas (Jub 16,20; cf. 22,1-2). Em suasobras, Fílon descreve Abraão como seguidor dalei natural (Fílon, Abr. 275-276). Para Fílon, alei da natureza e a lei de Moisés são idênticas.Somente a lei que foi revelada por Deus, o cria-dor da natureza, está realmente de acordo coma lei natural. Ao seguir a lei natural, Abraão setorna exemplo de obediência à lei por seus des-cendentes (Fílon, Abr. 6).

Fílon é o único que realmente nos diz queGn 15,6 era interpretado com o significado deque Abraão acreditava no Deus Criador único,não em outros deuses ou filosofias. Gn 15,6declara: “Abraão teve fé no SENHOR, e por issoo SENHOR o considerou justo”. Fílon descreve

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1913

14Aa

Abraão dizendo que “ele é considerado a pri-meira pessoa a crer em Deus, pois foi o primei-ro a ter uma concepção firme e inabalável daverdade da existência de uma única Causa aci-ma de todas as coisas, que sustenta o mundo etudo que há nele” (Fílon, Virt. 216). Tanto aLXX como a Bíblia hebraica falam que Abraãofoi o primeiro a crer em Deus. Com muita fre-qüência, os que se referiam à fé de Abraão fala-vam dela como fé no Deus único (Josefo, Ant.1,7,1 §§155-156; ApAbr 7,10; Pseudo-Fílon,AntBíb 6,4; 23,5), em contraste com a idolatria.A lei, quer mosaica, quer natural (ver acima),era corolário necessário de sua crença em Deus.Como se acreditava que Abraão personificavaessas características, ele atuava como represen-tante ideal do povo judeu.

Em Gl 3,7, Paulo ordena aos crentes gálataspara reconhecerem, pela prova dada por ele emGl 3,6 (cf. Gn 15,6; Betz, 141), que “são os quecrêem que são filhos de Abraão”. Os que entreeles estivessem familiarizados com as tradiçõesque consideravam Abraão o primeiro monoteístae antiidólatra perceberiam que o povo judeusempre tinha interpretado Abraão como homemde fé*. Essa declaração de Paulo parecia serverdadeira. Para eles, os descendentes de Abraão— os judeus — eram o povo de fé em Deus.

Mais uma vez, Paulo apóia-se na Escriturapara afirmar que os filhos de Abraão são osque têm fé em Deus. Em Gl 3,8-9, ele declara:“Aliás, a Escritura, prevendo que Deus justifi-caria os pagãos pela fé, anunciou de antemãoa Abraão esta boa nova: Todas as nações serãoabençoadas em ti”. Paulo personifica a Escritu-ra, ao dizer que ela previu que Deus justificariaos pagãos pela fé e anunciou de antemão aAbraão a boa nova de que todos os pagãos se-riam abençoados nele (Gl 3,8; Gn 12,3). Pauloentende a promessa a Abraão de que ele seriauma bênção para as nações (os pagãos) comopregação antecipada do evangelho* para Abraão.Já que a mensagem do evangelho era que ajustificação* tem origem na fé e assim os pa-gãos estavam incluídos na justificação, o anún-cio de que Deus abençoaria os pagãos por meiode Abraão antecipava o evangelho.

Nesse meio tempo, Paulo toma o outro fiode sua argumentação, a prática da lei (Gl 3,10).

Recorrendo a Dt 27,26, Hab 2,4 e Lv 18,5,Paulo argumenta que a obediência à lei nãotraz justiça. Ele recorre a Dt 21,23 para mostrarque o tempo de fé chegou com Cristo se tornan-do maldição* e nos libertando da maldição dalei (Gl 3,13; Byrne, 156). É provável que aquiPaulo trate das mesmas passagens às quais seusadversários recorreram na mensagem em apoioà lei (Longenecker, 116-121, 124).

Em Gl 3,14, Paulo inclui duas cláusulasde propósito. Cristo se tornou maldição e apre-sentou a redenção* da maldição da lei a fim deque em Jesus Cristo a bênção de Abraão des-cesse sobre os pagãos (cf. Gl 3,8). A segundacláusula de propósito é paralela à primeira: “e,assim, nós recebêssemos pela fé o Espírito,objeto da promessa” (3,14b). O Espírito se tornaa bênção de Abraão que desce sobre os pagãos(Betz, 143). Essa bênção é pela fé (Gl 3,1-5) emCristo (Gl 3,14). Outrora, a promessa a Abraãoreferia-se a terra e descendentes. Mas agora apromessa refere-se ao Espírito que é antecipa-ção da herança do mundo que há de vir (Byrne,156-157). E se têm o Espírito, que é a bênçãoprometida a Abraão em Cristo, os pagãos daGalácia têm o sinal de que são membros da des-cendência de Abraão.

É digno de nota até este ponto da carta ofato de Paulo aludir a dois aspectos do judaísmotambém relacionados às principais tradições deAbraão encontradas nos textos judaicos men-cionados acima: fé e lei. Paulo argumenta comveemência contra a lei. Os pagãos recebem abênção de Abraão, o Espírito, somente segundoa fé que têm. Se os adversários recorrem aAbraão em seus argumentos para convencer ospagãos de que precisam ser obedientes à leimosaica, em especial quanto à circuncisão, pa-rece que estão a par da tradição da obediênciade Abraão à lei e fazem uso dessa tradição (vertambém Hansen, 172).

2.2.2. Gl 3,15-18. Paulo começa esta passa-gem referindo-se a um exemplo do cotidiano, asaber, o testamento humano que, estando em re-gra, não é nem anulado nem modificado. Paulorecorre a esse exemplo para analisar Abraão,mostrando que as promessas feitas originalmen-te a Abraão e sua descendência (Gl 3,16) não fo-ram feitas a muitas descendências, mas apenas

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1914

15A a

a uma, que, na verdade, é Cristo (Gn 12,7;22,17-18). Paulo faz um jogo com a palavra des-cendência, que em hebraico e também em grego(hebr. zera‘; gr. sperma) é singular coletivo(Ellis, 73). O descendente único, Cristo, repre-senta não só o cumprimento das promessas aAbraão (Gl 3,8.14), mas também a cabeça daraça espiritual e, subseqüentemente, a solidarie-dade dos fiéis. Os pagãos, que antes não eramconsiderados descendentes de Abraão, estãoagora incluídos na esfera de seus descendentes,em virtude de sua fé em Cristo.

Em seguida, Paulo argumenta a partir de umaperspectiva cronológica. Na verdade, a lei veio430 anos depois da aliança que Deus firmoucom Abraão (Gl 3,17); de fato, a lei foi “acres-centada” (Gl 3,19). A promessa de Deus aAbraão é fundamental e imutável (Gl 3,16.18).Os que são filhos de Abraão “em Cristo” se be-neficiam da promessa e da herança que ele rece-beu antes da vinda da lei.

Se os adversários de Paulo na Galácia re-correm à tradição popular de que Abraão obe-decia à lei (ver acima), esses adversários preci-sam também argumentar que Abraão era obe-diente à lei antes que ela fosse dada por Moisés.Se era o exemplo de Abraão que os adversáriosdavam aos fiéis na Galácia, Paulo precisa argu-mentar com veemência que, na verdade, a leimosaica veio depois que a promessa foi feita aAbraão. Se a lei mosaica chegou séculos depoisda promessa a Abraão, então Abraão não pode-ria ter sido obediente a essa lei. Essa nova cro-nologia (que derruba o “princípio” exegéticorabínico de que na Torá não existe antes nemdepois) estabelece a prioridade do evangelhopaulino de justificação pela fé sobre a insistên-cia dos adversários na obediência à lei.

2.2.3. Gl 3,19-22. Nesta passagem, Paulotrata da razão pela qual a lei era necessária (Gl3,19). Ela foi acrescentada por causa das trans-gressões até que viesse a descendência (Cristo)à qual a promessa foi feita (Gl 3,19; cf. Gl3,16). Segundo Paulo, Deus deu a Abraão essaherança diretamente por meio da promessa:“Pois se é pela lei que se obtém a herança, nãoé mais pela promessa. Ora, foi por meio deuma promessa que Deus concedeu a sua graçaa Abraão” (Gl 3,18). Paulo declara que, entre-

tanto, a lei “foi promulgada pelos anjos, pelamão de um mediador” (Gl 3,19). A lei ser pro-mulgada por anjos* era tradição judaica co-mum (LXX Dt 33,2; LXX Sl 67,18; Jub 2,2;1Hen 60,1; também NT, At 7,38.53; Hb 2,2).Paulo se afasta da tradição ao argumentar queo anúncio da lei por anjos é considerado pontocontra a lei. No contraste entre a comunicaçãodireta das promessas a Abraão e a mediaçãoindireta da lei, Paulo chama a atenção para ainferioridade da lei. A promessa de Deus a Abraãoé não só anterior à lei (Gl 3,16-17), mas tam-bém superior, pois foi comunicada diretamentea Abraão, sem mediador.

Em Gl 3,20, Paulo faz uma declaração quehá muito confunde os intérpretes de Gálatas:“Ora, este mediador não é único. E Deus é úni-co”. A pluralidade associada ao “mediador”tem sido entendida de várias maneiras (Longe-necker, 141-142). Os intérpretes procuram oreferente exato de Paulo na alusão à pluralidadedos anjos que serviram de mediadores envolvi-dos no anúncio da lei (cf. em Wright a opiniãode que o mediador é Moisés). Mas isso omiteo ponto abrangente de Paulo. O ponto maisimportante a se extrair da declaração de Pauloé que, de algum modo, a lei vinda pelos anjospor meio da ação de um mediador subentendemais que um só intermediário, em contrastecom Deus, que fez a promessa a Abraão e éúnico. Em referência ao monoteísmo da época,esse tipo de declaração, que contrasta a singula-ridade de Deus* que fez a promessa a Abraãocom a pluralidade dos intermediários por meiodos quais a lei foi promulgada, mais uma vezdemonstra claramente que a promessa feita aAbraão é superior à lei.

Foi mencionado acima que as tradições po-pulares de Abraão encontradas na literatura ju-daica incluíam a idéia de que Abraão foi o pri-meiro monoteísta e obedeceu à lei antes que elafosse promulgada. Se os adversários de Paulotambém guardavam essas tradições, é provávelque o apelo ao exemplo de Abraão tivesse algu-ma coisa a ver com o fato de serem monoteístase obedecerem à lei. Em Gl 3,20, ao recorrer àsalegações dos adversários e às tradições popu-lares que ligavam Abraão ao monoteísmo e àlei, Paulo demonstra que a lei é, na realidade,

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1915

16Aa

inferior quando comparada às promessas de Deusa Abraão. Conseqüentemente, se as promessas sãosuperiores à lei e se é pelas promessas a Abraãoque a herança vem aos unidos em Cristo (“umasó” descendência, Gl 3,16), a lei é supérflua.Não só ser descendente de Abraão já não signifi-ca ter de seguir a lei judaica, mas a obediênciaà lei que se baseia na pluralidade é agora umacontradição da singularidade de Deus.

2.2.4. Gl 3,23-29. Nesta passagem, Paulorecorre ao exemplo do paidag∞gos (“vigilante”)para explicar a função da lei. No tempo de Pauloera costume recorrer a um paidag∞gos, o quesignificava colocar o filho ou os filhos sob oscuidados ou a supervisão de um escravo de con-fiança até que o filho chegasse ao fim da adoles-cência. Tem sido muito debatido o que exata-mente Paulo tinha em mente ao relacionar o pai-

dag∞gos com a lei. Em vez de ver o paidag∞gos

em termos de severidade, como antes era o caso(Betz, 177-178), mais recentemente os estudio-sos concentram-se em aspectos positivos do pai-

dag∞gos. Por exemplo, a guarda do paidag∞gos

impedia o protegido de sofrer influências imo-rais externas (Young, Gordon). Paulo associaa lei ao paidag∞gos que atuou “à espera doCristo, a fim de que fôssemos justificados pelafé” (Gl 3,24). Após a chegada da fé, o paida-

g∞gos já não era mais necessário (Gl 3,25).A literatura judaica atesta que uma das

principais funções da lei era servir para separare proteger Israel dos vizinhos pagãos (Jub 20,6-10; 21,21-24; 22,16-19; Josefo, Ant. 1,10,5 192).Outro aspecto da lei, da circuncisão em espe-cial, era identificar o povo judeu (Quaest. inGen. 3,49; cf. Jub 15,26). No contexto da cartade Paulo aos gálatas, ele fala primordialmentedos aspectos da lei que se sabia servirem paraidentificar o povo judeu (circuncisão, leis die-téticas* e a observância do sábado e dos diasde festa; ver Dias santos). Uma maneira emque a lei funcionava como paidag∞gos era guar-dar o povo judeu de influências externas deidolatria e imoralidade. Paulo diz que agoraque a fé chegou a lei já não é mais necessária.Em uma comunidade como a da Galácia, ondecristãos de origem pagã e judaica convivemlado a lado, a lei como instrumento de proteçãoé obsoleta porque eles todos têm fé e perten-

cem à mesma comunidade “em Jesus Cristo”(Gl 3,26). A separação por meio da lei é agoradesnecessária. Também a circuncisão, símboloidentificador, já não é mais necessária. Todosos fiéis da Galácia eram agora um só em JesusCristo (Gl 3,28) Como os fiéis da Galácia sãoum em virtude de sua fé em Cristo, são descen-dentes de Abraão e herdeiros da promessa feitaa ele (Gl 3,29; cf. Gl 3,8).

2.2.5. Gl 4,1-11. Em Gl 4,1-2, Paulo recorreà metáfora de um herdeiro que, sendo criança,está sujeito a “tutores e curadores até a data fixa-da por seu pai”. É provável que Paulo se refira apráticas da lei romana, pelas quais o pai nomea-va tutores para um menor, em um testamento ouem um tribunal de justiça (Belleville, 63). O paitambém podia estipular a idade na qual o filhojá não estaria sob tais tutores. Paulo afirma a na-tureza temporária da lei, e é evidente que o her-deiro não está no controle de seus negócios. Nes-se sentido, o herdeiro não difere de um escravo*.

Os menores, provavelmente os judeus (cfGl 3,23; 4,1-2; Longenecker, 165), eram escra-vizados aos “elementos do mundo”* (stoicheiatou kosmou). Entretanto, agora que “a plenitudedos tempos” chegou (Gl 4,4; cf. Gl 4,2), pa-gãos e judeus são herdeiros, sendo o Espíritoprova de que não são mais escravos (Gl 4,6-7).

Em Gl 4,8, Paulo dirige-se apenas aospagãos. Na época anterior, eles não conheciamDeus, nem eram reconhecidos por Deus. Esta-vam escravizados a coisas que, por natureza,não eram deuses. A frase “não eram deuses” éconhecida na literatura da Septuaginta, ondese refere a ídolos (2Cr 13,9-10; Is 37,18-19; Jr2,11-28). Paulo os acusa de voltarem a sua ido-latria anterior (Gl 4,9).

No contexto da situação na Galácia, essescrentes pagãos estão sendo persuadidos a obede-cer a aspectos diferentes da lei judaica (Gl 5,2-3;6,12-13; 4,10; ver também acima). Paulo com-para essa obediência deles à lei com a antiga ido-latria (Gl 4,8-9) e com a escravidão aos “ele-mentos do mundo” (stoicheia tou kosmou). Aobediência à lei e à idolatria são formas de escra-vidão a esses “elementos do mundo”. A obediên-cia à lei tornou-se equivalente à idolatria.

Mencionamos acima que, na descrição quedele faz a tradição judaica, Abraão acreditava

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1916

17A a

no Deus Criador único, não em outros deuses oufilosofias*. Com muita freqüência, os judeusque falavam da fé de Abraão pensavam nela co-mo a fé no Deus único, em contraste com a ido-latria (Jub 11,16-17; 12,2-8.16-24; Pseudo-Fí-lon, AntBíb 6,4; 23,5; Fílon, Abr. 68-71; ApAbr.1-8). Para Paulo, os crentes, tanto judeus comopagãos, são agora verdadeiros filhos de Abraão(Gl 3,29; 4,6-7). Como tais, já não devem seescravizar aos elementos do mundo, que antesatuavam como paganismo e lei judaica. Ao igua-lar a observância da lei à idolatria, Paulo faz dalei o tabu supremo para um verdadeiro filho deAbraão. Como Abraão, o antiidólatra, estes fi-lhos de Abraão devem evitar a idolatria. Entre-tanto, em Gl 4,1-10, agora que esses filhos deAbraão têm uma nova identidade “em Cristo”,a idolatria a ser evitada é a obediência à lei.

2.2.6. Gl 4,12-20. Em Gl 4,12-20, Paulofala da resposta dos gálatas a sua primeira pre-gação do evangelho e do desejo de vê-los nova-mente. Em Gl 4,14, Paulo declara que, quandoos visitou, eles o acolheram “como um anjo deDeus, como o Cristo Jesus”. É a única passagemde suas cartas onde Paulo se compara a um anjo.Seu louvor dos gálatas por acolherem-no comoum ser sobre-humano (Longenecker, 192) éenigmático; talvez remonte à alusão em Gl 1,8,ou mesmo à narrativa em At 14,8-18.

Outra tradição importante a respeito deAbraão é que ele era conhecido por sua hospita-lidade (TAbr 1,2A; 1,10B; Josefo, Ant. 1,11,2§196; Fílon, Abr. 107), qualidade demonstra-da especialmente em Gn 18,1-8, onde Abraãoacolhe os três visitantes angelicais. Talvez emGl 4,14 a intenção de Paulo seja deixar suben-tendido que os fiéis da Galácia são verdadeirosdescendentes de Abraão pela maneira de tam-bém demonstrarem hospitalidade aos outroscomo se estes fossem anjos.

2.2.7. Gl 4,21–5,1. O discurso final de Pauloa respeito dos descendentes de Abraão encontra-se na alegoria de Sara e Hagar (Gl 4,21-5,1). Aexegese aparentemente irracional de Paulo nestaalegoria talvez indique que este texto não era es-colha sua (Gn 16,15; 21,2-12), mas era usado pe-los adversários para vantagem própria (Lincoln,12; Barclay, 91). Paulo constrói a alegoria emtorno dos filhos reais de Abraão, Isaac e Ismael.

Hagar é interpretada como representante daaliança da servidão, a lei (Gl 4,24-25). Sara é in-terpretada como representante da aliança da li-berdade (Gl 4,24.26). Qualquer um (mesmoquem está em Jerusalém*, Gl 4,25) que estejasujeito à lei (Gl 4,24) está, na verdade, escraviza-do e não vai herdar com os verdadeiros filhos.Os filhos da promessa, que nasceram de Isaac(Gl 4,28), são membros da Jerusalém do alto(Gl 4,26) e são mais numerosos que os em ser-vidão (Gl 4,27).

Em Gl 4,28–5,1, Paulo conclui a alegoria.Ele identifica os gálatas como semelhantes aIsaac, filhos da promessa (Gl 4,28). Nos temposatuais, a perseguição que sofrem é como a queIsaac sofreu nas mãos de Ismael (Gn 21,9; Gl4,29; ver também Betz, 249-250). Paulo recorrea Gn 21,10 como instrução para o presente: osgálatas que são perseguidos por não obedeceremà lei devem “expulsar” os que os perseguem(Gl 4,30; Lincoln, 22-29). São filhos da mulherlivre; Cristo os libertou da lei. É-lhes ordenadoque não se sujeitem de novo à lei, “ao jugo daescravidão” (Gl 5,1; ver também Gl 4,3.9).

3. Abraão em RomanosA maior parte da discussão de Abraão encontra-se em Rm 4, onde Paulo recorre ao patriarcapara mostrar como os pagãos e também os ju-deus são agora justos diante de Deus em virtudeda fé em Jesus Cristo. Em Rm 9–11, Paulo voltaa se referir a Abraão, a fim de demonstrar que aspromessas de Deus ao povo escolhido não falha-ram (Rm 9,6).

3.1. A situação em Roma. O propósito dePaulo ao escrever Romanos* é assunto de debate(Donfried; ver Roma). É provável que as Igrejasdomésticas (Rm 16,5.10-11.14-15) às quais Pauloescreve fossem, até certo ponto, influenciadas pe-la comunidade judaica (Dunn, xlvi, xlvii; Calvert,“Traditions”) e se empenhassem para entender orelacionamento que os cristãos de origem pagãtinham agora com Deus (Rm 4,2.11-12), emespecial à luz das práticas relativas à lei judaica(Rm 14,2.5.6.21; Wedderburn, 33-34).

3.2. O texto à luz das tradições abraâmicas.3.2.1. Rm 1,1–3,26. Depois da passagem de

ação de graças e planos de viagem (Rm 1,8-15;ver Itinerários), Paulo anuncia seu tema, pro-

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1917

18Aa

clamando que o Evangelho é o “poder* deDeus para a salvação de todo aquele que crê”,judeu e também grego (Rm 1,16), e a justiça*de Deus se revela pela fé nesse Evangelho (Rm1,17; Ziesler, 186-187). Em Rm 1,1–3,20,Paulo mostra que pagãos idólatras e imorais(Rm 1,18-32; cf. Jub 22,11-23; 1Hen 91,7-10;embora os judeus possam ser implicitamenteidólatras, ver Hays, 93-94) e judeus que se or-gulham do relacionamento com Deus e a lei(Rm 2,1-29, esp. Rm 2,17) estão condenadosdiante de Deus (Rm 3,9-20).

Em Rm 3,21-26, Paulo mostra como Deuscontinua a ser justo, mas agora independente-mente da lei (Rm 3,21; cf. Rm 1,17). A partici-pação no reino da justiça de Deus (Ziesler, 186-187) é agora obtida pela fé em Jesus Cristo porjudeus e pagãos (Rm 3,22); não há diferença.

3.2.2. Rm 3,27–4,25. Rm 3,27–4,25 fun-ciona como esclarecimento daquilo que Paulojá discutiu e como introdução ao exemplo defé dado por Abraão. Paulo usa o princípio domonoteísmo judaico contra uma alegação co-mum de particularismo judaico. Porque é úni-co, Deus é o Deus dos judeus e também dospagãos (Rm 3,29). E, visto ser um só, Deusjustifica judeus e pagãos com base no mesmocritério — a fé (Rm 3,30). Assim, judeus e pa-gãos têm acesso igual à salvação. “Este é, comefeito, um argumento contra a lei ser, de algummodo, necessária à salvação” (Sanders 1977,489). Por meio do exemplo de Abraão, Paulomostra como sua interpretação realmente con-firma a lei (Rm 3,31).

Paulo primeiro identifica Abraão em sentidoestritamente judaico como “nosso antepassadosegundo a carne” (Rm 4,1 [nota c na TEB]) epergunta o que Abraão “obteve” (o verboheurisk∞). Diversas tradições de Abraão descre-vem-no encontrando o Deus único (ver acima;em especial Fílon, Abr. 68-71, e Josefo, Ant.1,7,1 154-157, onde ele discerne a existência deDeus a partir da criação). Em geral se afirmaque, em Rm 1,18-32, Paulo recorreu ao pensa-mento judaico helenístico que está por trás deSb 12–15, se não a esse texto em si (Dunn 56-57; Calvert, “Traditions”). Sb 13,6-9 fala de pes-soas que buscam encontrar (heurisk∞) Deus.Outros textos que se referem a pessoas “que

encontram” (heurisk∞) Deus por meio da desco-berta intelectual também estão presentes na LXX(Is 55,6; 65,1), nas obras de Fílon (Spec. Leg.1,36; Leg. All. 3,47) e no NT (At 17,26-27; Rm10,20). Em Rm 4,17, Paulo também diz queAbraão acreditou em Deus Criador (ver abai-xo). Essa crença no Deus único como sendo oCriador era fundamental no monoteísmo judai-co. Somente sendo o Criador, o Deus dos judeusera o Deus único e verdadeiro (cf. Sib Fr. 1,7).No contexto da discussão paulina da idolatriaem Rm 1, no uso de “um só Deus” para provarque judeus e gentios estão justificados pela fé(Rm 3,29-30) e na introdução do exemplo deAbraão, talvez Paulo espere que os leitores pre-sumam que ele fala de Abraão que “encontrou”o Deus Criador único e verdadeiro.

Uma segunda resposta natural de alguémfamiliarizado com as tradições de Abraão seriaque ele não só foi o primeiro monoteísta, mastambém que ele obedeceu à lei (ver 1.2 aci-ma), antes mesmo que ela fosse promulgada.Paulo pressupõe essa interpretação na afirma-ção de Rm 4,2: “Se Abraão foi justificado porsuas obras, tem algo de que se orgulhar, nãoporém diante de Deus!”. Paulo já usou o termoorgulhar-se* para descrever o orgulho dos ju-deus em referência a sua aparente posição pri-vilegiada (Rm 2,17.23; 3,27). Abraão, que seentendia ter sido obediente à lei antes que elafosse promulgada e que representava o judeuideal, tinha realmente de que se orgulhar —mas não diante de Deus (Rm 4,2). Se Abraãonão podia se orgulhar de suas obras, quem entreos judeu-cristãos seria tão atrevido a ponto dese orgulhar da obediência à lei?

Paulo prova por que Abraão não tem de seorgulhar de suas obras diante de Deus citandoGênesis 15,6: “Abraão teve fé em Deus e istolhe foi levado em conta de justiça”. Abraão é oparadigma de como Deus faz os seres humanosserem justos (Sanders, 1983, 33). Para esclarecero que ele quer dizer com “foi levado em conta”,Paulo usa a analogia de alguém que trabalha ea quem o salário é pago, não como dádiva, mascomo débito (Rm 4,4), em contraste com alguémque crê naquele que justifica o ímpio (Rm 4,5).Tudo isso é explicado para que Paulo respondaa sua primeira pergunta sobre o que Abraão

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1918

19A a

obteve. Pela fé, Abraão encontrou a graça* (Rm4,4; cf. Gn 18,3; 30,27; 32,5; 33,8.10.15; 34,11;39,4; 47,25.29; 50,4).

Em Rm 4,9-12, Paulo mostra como Abraãoé o pai dos judeus (circuncisos) e dos gentios (in-circuncisos). A figura de Abraão era ligada àcircuncisão* no mundo judaico porque Abraãofoi o primeiro a participar da aliança da circunci-são (Gn 17,9-14; Sr 44,20). Referindo-se aos“felizes” cujas ofensas são perdoadas (Rm 4,7-8; cf. Sl 32,1-2), Paulo pergunta se essa declara-ção de felicidade “só concerne aos circuncisos outambém aos incircuncisos?” (Rm 4,9). Para res-ponder à pergunta, Paulo começa parafraseandoGênesis 15,6: foi a fé de Abraão que resultou noperdão* de Deus, pois Abraão foi consideradojusto por causa de sua fé. Por meio de outrasperguntas retóricas em Rm 4,10-12, Paulo provaque Abraão foi considerado justo enquanto aindaera incircunciso (Rm 4,11). Assim, Abraão é opai de todos os crentes incircuncisos e que sãoconsiderados justos (gentios, Rm 4,11) e dosque não só são circuncisos, mas também seguemo exemplo da fé de Abraão enquanto ele aindaera incircunciso (judeus; Rm 4,12). Enquantooutrora a circuncisão marcava o descendente deAbraão (Gn 17,9-14), Paulo mostra que, em vir-tude da fé comum em Cristo, gentios e judeustêm Abraão como pai.

Em Rm 4,13-17, a preocupação de Paulo é apromessa a Abraão e sua descendência. Ele de-clara que a promessa não foi feita em virtude dalei, mas em virtude da “justiça da fé” (Rm 4,13).O que Abraão devia herdar aqui, como em ou-tras obras da literatura judaica, não era apenasa terra da promessa, mas o mundo (Rm 4,14; Sr44,21; Jub 17,3; 22,14; 32,19; Fílon, Som. 1,175;Dunn, 213). A necessidade da lei para o povojudaico era parte importante de sua identidade.Paulo refuta a idéia de que, a fim de ser herdeiroda promessa de Abraão, é preciso ser judeu nostermos de obediência à lei mosaica. Paulo tam-bém declara que se “os herdeiros o são em vir-tude da lei” (hoi ek nomou), então “a fé nãotem mais sentido e a promessa fica anulada”(Rm 4,14). Segundo Dunn, a frase deve signifi-car os que consideravam sua existência contínuacomo judeus originária da lei, que determinavao que era característico e distinto em tudo que

eram e faziam como povo de Deus (Dunn, 213-214). Se os que se identificam como povo deDeus pela obediência à lei são herdeiros, entãoa fé não tem sentido, pois não é a base para aherança. Além disso, a lei produz a cólera* erevela a transgressão (Rm 4,15).

Muitos judeus viam a função da lei sob umaluz positiva como o que os identificava e aomesmo tempo os separava das outras nações.Em vez disso, aqui Paulo indica funções negati-vas da lei. Paulo dá mais uma razão pela qual apromessa precisa estar de acordo com a fé:a promessa precisa estar de acordo com a graçapara que seja garantida a todos os descendentesde Abraão. Ela não é apenas para os cristãos quese identificam como o povo de Deus em virtudede sua obediência à lei (Rm 4,16), mas tambémpara os cristãos que compartilham a fé deAbraão, que é o “pai de um grande número depovos” (Rm 4,17; Gn 12,3; 22,18). Abraão nãoé somente o pai do povo escolhido de Israel.

A fé de Abraão é descrita por duas frasesconhecidas da literatura judaica (Rm 4,17). A féde Abraão estava na capacidade criativa de Deuspara do nada dar vida ao que existia (2ApBr21,4; 48,8; Fílon, Rer. Div. Her. 36; Spec. Leg.4,187; 2Mc 7,28;). E Abraão tinha fé no Deus“que faz viver os mortos” (Rm 4,17). Essa des-crição de Deus também era popular no judaís-mo, como atesta seu uso para descrever a conver-são dos gentios (José&As. 27,10). Entretanto,em Rm 4,18-22, Paulo explica a fé de Abraão noDeus que dava vida aos mortos, referindo-se ànarrativa do Gênesis. A fé de Abraão na promes-sa de Deus de que ele se tornaria pai de umgrande número de povos (Rm 4,18; Gn 15,5)não enfraqueceu, mesmo sabendo “que seu cor-po estava sem vigor” (impotente; Rm 4,19,BMD) e o seio de Sara estava “igualmente de-crépito” (Rm 4,19, BMD). Paulo descreve a féde Abraão em Deus (Rm 4,21) e sua promessa dedescendência (Rm 4,20) apesar da incapacidadefísica do casal, ele mesmo e Sara. Portanto, es-tava escrito que a fé de Abraão lhe foi levada“em conta de justiça” (Rm 4,22; cf. Gn 15,6 eacima), não só em favor de Abraão, mas tambémde Paulo e seus leitores (Rm 4,23-24). A fé serálevada em conta de justiça para os que crêemnaquele que ressuscitou Jesus Cristo dentre os

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1919

20Aa

mortos, que foi entregue pelas faltas deles e res-suscitado para sua justificação (Rm 4,25).

A fé monoteísta de Abraão, tão fundamen-tal na tradição judaica, foi transformada porPaulo. A fé dos crentes que seguem a fé deAbraão está agora no Deus criador único queressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos paraque também eles fossem justificados.

3.2.3. Rm 9–11. Em Rm 9–11, Paulo passaa mostrar, de modo geral, como a palavra deDeus a Israel não falhou (Rm 9,6). O patriarcafundador ao qual Paulo recorre em sua análiseé Abraão (Rm 9,3-9; 11,1). O primeiro pontona argumentação de Paulo é que a palavra deDeus não falhou porque “embora sejam des-cendência de Abraão, nem todos são seus fi-lhos” (Rm 9,7). Como prova, ele cita Gn 21,12:“É a posteridade de Isaac que será chamada atua descendência”. Paulo também esclarece emRm 9,8 que os filhos da carne (todos os judeusétnicos) não são filhos de Deus, mas os filhosda promessa são considerados descendentes deAbraão (ver Israel).

Ao recorrer a Gênesis 21,12, Paulo conside-ra que os judeu-cristãos de Roma já sabem queser descendente étnico de Abraão não é o mesmoque ser seu descendente verdadeiro. Foi pormeio de Isaac que foram designados os verda-deiros descendentes de Abraão (cf. Rm 9,10.13).Nem Ismael nem os filhos de Qeturá (Gn 25,1-4) foram contados entre os verdadeiros descen-dentes de Abraão. Segundo a prova de Paulo,isso se deve ao fato de Isaac ser o descendenteda promessa de Deus. Para dar mais apoio a seuargumento, Paulo inclui a promessa do anjo aAbraão: “Pela mesma época eu voltarei, e Saraterá um filho” (Rm 9,9; Gn 18,10). Nem Hagarnem Qeturá eram a mulher por intermédio daqual a promessa foi cumprida. Somente Sara, quehavia muito dera à luz (Rm 4,19), era a mulherpor meio da qual Deus cumpriu sua promessade uma descendência para Abraão.

A última vez que Paulo recorre a Abraãoem Romanos é em 11,1, onde ele afirma ser“israelita, da descendência de Abraão”. Emvista da discussão paulina anterior a respeitoda definição da verdadeira descendência deAbraão (Rm 4,13-18; 9,7-8), é razoável suporque aqui Paulo não se refere simplesmente a

sua herança judaica étnica. Paulo continua aargumentar que a palavra de Deus não falhou(Rm 9,6), mostrando que o tropeço de Israeltrouxe a salvação aos pagãos (Rm 11,11-13),que foram enxertados no povo de Deus por causade sua fé (Rm 11,20). No argumento de Paulo,houve “endurecimento” de uma parte de Israel,e em sua descrença atual (Rm 11,29) os judeusétnicos foram cortados (Rm 11,20). Entretanto,os judeus podem ser enxertados de volta naoliveira* (Rm 11,24). Isso leva Paulo a afirmarque, com relação ao evangelho, os judeus étnicossão inimigos*, mas com relação à eleição sãoamados “por causa dos pais” (Rm 11,28). Nestecaso, Paulo dá mostras de conhecer a tradiçãoque atribuía consideração especial aos descen-dentes étnicos de Abraão (AntBíb 30,7; 35,3).A palavra original de Deus não falhou (Rm 9,6).Os judeus étnicos também estarão entre os des-cendentes de Abraão mais uma vez, não em vir-tude de sua identidade fundamentada na obe-diência à lei, mas em razão de sua fé. Essa fésegue o exemplo da fé de Abraão (Rm 4,17-25),uma fé que foi aprofundada a partir de seu iníciono monoteísmo judaico para incorporar a fé emJesus Cristo (ver Deus).

4. Abraão em 2 CoríntiosEm 2Cor 11,22, em resposta à ostentação dosadversários em Corinto, Paulo declara-se des-cendente de Abraão. Em sua maioria, os bi-blistas concordam que ao se designar “da des-cendência de Abraão” Paulo tem mais coisasem mente que a origem étnica. Por exemplo,R. P. Martin sugere que Paulo usa a expressãoa respeito de si mesmo “como um distintivo dehonra para assinalar sua identidade cristã contraa dos adversários” (Martin, 375).

Ver também CIRCUNCISÃO; FÉ; GÁLATAS,CARTA AOS; GENTIOS; ISRAEL; JUDAIZANTES; JUSTI-FICAÇÃO; LEI; ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O;JUSTIÇA; JUSTIÇA DE DEUS; ROMANOS, CARTA AOS;OBRAS DA LEI.

BIBLIOGRAFIA: J. Barclay. Obeying the Truth: AStudy of Paul’s Ethics in Galatians. Edinburgh,T. & T. Clark, 1988; J. C. Beker. Paul the Apostle:The Triumph of God in Life and Thought. Phila-delphia, Fortress, 1980; L. L. Belleville. “ ‘Under

ABRAÃO

ABRAÃO

A.p65 28/03/2008, 15:1920

21A a

Law’: Structural Analysis and the Pauline conceptof Law in Galatians 3:21–4,11”. JSNT 26, 1986,53-78; H. D. Betz. Galatians: A Commentary onPaul’s Letter to the Churches in Galatia. Philadel-phia, Fortress, 1979; B. Byrne. Son of God —“Seed of Abraham”: A Study of the Idea of theSonship of God of All Christians in Paul againstthe Jewish Background. Rome, Biblical Institute,1979; N. L. Calvert. “Abraham and Idolatry:Paul’s Comparison of Obedience to the Law toIdolatry in Galatians 4,1-10”. In: Paul and theScriptures of Israel, C. A. Evans & J. A. Sanders(orgs.). JSNTSup 83, Sheffield, JSOT, 1992; Idem.“Traditions of Abraham in Middle Jewish Litera-ture: Implications for the Interpretation of Paul’sEpistles to the Galatians and to the Romans”.Tese de doutorado, University of Sheffield, 1993;K. P. Donfried (org.). The Romans Debate. Ed. rev.Peabody, MA, Hendrickson, 1991; J. D. G. Dunn.Romans. WBC 38, Dallas, Word, 1988); E. E.Ellis. Paul’s Use of the Old Testament. Edinbur-gh, Oliver & Boyd, 1957; T. D. Gordon. “ANote on ΠΑΙ∆ΑΓΩΓΟΣ in Galatians 3:24-25”.NTS 35, 1989, 150-154; G. W. Hansen. Abrahamin Galatians: Epistolary and Rhetorical Contexts.Sheffield, JSOT, 1989; R. B. Hays. Echoes ofScripture in the Letters of Paul. New Haven,Yale University, 1989; A. T. Lincoln. “AbrahamGoes to Rome: Paul’s Treatment of Abraham inRomans 4”. In: Worship, Theology and Ministryin the Early Church. M. J. Wilkins & T. Paige(orgs.). JSNTSup 87, Sheffield, JSOT, 1992;Idem. Paradise Now and Not Yet: Studies inthe Role of the Heavenly Dimension in Paul’sThought with Special Reference to His Escha-tology. SNTSMS 43, Cambridge UniversityPress, 1982; reimpr. Grand Rapids, Baker,1991; R. N. Longenecker. Galatians. WBC 41,Dallas, Word, 1990; R. P. Martin. 2 Corinthians.WBC 40, Waco, TX, Word, 1986; E. P. Sanders.Paul, the Law, and the Jewish People. Philadel-phia, Fortress, 1983; J. M. Scott. Adoption asSons of God. (WUNT 2,48, Tübingen, J. C. B.Mohr, 1992; A. J. M. Wedderburn. The Reasonsfor Romans. Minneapolis, Fortress, 1991; N.T. Wright. “The Seed and the Mediator: Gala-tians 3.15-20”. In: The Climax of the Covenant.Minneapolis, Fortress, 1991, 157-174; N. H.Young. “Paidag∞gos: The Social Setting of a

Pauline Metaphor”. NovT 29,2, 1987, 150-176;J. A. Ziesler. The Meaning of Righteousnessin Paul. SNTSMS 20, Cambridge UniversityPress, 1972.

N. L. CALVERT

AÇÃO DE GRAÇAS. Ver BÊNÇÃO, INVOCAÇÃO,DOXOLOGIA, AÇÃO DE GRAÇAS; ELEMENTOS LITÚRGICOS.

AÇÃO JUDICIALEm 1 Coríntios 6, Paulo trata de abusos na co-munidade cristã de Corinto. Os poderosos usa-vam sua posição e sua riqueza para manipularcasos de litígio civil. Pior ainda, os litígios eramdisputas entre fiéis na frente de incrédulos. Se-gundo Paulo, tal comportamento e essa exibiçãopor certos coríntios não eram nada além de outratentativa de exaltar a própria importância.

1. A Igreja e o Estado2. O litígio civil na Corinto romana

1. A Igreja e o EstadoEm Romanos 13,4 (cf. 1Pd 2,14), Paulo apre-senta a função dual de uma autoridade: por umlado, a autoridade é considerada servo de Deus(diakonos; cf. leitourgos, Rm 13,6), que recom-pensa os que fazem o que é certo. Reciproca-mente, como servo* de Deus, a autoridade é ovingador (ekdikos) que castiga o malfeitor (verAutoridade civil).

Parece haver um contraste de 1 Coríntios6,1-8 com Romanos 13 (e 1Pd 2; se sob in-fluência paulina é incerto); em 1 Coríntios 6,Paulo parece adotar uma perspectiva oposta doEstado. O termo servo está ausente de maneiraconspícua; lemos, mais exatamente, que asautoridades são injustas (adikoi, 1Cor 6,1), des-prezadas pela Igreja (1Cor 6,4) e é categorica-mente errado apelar a elas (1Cor 6,6).

É preciso explicar a diferença de perspec-tiva com referência à natureza dos problemasabordados: Romanos 13 dá instruções gerais arespeito do papel das autoridades, inclusive ajurisdição sobre causas criminais; 1 Coríntios6 trata da natureza do litígio civil. As causascivis incluíam reivindicações de posse legal,quebra de contrato, prejuízo, fraude e insultos(Garnsey, Parte 3), em contraste com as ofensascriminais mais graves (e.g., traição, homicídio,

ABRAÃO

AÇÃO JUDICIAL

A.p65 28/03/2008, 15:2021

22Aa

adultério etc.). A prática de alguns em Corintoparece cair na categoria de lei civil (versus leicriminal): fiel citando fiel perante um tribunalgentio, a respeito até mesmo de casos de míni-ma importância (krit¶rion elachiston, 1Cor 6,2;ver Sistema legal).

2. O litígio civil na Corinto romanaB. Winter coletou as provas (literárias e não-literárias) para os protocolos de litígio forensea respeito de disputas civis.

1) Na melhor das hipóteses, os processoscivis eram, em geral, disputas entre pessoas so-cialmente iguais, poderosas e influentes na cida-de. Entretanto, não era incomum o queixoso usarposição e influência contra o inferior. “O litígiocausava inimizade pessoal e era usado para agra-var a inimizade pessoal. O processo não era con-duzido calmamente pelas partes, mas sim comgrande acrimônia” (Winter, 566). De fato, a ini-mizade em si era considerada causa suficientepara litigar e os manuais de instrução retórica*esclareciam os meios mais eficientes de vitupe-ratio — como atacar o caráter do adversário!

2) O juiz ou magistrado designado (ou, emalguns casos, um júri) era escolhido entre os prin-cipais cidadãos. Um magistrado (duovir) honorá-rio era capaz de significativo favor e, se reunido,o júri era formado de homens de mais de 25 anosque estavam na lista do recenseamento e tinhambens no valor de mais de 7.500 denarii.

3) Os juízes e júris designados eram noto-riamente parciais. Daí a invectiva paulina: essesjuízes são injustos. Em 1 Coríntios 6,6, Paulonão apenas os iguala aos incrédulos (emborafossem não-cristãos). Ele parece antes suben-tender que, neste nível, os tribunais coríntioseram corruptos (cf. os documentos de confir-mação em Winter, 562-564).

4) O suborno judicial era comum e os prés-timos dos jurados não ficavam sem recompensa(cf. Suetônio, Cláudio 15,1; Winter, 564-566).De acordo com Cícero, o suborno (pecunia) erauma das três forças que frustravam o processolegal (Cícero, Pro Caecina 15,73).

Winter (seguindo Garnsey) conclui que a po-sição social e o privilégio legal estavam comple-tamente ligados no Império Romano: os pretores“sem dúvida agiam no interesse dos membros

de ordens superiores, às quais eles próprios per-tenciam” (Garnsey, 4). Cícero comenta que afiança e o poder constituem vantagem. “A fiançaé uma razoável e contínua manutenção de segu-rança. O poder [potentia] é a posse de recursossuficientes para autoproteger-se e enfraqueceros outros” (Cícero, De Inv. 2,56,169). Alémdisso, o catálogo de virtudes que tendia a favore-cer os poderosos incluía: cargo público, dinheiro,ligações pelo casamento, origens nobres, ami-gos, país, poder e todas as outras coisas relativasa essa classe (Cícero, De Inv. 2,59,177).

2.1. Resposta paulina aos litígios de Corinto.À luz dessas observações, a severa resposta pau-lina parece inteligível. A inimizade não era estra-nha em Corinto (cf. 1Cor 1-4). O litígio civilaumentava os problemas existentes e o corolário— a adjudicação de indenizações financeiras— era interpretado por Paulo como o ato dedefraudar os irmãos (1Cor 6,7-8).

A exigência paulina de que os sábios (so-phos, 1Cor 6,5; cf. 1Cor 1,20.26; 3,18) se apre-sentem como árbitros é, na melhor das hipóte-ses, uma crítica mordaz (Free, 237). Essas açõesjudiciais (krimata) são fadadas ao fracasso ePaulo condena o comportamento dos coríntios.Mesmo se certos coríntios forem capazes deexercer suas habilidades em ações civis entrecristãos, Paulo não defende essa prática. É me-lhor sofrer, até mesmo se “deixar antes despo-jar” (1Cor 6,7).

2.2. 1 Coríntios 6: interpretação contextual.Paulo rejeita a insistência dos coríntios em umaexposição pública de suas disputas. Essa períco-pe é, na verdade, uma tentativa de corrigir isso:

Por um lado, de maneira paradoxal, a Igrejacoríntia julgou alguém de fora quando nãotinha o direito de fazê-lo, 5,12, mas dei-xou tristemente de julgar os de dentro, 6,1,quando devia ter recorrido ao uso de umcompanheiro cristão que, devido a sua ins-trução legal, tivesse as qualificações exi-gidas para agir como árbitro particular(Winter, 572).

1 Coríntios 6,1-8 é uma crítica mordaz à inca-pacidade dos coríntios de entender a ofensa come-tida. A ostentação de poder era uma paródia doEvangelho e os cristãos precisavam repudiá-la.

AÇÃO JUDICIAL

AÇÃO JUDICIAL

A.p65 28/03/2008, 15:2022

23A a

Ver também AUTORIDADE CIVIL; CORÍNTIOS,CARTAS AOS; SISTEMA LEGAL ROMANO.

BIBLIOGRAFIA: G. D. Fee. The First Epistle to theCorinthians. NICNT, Grand Rapids, Eerdmans,1987; R. H. Fuller. “First Corinthians 6:1-11 —An Exegetical Paper”. Ex Auditu 2, 1986, 96-104; P. Garnsey. Social Status and Legal Privile-ge in the Roman Empire. Oxford, Clarendon,1970; B. W. Winter. “Civil Litigation in SecularCorinth and the Church: The Forensic Back-ground to 1 Corinthians 6:1-8”. NTS 37, 1991,559-572; Idem. “The Public Honouring of Chris-tian Benefactors: Romans 13.3-4 and 1 Peter2.14-15”. JSNT 34, 1988, 87-103; N. T. Wright.“The New Testament and the ‘State’”. Themelios16, 1990, 11-17. W. C. van Unnik. “Lob undStrafe durch die Obrigkeit. Hellenistisches zuRöm. 13.3-4”. In: Jesus und Paulus, Festschriftfür Werner Georg Kümmel zum 70. Geburtstag.E. E. Ellis & E. Grasser (orgs.) Göttingen, Vande-nhoeck & Ruprecht, 1975, 334-343.

B. B. BLUE

ADÃO E CRISTOEmbora as referências à figura veterotestamen-tária de Adão no corpus paulino não sejam demodo algum extensas, seu emprego é altamentesignificativo, visto que Adão serve de veículopara a comunicação de verdades teológicasextraordinárias a respeito do casamento*, dopecado*, da morte (ver Vida e morte), da na-tureza humana e da esperança* escatológica.E, o que é mais importante, Adão representaum oposto teológico no ensinamento cristológi-co paulino, sendo Adão e Cristo* as duas meta-des de uma analogia explicitamente formuladaem Romanos 5 e 1 Coríntios 15.

Essa analogia apresenta Adão e Cristo comocabeças corporativas de duas ordens contrastan-tes da existência e pode ser considerada umadas maneiras mais reveladoras em que se ex-pressa o pensamento teológico do apóstolo:Adão personifica a humanidade caída e Cristopersonifica a humanidade redimida. Assim, nes-ses dois capítulos, vemos a interseção de diver-sas preocupações teológicas, a saber, antropolo-gia, cristologia, soteriologia e eclesiologia. É porcausa do fato de tantos temas paulinos funda-

mentais se reunirem em ligação com a analogiade Adão e Cristo que se pode considerá-la próxi-ma do núcleo do pensamento paulino (ver Cen-tro). É precisamente por causa de sua impor-tância fundamental que, com o passar dos anos,a analogia de Adão e Cristo continua a ser umimportante centro de convergência da interpre-tação neotestamentária.

1. Adão: o sentido genérico do termo2. Adão: a figura histórica3. Adão: a figura tipológica4. Adão e a imagem de Deus5. Adão e o corpo de Cristo

1. Adão: o sentido genérico do termoO nome Adão ocorre no corpus paulino apenassete vezes (Rm 5,14 [duas vezes]; 1Cor 15,22.45[duas vezes]; 1Tm 2,13.14), embora haja quemacredite que algumas das discussões mais ge-neralizadas sobre o “homem” (anthr∞pos) tam-bém tenham um fundo adâmico no pensamentopaulino. Isso acontece porque o termo hebraico’ådåm refere-se não só ao indivíduo “Adão”,mas também à “humanidade” em geral. É detodo apropriado considerar o emprego que Paulofaz de Adão estreitamente ligado a algumas ou-tras imagens e expressões antropológicas que eleusa para comunicar a experiência cristã, a vidanova encontrada em Jesus Cristo. Estão entreelas: o homem velho e o homem novo (Rm 6,6;Cl 3,9-10; Ef 2,15; 4,22-24; ver Natureza novae natureza velha); o homem exterior e o homeminterior (2Cor 4,16; Rm 7,22; Ef 3,15); o ho-mem carnal e o homem espiritual (1Cor 2,14-16; ver Psicologia). As passagens em que Paulousa o pronome “eu” de uma forma que sugereter ele em mente a humanidade adâmica ou ahumanidade fora da experiência nova que, paraos fiéis, se encontra em Cristo (ver Em Cristo)relacionam-se com esse sentido antropológicomaior de Adão. Um bom exemplo encontra-seem Romanos 7,7-25, onde o apóstolo pareceusar o “eu” em um sentido corporativo que de-monstra certo envolvimento com o sentido gené-rico do tema mais explícito de Adão.

É praticamente certo que a narrativa de Gê-nesis 2–3 seja a base do uso de Adão nas cartaspaulinas e forme o cenário para ele. Vemos omesmo deslumbramento pela figura de Adão

AÇÃO JUDICIAL

ADÃO E CRISTO

A.p65 28/03/2008, 15:2023

24Aa

em alguns documentos judaicos e cristãos doséculo I, inclusive 4 Esdras, 2 Baruc e o Apoca-lipse de Moisés, como Levison sabiamenteobservou. A reflexão a respeito de Adão tam-bém está bem documentada no material deQumran e nos escritos de Fílon de Alexandria,contemporâneo de Paulo. À luz do fato de Adãoser mencionado com freqüência em obras gnós-ticas, tais como os textos de Nag Hammadi,alguns estudiosos procuraram descobrir um eloentre o tema adâmico e as idéias gnósticas de“um segundo homem”. De modo geral, issonão foi bem recebido, pois é provável que osindícios representem precisamente a correnteinversa de influência (é mais provável que otema bíblico tenha sido adotado pelos autoresgnósticos mais tardios).

Todos esses documentos básicos relevantesnos ajudam a entender o interesse que a tradi-ção de Adão, o primeiro ser humano criado,gerou entre os autores antigos e como eles vie-ram a confiar nela e expressá-la em seus escri-tos. Quando admitimos isso, percebemos quea discussão paulina do tema está em total har-monia com outros documentos de sua época,embora o emprego especificamente cristoló-gico ao qual ele se liga diferencie o tratamentopaulino. Paulo parece ser o primeiro a descre-ver Jesus Cristo como o “último (ou o segundo)Adão” (1Cor 15,45.47), descrição que, semambigüidade, indica o caráter escatológico dopensamento do apóstolo.

2. Adão: a figura históricaNo século I, muita gente entendia claramenteque a figura de Adão era a primeira pessoahistórica; isso explica por que Judas 14 (citan-do 1Hen 1,9) descreve Henoc como “o sétimodepois de Adão”. Lucas apresenta uma avalia-ção semelhante, quando inclui Adão na genea-logia de Jesus (Lc 3,38). Parece que o apóstoloPaulo considerou ponto pacífico a historicidadede Adão como a primeira pessoa criada, embo-ra essa historicidade não seja o ponto de enfo-que primordial dos dois textos paulinos queanalisam o tema de Adão e Cristo.

2.1. Adão (e Eva) como exemplo(s) ético(s).Entretanto, nas cartas paulinas, a historicidadede Adão (e Eva) parece realmente fundamentar

o ensinamento a respeito da relação entre o ho-mem e a mulher e, por extensão, a relação entreCristo e sua Igreja. De modo semelhante, asfiguras de Adão e Eva aparecem esparsamentenas cartas paulinas para explicar a autoridadena ordem divina da criação. Desses dois jeitos,o papel de Adão (e Eva) como exemplo ético éproeminente, embora a historicidade do primeirohomem (e da primeira mulher) pareça ser presu-mida como parte do argumento ético. O empre-go de Adão (e Eva) como modelo(s) ético(s)prevê o emprego mais tipológico de Adão naanalogia de Adão e Cristo em Romanos 5 e 1Coríntios 15.

2.1.1. Adão (e Eva): casamento e papéissexuais. Em 1 Coríntios 6,16, Paulo alude ànarrativa de Adão e Eva por meio de sua citaçãode Gênesis 2,24. Embora não sejam empregadosaqui, está claro que os nomes do primeiro casalrepresentam modelos fundamentais para a ma-neira como as relações sexuais respeitáveis (verSexualidade) entre o homem e a mulher devemoperar na vida da Igreja. Aqui Paulo enfatiza aimportância e a santidade da união sexual do ho-mem e da mulher como meio de exortar os fiéiscoríntios a um estilo de vida mais digno e con-vencê-los de que pertencem ao corpo de Cristo(ver Corpo de Cristo). A narrativa de Adão eEva também fundamenta os conselhos dados arespeito da relação na união do casamento* emEfésios 5,22-33. Aqui, mais uma vez, Efésiosapega-se às imagens veterotestamentárias deAdão e Eva e a um entendimento de sua uniãocom aquele “mistério”* que existe entre Cristoe a Igreja (visto principalmente em Ef 5,32).

2.1.2. Adão (e Eva): o pecado e a ordem dacriação. 1 Timóteo 2,13-14 também demonstraclaramente a dependência da narrativa de Adãoe Eva de Gênesis 2–3. Em uma passagem de-dicada ao ensinamento ético (1Tm 2,9-15; verÉtica), o raciocínio busca na narrativa de Adãoe Eva no Gênesis apoio bíblico para uma com-preensão da estrutura de autoridade, a ordemda criação que existe entre homens e mulheres(ver Homem e mulher). A ênfase fica na priori-dade da criação de Adão (1Tm 2,13) e na prio-ridade da transgressão de Eva (1Tm 2,14) noJardim do Éden. Adão e Eva servem de exem-plos normativos de como homens e mulheres

ADÃO E CRISTO

ADÃO E CRISTO

A.p65 28/03/2008, 15:2024

25A a

devem se relacionar e do que acontece quandooutros povos aderem à estrutura de autoridaderespeitável. Em suma, o essencial é que 1 Timó-teo apresenta Adão e Eva de um jeito específico,como forma de regularizar a conduta na vidada Igreja, em especial em suas práticas de culto*.Eles são apresentados como exemplos éticos dopassado a ser seguidos (como é o caso da sub-missão respeitosa de Eva a Adão, baseada emsua criação dependente da dele) e como mode-los de comportamento contra o qual se precaver(como no caso da transgressão de Eva e suasconseqüências). Mais uma vez, a historicidadedo relato do Gênesis parece ser considerada ver-dadeira nessa explicação da narrativa.

3. Adão: a figura tipológicaQuando nos concentramos em examinar as pas-sagens relevantes de Romanos 5 e 1 Coríntios15, encontramos um emprego muito mais com-plicado e ampliado de Adão por Paulo. Aqui, ocentro muda de Adão como simples figura histó-rica para Adão como personagem tipológica ourepresentativa contraposta a Jesus Cristo (emRm 5,14, o termo real typos, “tipo” [TEB eBMD: “figura”] é usado com referência a Adão).Ao comentar a importância de Adão no pensa-mento do apóstolo, C. K. Barrett observa: “Paulovê a história acumulando-se em pontos nodaise se cristalizando em figuras extraordinárias —homens notáveis por si sós como indivíduos,mas ainda mais notáveis como figuras repre-sentativas” (Barrett, 5). Assim, vemos que emRomanos 5 e também em 1 Coríntios 15, Paulojustapõe Adão e Cristo e usa diversos aspectosimportantes de fundo veterotestamentário paratransmitir verdades cristológicas a respeito deJesus Cristo, que em si mesmo personifica ahumanidade. Podemos até resumir o entendi-mento paulino da redenção cristã como a transi-ção de estar “em Adão” para estar “em Cristo”,como o movimento salvífico de uma esfera davida, um campo da existência para outra. Con-siderando que a teologia paulina se origina deuma inclinação escatológica (ver Escatolo-gia), com ênfase no fato de a nova criação tersuplantado a velha (ver Criação), é inteiramenteapropriado achar que o tema de Adão e Cristoexpressa seu ensinamento concernente àquilo

que Scroggs descreveu como “humanidadeescatológica”.

3.1. Adão e a humanidade escatológica. 1Coríntios 15 é uma discussão completa da res-surreição* dos mortos, com o propósito primor-dial não tanto de asseverar a verdade da ressur-reição de Jesus (já que isso é tido como certo),mas de explicar sua importância para a vida dosfiéis. Nessa discussão, a analogia de Adão eCristo é explicitamente empregada em doispontos: em 1 Coríntios 15,20-22 e 15,44-49. Suaressurreição é o acontecimento que inicia e cons-titui o fato de Cristo ser as “primícias” dos quemorreram (1Cor 15,20.23); é em ligação comessa idéia que a analogia de Adão e Cristo éintroduzida inicialmente. Thrall afirmou que odebate cristológico que se desenvolve em Corin-to origina-se da introdução anterior do tema adâ-mico (e do entendimento errôneo que a Igrejacoríntia tem dele). Essa idéia está longe de serincontestável e presume uma indecisão no pen-samento paulino muito mais deliberada do queesse debate sugere.

3.1.1. Cristo como o último Adão: as primí-cias. Uma afirmação (1Cor 15,20), baseada dadeclaração da ressurreição de Cristo expressa em1 Coríntios 15,3-5, introduz o primeiro empregoda analogia de Adão e Cristo. Na segunda meta-de de 1 Coríntios 15,20, o sentido da ressurrei-ção de Cristo é amplificado — Cristo é tambémas “primícias dos que morreram”. Dessa manei-ra um novo pormenor é introduzido na análise daressurreição de Cristo, a saber, a unidade do Se-nhor ressuscitado com os que crêem nele. Oscorpos (ver Corpo) dos ressuscitados (é impor-tante mencionar que o enfoque da análise estáneste ponto “somático”) devem corresponder aode Cristo e dele fluir, da mesma maneira que acolheita corresponde às primícias e delas flui.

Paulo emprega a analogia de Adão e Cristopara amplificar mais e explicar a relação entreCristo e os que nele crêem; a tipologia de Adãoe Cristo é um argumento a favor da certeza daressurreição da comunidade de fiéis e (nas pa-lavras de Lambrecht) estabelece para nós umarelação “temporal e também causal” entre oSenhor* e os que crêem nele. Em 1 Coríntios15,21-22, Paulo anuncia um duplo paralelismoque demonstra essa relação:

ADÃO E CRISTO

ADÃO E CRISTO

A.p65 28/03/2008, 15:2025

26Aa

21a Com efeito, visto que a morte veio porum homem,

21b é também por um homem que vem aressurreição dos mortos:

22a assim como todos morrem em Adão,22b em Cristo todos receberão a vida.

Os dois versículos devem ser consideradosjuntos, pois o segundo serve para esclarecer osentido do primeiro. O uso do verbo no futuroem 22b demonstra a perspectiva essencialmen-te escatológica da analogia.

Surge algum debate quanto à salvação uni-versal subentendida no versículo 22. Que im-portância deve ser dada aos dois usos de “to-dos” no versículo 22? Paulo ensina a salvaçãoúltima de toda a humanidade em Cristo da mes-ma maneira que ele afirma a morte universalde toda a humanidade em Adão? Muitos biblis-tas concordam que essa idéia é incompatívelcom o resto do ensinamento paulino; na cartatoda Paulo fala dos que se perdem (1Cor 1,18;3,17; 5,13; 6,9; 9,27). À luz disso, parece quetemos de limitar as duas (ou pelo menos a se-gunda) frases com “todos” do versículo 22 efazê-las atuar como modificadores de “emAdão” e “em Cristo”. Assim, acreditamos queo sentido do versículo seja: “todos os que estãoem Adão morrem, enquanto todos que estão emCristo receberão a vida”.

3.1.2. Cristo como o último Adão: o Espí-rito vivificante. 1 Coríntios 15,45-49 é uma ci-tação do comentário de midrash a respeito deGênesis 2,7. A passagem baseia-se na afirma-ção de Paulo em 44b: “Se há um corpo animal,há também um corpo espiritual”. Essa afirma-ção em 1 Coríntios 15,44 é resumo do parágra-fo anterior que começa em 1 Coríntios 15,35 econtém uma análise da natureza do corpo dosressuscitados. Aqui, Paulo fala de um s∞ma

psychikon (“corpo animal”) e também de ums∞ma pneumatikon (“corpo espiritual”), pas-sando, com efeito, a perna em seus adversárioscoríntios (como observa Dunn, 1973). A identi-ficação exata desses adversários é, há anos,motivo de considerável debate entre os biblis-tas. Entretanto, B. Pearson identificou o usoque eles fazem da terminologia pneumatikos-psychikos como causa de um dos pontos de

atrito com Paulo. É ao procurar explicar a re-lação entre esses dois s∞mata (“corpos”, tantopsychikon como pneumatikon) que Paulo recor-re mais uma vez à analogia de Adão e Cristo,em 1 Coríntios 15,45-49.

Paulo cita Gênesis 2,7 da LXX, e acrescentaao texto veterotestamentário as palavras “primei-ro” e “Adão” a fim de estabelecer o contraste ti-pológico com Cristo, que se segue em 1 Coríntios15,45b: “o último Adão é um ser espiritual quedá vida”. Ao estabelecer o contraste da maneiracomo o fez, Paulo aborda a questão dos “cor-pos” da existência física e espiritual como se vêprontamente no uso dos artigos definidos neu-tros em 1 Coríntios 15,46 (o antecedente sendos∞ma, “corpo”) em vez de masculinos (que serefeririam a anthröpos, “homem”). A questão éque Adão, tendo um “corpo animal”, também setornou um “ser dotado de vida”; ao se tornarum “corpo espiritual”, Cristo também se tor-nou um “ser espiritual que dá vida”. Aqui, Paulonão faz apenas uma afirmação antropológica arespeito de Cristo como o “último Adão” —seu sentido vai mais além. Ele também faz umaafirmação cristológica a respeito do Senhor res-suscitado que se manifestou como o Espírito re-generador dentro da Igreja. A passagem do Gê-nesis se prestava a esse propósito, embora (comoobserva Wright) a ligação desse ponto teológicocom a análise primordial a respeito do “corpoespiritual” não se evidencie imediatamente.

Portanto, em certo sentido, o uso paulinoda analogia de Adão e Cristo não é inteiramenteconsistente. Ao chamar Cristo de “ser espiritualque dá vida”, Paulo faz uma afirmação a res-peito da obra de Cristo na Igreja que não temparalelo no lado adâmico da analogia. O fatormotivador no emprego paulino da analogia erao desejo de mostrar que existe uma relaçãoentre Adão e o resto da humanidade. Mas oprodígio do que Deus fez para a humanidadepor intermédio de Cristo era tão grande que aanalogia de Adão e Cristo sucumbiu. O após-tolo a empregou na medida em que ela era útilpara demonstrar a solidariedade dos dois Adãoscom os respectivos seguidores, mas, quandojá não comunicava nem continha a mensagemdo poder transformador de Cristo na vida dofiel, ela foi posta de lado.

ADÃO E CRISTO

ADÃO E CRISTO

A.p65 28/03/2008, 15:2026

27A a

É significativo que as duas referências estru-turadas à analogia de Adão e Cristo em 1 Corín-tios 15 (versículos 21 e 45) são seguidas por pas-sagens que falam de Jesus Cristo em termos bas-tante exaltados e que, às vezes, são consideradasa expressão de um entendimento paulino dapreexistência*. Assim, em 1 Coríntios 15,25-28, há o uso cristológico do Salmo 8,7 e doSalmo 110,1, enquanto em 1 Coríntios 15,47-49 há referência repetida ao “homem celeste”.A pergunta, então, é: Há alguma relação entre ofato de Paulo chamar Jesus Cristo de “últimoAdão” e a linguagem de exaltação e de homemceleste (ver Exaltação) para se referir a ele em1 Coríntios 15,25-28 e 47-49? Se existe essa re-lação, um elo pode ser descoberto entre a teolo-gia adâmica de Paulo e sua crença na preexistên-cia de Cristo, ou mesmo em uma figura vestigialde “Filho de homem”. Muitos (como Dunn)sentem que isso é puramente especulativo eforça demais as provas; precisamos procedercom cautela. De qualquer modo, não devemospermitir que a questão fascinante de uma super-posição entre idéias de preexistência e lingua-gem de exaltação e homem celeste desvie nossaatenção do caráter essencialmente escatológicoda analogia de Cristo e Adão como ela se encon-tra nesta carta.

3.2. Adão e a origem do pecado. Graças, emgrande parte, à narrativa de Gênesis 3, a figurade Adão é um dos centros das discussões a res-peito da pecaminosidade humana no judaísmoe também no cristianismo (ver Pecado). Entreas cartas paulinas, Romanos 5,12-21 contém otratamento mais completo deste tema. Esses ver-sículos exercem, há séculos, enorme influênciana teologia cristã, visto que os mais variadosintérpretes procuram examinar as profundezasdo ensinamento do apóstolo quanto à origem dopecado. Paulo associa claramente a entradado pecado e da morte no mundo com a trans-gressão de Adão. Embora em Romanos 5 Paulo(é de se presumir) pense de maneira histórica arespeito da queda, vemos prontamente que eletinha muito mais em mente que uma avaliaçãohistórica de Adão e seu ato rebelde. Com efeito,o uso que Paulo faz de Adão em Romanos 5,12-21 é protológico (que aponta para o início) emsua ênfase; Adão é o meio para descrever a en-

trada do pecado e da morte no mundo e (porextensão) a condição da humanidade depoisdessa primeira transgressão. Há mudança de umfoco em Adão e Cristo como pessoas corpo-rativas em 1 Coríntios para seus atos respectivosem Romanos 5.

Isso não significa que a perspectiva toda deRomanos 5 seja apenas retrospectiva (voltadapara o passado), pois existe, ao mesmo tempo,um sentido real, no qual tudo que acontece emAdão é superado pelo que acontece em JesusCristo, o último Adão. Como Paulo diz em Ro-manos 5,14, Adão é a “figura daquele que haviade vir”. O ato de desobediência de Adão é com-parado com o ato de obediência de Cristo, quetraz dentro de si uma promessa de vida futurana nova criação. Na verdade, em Romanos 5,15-21, em uma passagem altamente estruturada deseu argumento, Paulo não mede esforços paradeixar claro que Jesus Cristo opõe-se de todomodo à transgressão de Adão: à transgressãoopõe-se a obediência, à condenação opõe-se ajustificação, à morte a vida*. O argumento aminori ad maius (“do menor para o maior”) éempregado do começo ao fim e a tremendaverdade concernente à superação do pecado eseus efeitos pela graça* divina é realçada. Entre-tanto, a dimensão protológica da analogia deAdão e Cristo revela-se de uma forma que nãoacontece em 1 Coríntios 15.

O fato de Romanos 5,12 ser uma sentençainacabada em grego levou a várias tentativasde interpretar a direção para a qual se voltava oargumento de Paulo. Como Danker observou,parte do dilema é a dificuldade para decidirqual é o antecedente do pronome relativo dativoh∞ (pecado, morte, Adão ou nenhum deles, mascom a preposição epi [eph’], expressão idiomá-tica que significa “por que razão”, “porque”).Além disso, a tradução agostiniana de Roma-nos 5,12 — “em quem (Adão) todos pecaram”(latim, in quo omnes peccaverunt) — gover-na, desde então, para melhor ou para pior, ainterpretação teológica eclesiástica da declara-ção de Adão (Cranfield relaciona seis grandespossibilidades para interpretar apenas Romanos5,12d e observa que todas encontram apoio nahistória eclesiástica). Bonner lamenta não terAgostinho “se concentrado mais no rico e pro-

ADÃO E CRISTO

ADÃO E CRISTO

A.p65 28/03/2008, 15:2027

28Aa

fundo conceito da antítese entre os dois Adãos,em vez de na teoria macabra da participaçãoda humanidade ingênita no pecado capital doprimeiro Adão” (Bonner, 247).

É importante notar que, embora se volte paraAdão como o meio pelo qual o pecado entra nomundo, Paulo não nos revela o meio pelo qualesse pecado é transmitido de uma geração paraoutra. Além da simples declaração de que “todaa humanidade pecou” (tradução mais correta deRomanos 5,12), a mecânica não é explicada.Paulo confirma a responsabilidade de Adão pelaorigem da introdução do pecado no mundo aolongo de uma afirmação da responsabilidade doindivíduo pela presença do pecado em sua vida.Para Paulo, os dois elementos (a culpa e a res-ponsabilidade pessoais e também a culpa e o pe-cado universais em Adão) estão ativos. Esse pa-radoxo fica claro pela maneira na qual o pensa-mento paulino flui com bastante liberdade, desdea declaração intensamente pessoal de Romanos5,12 (“todos [os homens] pecaram”) até a decla-ração mais determinista de Romanos 5,19 (“peladesobediência de um só homem, a multidão setornou pecadora”). O ensinamento paulino res-soa em 2ApBr 54,15.19: “Se Adão foi o primeiroa pecar, trazendo a todos a morte por antecipa-ção, assim cada um dos filhos também atraiusobre si o sofrimento vindouro.... Se Adão carre-ga única e exclusivamente a sua culpa, nós todos,por nossa vez, e cada um por si, tornamo-nosum Adão” [Apócrifos, os proscritos da Bíblia,4 v. São Paulo, Mercúrio, v. III, p. 330].

4. Adão e a imagem de DeusA teologia adâmica também tem um papel im-portante a desempenhar em diversas outras pas-sagens fundamentais das cartas paulinas, parti-cularmente as que, como os elementos hínicos(ver Hinos) em Filipenses 2,6-11 e Colossenses1,15-20 e a declaração em 2 Coríntios 4,4, falamde Jesus Cristo em termos da “imagem de Deus”(ver Imagem). Aqui, a descrição veterotestamen-tária de Adão como alguém que foi criado “àimagem de Deus” (morph¶ é usado em Fl 2,6 eeik∞n em Cl 1,15 e 2Cor 4,4). A descrição da“glória de Deus (ou do homem)” também estápresente na análise desta questão (ver Glória).Recentemente, essa confluência de imagens e

descrições levou alguns biblistas a verem a pre-ponderância da linguagem da “imagem de Deus”encontrada em toda parte das cartas paulinascomo outra expressão da teologia adâmica. Porexemplo, Dunn (1980) argumenta com veemên-cia em favor desse entendimento adâmico dohino filipense; Hooker vê um tema adâmico ser-vindo de base para Romanos 1,18-32, onde oapóstolo descreve a situação difícil da humani-dade em termos da queda de Adão (Wedderburndá alguns esclarecimentos quanto à sugestão deHooker). Além disso, há certa razão para consi-derar a queda de Adão o fundamento da declara-ção de Paulo em Romanos 3,23.

4.1. Imagem de Deus: natureza e existênciaem Romanos 5. Estreitamente relacionado a esseassunto, o exame de como ser feito “à imagem deDeus” representa uma descrição da natureza e daexistência humanas que há tempos atrai a atençãode comentaristas cristãos, muitos dos quais, entreeles Calvino (como observa R. Prins), se concen-tram nas cartas paulinas ao abordar a questão. Éinteressante notar que Romanos 5 inteiro, em es-pecial a analogia de Adão e Cristo nos versículos12-21, torna-se decisivo a esse respeito.

As interpretações de Romanos 5 apresentadaspor Barth e Bultmann são comparações provei-tosas a respeito deste ponto e representam inter-pretações que se concentram respectivamente nasmetades cristológica e antropológica da analogia.Assim, Barth concentra-se no elemento cristoló-gico da analogia e acredita que a passagem ex-pressa essencialmente a natureza da humanidade.Bultmann, por outro lado, concentra-se no ele-mento antropológico da analogia e acha que apassagem expressa essencialmente a existência dahumanidade. Em suma, o problema crucial dizrespeito a como entendemos que a humanidade(Adão) é feita “à imagem de Deus”. É em Adãoou em Cristo que vemos verdadeiramente “a ima-gem de Deus”? Começamos com Cristo e passa-mos a interpretar a humanidade como a imagemde Cristo (posição de Barth)? Ou começamos coma humanidade e passamos a interpretar Cristocomo a verdadeira expressão do que a imagemde Deus significa (posição de Bultmann)?

Essas duas abordagens interpretativas de-pendem, em parte, da maneira como se entendeque as duas metades de Romanos 5 (versículos

ADÃO E CRISTO

ADÃO E CRISTO

A.p65 28/03/2008, 15:2028

29A a

1-11 e 12-21) se adaptam uma à outra. Assim,Barth coloca efetivamente Romanos 5,12-21(com sua descrição da humanidade adâmica)dentro dos limites de Romanos 5,1-11 (que de-clara a verdadeira condição da humanidade emCristo). Bultmann, por outro lado, baseia Ro-manos 5,12-21 no estilo de vida motivado peloexemplo de fé de Cristo e ressalta que Romanos5,1-11 diz respeito à existência paradoxal dosfiéis na esperança. Em outras palavras, ele acre-dita que Romanos 5,12-21 expressa essa vidado fiel mais plenamente e só nesse ponto ocomponente cristológico é, por assim dizer, in-troduzido no esquema.

4.2. Imagem de Deus: etapas da história dasalvação. Outra maneira de expressar essa dife-rença essencial na interpretação do sentido dahumanidade (seja ela a humanidade adâmica oua nova humanidade em Cristo) feita “à imagemde Deus” é por meio de uma ilustração de suces-sivas etapas que são vencidas na história da sal-vação. A estrutura escatológica que fundamentatodo o pensamento paulino considera que, à luzdo evento de Cristo, o mundo antigo deu lugara um mundo novo (como demonstram textoscomo 2Cor 5,17).

Ziesler demonstra isso em termos de umpossível esquema de três etapas em que “estadooriginal–queda–estado renovado” serve de des-crição desse desenvolvimento. Esse esquema detrês etapas inclina-se para o tipo de interpretaçãoque Bultmann apresentou. Entretanto, Zieslerargumenta que a concepção paulina do homemvolta-se de maneira tão assoberbante para a vi-são escatológica do último Adão que esse esque-ma de três etapas torna-se irrelevante para qual-quer análise de Paulo. Ele observa que em partealguma Paulo fala de Adão em termos de suacriação “à imagem de Deus” e, com base nisso,sugere que um esquema de duas etapas aproxi-ma-se mais do ensinamento essencial de Paulo.Isso traça os passos da história da salvação comoum movimento mais simples (queda–estado re-novado) e inclina-se para o tipo de interpretaçãoque Barth apresentou.

Essa ruptura entre Adão e Cristo como aimagem de Deus tem razão de ser? As idéias deZiesler precisam ser um pouco modificadas poruma consideração mais rigorosa de 1 Coríntios

11,3-9, onde Paulo emprega a história da criaçãodo Gênesis como base para o comportamentoético apropriado entre homens e mulheres quan-to a cobrir a cabeça durante o culto. O versículocrucial é 1 Coríntios 11,7: “Quanto ao homem,não deve pôr véu na cabeça: ele é a imagem e aglória de Deus; mas a mulher é a glória do ho-mem”. Aqui, a questão é que Paulo demonstracerta flexibilidade em seu emprego de “imagemde Deus” e está disposto a aplicar o conceito demaneira ampla para servir a seus propósitos,mesmo sendo verdade que a passagem, comoZiesler observa, ocorre em um contexto não-soteriológico. Ainda assim, não devemos negli-genciar a insinuação adâmica deste versículo —Paulo quer dizer que o homem, ou seja, todo serhumano, traz, de alguma forma, a imagem e aglória [ou “reflexo”, como na BMD e na CNBB]de Deus, exatamente como o primeiro Adão trazia.

Isso não é negar que, segundo Paulo, hajaum forte sentido no qual a glória da humanidadecomo imagem de Deus encontra sua satisfaçãoem Cristo. Em Filipenses 3,20-21 encontramosisso expresso claramente, em termos da transfor-mação do fiel de um “corpo humilhado” paraum “semelhante ao seu corpo (de Cristo) glorio-so”; e, em Romanos 8,29, os fiéis são “confor-mes à imagem de seu (de Deus) Filho”.

4.3. Imagem de Deus: cristofania. É possí-vel determinar a origem do entendimento quePaulo tem de Jesus Cristo em termos do últimoAdão e sua ligação com um tema de “Imagemde Deus”? Parece haver uma estreita ligação en-tre imagem-cristofania e as descrições do SenhorJesus Cristo ressuscitado que se baseiam na tradi-ção veterotestamentária de teofania e são apro-priadamente descritas como cristofania, o quesignifica considerar as passagens em que Paulodescreve ou alude a sua experiência de conversãoe sua visão de Cristo suplemento de uma cristo-logia adâmica. Isso traz para a discussão passa-gens como 1 Coríntios 9,1; 15,8-10; 2 Coríntios3,4–4,6; Gálatas 1,13-17 e Filipenses 3,4-11 e vênelas um tema adâmico fundamental. Kim argu-menta que isso reúne duas bases diferentes depensamento cristológico em Paulo, uma cristolo-gia de sabedoria* e uma cristologia de imagem,e ambas convergem na pessoa de Jesus Cristo, osegundo Adão no pensamento de Paulo.

ADÃO E CRISTO

ADÃO E CRISTO

A.p65 28/03/2008, 15:2029

30Aa

5. Adão e o corpo de CristoAo visualizar a humanidade personificada emAdão e também em Cristo, respectivamente não-remida e remida, Paulo demonstrou (ou contri-buiu para) uma superposição conceptual entreuma teologia adâmica e a idéia do corpo deCristo (ver Corpo de Cristo). Em outras pala-vras, esse corpo de Cristo é formado de fiéis queestão todos juntos de modo a constituir uma hu-manidade unida, a do último Adão. Embora nostextos principais analisados aqui não haja refe-rências explícitas a Adão, a humanidade adâmicacaída é, com certeza, espiritualmente reconsti-tuída (Ef 1,10) em Cristo de tal maneira que alinguagem adâmica e as imagens do corpo deCristo se fundem. Vemos essa ênfase especialem várias passagens das cartas paulinas, inclu-sive Colossenses 3,12-17 e Efésios 2,13-18.

Na época moderna, W. D. Davies foi o pio-neiro na investigação deste tema ao indicar aformação rabínica judaica desse entendimentode Adão e sua relevância para o estudo do ensi-namento paulino a respeito de um Cristo corpo-rativo. Essencial na questão é o reconhecimentode que a discussão a respeito de Adão nessestermos não trata primordialmente da humanida-de per se tanto quanto da nação de Israel* vistade uma perspectiva escatológica, como argu-menta N. T. Wright. Não devemos subestimar acontribuição para a análise das cartas paulinastrazida pelo sentimento do corporativo, querconsiderado em termos de uma humanidadeadâmica, quer em termos do corpo de Cristo.Tal reinterpretação das promessas veterotesta-mentárias à nação de Israel no que diz respeitoà nova criação em Cristo parece sugerida emGálatas 6,15-16 e é, com certeza, nada ambíguaem alguns dos escritos de líderes cristãos maistardios, como Justino de Roma, que declarouser a Igreja cristã “o povo de Israel verdadeiroe espiritual” (Justino, Dial.Trif. 11,5). Entretanto,em todas as cartas paulinas, é difícil decidirquem constitui “o povo de Israel” e não é fácilconcordar com a troca de um por um entre anação e a Igreja, em especial à luz de versículoscomo Romanos 11,26.

Ver também CORPO DE CRISTO; CRISTOLOGIA;CRIAÇÃO E NOVA CRIAÇÃO; IMAGEM DE DEUS; NA-TUREZA NOVA E NATUREZA VELHA.

BIBLIOGRAFIA: C. K. Barrett. From First Adam toLast. London, A. & C. Black, 1962; K. Barth.Christ and Adam: Man and Humanity in Romans5. SJTOP 5; Edinburgh, Oliver & Boyd, 1956;G. Bonner. “Augustine on Romans 5,12”. In:Studia Evangelica V. F. L. Cross (org.). Berlin,Akademie Verlag, 1968, 242-247; R. Bultmann.“Adam and Christ According to Romans 5”. In:Current Issues in New Testament Interpretation:Essays in Honor of O. A. Piper. W. Klassen &G. F. Snyder (orgs.). London, SCM, 1962, 143-165; C. E. B. Cranfield. The Epistle to the Ro-mans. Edinburgh, T & T Clark, 1975, 2 vols.;F. W. Danker. “Romans 5:12: Sin Under Law”.NTS 14, 1967-1968, 424-439; W. D. Davies.Paul and Rabbinic Judaism. 4. ed. Philadelphia,Fortress, 1980; J. D. G. Dunn. “1 Corinthians15.45 — Last Adam, Life-giving Spirit”. In:Christ and Spirit in the New Testament: Studiesin Honour of C. F. D. Moule. B. Lindars & S.Smalley (orgs.). Cambridge, University Press,1973, 127-141; Idem. Christology in the Ma-king. Philadelphia, Westminster, 1980, xviii-xix,98-128; M. D. Hooker. From Adam to Christ:Essays on Paul. Cambridge, University Press,1990; S. Kim. The Origin of Paul’s Gospel.Grand Rapids, Eerdmans, 1982; L. J. Kreitzer.“Christ as Second Adam in Paul”. CV 32, 1989,55-101; J. Lambrecht. “Paul’s Christological Useof Scripture in 1 Corinthians 15.20-28”. NTS28, 1982, 502-527; J. R. Levison. Portraits ofAdam in Early Judaism. JSPSup 1, Sheffield,Academic Press, 1988; B. Pearson. The Pneuma-tikos-Psychikos Terminology in 1 Corinthians.Missoula, MT, Scholars, 1973; R. Prins. “TheImage of God in Adam and the Restoration ofMan in Jesus Christ”. SJT 25, 1972, 32-44; R.Scroggs. The Last Adam. Oxford, Basil Bla-ckwell, 1966; M. Thrall. “Christ Crucified or Se-cond Adam? A Christological Debate BetweenPaul and the Corinthians”. In: Christ and Spiritin the New Testament: Studies in Honour of C.F. D. Moule, B. Lindars & S. Smalley (orgs.).Cambridge, University Press, 1973, 143-156; A.J. M. Wedderburn. “Adam in Paul’s Letter tothe Romans”. In: Studia Biblica 1978, III. Paperson Paul and Other New Testament Authors. E.A. Livingstone (org.). JSNTSup 3, Sheffield,Academic Press, 1980, 413-430; N. T. Wright.

ADÃO E CRISTO

ADÃO E CRISTO

A.p65 28/03/2008, 15:2030

31A a

“Adam, Israel and the Messiah”. In: The Climaxof the Covenant. Minneapolis, Fortress, 1991,18-40; J. A. Ziesler. “Anthropology of Hope”.ExpT 90, 1978-1979, 104-109.

L. J. KREITZER

ADOÇÃO, FILIAÇÃONas cartas paulinas, a palavra grega huiothesiarefere-se ou aos israelitas (Rm 9,4) ou a fiéis(Gl 4,5; Rm 8,15.23; Ef 1,5) como filhos deDeus. Entretanto, há alguma discordância quan-to a como traduzir o termo, se como “adoção”ou, de modo mais geral, como “filiação”. Esseproblema precisa ser resolvido antes de anali-sarmos o pano de fundo específico do termo.

1. O sentido de huiothesia em Paulo2. O pano de fundo da divina “adoção

como filhos” em Paulo3. A filiação dos fiéis em Paulo

1. O sentido de huiothesia em PauloO fato de Paulo usar huiothesia no sentido de“adoção” é às vezes negado em favor da tradu-ção “filiação” (e.g., B. Byrne), mas os esmaga-dores indícios lexicais dificilmente sustentamessa opinião (ver Scott 1992). Em Paulo, comonas fontes extrabíblicas contemporâneas,huiothesia sempre indica ou o processo ou oestado de ser adotado(s) como filho(s). Isso éconfirmado não só pelo uso unívoco e difundi-do do termo em fontes literárias e não-literá-rias, mas também por lexicógrafos gregos anti-gos do tempo do NT (e.g., Amônio, Adfin. Vocab.Diff. s.v. apok¶ryktos). É óbvio que, ao empregarhuiothesia, Paulo se apropria desse uso normaldo termo, porque em Gálatas 4,5 a construçãotem estreitos paralelos na literatura helenística(cf. Nicolau de Damasco, Vit. Caes. 130,55).Portanto, qualquer tentativa de traduzir o termode maneira mais generalizada como “filiação”faz o estudo do pano de fundo de seu empregojá começar errado.

2. O pano de fundo da divina “adoçãocomo filhos” em Paulo

Entre os autores que concordam que huiothesiasignifica “adoção”, há divergência de opiniãoquanto ao pano de fundo do termo. Isso se deveem parte ao fato de, aparentemente, Paulo ser o

primeiro a empregá-lo em um contexto teológico(quanto mais de adoção divina) e, contudo, jamaisexplicar o que quer dizer com o termo. É evidenteque o apóstolo presume que os leitores sabem oque a adoção como filhos de Deus significa.

2.1. A adoção como abstração teológica. Al-guns biblistas tratam o conceito paulino de ado-ção simplesmente como abstração ligada a outroconceito paulino. Dessa maneira, eles se livramcompletamente do problema do pano de fundo.Por exemplo, H. Hübner considera adoção sinô-nimo de “liberdade” (eleutheria) no sentido deliberdade* da Lei*. Seguindo seus passos, R.Bultmann e outros tratam adoção como termoescatológico-forense paralelo a “justiça” (di-kaiosyn¶). S. Kim considera o conceito paulinode huiothesia uma dedução secundária da cristo-fania da estrada de Damasco, na qual Paulopercebeu o Senhor ressuscitado como a imagemde Deus (ver Imagem de Deus) ou o Filho deDeus (ver Filho de Deus). Outros tipos de abstra-ções do conceito encontram-se nas obras de N.R. Petersen e D. von Allmen.

2.2. A adoção contra um pano de fundogreco-romano. Quando, como é mais comum,se considera o conceito paulino de adoção divi-na contra um pano de fundo greco-romano, emgeral ele é comparado com um caso específicode adoção divina na mitologia greco-romana oucom a prática real de adoção na jurisprudênciagreco-romana.

2.2.1. A adoção divina na mitologia greco-romana. A adoção divina desempenha um pa-pel muito pequeno nas fontes greco-romanas.Fora de Paulo, o termo huiothesia não foi em-pregado para essas adoções no período em exa-me. Os poucos exemplos inequívocos de adoçãodivina aduzidos de fontes greco-romanas queusam outros termos de adoção não fornecemum pano de fundo para o conceito de Paulo (cf.a adoção de Héracles por Hera [Diodoro daSicília, 4,39,2], a de Alexandre Magno por Zeus-Amon [Plutarco, Alex. 50,6], a de Sólon peladeusa Fortuna [Plutarco, Mor. 318C] e a dadeusa líbia “Atena” por Zeus-Amon [Heródoto,4,180]). As religiões de mistério têm sido, àsvezes, sugeridas como possível pano de fundo(cf. H. D. Betz), mas não há indícios de adoçãodivina nos mistérios (ver Religiões).

ADÃO E CRISTO

ADOÇÃO, FILIAÇÃO

A.p65 28/03/2008, 15:2031

32Aa

2.2.2. A adoção como metáfora legal. Mui-tos biblistas afirmam que o conceito paulino deadoção é metáfora legal que Paulo construiu adhoc baseado em sua formação greco-romana.Entre eles, alguns o consideram metáfora tiradada lei helenística, pois ali a adoção é uma insti-tuição ligada principalmente à herança, e Gálatas4,5 fala da adoção que transforma os fiéis emherdeiros (cf. Wenger). Entretanto, com mais fre-qüência, os proponentes deste tipo de aborda-gem (e.g., Lyall, Bruce) vêem o conceito pau-lino de adoção à luz da esmerada cerimônia ro-mana de adoção, na qual o menor a ser adotadoera emancipado da autoridade do pai natural ecolocado sob a nova autoridade do pai adotivo,muitas vezes com o propósito de manobras so-ciais e/ou políticas (cf. Kurylowicz). Realmente,Gálatas 4,5 iguala a redenção* e a adoção, masa idéia de que o testemunho* do Espírito (verEspírito Santo) em Romanos 8,16 reflete ostestemunhos da cerimônia romana dificilmentemerece ser levada a sério. Provas circunstan-ciais, como a cidadania romana* de Paulo e opredomínio de adoções romanas na época dePaulo, também não demonstram o caso para ametáfora legal.

2.3. A adoção contra um pano de fundojudaico/veterotestamentário. O termo huiothe-sia ocorre no NT só em Paulo e nunca na Sep-tuaginta ou outras fontes judaicas. Entretanto,apesar de freqüentes alegações em contrário, oconceito de adoção — até mesmo a adoção di-vina — era certamente conhecido do AT e dojudaísmo, independentemente de ter ou não tersido realmente praticada (ver Scott 1992, Malul).Portanto, não é impossível que as raízes do con-ceito paulino se encontrassem aqui.

2.3.1. Gálatas 4,5. O contexto da ocorrênciamais primitiva do termo, em Gálatas 4,5, dá, defato, uma pista decisiva para entender huiothesiacontra um pano de fundo judaico/veterotesta-mentário. Quando Gálatas 4,1-2 é entendido cor-retamente não como ilustração da lei greco-ro-mana, mas como alusão ao AT (ver Scott 1992),fica claro que Gálatas 4,5 está colocado em umcontexto estruturado pela tipologia do Êxodo(Gl 4,1-7): exatamente como Israel*, herdeiroda promessa abraâmica (verAbraão), foi, comofilho de Deus, redimido da escravidão no Egito

na ocasião determinada pelo Pai (Gl 4,1-2; cf.Os 11,1; Gn 15,13), assim também os fiéis fo-ram redimidos da escravidão aos “elementos domundo” (ver Elementos/espíritos elementais domundo) para a adoção como filhos de Deus naplenitude dos tempos e, desse modo, se tornaramherdeiros da promessa abraâmica (Gl 4,3-7).

O fato de “a” huiothesia ter de ser vista aquicontra um pano de fundo judaico/veterotesta-mentário é também confirmado por Romanos9,4, onde o termo em exame ocorre em umalista dos privilégios históricos de Israel (cf. Ex4,22; Os 11,1) e, de modo mais específico, pelocontexto mais amplo de Gálatas 3–4, o que deixaclaro serem os fiéis filhos e herdeiros, já que,pelo batismo (Gl 3,27), participam do Filho deDeus que foi enviado para redimi-los (Gl 4,4-5;cf. Gl 3,13-14). Estritamente falando, Cristo* éa descendência de Abraão (Gl 3,16) e o Filhode Deus messiânico prometido em 2 Samuel7,12 e 14, respectivamente. Por conseguinte,vista em contexto, a adoção de Gálatas 4,5 devese referir à expectativa escatológica judaica ba-seada em 2 Samuel 7,14.

É possível demonstrar que 2 Samuel 7,14(“Eu serei para ele um pai [davídico], e ele serápara mim um filho”) contém uma fórmula deadoção (cf. Ex 2,10; Est 2,7; Gn 48,5) que ojudaísmo subseqüente aplicou não só ao Messiasdavídico mas, sob influência da teologia da novaaliança (cf. Os 2,1 citado em Rm 9,26; ver Alian-ça e nova aliança), também ao povo escatoló-gico de Deus. De acordo com a estrutura deu-teronômica de Pecado–Exílio–Restauração (veresp. O. H. Steck), essa tradição de 2 Samuel7,14 espera que, no advento do Messias, Deus*redima seu povo do Exílio, em um segundoÊxodo; ele vai restaurá-los a uma relação dealiança e adotá-los como filhos, juntamente como Messias (cf. Jub 1,24; TJud 24,3; 4QFlor 1,11).De fato, 2 Coríntios 6,18 cita a fórmula de ado-ção de 2 Samuel 7,14 (+Is 43,6) e isso no con-texto da mesma tipologia do Êxodo, da mesmateologia da nova aliança e na mesma forma ge-neralizada da tradição judaica. Além disso, comona tradição de 2 Samuel 7,14, Gálatas 4,4-6 ligaa adoção divina à recepção do Espírito (da novaaliança) no coração. Por isso, embora o contextode huiothesia em Gálatas 4,5 não dê razão para

ADOÇÃO, FILIAÇÃO

ADOÇÃO, FILIAÇÃO

A.p65 28/03/2008, 15:2032

33A a

a suspeita de um pano de fundo greco-romanopara o termo, toda a linha de argumentação emGálatas 3–4, juntamente com paralelos paulinos,nos leva, sem ambigüidade, a um pano de fun-do judaico/veterotestamentário para o termo (cf.Rm 9,4) e, em especial, à tradição de 2 Samuel7,14 (cf. 2Cor 6,18). Em outras palavras, os fiéisque são assim batizados (ver Batismo) no Filhode Deus messiânico e adotam seu próprio cla-mor, “Abbá, Pai!” (Gl 4,6; Rm 8,15; cf. Mc14,36), participam com ele da promessa davídicade adoção divina e da promessa abraâmica desoberania universal (cf. Gl 4,1).2.3.2. Romanos 8,15.23. Essa interpretação dehuiothesia em Gálatas 4,5 aplica-se igualmenteao emprego do termo na passagem estreitamen-te paralela de Romanos 8. Aqui também a par-ticipação por adoção no Filho de Deus messiâ-nico que é enviado (Rm 8,3; cf. Gl 4,4) está tãointegralmente ligada à recepção do Espírito di-vino que este agora se chama Espírito de ado-ção (Rm 8,15), o Espírito pelo qual também orequisito de justiça da Lei* se realiza (Rm 8,4).Além disso, como em Gálatas 4,5, o contextode huiothesia em Romanos 8 contém elementosda tipologia do Êxodo, e a filiação adotiva divi-na subentende o direito de ser co-herdeiro deCristo na promessa abraâmica (Rm 8,17). En-tretanto, ao contrário de Gálatas 4,5, Romanos8 desenvolve o argumento de que a participaçãopor adoção, no Filho de Deus messiânico, es-tende-se não só ao presente (Rm 8,15), mas,por meio do Espírito, também ao futuro (Rm8,23). Assim como Jesus recebeu outrora o Es-pírito no batismo e foi declarado Filho de Deus(cf. Mc 1,11 par.), também os fiéis recebem nobatismo o Espírito de adoção, o Espírito peloqual, mais uma vez, os fiéis compartilham oclamor do Filho, “Abbá, Pai” (Rm 8,15). Ou-trossim, do mesmo modo que Jesus, oriundode David, foi estabelecido, segundo o EspíritoSanto, Filho de Deus messiânico com poder*na Ressurreição* proléptica dentre os mortos(Rm 1,3-4; cf. 2Sm 7,12.14), também os fiéisque têm o Espírito como o meio de ressurreição(Rm 8,11) aguardam ansiosamente sua revela-ção (Rm 8,19), sua ressurreição/adoção predes-tinada (ver Eleição e predestinação), confor-me a imagem glorificada do Filho ressuscitado

(Rm 8,23.29; cf. Ef 1,5), quando o Filho seráo primogênito* de uma multidão de irmãos(Rm 8,29; cf. Rm 4,13; 8,32; Gl 4,1). Por isso,os aspectos presentes e futuros de huiothesiaem Romanos 8 refletem etapas sucessivas departicipação no Filho pelo Espírito e, como tal,constituem maneiras pelas quais os fiéis parti-lham a promessa davídica com o Filho.

2.3.3. Conclusão: o lugar da adoção na teo-logia paulina. Em suma, há nas cartas paulinasum pano de fundo judaico/veterotestamentáriocoerente e específico de “adoção como filhos”(huiothesia): a palavra ocorre quatro vezes nosentido de adoção esperada pela tradição de 2Samuel 7,14 (cf. 2Cor 6,18) e isso em um as-pecto presente (Gl 4,5; Rm 8,15) ou futuro (Rm8,23; Ef 1,5), dependendo do momento cristoló-gico e histórico da salvação realçado em cadacontexto. A palavra ocorre uma vez no sentido dotipo do Êxodo que fundamenta essa huiothesiade salvação messiânica nas outras quatro ocor-rências (Rm 9,4; cf. Gl 4,1-2). O conceito todoprecisa ser visto à luz da teologia paulina derestauração (cf. Sanders, que, embora não ana-lise a estrutura deuteronômica toda, apresentainvoluntariamente uma importante alternativajudaica ao “nomisma da aliança” consideradonormal apesar dos contratempos [cf. J. M. Scott,“Gal 3:10”]; ver Restauração de Israel).

3. A filiação dos fiéis em PauloA interpretação precedente de huiothesia contrao pano de fundo da tradição de 2 Samuel 7,14proporciona o ponto de partida lógico e necessá-rio para interpretar as referências paulinas maisgerais à filiação dos fiéis, pois a adoção comofilhos de Deus proporciona o meio de entrar nafiliação divina. Conseqüentemente, as passagenspaulinas que atribuem huiothesia aos fiéis tam-bém os chamam “filho(s)” (huioi [do sexo mas-culino; cf. Gl 3,26; 4,6.7; Rm 8,14.19; 9,26),ou, sem especificar o sexo, “criança(s)” (tekna;cf. Rm 8,16. 17.21), de Deus. Sob a influênciade Isaías 43,6, 2 Coríntios 6,18 amplia explicita-mente o conceito de adoção para “filhas”. Por-tanto, homens e mulheres se incluem no concei-to paulino de “filiação” divina. Em Filipenses2,14-15, Paulo instrui os leitores: “Agi em tudosem murmurações nem reticências, a fim de ser-

ADOÇÃO, FILIAÇÃO

ADOÇÃO, FILIAÇÃO

A.p65 28/03/2008, 15:2033

34Aa

des irrepreensíveis e sem comprometimento, fi-lhos de Deus sem mancha no meio de uma gera-ção transviada e pervertida”. A referência aquiaos “filhos” (tekna) de Deus serem “sem man-cha” (am∞ma) alude a Deuteronômio 32,5, onde,porque pecaram, os israelitas são caracterizadoscomo “uma geração pervertida e transviada”(m∞m¶ta) e que “já não são filhos” (tekna) nocontexto do cântico de Moisés que prediz Peca-do–Exílio–Restauração. Dessa maneira, Paulocontrasta a situação que levou ao castigo dos is-raelitas como filhos de Deus com o modo comoos fiéis, sendo filhos de Deus, devem agora secomportar (cf. 2Cor 6,14–7,1; Rm 8,4.12-14).

Ver também BATISMO; ESPÍRITO SANTO; FI-LHO DE DEUS.

BIBLIOGRAFIA: D. von Allmen. La famille de Dieu:La symbolique familiale dans le paulinisme. OBO41, Fribourg, Éditions Universitaires, Göttingen,Vendenhoeck & Ruprecht, 1981; H. D. Betz.Galatians: A Commentary on Paul’s Letter tothe Churches in Galatia. Herm, Philadelphia,Fortress, 1979; F. F. Bruce. The Epistle to theGalatians: A Commentary on the Greek Text.NIGTC, Grand Rapids, Eerdmans, 1982; R.Bultmann. Theology of the New Testament. NewYork, Scribner’s, 1951, 1955, 2 vols.; B. Byrne.“Son of God” — “Seed of Abraham”: A Study ofthe Idea of the Sonship of God of All Christiansin Paul against the Jewish Background. AnBib83, Rome, Biblical Institute, 1979; M. Hengel.The Son of God: The Origin of Christology andthe History of Jewish-Hellenistic Religion. Phila-delphia, Fortress, 1976; H. Hübner. Law in Paul’sThought. Edinburgh, T. & T. Clark, 1984; S. Kim.The Origin of Paul’s Gospel. Grand Rapids,Eerdmans, 1981; M. Kurlowicz. Die Adoptio imklassischen römischen Recht. SA 6, Warsaw,University of Warsaw, 1981; F. Lyall. Slaves,Citizens, Sons: Legal Metaphors in the Epistles.Grand Rapids, Zondervan, 1984; M. Malul.“Foundlings and their Adoption in the Bible andin Mesopotamian Documents: A Study of SeveralLegal Metaphors in Ezek 16,1-7”. JSOT 46, 1990,97-126; N. R. Petersen. Rediscovering Paul: Phi-lemon and the Sociology of Paul’s NarrativeWorld. Philadelphia, Fortress, 1985; E. P. Sanders.Jesus and Judaism. Philadelphia, Fortress, 1985;

J. M. Scott. Adoption as Sons of God: An Exe-getical Investigation into the Background ofUIOYESIA in the Corpus Paulinum. WUNT2,48, Tübingen, J. C. B. Mohr, 1992); Idem.“‘For as many as are of works of the law areunder a curse’ (Gal 3:10)”. In: Paul and theScriptures of Israel. C. A. Evans & J. A. Sanders(orgs.). JSNTSup, Sheffield, JSOT; O. H. Steck.Israel und das gewaltsame Geschick der Pro-pheten. Untersuchungen zur Überlieferung desdeuteronomischen Geschichtsbildes im AltenTestament, Spätjudentum und Urchristentum.WMANT 23, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener,1967; L. Wenger. “Adoption”. RAC 1,100.

J. M. SCOTT

ADORAÇÃO DO IMPERADOR. Ver IMPERADO-RES ROMANOS; SENHOR; RELIGIÕES GRECO-ROMANAS.

ADULTÉRIO. Ver CASAMENTO E DIVÓRCIO,ADULTÉRIO E INCESTO; SEXUALIDADE, ÉTICA SEXUAL.

ADVERSÁRIOS DE PAULOA oposição é com freqüência pressuposta nascartas paulinas, que não são tratados teóricos,mas respostas fundamentadas a situações exis-tentes nas Igrejas. As respostas epistolares pau-linas quase sempre refutam a oposição a suapessoa, ou a seu ensinamento. Às vezes são re-futações gerais e apenas subentendem a exis-tência de resistência local às doutrinas paulinase, nesse caso, são consideradas fora do escopodeste artigo. Outras vezes, porém, Paulo se re-fere a adversários de fora que se infiltraram nasIgrejas que ele instituiu com o intuito de sub-verter suas doutrinas e sua influência. No quese segue, limitaremos nossa análise aos intrusosque penetraram nas assembléias paulinas.

Os biblistas dedicam considerável esforçopara identificar esses adversários. A questãodos adversários em 2 Coríntios é tão importanteque C. K. Barrett declarou ser ela “uma dasquestões cruciais para o entendimento do NovoTestamento e as origens do cristianismo”, opi-nião com a qual concordamos.

Texto em que a oposição a Paulo está maisclara, 2 Coríntios foi submetido a intensa inves-tigação e comprovou ser o ponto mais apropria-do para começar.

ADOÇÃO, FILIAÇÃO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2034

35A a

1. Estudo das opiniões2. Os adversários de Paulo em Corinto:

“servidores da justiça”3. Paulo e os apóstolos de Jerusalém4. Os adversários das Igrejas gálatas5. Os adversários de Paulo: um perfil6. Os judaizantes, Tiago e Paulo7. A oposição em Colossas: gnosticismo

judaico8. A oposição em Filipos: os judaizantes9. A oposição nas Cartas pastorais

1. Estudo das opiniõesE. E. Ellis e J. J. Gunther resumem proveitosa-mente o conjunto de opiniões quanto à identi-dade dos adversários de Paulo. Falando em ter-mos gerais, a identidade dos adversários em 2Coríntios classifica-se de três maneiras.

1.1. Judaizantes. Esta perspectiva foi clas-sicamente expressa por F. C. Baur e repetidacom requinte por C. K. Barrett, M. E. Thrall eR. P. Martin. Ela afirma que os recém-chega-dos a Corinto eram judeus palestinenses deter-minados a persuadir os coríntios gentios* a seadaptar à estrutura do judaísmo. Há muito quedizer a favor desta hipótese.

Entretanto, com base em 1 Coríntios 1,12,Baur também afirmou que os adversários eramemissários de Pedro, que vieram a Corintodizendo-se “de Cristo” (2Cor 10,7). Além dis-so, Baur traçou uma distinção entre os falsosapóstolos (pseudapostoloi, 2Cor 11,13-15) eos superapóstolos (hyperlian apostoloi, 2Cor11,5; 12,11), dos quais os falsos apóstolos seoriginavam, a saber, os apóstolos de Jerusalém*(ver Apóstolo).

Contra isso, devemos mencionar, primei-ro, que nem Pedro* nem Tiago* são mencio-nados em 2 Coríntios, embora em outras oca-siões Paulo não hesite em referir-se a eles pelonome e às vezes em termos negativos (Gl 1,18-19; 2,9.11-14; 1Cor 1,12; 9,5).

Além do mais, a diferenciação entre oshyperlian apostoloi e os pseudapostoloi pareceser arbitrária. Bultmann afirmou que a transiçãode pseudapostoloi (2Cor 11,1-4) para os hyper-lian apostoloi (2Cor 11,5) é repentina demaispara fazer sentido. Talvez a tese de Baur forcea distinção. Baur não chega a sugerir que Paulo

chamou Pedro e Tiago de “falsos apóstolos...disfarçados em apóstolos de Cristo... servos [deSatanás]” (2Cor 11,13.15). Hyperlian apostoloi,que parece menos sinistro, é mais um tributoprestado aos líderes de Jerusalém.

Além disso, a única referência explícita apseudapostoloi está imprensada entre as duas re-ferências a hyperlian apostoloi em uma passagemda carta (2Cor 10-12) na qual Paulo utiliza a idéiade hyper (superior) ironicamente. Paulo usa pala-vras que contêm o prefixo hyper para atacar ospseudapostoloi por seu imperialismo missioná-rio (ultrapassando o próprio limite, hyperektenein,2Cor 10,14) para além das terras (ta hyperekeina,2Cor 10,16), para seu orgulho de revelações ex-traordinárias (t¶ hyperbol¶ t∞n apokalypse∞n,2Cor 12,7) e qualquer orgulho resultante (hype-rairesthai, 2Cor 12,7). Para expor o orgulho deles,o próprio Paulo se vangloria ironicamente deser “muito mais” (hyper) ministro de Cristo emtermos dos sofrimentos que ele relaciona (2Cor11,23-33; ver Angústias). A estreita associação depalavras iniciadas por hyper com os pseudapos-toloi torna provável que os hyperlian apostoloi eos pseudapostoloi sejam as mesmas pessoas.

1.2. Gnósticos. Diametralmente oposta àtese de Baur está a opinião de que os adversárioseram “pneumatistas gnósticos” que minimi-zavam o Jesus terreno em favor de um Senhorcelestial e levavam as doutrinas paulinas da gra-ça a extremos antinomistas. Essa teoria sustentaque, como pregavam “um espírito diferente”(2Cor 11,4), os adversários deviam ser antino-mistas, pois Lei* e Espírito (ver Espírito Santo)se excluem mutuamente. Considera-se 2 Corín-tios 6,14-7,1 a reação paulina ao antinomismodeles. Eles desprezam a gn∞sis inferior (2Cor11,6) e a fraqueza confessa (2Cor 10,10) de Pauloe se apresentam como os que oferecem umagn∞sis superior apoiada por “sinais” milagrosose visionários (ver Visões). Esta hipótese consi-dera a oposição a Paulo em 2 Coríntios umaextensão das tendências ao gnosticismo eviden-tes em 1 Coríntios.

Um dos primeiros defensores desta teoriafoi W. Lütgert (ver Gunther), para quem os adver-sários se formaram no judaísmo liberal da diás-pora. Por sua vez, Lütgert influenciou as inter-pretações de R. Bultmann e W. Schmithals.

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2035

36Aa

Essa opinião é enfraquecida pelo caráter for-temente hebraico/israelita dos que se opunhama Paulo (2Cor 11,22) e pela mensagem deles,que parece ter se concentrado em Moisés* e,portanto, na lei (2Cor 3,4-16). Além disso, nãotemos nenhuma certeza de que no tempo dePaulo o gnosticismo (ver Gnose, gnosticismo)estivesse tão claramente definido quanto essahipótese supõe.

1.3. Homens divinos (theioi andres). Maisrecentemente, D. Georgi desenvolveu a hipótesede que — com base em seus dons e sinais — osadversários de Paulo se proclamavam “homensdivinos” em seqüência a Jesus e Moisés, queeram ambos figuras carismáticas e operavammilagres. Eram missionários judeu-helenísticositinerantes cujos métodos e crenças se origina-ram em um meio helenístico. Suas confiantesalegações e fortes exigências feitas aos coríntiosfaziam parte de sua legitimidade como theioiandres que eles insistiam em opor às fraquezas*manifestas de Paulo.

Uma variação dessa teoria encontra-se na deG. Friedrich, que afirma que os modelos apon-tados pelos recém-chegados não eram tiradosdo mundo helenístico, mas do cristianismo pri-mitivo. Segundo Friedrich, Estêvão e Filipe, oslíderes de Atos 6 que operavam milagres, reu-niram simpatizantes que então foram a Corintocom poderes semelhantes, para apresentar Jesuscomo um triunfante segundo Moisés, em opo-sição à figura sofredora que Paulo anunciava.

A teoria de Georgi é prejudicada porqueos theioi andres não são o tipo claramentedefinido que ele supõe e a referência a eles vemde textos mais tardios que o NT (veja Black-burn). Seu argumento para a alegação deles deestarem “à altura de tal missão”, terem “capa-cidade pessoal” (hikanos, hikanot¶s, 2Cor 2,16;cf. 2Cor 3,5) não exige que se apresentem co-mo “homens divinos” — bastaria a simples su-perioridade sobre Paulo.

Embora proveitosamente sugestiva, a hipó-tese de Friedrich não inclui os muitos pontosnos quais a teologia de Estêvão pode ter anteci-pado e, na verdade, ter sido a fonte das doutrinaspaulinas em vez de ser o contrário delas.

Embora, sem dúvida, o crescente conheci-mento do NT estimule outras teorias quanto a

sua identidade e suas intenções, considerandoque só encontramos os adversários de Pauloquando este os contradiz de passagem, é impro-vável que cheguemos a um consenso. Os indí-cios das cartas paulinas não são sistemáticos esim polêmicos demais para permitir decisõeshistóricas seguras.

2. Os adversários de Paulo em Corinto:“servidores da justiça”2.1. Indícios de 2 Coríntios. A chave para

a identidade dos adversários de Paulo emCoríntios encontra-se em sua declaração:

Esses indivíduos são falsos apóstolos,falsários,disfarçados em apóstolos de Cristo...é pouca coisa para os servos [de Satanás]disfarçarem-se em servidores de justiça(2Cor 11,13-15).Em termos da apresentação que fazem de

si mesmos, os adversários vieram como “após-tolos de Cristo”, “trabalhadores” e “servos”,isto é, nos mesmos termos de Paulo. Sua falsi-dade era disfarçarem-se em “servidores da jus-tiça*” (diakonoi dikaiosyn¶s).

Antes, Paulo comparou dois ministérios (dia-koniai) — de Moisés e de Cristo (2Cor 3,4-18).O primeiro, um “código escrito” que “mata”, osegundo — “uma Aliança nova” —, “[escrita]no Espírito”, “vivifica” (2Cor 3,6). O primeiroé “ministério (diakonia) de condenação”, o se-gundo é “ministério (diakonia) da justiça” (di-

kaiosyn¶s, 2Cor 3,9).Como esse “ministério”, do qual Paulo se

diz detentor (2Cor 4,1), serve de mediador entrea “vida” e a “justiça”? Paulo declara que foi pelamorte de Cristo que “Deus o identificou com opecado... a fim de que por ele nos tornemosjustiça (dikaiosyn¶) de Deus” (2Cor 5,21). Esteé “o ministério (diakonia) da reconciliação... apalavra de reconciliação” (ver Paz, reconcilia-ção) que Deus confiou a Paulo (2Cor 5,18-19;cf. 2Cor 6,3).

Paulo é, portanto, um diakonos na “diakoniada justiça”, por intermédio da cruz de Cristo(ver Cruz, Teologia da), enquanto os adversá-rios são diakonoi da diaknonia de justiça deMoisés por intermédio do “código escrito” que,todavia, não traz “justiça”, mas “condenação”

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2036

37A a

(2Cor 3,9). A “falsidade” dos adversários estána mensagem que transmitem aos coríntios deque Deus distribui justiça pelo “código escrito”,não pela cruz. Ao propor aos coríntios umaalternativa à morte de Cristo como o meio da“justiça” de Deus (ver Justiça de Deus), Paulodeclara que esses homens são “servos” deSatanás (2Cor 11,15).

A frase “servidores da justiça” é, portanto,decisiva na identificação dos adversários dePaulo em Corinto. Como o deles era “o ministé-rio do código escrito”, isto é, “de Moisés” (2Cor3,6-7), acreditamos que esses homens eram, naverdade, judaizantes* e que sua versão da “jus-tiça de Deus” por meio do “código escrito”estava no centro de sua mensagem e era suaprincipal diferença do apóstolo dos gentios.

Infelizmente, só podemos conjeturar qualera a mensagem exata deles. Entretanto, maisuma vez a palavra justiça nos ajuda. Essa pala-vra não ocorre de modo algum nas cartas aostessalonicenses e só aparece uma vez em 1 Co-ríntios. A ocorrência única de justiça a este res-peito, em carta escrita para uma Igreja grega,sugere que as questões ligadas à justiça só sur-giram na Macedônia ou na Acaia por ocasiãoda redação de 2 Coríntios, em 56 d.C.

2.2. Indícios de Romanos. Todos concor-dam que Romanos* foi escrita em Corinto porvolta de 56 ou 57 d.C., não muito depois daredação de 2 Coríntios na Macedônia. Ali vemosque justiça ocorre 49 vezes, com numerosasocorrências das palavras estreitamente relacio-nadas justificar (dikaio∞) e justo (dikaios; verJustificação). Como a família de palavras dejustiça está no centro do argumento de Romanos(ver o importante texto Rm 1,17), é provávelque ali Paulo aborde as mesmas questões e osmesmos (ou o mesmo tipo de) adversários queem 2 Coríntios. Embora em 2 Coríntios Paulonão faça menção à circuncisão*, é bem possívelque a circuncisão fizesse parte da disputa emCorinto. Ela era, com certeza, proeminenteem Romanos e em Gálatas*.

A Carta aos Romanos pode muito bem sera mais significativa resposta paulina à questãode justiça tão dolorosamente levantada em Co-rinto e ardente mas irregularmente abordada em2 Coríntios. Com certeza, em Romanos ainda

se ouvem ecos polêmicos que talvez se relacio-nem com os mesmos adversários de 2 Coríntios.Há os que “caluniosamente pretendem” quePaulo diga: “por que não faríamos o mal paraque daí resulte o bem?” (Rm 3,8; cf. Rm 6,1;Gl 2,17). Seus comentários defensivos a respeitodos judeus (Rm 3,1.9; 4,1; 9,3-5; 11,1) são con-sistentes com acusações que possam surgir deum apostolado judaizante com a mensagem con-centrada na justiça pela observância das obrasda lei (cf. Rm 3,21–4,3.16; 10,3-4). Possivel-mente, “os que suscitam divisões e escândalos,afastando-se do ensinamento que recebestes”(Rm 16,17), representa a advertência paulinageral aos cristãos romanos quanto à mensagemjudaizante oriunda de problemas recentementeencontrados em Corinto.

2.3. Recém-chegados em Corinto. 2 Corín-tios deixa claro que os adversários de Paulo emCorinto eram um grupo (“tantos outros”, 2Cor2,17) de pessoas (hoi kap¶leuontes, “vendedores”ou “traficantes”, 2Cor 2,17) que “vieram” paraCorinto (2Cor 11,4-5) de fora (suas “cartas derecomendação”, 2Cor 3,1), onde eles e sua men-sagem foram recebidos (2Cor 11,4.20).

2 Coríntios leva-nos a concluir que essesrecém-chegados legitimaram sua diakonia emCorinto “vangloriando-se” (kauchasthai, 2Cor10-12 passim) de suas vantagens, ao “compa-rar” (synkrinein, 2Cor 10,12) suas forças comas fraquezas de Paulo. Na viagem missionária aCorinto, eles percorreram uma distância maior,Paulo uma distância menor (2Cor 10,13-14).Eles têm “cartas de recomendação” (de Jerusa-lém?); Paulo não tem nenhuma (2Cor 3,1-3).Eles são figuras triunfantes adequadas (verTriunfo); Paulo é inadequado, uma triste figuraenquanto se move com dificuldade e frustraçãode um lugar para outro (2Cor 2,14-3,5; 4,1.16).Extrapolando de observações que Paulo faz arespeito de si mesmo, alguns biblistas afirmamque essas experiências eram reivindicadas pelosadversários. São homens de poder* divino (“forados sentidos”, 2Cor 5,13), “fora do... corpo...arrebatado ao paraíso” (ver Céu), onde têm“visões” e ouvem “palavras inexprimíveis” quenão é permitido repetir (2Cor 12,1-5; ver Vi-sões), enquanto Paulo é mundano, ministro sempoder, temporal e fraco (2Cor 10,3-6; 12,1-10;

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2037

38Aa

cf. 2Cor 5,12-13). Possivelmente, eles produ-ziam “os sinais distintivos do apóstolo” (2Cor12,12), enquanto Paulo, eles alegam, não os pro-duzia. Eles são fortes na eloqüência (2Cor 11,5-6) e em sabedoria*, enquanto ele é “nulo” naeloqüência e, em geral, um “louco” (2Cor 11,1-12,13). Em tudo ele é “inferior” (cf. 2Cor 11,5),enquanto eles são superiores, melhores (hyper,2Cor 11,23).

Aqui está a dificuldade de identificar essesadversários como “hebreus” judaizantes, dispos-tos a impor “Moisés” (a lei) aos coríntios (2Cor11,22; 3,4-16). Corinto era uma metrópolegreco-romana. Como teriam os “hebreus” estilosuficiente para ser aceitos por esse público e,além do mais, revelar proficiência nas artes retó-ricas (ver Retórica; Crítica retórica) de “van-glória” e “comparação”? Esses “hebreus” pare-cem comportar-se como gregos.

As duas principais teorias a respeito dosadversários — que eles deviam ser judaizantesou gnósticos — são perfeitamente compreensí-veis devido à aparente contradição implícita nosindícios a respeito deles contidos em 2 Coríntios.

Entretanto, temos disponíveis novas infor-mações que mudam toda a nossa idéia da vidada Judéia do século I. Com base em inscriçõesfunerárias, M. Hengel afirma que havia 16.000judeus de língua grega em Jerusalém, de umapopulação calculada em 100.000 (Hengel, 10;ver Helenismo). Ele conclui que muitos delesdeveriam gozar de alto nível de educação clás-sica. É bastante concebível, portanto, que os“hebreus” que vieram a Corinto falassem gregoperfeito e possuíssem habilidades em retórica.O próprio Saulo/Paulo não era destituído decapacidade nesses campos, sem falar em seucolaborador Silas/Silvano (ver Colaboradores),o profeta judeu-cristão de Jerusalém a quem seatribui a bem escrita 1 Pedro (At 15,32; 2Cor1,19; 1Pd 5,12).

E o que dizer do êxtase paranormal, das vi-sões, das revelações e dos milagres dos quais osadversários de Paulo dependiam, pelo menos emparte, para ser aceitos em Corinto? O estudo dahistória da Judéia no período de 44-66 d.C. reve-la um ambiente de desintegração política, ati-vismo revolucionário e fervor apocalíptico quese expressavam em inspiração profética e sinais

milagrosos (ver, e.g., Josefo, GJ 2,13,4 §§ 258-259). É bem possível que, na época, a Judéiarepresentasse o tipo de ambiente religioso doqual os pseudapostoloi se originaram. É desne-cessário, portanto, exigir uma procedência gnós-tica para esses recém-chegados.

3. Paulo e os apóstolos de JerusalémSe, como 2 Coríntios expressa, os recém-che-gados eram judaizantes, seriam eles emissáriosdos apóstolos de Jerusalém, como sugeriu F. C.Baur? O relacionamento de Paulo com a Igrejade Jerusalém e seus apóstolos está descrito commuita clareza em Gálatas, principalmente noscapítulos 1 e 2. Ao contrário da tese de Baur,esses capítulos revelam que, embora existissetensão entre Paulo e os apóstolos de Jerusalém,eles são inconfundíveis com seus adversários,em Jerusalém e também em Antioquia*.

Paulo descreve seu relacionamento com osapóstolos de Jerusalém referindo-se a quatroocasiões críticas de seu ministério. Ele escreveautobiograficamente, mas de modo a demons-trar para os gálatas a natureza delicada de seurelacionamento com aqueles “que eram após-tolos antes” dele em Jerusalém (Gl 1,17).

Primeiro ele se refere a seu “chamado” acaminho de Damasco (Gl 1,15-17; ver Con-versão e vocação de Paulo). Não foram osapóstolos de Jerusalém, mas sim Deus* quem“chamou” Paulo e lhe revelou “o seu Filho”, afim de que ele o anunciasse “entre os gentios”(Gl 1,16). Nem mesmo depois do chamadoPaulo “recorreu (literalmente “procurou a cor-roboração”) à carne* e ao sangue”, isto é, aosapóstolos de Jerusalém. Ele partiu para a Ará-bia e depois voltou a Damasco. O conhecimen-to paulino do Cristo ressuscitado foi transmi-tido diretamente a Paulo por Deus.

A segunda ocasião foi em Jerusalém (Gl1,18-21). Só “três anos depois” de seu chamadoPaulo subiu a Jerusalém “para conhecer Cefas”,com quem ele ficou quinze dias (Gl 1,18). Apalavra paulina conhecer (gr. histor¶sai), cujosentido é muito debatido, poderia ser interpre-tada como “encontrar” ou talvez “consultar”, oque sugere certa obrigação para com Cefas porinformações a respeito do Jesus histórico (verJesus e Paulo), em oposição ao Cristo celestial.

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2038

39A a

Paulo salienta sua autonomia apostólica, aocomentar de passagem: “sem ver entretanto ne-nhum outro apóstolo, a não ser Tiago, irmão doSenhor”, o que sugere não mais que uma visitade cortesia. Suas palavras cuidadosamente es-colhidas são realçadas por sua solene garantia:“O que vos escrevo, digo-o diante de Deus, nãoé mentira” (Gl 1,20; mas cf. At 9,26-30). Aindasem ser conhecido de vista pelas “Igrejas doCristo que estão na Judéia” (i.e., em Jerusaléme nos arredores), ele foi para as regiões da Síriae da Cilícia (Gl 1,21,22; cf. At 9,30).

A terceira ocasião, também em Jerusalém,ocorreu “ao cabo de quatorze anos” (Gl 2,1-10), isto é, quatorze anos depois de seu grande“chamado” divisor de águas a caminho de Da-masco. Preocupado em saber se “o Evangelhoque [ele prega] entre os gentios”, um Evan-gelho que não exigia a circuncisão dos gen-tios, era aceitável aos olhos de Tiago, Cefas eJoão, Paulo levou consigo, como precedente,o incircunciso Tito. Embora a autoridade*apostólica de Paulo fosse independente de Jeru-salém, era importante que seus convertidosgentios livres da circuncisão fossem aceitos aolado dos fiéis judeus, como herdeiros espiri-tuais de Abraão*.

Apesar das tentativas dos “falsos irmãos”(gr. pseudadelphoi, Gl 2,4) de fazer Tito sercircuncidado, os apóstolos que eram considera-dos “colunas” — Tiago*, Cefas e João — nãofizeram tais exigências ao companheiro gentiode Paulo (Gl 2,6). Ao contrário, os três apósto-los de Jerusalém reconheceram formalmenteque “a evangelização dos incircuncisos” haviasido “confiada” [i.e., por Deus] a Paulo e de-ram a mão a Paulo e Barnabé*, “em sinal decomunhão”, a fim de que Paulo e Barnabé fos-sem “aos gentios” e o triunvirato de Jerusalémfosse “aos circuncisos” (Gl 2,7-9).

Em outras palavras, os apóstolos de Jerusa-lém reconheceram dois apostolados, um aosjudeus, liderado por Pedro, o outro aos gentios,liderado pelos delegados de Antioquia, Pauloe Barnabé. Apesar da decisão de aprovar doisapostolados racialmente distintos, houve amploacordo quanto aos fundamentos do Evangelhobaseados na morte e ressurreição* de Cristo(ver 1Cor 15,3-5.11).

A quarta ocasião foi em Antioquia na Síria,Igreja de membros heterogêneos, judeus e gen-tios (Gl 2,11-14; ver Ambiente social). Cefasveio (de Jerusalém) a Antioquia, onde tomoucom os gentios as refeições (até mesmo a Ceiado Senhor?; ver Ceia do Senhor), algo que pre-sumivelmente foi preparado para fazer depoisda conversão de Cornélio (Gl 2,14; cf. At 10,28).Embora judeu, Pedro agora vivia “à maneirados gentios” (Gl 2,14), isto é, comia com osgentios, o que significava comer o que eles co-miam (ver Alimento).

Mas uma grave divisão racial-religiosa de-senvolveu-se na Igreja de Antioquia com a che-gada dramática dos “emissários de Tiago” (vin-dos de Jerusalém At 15,23-24; cf. At 15,1) quepara Paulo são os “circuncisos”. Cefas “come-çou a subtrair-se e se manteve afastado” (paroude comer com os membros pagãos da Igreja).O resto dos membros judeus, até Barnabé,agiram “com duplicidade” (literalmente “comhipocrisia”). Paulo se opôs a Cefas “aberta-mente, pois [ele] assumira uma atitude errada”ao passar a tomar as refeições exclusivamentecom os judeus. Era hipocrisia de Pedro viver“à maneira dos gentios”, mas agora por essaação querer “obrigar os gentios a se comporta-rem como judeus” (Gl 2,14).

Em Antioquia “a verdade do Evangelho”estava em jogo (Gl 2,14), o que foi provocadopela exigência de que os judeu-cristãos tinhamde comer separadamente dos fiéis gentios, oque teve o efeito de exigir que os gentios ado-tassem práticas judaicas para comer. Paulo em-pregou a frase vigorosa “a verdade do Evange-lho” no incidente anterior em Jerusalém quan-do ele se opôs à necessidade da circuncisão dogentio Tito (Gl 2,5). Em outras palavras, “averdade do Evangelho” é preservada quando acircuncisão e as leis dietéticas judaicas são con-sideradas estranhas ao Evangelho e não-obriga-tórias para os gentios.

Essa longa passagem autobiográfica (Gl1,15–2,14), que abrange uma década e meia davida de Paulo, é inestimável para identificar osgraus de diferença entre Paulo e diversas pessoasda Igreja de Jerusalém. Diferenciamos entre os“que eram apóstolos antes” dele em Jerusalém— com os quais são reconhecidas algumas ten-

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2039

40Aa

sões — e outros com os quais há franca oposi-ção. Assim, Paulo insiste que seu “chamado”para ser apóstolo para os gentios foi feito dire-tamente por Deus e alguns anos depois reco-nhecido pelos apóstolos que eram considerados“colunas” da Igreja de Jerusalém. Ele expressadeferência a Cefas em uma situação, mas ferozoposição em outra. A respeito de Tiago, há umacerta ambivalência. Na primeira visita a Jerusa-lém, ele apenas “viu” Tiago. Pela ordem que dáaos nomes, ele reconhece a primazia de Tiagono segundo encontro em Jerusalém, ao mesmotempo em que dá a entender uma crítica a ele,pois o problema em Antioquia foi causado pelos“emissários de Tiago”.

Mesmo assim, Cefas e Tiago não são “adver-sários”. Nenhuma explicação é dada quanto aos“falsos irmãos, intrusos que, tendo-se insinuado,espreitavam a nossa liberdade... a fim de nosreduzir à escravidão” (Gl 2,4). Eles estão asso-ciados ou mais provavelmente identificados comos “emissários de Tiago” para Antioquia e quetiveram uma influência tão dramática nas prá-ticas alimentares de Cefas, de Barnabé e dosfiéis judeus (Gl 2,12-13).

A mesma distinção encontra-se nos Atos dosApóstolos. Por um lado, há “os apóstolos e osanciãos” da Igreja de Jerusalém (At 15,2.6.22.23),entre os quais são citados Pedro (At 15,7) e Tiago(At 15,13), enquanto do outro estão “alguns fiéisoriundos do farisaísmo” que diziam ser “neces-sário circuncidar os gentios e prescrever-lhes queobservassem a lei de Moisés” (At 15,5; cf. At15,1). Identifiquemos ou não o encontro dosdelegados de Antioquia e os apóstolos que eramconsiderados “colunas” (Gl 2) com a chamadaAssembléia de Jerusalém (At 15), é provável queos “falsos irmãos” de Gálatas 2,4 sejam os “fiéisoriundos do farisaísmo” de Atos 15,5.

Portanto, Atos 15,5 fornece uma pista pre-ciosa, que não se encontra em nenhuma outrapassagem e que quase resolve o mistério daidentidade dos adversários de Paulo em Jeru-salém. Esses “falsos irmãos” de Jerusalém,esses “emissários de Tiago” [de Jerusalém paraAntioquia]... os circuncisos” (Gl 2,4.12) eram“fiéis oriundos do farisaísmo”.

Então, qual era a relação entre os após-tolos considerados “colunas” da Igreja de

Jerusalém — Tiago, Cefas e João — e essesindivíduos?

4. Os adversários das Igrejas gálatasOs biblistas discordam quanto à data da Cartaaos Gálatas*. Alguns a determinam no fim dosanos 40, logo depois da disputa em Antioquia(Gl 2,11-14), às vésperas da Assembléia de Je-rusalém. Outros datam a carta na mesma épocaque 2 Coríntios e Romanos, isto é, em meadosdos anos 50. Com certeza, o vocabulário de“justiça” é bastante proeminente na carta, o quesugere estarem em jogo os mesmos problemasabordados em 2 Coríntios e Romanos. Mas issonão significa necessariamente que Gálatas tenhasido escrita em meados de 50. Pode ser que Paulousasse o vocabulário de “justiça” sempre quesurgia o problema dos judaizantes.

Ao contrário de Antioquia e Corinto, nãohá menção de ninguém de fora que viesse àsIgrejas gálatas (2Cor 11,4; Gl 2,12). Um gru-po de judeus liderados por um indivíduo nãoidentificado semeava a desordem entre as Igre-jas (Gl 5,10.12; 3,1; 1,7.9). Esse grupo diziaque a circuncisão era pré-requisito para parti-cipar do Israel* de Deus (Gl 3,6-14; 6,16).Esses “agitadores” e seu líder pressionavamoutros fiéis judeus para que impusessem acircuncisão aos fiéis gentios (Gl 6,12). Ale-gavam que, na verdade, Paulo devia sua autori-dade aos apóstolos de Jerusalém (Gl 1,15–2,9)e que o próprio Paulo pregava a circuncisão(Gl 5,11).

Seriam esses agitadores e seu líder naturaisda região gálata ou, de fato, foram para lá vin-dos de outro lugar? A carta da Assembléia deJerusalém aos “irmãos... que se acham em An-tioquia, na Síria e na Cilícia” reconhece que“alguns dos nossos tinham ido vos perturbar”(At 15,23). Se esses agitadores vieram de Jeru-salém para a Cilícia, não seria surpresa queviajassem para o sul da Galácia. Como o en-foque de Gálatas é na circuncisão relacionadaà liberdade cristã (ver, e.g., Gl 5,1-2), tematambém proeminente na passagem autobio-gráfica, em que “falsos irmãos” de Jerusalém“espreitavam a nossa liberdade... a fim de nosreduzir à escravidão”, forçando Tito à circun-cisão (Gl 2,3-5), é razoável afirmar que os que

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2040

41A a

vieram às Igrejas gálatas eram, de fato, os “fal-sos irmãos” de Jerusalém, os “fiéis oriundosdo farisaísmo” (At 15,5).

5. Os adversários de Paulo: um perfilDo estudo de 2 Coríntios, Romanos e Gálatassurge um padrão que nos permite definir maisrigorosamente os adversários de Paulo em Corinto,conforme retratados em 2 Coríntios. A substitui-ção do “código escrito” associado a Moisés poruma “Aliança nova” (ver Aliança e nova Alian-ça), “uma diakonia de justiça”, juntamente coma rejeição paulina dos adversários em Corintocomo “servidores da justiça”, sugere que os re-cém-chegados vieram em missão judaizantepara impor aos coríntios gentios o código mosai-co escrito. A proliferação de justiça e palavrasrelacionadas em Romanos e Gálatas, preocupa-dos como eles estão em refutar a justiça oriundadas obras da lei judaica, confirma o perfil dosadversários de Corinto como judaizantes.

Gálatas nos ajuda a ver que, embora existis-sem tensões significativas entre ele e os apósto-los de Jerusalém, é importante diferenciar essesapóstolos dos indivíduos que Paulo chama de“falsos irmãos... os circuncisos”, que identifi-camos com mais rigor como “fiéis oriundosdo farisaísmo”.

Os “falsos irmãos”, que são também “falsosapóstolos”, fazem parte do mesmo grupo queos “superapóstolos” (hyperlian apostoloi, 2Cor11,5; 12,11). 2 Coríntios leva à conclusão de quea superioridade que eles alegam ter baseia-se,em parte, no fato de se vangloriarem de ter viaja-do até onde viajaram, talvez de ter viajado maislonge que Paulo (2Cor 10,13-18). Paulo rejeitaessa alegação nos termos do acordo missionáriofeito em Jerusalém no fim dos anos 40 pelosapóstolos considerados “colunas” com Paulo eBarnabé (Gl 2,7-9). Ao vir a Corinto, os “supera-póstolos” atravessaram a linha divisória e entra-ram no campo paulino de trabalho missionárioque constava do acordo (ver Missão): ministropara os gentios. Eles ultrapassaram os limitesque Deus estabelecera e se orgulharam “de obrasjá prontas no terreno dos outros”.

De 2 Coríntios surge um perfil fascinantedesses homens, sua missão e seus meios paralegitimar essa missão. Guiados, com toda a proba-

bilidade, por um elevado zelo religioso que seoriginou da rápida deterioração das relaçõesentre romanos e judeus na Judéia, sob o notórioregime de Félix, aparentemente esses “supera-póstolos” fortificaram-se com uma série de ca-pacidades paranormais planejadas para impres-sionar os gentios de Corinto, de modo a suplan-tar Paulo como apóstolo para esses gentios. Suadeterminação de derrotar Paulo talvez tambémindique que estavam a par do sucesso paulinona instituição de assembléias messiânicas entreos gregos. Mas, no que lhes dizia respeito, essasassembléias, embora ligadas ao Messias Jesus,eram cisões de Israel, pois não atribuíam umlugar real para Moisés e a lei (At 15,1.5).

Em sua contramissão, os adversários de Paulomostraram, sob todos os ângulos, um zelo com-parável ao dele. Opuseram-se a ele em Jerusa-lém e dali viajaram as Igrejas em Antioquia, naSíria-Cilícia, na Galácia e então até a cidade deCorinto na Acaia. Esse é um notável fenômenohistórico. Paulo diz que eles se proclamavam“ministros de Cristo” (2Cor 11,23), contudo, naopinião dele, estavam tão desorientados quantoao ministério da “justiça” que ele os chama de“servos [de Satanás]” (2Cor 11,14). A missão eatividades deles constituem uma grande ameaçaà sobrevivência das Igrejas paulinas e levam-no aredigir cartas que estão entre as mais convincentesque escreveu. É justo dizer que a falta de aprecia-ção da identidade e do programa zeloso deles pe-los leitores modernos atrapalha significativamen-te nossa compreensão do argumento paulino nes-sas cartas onde ele responde a seus argumentos.

6. Os judaizantes, Tiago e PauloO argumento acima deixa claro que não pode-mos rigorosamente associar o nome de Pedroaos adversários de Paulo. O incidente em Antio-quia (Gl 2,11-14) mostra que Pedro era susce-tível à influência deles, mas não a fonte dessainfluência. Mas e Tiago, irmão do Senhor, “após-tolo antes de” Paulo que, no fim dos anos 40,surgiu como o preeminente apóstolo considera-do “coluna” da Igreja de Jerusalém? Seria Tiagoa fonte da oposição que fluiu de Jerusalém paraas Igrejas dos pagãos?

Tiago era membro da Igreja de Jerusalémdesde seu início até morrer em 62 d.C., período

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2041

42Aa

de cerca de trinta anos. A princípio o líder eraPedro, apoiado por João Zebedeu. Entretanto,no fim dos anos 40, Tiago, não Pedro, era o lí-der (Gl 2,9; At 15,13-22). Nessa época, haviaapóstolos e anciãos em Jerusalém (At 15,2.4.6.22.23). Entretanto, quando Paulo foi pela últi-ma vez a Jerusalém, por volta de 57 d.C., nãohavia referência a “apóstolos”; só os anciãos deJerusalém permaneceram, sendo Tiago eviden-temente o líder.

Durante esse período de trinta anos, a Igrejade Jerusalém tornou-se mais conservadoramentejudaica, sem dúvida por reflexo da ascensão donacionalismo religioso judaico em face da pioradas relações entre os romanos e os judeus na Ju-déia (Josefo, GJ 2,12,1–13,7 §§ 223-227 passim).Primeiro, os helenistas emigraram nos anos 30e, no final dos anos 40, foram seguidos por Pedro(e João?) e possivelmente pelos outros apósto-los. O último vislumbre da Igreja de Jerusalémdado pelos Atos por ocasião da última visita dePaulo é de um encrave completamente judaico.

Apesar da boa fachada que os Atos dão paraa reunião, está bastante claro que os anciãos deJerusalém expressaram profunda insatisfaçãocom Paulo. Não é mencionado nenhum discursode gratidão pela coleta* das Igrejas gentias, em-bora Lucas soubesse da existência da coleta (At24,17). Mais exatamente, os anciãos comentamde modo incisivo o tamanho e a característica ju-daica da comunidade de fiéis de Jerusalém queem geral estavam convictos de que Paulo traíraa causa do judaísmo da diáspora. Eles entendiamque Paulo ensinara aos judeus a abandonarMoisés e a não circuncidar os filhos (At 21,21)e que ele não exigia que os gentios obedeces-sem às decisões da Assembléia de Jerusalémquanto ao ritual e a questões morais (At 21,25).

Essas acusações são instrutivas, pois refle-tem claramente as opiniões dos anciãos de Jeru-salém. Contudo, essas opiniões seguem e se pa-recem muito com o compromisso com Moisésdos homens que uma década e meia antes fo-ram de Jerusalém para os gentios de Antioquia,insistindo na circuncisão como pré-requisitopara a salvação e que, afirmamos, eram “fiéisoriundos do farisaísmo” (At 15,1.5).

Não sugerimos que fossem necessariamenteos mesmos indivíduos, mas sim que, pelo menos

a partir dos anos 40, havia um ponto de vistadefendido com veemência na comunidade mes-siânica de Jerusalém que, influenciado pelo fari-saísmo, promovia uma versão nacionalista e,portanto, mosaica da fé e, por isso, tinha profun-da preocupação com a missão paulina para osgentios. A tendência crescente ao nacionalismoreligioso durante as crises na Judéia dos anos 40e 50, juntamente com a influência decrescentede líderes mais liberais como Estêvão, Filipe, Joãoe Pedro, e a ascensão de Tiago — ninguém menosque o irmão do Senhor — como líder incontestecriaram um ambiente no qual surgiu uma missãoque se opunha à influência de Paulo na diáspora.Porém esses indivíduos nunca são designadospelo nome, nem por Paulo, nem nos Atos. Con-tinuam a ser “alguns indivíduos” (tines, At 15,1.5;Gl 2,12) que, por atacar as doutrinas de Cristo,Paulo descreve como “falsos irmãos”, “falsosapóstolos” e até “servos [de Satanás]”.

Tiago devia ser figura importante em Jeru-salém no fim dos anos 50, já que presidia umacomunidade religiosa tão grande (At 21,18-20).No relato da morte de Tiago em 62 d.C., Josefocorrobora essa impressão. O sumo sacerdoteAnás II aproveitou a oportunidade propiciadapela inesperada morte do procurador Festo paramandar lapidar Tiago. Está claro que Tiago deviaser importante para representar ameaça ao sumosacerdote. Mas sua morte provocou um protestodos hierosolimitas “que eram tidos como os maisobservadores, mais justos e rigorosos das leis”(Josefo, Ant. 20,9,1 § 201), o que significa cida-dãos de simpatia farisaica.

Assim, Tiago parece ter gozado de significa-tivo respeito na comunidade mais ampla de Jeru-salém. De seu ponto de vista, como líder de umacomunidade messiânica em Jerusalém, a missãode Paulo para os gentios na diáspora deve tercriado sensíveis dificuldades para as relações en-tre a comunidade judaica messiânica e a comuni-dade judaica mais ampla, numa época de nacio-nalismo religioso que aumentava rapidamente.

Da perspectiva de Paulo talvez houvesse umgrau de nervosismo quanto ao irmão do Senhor,pois parece que seus adversários vinham dacomunidade de Tiago. É verdade que Paulo serecusa a admitir que seu apostolado deriva deTiago (Gl 1,19; cf. Gl 1,17) e, até certo ponto,

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2042

43A a

contesta a autoridade dos apóstolos de Jerusalém(Gl 2,6-9) e, na verdade, ele expressa uma quei-xa zangada dos “emissários de Tiago” que pro-vocaram separação em Antioquia (Gl 2,12).Contudo, Paulo reconhece o apostolado de Tiagoe, na verdade, sua primazia como apóstolo deJerusalém (Gl 1,19; 2,9). Não existe nenhumaboa razão para crer que as “cartas de recomenda-ção” trazidas pelos recém-chegados a Corinto(2Cor 2,17–3,1) trouxessem o nome de Tiago.Dificilmente Paulo teria prosseguido com a co-leta para a Igreja de Jerusalém se Tiago fosse afonte da oposição que fluiu de Jerusalém paraas Igrejas paulinas. Na verdade, um dos motivospaulinos para a coleta* pode ter sido manteruma solidariedade* evangélica entre seu aposto-lado para os gentios e aquele outro apostoladoque se voltava para os judeus e tinha sua baseem Jerusalém, onde Tiago era o líder inconteste.

Discernimos uma impressão comparável deTiago no relato que Lucas faz da Assembléiade Jerusalém. Tiago não exige a circuncisão dosgentios e nega que os que tinham ido de Jerusa-lém “perturbar” os gentios em Antioquia, naSíria e na Cilícia tivessem seu mandato para isso(At 15,19.23-24). Na última e tensa visita dePaulo a Jerusalém, as queixas contra o apóstolodos gentios vêm da boca dos anciãos, não da deTiago (At 21,18-25).

7. A oposição em Colossas: gnosticismo judaicoCientes das principais teorias de que os adver-sários de Paulo eram ou judaizantes ou gnós-ticos, uma solução simples seria identificar taisadversários, em especial os de Corinto, ondetanto se fala a respeito deles, como gnósticosjudaicos. A existência desses indivíduos tor-na-se provável pela refutação paulina do que égeralmente considerado uma espécie de gnos-ticismo judaico na Igreja colossense (ver Co-lossenses). Em Colossas havia, inquestionavel-mente, uma versão de cristianismo caracteriza-da pela circuncisão, pela ascese, pela observân-cia do calendário, pelo misticismo e pelo cultoaos anjos (Cl 2,8-23).

Esses elementos estão, em grande parte, au-sentes da rejeição paulina do ensinamento deseus adversários em Corinto. A apresentaçãopaulina da pessoa e da obra de Cristo (ver Cristo-

logia) aos coríntios — em termos de seu cum-primento da promessa e da justiça da lei (2Cor1,19-20; 3,4-9; 5,18-21) — tem uma ênfase mui-to diferente do Cristo cósmico da Carta aos Co-lossenses (Cl 1,15-20; 2,9-10.19; 3,1-3).

Em Colossenses não há alusão à origemdesse gnosticismo judaico, fosse ele nativo ouimportado. Entretanto, é bem sabido que o ju-daísmo floresceu até em regiões remotas daAnatólia, como o vale do Lico. A explicaçãomais provável é que uma versão local de gnosti-cismo judaico entrou na vida da Igreja cristã deColossas. Em todo caso, Paulo não tinha visita-do essa região. Os judaizantes mais típicos pa-recem ter sido atraídos a Igrejas instituídas di-retamente pelo apóstolo.

8. A oposição em Filipos: os judaizantesSegundo muitos biblistas, Paulo escreveu aCarta aos Filipenses em Roma, no início dosanos 60. Mais uma vez, é evidente a oposição aPaulo por parte de fiéis judeus. Mas a nature-za da oposição a Paulo em Filipos é controversa(ver Filipenses). A prisão de Paulo encorajouos “irmãos” de Roma a “anunciar sem medo aPalavra” (Fl 1,14). Alguns deles, porém, “ofazem por inveja e rivalidade.... Os seus mo-tivos não são puros; pensam tornar o meu cati-veiro ainda mais penoso” (Fl 1,15.17). Comtoda a probabilidade “esses são os que mutilama carne” (Fl 3,2), os que querem circuncidar osfiéis gentios, cujo “deus é o ventre” (Fl 3,19),isto é, observam as regras dietéticas judaicas.

Como em outras cartas — Gálatas e Roma-nos — que tratam da imposição da circuncisãoaos gentios, notamos o uso pelo apóstolo de “jus-tiça... uma justiça que vem de Deus e se apóia nafé [em Cristo]” (ver Fl 3,6.9 bis).

Desde a chegada de fiéis na capital do mun-do havia problemas na grande comunidade ju-daica (ver Roma e o cristianismo romano). Elafoi forçada a se retirar de Roma em 49 d.C.,“por causa de Chrestus” (Suetônio, Cláudio25,4; cf. At 18,2), possível erro ortográfico deChristus. Provavelmente a conversão de judeus aJesus Cristo provocou tal perturbação na comu-nidade judaica que Cláudio expulsou todos osjudeus. A elevação de Nero em 54 d.C. permitiuque os judeus voltassem à cidade, sem dúvida

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ADVERSÁRIOS DE PAULO

A.p65 28/03/2008, 15:2043

44Aa

receosos de que novos distúrbios trouxessemmais represálias por parte das autoridades.Como Paulo era conhecido como foco de agita-ção onde quer que ele fosse, é possível que osadversários judeu-cristãos de Paulo em Romaaté recorressem à pregação de Cristo — naversão deles, claro — para promover a desor-dem na comunidade judaica e, assim, prejudi-car a iminente audiência do caso de Paulo.

Não há nenhum indício de que essas pes-soas tivessem vindo de Jerusalém a Roma parahostilizar Paulo. Talvez o movimento judaizan-te, como a missão de Paulo, tivesse, a essa altu-ra, desenvolvido um impulso próprio, de modoque já não tivesse ligação direta com a cidadenatal, Jerusalém. Isso apóia o argumento de queo programa judaizante não estava diretamenteligado a Tiago, que já tinha morrido quandoPaulo escreveu aos filipenses.

9. A oposição nas cartas PastoraisLimitamos nossa análise a adversários de foraque se infiltravam nas Igrejas instituídas porPaulo. Em nossa opinião, os falsos mestres eoutros adversários citados nas cartas Pastorais(ver Cartas Pastorais) eram originários das Igre-jas. Nisso seguimos E. E. Ellis: “Ao contráriodas cartas mais primitivas, os adversários pare-cem incluir um número considerável de antigoscolaboradores que com sua apostasia criam umasituação bastante amarga” (Ellis, 214).

Ver também APÓSTOLO; CIRCUNCISÃO; GNOSE,GNOSTICISMO; JERUSALÉM; JUDAIZANTES; LEI.

BIBLIOGRAFIA: F. A. Agnew. “Paul’s TheologicalAdversary in the Doctrine of Justification by Fai-th: A Contribution to Jewish Christian Dialogue”.JES 25, 1988, 538-554; P. Barnett. “Oppositionin Corinth”. JSNT 22, 1984, 3-17; C. K. Barrett.“Paul’s Opponents in II Corinthians”. NTS 17,1971, 233-254; B. Blackburn. “Miracle WorkingTHEIOI ANDRES in Hellenism (and HellenisticJudaism)”. In: Gospel Perspectives 6: The Mira-cles of Jesus. D. Wenham & C. Blomberg (orgs.).Sheffield, JSOT, 1986, 185-218; J. D. G. Dunn.“The Relationship between Paul and Jerusalemaccording to Galatians 1 and 2”. NTS 28, 1982,461-478 (= Jesus, Paul and the Law: Studies inMark and Galatians. Louisville, Westminster/

John Knox, 1990, 108-126); E. E. Ellis. “Paul andhis Opponents”. In: Christianity, Judaism andOther Greco-Roman Cults. J. Neusner (org.). Lei-den, E. J. Brill, 1975, 264-298; C. Forbes. “Paul’sOpponents in Corinth”. Buried History 19, 1983,19-23; D. Georgi. The Opponents of Paul in Se-cond Corinthians. Philadelphia, Fortress, 1986;J. J. Gunther. St. Paul’s Opponents and Their Back-ground. NovTSup 35, Leiden, E. J. Brill, 1973;M. Hengel. The “Helenization” of Judaea in theFirst Century after Christ. Philadelphia, TrinityPress International, 1989; D. Kee. “Who were the‘Super-Apostles’ of 2 Corinthians 10-13?”. RQ23, 1980, 65-76; C. G. Kruse. “The Offender andthe Offence in 2 Corinthians 2:5 and 7:12”. EvQ60, 1988, 129-139; Idem. “The Relationshipbetween the Opposition to Paul Reflected in 2Corinthians 1-7 and 10-13”. EvQ 61, 1989, 195-202; S. E. McClelland. “‘Super-Apostles, Ser-vants of Christ, Servants of Satan’: a Response”.JSNT 14, 1982, 82-87; R. P. Martin. “The Oppo-nents of Paul in 2 Corinthians: An Old Issue Revi-sited”. In: Tradition and Interpretation in the NewTestament. G. F. Hawthorne, O. Betz (orgs.). GrandRapids, Eerdmans, 1987, 279-289; J. Murphy-O’Connor. “Pneumatikoi and Judaizers in 2 Cor2:14-4:6”. ABR 34, 1986, 42-58; D. W. Oosten-dorp. Another Jesus: A Gospel of Jewish Chris-tian Superiority in II Corinthians. Kampen, Kok,1967; E. P. Sanders. “Paul on the Law, His Oppo-nents and the Jewish People in Philippians 3 and2 Corinthians 11”. In: Anti-Judaism in EarlyChristianity 1. P. Richardson & D. Granskou(orgs.). Waterloo, Wilfred Laurier University,1986, 75-90; J. Sumney. Identifying Paul’sOpponents. JSNTSup 40, Sheffield, JSOT, 1990;Idem. “The Role of Historical Reconstructionsof Early Christianity in Identifying Paul’s Oppo-nents”. PRS 16, 1989, 45-53; M. Thrall. “Su-per-Apostles, Servants of Christ, and Servantsof Satan”. JSNT 6, 1980, 42-57.

P. W. BARNETT

ALEGORIA. Ver ANTIGO TESTAMENTO EM PAU-LO, O.

ALEGRIAPara Paulo, o cristianismo era a religião da ale-gria e também a religião da graça*. Como tudo

ADVERSÁRIOS DE PAULO

ALEGRIA

A.p65 28/03/2008, 15:2144

45A a

era graça no que dizia respeito a sua justifica-ção, uma das principais conseqüências de suareconciliação com Deus* era a capacidade dealegrar-se “em Deus por nosso Senhor JesusCristo” (Rm 5,11 [BMD]), apesar das angús-tias*, tribulações e provações que sentia.

1. O vocabulário da alegria2. Estar em Cristo3. O fruto do Espírito4. Alegria no sofrimento5. A escatologia da alegria

1. O vocabulário da alegriaDas 326 ocorrências das palavras que indicamalegria no NT, 131 encontram-se nas 10 cartasque costumam ser atribuídas a Paulo, isto é, 40por cento. Mesmo que Efésios e Colossenses nãosejam levadas em conta, ainda resta uma alta por-centagem do vocabulário de alegria no NT atri-buível a Paulo. Assim, é bem possível considerarPaulo o teólogo da alegria, da mesma forma que,sem dúvida, ele era o teólogo da graça (88 das153 ocorrências neotestamentárias de charis,“graça”, ou 58 por cento, encontram-se em Pau-lo). É significativo que os cognatos mais comunsde alegria (chara, “alegria interior”, e chairein,“alegrar-se”) derivem da mesma raiz char- que apalavra grega para “graça”, charis. Há uma liga-ção muito estreita entre os dois conceitos. Os que,como Paulo, experimentam a graça de Deus sa-bem que, estando firmes na fé (2Cor 1,24), con-tinuam a celebrar a vida cristã como festa dealegria (1Cor 5,8), em perfeita liberdade de todasas ansiedades, preocupações e medos.

2. Estar em CristoPara Paulo, o cristão é alguém que está “emCristo*” ou, como disse J. Stewart: “O centro dareligião paulina é a união com Cristo” (Stewart,147). O cristianismo é um relacionamento pes-soal com o Senhor* ressuscitado.

A idéia básica da carta aos Filipenses é:“alegrai-vos no Senhor” (Fl 3,1; 4,4.10). O queJ. Moffatt chamou de “história da alegria” estádescrito em Filipenses 4,4-7, em que sua fonte su-bentendida é o Senhor Jesus Cristo ressuscitadoe soberano. É possível suportar a luta da vida comcircunstâncias externas e com a ansiedade inte-rior, pois “o Senhor está próximo!”. Nossa segu-

rança está no fato de sermos guardados pelapaz* de Deus, que mantém nossos corações enossos pensamentos “em Jesus Cristo”. Comoa primeira, a última palavra é um relacionamentopessoal, pois a história da alegria é “sim-plesmente a história da experiência sincera deum homem com seu Deus em Jesus” (Moffatt).

3. O fruto do EspíritoA vida cristã é uma vida de alegre liberdade*,pois, com a vinda de Cristo, a lei foi suplantadapela graça. Em contraste com seus adversáriosda Galácia, Paulo declarou corajosamente suaconfiança na cruz e em tudo que ela represen-tava (Gl 6,14). Os fiéis deviam ser capazes dese orgulhar não só da morte* de Cristo vistacomo extensão do amor* de Deus a todos osseres humanos, mas também da obra realizadapor eles em cumprimento da lei de Cristo (Gl6,2; ver Lei de Cristo), mostrando aos outroso amor divino. Entre os mais de nove frutosdo Espírito em Gálatas 5,22-23, a alegria estáem segundo lugar na lista, como uma das trêsvirtudes da vida interior. Está bem próxima damaior delas todas, o amor, e é seguida pelapaz (ver Fruto do Espírito).

4. Alegria no sofrimentoCircunstâncias exteriores são alegremente acei-tas como fatores do progresso moral e espiri-tual do cristão (Rm 5,3-4). Contudo, é em umacarta escrita na prisão que a ênfase paulina nodever da celebração em meio ao sofrimento*chega ao auge. Apesar de tudo que lheaconteceu e apesar de suas circunstânciasatuais, o apóstolo ainda assim alegra-se “noSenhor” e se gloria no trabalho realizado porseu Senhor. Quando a carta aos Filipenses*chega ao fim, Paulo resume: “No mais, meusirmãos, alegrai-vos no Senhor” (Fl 3,1), e pas-sa, depois de um parêntese ou interpolação, adar a razão de sua “alegria no Senhor” — “poisa nossa pátria está nos céus” (Fl 3,20). A ex-pectativa da vinda do Senhor Jesus Cristo e damudança de “nosso corpo humilhado, paratorná-lo semelhante ao seu corpo glorioso”(Fl 3,21), basta para manter os cristãos cheiosde esperança* e alegria. Bengel expressou ha-bilmente a mensagem de Filipenses: “eis o resu-

ALEGRIA

ALEGRIA

A.p65 28/03/2008, 15:2145

46Aa

mo da carta toda: eu me alegro, eu me alegro!”(Bengel, 766).

5. A escatologia da alegriaPaulo liga a alegria à esperança cristã inúme-ras vezes. Embora nenhuma criatura possa or-gulhar-se diante de Deus (1Cor 1,29), os cris-tãos alimentam a esperança de partilhar a glóriade Deus na vida futura (Rm 5,2, BMD). Essaesperança mantém o fiel alegre (Rm 12,12),pois inclui não só a expectativa da vinda dolibertador, o Senhor Jesus Cristo, para transfi-gurar nossos corpos físicos (Fl 3,20-21), mastambém nos assegura a alegria no mundo quehá de vir. Desde que soframos com Cristo aquie agora, podemos esperar participar de seutriunfo no futuro. Essa união com Cristo é ocentro da religião paulina.

Ver também FRUTO DO ESPÍRITO; GRAÇA;ESPERANÇA; AMOR; PAZ, FILIPENSES, CARTA AOS;SOFRIMENTO.

BIBLIOGRAFIA: D. J. A. Bengel. Gnomon NoviTestamenti. 3. ed. London, Macmillan, 1855;E. Beyreuther & G. Finkenrath. “Joy, Rejoi-ce”, NIDNTT 2, 352-361; H. Conzelmann.“xa¤rv ktl”. TDNT IX, 359-372; J. Moffatt.“The History of Joy”. ExpT 9, 1897-1898,334-336; W. G. Morrice. Joy in the New Testa-ment. Grand Rapids, Eerdmans, 1985; J. S.Stewart. A Man in Christ. London, Hodder &Stoughton, 1935.

W. G. MORRICE

ALFORRIA. Ver LIBERDADE/LIBERTAÇÃO.

ALIANÇA E NOVA ALIANÇANas cartas geralmente aceitas como paulinas,há oito ocorrências de Aliança (diath¶k¶): Ro-manos 9,4; 11,27; 1 Coríntios 11,25; 2 Corín-tios 3,6.14; Gálatas 3,15.17; 4,24 (cf. tambémEf 2,12). Entre essas ocorrências, merecemmenção especial Gálatas 4,24 (duas alianças),2 Coríntios 3,6 (o único uso em Paulo de novaAliança, kain¶ diath¶k¶, além da passagemeucarística em 1Cor 11,25) e 2 Coríntios 3,14,onde encontramos a única referência à antigaAliança, palaia diath¶k¶ [TEB, BMD, “AntigoTestamento”].

Essas referências indicam que aliança nãoera um tema preponderante na teologia pauli-na, mas não há concordância a respeito dessaquestão. É possível argumentar que nem sem-pre o que se costuma supor precisa ser decla-rado explicitamente. Isso com certeza se aplicaà teologia da Aliança no caso de alguém comoPaulo, que cresceu em uma tradição farisaica(ver Paulo, o judeu). Talvez também haja boasrazões para Paulo não usar a palavra com maisfreqüência, como a possibilidade de seus adver-sários usarem-na e a interpretarem de maneiradiferente.

Em vista disso e conscientes da importân-cia dos temas “antiga e nova Aliança” para ainterpretação do Novo Testamento, prossegui-remos com cautela, examinando os exemplosda palavra aliança em cada uma das cartas dePaulo, sempre que possível deixando o textofalar por si mesmo e evitando lê-los a partir deoutras passagens do NT.

1. Gálatas2. 1 e 2 Coríntios3. Romanos4. Conclusão

1. GálatasA teologia da Aliança é, em essência, um meiode descrever o relacionamento de Deus com seupovo. Tal relacionamento não existe no vazio,mas em um tempo e lugar. Assim, surge umaquestão a respeito do entendimento da revela-ção e da atividade divinas na história e, de modomais específico, em relação à história de Israel.Embora a narrativa de Abraão* faça realmenteparte da discussão, a carta paulina aos Gálatas*não dá muita importância à história de Israelcomo tal, pelo menos não da maneira comoRomanos o faz.

Em Gálatas 3,15-17, por meio de um exem-plo de ratificação de um testamento humano,Paulo procura defender a prioridade e inviolabi-lidade da aliança abraâmica. Visto que os testa-mentos humanos só podem ser aumentados oumodificados pelo testador, a Aliança de Deuscom Abraão, na qual os cristãos, a “descendên-cia” de Abraão, estão incorporados em Cristo,não é nem anulada nem aumentada pela Aliançamais tardia do Sinai, que lhe é subsidiária.

ALEGRIA

ALIANÇA E NOVA ALIANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:2146

47A a

Gálatas 4,21-32 é uma passagem à maneirade midrash na qual talvez Paulo adote os argu-mentos e as citações bíblicas dos adversários.Por isso, parte do conteúdo não tem caracte-rísticas paulinas, embora sem dúvida ele parti-lhasse elementos de crença com outros judeu-cristãos e judeus. Embora aqui Paulo fale deduas alianças (dyo diath¶kai), ele descreve ex-plicitamente seu uso dessas duas alianças como“alegoria”. Além disso, a impressão que rece-bemos não é a de uma Aliança sendo substituí-da por outra, mas sim de duas opções de alian-ças paralelas que, possivelmente de maneiraalegórica, se referem a duas missões simultâ-neas aos gentios*: 1) uma observante da lei,dirigida pelos adversários paulinos (ver Judai-zantes) e em oposição a 2) a de sua missão*aos gentios. Com toda a probabilidade, Paulopretende que a aliança de Sara represente nãoo cristianismo (contra a aliança de Hagar, i.e.,o judaísmo), mas, antes, a missão aos gentios,que não dependia da lei. A discussão toda podeser tomada como dois processos de gerar “fi-lhos de Deus” (ver Adoção, filiação). Na mis-são paulina e por meio dela, os gálatas rece-beram o Espírito porque escutaram “a mensa-gem da fé”; nenhuma missão contrária quedefenda a circuncisão* ou a observância da leipelos gentios poderia aperfeiçoar ou melhorara posição dos que estão em Cristo pela fé.Paulo os exorta a permanecer firmes na liber-dade* de Cristo (Gl 5,1). Uma missão de obser-vância da lei para os gentios é agora tratadacomo anacronismo.

Esse entendimento da passagem livra-nosde qualquer interpretação que afirme estar Paulose referindo a duas alianças sucessivas, a primei-ra com o judaísmo, seguida pela segunda, com ocristianismo. Os problemas da passagem são seuconteúdo de midrash e o uso paulino de alegoria.Contudo, o ponto importante que Paulo desejaressaltar é que, na geração de filhos, o tipo oua qualidade desses filhos depende da linhagemdos pais, o que está de acordo com o sentidogeral de Aliança que, necessariamente, tem nocentro algum tipo de continuidade, mesmo quenão seja uma continuidade terrena, mas apenasa continuidade teológica dos que foram geradospela Palavra de Deus.

2. 1 e 2 Coríntios1 Coríntios 11,25 traduz as palavras de Jesus naúltima ceia como “Este cálice é a nova Aliança(kain¶ diath¶k¶) no meu sangue”. Lucas tam-bém inclui o adjetivo “novo”, mas há uma fortetradição erudita que considera a forma marcanadas palavras da instituição a mais antiga (Jere-mias). O importante para nosso estudo é se oacréscimo da palavra “nova” significa algumacoisa de diferença substancial. Talvez seja antesum recurso a algo já implícito na morte* deCristo (ver Ceia do Senhor).

Em 2 Coríntios 3,6, em uma passagem dacarta que gerou numerosas interpretações diver-gentes, encontramos a única outra referência ànova Aliança em Paulo (“Aliança nova”). Em 2Coríntios 3,14, encontramos a única referênciaa “antiga Aliança” (“Antigo Testamento”; palaiadiath¶k¶). A única ocorrência em Paulo dosadjetivos antiga e nova em relação a Aliança nacorrespondência coríntia indica a provável exis-tência em Corinto de algum motivo para atribuirum significado especial a essas designações. Porexemplo, D. Georgi acha que os adversários*de Paulo introduziram a expressão nova Aliança.No passado, a teologia cristã inclinava-se a verem 2 Coríntios 3 um contraste entre a nova e aantiga dispensação. Entretanto, embora tal con-traste possa se justificar, não está, de modo al-gum, claro se ele era o centro imediato do pen-samento paulino quando a carta foi enviadaaos coríntios. Os comentaristas concordam quePaulo usa três vezes um argumento a fortiori(“quanto mais”) para contrastar a quantidade deglória* que se liga a dois ministérios diferentes.Êxodo 34 é claramente discutido aqui e tambémpode ser verdade que interpretações que con-siderem a passagem um midrash estejam portrás dos comentários paulinos. A introdução deMoisés* na discussão levou alguns intérpretesa ver aqui um contraste simples e explícito en-tre a dispensação antiga e a nova — daí a estra-nha tradução de diakonia pela RSV como “dis-pensação” em vez de “ministério”!

Entretanto, o contexto indica que Paulo en-tristeceu-se porque cartas de recomendação demissionários rivais impressionaram os coríntios.Paulo não deseja fazer um auto-elogio, nem pre-cisa, como alguns, dessas cartas de recomenda-

ALIANÇA E NOVA ALIANÇA

ALIANÇA E NOVA ALIANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:2147

48Aa

ção. A “carta” de Paulo são os próprios coríntiose o autor dessa carta é Cristo; a carta do apóstolofoi escrita com o Espírito do Deus vivo, não comtinta no papiro (ver Espírito Santo).

Paulo tem em mente Ezequiel 11,19 (36,26),não Jeremias 38,31 (LXX). S. J. Hafemann insisteque o tema do coração foi tirado da passagemde Ezequiel, que inclui o tema do Espírito, omitin-do inteiramente o texto de Jeremias. Ele tambémobserva que, quando tomamos como ponto departida as verdadeiras passagens que Paulo temem mente, não precisamos propor contrastesóbvios entre tinta e espírito ou pedra e coração,nem mesmo transformar esses contrastes em antí-tese completa entre a dispensação da lei* e a novadispensação do Evangelho*. Ezequiel não achavaque a esperança da obra futura de Deus no cora-ção alterasse a validade da lei. A verdadeira com-paração pretendida aqui é que Paulo entendia seuministério para os convertidos como equivalenteà dispensação da lei. Paulo se considera ministrodo Espírito no ministério* do Evangelho, exata-mente como Moisés foi o ministro da lei.

A relação entre a atividade de Deus emMoisés, ministro da lei, e sua nova atividadeem Paulo, ministro do Espírito, expressa-se me-lhor no tipo de argumento qal wahomer, “quan-to mais”. O movimento é de algo glorioso paraalgo mais glorioso ainda. De qualquer modo,quando Paulo diz em 2 Coríntios 3,13 que Moi-sés punha um véu sobre o rosto para evitar queos israelitas vissem to telas tou katargoumenou(“o fim de um resplendor passageiro”), não épossível que se refira à aliança como transi-tória, pois diath¶k¶ é substantivo feminino e o(resplendor) passageiro é indicado por um par-ticípio neutro.

A questão imediata em 2 Coríntios 3–4 sãodois conceitos do ministério cristão. Paulo nãose dirige aos israelitas no Sinai, mas sim aoscristãos coríntios e seus adversários. Foi a inte-ligência destes últimos que se obscureceu e ésobre o coração deles que há um véu. Portanto,concluímos que, apesar de um caso singularde antiga Aliança [“Antigo Testamento”] nestapassagem, não temos justificativa para inter-pretá-la como o contraste perfeito de duas ma-neiras antitéticas de salvação, típicas de umateologia cristã mais tardia.

3. RomanosA relação de aliança está subentendida quandoPaulo se dirige aos romanos* como agap¶toi

theou (“diletos de Deus”) e kl¶toi hagioi (“santospelo chamado [de Deus]”). Há só duas referênciasexplícitas à aliança na carta: Romanos 9,4 e 11,27.Em Romanos 9,4-5, Paulo relaciona as aliançascomo um dos privilégios pertencentes a Israel*,ao lado da adoção (ver Adoção), da glória*, dalei*, do culto*, das promessas e dos pais. Indepen-dente de seguirmos ou não a interpretação de“aliança” em P46 ou o plural “alianças”, conformedefendido pela maioria dos manuscritos, pareceque aqui Paulo tem em mira primordialmentea Aliança abraâmica. O enfoque está no chama-do e na eleição de Abraão que, em Romanos4, foi descrito como paradigma do crente.

Em Romanos 11,27, Paulo mistura duas ci-tações de Isaías 59,12 e Isaías 27,9 e cria umapromessa de redenção futura para Israel apesarde sua recusa atual do Evangelho: “E eis qualserá a minha aliança com eles, quando eu elimi-nar os seus pecados”. O argumento a respeito daoliveira* e o tema de Romanos 11 em geral sãoque, apesar da atual hostilidade quanto ao Evan-gelho, a eleição de Israel ainda permanece. “Te-ria Deus rejeitado seu povo? De modo nenhum”(Rm 11,1.7). A aliança está a salvo e não hádúvida quanto à eleição, “pois os dons e o cha-mamento de Deus são irrevogáveis” (Rm 11,29).

Embora não possamos insistir que a teologiade Paulo dizia respeito a alianças no sentido deusar explicitamente terminologia referente aalianças, talvez houvesse em Roma um equívocoquanto à aliança com Israel, surgido do sucessoda missão paulina com os gentios (ver Campbell).Diante disso, em Romanos, Paulo concentrou opensamento no tema da aliança. Enquanto, emGálatas, Cristo é “a descendência”, em Roma-nos o povo de fé é “a descendência” e há conti-nuidade “de fé para fé”, sendo a aliança amplia-da para incluir também os gentios.

4. ConclusãoR. D. Kaylor afirma que, na teologia paulina, opapel da aliança opera em dois níveis — no deidéia e no de convicção. Embora Paulo possanem sempre ter tido essa distinção em mente,mesmo assim Kaylor afirma que a aliança co-

ALIANÇA E NOVA ALIANÇA

ALIANÇA E NOVA ALIANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:2148

49A a

mo convicção atua como presença persistentee realidade dominante na vida, na obra e nopensamento paulinos.

Se Romanos tivesse sido escrita antes deGálatas, talvez afirmássemos que o pensamen-to em relação a alianças ou heilsgeschichtlich(histórico da salvação) é relíquia do passadojudaico de Paulo e deve ser abandonado. Mas oassunto é bastante complicado. Centraliza-seno problema do significado de “descendênciade Abraão”. No caso de Sara — em que pareciainevitável a descontinuidade (e o fracasso daaliança) —, Deus interveio milagrosamentepara proporcionar um herdeiro (cf. Is 54,1).Isso parece indicar que Deus mantém a conti-nuidade terrena (cf. Rm 4,19); mas, de fato,também pode ser considerado o contrário — aatividade divina da nova criação. Entretanto,devemos observar que, no caso de Sara, é criati-vidade divina em relação a um povo da promes-sa. Somente mais tarde na história essa criativi-dade se estendeu além de Israel, para os gentiose, mesmo então, por meio de Jesus Cristo —“da estirpe de David”.

O conceito de aliança indica continuidadedo propósito divino na história. Depende pri-mordialmente da fidelidade de Deus (e.g., Rm3,21-26). Mas como é possível dar uma expli-cação adequada de uma continuidade terrenaem fé–Abraão–Isaac–Jesus? Em Romanos9,21, Paulo afirma que não são os de descen-dência física apenas que são filhos de Abraão,são os de descendência física que também com-partilham a fé de seu pai Abraão. Somente emRomanos 9,22-24 Paulo menciona a inclusãodos gentios. Estes são incluídos não em si mes-mos e por si mesmos, mas integrados aos fiéisde Israel e juntamente com eles (cf. Ef 2,11-22).

Com razão, Käsemann insiste que a relaçãocorreta e a justiça* só são nossas na medidaem que Deus no-las dá de novo a cada dia (i.e.,na fé). Mas isso significa que a revelação deDeus só chega às pessoas de uma forma escru-pulosa como “um acontecimento inesperado”?Ou a revelação tende a ocorrer no contexto deuma família crente ou de uma comunidade defé mais ampla? O problema com esta últimaperspectiva é que a história é o registro não sim-plesmente da realização divina, mas também da

pecaminosidade humana. Foi o desespero deJeremias por causa de tal pecaminosidade últi-ma que o levou a propor uma “nova aliança”.

Os cristãos tendem a considerar a novaaliança de Jeremias a base clara para o conceitocristão plenamente desenvolvido de uma novadispensação, que é, então, adaptada aos escritospaulinos por meio de Hebreus. Entretanto, nãoestá de modo algum claro que “nova aliança”fosse expressão amplamente usada no cristianis-mo mais primitivo. É, com certeza, razoavel-mente correto afirmar que “antiga aliança” eraum conceito raro até a época da morte de Paulo.

Parece que, por várias razões, Paulo nãousou com freqüência uma terminologia explícitade aliança. Contudo, essa terminologia ocorrerealmente em pontos importantes de seus escri-tos. A freqüência de “chamamento”*, eleição*e termos relacionados em 1 Coríntios, por exem-plo, talvez indique que a aliança era importanteno pensamento paulino. Mas, não importa o queconcluirmos do que expusemos acima, está claroque quando usou as expressões antiga e novaaliança Paulo não incluiu muitas das idéias aelas associadas por um cristianismo mais desen-volvido e mais tardio. Como nos lembra W. D.Davies, Jeremias não ansiava por uma nova lei,mas pela “minha instrução”, e o adjetivo &ådåß

em Jeremias 31,31, que Paulo traduziu comokain¶, aplica-se à lua nova, que é simplesmentea lua velha sob uma nova luz.

Ver também ABRAÃO; CIRCUNCISÃO; CORÍN-TIOS, CARTAS AOS; GÁLATAS, CARTA AOS; GENTIOS;ISRAEL; JUDAIZANTES; LEI; CEIA DO SENHOR; MOI-SÉS; ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O; OLIVEIRA;RESTAURAÇÃO DE ISRAEL; ROMANOS, CARTA AOS;OBRAS DA LEI.

BIBLIOGRAFIA: J. B. Agus. “The Covenant Con-cept — Particularistic, Pluralistic, or Futuristic”.JES 18, 1981, 217-230; C. K. Barrett. “The Alle-gory of Abraham, Sarah and Hagar in the Argu-ment of Galatians”. In: Essays on Paul. Lon-don, SPCK, 1982, 154-169; W. S. Campbell.Paul’s Gospel in an Intercultural Context: Jewand Gentile in the Letter to the Romans. Frank-furt, Peter Lang, 1991; E. J. Christiansen. “Bap-tism: Covenant Ritual or Conversion Rite? AStudy of Ecclesiological Identity and Baptismal

ALIANÇA E NOVA ALIANÇA

ALIANÇA E NOVA ALIANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:2149

50Aa

Boundaries in Pauline Christianity and Pales-tinian Judaism”. Tese de doutorado, Universi-ty of Durham, novembro de 1992; J. Cott. “TheBiblical Problem of Election”. JES 21, 1984,199-228; W. D. Davies. “Paul and the Peopleof Israel”. NTS 24, 1978, 4-39; J. D. G. Dunn.“The Theology of Galatians”. In: Pauline Theo-logy. J. M. Bassler (org.). Minneapolis, For-tress, 1991, vol. 1, 160-179; L. Gaston. Pauland the Torah. Vancouver, University of BritishColumbia, 1987; D. Georgi. The Opponents of Paul in Second Corinthians. Philadelphia,Fortress, 1986; E. Grässer. Der Alte Bund imNeuen. Tübingen, J. C. B. Mohr, 1985; S. J.Hafemann. Suffering and the Spirit. WUNT2.19, Tübingen, J. C. B. Mohr, 1986); G. W.Hansen. Abraham in Galatians: Epistolary andRhetorical Contexts. JSNTSup 29, Sheffield,JSOT, 1989); R. B. Hays. Echoes of Scripturein the Letters of Paul. New Haven, Yale Univer-sity, 1989; M. D. Hooker. “Paul and CovenantalNomism”. In: Paul and Paulinism: Essays inHonour of C. K. Barrett. M. D. Hooker & S. G.Wilson (orgs.). London, SPCK, 47-56; J. J.Hughes. “Hebrews 9:15ff and Galatians 3,15ff:A Study in Covenant Practice and Procedure”.NovT, 1979, 27-96; J. Jeremias. The EucharisticWords of Jesus. Philadelphia, Fortress, 1977; R.D. Kaylor. Paul’s Covenant Community: Jew andGentile in Romans. Atlanta, John Knox, 1988;H. J. Kraus (org.). Der Ungekuendigte Bund.Stuttgart, Kreuz, 1962; S. Lehne. The New Co-venant in Hebrews. JSNTSup 44, Sheffield,JSOT, 1990); U. Luz. “Der alte und der neueBund bei Paulus im Hebräerbrief ”. EvTh 27,1967, 318-336; R. P. Martin. 2 Corinthians.WBC 40, Dallas, Word, 1986; J. L. Martyn. “ALaw Observant Mission to Gentiles: The Back-ground of Galatians”. SJT 38, 1985, 307-324;Idem. “Events in Galatia: Modified CovenantalNomism Versus God’s Invasion of the Cosmosin the Singular Gospel”. In: Pauline Theology.J. M. Bassler (org.). Minneapolis, Fortress,1991, vol. 1, 160-179; Idem. “The Covenantsof Hagar and Sarah”. In: Faith and History:Essays in Honor of P. W. Meyer. J. T. Carroll etal (orgs.). Atlanta, Scholars, 1991, 160-192; E.P. Sanders. Paul. Oxford, University Press, 1991;N. T. Wright. The Climax of the Covenant:

Christ and the Law in Pauline Theology. Edin-burgh, T. & T. Clark, 1991.

W. S. CAMPBELL

ALIMENTO DOS ÍDOLOS. Ver ALIMENTO

OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉTICAS JUDAICAS.

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOSE LEIS DIETÉTICAS JUDAICASAlém da circuncisão*, as leis e observâncias arespeito de alimentos eram importantes sinaisrituais de identidade judaica. Os indícios literá-rios (judaicos e não-judaicos) afirmam que aidentidade judaica era, em proporção nada pe-quena, determinada pela maneira como a comi-da era preparada, pelos tipos de alimentos quepodiam ou não ser consumidos e por com quema pessoa podia ou não comer. Os cristãos primi-tivos faziam juntos as refeições, e a identidadeprimitiva com o judaísmo e o fato de se origi-narem dele fizeram surgir dúvidas quanto àconveniência e à necessidade dessas leis dieté-ticas para os seguidores de Cristo. Surgiu umproblema relacionado à conveniência de os cris-tãos comerem carne que havia sido sacrificadaa deuses pagãos.

1. O ambiente das assembléias cristãsprimitivas

2. Leis dietéticas judaicas3. O incidente em Antioquia e a Assembléia

de Jerusalém4. Carne, ídolos e assembléia cristã

1. O ambiente das assembléias cristãsprimitivas

Os fiéis primitivos reuniam-se em casas (cf. 1Cor16,19; Rm 16,5; Fm 2; Cl 4,15), não estritamentepor necessidade (i.e., por não haver outro lugarpara se reunir), mas deliberadamente, porque oambiente da casa proporcionava os recursos queacomodavam as práticas das comunidades pri-mitivas (ver Igreja). O único aspecto da assem-bléia que exigia o ambiente de uma casa era arefeição comum, que incluía a Ceia do Senhor*.Baseada na tradição da Última Ceia (Mc 14,17;cf. 1Cor 11,17-34), que se realizou em uma “pe-ça do andar superior”, a refeição cristã primitivaera aspecto importante da vida da comunidade.Além de estar à disposição imediata da comuni-

ALIANÇA E NOVA ALIANÇA

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉTICAS JUDAICAS

A.p65 28/03/2008, 15:2150

51A a

dade, a casa fornecia as instalações para o prepa-ro das refeições comuns. Não foi nenhuma coin-cidência que quando as refeições deixaram dese realizar nas assembléias o ambiente tenha dei-xado de ser necessário. Quando a preparaçãoda comida e as instalações para comer deixaramde ser necessárias, um amplo salão (e mais tardea basílica) foi considerado mais apropriado parao número crescente de cristãos.

A natureza das assembléias cristãs primiti-vas — em especial para refeições — adquiriumais importância quando foram incluídos osgentios convertidos. Para um judeu devoto, eraperigoso se associar a um gentio ou “pecador”,como se observa facilmente nos Evangelhos,quando os fariseus criticam Jesus por sentar-seà mesa com “pecadores”. Embora judeus cum-pridores da lei admitissem a possibilidade deum judeu sentar-se à mesa com um não-judeu(i.e., com prosélitos, estrangeiros residentes etementes a Deus), as regras e os regulamentoseram tão rigorosos que não promoviam amplasassociações (ver Dunn, 137-148).

2. Leis dietéticas judaicasDois fatores determinavam os limites de aceita-bilidade da confraternização à mesa entre umjudeu e um gentio: 1) as leis deuteronômicasem Levítico 11 e Deuteronômio 14,3-21 e 2) osdiversos halakoth (halåkôt, “caminhos”) da tra-dição oral. Na maior parte, essas leis e tradiçõesdiziam respeito principalmente à produção e aoconsumo de alimentos e ao ambiente apropriadoem que se realizava o consumo. J. Neusner enfa-tizou que durante o período neotestamentário

um sinal primordial de dedicação farisaicaera a observância das leis rituais fora dotemplo, onde todos as observavam. Comero alimento secular, isto é, não consagradoem estado de pureza ritual, como se se fossesacerdote do templo no culto, era uma dasduas conseqüências de ser membro do par-tido. Além disso, no fim, as leis agrícolas,exatamente como as leis de pureza, afeta-vam a confraternização à mesa, a saber, oque se podia comer (Neusner, 1984, 57).

Depois de um exame detalhado das tradi-ções rabínicas a respeito dos fariseus, envolven-

do 341 resoluções de casos, Neusner concluique “nada menos que 229 tratam direta ou indi-retamente da confraternização à mesa, aproxi-madamente 67% do total” (Neusner, 1973, 86).A esse respeito, os fariseus podem ser considera-dos um “Clube de Comensais” (Neusner, 1982).

No contexto de assembléias em casas cris-tãs, as refeições podem ser consideradas mani-festação franca de reconciliação entre os judeuse os gentios em Cristo*. W. A. Meeks observaque, ao abandonar as regras judaicas oficiaisque governavam o ato de comer, “os cristãospaulinos desistiam de um dos meios mais efica-zes que a comunidade judaica tinha para man-ter sua identidade independente na sociedadepagã” (Meeks, 97). A Igreja doméstica era olocal para a separação cultural necessária para afundação da Igreja em um meio judeu-gentio.Embora fosse recomendado aos gentios querespeitassem as suscetibilidades judaicas, as re-feições servidas nessas Igrejas domésticas con-firmavam a mensagem central do Evangelho*na comunidade cristã, a mensagem de reconci-liação (ver Paz, reconciliação).

3. O incidente em Antioquia e a Assembléiade Jerusalém

Em Gálatas 2,11-14, Paulo descreve um conflitona vida da Igreja em Antioquia*, que correspon-de à ênfase lucana na confraternização judeu-pagã em Atos. É provável que os acontecimentosde Gálatas 2 devam ser colocados cronologica-mente antes da Assembléia de Jerusalém de Atos15 e depois da missão de Paulo e Barnabé des-crita em Atos 13 e 14 (ver Cronologia; Gálatas;cf. Jerusalém). Nesta interpretação dos indicíos,a conferência descrita em Gálatas 2,1-10 prece-deu a descrita em Atos 15 e os acontecimentosde Gálatas 2,11-14 exigiram a Assembléia deAtos 15. O propósito do decreto apostólico(At 15) deve, então, ser considerado diretamenterelacionado com o problema social que surgiudurante a visita de Pedro a Antioquia. Os cristãosde Antioquia reuniam-se regularmente para asrefeições, inclusive para a Ceia do Senhor. Em-bora a Igreja de Antioquia se apresente comosimpatizante da missão pagã (At 13,1-3), os ju-deu-cristãos também participavam das reuniõese refeições. Mesmo Pedro se reunia e comia regu-

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉTICAS JUDAICAS

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉTICAS JUDAICAS

A.p65 28/03/2008, 15:2151

52Aa

larmente com os cristãos antioquinos até o inci-dente dramático descrito em Gálatas 2. Pauloatesta que o grande conflito na Igreja de Antioquiafoi causado por certos emissários de Tiago* e,em conclusão, da Igreja de Jerusalém (Gl 2,12).

Os homens são identificados como “circun-cisos” (Gl 2,12). Com toda a probabilidade, essesindivíduos devem ser associados aos mencio-nados em Atos 15,1 que vieram da Judéia e eramoriundos do farisaísmo (At 15,5). Entretanto,como em Atos 15, devemos ter o cuidado de nãoassociar demais a posição deles com a de Tiago.Afinal de contas, Tiago com certeza desaprovousua conduta (At 15,24). É provável que eles tives-sem excedido os termos de sua missão. Paulodeclara que, antes de chegarem os emissários deTiago, Pedro tinha o hábito de comer regular-mente com cristãos gentios; contudo, a presençadesses judeu-cristãos do partido da circuncisãofez com que Pedro* começasse a se afastar com-pletamente de sua prática regular.

Paulo retrata a Igreja de Antioquia comoum grupo unificado até a chegada dos emissá-rios de Jerusalém. O confronto expôs o proble-ma: a confraternização entre judeus e gentios àmesa. A magnitude do confronto é óbvia: osoutros judeu-cristãos e também Pedro e Barnabéforam influenciados pelos judaizantes. Alémdisso, tal retirada era evidentemente o ímpetopor trás da deserção dos gálatas do evangelhopaulino (Gl 1,6-7). A pressão nos judeu-cristãospara permanecer fiéis à lei* e à sua herança fezcom que eles forçassem os gentios a obedeceràs leis judaicas. R. Jewett sugere que, no fim dadécada de 40 e início da de 50, os judeu-cristãosda Judéia foram pressionados pelos zelotes afazer uma campanha nomística entre os com-panheiros cristãos (ver Movimentos revolucio-nários). A meta desses judaizantes era afastar asuspeita de que estavam mancomunados comgentios sem lei (Jewett, 205). Para Paulo, elesaceitavam tal pressão a fim de “se fazer notarna esfera da carne” e “não ser perseguidos porcausa da cruz* do Cristo” (Gl 6,12). Independen-temente dos motivos que tinham, Paulo conside-ra o comportamento deles censurável e intolerá-vel. A verdade do evangelho estava em jogo:em Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisãosão eficazes (Gl 5,6; cf. Gl 6,15), e não há nenhu-

ma distinção baseada em herança étnica, posi-ção social ou diferença sexual. Em Cristo todossão a descendência de Abraão (Gl 3,26-29).

3.1. O episódio de Cornélio. Em Atos 10,1–11,18, a história da conversão de Cornélio é nar-rada duas vezes. Esse fato e a extensão da histó-ria indicam sua importância para a narrativa lu-cana. Lucas apresenta dois incidentes: o derra-mamento do Espírito sobre os gentios e a confra-ternização à mesa na casa de Cornélio. A boavontade por parte de Pedro de comer com umgentio confirma a validade da vinda do Espírito.

A boa vontade de Pedro para entrar na casade Cornélio, comer à sua mesa e morar com elealarmou os judeu-cristãos de Jerusalém (At 11,1-3). Afinal de contas, as conclusões tiradas do epi-sódio de Cornélio — que os gentios podiam seradmitidos na comunidade cristã sem ser submeti-dos à circuncisão (At 10,45; 11,18) e que a con-fraternização à mesa entre judeus e gentios erapermitida — eram vanguardistas. Na narrativa lu-cana, o obstáculo para um judeu associar-se aos“impuros” foi superado para Pedro pela visão queele teve em Jope. O episódio de Cornélio se encer-ra com o convite de Cornélio, depois de batizadocom sua família, para que Pedro se hospedas-se com eles por alguns dias (At 10,48). É óbvioque, ao descrever a boa vontade de Pedro paraaceitar o convite de hospitalidade (cf. At 16,15),Lucas pretende demonstrar aos leitores a auten-ticidade da recepção do Espírito pelos gentios.

A disposição de Pedro a se associar em pú-blico a um gentio (embora temente a Deus) nãofoi bem acolhida pela Igreja de Jerusalém e, emespecial, pelos da circuncisão. Eles ainda afirma-vam que tal comportamento era “um crime”(athemitos), exatamente como Pedro o conside-rava antes da visão. Assim, é importante entendera força das palavras de Pedro em Atos 10,28, queprecisam ser interpretadas à luz da crítica formu-lada pela Igreja de Jerusalém e do debate contínuona Igreja primitiva a respeito da confraternizaçãoà mesa. Além disso, precisamos perguntar em quebases (se existia alguma) os judeu-cristãos eramproibidos de se associar aos cristãos gentios. Quedireitos a lei (a desobediência à qual Pedro chamade “um crime”) tinha sobre as vidas dos cristãos(judeus e gentios) à luz da mensagem evangélica(neste caso revelada na visão)?

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉCIAS JUDAICAS

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉCIAS JUDAICAS

A.p65 28/03/2008, 15:2152

53A a

Oepke comenta que com athemitos, “umcrime”, temos uma referência ao “ponto devista farisaico superado pelo cristianismo”(Oepke, 166). Na verdade, este era o caso naIgreja de Jerusalém: a confraternização judeu-pagã à mesa era tão proibida quanto se deliciarcom alimentos não-kosher. Devemos concluirque, antes da visão em Jope, Pedro estava con-vencido de que comer com um gentio (= ali-mentos proibidos) era contra a tradição e queele não se confraternizara à mesa com um gen-tio (visto que nunca comera carne proibida, At10,14). Associar-se a um não-judeu ou visitá-lo era considerado um crime (At 10,28). Comum crime, Lucas se referia, provavelmente, àaversão judaica comum em relação a se asso-ciar a gentios e não ao fato de isso ser contrárioàs leis da Torá. Dois pontos levam a essa con-clusão: 1) em parte alguma Lucas critica judeusou judeu-cristãos que obedecem à lei e, emboraLevítico 11 faça distinções claras entre alimen-tos puros e impuros, não faz distinção entrepessoas puras e impuras (embora naturalmenteisso se deduza de passagens como Lv 20,22-26); 2) a trivialidade dessa associação entregentios e alimentos proibidos é vista em nossanarrativa: “O significado da visão de Pedro,que ostensivamente trata da extinção da dife-rença entre alimentos puros e impuros... é inter-pretado como a extinção da diferença seme-lhante, mas não idêntica, entre pessoas puras eimpuras” (Wilson, 68).

Entretanto, para os judeu-cristãos de Jeru-salém, a questão não estava tão clara. Para eles,as conclusões eram óbvias e potencialmenteprejudiciais para as tradições judaicas. O fatode Deus ter derramado o Espírito sobre os gen-tios era por si só espantoso. Mas a legitimidadeda Torá era posta em dúvida se com esse acon-tecimento os fiéis judeus tinham de aceitar (eaté confraternizar-se à mesa com) cristãos gen-tios — sem que esses gentios fossem circunci-dados ou observassem a Torá.

Esse era só o início dos problemas na defini-ção das relações sociais apropriadas entre ju-deu-cristãos e gentios. Os conflitos refletidosem Gálatas 2 e Atos 15 eram intensos e as opi-niões variavam. Com muita freqüência, as opi-niões e tendências diversas resultavam em com-

portamento inconsistente até mesmo entre oslíderes. É óbvio que o fracasso em reconciliardiferenças teria anulado a possibilidade deconfraternização e o cristianismo seria tão seg-mentado quanto o judaísmo do século I.

3.2. A Assembléia de Jerusalém. Em Atos15, a questão do dever gentio de seguir a lei émais uma vez formulada, como se nunca tivessesido discutida em Atos 11. Novamente é Pedroquem defende a inclusão dos gentios, citandosua escolha para pregar aos gentios como defesadessa posição. Tiago recomenda que certas obri-gações levíticas (ou talvez obrigações originá-rias de Noé [Gn 9] e, nesse caso, as obrigaçõesdevem ser impostas como um código pré-mo-saico que obriga a todos) sejam exigidas doscristãos gentios: que eles se abstenham de certascoisas que são repulsivas para os judeu-cristãos:do que foi oferecido em sacrifício a ídolos, doque foi asfixiado, do sangue e de praticar a imo-ralidade (At 15,29). A solução era uma acomo-dação de suscetibilidades judaicas, sem pôr emperigo a natureza do evangelho (cf. 1Cor 9,19-23; embora seja contestável se, no final das con-tas, Paulo não viu nenhum conflito com seuevangelho, pois ele nunca recorre ao decreto em1Coríntios; ver Catchpole; cf. Tomson, 269-274).

4. Carne, ídolos e assembléia cristãHá indicações de que os líderes da Igreja primi-tiva proibiam de maneira uniforme o consumode carne sacrificada a ídolos* (At 15,20.29;21,25; Ap 2,20; Did. 6,3). A razão disso erasimples: parece que o templo idólatra servia deaçougue, além de lugar para compartilhar umarefeição cultual. Na maior parte, a carne era con-sumida no templo ou vendida no mercado de-pois de um festival pagão e era óbvia a associa-ção aos deuses pagãos, o que era consideradoidolatria para os cristãos (Theissen, 121-143).

As salas de jantar abaixo do Abaton no As-clepion em Corinto sugerem que a carne era in-cluída nos banquetes do templo pagão de Co-rinto (Murphy-O’Connor, 161-170). Reclinar-seno templo de um ídolo é considerado problemaem Corinto (1Cor 8,1-10).

A carne consagrada também era incluída emjantares suntuosos nas casas dos abastados.De vez em quando, esse era o caso em Corinto

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉCIAS JUDAICAS

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉCIAS JUDAICAS

A.p65 28/03/2008, 15:2153

54Aa

(1Cor 10,27). Plutarco (c. 46-120), que viviaperto de Corinto, relata um episódio que refleteum jantar particular. O local é a casa de Aristo:

O cozinheiro de Aristo impressionou os con-vidados do jantar, não só graças a sua habi-lidade em geral, mas porque, embora aca-basse de ser abatido como sacrifício a Héra-cles, o frango que colocou na frente dos co-mensais estava tão tenro que parecia ter umdia de vida (Plutarco, Conv. 6,10,1)

Os gentios recém-convertidos ao cristianis-mo achavam difícil considerar a questão da car-ne oferecida aos ídolos independente de seu am-biente ritual; comiam com culpa na consciência*(1Cor 8,7). O convite para jantar em casa de umincrédulo apresentava um dilema (1Cor 10,27-30); o convite para jantar em um templo apenasagravava o problema (1Cor 8,10).

Entretanto, é evidente que nem todos os co-ríntios compartilhavam essa frustração. Ao escre-ver para os coríntios, Paulo comenta duas reações.Primeiro, para alguns, a carne que foi sacrificadaaos ídolos devia ser evitada e considerada con-tradição fundamental do monoteísmo genuíno.Dessa perspectiva, comer carne consagrada eratabu e tais associações indulgentes eram arrisca-das. Segundo, outros coríntios alegavam um “co-nhecimento* (gn∞sis) que negava a existênciae/ou relevância de ídolos. Dessa perspectiva, oconsumo de carne consagrada não representavaameaça ao monoteísmo do cristianismo (ou dojudaísmo), pois a existência de outras divindadesera negada: havia apenas um único Deus*.

Em resposta, Paulo confirma o monoteísmo,citando o Shema (1Cor 8,4: “não há outro Deusfora o Deus único”; ver Elementos litúrgicos)e, em seguida, põe Jesus no meio desse textoconhecido (1Cor 8,6: “para nós, só há um Deus,o Pai, de quem tudo procede, e para o qual nósvamos, e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qualtudo existe e pelo qual nós existimos”). Em umadiscussão de carne sacrificada aos ídolos emCorinto, parece que Paulo redefiniu o Shemacristologicamente e produziu o que N. T. Wrightchamou de “monoteísmo cristológico” (ver Deus;Cristologia). Essa reformulação tem o propósitode solucionar o problema em pauta: com efeito,a teologia da encarnação (pelas lentes do Shema)

significa amor* e preocupação pelos membrosda comunidade de Deus. Eis a proposta deWright: os coríntios são advertidos para pôr emprática uma visão cristianizada do Shema: “háum só Deus, um só Senhor e seu povo é definidocomo os que o amam e amam o próximo comoa si mesmos. A indulgência pelos fracos não éapenas uma concessão ad hoc. Origina-se docentro da própria teologia cristã” (Wright, “OneGod”, 49). E, para o cristão, a cruz de Cristoresponde aos que insistem em seus direitos: co-mer a carne consagrada destrói o fiel pelo qualCristo morreu (1Cor 8,11).

Para que os leitores não deixem de com-preender, a auto-revelação paulina pretende ser-vir de exemplo característico: enquanto esteveem Corinto, ele tinha o direito apostólico dereceber apoio financeiro (1Cor 9,1-23; ver Apoiofinanceiro). Por causa do perigo de ser confun-dido com um sofista (ver Apolo), Paulo negoua si mesmo a remuneração por amor à comuni-dade de fé.

Ver também CIRCUNCISÃO; ÉTICA; IDOLATRIA;TIAGO E PAULO; LEI; PEDRO; PUREZA E IMPUREZA;ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS A PAULO; OBRAS

DA LEI.

BIBLIOGRAFIA: D. R. Catchpole. “Paul, James andthe Apostolic Decree”. NTS 23, 1976-1977, 428-444; J. D. G. Dunn. “The Incident at Antioch(Gal. 2.11-18)”. In: Jesus, Paul and the Law.Louisville, Westminster/John Knox, 1990, 129-182; P. F. Esler. Community and Gospel in Luke-Acts: The Social and Political Motivations ofLukan Theology. SNTSMS 57, Cambridge, Uni-versity Press, 1987; R. Jewett. “The Agitatorsand the Galatian Congregation”. NTS 17, 1970-1971, 198-212; W. A. Meeks. The First UrbanChristians: The Social World of the Apostle Paul.New Haven, Yale University, 1983; J. Murphy-O’Connor. St. Paul’s Corinth: Texts and Archaeo-logy. GNS 6, Wilmington, DE, Michael Glazier,1983; J. Neusner. From Politics to Piety: The Emer-gence of Pharisaic Judaism. Englewood Cliffs,NJ, Prentice Hall, 1973; Idem. “Two Picturesof the Pharisees: Philosophical Circle or EatingClub”. ATR 64, 1982, 525-557; Idem. Judaismin the Beginning of Christianity. Philadelphia,Fortress, 1984; O. Oepke. “éy°mitow”. TDNT I,

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉCIAS JUDAICAS

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉCIAS JUDAICAS

A.p65 28/03/2008, 15:2154

55A a

166; G. Theissen. The Social Setting of Pauli-ne Christianity: Essays on Corinth. Philadel-phia, Fortress, 1982; P. J. Tomson. Paul and theJewish Law: Halakha in the Letters of the Apos-tle to the Gentiles. CRINT 3,1, Minneapolis,Fortress, 1990; W. L. Willis. Idol Meat at Co-rinth: The Pauline Argument dt 1Corinthians8 and 10, SBLDS 68, Chico, Scholars, 1985;S. G. Wilson. Luke and the Law. SNTSMS 50,Cambridge University Press, 1983; N. T. Wright.“Monotheism, Christology and Ethics: 1 Corin-thians 8”. In: The Climax of the Covenant. Mi-nneapolis, Fortress, 1991, 120-136; Idem. “OneGod, One Lord, One People: Incarnational Chris-tology for a Church in a Pagan Environment”.Ex Auditu 7, 1991, 45-58.

B. B. BLUE

ALMA. Ver PSICOLOGIA.

ALUSÕES AO ANTIGO TESTAMENTO.Ver ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O.

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJASMISSIONÁRIASAs Igrejas fundadas por Paulo não eram entida-des teológicas abstratas formadas em um vaziosocial, mas comunidades da vida real de ho-mens e mulheres que habitavam ambientes so-ciais específicos. Ambiente social é um termogenérico que inclui: assuntos do contexto socialdas Igrejas; a classe social dos convertidos; adinâmica envolvida na formação e no desenvol-vimento das comunidades cristãs; aspectos so-ciais do ministério paulino; e fatores sociaisda formação da doutrina cristã primitiva, emgeral conhecidos como sociologia do conheci-mento. A disciplina contemporânea de sociolo-gia é útil para levantar questões e detectar pro-blemas, além de proporcionar modelos paraanálise e explicação. Mas é preciso usar a socio-logia com cautela, pois o material em questãoorigina-se do século I d.C. e não é necessariamen-te acessível à pesquisa atual.

Os estudos neotestamentários mostram cres-cente percepção das questões do ambiente so-cial das Igrejas paulinas. A abordagem já dáfrutos não só por lançar uma luz de modo geral,mas por iluminar alguns assuntos específicosde exegese.

1. O ambiente urbano2. O contexto social da missão paulina3. A formação e o desenvolvimento das

comunidades4. Instituições sociais5. Composição social6. Fatores sociais na formação da crença

1. O ambiente urbanoA missão empreendida por Paulo levou a umanotável mudança social na Igreja cristã primiti-va. Ela deixou de ser um movimento predomi-nantemente palestino e rural e passou a ser ummovimento gentio e urbano. Os horizontes pau-linos eram dominados pelo ethos da cidade,não pelo do campo.

R. F. Hock (27) calcula que Paulo percorreumais de 16 mil quilômetros em suas viagensmissionárias; a Pax Romana fez que viajar fossemais fácil e mais seguro (ver Viagem). As cida-des que ele visitou ficavam nas rotas comerciaisdo Oriente para o Ocidente. Antioquia* na Síriafoi a primeira base para suas operações (At 13,1-3; 14,26-27; Gl 2,11). Com uma população deum quarto de milhão, era uma cidade de certaprosperidade. Pompeu lhe concedera a liberdade,situação mais tarde confirmada por César e, as-sim, ela se tornara um próspero centro comer-cial. A localização na estrada principal que leva-va de Roma para a fronteira persa e mais alémpara o Oriente intensificava a atividade comer-cial. Antioquia servia de capital da província im-perial e, além disso, era centro intelectual, comuma população judaica grande e antiga. Ali asculturas oriental e ocidental se encontravam eseu ambiente exerceu um impacto significativono desenvolvimento da missão paulina.

As outras cidades que Paulo visitou eramquase todas centros de comércio e relativamen-te prósperas. Juntamente com Hierápolis e Co-lossas, Laodicéia era o centro do comércio delã (ver Colossenses). Filipos era diferente dasoutras cidades de Paulo por ter um caráter maislatino e ser primordialmente um centro de agri-cultura e não de comércio (ver Filipenses).Centro governamental, Éfeso era bem conhe-cida por seu porto e também famosa por seutemplo de Ártemis. Como Éfeso, Corinto (verCoríntios) e Tessalônica (ver Tessalonicenses)

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

ALIMENTO OFERECIDO AOS ÍDOLOS E LEIS DIETÉCIAS JUDAICAS

A.p65 28/03/2008, 15:2155

56Aa

eram importantes cidades comerciais. A identifi-cação da “Galácia” é incerta (ver Gálatas), masse por esse nome Paulo quer indicar Antioquiada Pisídia, Icônio e Listra, estas também, comoFilipos e Corinto, eram colônias romanas.

As cidades compartilhavam uma línguacomum, o grego, e uma orientação comum comrespeito a Roma. Estavam todas conveniente-mente localizadas para viagens por terra ou mar.Seu tamanho variava, com Antioquia entre asmaiores e Filipos entre as menores. Com muitoespaço destinado a instalações públicas, suasáreas residenciais eram apinhadas. A privacidadeera rara. Elas tinham alguns bairros étnicos pron-tamente identificáveis, sendo os judaicos os maissignificativos para a missão paulina. Na diáspo-ra*, viviam de 5 a 6 milhões de judeus. Elesconservavam zelosamente seus direitos religio-sos, mas sob outros aspectos eram politicamen-te tranqüilos. Encontravam-se na maioria dasocupações e distribuíam-se extensamente pelosistema de condições sociais.

A cena religiosa já estava bastante povoadaquando o cristianismo entrou no mundo antigo(ver Religiões). Numerosos cultos eram dedi-cados ao culto dos deuses olímpicos, ao impera-dor* reinante, às religiões de mistério e a divin-dades orientais. Os cultos eram importantes paraa economia das cidades e os templos eram nelasedifícios proeminentes. As festas lhes proporcio-navam feriados públicos e moldavam o calen-dário anual. O culto imperial era o veículo parareforçar a fidelidade e a coesão políticas. Maseram as devoções mais populares que atuavampara dar satisfação emocional às massas. O sin-cretismo era comum.

As cidades tinham um potencial muitomaior para a missão paulina que as aldeias. Issoacontecia não só por causa de seu óbvio valorem relação à comunicação em resultado da lin-guagem comum e da localização favorável nasrotas comerciais, para difundir a boa nova, maspor razões mais profundas ligadas a seu caráter.As aldeias eram de caráter conservador e de-monstravam pouca franqueza. Eram economiasde subsistência sem nenhuma oportunidade paramobilidade social ascendente. As cidades erammuito mais abertas. Possuíam poder e potencialpara mudança. Nelas viviam pessoas com men-

tes mais independentes, abertas à nova mensa-gem do Evangelho* de Jesus Cristo.

2. O contexto social da missão paulinaHá várias estimativas quanto à condição socialde Paulo. A primeira estimativa de A. Deissmannressaltou a ocupação de Paulo e, por isso, colo-cou-o, não sem dificuldade, na extremidadeinferior da escala social. No entanto, estimati-vas mais recentes são mais generosas (ver Paulonos Atos e nas Cartas). Paulo era um fruto deTarso e aparentemente ali recebeu uma boaeducação. Tinha acesso fácil a altas autoridadesde Jerusalém e, embora sua escrita não fosse damais alta qualidade clássica, também não eragrosseira nem vulgar, como seria de esperar dealguém originário das classes inferiores. Fossequal fosse sua classe, em grande parte umaquestão econômica, sua posição era clara. Comocidadão romano (ver Cidadania) ele gozava demuitos privilégios e deles fazia uso quando aocasião exigia (At 16,37; 22,22-29). A razãopara essa cidadania é assunto de especulação,mas já sugeriu-se que foi concedida a seu pai(ver At 22,28) por serviços prestados ao exér-cito romano.

Ao chegar a uma cidade, a estratégia mis-sionária de Paulo era entrar em contato com aspessoas usando as redes sociais existentes comas quais ele se relacionasse. Assim, originalmen-te, ele se dirigia à sinagoga (At 13,5.14; 14,1;17,2; 18,4; 19,8) ou, na ausência dela, ao lugarde oração* (At 16,13) para encontrar outrosjudeus. Elos semelhantes com outros expatriadose pessoas que trabalhavam na mesma profissão(inclusive Priscila e Áquila) também eram uti-lizados, principalmente quando as sinagogas sevoltavam contra sua mensagem. Em todos oslocais, Paulo procurava estabelecer a base deseus esforços missionários em uma casa quefosse um meio contínuo de apoio para ele e suarecém-formada comunidade cristã (At 16,15;17,7; 18,1-3.7-8; 1Cor 16,15).

A atenção foi recentemente focalizada naimportância da casa e da oficina para as ativi-dades missionárias paulinas. As casas* não eramas residências particulares de hoje, mas eram,com toda a probabilidade, edifícios grandes quetinham lojas na frente e acomodações de mora-

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2156

57A a

dia nos fundos. Havia também espaço para ofi-cinas e alojamento para dependentes e visitan-tes. Essa organização era ideal para os propósi-tos de Paulo, pois lhe permitia financiar suamissão com o trabalho de fabricante de tendas(At 18,3; 20,34.35; 1Ts 2,9; ver Fabricação detendas) e lhe proporcionava uma plataforma jápronta da qual pregar e ensinar diariamente entreos muitos que estavam em volta da oficina. Aimportância da oficina foi posta em foco pelapesquisa dos métodos de outros filósofos itine-rantes, como os cínicos do tempo de Paulo. Emvez de considerar o trabalho braçal degradante,os cínicos o adotaram como modo de vida ideale o meio pelo qual um mestre modelava suafilosofia para os discípulos.

R. F. Hock, A. J. Malherbe e W. A. Meekspõem o apóstolo Paulo no contexto mais amplode outros filósofos itinerantes. O trabalho delesserve a dois propósitos. Por um lado, providen-cia a solução para alguns problemas exegéticos.Esclarece, por exemplo, a atitude paulina quantoa receber dinheiro dos coríntios (1Cor 8–9; 2Cor11,7-11; ver Apoio financeiro); o uso que Paulofaz da vanglória e da loucura (ver Loucura) em2 Coríntios 11,16–12,11; seu emprego de umafrase como “cheios de ternura, como uma mãeacalenta ao peito as crianças que alimenta” em1 Tessalonicenses 2,7 e sua abordagem à ética*.Por outro lado, realça a clareza de Paulo, em es-pecial na mensagem que pregou. Assim, emborasuperficialmente os códigos éticos que ele pro-clama (Gl 5,19-23; Ef 5,21–6,9; Cl 3,5-14.18–4,4; 1Ts 4,1-12) pareçam semelhantes a outroscódigos contemporâneos, com nada de extraor-dinário quanto às qualidades exigidas, eles dife-renciam-se pela motivação que Paulo demonstrapara esse comportamento, por exemplo, “agra-dar a Deus” e “no Senhor Jesus” (1Ts 4,1) epelo poder* oferecido pelo qual quem crê emJesus Cristo satisfaz os requisitos. Essas coisasseparam os cristãos dos que estão fora da Igreja.

3. A formação e o desenvolvimento dascomunidades

O interesse primordial de Paulo não estava naconversão de indivíduos, mas na formação decomunidades cristãs. Em uma cidade grande,como Roma ou Corinto, diversas comunidades

podem bem ter sido criadas, tendo todas umacasa diferente como base. A linguagem de Ro-manos 16,10.11.14.15.23; 1 Coríntios 14,23 e16,15 sugere uma diferença entre grupos deindivíduos que se reuniam em determinadascasas e a Igreja “toda inteira” que se compunhade alguns desses grupos domésticos que se reu-niam ocasionalmente. Além disso, provas ar-queológicas, relatadas por J. Murphy-O’Connor(156), confirmam que a casa média acomodavacom dificuldade somente cinqüenta pessoas (nú-mero inicial realista dos cristãos que identifica-mos verdadeiramente com a Igreja de Corinto).É mais provável, então, que se encontrassemcom maior regularidade como subgrupos emnúmeros menores. Mas aqui a questão é sabercomo esses grupos se formavam e se sua identi-ficação era mantida.

3.1. Linguagem. Nossa linguagem desem-penha importante papel na interpretação e naforma do mundo em que vivemos. Nunca é neu-tra e sempre filtra a realidade para nós, de modoque sempre vemos a realidade pelos olhos dela.A linguagem desempenha um papel especial-mente importante para dar aos grupos uma per-cepção de sua identidade, manter a coesão e es-tabelecer seus limites. As cartas paulinas estãocheias da linguagem de relação familiar.

Os cristãos são “filhos de Deus” e “irmãos” e“irmãs” uns dos outros. A família cristã substituia família natural. A linguagem corporal (1Cor12,12-27) e outras metáforas representam a soli-dariedade. Há também indícios de linguagem degrupos distintos, como Abbá ou Marana tá.Outra linguagem diferencia nitidamente os cris-tãos da sociedade mais ampla. Assim, apenaspara tomar o exemplo de 1 Tessalonicenses 1,9-10, Paulo fala que eles passaram por uma con-versão radical que os separou dos concidadãos.O uso da linguagem que trata dos de fora (1Cor5,12.13; Cl 4,5; 1Ts 4,12) separa nitidamenteos cristãos dos não-cristãos. Como fazem tam-bém as freqüentes referências paulinas aos incré-dulos como membros do “mundo*”, “mortos nopecado*”, “uma geração transviada e pervertida”ou outra terminologia semelhante. A descriçãopositiva dos cristãos como “santos”, “diletos”ou “colaboradores de Deus” reforça ainda maisa coesão interna e a separação externa.

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2157

58Aa

3.2. Rituais. As ações também contribuempara a formação e a manutenção de comunida-des distintas. O batismo* e a Ceia do Senhor*são rituais associados à morte, ao sepultamentoe à ressurreição* de Cristo, acontecimentos queassinalam fronteiras evidentes na vida de Cristoe, conseqüentemente, na vida dos que estão emunião com ele pela fé.

O batismo é um ritual que simboliza e efe-tua um rompimento dramático com o modo devida anterior dos candidatos e sua inclusão naIgreja (Rm 6,1-4; 1Cor 12,13; Gl 3,26-28). Ouso de metáforas do vestuário (cf. Ef 4,22-24;Cl 3,9.10), que provavelmente tiveram origemno rito batismal, também servia para reforçara nova identidade do fiel em Cristo.

Wayne Meeks chamou a Ceia do Senhor de“ritual de solidariedade”. Ela separa os fiéis ge-nuínos dos incrédulos e enfatiza a exclusividadede servir a Cristo (1Cor 10,21). Reencena a últi-ma ceia que Jesus teve com os discípulos (1Cor11,23) e enfatiza a participação dos fiéis não sóem Cristo (1Cor 10,16; 11,24-26), mas de unscom os outros. É por isso que Paulo denunciaos coríntios por transformarem em instrumentode divisão social o que se destinava a ser uma re-petição ritual da unidade deles (1Cor 11,17-22).G. Theissen (121-140) sugere proveitosamenteque talvez fatores sociais causassem a divisão,com os fortes colocados mais alto na escala socialque os fracos. Outros rituais, como a oferenda se-manal (1Cor 16,2), não só fortaleciam o fato depertencerem uns aos outros na comunidade lo-cal, mas também davam aos cristãos primitivos avisão de pertencer a uma comunidade de fé es-palhada pelo mundo inteiro (2Cor 8–9). Como arepetição simbólica daquilo em que a comunida-de acreditava a respeito de si mesma, o ritual de-sempenhava um papel significativo na formaçãoe na manutenção da identidade comunitária.

3.3. Communitas. As comunidades paulinasnão eram organizações hierárquicas rigidamenteestruturadas, mas se caracterizavam pela com-munitas. Communitas refere-se a padrões de re-lacionamento marcados por um alto grau de par-ticipação por parte de seus membros e um fortesentimento de ter seu lugar próprio (ver Sam-pley). São irmandades anti-hierárquicas que va-lorizam a espontaneidade e têm estruturas livres.

O modelo do culto* (1Cor 14,26-33; Cl 3,15-16),a ênfase no fato de todos os fiéis receberemdons* do Espírito (Rm 12,3-8; 1Cor 12,1-30;Ef 4,7-13) e a ordem para ser solidários uns comos outros e praticar a hospitalidade (Rm 12,13;15,17; cf. 1Tm 3,2; 5,10; Tt 1,8) combinam como ensinamento radical de que a fé em Cristoaniquila as diferenças sociais (1Cor 7,21-22; Gl3,28; Ef 6,5-9) e retratam as Igrejas paulinascom os traços típicos da communitas.

Nenhum grupo existe muito tempo em umnível de communitas pura, e alguns elementosestruturais são evidentes na comunidade paulinadesde o princípio (ver Ordem e governo da Igre-ja). Eram designados anciãos e diáconos. O cultodevia ser conduzido “conveniente e ordenada-mente” (1Cor 14,40). E. Käsemann lembra queos dons do Espírito contêm uma ordem implícitaconforme o uso que o corpo fazia deles. É prová-vel que os mais abastados donos de casas quehospedavam a Igreja desempenhassem um pa-pel inevitável de liderança. Contudo, apesar dequaisquer restrições, as comunidades paulinas ca-racterizavam-se predominantemente pela commu-nitas, em especial quando comparadas com oculto mais estruturado das sinagogas judaicas.

3.4. Conflito externo. O conflito tem efeitoadverso na sobrevivência e no desenvolvimentode grupos, mas, se os membros do grupo rece-bem explicações satisfatórias que legitimamsua posição, o conflito pode ser altamente cons-trutivo para a vida do grupo. Assim era nasIgrejas paulinas. A oposição (ver Adversários)era sua experiência recorrente e, conseqüente-mente, Paulo com freqüência ensinava ou es-crevia para explicar por que acontecia isso (At14,22; Fl 1,12-14.29-30; 1Ts 2,14-20; 3,4; 2Ts1,4-10; 2Tm 3,10-14). A existência de conflitofortalece o grupo, pois define seus limites, dis-ciplina seus membros, une-os em relações maisintensas contra um inimigo* comum, exige totaladesão e eleva a sensação que os membros têmde fazerem parte dele. Além de energizar o gru-po, inspira a liderança criativa e até torna ogrupo atraente para os que dele não fazem parte.Tudo isso está evidente nas Igrejas de Paulo.

3.5. Institucionalização. Com o tempo e de-vido à natureza habitual de suas atividades, ogrupo se torna institucionalizado. Isto é, perde

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2158

59A a

a pureza e a criatividade originais e se tornamais heterogêneo em seus propósitos e motivose menos flexível em seus relacionamentos eações. A segunda geração de membros nunca étão perspicaz nem totalmente dedicada quantoos fundadores de um movimento. Entram inte-resses de direitos adquiridos. A franqueza caris-mática é canalizada de certos modos esperadose rotineiros. O culto adota padrões mais previsí-veis. Posições éticas tornam-se menos exigentese os limites com o mundo ficam obscurecidos.De modo paradoxal, a liberdade* ética no Espí-rito (ver Espírito Santo) é gradativamente su-plantada pela letra da lei. A liderança se preocu-pa mais com posições, hierarquia e cargos. Aorganização se desenvolve e passa a ser maisestruturada, menos suscetível a novas neces-sidades e novos tempos e menos versátil (verCatolicismo primitivo).

Muitos perceberam os indícios de institucio-nalização no NT, em especial nas Cartas Pasto-rais. M. MacDonald determinou seu desenvolvi-mento em detalhes, desde as comunidades pauli-nas originais da Galácia, de Filipos, da Tessalô-nica e de Corinto, passando pelas comunidadesconduzidas pastoralmente, representadas porEfésios e Colossenses, até as Cartas Pastorais.Ela determina o desenvolvimento da institucio-nalização em relação à atitude para com o mun-do ou a ética, o ministério, o ritual e a crença.

Até certo ponto, o processo era inevitável.O próprio Paulo, o líder carismático, foi, final-mente, tirado de cena. Suas Igrejas eram seitasvoltadas para a conversão, isto é, grupos reli-giosos voluntários que se julgavam os únicosque ofereciam o caminho da salvação*, exigiamgrande dedicação de seus membros e se viamem oposição ao mundo, mas dispostos a conver-tê-lo. O desejo de converter as pessoas destemundo aumenta em uma inevitável tensão à me-dida que põe os cristãos em contato com os ou-tros, dando, desse modo, oportunidade a inúme-ras tentações; enfraquece os limites entre a seitae o mundo e leva à transigência. A tensão é evi-dente, por exemplo, em 1 Coríntios 5,9-10; 8,1-13; 14,23 e 1 Tessalonicenses 4,11-12. Mesmoassim, é possível superestimar o processo de ins-titucionalização e deixar a teoria exceder a prova.A teoria depende em alto grau de determinadas

perspectivas a respeito da datação das cartas e, senão é meticuloso, o argumento passa a se movi-mentar em círculos: eis a prova da institucionali-zação, por isso a carta deve ser de uma data tar-dia; esta carta tem data tardia, por isso devemosinterpretá-la em termos de institucionalização.

3.6. Autoridade e governo. Nenhum grupoexiste durante qualquer extensão de tempo semalguma forma de estrutura autoritária. Grandeparte do que aprendemos a respeito do exercícioda autoridade* nas Igrejas paulinas o fizemos porinferência, por causa das tensões e disputas entrePaulo e as autoridades rivais. Os Atos registramas tensões que surgiram entre a missão paulinae a Igreja de Jerusalém* que resultaram no re-conhecimento conclusivo de ambas como inde-pendentes e, contudo, em um relacionamentomútuo e contínuo de uma com a outra (At 15,1-35). Outros discernimentos surgem do modocomo Paulo lidou com os apóstolos* itinerantesque reivindicavam a fidelidade da Igreja de Co-rinto (2Cor 10–13). Ainda outros discernimen-tos surgem da observação de como são tratadasas disputas internas, os desvios comportamentaisna comunidade ou as tensões entre os organiza-dores comunitários estabelecidos e os itinerantescarismáticos (ver Adversários).

Qual era a base da autoridade e do aposto-lado de Paulo? M. Weber definiu de forma clás-sica três meios pelos quais a autoridade é legiti-mada: os da legalidade ou racionalidade, os datradição e os do carisma. Muitas análises da au-toridade paulina acontecem dentro dessa estru-tura, embora Theissen (51-54) acrescente oconceito adicional de autoridade funcional. Es-ses tipos de autoridade jamais existiram em ter-mos puros. Paulo demonstra certa preocupaçãoem reivindicar uma base tradicional para suaautoridade (1Cor 11,23; 15,3), mas não em jus-tificar seu papel pela referência ao centro tradi-cional de Jerusalém (Gl 1,11–2,10). É muitoapropriado considerar a autoridade paulina umaforma institucionalizada e racionalizada de ca-risma (Holmberg).

Paulo não é um tipo puro de autoridade ca-rismática, pois na obra inovadora dos carismáti-cos o carismático puro aponta para si mesmocomo o que se deve seguir, enquanto Paulo en-fatiza que sua autoridade provém de Jesus Cristo

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2159

60Aa

e não é dele próprio (2Cor 10,3; 1Ts 4,2). Elelimita sua autoridade. Age como pai para asIgrejas em vez de como profeta, o arquétipo daautoridade carismática. Recusa-se a aceitarapoio financeiro (1Cor 9,1-18; 2Cor 11,7-9; verApoio financeiro). Apresenta razões para as ins-truções que dá e apóia outras Igrejas fora de seugrupo, como Jerusalém, por meio da coleta*. Eele tem um lugar para a tradição. Contudo, noradicalismo e na inovação, no fato de se apre-sentar como modelo a ser imitado, na formaçãode comunidades, na apresentação de si mesmoe de suas reivindicações, ele manifesta algunsdos traços típicos do carismático.

Infelizmente, nada disso leva a uma concor-dância quanto à forma como Paulo punha emprática sua autoridade, e as avaliações diferembastante. Algumas ressaltam sua ênfase na liber-dade (1Cor 10,23; Gl 5,1), seu uso restrito daautoridade (1Cor 7,25; 2Cor 10,8) e seu desejode encorajar a Igreja local a assumir a respon-sabilidade pelo que ela faz (1Cor 5,1-5). Outrasrealçam suas diretrizes e chegam a acusá-lo deusar técnicas manipuladoras (1Cor 7,17; 14,37-38; Fl 3,15).

Paulo exerceu sua autoridade de várias ma-neiras: por meio de visitas de regresso, cartas,líderes designados localmente e pelo envio decolaboradores que representavam a autoridadedele em visitas (Ef 6,21; 1Ts 3,2; Tt 1,5). Em-bora não surja nenhum padrão evidente de lide-rança das Igrejas locais, parece que, com suaautoridade, Paulo designava anciãos (At 14,23)e que as Igrejas reconheciam anciãos e diáco-nos (Fl 1,1). A palavra ancião (presbyteros) pa-rece sinônimo de bispo (episcopos); a diferençaentre elas talvez reflita um contexto social maispredominantemente judaico (para presbyteros)ou gentio (para episcopos) (ver Ordem e gover-no da Igreja).

Freqüentemente, há quem sugira que asIgrejas primitivas passaram por tensões entreos líderes designados para posições estruturadase os itinerantes ou que exerciam os dons caris-máticos de línguas* e profecia, todos em disputapela autoridade. No entanto, é fácil exagerar ocontraste aqui e apresentar uma imagem sim-plista demais. Meeks (120-121) chama a atençãopara algumas das dificuldades: falar uma língua

é comportamento aprendido; Paulo aceita ovalor de línguas (1Cor 14,18), embora desejedisciplinar seu uso e não nos atrevamos a suporque os que falavam em línguas fossem muitodiferentes dos líderes. Em todo o período damissão paulina há uma preocupação com a au-toridade estrutural (ver, por exemplo, a primeirareferência a anciãos em At 14,23) e com os donsespirituais (observe, por exemplo, as últimasreferências em 1Tm 4,14 e 2Tm 1,6-7).

Sejam quais forem as questões que conti-nuam sem solução a respeito da autoridade e daliderança nas comunidades paulinas, e elas sãomuitas, está claro que a verdadeira autoridadeera Jesus Cristo (2Cor 4,5; Ef 4,15) e as autori-dades humanas desempenhavam apenas um pa-pel limitado. 2 Coríntios 1,24 capta o espíritoda liderança paulina que inevitavelmente faz queas Igrejas tenham uma forma mais igualitáriaque a maioria dos grupos do mundo antigo:“Não senhoreamos a vossa fé, mas cooperamospara a vossa alegria...” (ver Pastor).

4. Instituições sociaisNão era admissível que religiões desconhecidasfundassem novas instituições no Império Roma-no. Elas precisavam de autorização. O modocomo a Igreja cristã usou as instituições sociaisexistentes e as adaptou a seus fins possibilitouo seu surgimento e assegurou seu crescimento esua continuidade. Três instituições têm relevân-cia especial.

4.1. A sinagoga. O cristianismo entrou nomundo antigo como seita do judaísmo que, poressa razão, lhe propiciou proteção legal em seusanos de formação. A sinagoga proporcionou aPaulo uma plataforma instantânea para sua men-sagem e serviu, de muitas maneiras, mas nãode todas elas, de modelo para as Igrejas emer-gentes. As Igrejas primitivas imitavam a sina-goga na leitura e na interpretação da Escritura,nas orações e nas refeições comunitárias e naausência de sacrifícios que eram comuns entreos cultos pagãos. Vêem-se outros paralelos nomodo de lidar com as disputas internas, arreca-dar dinheiro, cuidar dos membros em sua visãode pertencer a um povo de Deus espalhado pelomundo todo. Talvez também fossem copiadosda sinagoga alguns aspectos organizacionais,

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2160

61A a

como o papel dos anciãos e dos benfeitores.Havia muitas diferenças, porém. Os cristãos pra-ticavam o batismo, não a circuncisão*. Seu cultoincluía a profecia e falar em línguas. As mulhe-res tinham um papel muito maior. E as Igrejasnão eram formadas em bases raciais.

4.2. A casa. As casas* primitivas eram gran-des e abrangiam comunidades que consistiamnão só em uma família principal, mas em es-cravos e amigos, inquilinos, sócios e clientesque estivessem envolvidos em um empreendi-mento comercial ou agrícola comum. Na ausên-cia de edifícios, elas propiciavam lugares ideaisde encontros para os cristãos primitivos. A casaera um corpo hierárquico sob a autoridade dopai. Parece que essas pessoas eram benfeitorasdas comunidades cristãs primitivas (Rm 16,4.5.14.15.23; 1Cor 1,11; 16,19; Cl 4,15; Fm 2). Ofato de grupos cristãos localizarem-se com fre-qüência em casas afetou a maneira como as Igre-jas se desenvolveram.

Por essa razão, Theissen (107) denomina ascomunidades paulinas “patriarcados do amor”.Ao fazê-lo, ele chama a atenção para o papel dobenfeitor da casa na Igreja primitiva e para a for-ma que deu às relações sociais. Embora, afirmaele, o Evangelho melhorasse as diferenças so-ciais, estas eram consideradas naturais e o res-peito e a subordinação aos superiores eram im-postos na Igreja aos de situação inferior. Indíciosdisso encontram-se nos códigos domésticos deética (Cl 3,18–4,1; Ef 5,22–6,9; 1Tm 2,9-10; verCasas e códigos domésticos). Mas o patriarcalis-mo do amor ficou em tensão com as reivindica-ções mais radicais e igualitárias do Evangelho(Gl 3,28) e nem todos acham que há indíciossuficientes para confirmar a opinião de Theissen.

Outras implicações do fato de as comunida-des paulinas estarem localizadas em casas in-cluem questões de conversão, divisão e cresci-mento. O individualismo da sociedade ocidentalcontemporânea não pareceria natural para o mo-do de pensar do tempo de Paulo. As decisõeseram tomadas em conjunto ou mais provavel-mente pelo membro principal da casa em nomedos outros. Por isso lemos a respeito de conver-sões e batismos de casas inteiras (At 16,15.31-34; 18,8; 1Cor 1,16). Quando essa decisão con-junta era tomada, não provocava necessariamente

a aceitação, o compromisso e a compreensão detodos os envolvidos. Negativamente, a existênciade várias Igrejas domésticas na mesma cidadeprovocava a tendência à divisão, com uma Igrejasendo fiel a um mestre e outras a mestres dife-rentes. Pode ser que essa seja a situação por trásdas palavras de Paulo em 1 Coríntios 1,10-17.Positivamente, a casa estava disponível para ser-vir de “célula básica” da Igreja e de unidadeprincipal da missão, pois usava a rede já existen-te de relacionamentos de seus membros compessoas de fora para difundir o Evangelho.

4.3. Associações voluntárias. O Império Ro-mano testemunhou o crescimento de muitas evariadas associações voluntárias. Esses clubesparticulares realizavam uma cerimônia de inicia-ção para quem quisesse ingressar como sócioe, com freqüência, estabeleciam-se em torno dedeterminado ofício ou objetivo. Existiam paraproporcionar festas e muitas vezes concentra-vam-se em refeições. As associações davam aosmembros a satisfação religiosa e emocional quefaltava nos cultos mais públicos ou oficiais. Al-gumas existiam como sociedades funerárias. Namaior parte, eram toleradas por Roma, mas, emvista do sigilo de sua atividade, tinham o poten-cial para ser politicamente subversivas e, porisso, de vez em quando passavam por inspeçãoou sofriam restrições por parte das autoridades.

Parece que, para propósitos legais, Romaconsiderava o judaísmo uma associação volun-tária, embora com uma diferença em razão deseu alcance internacional. Portanto, não surpre-ende que as comunidades cristãs primitivas tam-bém fossem consideradas associações voluntá-rias. Há semelhanças, pois tinham reuniões par-ticulares, a participação como membro era vo-luntária, praticavam rituais de iniciação, freqüen-temente se reuniam para as refeições ou para aCeia do Senhor e tinham certo grau de exclusi-vidade. Mas também havia alguns sinais quediferenciavam as comunidades cristãs primiti-vas de outras associações voluntárias. As Igrejaspaulinas eram muito mais socialmente inclusi-vas e nelas havia igualdade de posição entre ho-mens e mulheres (ver Homem e mulher), escra-vos e homens livres (ver Escravidão). Com ojudaísmo, a Igreja partilhava o fato de ter umgrupo de membros internacionais. A dedicação

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2161

62Aa

esperada dos membros era mais exigente quea da maioria das associações voluntárias. Nãohá indícios das práticas de sepultamento cris-tãs primitivas (exceto nas catacumbas, de dataincerta) e a terminologia das associações estáausente dos escritos paulinos. Além disso, asassociações voluntárias não costumavam se in-teressar pelo ensinamento ético. Mas o fato denão as considerarem fora do comum possibi-litava às Igrejas paulinas serem aceitas pelomundo romano.

5. Composição pessoal5.1. Estratificação social. A terminologia

das classes sociais precisa ser presumida comextrema cautela no NT. A análise contemporâ-nea de classes é, em essência, uma análise pós-industrial da posição econômica das pessoas.No mundo de Paulo, a origem e a posição legaleram mais significativas. Algumas classes eramclaramente definidas, a saber, a aristocracia se-natorial, as ordens eqüestres, várias classes den-tro das burocracias municipais, a plebe, os li-bertos e os escravos. Portanto, o status pareceser um instrumento analítico mais útil e permitetirar realisticamente a medida da posição socialdas pessoas em algumas dimensões, inclusiveas de poder, riqueza, educação, ocupação, liga-ções familiares etc.

Tomando como exemplo os comentáriospaulinos de 1 Coríntios 1,26, os estudiosos cos-tumavam argumentar que as Igrejas cristãs pri-mitivas compunham-se principalmente de es-cravos e pessoas sem importância das classesinferiores. A obra de A. Deissmann pareceuapoiar esse ponto de vista. Suas investigaçõesda linguagem e da literatura do NT levaram-noa afirmar que a Igreja primitiva era de naturezanão-literária, “um movimento entre os fatiga-dos e sobrecarregados, homens sem poder eposição... os pobres, os subservientes, os lou-cos, como os descreve São Paulo com a simpa-tia de um profeta”. Outros comentários contem-porâneos por críticos do cristianismo parecemreforçar essa opinião.

Entretanto, nos últimos tempos, surgiu umnovo consenso originário do exame recente dosindícios que expõem o ponto de vista de que as co-munidades cristãs primitivas eram socialmente

heterogêneas, onde faltavam talvez apenas aclasse mais alta e a mais baixa do sistema deestratificação social (ver Riqueza e pobreza). Oconsenso é o resultado de investigações dos no-mes mencionados nos Atos e nas epístolas pauli-nas, com exclusão das Pastorais, que dão umtotal de quase oitenta. Podemos experimental-mente dizer algo quanto à posição social de trin-ta deles. Entre eles estão claramente pessoas decertos recursos. Algumas têm uma capacidadede viajar que exigia meios financeiros. Sabemosque alguns, como Lídia (At 16,14), pertenciam àclasse mercantil. Outros tinham casas suficien-temente grandes para acomodar as assembléiascristãs, como Priscila e Áquila (Rm 16,4-5),Gaio (Rm 16,23; 1Cor 1,14), Ninfa (Cl 4,15) eFilêmon (Fm 2). Identificamos alguns pelo car-go que ocupavam, como Crispo, chefe da sina-goga (At 18,8; 1Cor 1,14). Os chefes das sinago-gas eram normalmente homens de posses. Eras-to era o oikonomos t¶s pole∞s (Rm 16,23) deCorinto, termo que provavelmente significa te-soureiro da cidade ou diretor de obras públicas.Era posição de importância, se não de riqueza.Estéfanas (1Cor 16,15) era, por inferência, ricoo bastante para agir como benfeitor da missãopaulina. As famílias de Aristóbulo e Narciso(Rm 16,10-11) tinham boas ligações imperiais.

As Igrejas paulinas não se compunham uni-formemente dessas pessoas. Entre os nomes re-lacionados muitos eram nomes comuns de escra-vos. As passagens éticas concernentes a senhorese escravos seriam supérfluas se escravos e senho-res não tivessem entrado na Igreja. Outras passa-gens a respeito da vida da Igreja primitiva, comoas que encorajam a dar (2Cor 8 e 9), só fazemsentido se presumimos a diversidade social. Issoé verdade em especial quanto a 1 Coríntios, co-mo demonstrou Theissen. É bastante esclarece-dora sua análise que segue linhas de estratificaçãosocial dos fracos e dos fortes (1Cor 8,1-13; verForte e fraco) e divisões à mesa do Senhor, colo-cada por ele no contexto de refeições semelhantesque se sabe terem acontecido em associaçõesvoluntárias, é bastante esclarecedora.

As tentativas de ligar o uso dos dons maisexpressivos exercidos em Corinto aos membrosmais pobres e menos articulados da Igreja sãofreqüentes, mas menos bem-sucedidas. Ao me-

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2162

63A a

nos do ponto de vista dos movimentos pente-costais e carismáticos contemporâneos, não épossível ligar com muito rigor o exercício de donscarismáticos de línguas, cura e profecia à priva-ção social ou econômica.

Assim, os indícios de natureza direta e con-clusivas sugerem que a Igreja primitiva era umorganismo socialmente diversificado.

5.2. Inconsistência da posição social. Umateoria específica a respeito da posição social dosconvertidos paulinos, a da inconsistência da po-sição social, foi apresentada por W. A. Meeks(22-23, 174, 191). A inconsistência da posiçãosocial ocorre quando as várias dimensões pelasquais a posição social é medida não estão de acor-do umas com as outras e acontece um “cruza-mento de categorias”. Desse modo, alguém podeser rico mas de classe inferior, instruído mas es-cravo, estar em posição de poder mas ser mulher.A principal fonte de tensão ocorre quando “aposição social alcançada” por meio de riqueza,ocupação ou educação está em conflito com a“posição social oficialmente reconhecida” devi-do à raça, ao sexo ou à origem da pessoa. Po-demos dizer que certos convertidos paulinos so-friam de inconsistência de posição social. Entreeles havia mulheres independentes de algumasposses, judeus ricos em uma sociedade pagã, li-bertos especialistas ou abastados que eram estig-matizados por terem sido escravos e gentios* te-mentes a Deus que haviam se ligado à sinagoga.

A teoria é usada para explicar por que algu-mas pessoas pareciam estar mais abertas à con-versão que outras e por que havia uma atraçãoespecial pela pregação apocalíptica ou milená-ria. Quem tinha uma posição social consistenteera mais propenso a estar bem integrado em suarede social apropriada. Mas quem tinha umaposição social inconsistente, como os social-mente volúveis, era propenso a estar muito me-nos integrado em círculos sociais específicos.Conseqüentemente, era mais propenso a estaraberto para receber um novo ensinamento.Além disso, a discordância que essa pessoa ex-perimentava encontrava expressão e resoluçãoem atividades ou crenças religiosas. Meekslembra que o ensinamento milenário, com seusimbolismo de um mundo desarticulado e suapromessa de transformação radical, exercia

atração especial para os que tinham uma expe-riência de vida ambígua.

Meeks (68-70) usa a teoria também paracriticar a visão que Theissen tem dos fortes edos fracos em 1 Coríntios 8 como simplistademais e para sugerir que os que tinham sinaisde inconsistência de posição social talvez fos-sem mais inclinados a falar em línguas.

A teoria tem seus críticos por causa da im-precisão e da base insuficiente dos indícios quea apóiam. Muitos indícios são tirados de 1 Co-ríntios. Em recente comentário a respeito de 1e 2 Tessalonicenses, C. A. Wanamaker afirmouque, embora fosse ideal para explicar a situaçãoem Tessalônica, não temos nenhuma informaçãosobre indivíduos de lá para determinar se a teoriaé ou não relevante. Ele também afirma que ou-tras explicações para a aceitação do ensinamentomilenário paulino em Tessalônica, como sua se-melhança com o culto de Cabirus, que perderaa popularidade por ter sido incluído no cultocívico, são mais plausíveis (ver Tessalonicen-ses). Entretanto, não é provável que a teoria pos-sa ser descartada com tanta facilidade e pareceter algum sentido, considerando que muitos dosconvertidos paulinos que podemos citar pare-cem ser convertidos originários das classes dosjudeus ou dos tementes a Deus, em vez de dire-tamente do paganismo.

6. Fatores sociais na formação da crençaÉ provável que uma perspectiva social do NTrejeite o que considera engano de idealismo, istoé, que o papel determinante no desenvolvimentohistórico é representado por idéias, a favor deum ponto de vista de que as idéias se formamcom base nas realidades sociais que as funda-mentam. No caso de Paulo, a realidade social éa situação das Igrejas de sua missão, e é dadaatenção às maneiras pelas quais isso moldou suateologia. Muitos que dão valor a essa abordagemgeral gostariam de expressá-la com mais cau-tela que Holmberg (1980), que, nas palavras deWatson (184), argumenta que “a teologia paulinaé, de fato, ‘uma reação secundária’ ao ‘fenôme-no concreto, primordial do mundo social’”.

Essa abordagem deve muito aos escritos deP. Berger e T. Luckmann, que afirmam que, ape-sar das aparências, nossa interpretação da reali-

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2163

64Aa

dade não é fixa, mas que todos nós estamosocupados no empreendimento de construir umuniverso de sentido. Na opinião deles, tudo queenfrentamos como realidade é, de fato, cons-truído socialmente. Depois de admitir que todarealidade é construída dessa maneira, não é pos-sível rejeitar determinadas construções comoformadas “apenas” socialmente. A validade detodas as construções sociais tem de ser julga-da a partir de outras bases. Portanto, entendidaadequadamente, ela não leva ao reducionismonem a uma relativização da teologia paulina.Três questões ilustram a abordagem com refe-rência a Paulo.

6.1. Legitimação sectária. Esler, principal-mente em relação a Lucas–Atos, e Watson,principalmente em relação a Gálatas e Roma-nos, desenvolveram a perspectiva da sociologiado conhecimento para expor o ministério pauli-no em termos de legitimação de um movimentosectário. Eles argumentam que o cristianismocomeçou como movimento de reforma dentrodo judaísmo, antes de se tornar uma seita sepa-rada (ver 3.5), nitidamente diferente do judaís-mo. O judaísmo, então, tornou-se adversáriohostil das Igrejas da missão paulina, para nãofalar no ambiente em geral mais desfavorávelno qual elas se encontravam. Mas é caracterís-tico das seitas se ver enfrentando hostilidades e,conseqüentemente, ter de reforçar a dedicaçãovacilante de seus membros. Para fazer isso, asseitas se dedicam a um processo de legitima-ções, isto é, explicações e justificações que le-gitimam suas crenças. Essas legitimações assu-mem algumas formas reconhecíveis e, inclusi-ve, localizam a seita, de maneira significativa,dentro do desdobramento da história; olhampara trás e para a frente e reinterpretam enten-dimentos passados, para que suas crenças nãosejam consideradas radicais, criações do nada,mas tradicionais, o que se pretendia ou era dese esperar o tempo todo.

A questão central para Paulo é a inclusão eo lugar dos cristãos gentios* na Igreja e o rela-cionamento entre o cristianismo e o judaísmo,com os problemas que isso trouxe quanto aaliança*, circuncisão*, lei*, obras (ver Obras dalei), alimento* e confraternização à mesa. Pauloprocura mostrar que a aliança da graça* não

está em conflito com alianças mais antigas quepareciam se especializar no papel da obediênciaà lei, mas que o aspecto fundamental de todasas alianças é que elas dependem da fé* na pro-messa de Deus (Rm 4,1-25; Gl 3,6-25). Assim,seu Evangelho não é um afastamento radicaldo antigo, mas um desenvolvimento consistentedele. A questão mais geral quanto à perseguiçãoe o contínuo sucesso do mal e dos malfeitores étambém muito evidente e dá origem a seu ensi-namento escatológico* e apocalíptico.

Quando colocada no contexto dessas reali-dades sociais, a interpretação luterana tradicio-nal das opiniões de Paulo quanto à justifica-ção* pela fé é contestada e é dado mais apoio àrecente interpretação de E. P. Sanders e outrosa respeito do papel da lei* na aliança.

6.2. Apocaliptismo. Estudos recentes real-çam a tendência apocalíptica encontrada no en-sinamento paulino. Para Paulo, o tempo em queele vivia era o último tempo, que teria um fimsúbito com a volta iminente do Senhor JesusCristo, que acabaria com a rebelião contra Deus,julgaria os ímpios, justificaria os eleitos (verEleição) e consumaria a sua salvação*. A aná-lise do ambiente social do ensinamento paulinochama a atenção para as realidades sociais queestavam sob ele e também o coloca na estruturamais ampla dos movimentos milenários.

Como J. Gager resumiu, os movimentos mi-lenários têm cinco traços fundamentais: a pro-messa do céu na terra; a derrota ou a inversão daordem social presente; uma impressionante libe-ração de energia emocional; vida breve; e o pa-pel fundamental de um líder messiânico, profé-tico ou carismático. Com apenas uma pequenamodificação esses traços encontram-se comoprincípios básicos de fé nas Igrejas paulinas. Onovo milênio vai surgir na volta de Jesus Cristoe a presente ordem social será transformada (Rm8,18-23; 1Cor 7,29-31; Gl 6,14; Ef 1,10; 1Ts1,10; 4,16; 2Ts 1,6-10; Tt 2,12-14). Vemos aenergia emocional gerada no zelo do movimentopelo evangelismo, na relação intensa entre Pauloe seus convertidos (2Cor 7,2; Fl 4,1; 1Ts 2,17) eno lugar dado ao exercício dos dons carismáticos(1Cor 12,1-9; 14,1-40). No caso de Paulo, o movi-mento não teve vida breve, mas sua continuidadedependia de passar por mudança organizacional

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2164

65A a

(ver 3.5). A figura messiânica central foi, o tem-po todo, Jesus Cristo, mas o próprio Paulo desem-penhou um papel decisivo como líder carismá-tico com autoridade originária de Jesus Cristo.

As pessoas estão abertas a se tornar mem-bros de movimentos milenários quando há pro-funda insatisfação com a situação presente ediscrepância entre as expectativas legítimas daspessoas e a experiência atual delas na socieda-de. Meeks remonta isso à inconsistência deposição social sofrida por membros das Igrejaspaulinas (ver 5.2). Mas fatores mais amplosde privação, como miséria econômica, falta deliberdade ou poder político, fracasso dos rituaisreligiosos existentes em dar satisfação ou abaixa posição social, também são evidentes en-tre os convertidos paulinos.

6.3. Dissonância cognitiva. A teoria da dis-sonância cognitiva cria a hipótese de que quandoa crença específica de um grupo é submetida auma contestação específica os membros dogrupo podem aliviar o desconforto (ou a disso-nância) mental não desistindo da crença, massim apegando-se a ela mais firme e vigorosa-mente, propagando-a na esperança de que outrostambém venham a compartilhá-la. Seu ativismoe o sucesso em conseguir convertidos diminuemo desconforto. Como L. Festinger e outros pro-puseram originalmente para os movimentos con-temporâneos e Gager aplicou à Igreja primitivade Jerusalém, cuja expectativa da chegada imi-nente do Reino* (At 1,6) foi, diz ele, frustrada,essa era uma teoria com critérios precisos. Tinhade haver: 1) o compromisso com uma crença, 2)que era considerada importante e 3) foi submetidaa contestação; 4) a contestação precisava ocorrere ser vista ocorrendo e 5) a crença precisava seradotada por um grupo e compartilhada por ou-tros. Entretanto, essa teoria é agora comumenteusada como explicação do comportamento doscristãos primitivos e, conseqüentemente, perdeua exatidão e também parte do valor. A naturezageneralizada de seu uso dificulta confirmar oudesmentir. Meeks, por exemplo, fala de movi-mentos apocalípticos que aliviam a dissonânciacognitiva e têm implicações para a inconsistên-cia da posição social de alguns membros e a natu-reza socialmente heterogênea da Igreja, mas sem,em absoluto, explicar as ligações entre elas.

Ver também ABORDAGENS SOCIOCIENTÍFICAS

A PAULO.

BIBLIOGRAFIA: R. Banks. Paul’s Idea of Commu-nity. Grand Rapids, Eerdmans, 1980; P. Berger& T. Luckmann. The Social Construction of Reali-ty: A Treatise on the Sociology of Knowledge.Garden City, NY, Doubleday, 1966; C. S. Du-dley & E. Hilgert. New Testament Tensions andthe Contemporary Church. Philadelphia, For-tress, 1987; P. Esler. Community and Gospel inLuke-Acts. SNTSMS 57, Cambridge, UniversityPress, 1987; L. Festinger, H. Riecken & S. Scha-chter. When Prophecy Fails. New York, Harper& Row, 1956; J. Gager. Kingdom and Commu-nity: The Social World of Early Christianity. En-glewood Cliffs, NJ, Prentice-Hall, 1975; R. F.Hock. The Social Context of Paul’s Ministry:Tentmaking and Apostleship. Philadelphia, For-tress, 1980; B. Holmberg. Paul and Power: TheStructure of Authority in the Primitive Church asReflected in the Pauline Epistles. Philadelphia,Fortress, 1980; Idem. Sociology and the NewTestament: An Appraisal. Minneapolis, Fortress,1990; E. A. Judge. The Social Pattern of Chris-tian Groups in the First Century. London, Tyn-dale, 1960; H. C. Kee. Christian Origins in Socio-logical Perspective. Philadelphia, Westminster,1980; M. Y. MacDonald. The Pauline Churches:A Socio-Historical Study of Institutionalizationin the Pauline and Deutero-Pauline Writings.SNTSMS 60. Cambridge, University Press, 1988;A. J. Malherbe. Paul and the Thessalonians. Phi-ladelphia, Fortress, 1987; Idem. Social Aspectsof Early Christianity. Baton Rouge, LouisianaState University, 1977; B. Malina. The New Tes-tament World: Insights from Cultural Anthropo-logy. Atlanta, John Knox, 1981; W. A. Meeks.The First Urban Christians: The Social Worldof the Apostle Paul. New Haven, Yale University,1983; Idem. The Moral World of the First Chris-tians. Philadelphia, Fortress, 1986; J. Murphy-O’Connor. St. Paul’s Corinth: Texts and Archaeo-logy. GNS 6, Wilmington, DE, Michael Glazier,1983; J. P. Sampley. Pauline Partnership in Christ:Christian Community and Commitment in Lightof Roman Law. Philadelphia, Fortress, 1980; J.H. Schütz. Paul and the Anatomy of ApostolicAuthority. SNTSMS 26, Cambridge University

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

A.p65 28/03/2008, 15:2165

66Aa

Press, 1975; J. Stambaugh & D. Balch. The So-cial World of the First Christians. Philadelphia,Fortress, 1986; G. Theissen. The Social Settingsof Pauline Christianity: Essays on Corinth. Phi-ladelphia, Fortress, 1982; D. J. Tidball. The So-cial Context of the New Testament: A Sociologi-cal Analysis. Grand Rapids, Zondervan, 1984;C. A. Wanamaker. Commentary on 1 and 2 Thessa-lonians. NIGTC, Grand Rapids, Eerdmans, 1990;F. Watson. Paul, Judaism and the Gentiles: A So-ciological Approach. SNTSMS 56, Cambridge,University Press, 1986.

D. J. TIDBALL

AMBIENTE URBANO DA MISSÃO PAULINA.Ver AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS.

AMÉM. Ver ELEMENTOS LITÚRGICOS; ORAÇÃO.

AMORPara Paulo, o amor é a mais importante de to-das as graças cristãs e a verdadeira essência daética* cristã. Motivado pela expressão supremado amor de Deus na morte* sacrifical de Cristo,o amor se origina de uma vida transformadacheia do Espírito* de Deus. Nos escritos pau-linos, o centro primordial do amor é expressãotangível na comunidade cristã.

1. Terminologia2. O amor de Deus/Cristo por nós3. Nosso amor por Deus/Cristo4. Nosso amor pelos outros

1. TerminologiaNão existe nenhuma carta paulina em que apalavra amor não figure com proeminência. Émais comum Paulo usar a terminologia agapa∞

(com referência ao amor baseado em alto res-peito ou apreço) para o amor divino e tambémhumano: agap¶ (“amor”, 75), agapa∞ (“de-monstrar amor”, 34) e agap¶tos (“alguém queé amado”, 27). No uso paulino, as palavraselee∞ (“demonstrar compaixão, misericórdia”,12) e eleos (“compaixão, misericórdia”, 10)aplicam-se quase exclusivamente a Deus, nãoa seres humanos.

É empregada uma ampla variedade de termi-nologia de phile∞, embora não freqüentemente:aphilargyros (“nenhum amante de dinheiro”, 1),philagatos, (“amante da bondade”, 1), philadel-

phia (“afeição fraterna ou familial, amor”, 2),philandros (“amante do marido”, 1), philanthr∞-

pia (“amor pelas pessoas”, 1), phile∞ (“amar,ter afeição por”, 2), phil¶ma (“beijo”, 4), philo-theos (“amante de Deus”, 1), philoxenia (“hospi-talidade”, 1), philoxenos (“pessoa hospitaleira”,2), philostorgos (“amante dos que estão em es-treito relacionamento”, 1) e philoteknos (“aman-te de crianças”, 1).

Outras palavras que expressam amor in-cluem epipothe∞ (“ter grande afeição, desejo ar-dente”, 7), epipoth¶sis (“grande afeição, desejoardente”, 2), epipoth¶tos (“quem é desejado”,1), epipothia (“grande afeição, desejo ardente”,1), eusplanchnos (“pessoa compassiva”, 1),homeiromai (“ter grande afeição, desejo arden-te”, 1) e splanchna (“compaixão”, “afeição”;“objeto de compaixão ou afeição”, 8). Algumaspalavras são usadas em sentido negativo, a res-peito de atitudes não-cristãs: astorgos (“semamor nem afeição”, 2), philargyria (“amor aodinheiro”, 1), philargyros (“amor ao dinheiro”,1), philautos (“amante de si mesmo”, 1) ephil¶donos (“amante do prazer”, 1).

2. O amor de Deus/Cristo por nósNo centro do entendimento que Paulo tem doEvangelho* está o amor salvífico de Deus(agap¶) manifestado em Cristo*. A expressãosuprema desse amor imerecido é a morte deCristo na cruz como sacrifício* pelos pecados*(Rm 5,8; Ef 2,4-5; 2Ts 2,16; cf. Gl 2,20). Quan-do Paulo fala do amor de Deus (ou de Cristo),é, em geral, com referência a algum aspecto daexpiação ou salvação* cristã. (Note-se: as ex-pressões “amor de Deus” e “amor de Cristo”são notoriamente ambíguas. Podem se referira nosso amor por Deus ou por Cristo [genitivoobjetivo] ou ao amor de Deus ou de Cristo pornós [genitivo subjetivo]. Só o contexto indivi-dual determina o sentido e, às vezes, simples-mente não é possível ter certeza do que Paulopretende: e.g., Rm 5,5; 2Cor 5,14; 2Ts 3,5.)

O amor de Deus é demonstrado na cruz etambém no chamado específico e na escolhados fiéis (“... no amor.... Ele nos predestinou aser para ele filhos adotivos por Jesus Cristo”,Ef 1,4-5; ver Chamar, chamamento; Eleição epredestinação). Assim, quando Paulo fala dos

AMBIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS

AMOR

A.p65 28/03/2008, 15:2166

67A a

cristãos como “eleitos” ou “escolhidos”, a idéiado amor imerecido de Deus está claramente im-plícita. Na verdade, sua análise da predestinaçãoem Romanos 9 parece falar que o amor de Deusé exclusivamente por seu povo escolhido (Rm9,13.15.18.21-24); mas ele não pressiona a lógi-ca deste ponto e escreve alhures a respeito doamor de Deus por todas as pessoas.

Para Paulo, ter um bom entendimento doamor salvífico de Deus manifestado em Cristo édecisivo. Está no centro de toda teologia e todaética cristãs verdadeiras e é importante para asensação de segurança do fiel (“nada poderá se-parar-nos do amor de Deus, manifestado emJesus Cristo, nosso Senhor”, Rm 8,31-39). Al-cançar o perfeito conhecimento desse amor é,então, um de seus mais fortes desejos e orações*para seus jovens convertidos (Ef 3,14-21). Naverdade, o irresistível sentido do amor de Cristoé uma das principais forças propulsoras na vidade Paulo (2Cor 5,14-15).

3. Nosso amor por Deus/CristoEmbora implícito do começo ao fim, o amorpor Deus (ou Cristo) permanece estranhamentesem ênfase nos escritos paulinos. (Só é men-cionado em Rm 8,28; 1Cor 2,9; 8,3; 16,22; Ef6,24; 2Tm 3,4; a frase é ambígua em Rm 5,5;2Cor 5,14; 2Ts 3,5.) Embora o segundo grandemandamento seja citado duas vezes, o primeirogrande mandamento não é citado em nenhumapassagem. O enfoque é, antes, no amor de Deus(ou de Cristo) por nós, com a ênfase na graça.A resposta que Paulo exige não é tanto amar aDeus ou a Cristo, mas crer em Cristo e amar osoutros. A resposta inicial é receptiva.

Isso não significa que o conceito de amara Deus seja periférico no pensamento paulino:é central em sua herança judaica e está clara-mente de acordo com sua visão da vida cristãcomo uma vida de total dedicação a Deus. Maspor que ele fala tão pouco do amor a Deus e sebaseia tão pouco nele permanece um mistério.

4. Nosso amor pelos outrosPara Paulo, amar os outros é a característica maisimportante da vida cristã e o centro do modode vida cristão. Tudo que fazemos deve ser ex-pressão de amor (1Cor 16,14). Mais importante

que os dons* carismáticos que os coríntios ambi-cionavam (1Cor 12,31–13,2), o amor é relacio-nado em primeiro lugar como “fruto do Espíri-to* (Gl 5,22-23; grande parte do resto da listapode ser considerado um comentário a respeitodo amor) e é a única graça que os fiéis devemprocurar acima de todas as outras (Cl 3,12.14).Paulo fala dela como o epítome e a essência detoda a lei moral veterotestamentária (Rm 13,8-10; Gl 5,14), o único débito interminável queos cristãos têm para com os outros. Na verdade,em linguagem muito incomum para ele, Pauloaté fala do amor como “lei de Cristo”* (Gl 6,2),de acordo com a ênfase de Jesus na lei do amor.Como tal, amar os outros tem certa relação como bem-estar da pessoa no dia de Cristo (Fl 1,9-10; 1Ts 3,12-13; ver Escatologia). Todo o con-ceito paulino de vida santa é dominado pelo amor.

4.1. A teologia do amor. As palavras fé* eamor estão freqüentemente ligadas no escritopaulino: juntas, elas representam um resumode suas maiores preocupações teológicas e éti-cas. A referência à fé de seus leitores em Cristoe ao amor mútuo muitas vezes ocorre nas pas-sagens iniciais de ação de graças de suas cartase sugere a importância desses dois conceitosem seu pensamento (Ef 1,15; Cl 1,4; 1Ts 1,3;2Ts 1,3; Fm 4-5; cf. Ef 6,23; 1Ts 3,6; 5,8; 1Tm1,5.14; 2,15; 6,11; 2Tm 1,13; 2,22; 3,10; Tt2,2). Paulo lembra aos gálatas que o que real-mente conta não é a lei* judaica, mas “a féque age pelo amor” (Gl 5,6) — frase que talvezse aproxime mais que qualquer outra de umresumo de sua visão da vida cristã.

O amor representa a fortificação ética dajustiça* imputada concedida pela graça por in-termédio da fé, a expressão exterior da nova vidaem Cristo. Desse modo, há uma correlação ne-cessária entre a fé em Cristo e o amor pelosoutros. E, assim como a fé significa o fim dalei judaica em sentido salvífico (Rm 10,4), oamor representa o cumprimento da lei em senti-do ético (Rm 13,10); no pensamento paulino,os dois juntos substituem essencialmente o en-foque na lei como meio de justiça*.

4.2. As fontes do amor. O amor vem por in-termédio da relação que a pessoa tem com JesusCristo (1Tm 1,14; 2Tm 1,13), pelo dom doEspírito Santo* (cf. 2Tm 1,7). O amor é possível

AMOR

AMOR

A.p65 28/03/2008, 15:2167

68Aa

porque a fé em Cristo conduz o fiel a toda umanova vida, dominada não mais pelo pecado epelo desejo egoísta, mas sim pelo Espírito deDeus. Como penhor da vida que há de vir (2Cor5,5; cf. 1,22), o Espírito produz o poder do novotempo na vida do fiel aqui e agora e torna real-mente possível uma forma de existência escato-lógica no presente. Assim, libertado dos poderesescravizadores do pecado e da lei, o fiel é forta-lecido para produzir “frutos” reais para Deus(Rm 7,4), o “fruto da justiça” (Fl 1,11) — quepara Paulo é sempre “fruto do Espírito”; e o“fruto” mais importante é o amor (Gl 5,22-23;cf. Rm 15,30; Cl 1,8; 2Tm 1,7).

Para Paulo, então, o amor nunca é simples-mente uma virtude alcançada automaticamente;é o resultado de uma vida transformada cheia doEspírito de Deus, que derrama o amor de Deusno coração humano (Rm 5,5; cf. Gl 4,6-7; Fl1,8). Conseqüentemente, a falta de amor põe emdúvida a presença do Espírito na vida da pessoae, portanto, todo o relacionamento dela comDeus (cf. Rm 8,1-14). O fato de serem os incen-tivos de Paulo ao amor freqüentemente expres-sos em forma de prece (Fl 1,9; 1Ts 3,12; cf.2Ts 3,5) reflete sua convicção de que o amor,como tudo que é bom, se origina, em últimainstância, de Deus como dom da graça (2Cor8,16; 1Ts 4,9). A chave para amar é estar repletodo Espírito de Deus (Ef 5,18).

4.3. A motivação do amor. Às vezes, Paulofala do amor como simples mandamento a serobedecido — na verdade como o mais importan-te de todos os mandamentos morais (Rm 13,8-10; Gl 5,14). Outras vezes, ele incentiva o amorpor causa da pureza exigida para o dia de Cristo(Fl 1,9-10; 1Ts 3,12-13; ver Escatologia). Aindaoutras vezes, ele apela para a história ou o exem-plo de Cristo (Rm 15,2-3; 1Cor 10,31–11,1;2Cor 8,8-9; Ef 4,32–5,2; Fl 2,4-8; Cl 3,12-14;ver Imitação; ver Fowl).

Acima de tudo, porém, Paulo pensa no amorcomo alegre resposta à graça de Deus em JesusCristo, motivada pela relação pessoal com o Sal-vador*. Não se trata tanto de se submeter aosensinamentos de Jesus ou de imitar sua vidaterrena, quanto de responder com um coraçãograto à expressão definitiva de amor em suamorte na cruz (Rm 12,1-2) e na obediência a

ele como Senhor. Amar os outros é só a respostaética apropriada ao amor divino demonstradono Evangelho. (Mesmo quando Paulo fala emimitar Cristo, o apelo não é a sua vida terrena,mas a algum aspecto do amor sacrifical demons-trado em sua morte.) Para Paulo, a vida cristãcomo um todo é uma alegre resposta à graça deDeus no Evangelho: é expressão de gratidão porCristo. Amar os outros é um jeito de dizer “obri-gado” pelo amor divino (cf. 2Cor 8,1-9).

4.4. O enfoque do amor. Como a principalpreocupação de Paulo é o bem-estar das Igre-jas, seu enfoque primordial está na expressãodo amor na comunidade cristã. Embora de vezem quando fale em mostrar bondade aos queestão fora da irmandade (Rm 12,14.17-21; Gl6,10; 1Ts 3,12; 5,15), ele está muito mais preo-cupado com a expressão do amor entre os pró-prios cristãos: “Trabalhemos pelo bem de to-dos, mas sobretudo dos que nos são próximosna fé” (Gl 6,10).

Como a Igreja* é o corpo de Cristo (verCorpo de Cristo), a comunhão* do povo de Deuse o templo* de sua presença na terra, é da má-xima importância que os cristãos aprendam aviver juntos no amor. O amor é o que une osdiversos membros do corpo em perfeita har-monia (Cl 2,2; 3,14). Sem amor, o corpo nãofunciona bem, nem honra Cristo como deveria.Vemos a importância dessa questão na repetidaênfase paulina no amor e na unidade (Rm 12,10.16.18; 14,1.19; 15,5-6; 1Cor 1,10; 10,16-17;2Cor 13,11; Gl 3,27-28; 5,22-23; 6,2; Ef 4,1-6;Fl 1,27; 2,1-4; 4,2; Cl 2,2.19; 3,12-14; 1Ts 5,13-14) e em sua constante advertência contra tudoque se mostre desarmonioso (Rm 12,16; 14,1-23; 16,17; 1Cor 3,3-4; 4,6; 11,18-22; Gl 5,15.19-21; Ef 4,25.31; Fl 2,3-4; Cl 3,8-9). Como “mem-bros uns dos outros”, os cristãos devem cuidaruns dos outros (1Cor 12,25-26) e se preocuparacima de tudo com a edificação mútua (Rm14,19; 15,2; 1Cor 8,1; 14,3-5.12.17.26; Ef 4,15-16; 1Ts 5,11). A colocação do clássico discursopaulino a respeito do amor (1Cor 13) no meiode uma análise do uso de dons carismáticospara a edificação da Igreja mostra algo do pa-pel do amor em seu modo de pensar. ParaPaulo, o bem-estar da comunidade é tão im-portante quanto o do indivíduo — e é por isso

AMOR

AMOR

A.p65 28/03/2008, 15:2268

69A a

que o amor desempenha um papel tão funda-mental em seus escritos.

4.5. A natureza do amor. Paulo explica ascaracterísticas do amor (agap¶) em 1 Coríntios13. Demonstramos o amor com paciência e bon-dade — não com ciúme, orgulho, arrogância,grosseria, insistência, irritabilidade, ressenti-mento, nem com o desejo de ajustar as contas.Em outras palavras, o verdadeiro amor não éegoísta, mas está disposto a sacrificar os pró-prios desejos para o bem dos outros. É esse sen-timento de abnegação pelos outros — mode-lado pelo sacrifício de Cristo por nós — queestá no centro do entendimento paulino doque é o verdadeiro amor (cf. Wischmeyer).

Os cristãos não devem viver para si mes-mos, mas para os outros é o tema que percorreos escritos paulinos. Jesus, Timóteo e o próprioPaulo, todos servem de modelo para esse modode vida (Rm 9,3; 15,1-3; 1Cor 9,19-22; 10,33–11,1; 2Cor 1,6; 4,5; 6,4-6; 8,8-9; 12,15; 13,9;Gl 2,20; Fl 1,20-26; 2,4-8.17.19-24; Ef 4,32–5,2; Cl 1,24; 1Ts 2,9; 1Tm 4,12). Essa atitudede cuidado abnegado deve ser demonstrada atémesmo em casa (Ef 5,25-33; Cl 3,19; Tt 2,4).Para Paulo, então, o verdadeiro amor exige des-prendimento. (Em contraste, os “últimos dias”serão marcados pelo egoísmo, pelo dinheiro epelo prazer, 2Tm 3,2-4). Não comer carne, seisso fizer outros pecarem, é um dos exemplosmais fortes do desprendimento exigido peloamor (Rm 14,15.20-21; 1Cor 8,9-13; 10,23-33;ver Alimento oferecido aos ídolos e leis dieté-ticas judaicas; Idolatria; Forte e fraco).

Mais um ponto: para Paulo, o amor não éapenas questão de fazer, é também questão deser (cf. 1Cor 13,3: “Mesmo que distribua todosos meus bens... se me falta o amor...”). Amar osoutros não é simplesmente questão de fazer obem ou demonstrar misericórdia*, mas deve seoriginar de um sentimento de genuíno cuidadoe compaixão. Deve ser real e sincero — mera-mente fingir não basta. E deve ser expresso comcordialidade e afeto, para ser verdadeiramentepercebido como amor. Vemos a importância dis-so no pensamento de Paulo quando ele exortaos leitores a comunicarem o afeto mútuo (Rm12,10; 16,16; 1Cor 16,20; 2Cor 2,8; 13,12; 1Ts5,26) e na repetida afirmação de seu afeto por

eles (1Cor 16,24; 2Cor 2,4; 6,11; 7,3; 11,11;12,15; Fl 1,7-8; 4,1; 1Ts 2,8; 3,12; Fm 9). Paulopreocupa-se profundamente em fazer que asIgrejas conheçam sua solicitude e seu afeto poreles; e ele, por sua vez, parece sentir grandeconsolo ao saber do amor que eles lhe dedicam(2Cor 7,6-7; 1Ts 3,6-10). Assim, quando falado amor, Paulo pensa não só em atos práticos decaridade, mas também na expressão sincerade solicitude e afeto — ambos importantes.

4.6. Os limites do amor. Às vezes são levan-tadas dúvidas a respeito da perseverança dePaulo em realizar seus ideais, em especial à luzda linguagem áspera que ele usa para falar dosque se opõem ao Evangelho (Gl 1,8-9; 5,12; Fl3,2; cf. sua ênfase em respostas brandas e pala-vras afáveis em Rm 12,17-21; Cl 4,6!). Quandoa graça do Evangelho é posta em perigo, as preo-cupações teológicas assumem claramente emseu pensamento a precedência sobre conside-rações de polidez e etiqueta. Para Paulo, os prin-cípios básicos do Evangelho não podem sim-plesmente ser comprometidos e, se o entendi-mento que uma Igreja tem deles é enfraquecido,são necessárias palavras e ações duras, no inte-resse da salvação dos leitores. Em outras pala-vras, Paulo não imagina o amor como suavidadea qualquer preço. Na verdade, ele insiste que éprecisamente por genuína preocupação com obem-estar deles (i.e., por amor) que surgem taispalavras ásperas e atos de advertência (1Cor 4,14;2Cor 2,4; 7,8-11; 12,19; 13,2-4.10; Gl 2,11-14).Há, então, limites teológicos e morais claros paraa validade de algumas de suas declarações quan-to à forma que esse amor costuma assumir.Quando normas dadas por Deus são ameaça-das, há ocasiões em que o amor não suportatudo (cf. 1Cor 13,7), em que o amor insisteem fazer as coisas do seu jeito (cf. 1Cor 13,5),mesmo um tanto energicamente — se esse jeitoidentifica-se com o jeito de Deus (1Cor 14,37-38; 2Ts 3,14). E quando a doutrina da graçade Deus está em jogo o amor não parece ser demaior importância que a fé (cf. 1Cor 13,13).Desse modo, na vida de Paulo, a expressão doamor está claramente condicionada a certas con-siderações teológicas e morais de importânciadecisiva — e quando estas são ameaçadas pa-lavras ásperas podem ser a forma mais verda-

AMOR

AMOR

A.p65 28/03/2008, 15:2269

70Aa

deira de amor e não uma transgressão dele (verAdversários).

Ver também MORTE DE CRISTO; ÉTICA; FRUTO

DO ESPÍRITO; DEUS; MISERICÓRDIA.

BIBLIOGRAFIA: R. Bultmann. Theology of theNew Testament. New York, Scribner’s, 1951,1955. 2 vols.; S. E. Fowl. The Story of Christ inthe Ethics of Paul. JSNTS 36, Sheffield, JSOT,1990; V. P. Furnish. The Love Command in theNew Testament. Nashville, Abingdon, 1972;Idem. Theology and Ethics in Paul. Nashville,Abingdon, 1968; W. Günther et al. “Love”,NIDNTT 2, 542-550; J. P. Louw & E. A. Nida.“Love. Affection, Compassion”. In: Greek-English Lexicon of the New Testament: Basedon Semantic Domains. New York, United BibleSocieties, 1988, vol. 1, 293-296; J. Moffatt.Love in the New Testament. London, Hodder& Stoughton, 1929; R. Mohrlang. Matthew andPaul: A Comparison of Ethical Perspectives.SNTSMS 48, Cambridge, University Press, 1984;H. Ridderbos. Paul: An Outline of His Theolo-gy. Grand Rapids, Eerdmans, 1975; G. Schnei-der. “égãph ktl”. EDNT 1, 8-12; C. Spicq.Agape in the New Testament. London, Herder,1963, 1965. 2 vols.; G. Stählin, “fil°v ktl”.TDNT IX, 114-146; E. Stauffer. “égapãvktl”, TDNT I, 21-55; O. Wischmeyer. Derhöchste Weg. Das 13. Kapitel des 1 Korinther-briefes. Gütersloh, Mohn, 1981.

R. MOHRLANG

ANÁTEMA. Ver MALDIÇÃO, MALDITO, ANÁTEMA.

ANCIÃOS. Ver ORDEM E GOVERNO DA IGREJA.

ANGÚSTIAS, TRIBULAÇÕES, PROVAÇÕESPaulo refere-se, com freqüência, a suas tribu-lações e angústias e, às vezes, cataloga-as emsuas cartas. Parece que ele achou a persegui-ção nas mãos dos judeus a tribulação maisdifícil de suportar. Contudo, as cartas paulinasrefletem uma atitude positiva com relação àsangústias.

1. Catálogo de angústias2. Perseguição nas mãos dos judeus3. Atitude de Paulo em relação a angústias

e tribulações

1. Catálogo de angústiasAs tribulações e angústias que Paulo sofreu fo-ram muitas e variadas, o que se reflete nos catá-logos encontrados em suas cartas (Rm 8,35; 1Cor4,9-13; 2Cor 4,8-9; 6,4-5; 11,23-29; 12,10).

1.1. O catálogo mais abrangente. Em 2 Co-ríntios 11,23-29, as tribulações e angústias estãorelacionadas bem detalhadamente. A passagemse divide em quatro partes e cada uma reflete umaspecto diferente dessas angústias:

1) Versículos 23b-25: prisões, açoitamentose perigos de morte, inclusive cinco ocasiões emque recebeu os trinta e nove açoites (i.e., o máxi-mo permitido menos um) nas mãos dos judeus,três vezes em que foi flagelado por gentios, umavez em que foi apedrejado e três naufrágios.

2) Versículo 26: viagens freqüentes comos perigos que as acompanhavam: dos rios, dossalteadores, dos judeus e também dos gentios;perigos na cidade, no deserto e no mar; e peri-gos dos falsos cristãos.

3) Versículo 27: fadigas e sofrimentos, in-clusive noites sem dormir (quer como priva-ções, quer como vigílias), fome e sede, frio eindigência.

4) Versículos 28-29: preocupação, solici-tude por todas as Igrejas.

1.2. Paralelos na literatura antiga. A atituderefletida nos escritos dos moralistas helenísticos(e.g., Epicteto, Diss. 3,12,10; 4,8,31; Sêneca,Ep. Mor. 13,1-3; Díon Crisóstomo, Disc. 3,3) eem alguns escritos judaicos do período (e.g., Sb3,5-6; Sr 2,1-5; Jt 8,25-26; SlSal 16,14-15; TJosé2,7; 4Mc 17,11-16) é que as provações funcio-nam como teste de caráter.

Os moralistas helenísticos usavam listas detribulações para descrever a serenidade em meioao sofrimento e para dar aos leitores um modelode perseverança. Eles acreditavam que os sofri-mentos desempenhavam um papel no planodivino. A esse respeito, fazem paralelo com aatitude de Paulo quanto às provações e seu usode listas de tribulações. Entretanto, Paulo dis-cordava radicalmente dos que minimizavam oimpacto das angústias e via no triunfo sobre elasuma demonstração de poder*. Paulo admitiacom franqueza a angústia causada por suas tri-bulações (2Cor 1,8-9) e se orgulhava do fato deser o poder de Deus, não o seu, que lhe permitia

AMOR

ANGÚSTIAS, TRIBULAÇÕES, PROVAÇÕES

A.p65 28/03/2008, 15:2270

71A a

resistir (2Cor 12,9-10). Essas semelhanças ediferenças sugerem que, se estava familiarizadocom as listas dos moralistas helenísticos, Pauloadotou e adaptou o gênero para servir a seuspropósitos. Tal adaptação foi influenciada pelastradições veterotestamentárias a respeito dossofrimentos dos justos, pelas idéias apocalípti-cas* judaicas das calamidades do fim dos tem-pos e, o que é mais importante, pela teologiapaulina da cruz.

2. Perseguição nas mãos dos judeusDe todas as tribulações que Paulo sofreu, nenhu-ma recebe mais atenção em suas cartas que aperseguição por causa do evangelho*. Ele foiperseguido por judeus, gentios e falsos cristãos(2Cor 11,26), mas foi à perseguição nas mãosdos judeus que se referiu com mais freqüência(cf., e.g., Rm 15,31; 2Cor 11,24.26; Gl 5,11;1Ts 2,14-16), o que sugere ser essa a tribulaçãoque ele achava mais difícil de suportar. As cartasde Paulo fazem diversas insinuações a respeitodas razões dessas perseguições.

2.1. Ele pregava a fé que outrora destruía.Segundo Atos 9,1-2, Paulo antes perseguia a Igre-ja com o apoio do sumo sacerdote. Depois da con-versão, mudou de lado e passou a pregar a fé queoutrora destruía (Gl 1,23; ver Ciúme, zelo). Nãoadmira que os líderes judaicos sentissem grandeantipatia por ele, o que levou a sua perseguição.

2.2. Ele considerava lixo elementos apre-ciados do judaísmo. Depois da conversão, Paulopassou por uma reversão de valores. Ele agoraconsiderava “lixo” os elementos mais apreciadosdo judaísmo, comparados ao bem supremo doconhecimento de Cristo (Fl 3,4-8). Se sabiamque ele adotou tal atitude para com o judaísmoe promovia uma atitude semelhante entre osoutros, não admira que atraísse para si a perse-guição judaica.

2.3. Ele encorajava os judeus a negligen-ciar a Lei de Moisés. Paulo censurava veemen-temente os fiéis judeus por não estarem prepa-rados para se libertar das exigências da Lei pelapureza* ritual, quando elas os impediam departilhar as refeições com os gentios (Gl 2,11-21). Assim, não surpreende que colidisse comjudeus zelosos que perseguiam os de sua naçãoque encorajavam violações da Lei.

2.4. Ele não pregava a circuncisão. As ra-zões de Paulo sofrer perseguição judaica men-cionadas até aqui são apenas inferidas de alu-sões encontradas em suas cartas. Para esta quartarazão, temos a prova de uma declaração explí-cita: “Quanto a mim, irmãos, se ainda pregasse acircuncisão, por que, então, estaria sendo perse-guido? Nesse caso, o escândalo da cruz ficariaabolido” (Gl 5,11; ver Circuncisão).

2.5. Ele abrandava as exigências éticas. Em-bora se confessasse culpado das acusações queestavam por trás das razões para a perseguiçãosugeridas acima, Paulo negava veementemente aacusação de que abrandava as exigências éticas.No que lhe dizia respeito, essa acusação era umacalúnia irreverente (Rm 3,7-8). Mesmo assim,por ser o que os adversários judeus pensavamdele, é provável que isso contribuísse para asrazões de sofrer perseguição nas mãos deles.

3. Atitude de Paulo em relação a angústiase tribulações

O apóstolo não apresentou uma solução abran-gente para o problema do sofrimento. Entretanto,suas cartas revelam alguma coisa da forma comoele entendia o significado desse sofrimento.

3.1. O destino e o privilégio dos fiéis. Aoprocurar encorajar os convertidos, Paulo lembra-va-os de que lhes fora concedida a graça “comrelação a Cristo, não somente de crer nele, masainda de sofrer por ele” (Fl 1,29). A isso eleseram destinados (1Ts 3,3-4; cf. 2Tm 3,12).

3.2. Partilhar os sofrimentos de Cristo.Paulo acreditava que seus sofrimentos* com-pletavam o que faltava nas tribulações de Cristoem favor da Igreja (Cl 1,24). Não se deve en-tender que isso significava a falta de algumacoisa no sacrifício* reparador de Cristo. Aocontrário, Paulo compartilhava os sofrimentosde Servo-Messias (ver Cristo), visto que tam-bém ele sofreu por amor dos eleitos ao lheslevar o evangelho (cf. 2Tm 2,10).

3.3. A disciplina das tribulações. Um dosfrutos da justificação* é os fiéis se orgulharemnas tribulações (Rm 5,3). Os fiéis não acham atribulação menos dolorosa que os outros, massabem que, sob a boa mão de Deus, ela produza perseverança, a fidelidade provada e a esperan-ça* em Deus* (Rm 5,3-4). Foi quando se deses-

ANGÚSTIAS, TRIBULAÇÕES, PROVAÇÕES

ANGÚSTIAS, TRIBULAÇÕES, PROVAÇÕES

A.p65 28/03/2008, 15:2271

72Aa

perou da vida que Paulo aprendeu a não con-fiar em si mesmo, mas em Deus (2Cor 1,8-9).

3.4. Sofrimento e consolação. Durante a lutacom o “espinho na carne”, Paulo foi consoladoquando o Senhor lhe disse que o poder de Cristose perfaz na fraqueza* humana (2Cor 12,8-9).Paulo veio a entender que uma das razões pelasquais ele sofria era para que, assim como Deuso consolava em suas tribulações, ele se tornassecapaz de consolar os outros (2Cor 1,3-7).

Ver também APÓSTOLO; CRUZ, TEOLOGIA DA;CURA, DOENÇA; ADVERSÁRIOS DE PAULO; PODER;SOFRIMENTO; FRAQUEZA.

BIBLIOGRAFIA: J. T. Fitzgerald. Cracks in anEarthen Vessel: An Examination of the Catalo-gue of Hardships in the Corinthian Correspon-dence. SBLDS 99, Atlanta, GA, Scholars, 1988;A. Fridrichsen. “Zum Stil des paulinischen Peris-tasenkatalogs. 2 Cor. 11,23ff.”, SO 7, 1928, 25-29; Idem. “Peristasenkatalog und res gestae:Nachtrag zu 2 Cor. 11,23ff.”, SO 8, 1929, 78-82; S. R. Garrett. “The God of this World andthe Affliction of Paul: 2 Cor 4:1-12”. In: Greeks,Romans, and Christians: Essays in Honor ofAbraham J. Malherbe. D. L. Balch et al. (orgs.).Minneapolis, Fortress, 1990, 99-117; E. Kamlah.“Wie beurteilt Paulus sein Leiden?”. ZNW 54,1963, 217-232; C. G. Kruse. “The Price Paid fora Ministry Among Gentiles: Paul’s Persecutionat the Hands of the Jews”. In: Worship, Theolo-gy and Ministry in the Early Church: Essays inHonor of Ralph P. Martin. M. J. Wilkins & T.Paige (orgs.). Sheffield, JSOT, 1992, 260-272;W. Schrage. “Leid, Kreuz und Eschaton: DiePeristasenkataloge als Merkmale paulinischertheologia crucis und Eschatologie”. EvT 34,1974, 141-175.

C. G. KRUSE

ANJOS, ARCANJOSA palavra anjo deriva do grego angelos, pelolatim angelu, e é freqüentemente usada para tra-duzir essa palavra grega, que significa “mensa-geiro”. Na tradução grega do AT (LXX), ange-los traduz a palavra hebraica mal’ak, ou “mensa-geiro”. Angelos e mal’ak podiam ser usadas comreferência a um emissário humano e espiritual.Cada um dos catorze usos de angelos (quase

sempre no plural) nas cartas paulinas parecepresumir ou referir-se a uma comparação comum ser ou seres sobrenaturais bons ou maus.Archangelos ou “arcanjo” (que aparece só umavez em Paulo: 1Ts 4,16) refere-se a um anjo damais alta posição, como o arcanjo Miguel.

1. Os anjos no AT e no judaísmo2. Os anjos em Paulo3. Os anjos e a cristologia

1. Os anjos no AT e no judaísmoEmbora sejam freqüentemente chamadosmal’akîm (“enviados”) no AT, os anjos tambémsão chamados qed∞ßîm (“santos”), benê ’¶lîm

(“filhos de deuses”), benê ( hå) ’el∞hîm (“filhosde Deus”), sebå’ôt (“hostes”), mesåretîm (“minis-tros”) ou, em alguns casos, recebem o título desär (“chefe do exército”, Js 5,14). No AT, osanjos aparecem como mensageiros ou represen-tantes do mundo celeste, quase sempre enviadospelo SENHOR em pessoa. Fazem parte da ordemcriada e servem aos propósitos divinos, ao ajudare realizar importantes transações entre Deuse os homens, mas, principalmente, entre Deus eIsrael. Eles são intermediários da revelação (2Rs1,3), vêm em auxílio de indivíduos (Gn 16,9),associam-se a manifestações do SENHOR (Gn 18;32,1), participam da assembléia celeste (Sl 89,6-9) e formam o exército celeste (Dt 33,2; Zc1,11). Um anjo foi enviado para acompanhar eguiar Israel no deserto (cf. Ex 23,23 e Ex 33,2)e um anjo executa o julgamento contra Jerusa-lém (2Sm 24,16). Em cenários visionários e apo-calípticos, os anjos assumem papéis mais distin-tos como personagens de aparência humana queguiam o profeta em visões e servem de intérpre-tes (Ez 40,3; Zc 1,7-17). Em Daniel, os anjosdesempenham uma variedade de papéis, o maisnotável sendo o do grande arcanjo Mikael, pro-tetor de Israel (Dn 10,13; 12,1).

Parece que o título “anjo do SENHOR” se refe-re a um anjo de posição ou estatura que desem-penha missões especiais para o SENHOR. Tal anjoaparece a Moisés no meio da sarça ardente (Ex3,2), guia Israel para fora do Egito até a TerraPrometida (cf. Js 5,13-15 e Jz 2,1-5) e aparecea Guideon (Jz 6,11) em uma hora de crise.

Textos judaicos fora do AT comprovam umentendimento difundido da natureza e do papel

ANGÚSTIAS, TRIBULAÇÕES, PROVAÇÕES

ANJOS, ARCANJOS

A.p65 28/03/2008, 15:2272

73A a

dos anjos em alguns setores do judaísmo do Se-gundo Templo. Grande parte disso era apenasextensão e desenvolvimento daquilo que seencontrava no AT. Os anjos protegem indivíduos(1Hen 100,5), executam sentenças (1Hen 56,1-8), atuam como escribas celestes (Jub 1,27-29),povoam a corte celeste (1Hen 14,18-24), tomamparte na liturgia celeste (1Hen 61,9-13; 4Q400-407), vêm em auxílio de Israel na guerra (3Mc6,18-21), são diferenciados por posto e nome(1Hen 61,10; 2Hen 20; TLev 3) e guiam visõescelestes e interpretam mistérios (1Hen 17–36).Um notável desenvolvimento novo é a noção deduas forças opostas de poderes angelicais: umaforça de anjos bons conduzida por Deus ou porum arcanjo e uma força de anjos maus conduzi-da por um poder angelical mau conhecido comoSatanás, Mastema ou Belial.

2. Os anjos em Paulo2.1. Os anjos como testemunhas. Em di-

versos casos, os anjos são citados como obser-vadores ou testemunhas de Cristo* ou de fiéis.Em 1Cor 4,9, Paulo compara a situação difícildos verdadeiros apóstolos com a dos coríntios,que, segundo a idéia que faziam da escatologia*concretizada, já eram “reis” (1Cor 4,8). Em con-traste, os verdadeiros apóstolos*, em suas tribu-lações* e sua loucura, foram dados em espetácu-lo ao mundo, aos anjos e aos homens (1Cor 4,9).Neste caso, a natureza dos anjos, boa ou má,não está imediatamente clara. É bem possívelque Paulo coloque, por ironia, os anjos ao ladodos coríntios* escatologicamente completos, queobservam os apóstolos como curiosidade. Mas ofato de serem os anjos relacionados com o “mun-do” (kosmos) e os “homens” (anthr∞poi) sugereque Paulo tinha em mente espíritos hostis.

A passagem 1 Timóteo 3,16 foi identifica-da como fragmento de tradição pré-formada,talvez um hino*, que anuncia uma série de con-trastes entre a vida terrena de Jesus e sua posi-ção exaltada. Os seis versos do hino formamtrês pares de contraste entre as esferas mundanae espiritual (seguindo um padrão a b b a a b).O terceiro verso, “[Cristo] foi contemplado pe-los anjos”, está em harmonia com o segundo eo sexto versos: “[Ele foi] justificado pelo (ou“no”) Espírito”; “[ele foi] exaltado na glória*”.

A nota positiva que soa nesses três versos su-gere que o aparecimento de Cristo diante dosanjos se refere a sua exaltação na presença deanjos de glória que aclamaram honra e louvorao Senhor exaltado, talvez em procissão triun-fal. A idéia de anjos que acompanham Deus eo Cristo exaltado reaparece em 1 Timóteo 5,21,onde Timóteo é exortado “na presença de Deuse de Cristo Jesus, bem como dos anjos eleitos”,a observar as normas da disciplina da Igreja.

Em 1 Coríntios 11,10, Paulo instrui que “amulher deve trazer sobre a cabeça uma marcade autoridade, por causa dos anjos”. O contexto(1Cor 11,2-26) suscita diversas questões exegé-ticas complexas (ver comentários) e exige umaanálise mais ampla (ver Autoridade; Cabeça;Homem e mulher); aqui o enfoque limita-se ànatureza e ao papel dos anjos. Está claro que,para Paulo, a questão é a ordem correta na ado-ração*, em que as mulheres e também os ho-mens oram* e profetizam* (1Cor 11,4-5). A su-gestão que os anjos, como os “filhos de Deus”de Gênesis 6,2, podem ser sexualmente tentadospelas cabeças descobertas das mulheres (o cabe-lo feminino sendo atração sexual) ou que as mu-lheres estariam sujeitas à investida de anjos de-moníacos malignos não tem apoio exegéticoconvincente e presume que a “autoridade” sobrea cabeça da mulher seja uma cobertura de cabe-ça (ver Fee, 490-530). O interesse de Paulo naordem litúrgica sugere que os anjos preocupam-se com a manutenção dessa ordem. Indícios deQumran atestam a crença judaica na presençade anjos “na congregação”, razão pela qual oportador de deficiência física devia ser excluídoda assembléia sectária (1QSa 2,4-10; ver Cadbury,Fitzmyer). Entendimento semelhante pode tersido introduzido em Corinto, com a “autoridade”sobre a cabeça da mulher a fim de satisfazer osrequisitos angelicais para a ordem correta. Maisadiante, em 1 Coríntios 13,1, Paulo refere-se afalar “em línguas, a dos homens e a dos anjos”.Talvez isso aluda ao discurso profético, ou afalar em línguas*, e sugira, mais uma vez, umarelação entre a adoração inspirada pelo Espíritoe a dos anjos.

2.2. Os anjos maus. Está claro que, comoos judeus, os cristãos primitivos pensavam quealguns anjos eram maus. Em Mateus 25,41,

ANJOS, ARCANJOS

ANJOS, ARCANJOS

A.p65 28/03/2008, 15:2273

74Aa

Jesus fala com veemência do “fogo eterno quefoi preparado para o diabo e para seus anjos”,e, embora Paulo não empregue essa linguagemimpressionante, em Romanos 8,38 parece queele inclui realmente anjos entre as forças hostisdo universo que ameaçam separar os fiéis doamor* de Deus* em Cristo. Talvez Paulo tivesseem mente os anjos das esferas inferiores do céuque, segundo alguns, bloqueavam o acesso aDeus, ou talvez ele se referisse aos anjos dasnações (Dt 32,8; Dn 10,13; Sr 17,17; Jub 15,31-32), os quais se acreditava que, como divindadesnacionais, impediam o acesso dos gentios* aoamor redentor de Deus em Cristo. Entretanto,em geral quando fala dos seres angelicais hostisa Cristo e seu povo, Paulo emprega a variedadede nomes associados a “Autoridades e poderes”*(observe archai em Rm 8,38).

Em 2 Coríntios 11,14, Paulo adverte queaté Satanás* se disfarça em anjo de luz. Paulotoma a tradição judaica de Satanás se disfarçan-do (cf. Adão e Eva 9; TJó 6,4) e a aplica a seusadversários em Corinto que se tinham disfarçadode apóstolos. Na verdade, afirma Paulo, eles sãoservos de Satanás (2Cor 11,15). Outro empregometafórico de angelos ocorre em 2 Coríntios12,7, em que Paulo chama o “espinho” que foiposto em sua carne — talvez uma incapacidadeou doença* física — de angelos Satana, um“anjo” ou “ministro” de Satanás.

2.3. Os anjos como inferiores ou obstruçõesà vontade divina. Embora em alguns contextosPaulo tivesse os anjos em alta conta — chegandoa comparar sua calorosa acolhida pelos gálatas àde “um anjo de Deus” (Gl 4,14) —, ele tambémempregou os anjos como contrastes para a insu-perável glória do evangelho de Cristo. Se Paulo“ou um anjo do céu “anunciasse um evangelhodiferente” (Gl 1,8) do que lhes foi anunciadooriginalmente, esse evangelho deveria ser consi-derado anátema. Ou ainda o fato de, como emalgumas tradições judaicas, a lei* ter sido pro-mulgada pelos anjos (Gl 3,19; cf. At 7,53; Hb2,2) e por um mediador coloca-a em contrastecom a obra de Deus em Cristo. Parece que essanoção do papel dos anjos na entrega da lei noSinai se origina da tradução da LXX de Deutero-nômio 33,2 e se encontra na interpretação rabí-nica mais tardia do Salmo 68,18.

A autoridade escatológica dos fiéis é ressal-tada em 1 Coríntios 6,3, onde Paulo faz aos co-ríntios uma pergunta retórica: “Acaso não sabeisque nós julgaremos os anjos? Com maior razãoas questões desta vida!”. O contexto é de desa-venças entre fiéis sendo levadas aos tribunais(ver Ação judicial). Paulo discute desde o papelescatológico maior e a autoridade dos fiéis atéo domínio temporal, mundano do comportamen-to nas relações sociais. Embora não seja certo seos anjos a ser julgados são bons ou maus, a in-terpretação mais provável é que Paulo se referiaao julgamento de poderes do mal (cf. 2Pd 2,4;Jd 6). Nesse caso, Paulo estaria lembrando aoscoríntios que, tendo sido exaltados com Cristo quereina sobre todos os poderes, os fiéis vão desem-penhar um papel no juízo final desses poderes.

Colossenses 2,18 adverte contra os que que-rem persuadir os colossenses da necessidade dehumilhação própria e o “culto dos anjos”(thr¶skeia t∞n angel∞n) [Bíblia Sagrada, tradu-ção da Vulgata por Pe. Matos Soares. São Paulo,Paulinas, 1989]. Essa alusão a “culto dos anjos”tem dois aspectos problemáticos: 1) se o genitivo“dos anjos” deve ser interpretado como geniti-vo objetivo (culto dirigido aos anjos [TEB; BMD])ou subjetivo (culto guiado pelos anjos); e 2) emqualquer um dos casos, qual seria o cenário reli-gioso da prática. A solução exegética deste pro-blema envolve questões mais amplas relaciona-das com o falso ensinamento em Colossas (verColossenses). Se equivalem aos “elementos domundo*” (stoicheia tou kosmou, Cl 2,8.20), osanjos parecem ser poderes que se intrometementre os fiéis e o objeto legítimo de culto, Deusem Cristo. Nesse caso, Paulo adverte contra umensinamento ou prática espiritual que se apóianos anjos a tal ponto que eles são praticamentecultuados — ou um ensinamento que, de fato,defende o culto deles.

Se Paulo fala do culto promovido pelos an-jos (genitivo subjetivo), a imagem é de práticasreligiosas de abstinência e disciplina espiritualque visa alcançar experiências visionárias* nasquais compartilhamos o culto celeste dos anjos(ver Francis). Esse ensinamento assemelha-seao entendimento do culto citado em textos deQumran* nos quais seres humanos participamda liturgia angelical (4Q400-407) ou à tradição

ANJOS, ARCANJOS

ANJOS, ARCANJOS

A.p65 28/03/2008, 15:2274

75A a

visionária esotérica de Merkabah, atestada emtextos judaicos mais tardios, segundo a qualadeptos espirituais entram nos céus até o tro-no de Deus e tomam parte na liturgia celeste(cf. 3 Henoc).

2.4. Os anjos na parusia. Quando fala daparusia de Cristo, Paulo emprega as imagenstradicionais da revelação do Senhor que virá docéu “com os anjos do seu poder num fogo flame-jante” (2Ts 1,7) e “da vinda de nosso SenhorJesus com todos os seus santos” (1Ts 3,13). Ve-mos a idéia de anjos que acompanham o guerrei-ro divino em Zacarias 14,5, em que, no dia doSenhor, ele virá “acompanhado de todos os seussantos” — referência clara ao exército celeste(cf. Dt 33,2; 1Hen 1,9; Jd 14). De modo seme-lhante, em 1 Tessalonicenses 4,16, Paulo falada “voz do arcanjo”, juntamente com o “toque datrombeta de Deus”. Também sugeriram que“aquele que o retém” mencionado em 2Tessaloni-censes 2,6.7 refere-se a uma figura angelical, pos-sivelmente Miguel (cf. Dn 10,13.20, “Mikael”;ver Goulder, 99), que retém o mal, para o bemda pregação do evangelho (Marshall, 199-200).

3. Os anjos e a cristologiaA pesquisa da cristologia* neotestamentária ape-la à angelologia judaica como categoria concei-tual existente de intervenção divina que auxiliavaos cristãos primitivos a se reconciliarem teolo-gicamente com o Cristo exaltado (ver Hurtado).No judaísmo, entendia-se que certos anjos proe-minentes ocupavam uma posição de poder, honrae autoridade sobrepujada apenas por Deus. Elestinham forma humana e eram conhecidos pelosnomes de Gabriel (Dn 8,15-26; 10,2-9; 1Hen9,1; 10,9; 40,9-10), Miguel (Dn 10,13-21; 12,1,Mikael; 1Hen 9,1; 40,9-10; 1QM 17,6-8; 13,10),Rafael (1Hen 10,4; 40,9-10; Tb 12,15), Melqui-sedec (11QMelch; cf. Sl 110,4, Málki-Sédeq) eIahoel (ApAbr 10,3-4; 11,1-4). Esses anjos prin-cipais devem, provavelmente, ser entendidos emcontinuidade com o anjo do Senhor que aparecenas narrativas do Pentateuco (cf. Gn 16,7-14;22,11-18; Ex 14,19-20). A tradição recebeu im-pulso significativo de textos como Ez 1,26-28;8,2-4, onde “a glória do SENHOR” aparece emforma humana, e Daniel 7,9-14; 10,2-9, ondeaparecem “um como Filho de Homem” e anjos

importantes. Em alguns textos judaicos do sé-culo I aproximadamente, esses anjos superioresagem como servos ou agentes de Deus e pare-cem contribuir para uma bifurcação na concep-ção judaica da imagem de Deus. O anjo Iahoelpode ter sido concebido como personificaçãodo nome divino (Fossum) ou a força interiordesse nome (Yahweh e El = Iahoel; cf. Ex 23,20-21) em um ser angelical (Hurtado). Assim,embora seja preciso considerar também outrosfatores, um proveitoso curso de investigação foidescoberto para entender como os cristãos pri-mitivos mantiveram uma continuidade com omonoteísmo judaico e contudo falavam de Jesuse o adoravam como o Filho* de Deus preexis-tente* (ver Deus).

Ver também ELEMENTOS/ESPÍRITOS ELEMEN-TAIS DO MUNDO; DEUS; AUTORIDADES E PODERES;QUMRAN E PAULO; SATANÁS, DIABO.

BIBLIOGRAFIA: H. Bietenhard & P. J. Budd. “An-gel, Messenger, Gabriel, Michael”. NIDNTT 1,101-105; H. Bietenhard. Die himmlische Weltim Urchristentum und Spätjudentum. WUNT 2,Tübingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1951; M.Brauch. Hard Sayings of Paul. Downers Grove,Il, InterVarsity, 1989, 147-153; I. Broer. “êggelow”.EDNT 1, 13-16; H. J. Cadbury. “A Qumran Pa-rallel to Paul”. HTR 51, 1958, 1-2; G. B. Caird.Principalities and Powers: A Study in PaulineTheology. Oxford, Clarendon, 1956; W. Carr. An-gels and Principalities: The Background, Mea-ning and Development of the Pauline Phrasehai archai kai hai exousiai. SNTSMS 42, Cam-bridge University Press, 1981; M. J. Davidson.“Angels”. DJG 8-11; Idem. Angels at Qumran:A Comparative Study of 1 Enoch 1–36, 72-108and Sectarian Writings from Qumran. JSPSup11, Sheffield, Sheffield Academic, 1992; M. Di-belius. Die Geisterwelt im Glauben des Paulus.Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1909; G.D. Fee. The First Epistle to the Corinthians.NICNT, Grand Rapids, Eerdmans, 1987; J. A.Fitzmyer. “A Feature of Qumran Angelology andthe New Testament”. NTS 4, 1957-1958, 48-58;J. E. Fossum. The Name of God and the Angelof the Lord: The Origins of the Idea of Interme-diaries in Gnosticism. WUNT 1,36, Tübingen,J. C. B. Mohr, 1985; F. O. Francis. “Humility

ANJOS, ARCANJOS

ANJOS, ARCANJOS

A.p65 28/03/2008, 15:2275

76Aa

and Angelic Worship in Col 2:18”. In: Conflictat Colossae. F. O. Francis & W. A. Meeks (orgs.).SBLSBS 4, 2. ed., Missoula, MT, Scholars,1975; T. H. Gaster. “Angel”. IDB 1, 128-134; M.D. Goulder. “Silas in Thessalonica”. JSNT 48,1992, 87-106; W. Grundmann, G. von Rad,G. Kittel. “êggelow ktl”. TDNT 1, 74-87; L.W. Hurtado. One God, One Lord: Early Chris-tian Devotion and Ancient Jewish Monotheism.Philadelphia, Fortress, 1988; H. B. Kuhn. “TheAngelology of the Non-Canonical Jewish Apo-calypses”. JBL 67, 1948, 217-232; I. H. Mar-shall. 1 and 2 Thessalonians. NCB, Grand Ra-pids, Eerdmans, 1983; J. Michl. “Angel”. EBT1, 20-28; E. T. Mullen. The Assembly of theGods: The Divine Council in Canaanite andEarly Hebrew Literature. HSM 24, Chico, CA,Scholars, 1980; C. A. Newsom & D. F. Watson.“Angels”. ABD 1, 248-255; C. Rowland. TheOpen Heaven: A Study of Apocalyptic in Ju-daism and Early Christianity. New York, Cros-sroad, 1982; D. S. Russell. The Method andMessage of Jewish Apocalyptic. Philadelphia,Westminster, 1964.

D. G. REID

ANOS. Ver DIAS SANTOS.

ANTAGONISTA ESCATOLÓGICO. VerAPOCALIPTISMO; ESCATOLOGIA; HOMEM DA IMPIE-DADE E PODER RESTRINGENTE.

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, OEmbora muitos judeus do século I consideras-sem o Evangelho* cristão antitético à fé queprofessavam, Paulo via a mensagem que trans-mitia como o cumprimento das promessas deDeus a Israel*. Por isso, suas cartas estão reple-tas de referências veterotestamentárias empre-gadas para esclarecer e defender o Evangelho.Sem sombra de dúvida, esse aspecto tem impor-tância decisiva para entender o ensinamento pau-lino, mas também levanta muitas questões. Àsvezes, encontramos problemas textuais, causa-dos em parte pelo fato de Paulo, que escrevia emgrego, fazer naturalmente uso da Septuaginta(LXX) e essa tradução nem sempre correspon-der com exatidão ao texto hebraico. Além disso,sua exegese de algumas passagens veterotesta-

mentárias é enigmática para o leitor moderno:podemos seguir esse padrão em nossa interpre-tação da Bíblia? De mais a mais, o empregopaulino da Escritura tem profundas implicaçõesteológicas, que em toda a história do cristianis-mo têm causado acalorados debates, como osconflitos da Igreja com Marcião no século II,os debates quinhentistas entre os protestantes arespeito da validade contínua da Lei* vetero-testamentária, as divergências mais recentes en-tre teólogos da aliança e da dispensação etc. Esteartigo procura fazer uma análise dos dados tex-tuais e esclarecer os princípios paulinos de inter-pretação bíblica.

1. Citações explícitas2. Alusões3. Paulo e a exegese judaica4. A interpretação bíblica nos escritos

paulinos

1. Citações explícitasAs discussões a respeito do emprego paulinodo AT concentram-se principalmente — emcertos casos exclusivamente — nas citações ex-plícitas por parte do apóstolo. Embora com-preensível, essa abordagem é enganosa. Comosalientaremos abaixo, é possível que determi-nada citação, embora explícita e literal, desem-penhe um papel apenas ilustrativo e, por isso,não nos diga muito a respeito das concepçõesfundamentais paulinas. Reciprocamente, semconter nenhuma citação evidente, alguns dosargumentos do apóstolo refletem um discerni-mento muito profundo e dependência de temasveterotestamentários. Entretanto, apesar dessasadvertências, há certa utilidade e conveniênciaem empregar citações explícitas como pontode partida para estudos adicionais.

1.1. Os dados. Devemos começar relacio-nando as passagens geralmente reconhecidas co-mo citações do AT. Infelizmente, não há unani-midade entre os pesquisadores, em especialquando procuram distinguir citações de alusões.O quadro anexo de citações veterotestamentáriasem Paulo, baseado principalmente na obra deMichel, Ellis e Koch, tem a intenção de ser omais abrangente possível. Se dois desses estu-diosos concordam quanto a uma referência, essareferência é incluída. Além disso, a meia dúzia

ANJOS, ARCANJOS

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2276

77A a

de citações encontradas em Efésios e nas Pasto-rais, embora excluídas por Michel e Koch (o se-gundo também exclui as de 2Cor 6,16-18), estãoincluídas aqui; os estudiosos que não reconhe-cem essas cartas como autenticamente paulinaspodem eliminá-las com bastante facilidade.

Em vez de apresentar os dados de formanatural, procuramos agrupar as citações em ca-tegorias úteis. O primeiro grupo consiste empassagens sem dificuldades textuais significa-tivas. Nesses casos, em geral a LXX traduz otexto hebraico de maneira confiável e razoavel-mente “literal” e, por sua vez, a citação paulinaestá de acordo com a tradução da LXX emtodas as questões essenciais.

Entretanto, em muitas passagens o massor.e a LXX dão interpretações diferentes. (Pelomenos três fatores, individualmente ou combina-dos, justificam as diferenças: tradução livre, tra-dução incorreta e o uso pelos tradutores de mss.que divergiam em alguns pontos daquilo quemais tarde se tornaria o massor.) Essas passagenspodem se subdividir ainda mais com base naconcordância paulina com um ou outro. Assim,o segundo grupo abaixo consiste em um punha-do de casos nos quais Paulo concorda com ohebraico (i.e., o massor.) em vez de com a LXX.Com mais freqüência, Paulo segue a LXX emvez do hebraico, como demonstram as passagensrelacionadas sob a terceira categoria.

Citações veterotestamentárias em PauloNota: Todas as referências estão de acordo com os números de capítulos e versículos da TEB.

29) 1Cor 15,32 Is 22,1330) 1Cor 15,45 Gn 2,731) 2Cor 4,13 Sl 116,10 (LXX 115,1)32) 2Cor 6,2 Is 49,833) 2Cor 6,16 Lv 26,12 (cf. Ez 27,37)34) 2Cor 6,17 Is 52,11 + Ez 20,3435) 2Cor 8,15 Ex 16,1836) 2Cor 9,9 Sl 112,937) Gl 3,8 Gn 12,3 + 18,1838) Gl 3,12 Lv 18,539) Gl 3,16 Gn 13,15 (cf. Gn 12,7;

17,7; 22,18)40) Gl 4,30 Gn 21,1041) Gl 5,14 Lv 19,1842) 1Tm 5,18a Dt 25,4

2. Paulo = massor. ≠ LXX43) Rm 1,17 Hab 2,444) Rm 11,4 1Rs 19,1845) Rm 11,35 Jó 41,346) Rm 12,19 Dt 32,3547) 1Cor 3,19 Jó 5,1348) Gl 3,11 Hab 2,449) 2Tm 2,19a Nm 16,5

3. Paulo = LXX ≠ massor.50) Rm 2,24 Is 52,551) Rm 3,14 Sl 10,7 (LXX 9,28)52) Rm 4,3 (9,22) Gn 15,6

1. Paulo = LXX = massor.1) Rm 2,6 Sl 62,132) Rm 3,4 Sl 51,63) Rm 3,13a Sl 5,104) Rm 3,13b Sl 140,45) Rm 3,18 Sl 36,26) Rm 4,17 Gn 17,57) Rm 4,18 Gn 15,58) Rm 7,7 Ex 20,17 (= Dt 5,21)9) Rm 8,36 Sl 44,23

10) Rm 9,7 Gn 21,1211) Rm 9,12 Gn 25,2312) Rm 9,13 Ml 1,2-313) Rm 9,15 Ex 33,1914) Rm 9,26 Os 2,115) Rm 10,5 Lv 18,516) Rm 10,13 Jl 3,517) Rm 10,19 Dt 32,2118) Rm 13,9a Dt 5,17-21 (cf. Ex 20,13-17)19) Rm 13,9b Lv 19,1820) Rm 15,3 Sl 69,1021) Rm 15,9 Sl 18,50 (cf. 2Sm 22,50)22) Rm 15,11 Sl 117,123) Rm 15,21 Is 52,1524) 1Cor 3,20 Sl 94,1125) 1Cor 5,13 Dt 17,7 et al.26) 1Cor 10,7 Ex 32,627) 1Cor 10,26 Sl 24,128) 1Cor 15,27 Sl 8,7

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2277

78Aa

53) Rm 4,7-8 Sl 32,1-254) Rm 9,29 Is 1,955) Rm 10,16 Is 53,156) Rm 10,18 Sl 19,557) Rm 10,20-21 Is 65,1-258) Rm 11,34 Is 40,1359) Rm 12,20 Pr 25,21-2260) Rm 14,11 Is 45,23 (+ 49,18?)61) Rm 15,10 Dt 32,4362) Rm 15,12 Is 11,1063) 1Cor 6,16 Gn 2,2464) 2Cor 13,1 Dt 19,1565) Gl 3,6 Gn 15,666) Gl 4,27 Is 54,1

4. Paul ≠ LXX ≠ massor.67) Rm 3,10-12 Sl 14,1-3 (cf. Sl 53,2-4)68) Rm 3,15-17 Is 59,7-869) Rm 9,9 Gn 18,10.1470) Rm 9,17 Ex 9,1671) Rm 9,25 Os 2,2572) Rm 9,27-28 Is 10,22-23 (+ Os 2,1?)73) Rm 9,33 Is 8,14 + 28,1674) Rm 10,6-8 Dt 9,4 + 30,12-14

(cf Sl 107,26)75) Rm 10,11 Is 28,1676) Rm 10,15 Is 52,777) Rm 11,3 1Rs 19,10 (cf. v. 14)78) Rm 11,8 Dt 29,4 (+ Is 29,10)79) Rm 11,9-10 Sl 69,23-2480) Rm 11,26-27a Is 59,20-2181) Rm 11,27b Is 27,9

82) 1Cor 1,19 Is 29,1483) 1Cor 1,31 Jr 9,22-2384) 1Cor 2,16 Is 40,1385) 1Cor 9,9 Dt 25,486) 1Cor 14,21 Is 28,11-1287) 1Cor 15,54 Is 25,888) 1Cor 15,55 Os 13,1489) 2Cor 3,16 Ex 34,3490) 2Cor 6,18 2Sm 7,14 (+ v. 8; cf. 1Cr 17,13)91) 2Cor 9,7 Pr 22,8 (somente na LXX)92) 2Cor 10,17 Jr 9,2293) Gl 3,10 Dt 27,2694) Gl 3,13 Dt 21,2395) Ef 4,8 Sl 68,1996) Ef 5,31 Gn 2,2497) Ef 6,2-3 Ex 20,12 (cf. Dt 5,16)

5. Contestadas98) Rm 3,20 Sl 143,299) Rm 9,20 Is 29,16 (45,9)

100) Rm 11,1-2 Sl 94,14101) Rm 12,16-17 Pr 3,7102) 1Cor 2,9 (Is 64,4 + 65,16?)103) 1Cor 15,25 Sl 110,1104) 2Cor 8,21 Pr 3,4105) 2Cor 9,10 Is 55,10 + Os 10,12106) Gl 2,16 Sl 143,2107) 2Tm 2,19b Is 26,13? (+ Sr 35,3?)

[Ellis também menciona 1Tm 5,18b(= Mt 10,10?) por causa da fórmulaintrodutória no início do versículo.]

Duas categorias adicionais completam aslistas. O quarto grupo consiste em passagensnas quais a citação paulina difere do hebraicoe da LXX, quer estes dois concordem ou não.A quinta e última categoria reúne uma série decitações problemáticas, porque a fonte da citaçãoé contestada e/ou porque só um dos três biblistasmencionados acima a considera citação em vezde alusão.

É preciso enfatizar que um forte elementosubjetivo afeta parte das decisões refletidas naslistas, em especial quando é preciso determinarse uma variação é significativa o bastante paraser mencionada como tal. As diferenças entre

Paulo e a LXX são aqui consideradas significa-tivas primordialmente se parecem refletir umadiferente versão grega do AT ou um entendi-mento diferente do hebraico. Do mesmo modo,as variações entre a LXX e o massor. são men-cionadas se a tradução grega sugere uma diver-gência do texto hebraico ou pressupõe um textohebraico diferente do massor. Entretanto, nemtodo mundo aplica esses critérios da mesmamaneira. Por exemplo, 2 Coríntios 13,1, quecita Deuteronômio 19,15, está incluído no ter-ceiro grupo porque Paulo segue a LXX (emoposição ao massor.) ao acrescentar a palavra“toda” (pan), mas poder-se-ia argumentar que

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2278

79A a

tal acréscimo é quase exigido por razões estilís-ticas gregas. Do mesmo modo, nem todos con-cordam que a citação paulina de Habacuc 2,4em Romanos 1,17 e Gálatas 3,11 deve ser colo-cada na segunda categoria (compare Smith, 272).

O fato de, às vezes, uma determinada cita-ção poder ser relacionada sob duas origens dife-rentes complica a análise. Como mencionamosacima, 2 Coríntios 13,1 costuma ser consideradomais próximo da LXX que do massor. por causado acréscimo da palavra grega pan; entretanto,na mesma citação, Paulo — em oposição aomassor. e à LXX — não repete a frase “sob apalavra”. Observe também Romanos 9,17, emque a escolha paulina de um verbo diverge daLXX de uma forma que se aproxima do hebraicode Êxodo 9,16; ao mesmo tempo, Paulo aceitaa frase en soi, “em ti”, acrescentada pela LXX.É compreensível que esta passagem tenha sidoincluída na quarta categoria; contudo, pode serdesorientador sugerir que a citação paulina nãoconcorda nem com o massor. nem com a LXX.

Entretanto, apesar desses problemas, as cate-gorizações aproximadas do quadro anexo devemse mostrar suficientemente confiáveis para for-mar uma visão ampla dos dados relevantes.

1.2. Problemas textuais. Mais que qualqueroutra coisa, esse material revela que as citaçõespaulinas do AT não seguem um padrão simples.Com certeza, o apóstolo não sente em todas asocasiões nenhuma compulsão de reproduzir exa-tamente os textos. Por outro lado, é um erro infe-rir que ele não dava importância a detalhes: quan-do apropriado ou necessário, ele se concentravana redação textual, em apoio de seu ensinamento(o melhor exemplo conhecido é sua ênfase nosingular da palavra “descendência” em Gl 3,16).

Também encontramos falta de uniformidadea respeito da fonte textual paulina. Sua dependên-cia da tradução grega comum em seu tempo estáclaramente estabelecida, mas há boas razões parapensar que ele estava familiarizado com o textohebraico original e que este, pelo menos em al-guns casos, determinou a maneira como ele usouo AT. Infelizmente, essa questão geral se confundecom os problemas técnicos de transmissão tex-tual. Naturalmente, os tradutores da LXX usarammss. hebraicos produzidos em sua época (doisou três séculos antes de Cristo), quando a situação

textual era um tanto instável; entretanto, o textohebraico estava mais padronizado e só alguns sé-culos mais tarde surgiu a forma específica defini-tiva que temos disponível (o massor.).

Tais mudanças na tradição textual hebraicajustificam algumas das diferenças nas listas aci-ma? Pode-se afirmar, por exemplo, que oacréscimo das palavras pas anthr∞pos (“todoaquele”) em Deuteronômio 27,26 LXX = Gála-tas 3,10 reflete um texto hebraico que continhaa frase correspondente e que esse texto foi usa-do pelos tradutores da LXX como Vorlage (cópiaoriginal). Na verdade, os mss. bíblicos hebraicosencontrados em Qumran e outras regiões dodeserto da Judéia confirmam que traduções pe-culiares da LXX refletem ocasionalmente umVorlage hebraico diferente do massor. Todavia,muitas discrepâncias entre o massor. e a LXXoriginam-se de outros fatores (como o métodode trabalho dos tradutores, sua exegese, seu es-tilo etc.). Em todo caso, não há nenhuma provaindisputável de que as diferenças nas passagenscitadas por Paulo resultaram da falta de unifor-midade entre os mss. hebraicos.

Para complicar ainda mais as coisas, o pró-prio texto grego veterotestamentário não era uni-forme. O que (ingenuamente) chamamos Sep-tuaginta ou LXX é, na verdade, uma coletâneade várias traduções feitas em ocasiões diferentespor pessoas diferentes que tinham habilidadesdivergentes e abordagens diversas. Além disso,revisões importantes e até mesmo novas tradu-ções gregas concorrentes influenciaram as sub-seqüentes traduções do texto. Conseqüentemen-te, é um desafio determinar qual foi a verdadeiraforma do chamado “grego antigo” e, assim, seessa foi a forma usada por Paulo. Por exemplo,no final de Romanos 9,33, Paulo cita a LXX deIsaías 28,16: “quem crer nele não será confun-dido”. A palavra “nele” não aparece no massor.;entretanto, também falta em um importante ms.grego, o Códice Vaticano (B). Nesse caso e, emgeral, quando há indícios de tradições concor-rentes, a redação paulina se adapta ao texto gre-go “padrão” e provavelmente original, que, nolivro de Isaías, está mais bem representado peloCódice Alexandrino (A).

Uma vez ou outra, porém, as citações pauli-nas parecem refletir um texto heterogêneo. Ro-

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2279

80Aa

manos 9,27-28 cita Isaías 10,22-23 de uma for-ma muito parecida com o Códice A, mas emvez de theos (“Deus”) Paulo emprega kyrios(“Senhor”), que é a interpretação do CódiceVaticano (B) — todavia, como os nomes divinosalternam-se com facilidade, parece prudente nãodar muito valor a esta variação. Fora de Isaías,as disposições textuais são um tanto diferentes,mas encontramos outros casos nos quais a reda-ção paulina reflete não as mudanças que ele fez,mas uma interpretação diferente. A traduçãogrega original de Deuteronômio 27,26 provavel-mente continha o pronome relativo hostis (cf. aedição do Deuteronômio organizada por J. W.Wevers na Septuaginta de Göttingen), mas quan-do cita essa passagem em Gálatas 3,10 Paulo usao pronome hos, o que também é comprovadoem diversos mss. da LXX.

Esses detalhes técnicos são importantes pelarazão a seguir. Se Paulo cita uma passagem vete-rotestamentária de uma forma que difere do tex-to grego “padrão” mas está comprovada em mss.isolados da LXX, ou uma tradução mais tardia,muitos biblistas explicam a divergência comooriginária não de Paulo, mas de uma tradiçãotextual concorrente (o exemplo mais comum é1Cor 15,54, em que a citação paulina de Is 25,8afasta-se da LXX e concorda com uma versãomais tardia atribuída a Teodocião). No entanto,se a forma textual paulina não está comprovadaem um ms. da LXX, nem em outra versão gre-ga, devemos presumir que o próprio Paulo éresponsável pela mudança? Em 1 Coríntios 3,19,em que cita Jó 5,13, Paulo se afasta da LXX devárias maneiras que aproximam o texto um pou-co mais do massor. Como nenhum ms. da LXXpreserva a tradução que Paulo usou, com fre-qüência se presume ser Paulo o responsável porela. Talvez. Porém é interessante mencionar queum dos aspectos dessa tradução (o emprego depanourgia, “astúcia”, para o hebr. ‘ormåh) levoualguns biblistas a afirmar que Paulo tinha à dis-posição uma versão concorrente e a usou (a tra-dução atribuída a Símaco, que reflete uma tradi-ção mais primitiva, usou a mesma redação emPr 8,12). Essa opção não pode ser descartada.

Uma última questão complexa é a variaçãotextual nas cartas paulinas em si (ver Críticatextual). Por exemplo, em 1 Coríntios 9,9 Paulo

cita Deuteronômio 25,4, mas o verbo que ele usapara “amordaçar” é k¶mo∞, enquanto a LXXusa phimo∞. Acontece que na grande maioria demss. neotestamentários, inclusive em P46 _ A,também está phimo∞. Como os escribas natural-mente ajustavam a citação no NT ao texto vete-rotestamentário grego com o qual estavam fami-liarizados, os críticos textuais modernos julgam,com razão, que k¶mo∞ é a leitura original de 1Coríntios 9,9, embora se encontre apenas em umpunhado de mss. (inclusive no Códice B; aliás,observe-se que o mesmo versículo veterotesta-mentário é citado em 1Tm 5,18, mas ali a leituraoriginal é quase certamente phimo∞).

1.3. Significado exegético. Quando a cita-ção paulina diferencia-se da LXX ou do massor.(ou de ambos), a razão não precisa ser signifi-cativa. Às vezes nos referimos a uma passagemsem citá-la com exatidão, e o mesmo fazia Pau-lo. Por exemplo: “Jesus disse que não podemosfazer nada sem ele” é referência confiável a João15,5, embora a citação exata seja: “separados demim, nada podeis fazer”. A diferença nos prono-mes pessoais (“mim” se transforma em “ele”;“vós” se transforma em “nós”) deve-se ao pró-prio caráter de uma citação indireta, enquanto asoutras mudanças (a ordem das palavras; a dife-rença entre “nada” e “não... nada”) não têm opropósito de comunicar algo especial — nemsubentendem que quem fala considera as palavrasreais sem importância. Do mesmo modo, muitasdas citações paulinas pertencem a essa categoria(cf. Rm 3,15-17 = Is 59,7-8). Em suma, o sim-ples fato de conterem diferenças verbais não éuma pista para a hermenêutica paulina.

Mas há também muitas outras citações nasquais diferenças verbais têm realmente significa-do exegético. Exemplo bem interessante é 1 Co-ríntios 2,16, em que Paulo cita a LXX de Isaías40,13a: “quem conheceu o pensamento [nous]do Senhor para o instruir?”, embora o texto he-braico tenha a palavra “espírito” (hebr. rûa&) emvez de “pensamento”. Talvez a versão do tradu-tor da LXX possa ser defendida como tentativade esclarecer o sentido do original. Mas, nãoimporta o que pensemos da técnica do tradutor,se quisesse, Paulo poderia com certeza mudar ogrego nous, “pensamento”, para pneuma, “espí-rito”. Sua escolha foi provavelmente intencional

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2280

81A a

e nos dá importante discernimento de seu usoda Escritura, a saber, o papel desempenhado pelaLXX na reflexão teológica paulina.

Na verdade, 1 Coríntios 2 concentra-se noEspírito (ver Espírito Santo) como aquele quenos possibilita conhecer Deus* (ver, em espe-cial, 1Cor 2,11). Quando chega ao fim dessaanálise, Paulo recorre a Isaías 40,13 e concluicom a declaração: “nós temos o pensamentode Cristo”. Aqui o uso da palavra “pensamen-to” liga esse último comentário com a citaçãoda LXX, mas o original hebraico e também ocontexto da análise paulina de modo mais geraldeixam claro que o que apóstolo quer dizer é:“Temos o Espírito de Cristo e, portanto, real-mente conhecemos Cristo”. Será, então, que atradução interpretativa da LXX tornou-se, elamesma, fonte para o desenvolvimento do ensi-namento paulino?

No entanto, os indícios para entender o usopaulino da Escritura vão muito além de simplesmudanças verbais. Muitas passagens que con-têm citações literais refletem importantes prin-cípios interpretativos. Reciprocamente, passa-gens que nem mesmo contêm uma citação ex-plícita revelam, de modo especial, a exegesepaulina. Por isso, antes de analisar as questõeshermenêuticas mais amplas, precisamos exami-nar as alusões paulinas ao AT.

2. AlusõesComo já sugerimos, a diferença entre citação ealusão não é rigorosa e parece que os autoresneotestamentários (que não tinham aspas à dis-posição!) não se preocupavam com o assunto;com certeza não há nada a ganhar com a tentati-va de formular um critério definitivo para decidiressa questão. Além disso, a categoria de “alusão”em si abrange uma ampla série de empregosbíblicos: citações vagas, referências a aconteci-mentos, apelos intencionais a passagens especí-ficas, analogias usadas (talvez inconscientemen-te) para expressar uma idéia diferente, amplastendências ocultas de temas, até mesmo corres-pondências totalmente involuntárias. Como difi-cilmente um parágrafo no corpus paulino deixade refletir a influência do AT na linguagem eno pensamento do apóstolo, uma lista completadessas alusões seria na verdade muito longa; só

em Romanos 9–11, por exemplo, foram identi-ficadas mais de cem citações e alusões (assimHübner, 149-160). Portanto, o modo mais pro-veitoso de analisar o material não é apresentaressa lista, mas sim examinar sucintamente umnúmero seleto e representativo de itens.

Filipenses*, por exemplo, está ausente, demodo conspícuo, da lista de citações explícitas,mas seria um erro grave inferir que essa cartanão revela nenhuma influência veterotestamen-tária. Vemos uma dependência bastante óbvia doAT na forma como Paulo descreve os presentesmonetários que recebeu da Igreja filipense: “per-fume de bom odor, sacrifício aceito e agradávela Deus” (Fl 4,18). Essa linguagem, claro, origi-na-se de várias passagens cerimoniais, comoÊxodo 29,18; além disso, já em Ezequiel 20,41está presente uma mudança simbólica: “Ao mes-mo tempo que o perfume aplacador, eu vos aco-lherei, quando vos fizer sair do meio dos povos”.É preciso entender esse detalhe contra uma es-trutura teológica maior, pois alhures Paulo usalinguagem sacerdotal para descrever o serviçocristão (cf. leitourgia, “serviço”, e palavras rela-cionadas em Fl 2,17.25.30). Com efeito, consi-dera-se o sistema cerimonial de Israel transfor-mado e transferido para a Igreja cristã que rea-liza apropriadamente o significado desse siste-ma. Alguns biblistas chegaram a sugerir quePaulo vê a si mesmo como o sacerdote que, aoservir na Igreja como o verdadeiro Templo deDeus, recebe as oferendas dos cristãos (verApoio financeiro).

Outra alusão bem conhecida está em Fili-penses 2,9-11, em que Paulo declara que o pro-pósito da exaltação* de Cristo é que “ao nomede Jesus todo joelho se dobre... e toda línguaconfesse que Jesus Cristo é Senhor”. Em Isaías45,23, depois de afirmar reiteradamente suaunicidade e sua singularidade, Deus acrescenta:“Por mim mesmo, jurei... Diante de mim todojoelho se dobrará e toda língua prestará jura-mento” (a LXX traduz o último verbo com omesmo verbo usado por Paulo, exomolog¶setai,“confesse”). Embora não seja uma citação explí-cita nem precisa, este uso de Isaías é especial-mente significativo por causa de suas profundasimplicações para a concepção paulina de Cristo*(isso é verdade quer o chamado hino* de Cristo

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2281

82Aa

tenha ou não tenha sido composto original-mente por Paulo).

A atenção rigorosa à LXX revela outrasalusões interessantes ao AT em Filipenses.Alguns versículos adiante, Paulo aborda o pro-blema de murmurações e queixas (Fl 2,14),tema que lembra a experiência dos israelitasno deserto. Esse comentário leva-o a falar dosfilipenses como “filhos de Deus sem manchano meio de uma geração transviada e perverti-da” (Fl 2,15), frase que reproduz meia dúzia depalavras de Deuteronômio 32,5 (LXX). Comoa passagem veterotestamentária (exegeticamen-te difícil) fala dos israelitas como povo trans-viado e pervertido e, assim, que não é filho deDeus, Paulo faz aqui uma estimulante mudançarepentina e talvez irônica na frase do Deutero-nômio: são os cristãos gentios de Filipos, nãoos judeus incrédulos, que podem ser conside-rados filhos de Deus e, portanto, os filipensesnão precisam ser intimidados pela oposição debase judaica que experimentam (cf. Fl 3,1-3;ver Adversários).

Outra alusão que deixamos facilmente denotar, a não ser que consultemos especificamen-te o texto da LXX, está em Filipenses 1,19: “seique isto resultará na minha salvação”. Aqui ogrego é touto moi apob¶setai eis s∞t¶rian (lite-ralmente, “isto levará à salvação para mim”),citação literal de Jó 13,16 (LXX). Mesmo quan-do percebem a notável correspondência verbal,muitos comentaristas parecem não lhe dar im-portância. E, na verdade, é possível que Paulotenha simplesmente — e talvez até inconscien-temente — tomado emprestada a linguagem deJó para expressar uma idéia muito diferente, alibertação da prisão pela qual ele anseia (a liga-ção recebeu a ajuda do paralelo entre os acusa-dores de Jó e os indivíduos que Paulo mencionaem Fl 2,17; cf. Hays, 21-23). Entretanto, há mui-to que dizer, pois a visão que Paulo tem emmente é a questão mais profunda de seu relacio-namento com Deus e, assim, seu destino espi-ritual. Como o contexto de Jó 13,13-18 trataexatamente de questões de importância eterna,o uso paulino dessa passagem é mais que umaalusão casual.

Em outros casos, correspondências verbaisconceituais em vez de estritas sugerem que

Paulo tem em mente uma passagem ou um temaveterotestamentário. Por exemplo, alguns biblis-tas afirmam que a expressão “despojou-se”(heauton eken∞sen, lit. “ele se esvaziou a si mes-mo”), em Filipenses 2,7a, alude a Isaías 53,12,que diz que o Servo* do Senhor “se derramoua si mesmo até a morte”. Já que, como vimos,Paulo definitivamente usa Isaías mais adiantena passagem (Fl 2,10-11) e já que ele se referea Jesus como doulos (“servo”, Fl 2,7b), podebem ser que o tema do Servo sofredor tenhadesempenhado um papel na formulação do hinode Cristo. Entretanto, se é assim, a alusão é umtanto sutil e, por isso, queremos ser cautelosospara não atribuir um sentido exagerado à frase.

Ainda mais sutil é a sugestão de que Filipen-ses 2,12, em que Paulo incentiva os leitores acontinuarem a ser obedientes quer ele esteja ounão presente, é alusão às palavras de Moisés*em Deuteronômio 31,27: “se hoje, então, en-quanto estou vivo em vosso meio, vos revoltastescontra o Senhor, que acontecerá depois de minhamorte?”. Três versículos adiante, como já men-cionamos, Paulo com certeza alude a uma decla-ração no contexto restrito da exclamação deMoisés (Dt 32,5); além disso, em Filipenses 2,17Paulo parece pensar em sua própria morte. Apossibilidade de Deuteronômio 31,27 ter influen-ciado o que o apóstolo escreveu dificilmente po-de ser excluída, mas é difícil determinar se a alu-são foi consciente e, nesse caso, quanta impor-tância lhe deve ser atribuída.

Uma razão para se concentrar em Filipenses(e há talvez outra meia dúzia de alusões nãomencionadas acima) é mostrar que mesmo umacarta sem nenhuma citação no sentido usual re-flete a grande dependência paulina do AT. No ca-so de cartas que incluem citações, em geral osleitores se concentram nelas, a ponto de excluiros meios menos óbvios em que Paulo usa a Escri-tura. Um bom exemplo é 2 Coríntios. Em 2 Co-ríntios 4,13, Paulo cita o Salmo 116,10 (LXX,115,1): “Eu cri, e por isso falei”, em apoio de suaatitude para com o ministério apostólico. Entre-tanto, o que os comentaristas não costumam no-tar é que nesse salmo há diversas referências àhumilhação e à morte, temas recorrentes em 2Coríntios; que o Salmo 118, que também tem re-ferências à morte, fala de tribulações* (Sl 118,5),

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2282

83A a

do poder* de Deus (Sl 118,15-16, LXX dyna-mis; cf. 2Cor 6,7) e de disciplina (Sl 118,18,LXX epaideusan; cf. 2Cor 6,9); e que há outrosparalelos superficiais em salmos próximos. Di-versas alusões importantes a outras partes daEscritura também estão presentes em 2 Corín-tios. Quando relaciona seu ministério com osproblemas de Corinto, Paulo mostra “que ‘vivena Bíblia’ até o ponto em que a Bíblia formatoda a sua perspectiva a respeito de como o mun-do é e qual é seu lugar nele. Os que supõem in-fundadamente que a Escritura só é importantequando Paulo a usa em argumentos em Gálatas eRomanos têm uma visão superficial da situação”(Young & Ford, 63, embora nem todos os parale-los mencionados em 64-68 sejam convincentes).

3. Paulo e a exegese judaicaComo judeu educado e religioso do século I,naturalmente Paulo estava familiarizado com asérie de princípios e técnicas que seus contempo-râneos empregavam (ver Paulo, o judeu). Tam-bém vimos que ele recorreu à tradição interpre-tativa preservada na LXX. É também razoávelpensar que Paulo aprendeu com a tradição targú-mica, isto é, as traduções interpretativas aramai-cas da Bíblia hebraica que faziam parte da litur-gia da sinagoga (é controverso se ele teve acessoa targum escritos). O exemplo mais convincentede influência targúmica encontra-se em uma dascartas contestadas, Efésios 4,8 (= Sl 68,18), queusa o verbo “deu” como no targum, embora omassor. e a LXX tragam “tomaste” (ver os co-mentários). Alguns biblistas também tentaramexplicar o uso paulino de Deuteronômio 30,12-14 em Romanos 10,6-8 recorrendo a uma tra-dição targúmica, mas mesmo esse caso é dis-cutível. De qualquer modo, as versões antigasnão contêm reflexão exegética explícita (exce-to, talvez, por algumas das extensas glosas dostargum palestinenses) e, por isso, voltamo-nospara outras fontes.

3.1. Exegese alexandrina. Os judeus queviviam na diáspora tinham com freqüência a du-pla tarefa de enfrentar a cultura pagã e se adaptara ela; a sobrevivência exigia aprender a não com-prometer a própria fé nem rejeitar totalmente opensamento grego. Esse desafio, claro, influen-ciava o uso que faziam da Escritura. A própria

existência da LXX (documento grego) comprovaesse fato. Além do mais, as correntes filosóficasexerciam influência no autoconhecimento do ju-daísmo helenístico. Acontece que um elementoimportante na filosofia grega era a necessidade dereinterpretar as antigas narrativas homéricas (àsvezes a Ilíada é mencionada como a Bíblia dosgregos) à luz de mudanças culturais. Os estóicos,em especial, ofendidos por alguns elementosnessas narrativas, recorreram à alegorização:Homero foi salvo pela interpretação não-literal.

Os pensadores judeu-helenísticos, princi-palmente os de Alexandria, tomaram de em-préstimo a abordagem alegórica. O mais bemconhecido entre eles era Fílon (c. 13 a.C.-45d.C.), que usou esse método como um meio desintetizar o pensamento hebraico e grego. Éimpossível comprovar ou contestar se Paulo es-tava familiarizado com a obra de Fílon, masforam feitas tentativas para demonstrar uma li-gação entre eles. As passagens de Paulo quealguns consideram alegóricas incluem 1 Corín-tios 9,9 (em que ele aplica aos operários cristãoso princípio de não amordaçar o boi), 1 Coríntios10,3 (que identifica com Cristo o rochedo dodeserto), 2 Coríntios 3,12-16 (na qual o véu so-bre o rosto de Moisés aplica-se à incredulidadejudaica) e, em especial, a analogia de Sara eHagar em Gálatas 4,21-31.

Essa última passagem contém realmente overbo grego all¶gore∞ (Gl 4,24), aspecto que al-guns consideram conclusivo, mas essa palavraera usada com bastante amplitude e é difícil pres-supor que Paulo a usou no sentido um tanto técni-co no qual a palavra alegoria é empregada comfreqüência hoje. O apóstolo não tira a historicida-de da narrativa do Gênesis — pelo contrário, elepresume com clareza o caráter histórico dessanarrativa —, nem busca integrar a narrativa emum esquema filosófico, os dois aspectos que maisclaramente distinguem a interpretação de Fílon.De fato, até um conhecimento superficial domodo exegético usual de Fílon realça suas dife-renças, não suas semelhanças, com a hermenêu-tica paulina. As tentativas de encontrar uma liga-ção orgânica entre o uso paulino da Escritura e aexegese alexandrina não têm sido persuasivas.

3.2. Exegese de Qumran. A descoberta dosManuscritos do mar Morto no fim da década

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2283

84Aa

de 1940 e as descobertas subseqüentes em ou-tras partes do deserto da Judéia influenciarambastante nosso entendimento da vida e do pen-samento judaico no século I (ver Qumran ePaulo). Embora o NT não faça nenhuma refe-rência direta aos grupos religiosos que produzi-ram essa literatura, é razoável presumirmos queos cristãos primitivos tinham algum conheci-mento das idéias defendidas por essas seitas.Alguns biblistas chegaram a afirmar, emboranão com sucesso, a existência de uma relaçãorelativamente estreita entre o cristianismo eQumran. (Conforme uma teoria, o “Damasco”para onde Paulo foi depois de sua conversãonão era outro senão Qumran!)

Essa questão é particularmente relevantepara este artigo, porque a interpretação bíblicaé muito comum nos Manuscritos do mar Mortoe é, de fato, um dos aspectos mais interessantes ecaracterísticos do pensamento de Qumran. O as-pecto mais óbvio comum a Qumran e a Paulo éo uso de certas expressões para introduzir cita-ções explícitas do AT, em especial a fórmula“como está escrito” (em várias construções). Emum nível mais atual, Fitzmyer lembra queQumran e o NT, ao contrário da exegese alexan-drina, usam o AT de um modo geralmente —mas não estritamente — literal; que ambos mui-tas vezes “modernizam” o texto veterotestamen-tário, aplicando seu sentido geral a uma situaçãocontemporânea (às vezes chegando a “adaptar”o texto, desvirtuando, na opinião de Fitzmyer,seu contexto original); e que ambos fazem usoda exegese “escatológica”, identificando os “úl-timos dias” de certas passagens veterotestamen-tárias com as expectativas das comunidades res-pectivas. Entretanto, Fitzmyer conclui que taissemelhanças “só afetam o contorno de suas teo-logias. Os dois dependem do Antigo Testamento,mas ambos têm certas pressuposições, à luz dasquais interpretam o Antigo Testamento. São es-sas pressuposições que diferenciam os dois gru-pos, apesar das semelhanças nos procedimentosexegéticos” (Fitzmyer, 332).

A exegese escatológica de Qumran é evi-dente principalmente nos pesharim, que co-mentam o texto bíblico mais ou menos “versí-culo por versículo”. Depois de citar uma partedo texto, os comentários são introduzidos com

a fórmula: “sua interpretação é” (pißrô, ou umaexpressão comparável). A palavra para “inter-pretação” é, de fato, pesher (p¶ßer) e o comen-tário normalmente consiste em identificar aspalavras dos profetas veterotestamentários comum acontecimento contemporâneo.

Sem dúvida há um forte paralelo entre essaabordagem e a convicção dos autores neotes-tamentários, inclusive Paulo, de que a vinda deJesus Cristo devia ser entendida como o cumpri-mento das profecias veterotestamentárias. As duascomunidades tinham um sentido elevado deexpectativa baseada nas promessas de Deus a Is-rael*, e essa disposição de ânimo comum escla-rece o uso que elas fazem da Escritura. Mas oscontrastes são fundamentais. Com exceção dofato óbvio, porém crucial, de os acontecimentosque eles identificaram como o cumprimento dasprofecias serem completamente diferentes, ou-tros fatores se destacam. As cartas de Paulo, porexemplo, não incluem interpretações ininter-ruptas, versículo por versículo, do Antigo Testa-mento, abordagem de Qumran que levou a adap-tações altamente arbitrárias. E, o que é mais im-portante, o apóstolo partilhava com os outros au-tores neotestamentários a crença de que a morte*e ressurreição* de Jesus constituía a manifestaçãodo Reino* de Deus, enquanto a comunidade deQumran estava muito mais preocupada com alibertação que ainda estava por vir. Embora opensamento paulino com certeza inclua um fortesentimento de expectativa (cf. Rm 8,18-25), suaperspectiva dominante é a convicção de que omundo futuro já está presente (cf. 1Cor 10,11).

3.3. Exegese rabínica. Se a obra de Fílonestava geográfica e conceptualmente distan-te do judaísmo palestinense e se os ensina-mentos de Qumran (e outros grupos sectários)estavam um tanto afastados do pensamentojudaico da “corrente principal”, podemos en-contrar um campo de estudos mais proveitosonos materiais rabínicos? Na suposição de quedocumentos como o Talmude (o repertóriobásico do folclore e do direito judaicos, queinclui a Mixná) e os midrashim (explanaçõesrabínicas da Escritura) dão uma imagem exatado farisaísmo do século I, muitos biblistastraçam, de fato, notáveis paralelos entre a exe-gese paulina e a rabínica e até afirmam que,

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2284

85A a

em alguns aspectos importantes, o apóstolorecorreu a ela.

Formalmente, as citações rabínicas de tex-tos veterotestamentários são introduzidas, comoem Qumran e Paulo, com uma fórmula oficial,embora as expressões exatas sejam muitas vezesum pouco diferentes (e.g., os rabinos preferemformas do verbo “dizer” em vez “escrever”). Maisuma vez, os biblistas descobriram uma seme-lhança entre a ocasional série paulina de cita-ções (e.g., Rm 9,25-29, que cita sucessivamenteOs 2,23; 1,10; Is 10,22-23; 1,9), que se relacio-nam mutuamente pelo uso de palavras signifi-cativas e um método rabínico conhecido como&åraz (“esticar”, figurativamente “traçar pa-ralelos entre passagens”). Outro aspecto pos-sível é a estruturação paulina de textos-mais-explicação de uma forma que lembra algunscomentários rabínicos (mais tardios) que caemem uma categoria conhecida como Yelamme-denu rabbenu, “Que nosso mestre nos ensine”.Ellis (em Mulder, 708) dá o exemplo possívelde Gálatas 4,21-31, que começa com uma re-ferência geral a um texto básico (Gn 16 e 21);a explicação inclui uma referência secundária(Is 54,1); e a adaptação cita outra passagem(Gn 21,10) que se relaciona com os outros tex-tos verbal e conceitualmente. Foram sugeridasoutras técnicas literárias.

Além de mencionar características formais,os biblistas dão muita atenção a princípios emétodos exegéticos encontrados na literaturarabínica. Paulo talvez conhecesse um conjuntode regras explícitas atribuídas a Hilel, mestremuito influente que viveu pouco antes do mi-nistério de Jesus. A primeira regra, conhecidacomo qal wå&ômer (“leve e pesado”), estabele-ce uma relação entre duas idéias, uma das quaisé mais significativa que a outra. Essa aborda-gem reflete-se em 2 Coríntios 3,7-11, em quePaulo traça um contraste entre a lei* mosaicae o Evangelho, afirmando que se a primeira,ministério de morte, era gloriosa então deve-mos esperar que o ministério do Espírito sejaainda mais glorioso.

Outros princípios de exegese, atribuídos arabinos mais tardios, também foram sugeridoscomo paralelos à interpretação paulina. Porexemplo, uma regra formulada claramente pelo

rabino Ismael no século II declara que quandodois textos parecem ser contraditórios podemosrecorrer a um terceiro para resolver a tensão.Ora, em Gálatas 3,11-12, Paulo põe Habacuc2,4 em contraste com Levítico 18,5 (a pessoavive pela fé ou por cumprir as prescrições dalei?), e H. J. Schoeps afirmou que Gênesis 15,6,que Paulo citou antes no contexto, dá a solu-ção (Schoeps, 178-179; divergente, Bonsirven,316-317 com 201). Muitos outros exemplospoderiam ser mencionados.

Apesar dos esforços maciços despendidosnesse campo de estudos, os resultados são am-bíguos. Um obstáculo básico é cronológico: aliteratura rabínica ao nosso alcance remontaapenas ao início do século III, e mesmo a tra-dição oral mais antiga à qual essa literatura serefere desenvolveu-se principalmente depois dadestruição de Jerusalém em 70 d.C. Segundoalguns biblistas, há pouca (se é que há alguma)ligação significativa entre os fariseus do tempode Jesus e a escola rabínica mais tardia quefloresceu no século II e, a partir daí, tornou-seo judaísmo “da corrente principal”. Essa posi-ção com certeza vai longe demais; não há ne-cessidade de um ceticismo extremo a respeitodo valor histórico da literatura rabínica. Contu-do, é necessário haver muita cautela e experi-mentação ao tentar traçar paralelos. Como aantiguidade de declarações rabínicas específi-cas já não pode ser presumida, é preciso apre-sentar razões concretas em apoio do uso dessasdeclarações como prova do pensamento e daprática do século I.

Outro obstáculo sério é a relativa incertezados paralelos mencionados. Por exemplo, no-tamos imediatamente que o argumento qal

wå&ômer reflete simplesmente o princípio ló-gico geral de argumentar a fortiori, técnica pre-sente em uma ampla variedade de culturas emnível popular e também sofisticado. Na verda-de, seríamos forçados a encontrar nos escritospaulinos um exemplo exegético que fosse ca-racteristicamente rabínico, isto é, uma técnicaque não tivesse paralelo em outra parte.

Um termo particularmente ambíguo é oadjetivo que indica a maneira de um midrash,freqüentemente aplicado a várias passagens doNT, como 1 Coríntios 10,1-5 e 2 Coríntios 3,6-16.

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2285

86Aa

O substantivo hebraico midrash (midråß) temsentido muito geral, o que sugere nada maisque nosso termo interpretação; quando escri-to com maiúscula, o termo hebraico tem sen-tido muito específico, a saber, um tipo carac-terístico de literatura rabínica que consiste emuma coletânea de explanações bíblicas (há con-cordância geral de que nenhum livro neotesta-mentário pode ser descrito como um midrashnesse sentido).

Entre esses dois sentidos, midrash costumaser usado como abreviatura de “interpretaçãojudaica característica”, mas o que é exatamentecaracterístico nessa interpretação? Na opiniãode alguns biblistas, é a tendência de embelezaras narrativas; para outros, é a presença de mo-vimentos exegéticos que não se harmonizamcom o método gramático-histórico. Uma defi-nição menos desvantajosa que se tornou am-plamente aceita concentra-se na maneira comoa interpretação judaica descreve o texto — paraos rabinos, a Bíblia era um texto vivo e sua in-terpretação não podia ser separada da prática.É verdade, mas esse enfoque também não ca-racteriza a leitura da Escritura na maioria dascomunidades cristãs? Embora alguns autoresmodernos tomem o cuidado de definir midrashde modo mais preciso e exato, o termo continuaa ser usado por outros de uma forma pejorativaou desleixada, que raramente serve para esclare-cer a exegese paulina.

Na verdade, as numerosas semelhanças en-tre Paulo e os rabinos mais tardios, quando con-sideradas de modo cumulativo, criam a fortesuposição de que o apóstolo reflete realmentea cultura judaica da qual ele faz parte (e que sedesenvolveu no que chamamos judaísmo rabí-nico). A importância desse discernimento nãodeve ser subestimada. A crescente familiarida-de com a interpretação judaica do século I é deajuda inestimável, pelo menos de modo geral,quando procuramos apreciar o uso paulino daEscritura. Mesmo assim, o apelo à literaturarabínica mais tardia continua problemático; seuvalor comprobatório só é indireto e, assim, suafunção limita-se, em grande parte, a usos ilus-trativos, não comprobatórios.

3.4. Outras fontes. Além dos conjuntos deliteratura já considerados, há muitos outros do-

cumentos produzidos durante ou antes do perío-do neotestamentário que esclarecem o uso judai-co da Escritura. Os livros apócrifos e pseudepi-gráficos (alguns dos quais, aliás, estão represen-tados entre as descobertas de Qumran) estãocheios de alusões ao AT. Algumas dessas obrasconsistem em “novas narrações” de históriasbíblicas, muitas vezes com ampliação e embele-zamento consideráveis; pelo menos de modoimplícito, elas revelam certo compromisso her-menêutico. O mesmo é verdade até mesmo deescritos mais conscientemente históricos, comoAntiguidades, de Josefo. (Ver uma análise dainterpretação bíblica nesses documentos noscapítulos relevantes de Mulder.) Embora essasobras fossem examinadas por sua relevânciapara os estudos paulinos a respeito da teologia,menos tem sido feito com respeito à prática exe-gética — o que é surpreendente, em vista deestarem muito próximos cronologicamente dosescritos neotestamentários.

Finalmente, devemos lembrar que, emborajudeu acima de tudo, Paulo teve contato direto econstante com a cultura greco-romana. Com ex-ceção da questão debatida se ele passou a infân-cia em Tarso ou em Jerusalém, ele com certezapregou durante pelo menos uma década na Síriae na Cilícia (Gl 1,18–2,1); seu uso da língua gre-ga e sua óbvia familiaridade com o pensamentogrego da época são outras provas do quanto elefoi influenciado pelo helenismo*. Tem sido dadaconsiderável atenção a paralelos entre o estilopaulino de argumentação e as técnicas retóricasda época, mas uma questão que precisamosabordar é a possível influência da interpretaçãoliterária greco-romana em seu tratamento da Es-critura (em nível formal, cf. Stanley).

4. A interpretação bíblica nos escritos paulinosEste artigo trata dos princípios e métodos pau-linos de interpretação, não do conteúdo realdessa interpretação. Naturalmente, a exegese ea teologia relacionam-se intimamente e, porisso, as linhas divisórias tendem a confundir-se (ver Hermenêutica/Interpretação de Paulo).Contudo, não faremos aqui nenhuma tentativade resumir o ensinamento paulino, já que esseensinamento se origina de seu uso do AT, arespeito dos diversos temas relevantes (para os

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2286

87A a

quais o leitor deve consultar os artigos apro-priados; ver, e.g., Abraão, Adão, Aliança, Cria-ção, Escatologia, Lei, Sabedoria).

4.1. Conceitos fundamentais. Embora, co-mo mencionamos, muitas das citações vetero-testamentárias não sejam verbalmente exatas, éevidente para praticamente todos os estudiososde Paulo que ele considerava a Escritura (h¶

graph¶) procedente de Deus e, portanto, possui-dora de autoridade suprema. Em contextos polê-micos, ele invoca explicitamente o AT como oúltimo tribunal de apelação; esse é, de fato, opropósito das fórmulas introdutórias — comefeito, dizer “como está escrito” decide o argu-mento. Não é surpreendente, então, que as cita-ções explícitas apareçam quase exclusivamentenas Hauptbriefe (cartas principais): Romanos*,1–2 Coríntios* e Gálatas*. O significado dessadistribuição não é, como A. von Harnack argu-mentou outrora, que os argumentos dos judai-zantes forçaram Paulo a recorrer à Escritura eque, na verdade, ele não tinha nenhum desejode prender os gentios a um livro. Como vimos,a dependência paulina do AT tem a mesma clare-za nas passagens em que ele não recorre direta-mente a ele. Além do mais, a teoria de Harnacknão faz realmente justiça ao fato de encontrar-mos a maior concentração de citações em Roma-nos. Quaisquer que sejam os elementos polêmi-cos que possamos com razão ver nesta carta, suagrande importância está no fato de Paulo daraqui uma explicação sistemática de seu Evan-gelho (Rm 2,16), e para esse propósito nada émais importante que demonstrar a harmonia desua mensagem com a da Escritura (Rm 1,2;3,31; 9,6 etc.).

De interesse especial é a forma como Paulodepende do AT mesmo (especialmente?) quandoparece vê-lo negativamente. Gálatas 3, por exem-plo, é uma rejeição sistemática da visão de que alei* dá vida*, contudo ele recorre diretamente àprópria lei em apoio de sua posição. Paulo chegaaté a combinar essas duas perspectivas em umaúnica declaração: a lei é testemunha primordialdo fato de a manifestação da justiça* ser indepen-dente da lei (Rm 3,21); na verdade, a própria leilevou-o a morrer para a lei (Gl 2,19).

Uma questão relacionada é o uso paulinoda Escritura para lidar com o grave problema

da recusa da nação judaica como um todo emreceber o Evangelho (ver Israel). O desafio queos cristãos primitivos enfrentaram quanto à vali-dade de sua mensagem não foi maior que a res-posta judaica negativa. Se o Evangelho é, naverdade, a realização por Deus de suas promes-sas, é concebível que justamente o povo de Deusnão o aceite? Isso não significa que os propó-sitos de Deus foram frustrados — que sua pa-lavra falhou (Rm 9,6)? Tanto o problema comoa solução já são vistos no ministério de Jesus.Na explicação de seu uso de parábolas, porexemplo, os evangelhos sinóticos relatam o ape-lo de Jesus a Isaías 6, que ressalta o endureci-mento de Israel no contexto da providência di-vina (Mc 4,12 par.). O Evangelho de João, quese concentra nitidamente no fato de os seus nãoo terem acolhido (Jo 1,11), também depende deIsaías 6, em combinação com Isaías 53, parajustificar essa descrença (Jo 12,37-41).

É muito provável que esse pano de fundofaça parte da razão pela qual o livro de Isaías, co-mo indica a lista de citações, figure com a maiorproeminência nas citações paulinas. Tambémnos ajuda a entender por que Romanos 9–11,longe de ser um “parêntese” no argumento dacarta, constitui-se seu centro — na verdade, oclímax para o qual os capítulos anteriores leva-ram (cf. esp. Rm 2,28-29 e 4,11, que antecipamRm 9,6-8). Tendo já citado ou aludido a Isaíasem Romanos 9,20, ele o faz novamente em 9,27-28, seguido de outra citação de Isaías em 9,29e ainda outra em 9,33 (esta última combina duaspassagens diferentes). Mas isso não é tudo: Ro-manos 10 inclui mais quatro citações do mesmolivro e Romanos 11 outras quatro! Sem dúvida,as profecias de Isaías proporcionaram a Paulo amunição de que ele precisava para travar umade suas batalhas mais ferozes.

Entretanto, há um lado positivo na verdadesolene do endurecimento de Israel, a saber, agloriosa recepção dos gentios no aprisco deDeus. É esse o “mistério” escondido durantetempos eternos, mas que vem à luz com a vindade Cristo (Rm 16,25-26; 1Cor 2,7; Ef 3,2-11;Cl 1,25-27). Como a comunidade escatológicaque Cristo instituiu por seu Espírito, a Igrejatorna-se, portanto, o centro da hermenêuticapaulina (ver em Hays, cap. 3, a opinião de que

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2287

88Aa

o uso paulino da Escritura é primordialmente“eclesiocêntrico”). Mas esse conceito refleteuma visão da história da redenção que tambématua como princípio interpretativo, como a se-ção a seguir deixará claro.

4.2. Princípios orientadores. O que já foidito deve ter deixado evidente que o uso paulinodo AT não foi motivado por interesses antigos.Para ele, as Escrituras eram intensamente práti-cas. Entretanto, no momento em que usamosum escrito mais primitivo para satisfazer umanecessidade presente, naturalmente transferimosesse escrito a um novo contexto histórico e, as-sim, é inevitável que nos envolvamos na mudan-ça de seu sentido (cf. Rm 15,21, em que Pauloaplica a seu ministério as palavras messiânicasde Is 52,15). Talvez o problema fundamentalno campo da hermenêutica seja saber exatamen-te quanta mudança existe e, o mais importante,de que maneira essa mudança acontece.

É precisamente porque Paulo nunca se con-tenta em apenas reafirmar o sentido histórico ori-ginal de um texto veterotestamentário, mas, emvez disso, o aplica a sua situação atual que surgea pergunta perene e difícil: “Podemos usar a exe-gese paulina hoje?”. A própria formulação do pro-blema é enganosa. Em geral o que se quer saberé se os métodos paulinos de interpretação são ounão compatíveis com a exegese gramático-histó-rica “científica”. Mas essa preocupação geral-mente ignora alguns obstáculos fundamentais.Em primeiro lugar, Paulo nunca nos dá uma aná-lise exegética no sentido usual. Não encontramosnenhuma explicação paulina sistemática de umapassagem veterotestamentária. Ele jamais faz ex-plicitamente a pergunta: O que esta passagemsignifica? Mesmo em passagens nas quais pareceargumentar exegeticamente (e.g., Gl 3,10-14), elenunca pára para considerar interpretações alter-nativas dos textos. Quando consideramos a pos-sibilidade de ao menos algumas das referênciaspaulinas à Escritura não terem o propósito de serprovas doutrinais, mas servirem primordialmentepara realçar o impulso emotivo de suas palavras(e.g., 2Cor 13,1), ficam mais claras as dificulda-des para responder à nossa pergunta.

Em outras palavras: não há provas de quePaulo ou seus contemporâneos alguma vez te-nham se disposto a “interpretar” textos vetero-

testamentários de um modo comparável ao quese espera que os seminaristas de hoje façam —isto é, produzir uma explicação que se concentreno sentido histórico. Contudo, todos os interes-sados reconhecem que muitos dos usos paulinosreais da Escritura são compatíveis com esse senti-do histórico. Em outras palavras, há muitos indí-cios de que o apóstolo refletiu cuidadosa e pon-deradamente sobre os contextos dos textos vete-rotestamentários. Mesmo no caso de citações queparecem um tanto arbitrárias, a consideraçãoperseverante do contexto amplo é esclarecedora.

Por exemplo, no meio da analogia de Sarae Hagar, Paulo cita Isaías 54,1, o que, à primeiravista, parece um uso violento do texto. Entretan-to, as palavras de Isaías lembram muito a descri-ção da esterilidade de Sara em Gênesis 11,30(LXX). Além do mais, antes Isaías referiu-se aos(verdadeiros) filhos de Sara como os habitantesde Sião que “procuram a justiça e buscam oSenhor” (Is 52,1-3). No meio desses dois capí-tulos está a passagem do Servo sofredor, a quePaulo parece aludir em Gálatas 3,1 (cf. Gl 3,2com Is 53,1 — LXX; ver Jobes). Esses e outrosaspectos sugerem que Paulo analisa, de fato, as-sociações importantes presentes no próprio AT.Contudo, não costumamos ouvir queixas de queos profetas veterotestamentários sejam culpadosde usar exegese alegórica; nem é comum afirmarque, no modo de entender deles, a Escritura con-tinha um sensus plenior (“sentido mais pleno”).Simplesmente reconhecemos que eles sabiamanalisar sua tradição literária.

A força emotiva de associações literárias égrande, por isso um bom escritor ou orador usa-as como método de persuasão. Essa “técnica”não significa desrespeito pelo AT como fontede doutrina (muito pelo contrário), nem falta depreocupação por seu sentido histórico, emborareconhecidamente às vezes esse sentido originalrecue para o pano de fundo, no interesse de ne-cessidades contemporâneas. Além disso, comoleitores modernos, nem sempre estamos a parde tradições interpretativas antigas que talvezpreencham as lacunas lógicas que percebemoscom tanta rapidez. Naturalmente, esse princípiose aplica também às interpretações rabínicas.Com demasiada freqüência, os intérpretes cris-tãos tentam salvar Paulo enfatizando as interpre-

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2288

89A a

tações “fantásticas” dos rabinos. No entanto,estes últimos eram bastante capazes de fazeruma exegese cuidadosa e literal; outras vezes,eram simplesmente jocosos. O mais importante,porém, é que seus escritos são bastante resumi-dos: duas ou três palavras lembram toda umapassagem da Escritura, mais outras passagensparalelas, mais um conjunto de tradições queligavam essas passagens com o ponto que sedesejava alcançar. Do mesmo modo, nossa inca-pacidade de identificar todos os passos lógicosque levaram Paulo a usar um texto veterotesta-mentário com um propósito determinado nãorefletem nada mais que nossa ignorância (cf.Silva, 159-161).

Finalmente, o uso paulino da Escritura foiorientado pela convicção de que Deus era o Se-nhor da História. Os biblistas usam adjetivos di-ferentes para descrever e dar um toque sutil aessa abordagem: tipológica (porque focaliza cor-respondências entre acontecimentos ou indiví-duos vetero e neotestamentários), escatológica(porque dá ênfase ao fato da vinda de Cristointroduzir o fim dos tempos), canônica (porqueconsidera que o sentido pleno de um texto de-pende do ensinamento da Escritura como umtodo) etc. Como já mencionamos, a questão ésimplesmente — mas profundamente — ter ahistória redentora chegado ao clímax com opovo da nova aliança*, para quem os aconteci-mentos veterotestamentários eram relatadoscomo “exemplos” (1Cor 10,11). Essa última pa-lavra traduz o grego typos e, embora seja duvi-doso que ela reflita um forte caráter teológico,associado ao uso moderno da palavra tipologia,podemos ter certeza de que o apóstolo viu umaligação fundamental e orgânica entre a históriaveterotestamentária e as realidades escatológicasda vinda de Cristo. E porque o mesmo Deusque governava essa história inspirou os autoresbíblicos, é inevitável que o texto da Escriturainclua certas tendências ocultas — um “sentidomais profundo”? — que só se esclareceriam de-pois do cumprimento das promessas.

Essa visão da história da redenção significa,claro, que o AT todo era testemunha de Cristo e,por essa razão, o uso paulino da Bíblia era, da ma-neira mais característica, guiado por sua orienta-ção cristológica*. O que quer que seja dito a res-

peito do assunto, a hermenêutica do apóstolo paraos gentios baseava-se, em última instância, emCristo, “no qual estão escondidos todos os tesou-ros da sabedoria* e do conhecimento”* (Cl 2,3).

4.3. Habacuc 2,4 como precedente. Algu-mas das citações paulinas dão origem a proble-mas exegéticos difíceis que não é possível trataradequadamente em uma obra de consulta comoesta. Em vez disso, este artigo busca proporcio-nar diretrizes gerais que ajudem o leitor a semovimentar satisfatoriamente em meio a essesproblemas. Contudo, é útil juntar pelo menosalguns dos fios da meada e estudar mais detalha-damente uma passagem que sirva de exemplo.

Em Gálatas 3, o apóstolo procura demons-trar que os verdadeiros filhos de Abraão* são osque têm a fé de Abraão (Gl 3,6-7; cf. as palavrasfinais de Gl 3,29); esses fiéis estão em nítidocontraste com os “praticantes da lei” (Gl 3,10).Em Gálatas 3,11, Paulo declara a tese decisivade que “pela lei ninguém é justificado*” e, comoprova dessa tese, cita Habacuc 2,4: “um justo vivepor sua fidelidade*” (ho dikaios ek piste∞s

z¶setai). Essa declaração é tão fundamental quese torna o versículo programático em Romanos(Rm 1,17), livro que pode ser considerado umaextensão sistemática da mensagem de Gálatas*.

Essa citação dá margem a algumas questõesinteressantes. Por exemplo, seria possível cons-truir a frase preposicional (ek piste∞s) com osujeito em vez de com o verbo, o que produz atradução: “aquele que é justo pela fé viverá”,mas esse problema não afeta diretamente nossaspreocupações principais. Outra questão de im-portância secundária tem a ver com a variaçãotextual, pois o hebraico inclui um pronome, “suafé”, que a LXX traduziu errado com o pronomeda primeira pessoa: “minha fé”; a omissão pau-lina do pronome tem o efeito de aproximar maisa citação do hebraico (embora haja quem argu-mente que essa omissão torne deliberadamentea referência ambígua).

O principal problema com essa citação,porém, é que a palavra para “fé” (pistis) traduzo hebraico ’emûnâh, que normalmente signifi-ca “perseverança, fidelidade” (e, desse modo,obediência à lei), contudo Paulo usa o textoprecisamente para atacar a idéia de justificaçãopelas obras da lei. Parece bastante ruim que

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2389

90Aa

Paulo use este versículo de uma forma não pre-tendida originalmente — a saber, para proporuma doutrina caracteristicamente “paulina” —,mas é ainda pior que seu sentido pareça serexatamente o oposto do original. E, se Pauloagia com descuido e desonestidade, por que aIgreja cristã usaria esse texto como argumentobásico para a doutrina bíblica da salvação*?Em suma, enfrentamos um grande problemaexegético e teológico.

Apesar de alguns problemas textuais e in-terpretativos, o texto hebraico de Habacuc ébastante claro. O profeta havia feito um apeloa Deus a respeito da maldade de Judá (Hab1,4: “um malvado pode garrotear o justo”). Aresposta divina foi que os babilônios destrui-riam Judá, mas essa resposta levantou um pro-blema ainda mais sério a respeito da justiça deDeus e, assim, temos um segundo apelo: comoDeus, que não tolera o mal, cala-se quando omalvado engole o justo (Hab 1,13)? A respostaé adiada por um versículo que cria considerávelexpectativa (Hab 2,1). O cenário é, então, maisdramatizado ainda pela instrução para escrevera mensagem e por uma palavra enfática de que,apesar da aparente demora, a profecia aconte-cerá e, assim, o profeta deve aguardá-la (Hab2,3). Finalmente Habacuc 2,4 traz a revelaçãoaguardada, que parafraseamos: “Eis que os in-justos babilônios são ímpios e orgulhosos, maso justo vive por sua fidelidade”. A oração emquestão, que talvez seja parentética (cf. NIV),é seguida por uma profecia detalhada da des-truição do opressor.

Como os leitores mais primitivos entendiamesse versículo? O tradutor da LXX vacilou emvários pontos, obscureceu a sintaxe e concluiucom a visão de que a fidelidade de Deus é abase da salvação (crença popular judaica comumainda hoje). A comunidade judaica de Qumraninterpretou o arauto (“a fim de que corra aque-le que a lê”) de Habacuc 2,2 como o Mestre deJustiça e aplicou Habacuc 2,3b e 4b aos execu-tores da lei em Judá, a quem Deus libertará dacondenação por causa de seu sofrimento ou suafidelidade ou lealdade ao Mestre de Justiça(1QpHab 6,12–8,3). Por sua vez, o autor da Epís-tola aos Hebreus seguiu a LXX, mas com algu-mas mudanças importantes que enfatizam o

conceito de pistis como persistência fiel (Hb 10,36,tema desenvolvido em Hb 11).

Em vista de todos esses indícios, Paulo pa-rece ser o “desajustado”. De fato, ele pareceusar Habacuc para apoiar uma noção de fé queadquire alhures, a saber, em Gênesis 15,6:“Abrão teve fé no Senhor e por isso o Senhoro considerou justo”. Mas é verdade que a pas-sagem de Gênesis trata de uma questão dife-rente? Uma olhada rápida no texto hebraicosugere que Gênesis e Habacuc lidam, de fato,com o mesmo pensamento, pois os paralelosléxicos dificilmente são uma coincidência (asraízes ’mm e #dq aparecem nas duas passa-gens). A questão a avaliar é que o próprio Ha-bacuc estava envolvido na interpretação bíblica.Embora seu método pareça sutil para o leitorocidental, a profecia com certeza exortava opovo de Judá a seguir os passos de Abraão,cuja fé não era uma experiência momentânea,mas uma vida toda de perseverança na obediên-cia (cf. esp. Gn 22, que é a base para Tg 2,21-24). A fé inclui esperar pelo cumprimento e,assim, sempre corre o perigo de ser abalada;portanto, a perseverança e a constância fazemparte de sua essência.

Em outras palavras, para Habacuc não ha-via essa dicotomia entre fé e fidelidade, comomuitas vezes supomos (do mesmo modo, He-breus enfatiza sua ligação; cf. Hb 3–4). Gálatassugere que para o apóstolo Paulo a fé que justi-fica não exclui a obediência aos mandamentosde Deus (ver esp. Gl 5,13-26), mas o elo orgâ-nico entre esses dois conceitos desenvolve-seextensamente em Romanos. Na verdade, naCarta aos Romanos, depois de descrever seuEvangelho como o cumprimento das promessasveterotestamentárias (Rm 1,2) e recorrer a Ha-bacuc 2,4 como chave para entender esse Evan-gelho (Rm 1,16-17), Paulo gasta um tempoconsiderável para explicar o significado da féde Abraão (Rm 4; observe principalmente aênfase em sua perseverança, Rm 4,18-21) e, emseguida, dedica uma passagem importante àdoutrina da santificação do crente (Rm 6–8;ver Santidade, santificação). Longe de mani-pular a citação de Habacuc como convenienteprova bíblica de uma visão que contradizia a doprofeta, Paulo estava genuinamente grato a esse

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2390

91A a

texto como fonte para seu ensinamento; alémdisso, suas formulações teológicas fortaleciame fomentavam a mensagem profética (ver Pro-feta, Paulo como).

4.4. Conclusão. É óbvio, então, que Paulonão era descuidado quando citava as Escrituras.É verdade que o uso que o apóstolo fazia de suaBíblia não se adaptava em todos os aspectos amétodos que a exegese moderna considera apro-priados, mas só uma leitura superficial de suascartas levaria alguém a considerar esse uso invá-lido ou irresponsável. Muito pelo contrário, aspróprias categorias com as quais ele apresenta-va seu entendimento da obra de Cristo surgiramde um estudo sério do AT, ao mesmo tempo me-ticuloso e abrangente. Guiado não só pelo sen-tido histórico do texto, mas também pela divinaautoridade desse texto, pela necessidade de pôrem prática a mensagem bíblica, pelo poder deassociações literárias e por uma visão cristológicada história da redenção, Paulo conseguiu anun-ciar a verdade do Evangelho e ensinar ao povode Deus como a Escritura devia ser lida.

Ver também HERMENÊUTICA/INTERPRETAÇÃO

DE PAULO; PAULO, O JUDEU; LEI; PREGAÇÃO DE

PAULO HOJE; QUMRAN E PAULO.

BIBLIOGRAFIA: J. W. Aageson. “Paul’s Use ofScripture: A Comparative Study of Biblical In-terpretation in Early Palestinian Judaism and theNew Testament: With Special Reference to Ro-mans 9–11”. Tese de doutorado em Filosofia,Oxford University, 1983; Idem. Written Also forOur Sake: Paul and the Art of Biblical Interpre-tation. Louisville, Westminster/John Knox,1993; J. Barr. Old and New in Interpretation: AStudy of the Two Testaments. London, SCM,1966; J. Bonsirven. Exégèse rabbinique et exé-gèse paulinienne. Paris, Beauchesne, 1938; W.D. Davies. Paul and Rabbinic Judaism: SomeRabbinic Elements in Pauline Theology. 4. ed.Philadelphia, Fortress, 1980; D. R. Denny. “TheSignificance of Isaiah in the Writings of Paul”.Tese de doutorado em Filosofia, New OrleansTheological Seminary, 1985; C. H. Dodd. Accor-ding to the Scriptures: The Sub-structure of NewTestament Theology. London, Fontana, 1952; E.E. Ellis. Paul’s Use of the Old Testament. Edin-burgh, Oliver & Boyd, 1957; reimpr. Grand Ra-

pids, Baker, 1981; J. A. Fitzmyer. “The Use ofExplicit Old Testament Quotations in QumranLiterature and in the New Testament”. NTS 7,1960, 1961, 297-333; L. Goppelt. Typos: The Ty-pological Interpretation of the Old Testamentin the New. Grand Rapids, Eerdmans, 1982; A.T. Hanson. Studies in Paul’s Technique and Theo-logy. Grand Rapids, Eerdmans, 1974; A. Harman.“Paul’s Use of the Psalms”. Tese de doutoradoem Teologia, Westminster Theological Seminary,1968; R. B. Hays. Echoes of Scripture in theLetters of Paul. New Haven, Yale University,1989; H. Hübner. Gottes Ich und Israel. ZumSchriftgebrauch des Paulus in Römer 9–11.FRLANT 136, Göttingen, Vandenhoeck & Ru-precht, 1984; K. H. Jobes. “Jerusalem, Our Mo-ther”. WTJ 55, 1993, 299-320; W. C. Kaiser, Jr.The Uses of the Old Testament in the New. Chi-cago, Moody, 1985; D.-A. Koch. Die Schrift alsZeuge des Evangeliums. Untersuchungen zurVerwendung und zum Verständnis der Schrift beiPaulus. BHT 69, Tübingen, J. C. B. Mohr, 1986;B. Lindars. New Testament Apologetic: The Doc-trinal Significance of the Old Testament Quota-tions. Philadelphia, Westminster, 1961; R. N.Longenecker. Biblical Exegesis in the ApostolicPeriod. Grand Rapids, Eerdmans, 1975; O. Mi-chel. Paulus und seine Bibel. 1929; reimpr.Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1972; M. J. Mulder (org.). Mikra: Text, Transla-tion, Reading and Interpretation of the HebrewBible in Ancient Judaism and Early Christianity.CRINT 2,1, Philadelphia, Fortress, 1988; D. A.Oss. “Paul’s Use of Isaiah and Its Place in HisTheology: With Special Reference to Romans9–11”. Tese de doutorado em Filosofia, West-minster Theological Seminary, 1992; H. J.Schoeps. Paul: The Theology of the Apostle inthe Light of Jewish Religious History. Philadel-phia, Westminster, 1961; M. Silva. “The NewTestament Use of the Old Testament: Text Formand Authority”. In: Scripture and Truth. D. A.Carson and J.W. Woodbridge (orgs.). Grand Ra-pids, Zondervan, 1983, 147-165; D. MoodySmith. “The Pauline Literature”. In: It is Written:Scripture Citing Scripture. Essays in Honour ofBarnabas Lindars. D. A. Carson and H. G. M.Williamson (orgs.). SSF, Cambridge UniversityPress, 1988, 265-291; C. D. Stanley. Paul and the

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

A.p65 28/03/2008, 15:2391

92Aa

Language of Scripture: Citation Technique in thePauline Epistles and Contemporary Literature.STNTSMS 69, Cambridge University Press,1992; P. J. Tomson. Paul and the Jewish Law:Halakha in the Letters of the Apostle to the Gen-tiles. CRINT 3,1, Minneapolis, Fortress, 1990;S. Westerholm. Israel’s Law and the Church’sFaith: Paul and His Recent Interpreters. GrandRapids, Eerdmans, 1988; F. Young, D. F. Ford.Meaning and Truth in 2 Corinthians. GrandRapids, Eerdmans, 1988.

M. SILVA

ANTIOQUIA DO ORONTESAntioquia da Síria, uma das principais cidadesdo Império Romano, foi o centro do cristia-nismo enquanto ele se difundia para além dasfronteiras da Palestina até a Diáspora*.

Quando Paulo chegou a Antioquia pela pri-meira vez, a cidade estava cheia de atividade eagitação e passava por um período de recons-trução. O ano provável da chegada de Paulo, 43d.C., foi o ano em que a cidade instituiu os jogosolímpicos. No século I d.C., sua população eracalculada em cerca de 300.000 habitantes (Es-trabão Geog. 16,2,5), que incluíam um grandenúmero de judeus (as estimativas vão de 22.000a 65.000), segundo Josefo (GJ 7,3,3 §43). Cida-de enorme, rica e cosmopolita, onde barreirasde religião, raça e nacionalidade eram facilmentetranspostas — e onde a tolerância era motivo deorgulho cívico —, Antioquia era a base de ope-rações perfeita para a difusão do cristianismo.Nicolau de Antioquia, que havia sido prosélitodo judaísmo e um dos primeiros convertidos aocristianismo, foi escolhido como um dos setelíderes dos cristãos helenistas (ver Helenismo)de Jerusalém* (At 6,5).

Ao fugir da perseguição que surgiu em Jeru-salém depois do martírio de Estêvão, judeu-cristãos helenísticos trouxeram o cristianismo pa-ra Antioquia. Logo outros refugiados que haviamfugido para Chipre e Cirene chegaram a Antio-quia e pregavam aos “gregos” com sucesso consi-derável (At 11,19-21). Esses “gregos” eram pro-vavelmente “adoradores de Deus”, gentios atraí-dos ao monoteísmo judaico (At 10,22; 13,16.26.43; 16,14; 17,4.17; 18,7). Nessa época, os judeusde Antioquia eram numerosos e abastados; doa-

vam sinagogas esplendidamente decoradas e“constantemente atraíam multidões de gregos asuas cerimônias religiosas” (Josefo, GJ 7,3,3 §45).

Quando a Igreja de Jerusalém soube do nú-mero crescente de fiéis em Antioquia, enviouBarnabé*, que durante algum tempo serviu àjovem Igreja (At 11,22-24) e posteriormenteconvidou Paulo para se juntar a ele (At 11,25-26). Os Atos nos dizem que Paulo, o judeu deTarso (ver Judeu, Paulo, o), e Barnabé, o levitade Chipre, passaram um ano inteiro trabalhandojuntos em Antioquia (At 11,26). Mas, durantemuitos anos depois disso, eles fizeram dessacidade de culturas heterogêneas o centro e a sedede suas atividades missionárias entre os gentios*(At 13,3; 15,22-36; 18,22-23). Além de Jerusa-lém, nenhuma outra cidade do Império Romanodesempenhou um papel tão importante quantoo de Antioquia na vida da Igreja primitiva. Foiem Antioquia que o termo cristão (Christianos,“seguidor de Cristo”) foi usado pela primeiravez para designar os discípulos de Jesus (At11,26). E foram os fiéis cristãos de Antioquiaque, durante a grande fome (45-47 d.C.) ocor-rida durante o reinado de Cláudio (Suetônio,Cláudio 18,2), enviaram ajuda aos fiéis que mo-ravam na Judéia (At 11,27-30).

A certa altura da estada de Paulo na cidade,Pedro* veio a Antioquia. No decorrer da visi-ta, Pedro, que tomava as refeições com os gen-tios, começou a evitar comer com eles (ver Ali-mento). Segundo o relato de Paulo (Gl 2,11-14), o afastamento de Pedro coincidiu com achegada de um grupo da Igreja de Jerusalém(“emissários de Tiago”) e foi motivado pelo“receio dos circuncisos”* (tous ek peritom¶s,Gl 2,12; ver Judaizantes). Conjetura-se que apressão para Pedro se afastar da comunidadesurgiu do interesse prático da Igreja de Jerusa-lém pela expansão do Evangelho para os judeusem um clima de crescente nacionalismo judai-co. Contudo, Paulo considerava o afastamentode Pedro e o conseqüente afastamento de outrosfiéis judeus — até mesmo de Barnabé — hipó-crita e destruidor da missão aos gentios e daunidade cristã (Gl 2,13-14). Assim, Antioquiatornou-se cenário de importante controvérsiaa respeito de um caso de prática que atingiu ocoração do evangelho* paulino.

ANTIGO TESTAMENTO EM PAULO, O

ANTIOQUIA DO ORONTES

A.p65 28/03/2008, 15:2392

93A a

Segundo Eusébio, o primeiro bispo de An-tioquia foi Pedro, seu sucessor foi Evódio edepois Inácio de Antioquia, martirizado logo noinício do século II, durante o reinado de Trajano(98-117 d.C.; Hist. Ecl. 3,36,2; 3,22).

Nosso conhecimento de Antioquia origina-se de limitadas escavações arqueológicas, mastambém de um considerável corpo de literaturaantiga (Estrabão, Évagro, Procópio, Libânio, oimperador Juliano, João Crisóstomo e, principal-mente, a Chronographia de Johannes Malalas,do século VI d.C.). A cidade cobria uma área deaproximadamente 1 por 2 quilômetros entre orio Orontes a leste e o monte Sílpio a oeste. Eraprojetada em um plano gradeado ortogonalhipodamiano (cruzamentos de ruas em ângulosretos e construções situadas nos retângulos),típico de cidades helenísticas, com quarteirõesurbanos retangulares de 110 por 57 m. Era cer-cada por muralhas construídas por Selêuco I(311-281 a.C.), ampliadas provavelmente porAntíoco Epífanes (175-164 a.C.) e reconstruí-das por Tibério (14-37 d.C.).

A partir de 67 a.C., muitos edifícios impor-tantes, inclusive um palácio e um circo, foramconstruídos por Márcio Rex e Pompeu. Em 47a.C., Júlio César deu continuidade a esse pro-grama de edificações e construiu um aquedutopara fornecer água para as residências situadasao lado do monte Sílpio. Foram encontradas al-gumas ruínas dessas residências particulares etambém de pequenas casas de banho que tiverama construção facilitada pelo aqueduto. No sopédo monte, César construiu um teatro no centromonumental da cidade e um anfiteatro próximoà porta do sul. Em algum lugar, sem dúvidaperto do centro da cidade, ele construiu o Kaisa-reion, talvez a mais antiga basílica do Oriente,para ser utilizada pelo culto de Roma. Trazia seunome e abrigava uma estátua dele. Em Antio-quia, ele também reconstruiu o Panteão, que es-tava em ruínas, e construiu (ou reconstruiu) umteatro no declive do monte Sílpio.

Uma rua com colunatas, que percorria todaa extensão da cidade do norte para o sul e dividiaAntioquia ao meio, foi construída por HerodesMagno (Josefo, GJ 1,21,11 §425; Ant. 16,5,3§148). Augusto César visitou Antioquia duas ve-zes e dirigiu um extenso programa de constru-

ções na cidade, financiado com o tesouro queencontrou no Egito depois da derrota de Antônioe Cleópatra em Ácio, em 31 a.C. É provável quediversos templos e outros projetos atribuídos aTibério só tenham sido terminados por ele, masna verdade iniciados por Augusto.

Algumas das atividades de construção deTibério foram ocasionadas por um incêndio emAntioquia durante seu reinado em 23/24 d.C.Ele construiu casas de banho na parte leste dacidade e, talvez, na ilha situada no Orontes.Também lhe são atribuídas a expansão do tea-tro, a construção de portas monumentais emtodos os principais cruzamentos das ruas dacidade e a conclusão e melhoria da Epifania, azona sul da cidade construída por Antíoco Epí-fanes, de quem recebeu o nome.

Antioquia era, com freqüência, atingida porterremotos, dois dos quais ocorreram no tempode Paulo. O primeiro aconteceu em 9 de abril de37 d.C., durante o reinado de Calígula, que rea-giu pronta e generosamente, utilizando o consi-derável superávit deixado por Tibério no tesouropúblico de Roma. Importantes edificações e re-novações foram realizadas enquanto ele recons-truía a cidade devastada. O segundo terremotoem Antioquia, ocorrido durante o reinado deCláudio (41-54 d.C.), também causou danos aÉfeso, Esmirna e outras cidades da Ásia Menor.

Parece que o “cálice de prata de Antioquia”foi descoberto ali em 1910. Consiste em umcálice liso de prata dentro de um recipiente deprata ricamente trabalhado. Especula-se que sefez um recipiente tão belo para um cálice tão co-mum porque esse foi o cálice que Cristo usou naÚltima Ceia. Entretanto, em geral, os especia-listas datam o cálice entre o século II e o VI.

Ver também BARNABÉ; MISSÃO; PEDRO.

BIBLIOGRAFIA: R. E. Brown & J. P. Meier. Antiochand Rome: New Testament Cradles of CatholicChristianity. New York, Paulist, 1983; F. Cimok.Antioch on the Orontes. Istanbul, Us Tan TmaMerkezi, 1980; Commitee for the Excavation ofAntioch and its Vicinity. G. W. Elderkin et al.(orgs.). Antioch-on-the-Orontes. Princeton, Uni-versity Press, 1934-1970, 5 vols.; G. Downey. AHistory of Antioch in Syria from Seleucus to theArab Conquest. Princeton, University Press, 1961;

ANTIOQUIA DO ORONTES

ANTIOQUIA DO ORONTES

A.p65 28/03/2008, 15:2393

94Aa

Idem. Ancient Antioch. Princeton, UniversityPress, 1963; J. D. G. Dunn. “The Incident atAntioch (Gal. 2.11-18)”. JSNT 18, 1983, 3-57;Idem. Jesus, Paul and the Law. Louisville, West-minster/John Knox, 1990, 129-182; C. H.Kraeling. “The Jewish Community at Antioch”.JBL 51, 1932, 130-160; J. H. W. G. Liebeschuetz.Antioch: City and Imperial Administration in theLater Roman Empire. Oxford, Clarendon, 1972;R. N. Longenecker. Galatians. WBC 41, Dallas,Word, 1990, 65-71; W. Meeks & R. Wilken. Jewsand Christians in Antioch in the First Four Cen-turies of the Common Era. SBLSBS 13, Missou-la, MT, Scholars, 1978; D. S. Wallace-Hadrill.Christian Antioch: A Study of Early ChristianThought in the East. Cambridge, UniversityPress, 1982.

J. MCRAY

ANTROPOLOGIA. Ver PSICOLOGIA.

APOCALIPTISMOO termo “apocaliptismo” é forma transliteradada palavra grega apokalypsis, que significa“desvelamento”, “revelação”. O autor do Apo-calipse, ou Revelação de João, foi o primeiroautor judeu ou cristão a usar o termo apokalypsispara descrever o conteúdo de seu livro, que é,em essência, a narrativa de uma série de visõesreveladoras que divulgam os acontecimentos quecercam o fim iminente da época presente: “Re-velação (apokalypsis) de Jesus Cristo: Deus lhaconcedeu para mostrar a seus servos o que deveacontecer em breve” (Ap 1,1). Depois de Apo-calipse 1,1, o termo apocalypse é usado desdeo início do século XIX, quando foi populariza-do pelo biblista neotestamentário F. Luecke(1791-1854) como termo genérico para descre-ver documentos com conteúdo e estrutura se-melhantes ao Apocalipse de João.

1. Definição de apocaliptismo2. Origens do apocaliptismo3. Características do apocaliptismo4. Paulo e a apocalíptica judaica

1. Definição de apocaliptismoO termo “apocaliptismo” é designação modernaextensamente usada com referência a uma con-cepção do mundo que caracterizou segmentos

do judaísmo primitivo de c. 200 a.C. a 200 d.C.e que se centralizou na expectativa da iminenteintervenção de Deus na história humana de ma-neira decisiva, para salvar seu povo e castigarseus inimigos pela destruição da ordem cósmicaexistente e pela restauração ou recriação docosmo em sua perfeição primitiva original. Oconhecimento de segredos cósmicos (uma dascontribuições da tradição sapiencial ao apoca-liptismo) e os iminentes planos escatológicosde Deus foram revelados aos apocaliptistas emsonhos e visões, e os apocalipses que eles escre-veram eram principalmente narrativas das visõesque receberam e que um anjo intérprete lhes ex-plicou. Acredita-se que todos os apocalipses ju-daicos que foram conservados são pseudoními-cos, ou seja, escritos sob nomes de proeminentespersonagens israelitas ou judaicas antigas, comoAdão, Henoc, Moisés, Daniel, Esdras e Baruc.Só os apocalipses cristãos mais antigos, o Apo-calipse de João e o Pastor de Hermas, foramescritos sob os nomes dos verdadeiros autores.A explicação mais provável para o fenômeno dapseudonímia apocalíptica é que foi uma estraté-gia para proporcionar credenciais e, assim, asse-gurar a aceitação desses escritos reveladores emum momento da história israelita no qual a repu-tação dos profetas descera a um ponto extrema-mente baixo. Portanto, apocaliptismo é termousado para descrever o tipo específico de expec-tativa escatológica característica dos apocalipsesjudaicos primitivos e cristãos primitivos. Ascomposições religiosas judaicas geralmente con-sideradas apocalipses incluem Daniel 7–12 (oúnico apocalipse veterotestamentário), os cincosdocumentos que compreendem 1 Henoc (1–36,o livro das Sentinelas; 37–71, o livro das Simi-litudes de Henoc; 72–82, o livro dos Lumina-res celestes; 83–90, o apocalipse dos Animais;92–104, a Epístola de Henoc), 2 Henoc, 4 Es-dras, 2 Baruc, 3 Baruc e o Apocalipse de Abraão.Os apocalipses cristãos primitivos incluem oApocalipse de João (o único apocalipse neotes-tamentário) e o Pastor de Hermas.

Há quatro aspectos do apocaliptismo queprecisam ser diferenciados:

1) Escatologia apocalíptica: tipo de escato-logia que se encontra em apocalipses ou se asse-melha à escatologia dos apocalipses, carateriza-

ANTIOQUIA DO ORONTES

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:2394

95A a

do pela tendência a enxergar a realidade da pers-pectiva da soberania divina (e.g., as escatologiasda comunidade de Qumran, Jesus e Paulo).

2) Apocaliptismo ou milenarismo: forma decomportamento coletivo baseado nessas crenças(e.g., o movimento liderado por João Batistae as revoltas de Teudas relatadas em Atos 5,36 eem Josefo, Ant. 20,5,1 §§97-98, e o egípcio semnome de que falam Atos 21,28 e Josefo, Ant.20,8,6 §§169-172; GJ 2,13,5 §§261-263.

3) Apocalipse: tipo de literatura na qual essascrenças ocorrem em sua forma mais básica ecompleta e que se concentra na revelação dastradições cósmicas e no fim dos tempos.

4) Imagens apocalípticas: os diversos te-mas e motivos que constituem a escatologiaapocalíptica empregada de várias maneiras nasliteraturas judaica e cristã primitivas.

Este artigo vai se concentrar na escatologiaapocalíptica judaica e na maneira como Pauloadaptou a seu pensamento teológico alguns dostemas e estruturas fundamentais da escatologiaapocalíptica.

2. Origens do apocaliptismoForam feitas algumas sugestões quanto às origensdo apocaliptismo e, com freqüência, elas refleti-ram a atitude negativa ou positiva dos estudiososem relação ao fenômeno do apocaliptismo. De-pois do exemplo de F. Luecke, em meados doséculo XIX, muitos estudiosos analisaram o apo-caliptismo sob um prisma favorável como evo-lução gradual da profecia veterotestamentária quetalvez resultasse das desilusões do período pós-exílico o qual incluía a sujeição a nações estran-geiras e a tensão dentro da comunidade judaica.Outros estudiosos que discerniram uma acentua-da ruptura entre a profecia veterotestamentária eo apocaliptismo mais tardio sugeriram que mui-tos dos aspectos básicos do apocaliptismo tive-ram origem no antigo Irã e passaram a fazer partedo pensamento judaico durante o período hele-nístico (c. 400-200 a.C.) ou, de modo mais geral,surgiram das tendências sincretistas durante o pe-ríodo helenístico, quando houve uma fusão dasidéias religiosas do Ocidente e do Oriente.

2.1. O cenário do apocaliptismo. O fato de,em sua maioria, os apocalipses serem pseudo-nímicos dificulta a reconstrução das situações

sociais nas quais foram escritos e às quais rea-giram. Há, contudo, ampla concordância que osapocalipses judaicos foram escritos ou alteradosem épocas de crise política ou social, emboratais crises passem por todo um espectro de reaisa imaginárias. Concentrando a atenção no perío-do de 400 a 200 a.C., Ploeger percebeu umacisão na comunidade judaica pós-exílica emduas nítidas divisões, o partido teocrático (for-mado pelos aristocratas sacerdotais governan-tes), que interpretava a escatologia profética emtermos da nação judaica, e o partido escatológi-co (formado pelos precursores dos apocaliptis-tas), que aguardava a realização das previsõesescatológicas dos profetas. Mais recentemente,P. D. Hanson argumentou ser o apocaliptismoevolução natural da profecia israelita que se ori-ginou na luta intramuros entre profetas visio-nários e sacerdotes hierocráticos (sadoquitas),ocorrida do século VI ao século IV a.C.

2.2. Escatologia e apocaliptismo. Em geral,faz-se uma distinção entre escatologia* e apo-caliptismo. O termo escatologia começou a serusado no século XIX como rótulo para o aspectoda teologia sistemática que tratava de assuntosrelativos ao futuro do indivíduo (morte, ressur-reição, juízo, vida eterna, céu e inferno) e assun-tos relativos à escatologia corporativa ou nacio-nal, ou seja, o futuro da Igreja cristã ou do povojudaico (e.g., a vinda do Messias, a grande tri-bulação, a ressurreição, o juízo, a Segunda Vindade Cristo, o reino messiânico transitório, a re-criação do Universo). É comum uma distinçãoentre a escatologia profética e a escatologia apo-calíptica, que exerce a função útil de enfatizar acontinuidade e também as mudanças na expec-tativa israelita-judaica. Seguindo esse modelo,a escatologia profética era uma perspectiva oti-mista e previa que Deus acabaria por restauraras condições primitivas originalmente idílicas,atuando por meio de processos históricos. O pro-feta israelita proclamava, ao rei e também aopovo, os planos divinos para Israel em termosde acontecimentos e processos históricos e polí-ticos reais. A profecia vê o futuro surgindo dopresente, enquanto a escatologia apocalípticacontempla o futuro irrompendo no presente; aprimeira é essencialmente otimista, enquantoa segunda é pessimista (Rowley, 35).

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:2395

96Aa

2.3. Profecia e apocaliptismo. O problemada relação entre profecia e apocaliptismo é umaspecto do problema do grau de continuidadeou descontinuidade que julgamos existir entre oapocaliptismo judaico e as tradições religiosase políticas israelitas mais primitivas. É importan-te reconhecer que a profecia e o apocaliptismomanifestam elementos tanto de continuidadecomo de descontinuidade. Os nítidos contrastesque, com freqüência, pensamos existir entre aprofecia e o apocaliptismo diminuem um poucoquando reconhecemos que a própria profeciasofreu muitas mudanças e que há inúmeras se-melhanças notáveis entre a profecia tardia e aapocalíptica primitiva (Hanson). Livros proféti-cos tardios revelam tendências que posterior-mente surgiriam mais plenamente desenvolvidasna literatura apocalíptica judaica, inclusive asvisões de Zacarias 1–6 (com a presença do in-térprete angelical), Isaías 24–27, 56–66, Joel eZacarias 9–14.

2.4. Sabedoria e apocaliptismo. Muitos es-tudiosos argumentam que houve uma rupturafundamental entre a profecia e o apocaliptismo.G. von Rad, por exemplo, rejeitou a opiniãode que as raízes primordiais do apocaliptismoencontravam-se na profecia israelita. Von Radexpôs que o apocaliptismo consiste em um dua-lismo definido, transcendência radical, esote-rismo e gnosticismo, e afirmou que o apoca-liptismo se originou da literatura sapiencial doAT. Os temas comuns às literaturas sapienciale apocalíptica e que sugerem a ligação entre osdois tipos de literatura incluem os seguintes:1) o sábio e o apocaliptista são citados como“o justo” e têm seus ensinamentos preservadosem forma escrita, que muitas vezes enfatizamseu “conhecimento” especial e sua antiguidade;2) ambos manifestam tendências individua-listas e universalistas; 3) ambos preocupam-secom os mistérios da natureza de uma perspec-tiva celeste; e 4) ambos refletem uma visãodeterminista da história.

Da forma como foi proposta por Von Rad,a idéia de que a sabedoria israelita, não a profe-cia israelita, foi a mãe do apocaliptismo judaiconão encontra apoio entre os estudiosos. Contudo,é inegável que há elos entre a sabedoria e a apo-calíptica (Sb 7,27; Sr 24,33), pois ambas são

fenômenos redacionais. A tradição sapiencialde Israel foi, com certeza, uma das muitas in-fluências na evolução do apocaliptismo judaico.Contudo, é importante distinguir dois tipos desabedoria: sabedoria proverbial e sabedoriamântica. Este último tipo relaciona-se com opapel do “justo” na interpretação de sonhos quese reflete nas tradições bíblicas concernentes aJosé e Daniel, ambos capazes de explicar, pormeio da sabedoria divina, o significado de so-nhos reveladores ambíguos (Gn 40,8; 41,25.39;Dn 2,19-23.30.45; 5,11-12). A figura do angelusinterpres (“anjo intérprete”) ocorre com freqüên-cia nos apocalipses judaicos, em que desempe-nha o papel análogo de um revelador sobrena-tural, capaz de revelar o significado mais pro-fundo dos sonhos e visões que o apocaliptistateve (Dn 7–12; Zc 1–6; 4 Esdras).

2.5. Farisaísmo e apocaliptismo. A monu-mental obra em três volumes de G. F. Moore arespeito do judaísmo baseou-se na suposição deque o judaísmo “normativo” dos primeiros sé-culos da era cristã, “a época dos Tannaim”, nãoincluía o apocaliptismo judaico. De modo se-melhante, A. Schweitzer distinguiu nitidamenteo ensinamento dos apocaliptistas (e, portanto,Jesus) do ensinamento dos rabinos. Entretanto,as ênfases farisaicas na ressurreição, no mundovindouro e no Messias dificultam a distinçãonítida entre as preocupações religiosas e políti-cas dos apocaliptistas e as dos fariseus, emboraestes últimos pareçam ter se desencantado commuitos aspectos do apocaliptismo, em conse-qüência da desastrosa primeira revolta contraRoma (66-73 d.C.). W. D. Davies argumentouque há diversos elos entre o apocaliptismo e ofarisaísmo: 1) Ambos têm a mesma devoção eatitude a respeito da Torá. 2) Ambos têm a mes-ma opinião a respeito de temas escatológicoscomo o trabalho árduo da era messiânica, areunião de exilados, os dias do Messias, a novaJerusalém, o juízo e a geena. 3) Ambos têmtendências populistas e escolásticas.

3. Características do apocaliptismo3.1. Principais aspectos do apocaliptismo.

Alguns estudiosos concordam sobre certosaspectos da escatologia apocalíptica:

1) O dualismo temporal dos dois mundos.

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:2396

97A a

2) A descontinuidade radical entre este mun-do e o outro ligada a pessimismo quanto à ordemexistente e esperança sobrenatural voltada paraa ordem futura.

3) A divisão da história em segmentos (qua-tro, sete, doze) que refletem um plano predeter-minado da história.

4) A expectativa da iminente chegada doreinado de Deus como ato de Deus que pressagiaa ruína das condições terrestres existentes.

5) Uma perspectiva cósmica na qual o lugarprimordial do indivíduo já não é dentro de umaentidade coletiva como Israel ou o povo deDeus, e a crise iminente não é de âmbito local,mas cósmico.

6) Para os justos, a intervenção cataclís-mica de Deus resultará em salvação concebidacomo reconquista das condições edênicas.

7) A introdução de anjos* e demônios*para explicar acontecimentos históricos e es-catológicos.

8) A introdução de um novo mediador comfunções régias.

Essas características não são completas, mastêm o fim profícuo de focalizar alguns dos as-pectos inconfundíveis da concepção apocalípticado mundo.

3.2. Os cenários apocalípticos. Como asnarrativas que descrevem os acontecimentos queacompanham o fim do mundo presente e a inau-guração do mundo futuro são essencialmenteum tipo de folclore, há muitas descrições diver-gentes de acontecimentos futuros esperados,com pouca consistência entre elas. Portanto, aoproduzir uma síntese da grande variedade decenários apocalípticos encontrados na literaturaapocalíptica, a ênfase precisa estar nos aspectosmais típicos encontrados nessas descrições. Oapocaliptismo, ou escatologia apocalíptica, con-centra-se na crença de que a ordem do mundoatual, má e também opressiva, está sob o contro-le temporário de Satanás e seus cúmplices huma-nos. Esta ordem presente do mal no mundo logoserá destruída por Deus e substituída por umaordem nova e perfeita que corresponde ao Éden.Durante este tempo do mal, o povo de Deus éuma minoria oprimida, que aguarda com fervora intervenção de Deus ou de seu agente espe-cialmente escolhido, o Messias. Uma série final

de batalhas do povo de Deus contra os aliadoshumanos de Satanás* iniciará a transição entreos tempos velhos e os novos, o fim dos temposvelhos e o começo dos novos. Entretanto, oresultado nunca é questionado, pois os inimigosde Deus estão predestinados a ser derrotados edestruídos. A inauguração dos tempos novoscomeçará com a chegada de Deus ou de seuagente reconhecido, para julgar os ímpios e re-compensar os justos, e será concluída com arecriação ou transformação do Universo.

3.3. Dualismo limitado. Um dos aspectosbásicos do apocaliptismo é a convicção de queo cosmo se divide em duas forças sobrenaturaisopostas, Deus e Satanás, que representam asqualidades morais do bem e do mal (dualismocosmológico). Entretanto, a convicção judaicade que Deus é soberano absoluto significa queele é o originador do mal e que o resultantedualismo do bem e do mal não é nem eternonem absoluto (ao contrário do dualismo da re-ligião iraniana antiga), mas sim limitado. Noapocaliptismo judaico primitivo, entendia-seesse dualismo essencialmente limitado em vá-rios tipos de pensamento dualístico diferentes,mas relacionados: 1) O dualismo escatológicoou temporal faz nítida distinção entre o tempopresente e o tempo que há de vir. 2) O dualis-mo ético baseia-se na distinção moral entre obem e o mal e considera a humanidade divididaem dois grupos, os justos e os ímpios, de umaforma que corresponde aos poderes do bem edo mal. 3) O dualismo psicológico ou microcós-mico é a incorporação do esquema de dois mun-dos que vê as forças do bem e do mal em lutapela supremacia dentro de cada indivíduo.

3.3.1. Dualismo temporal ou escatológico.Só aos poucos desenvolveu-se no judaísmo acrença em dois tempos ou mundos sucessivos.A ocorrência mais primitiva da frase rabínica“o mundo vindouro” encontra-se em 1 Henoc71,15 (c. 200 a.C.). A doutrina de dois tem-pos estava plenamente desenvolvida em c. 90d.C., pois, segundo 4 Esdras 7,50, “o Altís-simo não fez um tempo, mas dois” (ver 4Esd8,1). O dia do juízo é considerado o divisorentre os dois tempos (4Esd 7,113): “o diado juízo será o fim desse tempo e o início dotempo imortal vindouro”.

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:2397

98Aa

3.3.2. Dualismo ético. Daniel 12,10 diferenciaos “ímpios” e uma “multidão alvejada, acrisola-da”; Jubileus diferencia os israelitas que são “anação dos justos” (Jub 24,29), “uma geração jus-ta” (Jub 25,3), e os gentios que são pecadores(Jub 23,24; 24,28); a Regra da Guerra de Qumrandiferencia igualmente o povo de Deus e os Kittim(1Qm 1,6; 18,2-3); e o Testamento de Aser con-trasta as “pessoas boas e sinceras” (TAser 4,1)com as “pessoas de duas caras” (TAser 3,1).

3.3.3. Dualismo psicológico ou microcós-mico. Neste tipo de dualismo, os poderes cósmi-cos sobrenaturais antitéticos, imaginados nas ca-tegorias morais do bem e do mal, têm corres-pondência análoga à luta entre o bem e o malexperimentada pelos indivíduos. Algumas cor-rentes do pensamento apocalíptico judaico, par-ticularmente a Comunidade de Qumran e os cír-culos que produziram os Testamentos dos DozePatriarcas, acreditavam que Deus criou dois es-píritos, o espírito da verdade e o espírito da fal-sidade (i.e., o espírito do mal chamado Belial,1Qs 1,18-24; TJud 20,1-5; ver Jo 14,17; 15,26;16,13; 1Jo 4,6), e que os homens vivem de acor-do com um ou outro; o Príncipe das Luzes con-trola a vida dos filhos da justiça, enquanto oAnjo das Trevas tem domínio sobre os filhos dafalsidade (1QS 3,17–4,1; 4,2-11; 1QM 13,9-12).Entretanto, até mesmo os pecados dos filhos dajustiça são, em última instância, causados peloespírito da falsidade, pois os dois espíritos lutampela supremacia no coração do indivíduo (1QS4,23-26; TAser 1,3-5; ver Seitz). Porém, o do-mínio do espírito da falsidade é temporariamentelimitado, pois Deus o destruirá para sempre(1QS 4,18-19). A doutrina da luta entre o espíritoda verdade e o espírito da falsidade pela supre-macia no coração de cada pessoa assemelha-seà doutrina rabínica dos impulsos bons e maus.

3.4. Expectativa messiânica. O messianis-mo não era um aspecto invariável de todos osesquemas escatológicos multiformes que forma-vam o apocaliptismo judaico. Durante o períododo segundo Templo, havia pelo menos dois tiposprincipais de messianismo judaico, o restaura-tivo e o utópico. O messianismo restaurativo es-perava a restauração da monarquia davídica, seconcentrava na expectativa do progresso e aper-feiçoamento do tempo presente pelo desenvol-

vimento natural (SlSal 17) e se moldava em umperíodo histórico idealizado; a memória do pas-sado projeta-se no futuro. O messianismo utópi-co previa um tempo futuro que superaria tudoque antes se conhecia. O messianismo judaicotendia a se concentrar, não na restauração deuma dinastia, mas em um rei messiânico único,enviado por Deus, para restaurar a prosperidadede Israel (ver Restauração de Israel). Entretan-to, como símbolo teocrático, o Messias é dispen-sável, pois um Messias não faz invariavelmenteparte de toda expectativa escatológica judaica.Nenhuma figura desse tipo, por exemplo, de-sempenha um papel nos cenários escatológicosde Joel, Isaías 24–27, Daniel, Sirácida, Jubileus,Assunção de Moisés, Tobit, 1 e 2 Macabeus, Sa-bedoria, 1 Henoc 1–36 (o livro das Sentinelas),90–104 (a Epístola de Henoc), 2 Henoc.

3.5. O reino messiânico temporário. Nãohá consistência na apocalíptica judaica a respeitoda chegada do reino* de Deus. Alguns o concei-tualizaram como a chegada de um reino eterno,mas outros o consideraram um reino messiânicotemporário, ao qual se sucederia um reino eterno(ver 1Cor 15,24). O conceito de um reino mes-siânico temporário que funcionaria como transi-ção entre o mundo do mal presente e o mundovindouro, entre a monarquia e a teocracia, solu-cionava o problema de como conceber a transi-ção do Messias para o reino eterno de Deus(onde tal conceito está presente). No pensamentoapocalíptico judaico em geral, o reino de Deusé mais importante centralmente que a figura deum Messias. Portanto, um interregno messiânicofunciona como expectativa do estado teocráticoperfeito e eterno que existirá quando as condi-ções primordiais forem restabelecidas para sem-pre. Esperava-se que esse reino temporário fossetransicional, pois ele é descrito como combina-ção de algumas das características deste tempocom as do tempo que há de vir. No apocaliptis-mo cristão, essa expectativa de um reino messiâ-nico temporário reflete-se claramente em Apo-calipse 20,4-6 e, segundo alguns estudiosos,também se reflete em 1 Coríntios 15,20-28 (verabaixo). A expectativa de um reino messiânicotemporário futuro encontra-se apenas em outrostrês apocalipses judaicos primitivos, o Apoca-lipse das Semanas, ou 1 Henoc 91,1-10; 93,12-

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:2398

99A a

17 (escrito entre 175 e 167 a.C.), 4 Esdras 7,26-44; 12,31-34 (escrito c. 90 d.C.) e 2 Baruc 29,3–30,1; 40,1-4; 72,2–74,3 (escrito c. 110 d.C.). Em-bora haja quem afirme que o conceito de umreino messiânico temporário encontra-se em 2Henoc 32,2–33,1 e Jubileus 1,27-29; 23,26-31,os indícios não convencem.

3.5.1. Apocalipse das Semanas. Em 1 Henoc93,3-10 e 91,11-17, um apocalipse mais primi-tivo, inserido na história da Epístola de Henoc(1Hen 91–104), divide-se em dez semanas (i.e.,dez tempos), com o aparecimento de um reinotemporário não-messiânico na oitava semana ea chegada de um reino eterno na décima sema-na (1Hen 91,11-17).

3.5.2. 4 Esdras. De acordo com 4 Esdras7,26-30, o Messias aparecerá nos últimos diase viverá com os justos durante quatrocentosanos. Então, juntamente com todos os outroshabitantes da Terra, o Messias morrerá e o mun-do voltará a sete dias de silêncio primevo. De-pois disso, ocorrerá a ressurreição (4Esd 7,32)e o Altíssimo tomará seu lugar no trono do julga-mento e julgará todas as nações (4Esd 7,36-43).Por outro lado, em 4 Esdras 12,31-34, o Messiasdavídico sentar-se-á no trono do julgamento e,depois de repreender os ímpios e os maus, osdestruirá (4Esd 12,32). Esse julgamento exerci-do pelo Messias é preliminar ao juízo final queserá exercido por Deus depois da chegada dofim (4Esd 12,34). Entretanto, em nenhuma pas-sagem de 4 Esdras o Messias desempenha umpapel no reino teocrático eterno que se iniciacom a ressurreição.

3.5.3. 2 Baruc. Depois de doze períodos detribulação (2Br 27,1-5), o reino messiânico édescrito como período de extraordinária abun-dância iniciado com o aparecimento do Messias(2Br 29,3) e concluído com sua volta à glória(2Br 30,1). Aos eleitos que viveram durante oreino messiânico, juntar-se-ão os justos ressus-citados, mas as almas dos ímpios temerão o juízo(2Br 30,1-5). O autor supõe, em vez de afirmarclaramente, a transformação dos que viveramdurante o reino messiânico para um modo deexistência de ressurreição, como os justos res-suscitados. Em 2 Baruc 39–40, à queda previstado quarto reino (Roma) se seguirá a revelação doMessias (2Br 39,7), que destruirá os exércitos

do último governante ímpio, e este será acorren-tado e conduzido a Sião, onde será julgado eexecutado pelo Messias (2Br 40,1-2). O reino doMessias durará “para sempre”, ou seja, até queo mundo de corrupção tenha terminado, o quesignifica que este reino é temporário, mas deduração indefinida. Por fim, em 2 Baruc 72,2–74,3, o guerreiro Messias reunirá todas as na-ções, poupando algumas e executando outras(2Br 72,2-6). Depois desse período de julga-mento, haverá um tempo em que as condiçõesedênicas serão restabelecidas na Terra (2Br 73,1-7). Como em 4 Esdras, o Messias não desempe-nha nenhum papel no reino eterno inauguradoapós ele ser levado para o céu.

3.6. O antagonista escatológico. Na litera-tura apocalíptica judaica há duas tradições deuma figura escatológica ímpia que opera comoagente de Satanás ou Beliar para desencami-nhar, contrariar e perseguir o povo de Deus; asduas tradições representam historicizações doantigo mito de combate. Uma tradição concen-tra-se em um governante tirânico ímpio quesurgirá na última geração para ser o adversárioprimordial de Deus ou do Messias. Esperava-seque esse agente satânico liderasse as forças domal na última batalha entre as forças do mal eo povo de Deus (1QM 18,1; 1QS 4,18; TDan5,10-11; TMo 8).

A historicização do mito de combate já seencontra no AT, onde os monstros do caos Rahabe Leviatan são às vezes usados para simbolizarforças opressoras como o Egito (Sl 74,14; 87,4;Is 30,7; Ez 29,3; 32,2-4). Diversas tradiçõesveterotestamentárias forneceram a base para oconceito apocalíptico mais tardio do antagonistaescatológico, inclusive Gog, o governante deMagog no oráculo de Gog e Magog em Eze-quiel 38–39 (ver Ap 20,8; 3Hen 45,5), as refe-rências a um vago inimigo “do norte” encontra-das em diversas profecias veterotestamentárias(Ez 38,6.15; 39,2; Jr 1,13-15; 3,18; 4,6; 6,1.22)e a descrição de Antíoco IV, o “pequeno chifre”,em Daniel 7–8, como opressor do povo de Deus.O rei greco-sírio Antíoco IV Epífanes (175-164a.C.), cujas ações contra o povo judeu estãodescritas em 1 Macabeus 1,20-61 e 2 Macabeus5,11–6,11, é, em Daniel 11,36-37, apresenta-do como figura apocalíptica mitificada, que se

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:2399

100Aa

proclama um deus, igual a Deus (Dn 11,36-37;Sib 5,33-34; AscIs 4,6; 2Hen 29,4).

Mais tarde, as características do adversárioescatológico foram aumentadas e embelezadaspor tradições a respeito dos imperadores roma-nos* Calígula e Nero, ambos com pretensõesdivinas que seus contemporâneos romanos con-sideravam indecorosas e que chocavam os ju-deus. A outra tradição diz respeito ao falso pro-feta que anuncia sinais e prodígios para legiti-mar seu falso ensinamento (cf. Dt 13,2-6). Oca-sionalmente, Satanás e o antagonista escatoló-gico são identificados como a mesma pessoa,por exemplo, em Oráculos Sibilinos 3,63-74 eAscensão de Isaías 7,1-7, Nero (= o antagonis-ta escatológico) é considerado a encarnação deBeliar (= Satanás).

3.7. A recriação ou transformação do cos-mos. Em Isaías 65,17 e 66,22 é profetizada acriação de céus novos e uma terra nova. O temada recriação ou renovação da criação foi adota-do na literatura apocalíptica como ato escatoló-gico final. Em essência, a expectativa de umacriação nova ou uma criação renovada é apli-cação específica do esquema de dois mundos,no qual a primeira criação identifica-se com otempo (ou mundo) do mal presente e a criaçãonova ou renovada identifica-se com o tempo(ou mundo) vindouro. Embora na literaturaapocalíptica judaica haja muitas referências ànova criação, nem sempre fica claro se a ordematual da criação será ou não reduzida ao caosantes do ato de recriação (1Hen 72,1; 91,16;Sib 5,212; Jub 1,29; 4,26; AntBíb 3,10; ApElias5,38; 2Pd 3,13; Ap 21,1.5; ver 2Cor 5,17; Gl6,15), ou se o objetivo é a renovação ou trans-formação do mundo existente (1Hen 45,4-5;2ApBr 32,6; 44,12; 49,3; 57,2; AntBíb 32,17;4Esd 7,30-31.75; ver Rm 8,21). Em muitas des-sas passagens, o padrão da criação nova outransformada baseia-se nas condições edênicasque se acreditava terem existido na Terra antesda queda de Adão e Eva.

4. Paulo e a apocalíptica judaica4.1. Fontes e problemas. Segundo os críticos,

as sete cartas geralmente reconhecidas comopaulinas proporcionam uma base sólida paraanalisar a teologia paulina. Essas cartas com-

preendem Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas,Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filêmon. As car-tas das quais a autenticidade continua duvidosa(2 Tessalonicenses, Colossenses) ou que têmrejeitada a autoria paulina (Efésios; 1 e 2 Timó-teo; Tito) são consultadas apenas para suple-mentar dados encontrados no corpus básico desete cartas. Os Atos dos Apóstolos são outrafonte importante para nosso conhecimento davida de Paulo, mas também essa obra deve serconsultada apenas como suplemento do núcleode cartas genuínas.

Um dos maiores problemas no estudo davida e do pensamento de Paulo é o de determinaraté onde é apropriado rotular o pensamento pau-lino de “apocalíptico”. Em geral, todos concor-dam que Paulo foi influenciado pela escatologiaapocalíptica, mas a extensão na qual ele modifi-cou o apocaliptismo à luz de sua fé em Cristocontinua a ser um problema fundamental. Baum-garten afirma que Paulo desmitifica as tradiçõesapocalípticas, aplicando-as consistentemente àvida presente da comunidade.

Outro problema concentra-se na questão daorigem do pensamento apocalíptico paulino.Baumgarten (43-53) sugere que as tradiçõesapocalípticas chegaram até Paulo por intermé-dio dos helenistas de Antioquia*.

4.2. Centro ou estrutura do pensamentopaulino. A complexidade do pensamento teo-lógico paulino é exacerbada pelo fato de se achara prova principal de suas opiniões em cartas oca-sionais escritas em uma variedade de contextosespecíficos com o propósito de tratar de determi-nados problemas e questões; são comunicaçõespastorais historicamente eventuais. Além disso,é difícil considerar o corpus básico de sete cartasamostra representativa do pensamento paulino.Apesar das dificuldades, foram feitas muitas ten-tativas para entender a coerência do pensamentopaulino e, com base nisso, identificar o núcleoou centro* de seu pensamento. Alguns biblistasduvidam de que o próprio Paulo pensasse emtermos desse “núcleo”, ou de que os indícios desete cartas ocasionais sejam adequados a essatarefa. Algumas das sugestões mais importantespara identificar a mensagem fundamental pauli-na compreendem: 1) o evangelho*, 2) a cristo-logia*, 3) a morte* e a ressurreição* de Jesus,

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:23100

101A a

4) o tema “em Cristo”* (categorias participa-tivas), 5) a eclesiologia (ver Igreja), 6) a justifi-cação* pela fé (a visão luterana tradicional) e7) a antropologia (F. C. Baur; R. Bultmann).Entretanto, é evidente que muitos desses assun-tos estão estreitamente relacionados com outros,de modo que a escolha de um núcleo para opensamento paulino torna-se questão de sutileza.Está claro, por exemplo, que a polêmica doutrinapaulina de justificação pela fé é um aspecto desua cristologia e que os temas de antropologiae eclesiologia são duas maneiras de ver cristãosindividuais que, ao mesmo tempo, fazem partedo povo de Deus.

Outros biblistas sugerem ser mais impor-tante identificar a estrutura do pensamento pau-lino. Duas das sugestões mais importantes in-cluem: 1) a história da salvação, ou seja, Deus,que é o ator central da história, tem desde oprincípio, um objetivo salvífico para a huma-nidade, originalmente concentrado em Israele, no final das contas, em todos os que crêemem Cristo, estrutura evidente, em especial, emRomanos 9–11; e 2) a escatologia apocalíptica.Entretanto, a história da salvação e a escatolo-gia apocalíptica não devem ser consideradasantitéticas, pois a segunda é apenas uma versãomais específica e particular da primeira. Alémdisso, é questão de debate contínuo se essassugestões constituem o horizonte ou o centrodo pensamento paulino.

4.3. Paulo como visionário e místico. Em-bora usualmente escondessem suas verdadeirasidentidades por trás de pseudônimos, os autoresde apocalipses recebiam a revelação divina porintermédio de visões* e, por essa razão, estrutu-ravam os apocalipses que escreviam como nar-rativas das visões que realmente tinham ou fin-giam ter. Havia estreita relação entre o misti-cismo merkavá judaico (baseado em Ez 1; verJudeu, Paulo, o; Misticismo) e o apocaliptismo(Gruenwald), embora visões extracorpóreas fos-sem mais comuns no primeiro e ascensões cor-póreas ao céu mais comuns no segundo. Apesarde não haver provas de que ele próprio tenhaescrito um apocalipse, Paulo alega ter tido visõesreveladoras e experiências extáticas (Gl 1,11-17;1Cor 9,1; 15,8; ver At 9,1-9; 16,9; 18,9-10; 22,6-11.17-21; 26,12-18; 27,23-24). Em Gálatas 1,12,

ele fala da experiência na estrada de Damascocomo apokalypsis (“revelação”) de Jesus Cristo(ver Conversão), e em 2 Coríntios 12,1 fala de“visões e revelações [apokalypseis] do Senhor”,que presumimos sejam descrições de sua expe-riência. É provável que Paulo seja o homem dequem ele fala, que foi arrebatado ao terceiro céu,onde ouviu coisas indizíveis (2Cor 12,1-10).

4.4. Cenários apocalípticos. Nas cartas pau-linas, há quatro cenários apocalípticos relativa-mente extensos, três que se concentram na paru-sia de Jesus (1Ts 4,13-18; 2Ts 1,5-12; 1Cor15,51-57) e o chamado “apocalipse paulino”,que se concentra na vinda do antagonista escato-lógico (2Ts 2,1-12). Há também alguns cenáriosmenores, que parecem ser de caráter preceituale, portanto, de origem pré-paulina ou extrapau-lina (1Ts 1,9-10; 3,13; 5,23).

4.5. Dualismo limitado. A visão paulina dasoberania de Deus (Rm 9–11) evidencia que elecompartilha as convicções dualísticas básicasdo apocaliptismo judaico do final do período doSegundo Templo.

4.5.1. Dualismo temporal ou escatológico.Em continuidade ao pensamento dualístico doapocaliptismo judaico, Paulo também contrastouo tempo presente do mal com o tempo vindourode salvação* (Gl 1,4; Rm 8,18; 1Cor 1,26; verEf 5,16) e acreditou que vivia no fim dos tempos(1Cor 10,11). Contudo, Paulo mudou considera-velmente a nítida distinção que o pensamentoapocalíptico costumava fazer entre esses doistempos. Paulo entendia a morte e ressurreiçãode Jesus no passado como acontecimentos esca-tológicos cósmicos que separavam “este mundo”(Rm 12,2; 1Cor 1,20; 2,6) ou “este mundo domal” (Gl 1,4) do “mundo vindouro”. Este mundopresente é dominado pelos príncipes, poderesdemoníacos que estão votados à destruição (1Cor2,6-7; ver Autoridades e poderes).

A crença paulina na ressurreição* de Jesus,o Messias, convenceu-o de que os acontecimen-tos escatológicos tinham começado na históriae que a ressurreição de Jesus fazia parte da ex-pectativa judaica da ressurreição dos justos(1Cor 15,20-23). Para Paulo, o presente é um pe-ríodo temporário entre a morte e a ressurreiçãode Cristo e sua volta na glória na qual os quecrêem no Evangelho compartilham os benefícios

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:23101

102Aa

salvíficos do mundo vindouro (Gl 1,4; 2Cor5,17). Este período temporário caracteriza-sepelo dom escatológico do Espírito de Deus quehabita na comunidade cristã em geral e tambémem cada um dos fiéis que são membros da co-munidade cristã (Rm 8,9-11; 1Cor 6,19; 12,4-11; 1Ts 4,8; ver Espírito Santo). Embora nãouse explicitamente a frase “o mundo vindouro”em 2 Coríntios 5,7 e Gálatas 6,15, Paulo usa afrase “nova criação”, frase com associações apo-calípticas (Is 65,17; 66,22; Ap 21,1). Embora aconsumação final ainda esteja no futuro, paraos cristãos o novo tempo estava presente porqueo Messias tinha vindo.

A estrutura básica da história da salvaçãodo pensamento paulino incorpora em si a noçãoapocalíptica dos dois tempos sucessivos. Issoestá claro em Romanos 5,12-21, onde Paulo es-quematiza a história em termos dos dois reinosde Adão* e Cristo, ambos parte da experiênciapresente. Portanto, Paulo fez uma distinção entre“já” e “ainda não”, indicada por seu uso do indi-cativo e imperativo em passagens como Gálatas5,25: “Se vivemos (indicativo) pelo Espírito,andemos (imperativo) também sob o impulsodo Espírito”. Enquanto a carne* foi crucificadacom Cristo (Gl 2,20; 3,24; 6,14; Rm 6,2.6-7.22;8,13), os desejos da carne ainda representamtentações para os cristãos (Gl 5,16-18; Rm 6,12-14; 8,5-8). A obediência cotidiana do cristão pro-porciona a contínua e necessária autenticação deseu ato original de crer em Cristo até que a re-denção* futura da criação e a liberdade* dos fi-lhos de Deus sejam uma realidade (Rm 8,19-20).

4.5.2. Dualismo espacial. A cosmologiaisraelita antiga imaginava um cosmos em trêsníveis: céu, Terra e Sheol. Essa mesma con-cepção do universo foi transmitida ao judaísmoprimitivo, porém a ênfase na transcendência deDeus que caracterizava o judaísmo tardio doSegundo Templo pressupunha uma distinçãomais nítida entre o mundo celeste e o mundoterrestre. Esse dualismo espacial (o céu comomorada de Deus e seus anjos, a Terra como mo-rada da humanidade) coincidia com o dualis-mo temporal ou escatológico no sentido de sero reino de Deus, ou o mundo vindouro, umarealidade celeste que acabaria por substituira realidade terrestre deste mundo do mal. Para

Paulo, “o que se vê é provisório, mas o quenão se vê é eterno” (2Cor 4,18; ver Fl 3,20;2Cor 5,1-5). Há, portanto, três reinos cósmicos:céu, Terra e a região debaixo da terra (Fl 2,10),embora o enfoque normal esteja agora nos doisreinos cósmicos primordiais: céu e Terra (1Cor8,5; 15,47-50; ver Cl 1,16.20; Ef 1,10; 3,15).O céu* é onde habitam Deus e seus anjos (Rm1,18; 10,6; Gl 1,8; ver Ef 6,9) e é o lugar ondeCristo está agora sentado à direita de Deus,tradição baseada na interpretação cristã pré-paulina do Salmo 110,1 (Rm 8,34; Cl 3,1). Océu é o lugar do qual Jesus voltará no futuro pró-ximo como salvador e juiz (1Ts 1,10; 4,16; Fl3,20; ver 2Ts 1,7; ver Mundo, Cosmologia).

4.5.3. Dualismo ético. Para Paulo, os doispoderes cósmicos antitéticos eram Deus* e Sa-tanás*, que representam, respectivamente, asqualidades morais do bem e do mal. Deus é afonte suprema de amor* (Rm 5,5; 8,39; 2Cor13,13). É Deus que expressa amor pela humani-dade, enviando seu Filho para morrer em repara-ção pelos pecados dela (Rm 5,8). A influênciado Espírito de Deus, ou seja, a presença ativa deDeus no mundo, reflete-se em virtudes éticascomo amor, paciência, bondade e domínio de si(Gl 5,22-23). Há uma semelhança essencial en-tre as listas em 1QS 4,2-6.9-11, em que as vir-tudes* encorajadas pelo espírito da verdade sãopostas em contraste com os vícios fomentadospelo espírito da falsidade, e as listas em Gálatas5,16-24, em que os vícios são obras da carne eas virtudes são fruto do Espírito. Satanás é men-cionado freqüentemente como o adversário so-brenatural de Deus e dos cristãos e a fonte domal no mundo (Rm 16,20; 1Cor 7,5; 2Cor 2,11;11,14; 12,7; 1Ts 2,18).

4.5.4. Dualismo psicológico ou microcós-mico. Supondo que a estrutura da teologia dePaulo seja, em parte, produto de sua adaptaçãodo apocaliptismo judaico como sistema básicopara entender a importância da morte e da res-surreição de Jesus, o Messias, essa mesma es-trutura apocalíptica exerceu profunda influênciana maneira como ele entendeu as conseqüênciasda salvação em cada um dos cristãos. A estruturabásica do apocaliptismo judaico consistia emum dualismo temporal ou escatológico, consti-tuído de dois tempos, a época presente (período

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:23102

103A a

de opressão pelos ímpios), à qual se sucederáuma época futura feliz. Embora o apocaliptismojudaico se voltasse, em grande parte, para o fu-turo, o reconhecimento do fato de Jesus ser oMessias, que era figura do passado e tambémdo presente e do futuro, levou Paulo a introduziralgumas modificações significativas e entre elasdestaca-se o abrandamento da distinção entreeste mundo e o mundo vindouro, com ênfasena presença oculta do mundo vindouro dentrodo mundo presente.

Paulo manifesta uma tendência a conceitua-lizar a natureza e a existência humana como ver-são microcósmica de uma forma cristianizadade escatologia apocalíptica. Em outras palavras,a estrutura apocalíptica da história era considera-da paradigma para o entendimento da naturezahumana. Com efeito, o cristão situa-se no centroda história, no sentido de que nele os poderesopostos que dominam o cosmos estão empe-nhados em uma luta. Exatamente como a formacristã paulina de pensamento apocalíptico carac-terizava-se por um dualismo histórico ou escato-lógico que consistia na justaposição do mundoantigo e do novo, também sua visão da naturezahumana refletia uma estrutura dualística igual-mente homóloga, o que está claro em 2 Coríntios5,17: “Por isso, se alguém está em Cristo, é umanova criatura. O mundo antigo passou, eis queaí está uma realidade nova”. Aqui Paulo empregaa expectativa apocalíptica básica da renovaçãoda criação (i.e., a inauguração do mundo vindou-ro) em seguida à destruição do presente mundodo mal, como paradigma da transformação ex-perimentada pelo cristão que passou da incredu-lidade para a crença. Assim, a expectativa apoca-líptica de iminente mudança cósmica do presen-te mundo do mal para o mundo futuro da salva-ção tornou-se paradigma para a transformaçãodo fiel (ver Criação e Nova Criação).

Como essa transformação apocalíptica afetaapenas os “em Cristo”, o mundo exterior e seushabitantes continuam sob a influência do mundoantigo. A expressão “nova realidade” refere-se àrenovação ou à recriação do céu e da Terra depoisda destruição do antigo cosmos (Is 65,17; 66,22;1Hen 91,16; 72,1; 2ApBr 32,6; 44,12; 49,3;57,2; AntBíb 3,10; 2Pd 3,11-13; Ap 21,1). Oentendimento existencialista de Bultmann sobre

os termos antropológicos paulinos (i.e., da pes-soa humana como agente livre responsável porsuas decisões) e o entendimento apocalíptico oucosmológico de E. Käsemann sobre a antropolo-gia paulina (i.e., a pessoa humana é vítima deforças cósmicas sobrenaturais) não são catego-rias mutuamente exclusivas. Paulo também ima-gina a luta dentro de cada cristão como o con-flito entre o Espírito e a carne, por exemplo emGálatas 5,16: “Andai sob o impulso do Espíritoe não façais mais o que a carne deseja”.

4.6. Jesus, o Messias. Um dos maiores obs-táculos que impediam a crença judaica em Jesuscomo o Messias da expectativa judaica era ofato da crucifixão* (1Cor 1,18-25; Gl 5,11; verHb 12,2). Um dos problemas não solucionadosna pesquisa do cristianismo primitivo é a razãopela qual os cristãos primitivos reconheciam aposição messiânica de Jesus, embora ele nãopreenchesse nenhuma das funções essenciaisque o povo judeu esperava da figura do Messiasdavídico, inclusive seu papel como sumo sacer-dote escatológico, rei paradigmático benevolentee todo-poderoso, juiz e destruidor dos ímpios,libertador do povo de Deus (SlSal 17; 4Esd 12;2ApBr 40). Nas sete cartas incontestes de Paulo,o termo Christos, com o significado de “Ungi-do”, “Cristo” ou “Messias”, ocorre 266 vezes,em geral como nome próprio para Jesus (e.g.,“Jesus Cristo”), muitas vezes com alguma qua-lidade titular residual (evidente no nome “JesusCristo”) e ocasionalmente como nome para umMessias específico, Jesus (Rm 9,5), mas jamaiscomo termo geral para um libertador escatológi-co dentro do judaísmo. Nas sete cartas paulinasessenciais, Christos nunca é usado como predi-cado (e.g., “Jesus é o Cristo”), Christos nuncarecebe um artigo definido depois do nome“Jesus” (e.g., “Jesus o Cristo”) e Christos nun-ca é acompanhado de um nome no genitivo (e.g.,“o Cristo de Deus”). É seguro concluir que, paraPaulo, a posição messiânica de Jesus não eraassunto de controvérsia ou preocupação. Paulodá como certo, mas não argumenta, que Jesus éo Messias (ver Cristo).

4.7. A parusia e o julgamento. Os profetasveterotestamentários mais tardios referiam-secom freqüência ao Dia do Senhor como a ocasiãoem que Deus julgaria o mundo (Am 5,18-20;

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:23103

104Aa

Sf 1,14-16; Jl 2,2). Na literatura apocalípticajudaica, a inauguração do escathon ocorre com avinda de Deus ou de um agente reconhecido porDeus, o Messias, para trazer salvação e julga-mento*. Embora Paulo fale do “Dia do Senhor”(1Ts 5,2) e do papel de Deus como juiz escato-lógico (Rm 3,6), o centro de sua esperança esca-tológica passa de Deus para Cristo, de modoque ele fala do iminente Dia do Senhor (1Ts5,2) e proclama que nesse dia Deus julgará porJesus Cristo o comportamento oculto dos ho-mens (Rm 2,16; ver 2Tm 4,1). Paulo refere-se àparusia como “revelação [apokalypsis] de nossoSenhor Jesus Cristo” (1Cor 1,6) e (por analogiacom a expressão veterotestamentária “o Dia doSenhor”) como “o Dia de Nosso Senhor JesusCristo” (1Cor 1,8; Fl 1,6; 3,12-21; Rm 14,7-12.17-18; 2Cor 5,10; 1Ts 4,13-18; 1Cor 15,20-28.50-58; ver Escatologia).

4.8. A Ressurreição. Para Paulo, a Ressur-reição* de Jesus não era um fato milagrosoisolado, mas sim a primeira etapa da ressurrei-ção geral dos justos mortos (1Cor 15,20-23).Como acontecimento escatológico, Paulo espe-ra que a ressurreição dos justos ocorra quandoCristo voltar (Fl 3,20; 1Ts 4,13-18; 1Cor 15,51-53). Os que ressuscitarem dos mortos serãotransformados em um novo modo de existência(1Cor 15,51-53; Fl 3,20-21). Expectativa seme-lhante ocorre na literatura apocalíptica judaica(Dn 12,3; 1Hen 39,4-5; 62,15; 2Hen 65,10;2ApBr 49,3). Mas a Ressurreição de Jesus, quegarante a ressurreição dos fiéis, não é apenasum acontecimento passado com conseqüênciasfuturas. Nem é a morte de Jesus apenas um fatohistórico. Para os cristãos, o batismo representauma identificação real com Cristo e sua mortee ressurreição, anunciando a morte para a vidaantiga e a ressurreição para a nova (Rm 6,1-14;8,10-11; ver Cl 3,1-3; Ef 2,1-10).

4.9. O antagonista escatológico. A doutrinacristã da encarnação de Cristo tornou quase ine-vitável que um oposto satânico de Cristo fosseincorporado à expectativa apocalíptica cristã. Noapocalipse sinótico, está previsto o aparecimentode falsos messias e falsos profetas no fim dostempos (Mc 13,21-22; Mt 24,23-24). Na literatu-ra joanina, essa personagem é chamada o anti-cristo (1Jo 2,18.22; 4,3; 2Jo 7). No Apocalipse,

as duas principais tradições do anticristo, o ím-pio governante tirânico e o falso profeta sedutor,são mantidos à parte. O governante ímpio é cha-mado besta do mar (Ap 13,1-10; 16,13; 19,20),enquanto o falso profeta é chamado besta da ter-ra ou falso profeta (Ap 13,11-18; 16,13; 19-20).Nas cartas paulinas há uma única discussão ex-tensa da vinda do antagonista escatológico (2Ts2,1-12), embora estranhamente não haja alusõesa esta figura em nenhuma outra passagem dascartas paulinas. Em 2 Tessalonicenses 2,1-12,Paulo combina em uma única personagem asduas principais tradições escatológicas do anta-gonista, a do ímpio governante tirânico e a dofalso profeta sedutor. Essa pessoa é chamada de“Homem da impiedade” e “Filho da perdição”(2Ts 2,3; ver Dn 11,36-37; Sib 5,33-34; AscIs4,6; 2Hen 29,4), que se assentará em pessoa notemplo de Deus, se proclamará Deus (2Ts 2,4)e operará milagres para legitimar sua reivin-dicação (2Ts 2,9; ver Mc 13,22; Mt 24,24; Ap13,13-14; ver Sinais, prodígios, milagres). Esseantagonista escatológico ainda não apareceuporque alguém ou alguma coisa o retém (2Ts2,7), embora não se chegue a um acordo seessa força restringente é Satanás, o Império Ro-mano ou talvez uma força natural. O antago-nista escatológico será destruído pelo SenhorJesus quando este vier para julgar (2Ts 2,8;ver Homem da impiedade).

4.10. O problema de um reino messiânicotemporário. A relevância de 1 Coríntios 15,20-28 para a visão judaica primitiva e cristã primi-tiva de um reino messiânico intermediário tem-porário é questionada, embora a opinião geralseja que não há nenhuma prova clara e convin-cente de que Paulo, como o autor do Apocalipse(Ap 20,1-6), esperasse um interregno messiânico(ver Reino de Deus/Cristo).

Assim A. Schweitzer resumiu as crençasapocalípticas paulinas: 1) a repentina e inespe-rada volta de Jesus (1Ts 5,1-4); 2) a ressurrei-ção dos fiéis mortos e a transformação dos fiéisvivos, que encontram todos, nos ares, o Jesusque volta (1Ts 4,16-17); 3) o tribunal messiâni-co presidido por Cristo (2Cor 5,10) ou por Deus(Rm 14,10); 4) a inauguração do reino messiâ-nico (não descrito por Paulo, mas insinuado em1Cor 15,25; Gl 4,26); 5) a transformação de toda

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:23104

105A a

natureza da mortalidade para a imortalidade*durante o reino messiânico (Rm 8,19-22) e aluta com poderes angelicais (1Cor 6,3) até a pró-pria morte ser vencida (1Cor 15,23-28); 6) otérmino do reino messiânico (Paulo não men-ciona sua duração); 7) a ressurreição geral aotérmino do reino messiânico (Rm 16,20); 8) ojulgamento de toda a humanidade e dos anjosderrotados. Segundo Schweitzer, Paulo introdu-ziu duas ressurreições, embora a escatologia ju-daica que o precedeu só conhecesse uma únicaressurreição, ou no começo ou no fim do reinomessiânico. Essa modificação foi motivada pe-la crença de Paulo na morte e ressurreição deJesus, o Messias. A primeira ressurreição pos-sibilita aos fiéis que morreram e também aoscristãos vivos participarem do reino messiâni-co, gozando todos de um modo de existênciade ressurreição.

A reconstrução que Schweitzer faz da esca-tologia paulina sofreu severas críticas. 1) Em1Tessalonicenses 4,13-18 e 1 Coríntios 15,20-28 não há nenhum indício de que Paulo espe-rasse um reino messiânico intermediário (Wi-cke). 2) Não há nenhuma indicação de que Pau-lo esperava uma ressurreição geral dos mortostanto justos como ímpios.

Há algumas razões para pensar ser maisprovável que 1 Coríntios 15,20-28 revele quea parusia logo será seguida pela ressurreição epelo julgamento, que juntos prenunciarão aconsumação final da história (Davies 1970,295-297): 1) Para Paulo, o Reino de Deus é umreino eterno (1Ts 2,12; Gl 5,21; 1Cor 6,9-10;15,50; ver 2Ts 1,4-5; Cl 4,11). 2) O único textoque menciona o “reino” de Cristo (Cl 1,12-13)entende-o como um fato presente. 3) Paulo ligaa parusia ao julgamento do mundo (1Cor 1,7-8;2Cor 1,14; Fl 1,6.10; 2,16). É provável quePaulo tenha, em essência, tornado histórico oconceito apocalíptico de um reino messiânicotemporário, em termos de um período temporá-rio entre a crucifixão e a Ressurreição de Jesuse sua parusia.

Ver também CRIAÇÃO E NOVA CRIAÇÃO; ES-CATOLOGIA; REINO DE DEUS/CRISTO; HOMEM DA

IMPIEDADE E PODER RESTRINGENTE; QUMRAN E

PAULO; RESTAURAÇÃO DE ISRAEL; RESSURREIÇÃO;TRIUNFO; MUNDO, COSMOLOGIA.

BIBLIOGRAFIA: J. Baumgarten. Paulus und dieApokalyptik. Neukirchen-Vluyn, 1975; J. Becker.“Erwägungen zur apokalyptischen Tradition inder paulinischen Theologie”. EvT 30, 1970,593-609; J. C. Beker. Paul’s Apocalyptic Gos-pel: The Coming Triumph of God. Philadelphia,Fortress, 1982; Idem. Paul the Apostle. Phila-delphia, Fortress, 1980; H. D. Betz. “On theProblem of the Religio-Historical Understan-ding of Apocalypticism”. Journal for Theologyand the Church 6, 1969, 134-156; V. P. Branick.“Apocalyptic Paul?”. CBQ 47, 1985, 664-675;J. J. Collins (org.). Apocalypse: The Morpho-logy of a Genre. Semeia 14, Missoula, Scho-lars, 1979; W. D. Davies. “Apocalyptic and Pha-risaism”. In: Christian Origins and Judaism.Philadelphia, Westminster, 1962, 19-30; Idem.Paul and Rabbinic Judaism. 3. ed., London,SPCK, 1970; I. Gruenwald. Apocalyptic andMerkavah Mysticism. Leiden, E. J. Brill, 1980;P. D. Hanson. The Dawn of Apocalyptic. Phila-delphia, Fortress, 1975; E. Käsemann. “On theSubject of Primitive Christian Apocalyptic”. In:New Testament Questions of Today. Philadel-phia, Fortress, 1969, 108-137; K. Koch. TheRediscovery of Apocalyptic. SBT, 2. sér. 22,Naperville, IL, Allenson, 1970; L. J. Kreitzer.Jesus and God in Paul’s Eschatology. JSNTSup19, Sheffield, JSOT, 1987; H. P. Mueller.“Mantische Weishe und Apokalyptik”. In: Con-gress Volume. VTSup 22, Leiden, E. J. Brill,1972, 268-293); O. Ploeger. Theocracy andEschatology. Richmond, John Knox, 1959; G.von Rad. Old Testament Theology. New York,Harper & Row, 1962-1965, 2 vols.; C. C. Row-land. The Open Heaven: A Study of Apocalypticin Judaism and Early Christianity. New York,Crossroad, 1982; D. S. Russell. The Methodand Message of Jewish Apocalyptic. Philadel-phia, Westminster, 1964; A. Schweitzer. TheMysticism of Paul the Apostle. New York, Holt,1931; M. Smith. “On the History of Apokalyptoand Apokalypsis”. In: Apocalypticism in theMediterranean World and the Near East. D.Hellholm (org.). Tübingen, J. C. B. Mohr, 1983,9-20; H.-A. Wilcke. Das Problem eines messia-nischen Zwischenreichs bei Paulus. ATANT 51,Zurich, Zwingli, 1967.

D. E. AUNE

APOCALIPTISMO

APOCALIPTISMO

A.p65 28/03/2008, 15:23105

106Aa

APOIO FINANCEIROAs cartas paulinas têm mais a dizer a respeitodo apoio financeiro a ministros e do levantamen-to de fundos na Igreja que qualquer outro livrodo NT. Em 1 Coríntios 9 e 2 Coríntios 11–12,Paulo explica por que recusa o apoio financeiroa que tem direito como apóstolo; e, na carta aosFilipenses, Paulo agradece à Igreja o generosoapoio financeiro a seu ministério. Um dos prin-cipais projetos do ministério paulino era levantardinheiro para uma coleta* que iria para os po-bres da Igreja de Jerusalém*. Ele escreve exten-samente a respeito dessa coleta em 2 Coríntios8–9 e a menciona em Romanos 15,25-32, 1 Co-ríntios 16,1-4 e Gálatas 2,9-10. Esses textosmostram que, para Paulo, as questões financei-ras sempre tinham importantes implicações teo-lógicas e que os pedidos de dinheiro deviam serelacionar com a mensagem do evangelho*.

1. Apoio financeiro para os apóstolos2. A coleta3. Dinheiro e missão

1. Apoio financeiro para os apóstolosA questão do apoio financeiro é abordada nadefesa que Paulo faz de seu apostolado, em 1Coríntios 9 e 2 Coríntios 11–12 (ver Apóstolo).O aspecto mais notável dos comentários de Pauloé sua recusa a aceitar apoio financeiro da congre-gação coríntia, atitude que evidentemente deu ori-gem a considerável controvérsia em Corinto. Aquia ligação entre dinheiro e autoridade* está emdiscussão. Paulo foi acusado de não ter verdadeiraautoridade apostólica, porque não aceitava o cos-tumeiro apoio financeiro apostólico.

1.1. Base histórica para a questão do apoiofinanceiro. É provável que os coríntios descon-fiassem da autoridade de Paulo por entenderemas ações dele em termos da questão de comomestres e filósofos deviam ser sustentados,questão que provocava muito debate na socie-dade grega de então. Em sua maioria, os filóso-fos cobravam taxas ou aceitavam o patrocíniode um indivíduo abastado. A principal crítica aesse método de sustento era que ele fazia ofilósofo ter compromisso com um protetor e,desse modo, punha em perigo sua liberdadepara ensinar a verdade. Na sociedade helenísti-ca, dar e receber benefícios era componente

muito importante da estrutura social. Os ricosexpressavam seu poder tornando-se patronos e,como a obra beneficente era a base da amizade,recusar uma dádiva era ato de inimizade. Os fi-lósofos que desejavam evitar essa rede de favo-res mendigavam, como os cínicos preferiamfazer, ou trabalhavam. Entretanto, como quasetoda a sociedade grega menosprezava os quetinham um ofício ou mendigavam, não erammuitos os filósofos que escolhiam esse métodode sustento. Os que o faziam conquistavam aliberdade à custa da posição social.

Visto contra esse pano de fundo, o enganodos coríntios quanto à recusa de Paulo a aceitarapoio financeiro faz sentido. Ao recusar ser sus-tentado pelos coríntios, Paulo parecia recusar aamizade deles, ou se recusar a lhes dar a oportuni-dade de compartilhar o ministério* do evangelho.Os coríntios também poderiam pensar que, aotrabalhar em um ofício em vez de aceitar o patro-cínio deles (ver Fabricação de tendas), Paulo oshumilhava e a si próprio. O que está em questãoaqui não é apenas a posição de Paulo como após-tolo, mas também a posição dos coríntios comocongregação. Os coríntios querem que seu após-tolo tenha o respeito da sociedade e querem parti-lhar esse respeito, sustentando-o. Assim, pergun-tam se Paulo merece ou não ser respeitado comoverdadeiro apóstolo, já que se recusa a aceitaro verdadeiro apoio financeiro apostólico.

1.2. Razões para o apoio financeiro dosapóstolos. Em 1 Coríntios 9, Paulo inicia a de-fesa de seu apostolado (e de seu direito apostó-lico de recusar apoio financeiro) com umavigorosa defesa do direito que um apóstolo temde ganhar a vida anunciando o evangelho.

A autoridade de Paulo como apóstolo foicontestada, assim ele inicia sua defesa em 1 Co-ríntios 9,1-2 demonstrando ser apóstolo e lem-brando aos coríntios que a congregação coríntiaresultou de seus esforços apostólicos. Em 1 Co-ríntios 9,4-14, Paulo afirma que ele e Barnabétêm o mesmo direito a ajuda financeira que osoutros apóstolos. Os apóstolos têm o direito dereceber comida e bebida e de estar acompanha-dos de uma esposa (que presumivelmente tam-bém seria sustentada). Como outros apóstolos,Paulo tem o direito de não precisar trabalharpara se sustentar, mas para viver do evangelho.

APOIO FINANCEIRO

APOIO FINANCEIRO

A.p65 28/03/2008, 15:23106

107A a

Paulo apresenta diversos argumentos diferentesa fim de provar seu ponto de vista a respeito dodireito de um apóstolo ao apoio financeiro. Pri-meiro ele emprega diversas analogias que mos-tram que na vida cotidiana as pessoas esperamser sustentadas pelo trabalho. Em seguida, Paulousa um exemplo da Escritura para mostrar que alei também fala dessa questão e insiste que atéos animais são alimentados pelo trabalho querealizam. Ainda mais pertinente, ele lembra aoscoríntios que os que oficiam nos templos ju-daicos e pagãos são alimentados pelo que é ofe-recido em sacrifício. Sustentar os que servem aoaltar faz parte da devoção judaica e também dahelenística. Os ministros cristãos não são dife-rentes e é por isso que o Senhor ordena que osque anunciam o evangelho vivam do evangelho.

No argumento a respeito dos direitos apostó-licos ao sustento, Paulo defende sua autoridadeapostólica. A palavra grega exousia, traduzidapor “direito”, também significa “autoridade”*.Entender que o principal enfoque da defesa pau-lina é a autoridade apostólica, não os direitosapostólicos, ajuda a explicar por que Paulo tam-bém argumenta ter autoridade para desistir dodireito apostólico ao apoio material. Na discus-são a respeito dos direitos apostólicos, Paulonão só estabelece seu direito a ser sustentado,mas também afirma sua autoridade pela recusadesse sustento. Essa autoridade baseia-se noanúncio do evangelho, não em aceitar apoio fi-nanceiro. Por anunciar o evangelho, ele plantousementes espirituais entre os coríntios, sementesque resultaram na congregação que agora duvidade sua autoridade. Ele tem o direito aos benefí-cios materiais deles, mas não é obrigado a rece-ber seu apoio financeiro. Sua obrigação primor-dial é anunciar o evangelho, e é do evangelhoque ele recebe a autoridade apostólica.

1.3. Por que Paulo recusa apoio financeiro.Como apóstolo, a obrigação primordial de Pauloé para com o próprio evangelho. Um dos sinaisda autoridade apostólica é que por causa do evan-gelho ele renuncia ao direito de receber apoiofinanceiro. Paulo dá as razões para essa recusade apoio financeiro em 1 Coríntios 9,12.15-19;2 Coríntios 11,7-15; 2 Coríntios 12,13-18.

A primeira razão que Paulo dá para nãoaceitar apoio financeiro é não querer criar um

“obstáculo” ao evangelho. Exatamente o queesse “obstáculo” pode ser não fica claro em 1Coríntios 9. Em 2 Coríntios 11,9 e 12,14-18,Paulo diz que não quer ser oneroso aos coríntiosnem tirar vantagem deles de modo algum. Comoseu “pai” em Cristo, quer dar a eles, não receberdeles. A liberdade de Paulo para anunciar oevangelho também parece ser o assunto de 1 Co-ríntios 9,15-23. Qualquer aparência de ganânciaou obrigação para com os coríntios prejudicariaa causa do evangelho de Cristo.

A segunda razão para Paulo recusar apoiofinanceiro encontra-se em 1 Coríntios 9,15-18.Recusar apoio financeiro dá a Paulo um “moti-vo de orgulho” do evangelho. Como sua primei-ra obrigação de apóstolo é o anúncio do Evan-gelho, ele não se orgulha de anunciá-lo nem daautoridade apostólica que o evangelho lhe con-fere. Mas não é obrigado a receber apoio finan-ceiro para anunciá-lo. De fato, ao recusar o apoiofinanceiro, ele pode anunciar o evangelho ain-da mais eficazmente. É essa a recompensa queele busca. Quando anuncia o evangelho “gratui-tamente”, ele é exemplo vivo da mensagem queanuncia — que a graça de Deus é oferecidagratuitamente a todos em Cristo. É por isso quePaulo usa seu orgulho de não aceitar apoio paraexpor os falsos apóstolos em 2 Coríntios 11,10-18 (ver Adversários). Esses falsos apóstolosmostram que não servem ao verdadeiro evange-lho e, portanto, não têm posição apostólica ver-dadeira quando se aproveitam financeiramentedos coríntios. Quando a verdade do Evangelhoestá em jogo, Paulo se vangloria de servir so-mente ao evangelho, não a seus interesses finan-ceiros. Quando recusa apoio financeiro, ele ofaz por causa de sua relação apostólica singularcom o evangelho que anuncia.

Para os coríntios, quem aceita apoio finan-ceiro demonstra ter posição apostólica. Paulovira ao contrário esse modo de pensar e liga suaautoridade de apóstolo ao evangelho que anun-cia. O fato de oferecer esse evangelho gratuita-mente e recusar apoio financeiro em vez de pôrum empecilho no caminho do evangelho provasua posição de verdadeiro apóstolo. A preocupa-ção geral de Paulo é evitar usar mal sua autori-dade e, desse modo, prejudicar a causa do evan-gelho. A única paixão da vida de Paulo — tudo

APOIO FINANCEIRO

APOIO FINANCEIRO

A.p65 28/03/2008, 15:23107

108Aa

por amor ao evangelho — reflete-se em sua re-núncia ao apoio financeiro.

1.4. Paulo sempre recusou apoio? A cor-respondência paulina com os coríntios deixaclaro que ele não aceitou apoio financeiro daIgreja coríntia. Parece que ele também seguiuessa política na época que passou em Tessalôni-ca (1Ts 2,9). Mas em 2 Coríntios 11,9, Paulomenciona ter recebido apoio financeiro de cris-tãos macedônios na época que passou em Co-rinto. Em Filipenses 4,10-20, Paulo faz questãode agradecer a generosa dádiva que recebeu daIgreja filipense. Essa dádiva mais que satisfezsuas necessidades e Paulo assegura aos filipen-ses que Deus também satisfará as necessidadesdeles. A Igreja filipense tem sido parceira dePaulo no evangelho desde o início de seu minis-tério, em especial enquanto estava em Tessalô-nica. Essa parceria financeira reflete a estreitaligação entre Paulo e a congregação filipense.Filipenses 4,15 sugere que a Igreja filipensefoi a única que deu apoio financeiro a seu mi-nistério, embora 2 Coríntios 11,8 dê a entenderque outras Igrejas também sustentaram Paulo.Por que Paulo aceitou apoio financeiro dos fi-lipenses e se recusou a ser sustentado quandoestava em Corinto e Tessalônica?

Não há nenhuma indicação de que Paulotenha aceitado apoio financeiro dos filipensesenquanto estava efetivamente em Filipos. Esseapoio foi dado depois que partiu para instituiroutras Igrejas. Com sua dádiva, os filipensesiniciaram uma parceria com Paulo na proclama-ção do evangelho. Parece que Paulo não aceitouapoio de nenhuma Igreja enquanto nela trabalha-va ativamente. Mas depois de instituir uma Igre-ja esperava que seus membros contribuíssempara a causa do evangelho. Esse não é um com-portamento inconsistente da parte de Paulo. Éapenas outro exemplo que comprova o fato dePaulo pôr o evangelho em primeiro lugar e usaro dinheiro para promover o anúncio do evange-lho em vez de atrapalhá-lo. Embora não esperas-se apoio financeiro da Igreja coríntia para seuministério em Corinto, Paulo esperava que osmembros dessa Igreja ajudassem seu trabalhoposterior. Isto fica bem claro nos apelos paulinospara que os coríntios contribuam generosamentepara a coleta em favor dos santos de Jerusalém.

2. A coletaEmbora não pedisse às Igrejas nas quais traba-lhava que o sustentassem financeiramente, Paulonão hesitava em lhes pedir que contribuíssempara um de seus projetos em andamento — acoleta* para “os santos de Jerusalém que estãona pobreza” (Rm 15,26). A coleta é mencionadaem Gálatas 2,10 em ligação com a visita de Pau-lo aos apóstolos de Jerusalém. Como parte doacordo de que Paulo iria aos gentios* e os outrosapóstolos aos judeus (ver Israel), Paulo concor-da em se “lembrar dos pobres” (ver Riqueza epobreza). Em Romanos 15,25-32, Paulo diz àIgreja que ia levar uma contribuição a Jerusalém,antes de visitá-los em Roma. Essa contribuiçãovem dos santos da Macedônia e da Acaia comograta retribuição pelos bens espirituais que re-ceberam e como expressão tangível de unidadeentre judeus e gentios em Cristo. Em 1 Coríntios16,1-4, Paulo também menciona que ia levar acoleta para Jerusalém e explica como deviamser feitas as contribuições para a coleta. Em 2Coríntios 8 e 9, Paulo deixa claro exatamentecomo essa coleta é importante para ele e porque os coríntios deviam contribuir para ela.

Embora fosse de importância vital paraPaulo, essa coleta não é mencionada no resto doNT, o que é surpreendente, em especial nos Atos,que se referem ao encontro de Paulo com osapóstolos de Jerusalém e a sua última viagem aJerusalém. A única vez que os Atos falam dodinheiro que Paulo levaria a Jerusalém está emAtos 11,29-30, onde os pagãos resolvem enviardinheiro para a Judéia por ocasião da grandefome. Porém, essa contribuição não parece sera coleta citada nas cartas paulinas, embora possaser o protótipo dessa coleta. O evento de Atos11 ocorre bem no início da missão aos gentios,antes mesmo de Paulo instituir as Igrejas àsquais ele escreve a respeito da coleta. O relatoem Atos 15 do encontro de Paulo com os apósto-los de Jerusalém não inclui, em absoluto, nenhu-ma referência a dinheiro ou ajuda para os pobres.O relato em Atos 21 da última viagem de Pauloa Jerusalém se parece muito com a viagem quePaulo menciona em Romanos 15,25-32, mastambém não faz referência a dinheiro. Afinal,Paulo entregou a coleta? Talvez o tenha feitocomo parte de sua última viagem a Jerusalém,

APOIO FINANCEIRO

APOIO FINANCEIRO

A.p65 28/03/2008, 15:23108

109A a

como ele deixa subentendido em Atos 24,17,no discurso perante Félix. Porém, apenas combase nos Atos é impossível ter certeza. Todas asnossas informações diretas a respeito da coletavêm das cartas paulinas.

2.1. Base histórica para a coleta. Em seucomentário de 2 Coríntios, F. W. Danker sugereque o sistema helenístico de patrocínio é impor-tante base histórica para a coleta (ver 1.1 aci-ma). Uma pergunta freqüentemente feita a res-peito da coleta é se havia precedentes no ju-daísmo para tal atividade. Dois antecedentesmerecem consideração: o imposto do temploe a oferenda votiva.

K. F. Nickle examinou os paralelos entre oimposto do templo e a coleta. O imposto dotemplo de meio siclo era usado para sustentar oculto do templo de Jerusalém. O pagamento des-se imposto era obrigatório para todos os homensjudeus acima de 20 anos, de modo que todo opovo judeu ficava representado nos sacrifícioscomprados com o dinheiro dos impostos. Nadiáspora*, o imposto era coletado em um localcentral e em seguida enviado a Jerusalém comuma grande comitiva. Os paralelos entre esseimposto e a coleta paulina são impressionantes— ambos eram grandes somas de dinheiro en-tregues a Jerusalém por delegados e ambos eramusados para representar a unidade do povo deDeus. Mas as diferenças também são óbvias: acoleta paulina era para os pobres, não para otemplo, e não há nenhuma indicação de ser repe-tida ou obrigatória. H. D. Betz sugere que a co-leta também revela muitas semelhanças comuma oferenda votiva. É possível ver a coletacomo oferenda de graças a Deus pelas bênçãosrecebidas. As dádivas de graças a Deus tam-bém estavam ligadas a provisões para os pobres,exatamente como a coleta.

Nem o imposto do templo, nem a oferendavotiva apresentam um precedente convincentepara a coleta paulina. Mas considerados juntosparecem apresentar precedentes para a maiorparte das preocupações paulinas quanto à coleta.Está claro que Paulo tira do judaísmo muitas dassuas idéias a respeito de dinheiro e aplica essasidéias nas Igrejas às quais ele serve.

2.2. Levantamento de fundos para a coleta.Embora mencione a coleta em Romanos 15 e

Gálatas 2, Paulo só fala a respeito de dar di-nheiro para a coleta na correspondência com aIgreja coríntia. Ele dedica dois capítulos intei-ros, 2 Coríntios 8–9, a incentivar os coríntiosa contribuir generosamente para a coleta. Nes-ses dois capítulos, a opinião paulina de como oscristãos devem usar o dinheiro para glorificara Deus está exposta com clareza.

Paulo começa o apelo aos coríntios em 2Coríntios 8,1-15 descrevendo a participação en-tusiástica dos macedônios. A liberalidade dosmacedônios é sinal da graça de Deus que operaentre eles apesar de suas tribulações e de sua po-breza. Essa dádiva de dinheiro expressa sua en-trega de si mesmos a Deus e serve de modelopara os coríntios. Paulo desafia os coríntios aprovar que seu amor é genuíno e que eles sãobenfeitores generosos como os macedônios,completando sua contribuição para a coleta. Nãosó essa passagem, mas também 1 Coríntios 16,1-4, onde Paulo os aconselha a que toda semanaponham de lado dinheiro para a coleta, deixamclaro que os coríntios tinham começado a fazercontribuições. Paulo apresenta-lhes o amor deCristo por eles como a razão pela qual devemenriquecer os outros do mesmo modo que fo-ram enriquecidos. A outra razão pela qual devemcontribuir é a questão da igualdade entre oscristãos — os que têm em abundância devemajudar os necessitados. Paulo não lhes pededinheiro a fim de empobrecê-los. Dar dinheiroé uma oportunidade de agradecer a Deus seusdons abundantes, em especial o dom de Cristo,e ocasião de demonstrar genuíno amor* porCristo, ajudando irmãos e irmãs necessitados.Para Paulo, dar é ato de ministério e expressãode solidariedade cristã.

Em 2 Coríntios 8,16–9,5, Paulo persiste emexplicar por que Tito vai voltar para ajudar acoleta. Tito é outro generoso benfeitor que servede modelo para os coríntios e por eles tem omaior zelo. Paulo parece ansioso para “evitartoda crítica na gestão dessas grandes somas queestão ao nosso cargo”. Essa mesma preocupaçãoreflete-se em 2 Coríntios 12,14-18. Diversosbiblistas sugeriram que talvez os coríntios pen-sassem que, ao começar a coleta, Paulo estavase enriquecendo à custa deles. Talvez até o acu-sassem de usar a coleta para se sustentar, mesmo

APOIO FINANCEIRO

APOIO FINANCEIRO

A.p65 28/03/2008, 15:23109

110Aa

depois de recusar a oferta que lhe fizeram desustentá-lo. Qualquer que fosse o caso, Paulotem um cuidado excepcional para fazer com queoutros supervisionem a coleta e fazer o que éhonroso pelos padrões humanos. A identidadedo irmão “cujo louvor pelo Evangelho todas asIgrejas cantam” e do irmão “cujo zelo” tem sido“constatado” é assunto de muito debate; masnão se chegou a nenhuma conclusão firme quan-to a suas identidades (ver uma análise maiscompleta em Furnish, 433-438). O propósito davinda dos homens é assegurar que os coríntiostentem com afinco completar suas contribui-ções. Paulo lembra aos coríntios que se não de-rem o que prometeram vão humilhar não só a sipróprios, mas também Paulo e Cristo. A genero-sa obra beneficente aumenta o prestígio dos doa-dores e daqueles a quem estão associados, mas adoação parcimoniosa é fonte de humilhação pú-blica. A participação dos coríntios na coleta pla-nejada é sinal de seu compromisso com Pauloe também com Deus. Do ponto de vista teológi-co, a passagem mais interessante do apelo pauli-no para o levantamento de fundos encontra-se nametáfora prolongada de semeadura e colheita de2 Coríntios 9,6-15. O reconhecimento das di-mensões espirituais e financeiras de semear ecolher era ênfase característica do pensamentohelenístico e judaico. Semear era consideradosinal de confiança em Deus, o único que podiagarantir a colheita. Nesse contexto, toda dádivafeita a Deus era entendida como oferenda degraças pelas bênçãos recebidas. Já que todas ascoisas vêm de Deus, a questão não é se alguémdeve semear, mas sim como deve semear. O doa-dor agradecido dá alegre e abundantemente, poissabe que semeadura e colheita vêm de Deus.Quando Deus concede uma colheita abundante,ele o faz não só para abençoar o que semeia, mastambém para possibilitar outras doações. Deusproporciona tudo, até mesmo os meios para a ge-nerosidade. De fato, como a semeadura generosaresulta em colheita generosa, é de esperar colhei-tas progressivamente maiores à medida que setem mais sementes para semear. Deus não só su-pre as necessidades do doador generoso, mastambém multiplica os recursos desse doador pa-ra doações ainda mais generosas. A doação ge-nerosa glorifica a Deus ao prover às necessida-

des dos santos, demonstra obediência ao evange-lho de Cristo e resulta em mais graças dadas aDeus. Também resulta em oração intercessoraoferecida em favor dos benfeitores por causada graça de Deus manifestada por meio deles.Os judeus e os cristãos primitivos acreditavamque as orações dos pobres eram especialmentepoderosas, de modo que esse seria mais um be-nefício para o doador generoso.

Na metáfora da semeadura e da colheita,Paulo resume todas as razões pelas quais oscoríntios devem dar generosamente para a co-leta e não hesita em apelar para motivos egoís-tas ao lado de motivos nobres. A doação gene-rosa é ato de adoração que dá graças a Deuspor seus dons. Como a riqueza material e aespiritual são ambas dádivas da generosidadedivina, é preciso partilhá-las com os outros. Agenerosidade não empobrece a pessoa, maspermite que Deus dê ainda mais para o doador.Aqui, a ameaça não tão sutil é que Deus nãoabençoa os que se recusam a dar generosamen-te. Assim, dar generosamente é, na verdade, domaior interesse dos coríntios. Eles podem glo-rificar a Deus e, ao mesmo tempo, assegurarmais bênçãos para si mesmos.

2.3. O significado teológico da coleta. Co-mo revela a metáfora da semeadura e da colhei-ta, Paulo considera o ato de dar uma atividadeteologicamente significativa. Que significadoteológico especial Paulo atribuía à coleta? Nadiscussão de 2 Coríntios 8–9, Paulo usa lingua-gem fortemente teológica que indica três razõespossíveis pelas quais a coleta era tão significa-tiva para ele: preocupação com os pobres, preo-cupação com a união de judeus e gentios naIgreja e preocupação com o significado escato-lógico da missão pagã.

A preocupação com os pobres era elemen-to dominante na devoção judaica e também nacristã. Esse tipo de preocupação pelos pobrescaracterizava o ministério de Cristo, que se fezpobre para os que o seguiam ficarem ricos. Épor isso que Paulo se refere à doação generosacomo sinal de graça* (charis) e como minis-tério* (diakonia) da Igreja. Dar generosamenteaos pobres é parte integrante da resposta docristão ao dom de Deus em Cristo e ato de obe-diência ao evangelho de Cristo. Essa é, com

APOIO FINANCEIRO

APOIO FINANCEIRO

A.p65 28/03/2008, 15:23110

111A a

certeza, uma das razões de Paulo achar quedar para a coleta é importante para os coríntios.

Porém, a coleta não é apenas uma coleta pa-ra os pobres; é uma contribuição “para com ossantos de Jerusalém que estão na pobreza” —expressão tangível da união de judeus e gentiosem Cristo. Para Paulo, esse talvez seja o aspectomais importante da coleta e se reflete em seu usoda palavra “solidariedade”* (koin∞nia) com refe-rência à coleta. Vemos claramente essa relaçãoentre a coleta e a unidade da Igreja em Gálatas2,9-10. Aqui os apóstolos de Jerusalém dão aPaulo “a mão em sinal de comunhão (koin∞nia)”,concordando que a missão de Paulo seja aosgentios e a deles aos judeus. Paulo também con-corda em se “lembrar dos pobres”. No contextodo debate constante se os gentios devem ou nãoobedecer à lei, debate que não só levou Paulo aJerusalém, mas continuou em Antioquia* mes-mo depois de seu acordo com os apóstolos deJerusalém, um testemunho tangível da graça deDeus em ação nos gentios assumiu tremendaimportância. A coleta é expressão da reciproci-dade que caracteriza os judeus e os gentios emCristo. Os gentios participaram das bênçãos es-pirituais do Evangelho por intermédio dos ju-deus e pagam esse débito provendo às necessi-dades materiais dos judeus (Rm 15,27). Essetipo de reciprocidade no evangelho reforçava aunião de judeus e gentios em Cristo.

Diversos biblistas, entre eles J. Munck e K.Nickle, sugerem que a coleta também tem signi-ficado escatológico como ratificação da teologiamissionária de Paulo (ver Missão). Paulo acre-ditava que todo o povo de Israel só abraçaria oevangelho quando houvesse “entrado a totali-dade dos gentios” (Rm 11,25). O papel de Paulocomo apóstolo dos gentios era trazê-los ao evan-gelho para que Israel se voltasse para Deus. Acoleta e os delegados gentios que a acompanha-vam cumpririam as profecias a respeito da vindados gentios a Sião com dádivas nos últimos dias(Is 2,2-3; 60,5-6; Mq 4,1-2). A coleta era sinalinconfundível da salvação* dos gentios, por issoservia de verificação do evangelho paulino liber-tado da lei e voltado para os gentios e de instru-mento da graça salvífica de Deus para Israel. Oúnico problema com essa sugestão quanto aosignificado escatológico da coleta é Paulo nem

sempre mencioná-la quando escreve a respeitoda coleta. Para ele o principal significado da co-leta está em seu testemunho da união de judeuse gentios em Cristo e em sua contribuição paraas necessidades dos santos de Jerusalém.

3. Dinheiro e missãoPaulo reivindica o direito de pedir e receber di-nheiro com base em sua posição apostólica. En-tretanto, se receber dinheiro interfere em sua ta-refa apostólica, ele também reivindica o direitode recusá-lo. Aparentemente, ele não pedia di-nheiro de uma comunidade na qual estivessetrabalhando, mas não hesitava em receber di-nheiro para sua missão contínua nem em pedirdinheiro para outras comunidades a uma comu-nidade que já tivesse instituído. O ensinamentopaulino a respeito de dinheiro é contraditório e/ou inconsistente? Não, quando percebemos quea força controladora em seus pedidos e em suarecusa de dinheiro era o evangelho de Cristo.Quando o dinheiro era usado para promover apregação do evangelho ou para expressar a uni-dade de todos os cristãos no evangelho, Paulonão hesitava em pedi-lo. Mas se receber dinhei-ro significava prejuízo para o evangelho, Pauloestava disposto a recusar o dinheiro e a reajustarsua vida por amor ao evangelho.

No modo de Paulo entender o dinheiro, osaspectos materiais de dar e receber relacionam-se estreitamente. O ministro que semeia a se-mente espiritual deve receber apoio materialdos que se beneficiam. Como receberam bên-çãos espirituais dos judeus, os pagãos devemretribuir abençoando os judeus com bens mate-riais. Os pedidos de dinheiro baseiam-se emparcerias no evangelho; a pessoa dá em agrade-cimento pelos benefícios espirituais recebidos.Nas cartas paulinas, está claro que a maneiracomo os cristãos usam o dinheiro deve ser umaextensão da mensagem do evangelho e do mi-nistério da Igreja.

Ver também COLETA PARA OS SANTOS; SOLIDA-RIEDADE, COMUNHÃO, PARTILHA; JERUSALÉM; MIS-SÃO; RIQUEZA E POBREZA; FABRICAÇÃO DE TENDAS.

BIBLIOGRAFIA: J. M. Bassler. God and Mammon:Asking for Money in the New Testament. Nash-ville, Abington, 1991; H. D. Betz. 2 Corinthians

APOIO FINANCEIRO

APOIO FINANCEIRO

A.p65 28/03/2008, 15:23111

112Aa

8 and 9: A Commentary on Two AdministrativeLetters of the Apostle Paul. Herm, Philadelphia,Fortress, 1995; N. A. Dahl. “Paul and Posses-sions”. In: Studies in Paul: Theology for the EarlyChristian Mission. Minneapolis, Augsburg, 1977;F. W. Danker. II Corinthians. ACNT, Minneapo-lis, Augsburg, 1989; G. D. Fee. The First Epistleto the Corinthians. NICNT, Grand Rapids, Eerd-mans, 1987; V. P. Furnish. II Corinthians. AB,New York, Doubleday, 1984; D. Georgi. Remem-bering the Poor: The History of Paul’s Collectionfor Jerusalem. Nashville, Abingdon, 1992; R. F.Hock. Tentmaking and Apostleship: The SocialContext of Paul’s Ministry. Philadelphia, Fortress,1980; R. P. Martin. The Epistle of Paul to the Phi-lippians. TNTC, Grand Rapids, Eerdmans, 1973;J. Munck. Paul and the Salvation of Mankind.Atlanta, John Knox, 1959; K. F. Nickle. The Col-lection: A Study in Paul’s Strategy. SBT, Naper-ville, IL, Alec R. Allenson, 1966.

J. M. EVERTS

APOLOApolo era um orador instruído, capaz de demons-trar com base no AT que o Messias era Jesus.Mesmo assim, lemos muito pouco a respeito desua contribuição para a expansão do cristianismoprimitivo — muito pelo contrário; 1 e 2 Corín-tios sugerem que sua instrução e seu ministériocontribuíram para criar problemas que exigiramcorrespondência de Paulo.

1. Apolo em Éfeso2. Apolo e as divisões em Corinto3. Resumo

1. Apolo em ÉfesoEmbora o NT dê poucas informações pessoais arespeito de Apolo, os detalhes fornecidos sãoúteis. Segundo Atos 18,24-28, Apolo era judeu deAlexandria. Lucas apresenta-o em ligação comÉfeso* e com a recente partida de Paulo daquelacidade. Em Éfeso, Priscila e Áquila ouviram apregação de Apolo na sinagoga. Ao perceber queApolo já estava familiarizado com o batismo deJoão, o casal expôs-lhe “mais exatamente ainda oCaminho de Deus”. O texto indica que eles “o to-maram consigo”, ou seja, levaram-no à Igreja quese reunia em casa deles (cf. 1Cor 16,19, escrita deÉfeso). Posteriormente, Apolo pregou em Corinto.

2. Apolo e as divisões em CorintoO ministério de Apolo em Corinto provocou al-guns problemas que Paulo procura resolver em1 e 2 Coríntios. Relatos recentes (1Cor 1,11; cf.5,1; 11,18) e uma carta (1Cor 7,1) alertaramPaulo para o fato de estar a Igreja dividida emquatro grupos, definidos pela fidelidade a Paulo,Apolo, Cefas ou Cristo (1Cor 1,12). Paulo pro-curou neutralizar essa situação perigosa, reti-rando todas as possíveis reivindicações de fide-lidade a ele próprio. Com exceção de Crispo ede Gaio e da família de Estéfanas, ninguém podealegar fidelidade com base em seu batismo*pelas mãos de Paulo.

2.1. Apolo e a tradição sofista. Aparente-mente, o cisma mais significativo em Corintoera entre os que se identificavam como de Pauloe os que afirmavam fidelidade a Apolo. É fácilver isso em 1 Coríntios 3,3-9; 4,6 (ver Wallis,Hooker). A leitura atenta do texto de Atos 18 eda correspondência coríntia fornece amplos in-dícios da natureza da polaridade.

Lucas fornece três informações instrutivas:1) Apolo é an¶r logios (“homem eloqüente”);2) com respeito à exposição do AT, ele é dynatos(“forte”); 3) quanto à capacidade para citar oAT para a comunidade da sinagoga, ele é homemepideiknys, “que mostra” ser Jesus o Messias.

B. Winter (citando obra anterior de Orth)demonstrou que o termo an¶r logios significavaa instrução retórica e a capacidade de falar comeloqüência, ou um sofista (ver Retórica). C. K.Barrett também apóia essa definição do termoe argumenta que deve ser traduzido por “ho-mem eloqüente”, em vez de, como outros suge-rem, por “instruído”, embora isso seja uma falhado mundo antigo, que quase sempre confundiaos dois (Barrett, 22). Apolo era homem eloqüen-te [TEB, nota V, p. 2142], e esse termo sugere serele deliberadamente apresentado como sofista,orador conhecedor de sua arte. Como logos, dy-natos e epideiknymi também indicam capacida-de retórica (Winter, 15-19 e 160-161) e, com cer-teza, instrução retórica. As três expressões reve-lam o modus operandi sofista.

A identificação de Apolo como “origináriode Alexandria” (At 18,24) é significativa, poiso movimento sofístico prosperou em Alexandriadurante esse período (Winter cita, e.g., P. Oxy

APOIO FINANCEIRO

APOLO

A.p65 28/03/2008, 15:23112

113A a

2190, o corpus de Fílon e A oração alexandrina[Or 32], por Díon Crisóstomo — emissário deVespasiano para Alexandria).

2.2. Paulo em Corinto: conflito com os sofis-tas. A eloqüência de Apolo e a presença sofísticaem Corinto eram, sem dúvida, comparadas coma elocução sem ênfase de Paulo. Em 2 Coríntios10,10, Paulo cita algumas pessoas de Corinto queo condenam por sua fala nula ou sua má vontadepara falar com eloqüência. Voltando-nos para apalavra de Paulo em 1 Coríntios 1–4, notamosque a verdadeira discórdia entre Paulo e Apoloera, evidentemente, a questão da capacidade oudisposição de Paulo para usar eloqüência ao pro-clamar o evangelho*. Paulo alega que sua vindaa Corinto não se caracterizou por sophia logou(“sabedoria do discurso”, 1Cor 1,17). Alguns co-mentaristas entenderam ser en sophia logou refe-rência a uma característica formal de fala habili-dosa (que Paulo talvez presuma ser um lema co-ríntio). Paulo reitera que não veio com o prestígioda palavra nem da sabedoria (1Cor 2,1; cf. 1,17).O que está primordialmente em jogo é a fala dePaulo. Paulo é inflexível ao reafirmar em 1 Co-ríntios 2,4 que sua palavra e sua pregação nãotinham eloqüência nem habilidade retórica.

Nessas passagens, logos é visto sob uma luznegativa e associado a eloqüência retórica. ParaPaulo, a dedicação à elocução sábia prejudica ateologia da cruz* e seu poder redentor, de modoa reduzi-los a nada. De modo semelhante, sophiaé condenada como estando “no mundo” (1Cor1,28; cf. 3,19), meramente “humana” (versusdivino, 1Cor 2,5; cf. 2,13 e as interpretações di-vergentes de 1Cor 2,4, onde foi feito o mesmoataque) e “deste mundo” e “dos príncipes destemundo” (1Cor 2,6; ver Autoridades e poderes).Em contraste com esses comentários negativos,Paulo justapõe seu entendimento de logos/so-phia. Segundo Paulo, logos e gn∞sis (“conheci-mento”) são dados por Deus (1Cor 1,5). Maistarde, ele afirma que logos sophias, (“palavrasde sabedoria*”) e logos gn∞se∞s (“palavras deconhecimento”) devem ser atribuídas ao Espírito(1Cor 12,8; cf. 2,13). A esse respeito, temos duasdefinições opostas: a de Paulo e a de certos co-ríntios (ver Pogoloff).

2.3. Os sofistas em Corinto: provas adicio-nais. Além da literatura não-cristã desse período

que foi conservada, três outros fatores sugeremque os sofistas freqüentavam Corinto e influen-ciavam as comunidades cristãs. Paulo (ao contrá-rio dos sofistas — talvez Apolo?) não trouxenenhuma promessa de benefício material; aocontrário, trabalhava com as mãos (ver Fabrica-ção de tendas). Embora em princípio defenda odireito apostólico ao apoio financeiro* (1Cor9,7-14), Paulo recusa-se a ser sustentado peloscoríntios. De acordo com Paulo, se aceitasse esseapoio retardaria o evangelho (2Cor 11,7-15;12,13-18). Como Paulo afirma, ele não quer“traficar” (kap¶leu∞) com a palavra de Deus(2Cor 2,17). Esse termo (de kap¶los, “varejista”)era usado com freqüência para depreciar os so-fistas que cobravam por seus serviços espirituaisou intelectuais.

Segundo, Paulo não demonstrava nenhuminteresse por luxo e aparência física — era dis-ciplinado (1Cor 9,24-27). Em contraste, a atitu-de dos coríntios para com Paulo (2Cor 10,10)era que, além de sua incapacidade (ou relutân-cia) para falar com eloqüência, ele tinha umafraca presença física (ver Fraqueza). Os sofis-tas (em Alexandria) descrevem a si mesmos demodo oposto. Segundo Fílon, os sofistas decla-ravam-se homens de qualidade e riqueza, queocupavam posições importantes, elogiados portodos os lados, recebedores de honras, inponen-tes, saudáveis, robustos, que gozavam vida exu-berante e agitada, desconheciam o trabalho, es-tavam familiarizados com prazeres que levamà alma acolhedora as doçuras da vida por meiode todos os sentidos (Fílon, Det. Pot. Ins. 34B).

Terceiro, Paulo recusou-se a aderir a qual-quer grupo ou patrono — não batizou ninguém(com exceções!). Embora dependesse do favorde ricos proprietários de casas (mesmo em Co-rinto, At 18,1-11; cf. 1Cor 16,19), pois a Igrejadoméstica era o lugar principal de reunião doscristãos, Paulo se recusa a ficar “ligado” a umafamília. O modus operandi sofista, por outrolado, sugere a predileção por ligações com asgrandes casas de Corinto (Blue).

3. ResumoÉ difícil determinar se Apolo conhecia ou nãoa propensão dos coríntios a se ligar a mestreseloqüentes. Além disso, é impossível estabe-

APOLO

APOLO

A.p65 28/03/2008, 15:23113

114Aa

lecer até que ponto Apolo adotou o modusoperandi sofista. Contudo, sua presença emCorinto (antes de se encontrar com Paulo) comcerteza não ajudou o relacionamento já delica-do entre Paulo e alguns fiéis coríntios. TalvezN. Hyldahl esteja certo quando afirma não serpor acaso que não ouvimos falar de Apolo emnenhuma das outras cartas de Paulo. Depoisda troca de cartas entre Paulo e os coríntios ede Paulo se afastar deliberadamente dos sofis-tas, é evidente que a influência de Apolo nasigrejas paulinas se desvaneceu.

Ver também CORÍNTIOS, CARTAS AOS; FILO-SOFIA; RETÓRICA; FRAQUEZA; SABEDORIA.

BIBLIOGRAFIA: C. K. Barrett. Essays on Paul. Phi-ladelphia, Westminster, 1982, 1-27; B. B. Blue.In Public and in Private: The Role of the HouseChurch in Early Christianity. Tese de doutorado.Aberdeen University, 1989; F. F. Bruce. Peter, Ste-phen, James & John: Studies in Early Non-Pau-line Christianity. Grand Rapids, Eerdmans, 1980,65-85; E. S. Fiorenza. “Rhetorical Situation andHistorical Reconstruction in 1 Corinthians”. NTS33, 1987, 386-403; M. D. Hooker. “‘Beyond theThings Which Are Written’: An Examination of1Cor 4,6”. NTS 10, 1963-1964, 127-132; N.Hyldahl. “Den korintiske situation–en skitse”.DTT 40, 1977, 18-30; E. A. Judge. “The EarlyChristians as a Scholastic Community”. JRH 1,1960, 4-15; 125-137; Idem. The Social Patternof Christian Groups in the First Century: SomeProlegomena to the Study of the New TestamentIdeas of Social Obligation. London, Tyndale,1960; B. Kerferd. The Sophistic Movement. Cam-bridge, University Press, 1981; A. D. Litfin. St.Paul’s Theology of Proclamation: An Investiga-tion of 1 Corinthians 1–4 in Light of Greco-Ro-man Rhetoric. Tese de doutorado. Oxford Uni-versity, 1983; E. Orth. Logios. Leipzig, ObertNoske Universitatsverlag, 1926; S. M. Pogoloff.Logos and Sophia: The Rhetorical Situation of 1Corinthians. SBLDS 134, Atlanta, Scholars,1992; W. C. van Unnik. “First Century A.D. Li-terary Culture and Early Christian Literature”.NedTTs 25, 1971, 28-43; P. Wallis. “Ein neuerAuslegungsversuch des Stelle 1 Kor 4,6”. TLZ75, 1950, 506-508; A. J. M. Wedderburn, “§n tªsof¤& toË yeoË — 1Kor 1:21”. ZNW 64, 1973,

132-134; L. L. Welborn. “On the Discord inCorinth: 1 Corinthians 1–4 and Ancient Politics”.JBL 106, 1987, 85-111; B. W. Winter. Philo andPaul among the Sophists: A Hellenistic Jewishand a Christian Response. Tese de doutorado.Macquarie University, 1988.

B. B. BLUE

APOSTASIA, APOSTATAR,PERSEVERANÇAÉ a perseverança dos cristãos na fé* e na gra-ça* da salvação* certa, ou eles podem aposta-tar, ser excluídos dos benefícios de Cristo* enão alcançar a salvação final? A resposta dePaulo a essas perguntas é controvertida.

1. Terminologia2. Continuidade na salvação e tensão esca-

tológica3. O significado do fracasso ético e da des-

crença para a continuidade na salvação4. As cartas pastorais

1. TerminologiaNo debate teológico, os termos “perseverança”(dos santos), “apostatar” e “apostasia” são usa-dos para discutir se é ou não incontestável queo cristão permanece na fé e na salvação. Onde oensinamento de Paulo aborda essa questão, en-contramos expressões semelhantes: “perseve-rança” (na esperança, bom trabalho; hypomon¶

[t¶s elpidos, ergou agathou], e.g., Cl 1,11; 1Ts1,3; 2Ts 1,4; Rm 2,7; 8,25), resistir “por meioda fé” (epimen∞ t¶ pistei, Cl 1,23), permanecer“na bondade” de Deus (epimen∞ t¶ chr¶stot¶ti,Rm 11,22) e, por outro lado, “uma queda [dagraça]” ([ek]pipt∞ [t¶s charitos], Rm 11,11;1Cor 10,12; Gl 5,4). A “apostasia” (apostasia)em 2 Tessalonicenses 2,3 refere-se a uma futurarebelião muito difundida contra o domínio divi-no por meio de descrença intensificada provo-cada pela revelação do “Homem da impieda-de”; ou seja, a “apostasia” é um dos fenômenosextraordinários que precederão a parusia. Nãoestá claro se Paulo tem em mente uma rebeliãojudaica contra Deus, como no entendimentoapocalíptico tradicional (e.g. Jub 23,14-23), outambém a de cristãos (ver Homem da impie-dade). De qualquer modo, Paulo não usa o termopara se referir especificamente à apostasia cristã

APOLO

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:24114

115A a

nem ao total abandono da fé em Cristo durantea época da Igreja (Marshall 1975, 108).

2. Continuidade na salvação e tensãoescatológica2.1. Continuidade na salvação. Paulo des-

creve a salvação* do indivíduo como já inicia-da, mas ainda não completa. É então garantidoque se completará? A pergunta é crítica em facede obstáculos apresentados por forças do malque agora agem contra os desígnios de Deus,pela perseguição e pela tentação que ameaçamromper a continuidade na salvação e pela pers-pectiva do juízo* final.

A questão da certeza da salvação final dosfiéis depende em parte da salvação ser total-mente obra de Deus ou também receber a con-tribuição dos seres humanos. Para Paulo, a salva-ção é somente pela graça* divina e assim é tão-somente obra de Deus. Os cristãos não têm ne-nhuma contribuição a fazer para a salvação, poisseu fracasso ao fazê-lo prejudicaria o resultadofinal. A ordem: “com temor* e tremor ponde porobra a vossa salvação” (Fl 2,12) refere-se aopapel ativo dos fiéis baseado no fato de que(“pois”, gar) “é Deus quem opera em vós o que-rer e o fazer” (Fl 2,13). Essa total dependênciade Deus inspira humildade e obediência (“temore tremor”; ver Santidade, santificação).

Além disso, Deus tenciona completar a sal-vação dos fiéis. Deus “os predestinou a seremconformes à imagem* de seu Filho” (Rm 8,29),“[os] escolheu desde o começo, para [serem]salvos… [os] chamou… a possuir a glória denosso Senhor Jesus Cristo” (2Ts 2,13-14), e“não [os] destinou a experimentar sua ira, masa possuir a salvação” (1Ts 5,9). Paulo descreveas iniciativas divinas na salvação dos cristãoscomo uma “corrente dourada” na qual cada elosubentende o anterior e carrega a promessa doque vem a seguir, sendo o último elo a glorifica-ção* (Rm 8,29-30). Paulo tem certeza de que aintenção de Deus será realizada: “Aquele quecomeçou em vós uma obra excelente [de salva-ção] prosseguirá em sua conclusão até o diade Jesus Cristo” (Fl 1,6).

Como Paulo remonta a verdadeira fé cristãà eleição* eterna de Deus, não à história huma-na arbitrária nem à vontade humana, ele expressa

a certeza de que essa fé alcançará sua metafinal (Marshall 1975, 100-103 diverge). Ele vêoutra garantia da salvação final dos fiéis nadádiva do Espírito (ver Espírito Santo). EsteEspírito é o “Espírito prometido, o EspíritoSanto” (Ef 1,13), o “Espírito dAquele que res-suscitou Jesus dentre os mortos” (Rm 8,11), o“Espírito que dá a vida” (Rm 8,2). Paulo des-creve esse poder* divino de nova vida* escato-lógica e esperança* que habita os cristãos (cf.Rm 5,5; Tt 3,5) com as metáforas das “primí-cias*” (Rm 8,23), do “adiantamento da nossaherança” (Ef 1,14; 2Cor 1,22; 5,5) e do “sinete”(Ef 1,13; 4,30; 2Cor 1,22). Por causa da ligaçãointegral entre as primícias e o todo, a dádivadas primícias da salvação opera como promessade que se seguirá a plenitude da salvação. Assimcomo o adiantamento obriga o doador ao paga-mento total, o Espírito garante que Deus redi-mirá plenamente os cristãos, que são proprieda-de de Deus. Paulo faz trocadilho com a antigafunção do sinete quando diz que os cristãos estão“marcados com o sinete do Espírito prometido[para o dia da redenção]”, o que significa quepertencem a Deus e estão sob a proteção deDeus com o propósito da salvação final.

Essas garantias de salvação final são, às ve-zes, consideradas referentes à Igreja como umtodo e não ao indivíduo; nesse caso, as garantiasnão eliminam a possibilidade de alguns perde-rem a salvação. Por outro lado, é o indivíduoque se beneficia com a obra salvífica de Deus— sendo chamado à fé, justificado*, habitadopelo Espírito e, finalmente, glorificado —, sen-do assim, o que está predestinado a obter garan-tias dessas ações divinas. A audaciosa formula-ção de Paulo em Romanos 8,29-30 sugere quea obra salvífica de Deus continuará até estarcompleta em todos aqueles nos quais começou.

2.2. Continuidade e tensão escatológica.Mesmo quando discute as graves ameaças reaisà continuidade da salvação representadas pelasatuais angústias* ou tribulações e o juízo final,Paulo expressa a certeza da salvação final doscristãos. Sua confiança chega a alcançar umpoderoso crescendo em sua aclamação da fide-lidade de Deus*: “O Senhor é fiel” e “ele vosconfirmará e vos defenderá do Maligno” (2Ts3,3); Deus “não permitirá que sejais tentados

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:24115

116Aa

além de vossas forças... ele vos dará o meio desair dela e a força de suportá-la” (1Cor 10,13)e “vos confirmará até o fim, para que sejaisirrepreensíveis no dia de nosso Senhor JesusCristo” (1Ts 5,23-24).

Além disso, Paulo descreve de maneira con-vincente a certeza de que a salvação dos fiéisserá completa, apesar de grandes obstáculos, aoargumentar a respeito do amor* onipotente deDeus: “Deus prova o seu amor para conosco:Cristo morreu por nós quando ainda éramospecadores” (Rm 5,8). Superado o obstáculo denosso afastamento de Deus, o que impede Deusde concluir nossa salvação? “E já que agora es-tamos justificados por seu sangue, com muitomaior razão seremos por Ele salvos da cólera*[escatológica]. Com efeito, se quando éramosinimigos* de Deus, fomos reconciliados comEle pela morte do seu Filho, com muito maiorrazão, [agora] reconciliados, seremos salvos porsua vida” (Rm 5,9-10). Visto no fato de queDeus “não poupou o seu próprio Filho, mas oentregou por nós todos”, o amor de Deus é aprova de que Deus “junto com o seu Filho [nosdará] todas as coisas” (Rm 8,32). O amor efi-caz de Deus garante que nada atrapalha a dádi-va divina gratuita da salvação por meio de Cristoem sua plenitude. Assim, “quem nos separarádo amor do Cristo”, que é o poder de nossasalvação? Ninguém! Nem poderes terrenos nempoderes sobre-humanos (que Paulo cita em lis-tas abrangentes; ver Autoridades e poderes),“nem outra criatura alguma”. “Mas em tudo issosomos mais que vencedores, por Aquele que nosamou” (Rm 8,35-39).

Esta vitória de permanecer no amor deDeus e, portanto, na salvação, vitória atribuí-da ao Deus amoroso, estende-se também aodia do juízo quando todos encontrarão seudestino final (ver Escatologia). Nesse dia, oseleitos não serão sentenciados como culpadose condenados, pois o Cristo que os amou emorreu por eles é o mesmo que ressuscitoue agora está sentado à direita de Deus e faz in-tercessão* diante do Juiz que já os justificoucom base na obra de Cristo (Rm 8,33-34). Oamor de um intercessor vindicado e exaltado é,com certeza, garantia suprema de um resultadopositivo para os justificados. Paulo resume: “se

Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm8,31). Isso quer dizer que nenhum desafio àsalvação final dos fiéis pode ser organizadocom sucesso porque o Deus amoroso e onipo-tente está do lado deles. O mesmo amor deDeus que garante a salvação final “foi derra-mado em nossos corações pelo Espírito Santo”,de modo que os fiéis agora submetidos à an-gústia podem ter “esperança* [que] não enga-na” no teste escatológico (Rm 5,5).

As tribulações e provações atuais não tor-nam a esperança cristã menos certa, segundoPaulo. Ele até as transforma em componentepositivo do plano de Deus de realizar a salvação.Pelo desígnio de Deus, “tudo” — Paulo querdizer as adversidades em particular — “concorrepara o bem”, o bem supremo da salvação esca-tológica (Rm 8,28). Além disso, o sofrimento*cristão manifesta a unidade com Cristo, que so-freu e foi glorificado, e em cuja glória* os cris-tãos também terão parte (Rm 8,17). Por conse-guinte, de maneira paradoxal, os fiéis podemtambém “orgulhar-se” nas tribulações (Rm 5,3;2Cor 12,1-10) por causa de seu significado es-catológico positivo para os atribulados.

3. O significado do fracasso ético e da des-crença para a continuidade na salvação

Segundo Paulo, Deus continuará a intervir como propósito de completar a salvação dos fiéis.Contudo, alega-se, com suas más ações e des-crenças os próprios fiéis impedem a realizaçãodo propósito divino; até certo ponto a perseve-rança cabe aos próprios cristãos. Precisamosentão perguntar: qual é a relação entre a fé e aconduta dos fiéis e a ação salvífica de Deusa eles concernente?

3.1. O fracasso ético e o ato de apostatar.Numerosas passagens em Paulo sugeriram aosintérpretes a possibilidade de perda da salvaçãopelo fracasso ético (o problema do “pecado pós-batismal” ou o “pecado pós-conversão”). Em 1Coríntios 8 e Romanos 14, Paulo diz que os “fra-cos” são “destruídos” se comem certos alimen-tos que sua consciência* proíbe, como alimentos“impuros” ou que foram “sacrificados aos ído-los” (ver Forte e fraco). Aqui a “destruição” éescatológica (ver Marshall 1975, 113; ver Có-lera, destruição). Por outro lado, um sentido mais

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:24116

117A a

fraco é sugerido pela natureza do pecado (nãoa idolatria [cf. Sanders 1983, 110-111], mas aviolação de consciência) e pela preocupaçãocontrastante com a edificação mútua nos doiscontextos (Rm 14,19; 15,2; 1Cor 8,1; cf. 10,23).A “destruição” é, portanto, existencial e consisteem um retrocesso na caminhada cristã, o que éconfirmado pelas descrições paralelas das con-seqüências sofridas pelos cristãos fracos (triste-za, Rm 14,15; autocondenação, Rm 14,23; cons-ciência manchada e ferida, 1Cor 8,7.12) e pelosusos paralelos da terminologia paulina na LXX(e.g., Sr 30,23; 20,21-22).

Em 1 Coríntios 11,27-34, Paulo critica a prá-tica coríntia da ceia do Senhor* como reuniãoque resulta em julgamento e declara que quemdela participar indignamente “tornar-se-á culpa-do para com o corpo e o sangue do Senhor” e“come e bebe a própria condenação” (1Cor11,27.29). A condenação já chegou: alguns co-ríntios estão doentes e vários morreram (1Cor11,30). Esse julgamento talvez antecipe seu jul-gamento escatológico. Contudo, a frase “tornar-se-á (estai) culpado” está provavelmente no tem-po futuro apenas para dar ênfase, para ressaltara culpa já incorrida (ver Gundry-Volf, 101). E,em vez de alinhar julgamentos presentes e futu-ros, Paulo parece justapô-los explicitamente: “oSenhor nos julga para nos corrigir, a fim de quenão sejamos condenados com o mundo” (1Cor11,32). Como é improvável que Paulo pressupo-nha que o arrependimento evita a condenaçãofutura — alguns dos culpados já morreram —,ele precisa considerar o julgamento presente ea salvação futura dois lados da mesma moeda.O próprio castigo subentende isenção da conde-nação final porque, como na tradição judaicaveterotestamentária da divina paideia (“castigo”,“educação”), o castigo paterno divino dos fi-lhos de Deus marca-os como verdadeiros filhos(Dt 8,5; Sb 11,10; também Hb 12,8) que sedirigem para a salvação com base na fidelidadede Deus às alianças* e promessas (veja Gundry-Volf, 107-111).

Segundo 1 Coríntios 5,5, um membro daIgreja coríntia que está envolvido em flagrantemá conduta sexual deve ser “entregue a Satanás*para a destruição da sua carne, a fim de que oespírito seja salvo no dia do Senhor”. Retirado

da Igreja (cf. 1Cor 5,2), o homem talvez searrependa sob a influência destrutiva de Satanáse, assim, seja finalmente salvo (ver Collins,Harris; ver Disciplina). Embora sua salvaçãofutura não seja um prejulgamento, aqui a perdada salvação não é uma possibilidade, pois Paulocontinua para indicar que um devasso na Igrejatraz “o nome de irmão” (1Cor 5,11) — ou seja,é alguém que ainda não se converteu —, e lem-bra aos leitores que os fiéis não podem de-monstrar solidariedade* cristã para com osdevassos (1Cor 5,9), mas precisam “julgar” oque professa falsamente e tirar o mau de seumeio (1Cor 5,12-13; cf. 5,7-8).

A advertência em 1 Coríntios 10,12 —“aquele que pensa estar de pé tome cuidado paranão cair” — parece sugerir a possibilidade deperder o direito à salvação (Sanders 1977, 455),mas tem realmente em vista a falsa profissão defé em Cristo. Alguns coríntios pensam erronea-mente que, protegidos pelos sacramentos cris-tãos, podem participar com segurança de práti-cas idólatras (1Cor 10,14-22). Entretanto, a gera-ção do deserto exemplifica que o simples benefí-cio exterior do batismo* e do alimento eucarísti-co não protege contra o julgamento divino pelaidolatria* (1Cor 10,1-11). Portanto, “aquele quepensa estar de pé” (i.e., estar salvo) deve certifi-car-se de que realmente está (i.e., de que goza dasolidariedade* de Cristo e não entra em comu-nhão com os demônios, 1Cor 10,16-21), paranão “cair” (i.e., não passar no teste do julgamen-to). E Deus tornará os que levarem a advertênciaa sério aptos a passar no teste (1Cor 10,13).

Em 1 Coríntios 6,9-10 e Gálatas 5,19-21,Paulo escreve que os injustos não herdarão oReino de Deus (ver Reino de Deus/Cristo). Mui-tos intérpretes acham que Paulo adverte os leito-res contra sua exclusão. Por outro lado, em1Coríntios 6,1-11, Paulo compara repetidamenteos coríntios (“os santos”) com as pessoas citadasna lista dos vícios (“o mundo, os injustos”): “eé isso que vós éreis, ao menos alguns. Mas fosteslavados... santificados... justificados” e “os san-tos julgarão o mundo [e]... os anjos”. Paulo querprovavelmente reforçar estas distinções a fim demotivar os coríntios a mudar seu comportamentopara que ele seja conforme ao seu destino final(embora 1Cor 6,9-10 possa ter um caráter secun-

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:24117

118Aa

dário de advertência para os cristãos que profes-sam falsamente; cf. 2Cor 12,21; 13,2). No casodos gálatas não há necessidade de nenhuma adver-tência: são eles que se opõem aos desejos dacarne*, e Paulo, pregador do Evangelho livreda lei*, precisa assegurar-lhes que ele também seopõe e que não é necessário adotar a lei para sercontra os desejos da carne (cf. Gl 5,16-24). As-sim, é evidente que Paulo fala em defesa própriaquando diz aos gálatas que os que têm a vidacaracterizada pelos vícios não herdarão o Reino.

Alguns textos parecem revelar a apreensãode Paulo de que sua conduta o desqualifique dealgum modo para a salvação final. Contudo,Paulo expressa confiança em sua salvação final(Fl 1,21.23). É da aprovação divina de seu servi-ço apostólico que ele não tem certeza. “A fimde que não ocorra que... eu mesmo venha a sereliminado [adokimos]”, em 1 Coríntios 9,27,refere-se provavelmente a Paulo, o apóstolo*,não a Paulo, o cristão (cf. 1Cor 3,13-15), poisquando Paulo usa a linguagem de teste (dok-)de si mesmo, isso sempre tem a ver com a apro-vação divina de seu serviço apostólico. Paulobusca evitar a desaprovação divina como após-tolo* mantendo seu corpo submisso pela desis-tência de seus direitos (comida e bebida, paga-mento, uma esposa). Ele faz isso “para não criarnenhum obstáculo ao Evangelho de Cristo”(1Cor 9,12) e “por causa do Evangelho” paraparticipar da obra de salvação (1Cor 9,23). Essatradução de 1Cor 9,23 é preferível à traduçãocomum: “participar das bênçãos [do Evange-lho]” que infringe o uso de evangelion.

Paulo parece inseguro quanto a seu destinofinal em Filipenses 3,11-12, onde escreve: “a fimde chegar, se possível, à ressurreição* dentre osmortos” e “arremeto para tentar alcançá-lo”. Foisugerido que a incerteza que Paulo expressa aquirefere-se à maneira e não ao fato de chegar a seudestino final: pelo martírio? Alternativamente, aoutra asserção de Paulo — “fui alcançado porJesus Cristo” — tira a incerteza de sua obtençãoe a torna simplesmente futura, bem como sugeresua dependência da ação divina. De modo seme-lhante, a esperança que Paulo tem de alcançar aressurreição pode ser considerada expectativa queexpressa a dependência da ação divina, não dú-vida quanto a sua realização, como mostram os

outros usos paulinos da expressão ei p∞s, aquitraduzida “se possível” (Rm 1,10; 11,14).

Em suma, tradicionalmente considera-se quealguns textos paulinos mostram a possibilidadede perder a salvação por causa de comporta-mento antiético (ver Sanders 1977, 517-518;Sanders 1983, 109-111). Mas a releitura dessestextos sugere que o comportamento antiéticode Paulo pode pôr em dúvida a autenticidade daprofissão de fé da pessoa, provocar o castigodivino ou causar a regressão da santificaçãocristã, mas não resulta em perda real de salva-ção (ver Gundry-Volf, 83-157, 231-260; cf.Gundry, 7-38).

3.2. A descrença e o ato de apostatar. Outraspassagens paulinas sugerem que a salvação per-manece incompleta por causa da descrença noevangelho (Marshalll 1975, 108-111, 118-119).

O “não” de Israel ao evangelho, apesar desua eleição, desafia o significado que Paulo atri-bui à eleição para a perseverança dos fiéis. Masem Romanos 9–11, onde trata da questão doIsrael descrente, Paulo defende a fidelidade deDeus e explica a atual descrença de Israel emtermos do desígnio de Deus para a salvação.Inclui um “endurecimento” de parte de Israel euma época em que, finalmente, “todo o Israelserá salvo”, quando abandonar a descrença e olibertador afastar sua impiedade (Rm 11,23.26-27; ver Restauração de Israel).

Assim como não elimina a exclusão tempo-rária de Israel na descrença, a conclusão garan-tida da obra salvífica de Deus para os eleitostambém não impede que sejam “cortados” enão “poupados” os cristãos pagãos que nãocontinuam na fé (Rm 11,17-24). A participaçãonos benefícios da salvação depende da fé* emCristo; a fé é o único jeito de alguém “perma-necer na bondade” ou na misericórdia* salva-dora de Deus em Cristo. Aqui, Paulo não sepreocupa com o destino final dos gentios quepodem ser cortados, mas mostra, com o exem-plo de Israel, que um novo enxerto é possível(ver Oliveira).

Em Gálatas 5,2-4, encontra-se uma decla-ração mais clara das conseqüências do abandonoda fé. Se os gálatas abraçarem o falso evangelhode justificação por obras da lei*, Paulo adverte:“Cristo não vos servirá mais para nada... rom-

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:24118

119A a

pestes com o Cristo... decaístes da graça”. Emoutras palavras, os gálatas se separariam da es-perança de salvação. Por outro lado, Paulo nãoimagina que isso realmente aconteça: “Ter feitotantas experiências em vão! E ainda se fosseem vão!” (Gl 3,4). A menos que esse versículoenigmático seja ameaça de que tudo foi em vão,Paulo aqui pensa ser impossível que eles percama salvação. E, na análise final, ele tem “con-fiança no Senhor” (Gl 5,10) de que os gálatasnão vão fazer o rompimento decisivo com oevangelho (e perder a salvação). Essa expressãode confiança não torna o perigo menos real nema advertência menos urgente, mas encontra ocaminho na fidelidade do Senhor, cuja interven-ção Paulo prevê que fará suas advertências al-cançarem o resultado desejado.

Se os convertidos de Paulo não permane-cerem de pé no dia de Cristo, seu trabalho terá“sido inútil” (1Ts 3,5; Gl 2,2; 4,11; Fl 2,16;ver Futilidade). Se alguns falharem no testefinal, ou terão caído de um estado de graça ouprovarão que, em primeiro lugar, não eram con-vertidos. As cartas de Paulo mostram que elepensou em termos dessa última possibilidade.Ele reconhece que suas comunidades incluemos genuínos e também os falsos (ver, e.g., 1Cor5,5-13). Paulo não tem certeza da realidade dosucesso de seus esforços apostólicos, da mesmamaneira que confia nos efeitos do evangelho,no poder de Deus para a salvação (cf. Rm 1,16;15,18; 1Ts 1,5; 2,13; 2Cor 4,7; 1Cor 3,6; 2,4-5; 15,10). Somente quem participa da vida es-catológica transmitida pelo Evangelho supor-tará o julgamento.

Os coríntios não devem “deixar sem efeito agraça recebida de Deus” (2Cor 6,1) e deixar quea prova de fé se volte contra eles (2Cor 13,5),pois se continuam a contestar o apostolado dePaulo dão a entender que sua conversão e sal-vação por meio da pregação de Paulo foi umafraude. Paulo espera claramente que sua suges-tão de que eles não estão salvos evoque protes-tos, a confirmação da fé deles e (indiretamente)a confirmação dele mesmo. De modo semelhan-te, Paulo sugere que os coríntios creram em vão(1Cor 15,2), a fim de chocá-los com a insinua-ção de mau gosto a respeito do falso ensina-mento que alguns aceitaram, que “não há ressur-

reição dos mortos” (1Cor 15,12). A mensagemque exclui a ressurreição física dos mortos (ba-seada na pressuposição de que a ressurreição jáocorrera em um sentido diferente) não salva nin-guém que nela creia, por isso tal “fé é ilusória”(1Cor 15,17-18). Embora seja comum acreditarque esses versículos subentendem a possibili-dade da salvação estar perdida, seus contextossugerem outra coisa.

Portanto, a perseverança que Paulo afirmasó pode ser “na fé”. Somente quem crê emCristo conhece a certeza da salvação final (Cl1,22-23). A perseverança não é automática. Oafastamento do evangelho pela descrença inter-rompe a continuidade da salvação e põe em dú-vida sua conclusão — ou põe em dúvida a legi-timidade da conversão da pessoa. Contudo,Paulo vê a ameaça da descrença da perspectivafundamental de sua confiança em Deus, que dáe conclui graciosa e fielmente a salvação. Essaperspectiva possibilita que Paulo se apegue àperseverança nesse sentido não-automático, quesempre depende da intervenção divina.

4. As cartas PastoraisAs Pastorais* usam a palavra “sofrermos” (hy-

pomen∞, 2Tm 2,12) para expressar a idéia deperseverança na fé. Expressões contrastantessão “renegar a fé”, e “transviar longe da fé”(aphist¶mi, apoplana∞ apo t¶s piste∞s, arneo-

mai t¶n pistin, 1Tm 4,1; 6,10; 5,8).Quanto ao problema de abandonar a fé, as

Pastorais prevêem esse comportamento “nosúltimos tempos” (1Tm 4,1; cf. 2Tm 4,3-4). Masjá sabem a respeito de falsos mestres que “seapartaram da verdade” e que “subvertem a fé”de alguns membros da Igreja (2Tm 2,18; 1Tm6,21). Alguns “renegarão a fé” (1Tm 4,1) e“desviarão os ouvidos da verdade” (2Tm 4,4).Os que renegam a fé fazem-no por aderir “adoutrinas inspiradas pelos demônios*” (1Tm4,1, com referência à origem demoníaca dosfalsos ensinamentos) caracterizadas pelo ascetis-mo, disputas quanto à lei e especulação (1Tm4,3; 1,4.6-7; Tt 1,10; 3,9) e pela negativa da res-surreição futura (2Tm 2,18). O amor ao dinheiroe outros vícios também acompanham esse afas-tamento da fé (1Tm 6,10; 2Tm 3,2-5). Suben-tende-se a exclusão da salvação.

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:24119

120Aa

Em contraste, Timóteo e Tito devem resistirao falso ensinamento e se apegar ao verdadeiroevangelho (e.g., 1Tm 1,3; Tt 1,9.11), como Paulofez sob ameaça de perseguição, para expressarconfiança na salvação (2Tm 1,12; 4,7-8.18).Portanto, nas Pastorais, como alhures em Paulo,a perseverança só existe pela continuação noverdadeiro evangelho, “na fé” (conforme defini-da nas Pastorais). As Pastorais fazem também amesma ligação entre os benefícios atuais da sal-vação e sua consumação (2Tm 2,10-11; cf. 2,19),conforme vimos anteriormente em Paulo, en-quanto enfatizam o significado do sofrimentohumano para que os fiéis alcancem a salvação(e.g., 2Tm 2,10.12). Além disso, as Pastoraischegam a ecoar a aclamação que Paulo faz dafidelidade de Deus (“digna de confiança é estapalavra”, 2Tm 2,11-13) aos cristãos em perigode “renegar” Cristo e lhe ser “infiéis” (estadotemporário?), ao mesmo tempo em que adver-tem contra essa negação.

As Pastorais indicam que o afastamento dafé é, assim, claramente motivo possível para ex-clusão da salvação. Contudo, elas explicam oabandono da fé pela noção de falsa profissão enão explicitamente como a queda de um estadode graça. Os mestres que guardam “as aparên-cias da piedade, negando-lhe contudo o poder”,não devem ser aceitos como verdadeiros cris-tãos, pois são “homens de espírito pervertido,de fé inconsistente” (2Tm 3,5.8). De modo se-melhante, a falta de resposta à advertência reve-la o caráter de homem desgarrado e pecador(Tt 3,10-11). Tais adversários do verdadeiro en-sinamento ainda precisam “arrepender-se”,“para conhecerem a verdade” (2Tm 2,25), ouseja, precisam “converter-se”.

A entrega que Paulo faz de Himeneu e Ale-xandre a Satanás “para que aprendam a não maisblasfemar” (1Tm 1,20) sugere tratá-los comonão-cristãos na esperança de convertê-los (cf.1Cor 5,5; 1Tm 1,13). É provável que “sua fénaufragou” (1Tm 1,19) se refira não a sua fé pes-soal, mas à fé como tal no evangelho, que elesprejudicaram. Somente cristãos genuínos per-tencem à Igreja. Entretanto, na verdade, a Igrejainclui os que o Senhor sabe que são “seus” e osoutros, como em uma “casa grande” onde “nãohá somente vasos de ouro e prata; também os

há de madeira e barro. Uns são para uso nobre,os outros, para uso vulgar” (2Tm 2,19-20; cf.Rm 9,19-26). A pessoa demonstra estar na pri-meira categoria afastando-se “da iniqüidade” epurificando-se “de suas manchas” (2Tm 2,19.21). A atual natureza heterogênea da comunida-de (nem todos alcançarão necessariamente a sal-vação final, pois alguns se extraviarão) não pre-cisa lançar dúvidas na salvação final dos fiéisgenuínos. Com respeito a isso, segundo 2 Timó-teo 2,19, “permanece o sólido fundamento as-sentado por Deus”. Nele estão inscritas as pala-vras “o Senhor conhece os seus”. Essa afirma-ção baseia o triunfo* escatológico dos verda-deiros fiéis na fidelidade divina.

Não obstante, a possibilidade de terem asPastorais em vista também a apostasia de cris-tãos genuínos pelo abandono da fé não podeser excluída (cf. Marshall 1975, 128-131). Essapossibilidade, entretanto, também está presenteem menor grau nas cartas paulinas incontestes.À luz dos comentários precedentes, portanto,embora reflitam sua situação histórica especí-fica, as Pastorais ainda parecem compatíveiscom o pensamento paulino a respeito da perse-verança e do ato de apostatar.

Ver também ANGÚSTIAS, TRIBULAÇÕES, PRO-VAÇÕES; CHAMAR, CHAMAMENTO; DISCIPLINA;ELEIÇÃO E PREDESTINAÇÃO; ESCATOLOGIA; FÉ; GRA-ÇA; SANTIDADE, SANTIFICAÇÃO; JUÍZO, JULGAMENTO;SALVAÇÃO; PECADO, CULPA; UNIVERSALISMO.

BIBLIOGRAFIA: A. Y. Collins. “The Function ofExcommunication in Paul”. HTR 73, 1980, 251-263; M. Goguel. “Les fondements de l’assurancedu salut chez l’apôtre Paul”. RHPR 17, 1938,105-144; R. H. Gundry. “Grace, Works, andStaying Saved in Paul”. Bib 66, 1985, 1-38; J.M. Gundry Volf. Paul and Perseverance: Stayingin and Falling Away. WUNT 2/37, Tübingen, J.C. B. Mohr, 1990, Louisville, John Knox/Westminster, 1991; G. Harris. “The Beginningsof Church Discipline: 1 Corinthians 5”. NTS 37,1991, 1-21; O. Hofius. “Die Unabänderlichkeitdes göttlichen Heilsratschlusses: Erwägungenzur Herkunft eines neutestamentlichenTheologumenon”. ZNW 64, 1973, 135-145;Idem. “Hoffnung und Gewissheit: Römer 8, 19-39”. Mitarbeiterhilfe 31, 1976, 3-10; I. H. Mar-

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

A.p65 28/03/2008, 15:24120

121A a

shall. Kept by the Power of God: A Study ofPerseverance and Falling Away. Minneapolis,Bethany, 1975; Idem. “The Problem of Apostasyin New Testament Theology”. In: Jesus theSaviour: Studies in New Testament Theology.Downers Grove, IL, InterVarsity, 1990; E. P.Sanders. Paul and Palestinian Judaism: A Com-parison of Patterns of Religion. Philadelphia,Fortress, 1977; Idem. Paul, the Law, and theJewish People. Philadelphia, Fortress, 1983.

J. M. GUNDRY-VOLF

APOSTATAR. Ver APOSTASIA, APOSTATAR,PERSEVERANÇA.

APÓSTOLOO ofício de apóstolo, pelo qual Paulo proposital-mente referia-se a si mesmo, é de singular im-portância na avaliação de sua vida e de seu mi-nistério. Tem havido considerável debate a res-peito das origens sociais da palavra apóstolo e, demaneira mais significativa, a respeito dos crité-rios para o apostolado e da natureza da autorida-de* que Paulo reivindicava sobre as Igrejas dosgentios*, que outros questionavam ou rejeita-vam. A autoridade de Paulo para as Igrejas e oscristãos de hoje está ligada a essas questões.

1. Origem grega da palavra apóstolo2. A busca da origem do conceito de apóstolo3. Os indícios a partir das cartas paulinas4. Jesus, o Apóstolo, e seus apóstolos5. Os apóstolos nas cartas paulinas6. Contestação do apostolado de Paulo7. Conclusão

1. Origem grega da palavra apóstoloSó raramente a palavra apostolos (“apóstolo”)era usada na língua grega antes da época neo-testamentária (ver Rengstorf, 407-408). No gre-go clássico, seu uso limita-se mais ou menos acontextos de navegação. Heródoto usa-a duasvezes com o significado de “delegado”, enquan-to na LXX ela está presente uma única vez como mesmo significado. A palavra ocorre 35vezes no corpus paulino e 80 vezes no NT, oque deixa claro que apostolos devia ser muitoimportante no movimento cristão primitivo.Como, então, explicamos o emprego dessa pa-lavra no NT e por Paulo em particular?

2. A busca da origem do conceito de apóstoloO estudo moderno de apóstolo começou como ensaio de J. B. Lightfoot: “O nome e o ofíciode apóstolo” (publicado como uma digressãoem seu comentário a respeito de Gálatas, em1890; ver em Agnew um proveitoso levanta-mento da grande quantidade de literatura quesurgiu desde então).

Apesar de opiniões diversificadas quanto àorigem, ao caráter e ao significado de apostolosno NT, há ampla concordância que apostolos éusado em dois sentidos principais: solene, nosentido de ser portador de autoridade divina(e.g., “apóstolo de Jesus Cristo”, 1Cor 1,1) enão-técnico (e.g., “delegados das Igrejas”, 2Cor8,23). Como veremos, Paulo usa apostolos nes-ses dois sentidos.

Quanto à origem do conceito de apóstolo,há três teorias principais.

2.1. O ®ålîa& do judaísmo rabínico. Men-cionada primeiro por Lightfoot, mas desenvol-vida por Rengstorf, esta teoria chama a atençãopara paralelos ao apóstolo neotestamentário noßålîa&, “enviado”, encontrado na literatura rabí-nica tardia. O ßålîa& era um representante co-missionado e enviado ou por um indivíduo —por exemplo, para negociar um casamento (m.Qidd. 2,1; t. Qidd. 4,2; t. Yebam. 4,4) — oucomo agente para representar as autoridadesreligiosas em Jerusalém junto aos judeus dadiáspora (y. «ag. 76d). Do ponto de vista legal,“Aquele-que-alguém-envia (ßålîa&) é como oremetente” (m. Ber. 5,5). O relacionamento doßålîa& com o remetente é primordial, o conteú-do da comissão secundário.

Como a literatura que contém o ßålîa& éposterior ao NT, é difícil estabelecer o relacio-namento que pode ter existido entre o ßålîa& dojudaísmo tardio e o apostolos neotestamentário.Os que ligam apostolos a ßålîa& chamam aatenção para a probabilidade de ßålîa& ser ante-rior à literatura em que ocorre e também para afreqüência da raiz verbal ßl& no AT (cerca de700 vezes, aparecendo na LXX como apostel-lein ou ex-apostellein. Observa-se que apostolosocorre apenas uma vez na LXX, como tradu-ção do particípio ßålûa& em 1Rs 14,6). A uni-dade abrangente do conceito é vista no caráterpredominantemente secular das referências dos

APOSTASIA, APOSTATAR, PERSEVERANÇA

APÓSTOLO

A.p65 28/03/2008, 15:24121

122Aa

textos veterotestamentários e também dos tex-tos rabínicos. Parece provável que o uso não-técnico que Paulo faz de apostolos citado abaixodeve remontar ao conceito do ßålîa&.

Exemplo excelente de texto que ilustra oelo conceitual do apostolos neotestamentáriocom o ßålîa& é João 13,16: “Em verdade, emverdade, eu vos digo, um delegado (apostolos)[não é] maior do que aquele que o envia (toupempsantos)” (ver também Mc 6,30; Lc 11,49)e que recorda o aforismo: “Aquele-que-alguém-envia é como o remetente”.

2.2. O apostolos do gnosticismo. W. Schmi-thals, principal proponente da formação gnóstica(ver Gnose, gnosticismo) de apostolos, declaraenfaticamente que “… a instituição judaica tardiado shaliah não tem nada a ver com o apostoladocristão primitivo” (Schmithals, 105). Schmithalsmenciona o uso religioso de apostolos no NTem contraste com o caráter uniformemente jurí-dico de ßålîa& na literatura rabínica. Do mesmomodo, considera-se o uso predominantementenão-religioso de ßl& no AT fonte improvável parao apóstolo neotestamentário que, como figuramissionária e escatológica, tem caráter religioso.

Schmithals sugere que Antioquia*, não Je-rusalém*, é a fonte do conceito de apóstolo eque o apóstolo neotestamentário deriva do mitodo redentor dos sistemas gnósticos. Schmithalsmenciona dois tipos de redentores, o celeste eo terreno, e argumenta que o chamado e a expe-riência extática (recebimento de gnosis) e suamissão por todo o mundo identificam-nos co-mo redentores terrenos. Ele afirma que o após-tolo neotestamentário surgiu com Paulo no am-biente gnóstico da Síria.

A tese de Schmithals não teve apoio. Não sesabe quase nada a respeito do ambiente religio-so da Síria na época. Ele precisa reconstruir afigura de seu redentor terreno a partir dos escri-tos paulinos. Embora usada a respeito de um re-dentor celeste, em textos gnósticos que, de todomodo, são posteriores ao NT, a palavra apostolosnão é usada a respeito de um redentor terreno.

2.3. Os apostoloi do NT. J. Munck e A.Ehrhardt rejeitaram o conceito do ßålîa& porrazões que se assemelham às de Schmithalsmencionadas acima. Esta perspectiva defendea origem cristã do apóstolo com base no estí-

mulo que a nova fé dava ao surgimento de umafigura de liderança adequada. Segundo Munck,“Os apóstolos cristãos fazem parte de algo intei-ramente novo e dinâmico, pois a religião cristãtoda é uma coisa para ser difundida no exte-rior.... Comparado com isso, o uso judaico daidéia apostólica... está tão afastado do uso cris-tão quanto um enviado diplomático está de ummissionário para os pagãos” (Munck, 1949, 100).

De modo geral, porém, esta escola de pen-samento não apresenta nenhum panorama glo-bal para o surgimento do apóstolo na Igrejaprimitiva.

2.4. O caráter do apostolado de Paulo. Umadas questões mais importantes quanto ao apos-tolado de Paulo é seu caráter e sua autoridade.A visão tradicional de que o chamado de Cristo*(ver Conversão e vocação de Paulo) no caminhode Damasco conferiu a Paulo a autoridade doSenhor sobre as Igrejas dos gentios, que se trans-fere à posição canônica das cartas para as Igrejasde hoje, é contestada por definições mais amplasde apostolado. Com efeito, essas redefiniçõestornam relativa e condicional a autoridade apos-tólica de Paulo nas Igrejas. R. Schnackenburg,por exemplo, argumenta que, quando se tornoucristão, Paulo não encontrou nenhuma definiçãouniforme de apóstolo e não estabeleceu nenhumcritério sistemático para o apostolado, conside-rando os apóstolos apenas “pregadores e missio-nários de Cristo” (Schnackenburg, 302). J. A.Kirk declara que “para Paulo, o apostolado écomprovado não por uma reivindicação exclu-siva, mas pelos frutos dos que o exercem” (Kirk,261), e “o mesmo ministério apostólico, em cir-cunstâncias históricas diferentes, existe até hoje”(Kirk, 264).

3. Os indícios a partir das cartas paulinasJá que as cartas paulinas são os escritos maisprimitivos do NT e já que Paulo usa apostolosmais que qualquer outro autor neotestamentá-rio, todas as investigações históricas da origem,do sentido e do significado da palavra come-çam apropriadamente com suas cartas.

Entretanto, para que não se pense que oconceito de apóstolo se originou com Paulo,devemos mencionar que ele escreve a respeito“daqueles que eram apóstolos antes de mim”

APÓSTOLO

APÓSTOLO

A.p65 28/03/2008, 15:24122

123A a

(gr.: tous pro emou apostolous). Esses apósto-los estavam em Jerusalém (Gl 1,17). A tradiçãodoutrinal (ver Credo), que ele repete aos corín-tios e que “recebeu” muitos anos antes, men-cionava que o Senhor* ressuscitado apareceu[na Palestina] “a todos os apóstolos” antes deaparecer a Paulo (1Cor 15,7.8), o que sugereque havia “apóstolos” na época da ressurrei-ção* de Jesus ou próximo a ela.

Essa tradição doutrinal (1Cor 15,5-9) é pro-veitosa a outro respeito, a saber, distingue osDoze de “todos os apóstolos”:

[Cristo] apareceu a Cefas, depois aos Doze…

A seguir apareceu a Tiago, depois a todos osapóstolos

Em último lugar também a mim… o menor dosapareceu apóstolos.

Há aqui uma simetria a respeito das apari-ções do Senhor ressuscitado na Palestina. Cefas(ver Pedro) é colocado com os Doze e Tiagocom todos os apóstolos. Alhures Cefas é citadocomo apóstolo (Gl 1,18-19; 2,8; cf. 1Pd 1,1),por isso acreditamos que os Doze eram chama-dos apóstolos, mas havia mais de doze apóstolos,e entre eles estavam Tiago e o próprio Paulo,como ele se proclamava (1Cor 15,9).

A explicação mais lógica para essa diferen-ciação entre os Doze e os apóstolos é que a ex-pressão “os Doze” aplicava-se aos doze discípu-los de Jesus desde a época da missão galiléia eque os apóstolos eram esses e outros que, naprimeira Páscoa, o Senhor enviou em missão.

Podemos dizer, então, que o apóstolo — tãocomum nas cartas paulinas — antecede essascartas e remonta à primeira Páscoa na Palestinae, na verdade, é até anterior a ela. O mesmo éverdade quanto à noção dos Doze.

4. Jesus, o Apóstolo, e seus apóstolosÉ no ministério de Jesus que precisamos pro-curar a origem do fenômeno neotestamentáriodo apóstolo. É uma proposição muito maisprovável que a de o conceito ter surgido repen-tinamente na primeira Páscoa.

A esse respeito notamos ditos que revelamque Jesus tinha consciência de ter sido “enviado”.Ele disse: “quem me acolhe... acolhe... Àqueleque me enviou” (Mc 9,37 par.; cf. Mc 12,6 par.;

Mt 15,24; Lc 4,43; Jo 5,36; 9,7; 20,21). Para oautor de Hebreus, o próprio Jesus é “o apósto-lo… da nossa profissão de fé” (Hb 3,1).

Os que ele escolheu e chamou para estarcom ele foram, no devido tempo, “enviados” àscidades da Galiléia “para proclamar” a mesmamensagem que ele proclamava, a saber, a pro-ximidade do Reino de Deus, da qual o sinal eraa expulsão de espíritos impuros (Mc 3,14; 6,7.12.13; cf. Mc 1,14-15.39). Jesus está conscien-te de ter a autoridade (exousia) de Deus*, comoseu representante para cumprir sua vontade es-catológica na Terra (Mc 2,10; cf. Jo 5,37). Damesma maneira, Jesus concedeu sua “autori-dade” (exousia) sobre os demônios aos Dozecomo seus representantes (Mc 3,15; 6,7). A tra-dição de que Jesus “constituiu doze... para osenviar a pregar” e “os apóstolos reúnem-se comJesus” (Mc 3,14; 6,30) não precisa ser consi-derada anacronismo.

A melhor explicação da origem da noçãode apostolado é que o conceito do ßålîa& eracomum na época de Jesus e que ele o tomou,aplicou-o primeiro a si mesmo como “o envia-do por Deus” e, depois, por extensão, aos queforam enviados por ele primeiro à Galiléia e,em seguida, aos pagãos.

Quanto “aos Doze”, devemos considerá-losuma ponte entre o início do ministério do Jesushistórico e o estabelecimento do cristianismoprimitivo, como Gerhardsson argumentou. Issose confirma em Marcos, que não tem interesseredacional no lugar dos Doze na Igreja pós-pascal e, contudo, um tanto ingenuamente, re-fere-se aos Doze em diversas ocasiões (Mc 3,14;4,10; 6,7; 9,35; 10,32; 11,11; 14,10.17.20.43).

5. Os apóstolos nas cartas paulinasDe modo geral, Paulo usa o termo apóstolo deduas maneiras: no sentido não-técnico e nosentido solene.

5.1. Apóstolo: não-técnico. Nos escritospaulinos, há duas referências a apóstolo no sen-tido não-técnico. Na primeira delas, Paulo escre-via da Macedônia, a fim de preparar os coríntiospara a vinda de dois homens, a respeito dos quaisele escreve uma breve recomendação (2Cor8,16-24). O propósito da visita deles era fazeros coríntios apressarem o término da coleta para

APÓSTOLO

APÓSTOLO

A.p65 28/03/2008, 15:24123

124Aa

os santos de Jerusalém. Paulo escreveu: “Envia-mos (synepempsamen) com [Tito] o irmão, cu-jo louvor a respeito do Evangelho todas as Igre-jas cantam”, e um que Paulo chama de “nossoirmão, cujo zelo temos constatado muitas vezes,em muitos casos”. Paulo declara que esses dois“irmãos” são “os delegados [apostoloi] dasIgrejas [macedônias]” para a Igreja de Corinto(2Cor 8,23), enviados em missão prática e finan-ceira. Esse uso de apostolos se parece com o deßålîa& dos escritos rabínicos mais tardios, en-viados em missão de Jerusalém para as sinago-gas da diáspora.

No segundo caso, Paulo escreveu da prisão(possivelmente em Roma) à Igreja de Filipos,para explicar que, devido a uma doença, Epa-frodito voltava para eles. Epafrodito era o “com-panheiro de trabalho [apostolai] e de combateenviado [pela Igreja filipense] para se pôr [aserviço de Paulo quando ele] estava necessitado”(Fl 2,25). Esse papel de apóstolo era prático enão diretamente religioso. Mais uma vez, a se-melhança entre o conceito de ßålîa& e o papelde Epafrodito, o apóstolo da Igreja de Filipos,parece grande demais para ser coincidência.

Essas duas referências apóiam a idéia deque “delegados (apostoloi) das Igrejas” esta-vam bem instituídos nas igrejas paulinas emmeados dos anos 50 do século I. A explicaçãomais provável para a origem desses apóstolosé que Paulo tomou a idéia emprestada da prá-tica judaica e a aplicou a suas Igrejas.

5.2. Apóstolo: solene. Com isto, queremosdizer “apóstolos de Cristo” (como, e.g., 1Ts 2,7).Esses apóstolos não são enviados por pessoascomuns em missão mundana. Quem os envia éCristo, o Messias de Deus. O número extraordi-nário de referências paulinas a apóstolo pertencea esta categoria, que, entretanto, se divide aindamais em outros apóstolos e o próprio Paulo.

5.2.1. Outros apóstolos. Há “apóstolosantes” de Paulo (Gl 1,17) estabelecidos em Je-rusalém. A reflexão de Paulo em seu chamadoapostólico a caminho de Damasco, que pode-mos datar de meados dos anos 30, deixa claroque, na Igreja primitiva, havia apóstolos detempos mais antigos, na verdade do tempo daprimeira Páscoa (“[Cristo] apareceu... a todosos apóstolos” [1Cor 15,7].

Houve apóstolos depois de Paulo? Há umponto histórico depois do qual, segundo Paulo,não houve nenhum apóstolo?

Essas perguntas importantes têm ligaçãocom 1 Coríntios 15,5-11. As palavras de Paulo:“[Cristo] apareceu a Cefas, depois aos Doze.A seguir a mais de quinhentos irmãos de umasó vez.... A seguir ... a Tiago, depois a todos osapóstolos. Em último lugar também me apare-ceu a mim”, parecem demarcar um período deaparições da ressurreição que se iniciam comCefas e terminam com Paulo. Paulo não diz:“Depois, ele apareceu a mim”, mas sim: “Emúltimo lugar também me apareceu a mim”, oque sugere um caráter final das aparições.Paulo continua para dizer: “Pois eu sou o me-nor dos apóstolos.... Mas o que sou [apóstolo],devo-o à graça de Deus”, pois os apóstolos sãoem número limitado. Ele se diz “o menor dosapóstolos”, pois é, na realidade, o “último” após-tolo a quem o Senhor “apareceu”. O primeiroe mais básico teste de apostolicidade é ter oreivindicador visto “o Senhor” (1Cor 9,1).

A natureza da aparição de Cristo a Pauloera atípica. Ele não viu o Senhor ressuscitadono contexto da primeira Páscoa na Palestina, co-mo os outros apóstolos antes dele viram, mascomo o Senhor celeste glorificado, um ou doisanos mais tarde. Seja qual for seu significado,a frase incomum e muito debatida: “a mim, oaborto” (t∞ ektr∞mati, 1Cor 15,8), reflete adefesa de Paulo de seu apostolado genuíno,apesar da aparição isolada e tardia do Senhora ele. Do ponto de vista de Paulo, a naturezaincomum da aparição para ele de Cristo ressus-citado serve para marcá-lo como o ponto finalde tais aparições e, portanto, o ponto final dadesignação apostólica.

Os apóstolos devem ter sido numerosos,pois o credo refere-se a “todos os apóstolos” ePaulo se refere aos outros apóstolos (1Cor 9,5).Não sabemos o número exato, só que havia maisde doze, que eram o grupo central. Os Dozeatuavam como o fundamento simbólico para anova comunidade do Cristo ressuscitado. Osapóstolos, por outro lado, adotavam o caráterde seu nome: foram enviados por Cristo para iraté os outros. No encontro missionário emJerusalém, havia dois “apostolados” (apostolai)

APÓSTOLO

APÓSTOLO

A.p65 28/03/2008, 15:24124

125A a

que envolviam dois “envios”: um para os cir-cuncisos (ver Circuncisão), o outro para osgentios* (Gl 2,7-8).

Sabemos os nomes de alguns, mas não detodos os apóstolos. Tiago* está ligado a “todosos apóstolos” (1Cor 15,7; cf. Gl 1,19), o quesugere que, embora não estivesse entre os Doze,era o mais honrado entre os apóstolos. É provávelque o relacionamento de Tiago como “irmãodo Senhor” lhe conferisse um lugar especial (cf.Gl 1,19). É provável também que os “irmãosdo Senhor”, que não são citados pelo nome, masentre os quais Tiago se incluía, devam ser consi-derados apóstolos (ver o contexto de 1Cor 9,5).João deve claramente ser considerado apóstolo(Gl 2,7-9). O elo entre Barnabé* e Paulo tam-bém sugere que Barnabé deve ser consideradoapóstolo (1Cor 9,6; cf. At 14,4). Os únicos ou-tros citados como apóstolos nos escritos dePaulo são seus parentes “Andrônico e Júnias,meus parentes... apóstolos eminentes” (Rm16,7). Se aos Doze acrescentarmos Tiago, Bar-nabé, Andrônico, Júnias e Paulo (último e me-nor), saberemos os nomes de dezessete após-tolos, mas o número era maior.

Paulo tem os apóstolos em alto conceito.Como fundadores de Igrejas, os apóstolos sãopessoas proeminentes no cristianismo primiti-vo. Paulo declara: “E os que Deus dispôs naIgreja são, primeiro, apóstolos” (1Cor 12,28;cf. Ef 2,20; 4,11). Além disso, o ministério de-les era profético, revelador, e iluminava o sen-tido de Cristo e do evangelho*. Paulo afirmaque ele e os outros apóstolos receberam a reve-lação de Deus por meio do Espírito (ver Espí-rito Santo) para entender os mistérios* doEvangelho (Ef 3,1-9; cf. 1Cor 2,6-16). Os após-tolos deram a conhecer essa revelação de Deusverbalmente e também em seus escritos (Rm16,25-26; 1Cor 2,13; Ef 3,3-4).

5.2.2. Paulo apóstolo. Paulo refere-se mui-tas vezes a si mesmo como “apóstolo”. Freqüen-temente se apresenta aos leitores como “após-tolo de Jesus Cristo” ou por uma imputação se-melhante (1Cor 1,1; 2Cor 1,1; Ef 1,1; Cl 1,1;1Tm 1,1; 2Tm 1,1; Tt 1,1). É “por Jesus Cristo”que Paulo recebeu “a graça de ser apóstolo”(apostol¶, Rm 1,5; cf. Gl 1,1), porque Jesus“chamou” Paulo para ser apóstolo e o pôs “à

parte” para anunciar o Evangelho de Deus (Rm1,1; 1Cor 1,1), para conduzir à obediência dafé* os gentios (Rm 1,5; 11,13). Tudo isso deve-se ao Cristo ressuscitado que apareceu a Paulo“em último lugar”, enquanto o perseguidor via-java para Damasco.

Segundo S. Kim, Paulo alude com freqüên-cia a seu encontro com Cristo no caminho paraDamasco. Além de passagens mais prontamentereconhecidas como 1 Coríntios 9,1; 15,8-10; Gá-latas 1,13-17; Filipenses 3,4-11, há outras (e.g.,Rm 10,2-4; 1Cor 9,16-17; 2Cor 3,4–4,6; 5,16;Ef 3,1-3; Cl 1,23-29). Kim argumenta que a cris-tofania de Damasco coloriu e moldou o vocabu-lário e o pensamento paulinos, em grau notável.

6. Contestação do apostolado de PauloNas cartas aos tessalonicenses não há nenhumindício de que o apostolado de Paulo fosse con-testado nas Igrejas gregas na ocasião em queele as escreveu (c. 50-52 d.C.). Paulo se sentelivre para juntar a si Silvano e Timóteo em ter-mos iguais e para incluí-los com ele como“apóstolos de Cristo” (1Ts 2,6; cf. 1Ts 1,1).Mas, a partir dessa época, sem dúvida devido acríticas crescentes, Paulo passou a ser explícitoquanto a sua condição de apóstolo (Gl 1,1; 1Cor1,1; 2Cor 1,1; Rm 1,1) e tomava o cuidado de,como apóstolo, se distanciar de vários colabo-radores* (1Cor 1,1; 2Cor 1,1; Cl 1,1; cf. Fl 1,1).

Por volta de 55 d.C., Paulo reconheceu queseu apostolado estava sendo contestado: “Separa outros eu não sou apóstolo...” (1Cor 9,2).Esses “outros” são provavelmente os judaizan-tes cujos pontos de vista ele talvez repetisseem Gálatas quando escreveu que não era “após-tolo” apenas “da parte dos homens” (Gl 1,1).Em outras palavras (diziam eles), Paulo nadamais era que um ßålîa& em missão da Igrejade Jerusalém, um representante de outros.

Notam-se as outras críticas deles pelos co-mentários de Paulo em 1Cor 15,8-9, onde eleafirma seu apostolado, embora não estivessepresente quando o Senhor ressuscitado apareceuaos apóstolos antes dele. A aparição de Cristo aPaulo (diziam eles) foi mais tarde, de um tipodiferente e só para ele. Em seu caso não ocorreuuma verdadeira aparição da ressurreição. Ele nãodevia ser contado entre os apóstolos.

APÓSTOLO

APÓSTOLO

A.p65 28/03/2008, 15:24125

126Aa

Entretanto, Paulo insistia que era um após-tolo, apesar de ser “um aborto”, e que viu oSenhor de uma maneira diferente dos outros.Se ele era “o menor dos apóstolos”, era só porter sido perseguidor. Mas isso ele compensouao trabalhar “mais do que eles todos”. Se pro-clamavam o Cristo crucificado e ressuscitado,ele fazia o mesmo (1Cor 15,3-5.11).

6.1. 1 Coríntios: questionamento do apos-tolado de Paulo. Tons defensivos semelhantessão ouvidos antes na carta e refletem o ques-tionamento local de seu apostolado: “Não souapóstolo? Acaso não vi Jesus, nosso Senhor?”(1Cor 9,1).

Aqui a questão não se relaciona com a basehistórica da reivindicação que Paulo faz de que éapóstolo, mas a seu estilo de vida de ministério,que alguns achavam inaceitável no ambientegreco-romano de Corinto, a saber, que ele nãoaceitava remuneração (ver Apoio financeiro;Fabricação de tendas). Pela “defesa contra osmeus acusadores” (1Cor 9,3) que se segue (1Cor9,4-18), parece que, segundo alguns coríntios,a recusa em aceitar patronagem era seu reco-nhecimento tácito de que não era, em nenhumsentido verdadeiro, um apóstolo. Um apóstologenuíno aceitaria o pagamento completo.

Mesmo assim, essa era uma queixa faccio-nária, não representativa. Paulo sentia-se capazde dizer: “para vós [coríntios], ao menos eu[sou apóstolo]” (1Cor 9,3).

6.2. 2 Coríntios: oposição ao apostoladode Paulo. Entretanto, depois de não mais queum ou dois anos, o questionamento do aposto-lado de Paulo por alguns dos coríntios se forta-leceu em oposição generalizada. Esse dramá-tico desenvolvimento é atribuível à chegadarecente de alguns autoproclamados “ministros”ou “apóstolos” (2Cor 11,13.23), que lançaramuma missão contra Paulo e sua versão de cris-tianismo (2Cor 2,17–3,1; 11,4.12; ver Adver-sários). O vocabulário do ministério deles surgede 2 Coríntios e inclui termos como “a palavrade Deus”, “Evangelho”, “Jesus”, “Espírito” e“justiça” (2Cor 2,17; 4,1; 11,4.15).

Esse era agora um ataque de longo alcanceao apostolado paulino por recém-chegados quebuscavam desalojar Paulo de seu lugar em Co-rinto. Eles eram superiores, Paulo era inferior

(2Cor 11,5; 23). Paulo os ridiculariza como“superapóstolos” (2Cor 11,5; 12,11). Se elechegou até eles, os superapóstolos chegarammais além (2Cor 10,12-14 — Jerusalém com-parada a Antioquia?). Se ele é apóstolo, ondeestão “os sinais milagrosos, prodígios, atos depoder” (2Cor 12,12)? Se ele alegou ter “visto”o “Senhor” (1Cor 9,1; 15,8), eles se vangloriamde uma abundância de “visões e revelações doSenhor (2Cor 12,1.7; ver Visões), e a provadisso é seu discurso extático (2Cor 5,12-13;cf. 2Cor 12,2-4; ver Línguas). As credenciaisdeles como “hebreus... israelitas... da descendên-cia de Abraão” são impecáveis, fazendo-os supe-riores de todas as formas.

Por sua parte, Paulo é denegrido como ina-dequado, impotente, mundano e tolo para sertolerado (2Cor 2,17; 3,5; 10,1-6). Paulo é “astu-cioso” (2Cor 12,16) e uma figura triste enquan-to caminha sem firmeza de defeito para defeito(2Cor 2,14-16; 4,1.7-8.16; 6,3-10; 11,23–12,10).Qual é a prova de que “Cristo fala” nesse homem(2Cor 13,3; 10,7; cf. 1Cor 2,13; 14,36)?

Como Paulo reagiu a esse ataque devasta-dor a seu apostolado? De modo significativo,ele não reiterou a aparição do Senhor a ele (cf.1Cor 9,1; 15,8; Gl 1,15-16). As “visões e reve-lações do Senhor” a seus adversários (2Cor12,1) roubaram essa base dele, pelo menos aosolhos dos coríntios.

Em 2 Coríntios, Paulo defende seu aposto-lado no sentido a seguir. Primeiro, o chamadono caminho de Damasco pelo Senhor ressusci-tado está implícito em 2 Coríntios inteiro. Eleera apóstolo “pela vontade de Deus” (2Cor 1,1)e usava “o poder (exousia) que o Senhor [lhe]deu para” a edificação das Igrejas pagãs (2Cor10,8; 13,10; cf. 11,17; 12,19). Ele era ministro“de uma Aliança nova (3,6) por misericórdia[de Deus]” (i.e., em resultado do chamado deDamasco, 2Cor 4,1; cf. 1Cor 15,9; Gl 1,15;1Tm 1,16). Ele falava “da parte de Deus, napresença de Deus” (ek katenanti theou, 2Cor2,17; cf. 2Cor 12,10) e sua “capacidade” paraser ministro “de uma Aliança nova” (ver Aliança,e Nova Aliança) vem de Deus (hikanot¶s… ek

tou theou, 2Cor 3,5-6).Se o chamado de Damasco era a base do

apostolado de Paulo, sua legitimidade é demons-

APÓSTOLO

APÓSTOLO

A.p65 28/03/2008, 15:24126

127A a

trada pela qualidade de seu ministério (ver Mi-nistério), em especial quando vista em contrastecom os novos ministros de Corinto. Ele não fal-sifica “a palavra de Deus” (2Cor 4,2), ao con-trário dos que “traficam com a palavra de Deus”.Enquanto eles promovem uma visão da “justiça”de Deus (baseada na circuncisão ou outras obrasda lei?, 2Cor 11,15; ver Justiça, justiça de Deus),Paulo é fiel à mensagem que Deus lhe confiou,que a justiça divina se encontra em Cristo quese identificou com o pecado por nós (2Cor 5,19-21; cf. 2Cor 3,9). Apesar das reivindicações parasi mesmos e dos ataques a ele, eles são “falsosapóstolos... [servos de] Satanás” (2Cor 11,13-15). Entretanto, pelo ministério de Paulo, há umaIgreja em Corinto, uma “carta do Cristo” viva,como prova da autenticidade de Paulo (2Cor 3,2-3; 10,7) como apóstolo que “convence” efetiva-mente as pessoas a se tornar cristãs (2Cor 5,11-13). Cristo, na verdade, fala poderosamente porintermédio de Paulo (2Cor 13,4) e, por esse in-termédio, cativa os resistentes para que obede-çam ao evangelho (2Cor 10,4-6).

Segundo, Paulo aceitou a observação sobresua fraqueza*, na verdade ampliou-a, mesmoquando se vangloriou de seus sofrimentos emtrês passagens importantes (2Cor 4,7-8; 6,3-10; 11,23–12,10; cf. 1Cor 4,9-13; 15,30.32).Paulo proclamou o que se identificou com opecado, e que ele próprio experimentou na vi-da, em certa medida, os sofrimentos* do Jesusque ele anunciava. Nessas listas de tribulações(ver Angústias) está implícita a alegação de queos sofrimentos de Cristo são reproduzidos noapóstolo que é fiel a ele (2Cor 1,5). Não estáclaro, mas talvez esteja subentendido, que opoderoso triunfalismo (ver Triunfo) dos “su-perapóstolos” origina-se de seu evangelho semcruz (ver Cruz, Teologia da) e só serve paradesqualificá-los (2Cor 2,13; 5,16; 11,4). A “fal-sidade” desses apóstolos está em seu “outro”Jesus, seu evangelho “diferente”.

7. ConclusãoO uso da palavra apostolos restringe-se quasecompletamente aos escritos neotestamentários.Como Paulo usa a palavra mais que qualqueroutro autor neotestamentário e seus escritossão cronologicamente os primeiros, está claro

que o estudo dessa palavra deve começar comas cartas paulinas. Entretanto, os escritos pau-linos deixam claro que havia “apóstolos antes[de Paulo]”, que remontavam pelo menos àsaparições de Jesus em Jerusalém e alhures naPalestina. O aparecimento do vocabulário deapóstolo no Evangelho de Marcos torna prová-vel que a noção de apóstolo deva remontar ànarrativa evangélica.

Seguido por Paulo e outros líderes da Igrejaprimitiva, Jesus parece ter sido influenciado nouso da palavra apóstolo pela noção judaica deßålîa&, que, no judaísmo tardio, representavapessoas e instituições para os outros. Emboraesteja claro que o uso não-técnico de “apóstolo”por Paulo se parece com o ßålîa& secular dosescritos judaicos mais tardios, o uso técnico ou“solene” dessa palavra assume caráter especial apartir das circunstâncias singulares associadasao avanço do cristianismo primitivo.

Gálatas*, Romanos* e as duas cartas aosCoríntios* refletem o avanço da oposição ao re-conhecimento de Paulo como apóstolo de Cristo.Embora parte dessa oposição surgisse em nívellocal por causa de críticas à pessoa de Paulo, amaior rejeição de seu apostolado partia dos ju-daizantes*, que, na melhor das hipóteses, procu-ravam classificá-lo como humilde ßålîa& daIgreja de Jerusalém.

O próprio Paulo procurou estabelecer a ex-tensão limitada do número de apóstolos. Suaspalavras cuidadosas: Cristo “em último lugar,também me apareceu a mim” (1Cor 15,8), ser-vem para mostrar que, embora houvesse após-tolos antes dele, não houve apóstolos depoisdele. Segundo Paulo ele é “o menor” e “o últi-mo” dos apóstolos.

O questionamento ou a total rejeição da au-toridade de Paulo como “apóstolo de Cristo”não se restringe, de modo algum, à época dePaulo. Alguns biblistas modernos tentam am-pliar a definição de “apóstolo” de tal maneira(e.g., “missionário” ou “introdutor de igrejas”)que a evidente autoridade de Paulo se dissipa.Paulo resistiu corajosamente a tentativas dedegradá-lo dessa maneira. Se o apostolado dePaulo não significava e não significa nada maisque isso, então ele não tinha e continua a nãoter autoridade real nas Igrejas.

APÓSTOLO

APÓSTOLO

A.p65 28/03/2008, 15:24127

128Aa

Não deve haver dúvida de que Paulo baseoua alegação de ser apóstolo no fato de ter visto oSenhor ressuscitado e de ter recebido dele amissão de anunciar o evangelho aos gentios(1Cor 9,1; 15,8; Gl 1,11-17). Na verdade, elemencionou sua eficácia para estabelecer Igrejas,seus sofrimentos como continuação na históriados sofrimentos de Cristo e sua integridade, mastudo isso servia apenas para legitimar um mi-nistério que tinha como base o fato de Cristoconfrontá-lo no caminho de Damasco.

Ver também ANGÚSTIAS, TRIBULAÇÕES, PRO-VAÇÕES; AUTORIDADE; COLABORADORES, PAULO ESEUS; MINISTÉRIO; ADVERSÁRIOS DE PAULO; CAR-TAS PASTORAIS; CRUZ, TEOLOGIA DA; SINAIS, PRODÍ-GIOS, MILAGRES.

BIBLIOGRAFIA: F. H. Agnew. “On the Origin ofthe Term Apostolos”. CBQ 38, 1976, 49-53; Idem.“The Origin of the NT Apostle-Concept: a Re-view of the Research”. JBL 105, 1986, 75-96; C.K. Barrett. The Signs of an Apostle. Philadelphia,Fortress, 1972; A. Ehrhardt. The Apostolic Suc-cession in the First Two Centuries of the Church.London, Lutterworth, 1953; Idem. The ApostolicMinistry. SJT Occasional Papers 7; Edinburgh,Oliver & Boyd, 1958; B. Gerhardsson. The Ori-gins of the Gospel Traditions. London, SCM,1977; S. Kim. The Origin of Paul’s Gospel. GrandRapids, Eerdmans, 1981; E. Käsemann. “Die Le-gitimität des Apostels”. ZNW 41, 1942, 33-71; J.A. Kirk. “Apostleship since Rengstorf: Towardsa Synthesis”. NTS 21, 1975, 249-264; J. B.Lightfoot. “The Name and Office of Apostle”.In: The Epistle of St. Paul to the Galatians. 10.ed., 1890; London, Macmillan, 1986, 92-101; J.Munck. “Paul, the Apostles and the Twelve”. ST3, 1949 (= Paul and the Salvation of Mankind.Atlanta, John Knox, 1959), 36-68; K. H. Rengs-torf. “épÒstolow”. TDNT I, 407-447; W.Schmithals. The Office of Apostle in the EarlyChurch. Nashville, Abingdon, 1969; R. Schna-ckenbur In: Apostolic History and the Gospel.W. W. Gasque & R. P. Martin (orgs.). Grand Ra-pids, Eerdmans, 1970.

P. W. BARNETT

APÓSTOLOS DE JERUSALÉM. Ver JERU-SALÉM; JUDAIZANTES; ADVERSÁRIOS DE PAULO.

AQEDAH. Ver MORTE DE CRISTO; SACRIFÍCIO,OFERENDA.

ARCANJOS. Ver ANJOS, ARCANJOS.

AREÓPAGO. Ver ATENAS, PAULO EM.

ARMADURA DE DEUS. Ver TRIUNFO.

ARTEMIS. Ver ÉFESO; RELIGIÕES GRECO-RO-MANAS.

ASCETISMO. Ver CASAMENTO E DIVÓRCIO,ADULTÉRIO E INCESTO; PAULO NA TRADIÇÃO DA IGRE-JA PRIMITIVA; SEXUALIDADE, ÉTICA SEXUAL.

ASSOCIAÇÕES VOLUNTÁRIAS. Ver AM-BIENTE SOCIAL DAS IGREJAS MISSIONÁRIAS.

ASTROLOGIA. Ver ELEMENTOS/ESPÍRITOS ELE-MENTAIS DO MUNDO; RELIGIÕES GRECO-ROMANAS.

ATENAS, PAULO EMO capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos* preservaum discurso de Paulo em uma cidade tradicio-nalmente ligada à erudição pagã. Esse discurso,elaborado de maneira singular para abordar a si-tuação histórica, está também em harmonia comas cartas paulinas, embora isso tenha sido contes-tado e seja assunto de debate contínuo.

1. Paulo na Atenas do século I2. O discurso de Atenas3. O discurso de Atenas e as cartas4. Conclusões

1. Paulo na Atenas do século I1.1. A cidade de Atenas: fama e religiosi-

dade. O indivíduo moderno acha irônico quea maior parte do mundo antigo considerassecristãos e judeus “ateus” por se recusarem aaceitar a existência dos deuses. É com ironiaparecida que, depois de caminhar pela cidadee se sentir conturbado pela profusão de ídolos(At 17,16; ver Idolatria), Paulo chama os ate-nienses de “religiosos” (At 17,22).

Uma das grandes cidades-estado da Gréciado século V a.C., Atenas localiza-se no sudestedo país. Na época apostólica, já não era maisuma superpotência, nem o centro de atividadeintelectual que tinha sido outrora, mas lhe resta-vam o legado das glórias do passado em seu or-gulho cívico e sua fama em assuntos de filoso-fia e religiosidade. Cheia de ídolos, como relata

APÓSTOLO

ATENAS, PAULO EM

A.p65 28/03/2008, 15:24128

129A a

Atos 17, os autores antigos descreveram Atenascomo modelo de cidade que “fala bem dos deu-ses”; o povo de Atenas era tão religioso que che-gava a erguer altares “a deuses desconhecidos”(Pausânias, 1,1,4; 5,14,8; Filostrato, Vit. Ap. 6,3).

Os que criticam a historicidade dos discur-sos dos Atos citam com freqüência que nenhumelemento de indício extrabíblico menciona es-pecificamente o singular “deus desconhecido”,necessário para a introdução do discurso (At17,23). Entretanto, a frase “altares a deuses des-conhecidos”, mencionada na literatura, é ambí-gua. Com as poucas provas arqueológicas já re-cuperadas é cedo demais para o silêncio levar àconclusão de que o singular não foi usado (con-tra Lüdemann, 194).

Mais significativa é a maneira como a prá-tica dessa adoração anônima ligou-se a temasfundamentais do discurso paulino: além de serindicação de religiosidade, é também claramen-te apresentada por Diógenes Laércio como“precaução de segurança”. A idéia era que, senão fossem venerados de maneira adequada,os deuses atacariam a cidade. Por isso, comreceio de provocar inadvertidamente a cólerade algum deus, por ignorá-lo, a cidade ergueuesses altares a deuses desconhecidos (Dióge-nes, 1,110-113). Em seu discurso, Paulo usacom grande efeito a confissão de ignorância eo desejo de evitar a catástrofe divina.

1.2. O conselho na Colina de Ares (Areó-pago). Não está claro se os Atos apresentam ounão Paulo sendo formalmente “julgado” emAtenas. A frase “Tomaram-no consigo para oconduzirem perante o Areópago” (At 17,19)pode se referir ou ao conselho que tinha essenome, ou apenas ao local, uma colina, da qual oconselho recebeu o nome. Como há bons argu-mentos dos dois lados dessa controvérsia, é pro-vável que seja melhor deixar a questão em aberto.

Julgamento formal ou não, ao leitor não de-ve passar despercebido o fato de ser o discursoa resposta a uma acusação bastante grave e espe-cífica: “deve ser um pregador de divindadesestrangeiras” (At 17,18), não muito diferente dafamosa acusação preparada contra Sócrates eque levou à morte daquele grande mestre. O co-mentário lucano em Atos 17,21 é irônico: os ate-nienses interessam-se mais em satisfazer sua

curiosidade que em preservar a “ortodoxia”. Nocaso de Paulo, as acusações se devem ao evi-dente equívoco dos atenienses quanto à pregaçãopaulina; eles parecem pensar que ele se referiaa dois deuses (observe o plural em At 17,18b).As palavras Jesus e Anastasis (“Ressurreição”)talvez fossem confundidas com o nome de umdeus e sua consorte.

2. O discurso de AtenasO discurso de Atos 17 tem sido criticado pornão ser suficientemente cristão (e.g., Dibelius,57-63). Mas essa avaliação negativa do dis-curso é, como veremos, superficial. O argu-mento é, na realidade, um ataque devastadoraos atenienses e também a sua religião.

2.1. A idolatria e o Deus verdadeiro. Antesde corrigir a impressão errada dos ateniensesquanto à mensagem cristã e de satisfazer-lhes acuriosidade, Paulo usa com habilidade o altar“ao Deus desconhecido” para se defender daacusação de pregar deuses estranhos e estran-geiros. Com efeito, Paulo diz em Atos 17,23:“Aquilo que venerais assim, sem o conhecer, éo que eu vos venho anunciar”. Paulo não dizaqui que o que ele adora é o que eles adoram*sem saber. A ênfase da construção grega estáno desconhecimento, não na veneração. Eles sóestão certos quanto a reconhecer que há algodigno de adoração que eles desconhecem. Dessamaneira, a defesa de Paulo depressa se transfor-ma em ataque. O discurso continua para atacarvários aspectos da prática de idolatria. É erradoprocurar encontrar o Criador de tudo em templosconstruídos pelos homens (At 17,24). É erradotentar dar presentes a quem dá a vida (At 17,25).É errado tentar identificar com uma cidade emparticular o Deus que criou todos os povos (At17,26; identificar deuses com cidades era carac-terística comum da religião pagã). Finalmente,é errado pensar que o que dá a vida às pessoasseja algo sem vida, mas moldado por mãoshumanas (At 17,29).

Assim, longe de aprovar a idolatria, o dis-curso afirma que a idolatria deles (exceto peloreconhecimento implícito do desconhecimento)é fatalmente imperfeita, na teoria e na prática. Édigno de nota que, embora perfeitamente judai-cas (ver Gärtner, passim), partes dessas críticas

ATENAS, PAULO EM

ATENAS, PAULO EM

A.p65 28/03/2008, 15:24129

130Aa

da idolatria* não eram completamente estranhasaos estóicos e aos epicureus (que estão mencio-nados especificamente em At 17,18). Além dis-so, em sua forma mais sarcástica, essas críticaspodiam também ser consideradas um tanto mor-dazes em relação às práticas cultuais judaicas(ver o discurso de Estêvão, At 7).

2.2. A revelação natural e o Deus verdadeiro.Dibelius, entre outros, achava que o discursode Atenas ensina um “parentesco” entre Deus* eas pessoas que é “estranho ao pensamento pau-lino e ao resto do NT” (Dibelius, 74). Mas essainterpretação do discurso é insustentável. A lin-guagem empregada em Atos 17,27 indica clara-mente ironia e tragédia. As pessoas destinam-se a “procurar” Deus, é verdade. Seria de esperarque o resultado dessa “procura” fosse “desco-brir”. Mas o verbo para “descobrir” é enfraque-cido de três maneiras. A primeira é a construçãogramatical: o uso do modo optativo em gregointroduz um tom de incerteza, ligado a uma frase(ei ara ge) que é melhor traduzida por “se, tal-vez”. O “encontrar” não está, de modo algum,certo. Segundo, a força do verbo enfraquecequando ele é ligado ao verbo pitoresco “tatear”(ps¶lapha∞), palavra usada em fontes como aOdisséia de Homero (9,416) e a versão gregado Deuteronômio (28,29) para significar “andaràs apalpadelas”. Terceiro, à frase verbal segue-se a oração “a ele que, na realidade, não estálonge de cada um de nós”. A natureza concessivadessa oração só fará sentido se o ato de “desco-brir às apalpadelas” for malsucedido.

Parece seguro concluir que, embora o oradorcreia que o conhecimento de Deus é teoricamen-te possível a partir da natureza, contudo, emtermos práticos, há pouca ou nenhuma esperançade que essa possibilidade hipotética seja ou te-nha sido transformada em um relacionamentoaceitável com Deus. É difícil imaginar um con-traste maior entre o Deus que controla todos(At 17,24-26) e o estado patético irônico do apu-ro humano aqui descrito (At 17,27): procurandoàs apalpadelas e sem sucesso alguém que estátão perto e deseja ser encontrado.

2.3. O pensamento pagão e o Deus verda-deiro. A citação, com evidente aprovação, daliteratura pagã em Atos 17,28 dá provas de umaavaliação positiva do paganismo? É muito pro-

vável que não. Há razão para duvidar que aprimeira parte do versículo 28 seja a citação deuma obra pagã específica, pois não há consen-so quanto à fonte alegada para seu fraseado, em-bora várias tenham sido propostas. Assim, é pro-vável que o versículo 28a não seja, em absoluto,citação, mas sim uma declaração que empregaum vocabulário comum e uma forma de uso co-mum, a tríade. Embora a frase pudesse ser afir-mada por gregos e cristãos, é muito mais prová-vel que a tríade tenha o propósito de lembrar astrês partes principais do ataque judaico aos ído-los (não têm vida, não se movem e não têm exis-tência real) do que a declaração ser simplesmen-te tirada de uma fonte pagã (Gärtner, 197, 222).

Embora esteja na forma plural, a frase nomeio de Atos 17,28 é um método comum de in-troduzir uma citação poética única e específica;sem dúvida, a frase “pois nós somos de sua raça”é citação da literatura pagã (Áratos, Fenômenos5). Mas a citação não se destina tanto a indicarum estreito relacionamento entre as pessoas eDeus (e.g., Haenchen, 525) quanto a mostrar umaestreita semelhança entre as pessoas e Deus: jáque os seres humanos estão vivos, Deus tambémprecisa estar vivo; ele precisa ser maior, nãomenor que suas criaturas. O “então” que liga oversículo 28 ao versículo 29 deixa isso claro.

Assim, do mesmo modo que as palavras dainscrição, também a citação da literatura pagãtem o propósito de demonstrar os erros do siste-ma de crenças do qual é tomado por empréstimo.Até os gregos estão conscientes de que há algoou alguém digno de culto que eles desconhe-cem; até os gregos percebem que algo vivo sópode ser representado por algo vivo. Talvez essautilização da filosofia* e da literatura pagãs paramostrar as próprias inconsistências seja tomadapor empréstimo da apologia judaica, pois a cita-ção de Áratos parece ter sido usada de modosemelhante pelo propagandista judeu Aristóbulo(fragmento 4 em Eusébio, Praep. Ev. 8,12).

2.4. O cristianismo e o Deus verdadeiro. Oobjetivo especificamente cristão do discurso res-tringe-se aos dois versículos finais. Nesta últimapassagem, o orador responde a duas perguntasque estavam na mente dos ouvintes do discurso.

A pergunta que Atos 17,30 destina-se a res-ponder não trata da culpa ou inocência dos gen-

ATENAS, PAULO EM

ATENAS, PAULO EM

A.p65 28/03/2008, 15:24130

131A a

tios, como supõe Dibelius (Dibelius, 55). O textosó lida com a demora do castigo e nada diz arespeito da inocência dos atenienses peranteDeus. O contexto histórico esclarece o raciocí-nio: a adoração de deuses desconhecidos era umtipo de “seguro” para os atenienses, um meio deprecaver-se contra a divina catástrofe de algumdeus que exigisse atenção e que eles não conhe-cessem. Paulo acabou de afirmar que os esforçosdeles são errados e ineficazes. A réplica óbviada platéia seria: “Se nosso culto é inaceitável pa-ra o deus desconhecido, por que não há catástro-fe?”. A resposta, então, concentra-se não em seos atenienses merecem ou não castigo, mas narazão de a seus supostos erros não se ter seguidonenhum castigo. A resposta é que, embora ocastigo divino ainda não tenha chegado, esseatraso não se deve à ignorância inocente deles,mas à misericórdia de Deus. “Agora…”, o oradorrevela, as coisas vão ser diferentes. Deus, quenão pode ser servido com mãos humanas, nãoquer oferendas, quer o arrependimento.

Só depois de explicar as deficiências dastentativas de adoração por parte dos atenienses,o discurso volta ao assunto principal da mensa-gem evangélica que antes havia sido mal com-preendida (ver At 17,18). Em At 17,31, Paulodiz aos atenienses que, em total contraste comas coisas inanimadas com as quais eles decidi-ram representar o divino, Deus designou umhomem, Jesus Cristo*. A humanidade de Jesusé aqui enfatizada, não só para evitar a confusãosugerida em Atos 17,18 — ele não deve seracrescentado ao panteão —, mas também comocontraste aos ídolos inanimados.

Todos os equívocos de “Jesus e a Ressurrei-ção” como novo deus e sua consorte se dissipam,não só pela referência a Jesus como ser humano,mas também pela tentativa de deixar claro o quesignifica ressurreição*. Parece que essa tentativade esclarecimento não foi bem-sucedida. Os ate-nienses, aos quais a idéia de ressurreição físicarepugnava, começaram a zombar e o discursorelatado termina de forma repentina.

3. O discurso de Atenas e as cartas3.1. Atenas e 1 Tessalonicenses: convenci-

mento e conversão dos gentios. No relato deum discurso de Paulo tão obviamente resumido

quanto o encontrado em Atos 17, não devemosesperar a reprodução de toda a sua mensagemevangélica com os detalhes que temos em suascartas. Entretanto, há um notável paralelo em 1Tessalonicenses 1,9-10, onde Paulo escreve arespeito da resposta dos tessalonicenses* a suamensagem. O primeiro passo que eles deramfoi em direção ao monoteísmo: eles se voltaram“para Deus, abandonando os ídolos, para servirao Deus vivo e verdadeiro” (1Ts 1,9), similar aoobjetivo principalmente monoteísta em vez deespecificamente cristão do discurso de Atenas.

Ainda mais notável é o paralelo entre Atos17,31 e 1 Tessalonicenses 1,10. As duas passa-gens falam a respeito da cólera* ou do julga-mento* divino futuro, mas certo, ligado a Jesuscomo juiz ou como o critério para o julgamento.E, nos dois casos, a ressurreição de Jesus porDeus é levada em conta. As diferenças de con-teúdo entre as duas passagens são pequenas econsistentes com o fato de uma ser dirigida aosgentios e a outra aos que se tornaram cristãos.

3.2. Atenas e 1 Coríntios: mudança na es-tratégia missionária? Há quem afirme que opequeno número de convertidos em Atenas for-çou Paulo a mudar o caráter de sua pregação eque isso se reflete em passagens como 1 Corín-tios 2,1-2 (ver as referências em Gärtner, 51-53, que não concorda; Stonehouse). Mas as si-tuações em Atenas e Corinto eram radicalmentediferentes e exigiam ênfases diferentes. Aos co-ríntios era preciso dizer que os mestres cristãos,a quem eles exaltavam em demasia, considera-vam-se “loucos” por causa de Cristo (1Cor4,10). Os atenienses, que já consideravam Paulo“tagarela” — a palavra que usaram, spermologos(At 17,18), significa algo como “o que reuniusobras de saber” —, precisavam conhecer a pró-pria ignorância (tema que também está em har-monia com 1Cor 3,18-19). De modo parecido,embora Cristo seja o assunto principal da mensa-gem evangélica nos dois contextos, para os co-ríntios é Cristo e sua humilhação e crucifixão*,enquanto para os não-cristãos é Cristo e sua jus-tificação pela ressurreição.

Depois de notar essas diferenças, as seme-lhanças importantes entre o discurso e a carta setornam claras, em especial em termos do estilode argumentação. Em 1 Coríntios mais clara-

ATENAS, PAULO EM

ATENAS, PAULO EM

A.p65 28/03/2008, 15:24131

132Aa

mente que nas outras cartas, Paulo emprega atática de citar lemas dos adversários com apro-vação aparente, somente para acrescentar quali-ficações e restrições tão severas a ponto de re-verter o sentido. Um exemplo é o lema coríntio:“Tudo me é permitido” (1Cor 6,12), que é se-guido por emendas que lhe negam a força. Essaé precisamente a tática usada no discurso deAtenas quanto ao aparente louvor inicial quePaulo faz à religiosidade dos atenienses e seuculto ao deus desconhecido. No fim, nada nareligião deles é louvável, exceto o reconheci-mento implícito de que eram ignorantes a res-peito de alguma coisa.

3.3. Atenas e Romanos: teologia natural.A outra nítida ligação com as cartas paulinas éo ensinamento da questão da resposta humanaà revelação natural. No discurso de Atenas, asobservações naturais devem dizer aos atenien-ses que eles têm um culto mal orientado. O Deusque criou a Terra não precisa de dádivas mate-riais; o Deus que deu vida precisa estar ele pró-prio vivo etc. Na verdade, há indícios na filoso-fia e nos poetas atenienses que os deviam tervoltado para o Deus único e verdadeiro, contu-do eles se apegam a práticas pagãs e à idolatria.Segundo o discurso, os atenienses precisam nãode instrução, mas de arrependimento. Em Ro-manos 1, o ponto da análise de Paulo é idêntico:ninguém é sem culpa. Romanos 1,22-23 poderiatambém ter sido escrito com os atenienses emmente: “pretendendo-se sábios, eles se tornaramestultos; trocaram a glória do Deus incorruptí-vel por imagens”.

Romanos e Atos 17 manifestam a convicçãode que o universo que Deus criou ensina o sufi-ciente a Seu respeito para fazer os seres humanosrejeitarem a idolatria. Entretanto, nem Romanosnem Atos 17 afirmam muita coisa quanto à es-perança de que as pessoas venham a conhecerDeus tão-somente pela revelação natural.

4. ConclusõesÉ preciso considerar Atos 17,22-31 no contextoda situação histórica da visita de Paulo a Atenas.Começa como defesa contra a acusação feitapelos atenienses, mas depressa se transforma emataque à idolatria. Por fim, o discurso respondea perguntas que se esperaria de uma platéia ate-

niense, perguntas que surgem não só do discursoem si, mas também das discussões iniciais dePaulo na praça pública (At 17,17).

Se a diferença de platéia for levada em con-ta, o discurso mostra afinidades marcantes comas cartas paulinas. Em termos de conteúdo, aapresentação da mensagem cristã aos gentios éconsistente com o que esperaríamos de passa-gens como 1 Tessalonicenses 1,10, e as idéias arespeito da revelação natural são consistentescom o ensinamento no início de Romanos. Emtermos do estilo do argumento, são as semelhan-ças entre o discurso no Areópago e 1 Coríntiosque se destacam. Em termos de seu pensamento,da forma como esse pensamento se expressae da audácia em enfrentar os adversários no ter-ritório geográfico e intelectual deles, não é outrasenão a voz do apóstolo Paulo que ouvimos nodiscurso de Atenas.

Ver também IDOLATRIA; PAULO NOS ATOS E

NAS CARTAS; FILOSOFIA.

BIBLIOGRAFIA: F. F. Bruce. The Acts of the Apos-tles. Grand Rapids, Eerdmans, 1990; H. Conzel-mann. “The Address of Paul on the Areopagus”.In: Studies in Luke-Acts. L. E. Keck & J. L. Mar-tyn (orgs.). London, SPCK, 1968, 217-230; M.Dibelius. “Paul on the Areopagus”. In: Studiesin the Acts of the Apostles. H. Greeven (org.).New York, Scribners, 1956, 26-77; B. Gärtner.The Areopagus Speech and Natural Revelation.Uppsala, Gleerup, 1955; E. Haenchen. The Actsof the Apostles: A Commentary. Philadelphia,Westminster, 1971; C. J. Hemer. “The Speechesof Acts: II. The Areopagus Address”. TynB 40,1989, 239-259; G. Lüdemann. Early ChristianityAccording to the Traditions in Acts. Minneapolis,Fortress, 1988; N. B. Stonehouse. Paul beforethe Areopagus and Other New Testament Stu-dies. London, Tyndale, 1957.

C. GEMPF

ATOS. Ver CRONOLOGIA DE PAULO; ITINERÁRIOS,PLANOS DE VIAGEM, VIAGENS, PARUSIA APOSTÓLICA;PAULO NOS ATOS E NAS CARTAS.

AUTOBIOGRAFIA PAULINA. Ver CONVER-SÃO E VOCAÇÃO DE PAULO; CRUZ, TEOLOGIA DA;GÁLATAS, CARTA AOS; JUDEU, PAULO, O; ADVERSÁ-RIOS DE PAULO; CRÍTICA RETÓRICA.

ATENAS, PAULO EM

AUTOBIOGRAFIA PAULINA

A.p65 28/03/2008, 15:24132

133A a

AUTORIDADE CIVILA autoridade civil é o controle centralizado nasociedade ao qual os grupos que possuempoder social concedem o poder de formular eimpor as regras formais básicas da sociedade.O ensinamento paulino a respeito da autoridadecivil não é direto nem abrangente, mas surgeno contexto da correção de equívocos quantoà liberdade* do evangelho. Ele sofreu persegui-ção das autoridades civis, mas também apeloua elas em busca de proteção.

1. Autoridades civis2. Romanos 13,1-7

1. Autoridades civisA autoridade civil estendia-se do imperador*aos governadores (procônsules, procuradores ereis, representando o imperador) e aos magis-trados civis que exerciam o governo local (verSistemas políticos). O governo local da Judéiaincluía o sumo sacerdote e o Sinédrio*. De acor-do com a apresentação de Atos*, o papel dogoverno na perseguição de Paulo vinha dasautoridades locais (At 16,22-24; 24,1-8; cf. 1Ts2,2). (Talvez os castigos severos em 2 Coríntios11,25 sejam casos nos quais as autoridades civisnão levaram em conta os limites de sua autori-dade.) O incidente relatado em Atos 14,5 tem ocaráter de ação de desordeiros. De modo maisgeral, Paulo parece ter encontrado na autoridadecivil uma fonte de libertação (At 23,10). Eleapela a seus direitos de cidadão romano (At16,37; 21,39; 22,25; ver Cidadania). Como tal,tinha direito a julgamento em Roma de acusa-ções de crimes contra a lei escrita (ver Sistemalegal). Por isso, ele apelou ao imperador (At25,10-12.25). A imagem da cidadania romanaem Atos é bastante compatível com nosso co-nhecimento do período de meados do século, àqual ela se adapta melhor do que à situação nofim do século. Devemos também mencionarque, aparentemente, exercer um cargo municipalera conduta aceitável para um fiel (Rm 16,23).

2. Romanos 13,1-7O motivo de Paulo mencionar a autoridade

civil em Romanos 13,1-7 foi, com toda a proba-bilidade, um problema recorrente que ele en-frentava em sua pregação missionária: a tenta-

ção de algumas pessoas de usar a liberdadecristã de uma forma que se julgava violaçãodos relacionamentos sociais responsáveis comrespeito ao casamento*, ao trabalho e à escravi-dão (ver Escravo, escravidão), ou de se consi-derarem livres de códigos morais. Do mesmomodo que antes, em Romanos, Paulo teve delidar com a liberdade indevida da lei* mosaica(Rm 6,15), em Romanos 13 ele lida com a li-berdade indevida da lei civil.

1 Coríntios 6 dá um exemplo do elementode liberdade na mensagem paulina e sua poten-cialidade de criar o problema enfrentado em Ro-manos 13. Paulo adverte os leitores a não pro-cessar uns aos outros nos tribunais civis (verAção judicial). Ele lembra-os do papel escato-lógico que lhes cabe, de governar o mundo, edescreve as autoridades civis como “injustos”(1Cor 6,1 [TEB, nota n]) e “incréus” (1Cor 6,6).Em 1 Pedro 2,16, passagem paralela a Romanos13,1-7, Pedro faz explícita a questão da liber-dade: “Comportai-vos como homens livres, semusar da liberdade como véu para a vossa mal-dade, mas procedendo como servos de Deus”(1Pd 2,16). Embora esse problema pudesse facil-mente ter ocorrido na Igreja de Roma*, tomá-lo como ocasião de exercício da responsabili-dade no interior da liberdade cristã ajusta-se bemà interpretação de Romanos como carta que lidacom problemas gerais dos cristãos entre as Igre-jas paulinas. Sua ênfase no pagamento de im-postos (phoros, Rm 13,6) apóia a referência àsigrejas em geral, pois esses impostos para povosdependentes não era recolhido na capital.

Outras hipóteses a respeito do motivo deRomanos 13,1-7 indicam situações especiais emRoma. Tácito menciona protestos contra impos-tos sob Nero em 58 d.C. (Tácito, Ann. 13,50-51).Antes (c. 49-50 d.C.), Cláudio expulsou os ju-deus de Roma devido a “distúrbios por insti-gação de Chrestus” (Suetônio, Cláudio 25,4).É sugerido que Chrestus (ortografia alternativapara Christus) foi um pretendente messiânico.Com crescentes distúrbios na Palestina, Paulo,em 56 d.C., advertiu os cristãos que tinham es-treito contato com a comunidade judaica contrao envolvimento em uma repetição dessa insur-reição e contra protestos ligados aos impostos.Supostamente, o motivo por trás dessas ações

AUTORIDADE CIVIL

AUTORIDADE CIVIL

A.p65 28/03/2008, 15:24133

134Aa

de desobediência era um protesto justo; não umvício ou antinomismo. Entretanto, a hipótesegeral se enfraquece, não só por seu caráter espe-culativo, mas também pelo fato de, por um lado,Tácito citar as petições de impostos como exem-plo do espírito popular de clemência de Nero enão dar provas de insubordinação ou resistênciaantigovernista. Por outro lado, não há indíciosde distúrbios mais tardios entre os judeus emRoma relacionados com o tumulto palestino,mesmo durante as revoltas judaicas.

Os estreitos paralelos entre Romanos 13 e1 Pedro 2,13-17 indicam ser provável que osdois autores usassem a tradição comum, pos-sivelmente derivada do judaísmo helenístico.

Romanos 13,1-7 está dentro de uma estru-tura determinada por Romanos 12,1-2. A su-bordinação ao governo civil, em especial noato simbólico de pagar impostos, é um aspectodo chamamento ao culto* espiritual na vidacotidiana do mundo. A injunção é ser submisso(hypotass∞, Rm 13,1; cf. Tt 3,1) e pôr o interes-se próprio abaixo do que é necessário para asrelações com as autoridades civis. A submissãoé discriminadora, apoiada pela consciência*(syneid¶sis, Rm 13,5). As autoridades civis detodos os níveis são agentes de Deus*. Ao mes-mo tempo que é para o povo, seu serviço aDeus refreia o mal e promove o bem desse povo(Rm 13,4). Paulo não identifica seu conceitodo bem (to agathon), mas o conceito helenísti-co-judaico e veterotestamentário do governanteé de caráter pastoral e paternal. Um texto pauli-no mais tardio, 1 Timóteo 2,2, diz que as auto-ridades civis são instrumentos de uma ordempacífica que talvez o autor considere útil paraa tarefa missionária (1Tm 2,4; ver Missão).

A perspectiva negativa a respeito das auto-ridades está subentendida mais claramente noconceito que Paulo faz das “Autoridades e po-deres”*, seres angelicais que têm responsabi-lidade pela criação* de Deus, inclusive seu go-verno (Dn 10,13.20-21; 12,1), mas que, do pontode vista apocalíptico* judaico, são caídos. EmRomanos 8,35.38-39, Paulo liga essas potênciasà perseguição dos fiéis. Ao falar de potênciasangelicais, Paulo emprega a terminologia comu-mente usada para potências políticas humanas,mas o contexto determina o sentido. Não deve-

mos supor que porque emprega esses termosem Romanos 13 ou 1 Coríntios 2,8 Paulo serefira nessas passagens a potências cósmicasangelicais e não a potências políticas humanas.

Ver também CIDADANIA ROMANA E CELESTE;IMPERADORES ROMANOS; ÉTICA; LIBERDADE; AÇÃO

JUDICIAL; SISTEMA LEGAL ROMANO; SISTEMAS POLÍ-TICOS; AUTORIDADES E PODERES.

BIBLIOGRAFIA: M. Borg. “A New Context for Ro-mans xiii”. NTS 19, 1973, 205-218; C. J. Ca-doux. The Early Church and the World: A Histo-ry of the Christian Attitude to Pagan Society andthe State Down to the Time of Constantinus.Edinburgh, T. & T. Clark, 1925; C. E. B. Cran-field. A Commentary on Romans 12-13. SJT Occa-sional Papers 12, Edinburgh, Oliver & Boyd,1965; J. Friedrich et al. “Zur historischen Situa-tion und Intention von Röm 13, 1-7”. ZTK 73,1976, 131-166; D. Georgi. Theocracy in Paul’sPraxis and Theology. Minneapolis, Fortress, 1991;E. Käsemann. “Principles of the Interpretationof Romans 13”. In: New Testament Questionsof Today. Philadelphia, Fortress, 1969, 196-216;S. C. Mott. Biblical Ethics and Social Change.New York, Oxford University, 1982; B. Reese.“The Apostle Paul’s Exercise of His Rights as aRoman Citizen as Recorded in the Book ofActs”. EvQ 47, 1975, 138-145; E. G. Selwyn.The First Epistle of St. Peter. 2. ed., Grand Rapids,Baker, 1947; reimpr. 1981; A. N. Sherwin-Whi-te. Roman Society and Roman Law in the NewTestament. Oxford, University Press, 1963, 48-119; W. Wink. Naming the Powers: The Langua-ge of Power in the New Testament. Philadelphia,Fortress, 1984.

S. C. MOTT

AUTORIDADEO termo exousia (e as palavras relacionadas

exousiaz∞, exesti) é usado com o sentido de “ca-pacidade”, “liberdade”* e “direito” nos escritospaulinos. Quando aplicado ao próprio Paulo,exousia refere-se a um “direito” que se originade sua comissão como apóstolo* para os gen-tios*. Quando usado com referência ao aposto-lado, o termo tem o sentido de transmissão fiele, portanto, guardião em vez de inovador datradição da Igreja. Na Igreja, tem o sentido duplo

AUTORIDADE CIVIL

AUTORIDADE

A.p65 28/03/2008, 15:24134

135A a

de “liberdade” individual e “garantia” associa-da, que deriva da presença do poder* de Cristo*entre os que se reúnem em seu nome*.

1. De Paulo2. De outros apóstolos3. De adversários4. Na Igreja

1. De Paulo1.1. Fonte. Paulo define a fonte de sua auto-

ridade como dada pelo Senhor (2Cor 10,8; cf.Rm 1,1). Essa autoridade origina-se especifica-mente de sua posição como apóstolo “de Cristo”(1Ts 2,7), que lhe dá o direito de exercer suainfluência pessoal quando necessário (1Ts 2,8).Autoridade e apostolado estão estreitamente li-gados nas cartas paulinas. Na verdade, sua capa-cidade para exercer autoridade origina-se de suacomissão como apóstolo (ver Conversão e vo-cação de Paulo). Exortações são feitas “emnome de nosso Senhor Jesus Cristo” (e.g., 1Cor1,10), a disciplina é exercida “no Senhor JesusCristo” (e.g., 2Ts 3,12), instruções domésticassão dadas “da parte” ou “em nome do SenhorJesus” (1Ts 4,2; 2Ts 3,6) e o ensinamento* étransmitido “segundo uma palavra do Senhor”(1Ts 4,15; cf. 1Cor 7,10).

1.2. Contestações. Em muito poucas de suascartas a autoridade de Paulo não é realçada.Observamos essa autoridade na parte inicial desuas cartas, onde ele costuma se identificarcomo “Paulo, apóstolo de Cristo” (Rm, 1–2 Cor,Gl, Ef, Cl, 1–2 Tm, Tt). Mas a autoridade apostó-lica paulina está particularmente em questão emsuas cartas aos Gálatas* e aos Coríntios*. EmGálatas, lemos a respeito de missionários itine-rantes judeu-cristãos que pregam a mensagemda circuncisão* (Gl 2,3-4; 5,2-12; 6,12-13) e aobediência à lei* mosaica (Gl 2,15-16; 3,3; 5,4),e que procuram desgastar a autoridade de Pauloentre as Igrejas dos gentios, alegando que seuapostolado é secundário (Gl 1,1; 1,13–2,10) eseu Evangelho moldado para ser agradável aosgentios (Gl 1,11-12; 2,1-10). Entre os intérpre-tes, é comum ligar esses adversários aos da cor-rente farisaica da Igreja de Jerusalém (“oriundosdo farisaísmo”; At 15,5), que Tiago afirmou te-rem “ido” sem a autoridade da Igreja (At 15,24)ensinar aos gentios que, se não fossem circunci-

dados segundo a norma de Moisés, não pode-riam ser salvos (At 15,1). Em 1 e 2 Coríntios,Paulo responde aos que contestavam sua autori-dade e questionavam seu apostolado sob a alega-ção de que ele recusava o apoio financeiro* desuas Igrejas (1Cor 9,3-18; 2Cor 12,13), que nãotrazia cartas de recomendação (2Cor 3,1-3), quenão conseguiu convencer seu povo (2Cor 3,14–4,4) e que era orador inexpressivo (2Cor 10,10-11). Também parece ter havido insinuações deque a coleta para Jerusalém (ver Coleta) era ape-nas uma cortina de fumaça para o ganho pessoalde Paulo (2Cor 8,18-21; 12,16-18).

1.3. Validade. Quando sua autoridade é con-testada, Paulo aponta para as marcas de validadeque ele compartilha com outros apóstolos. Teste-munha da ressurreição* de Cristo é credencialprimordial (1Cor 9,1; cf. 1Cor 15,7; Gl 1,15-16).Embora Paulo se refira ao apoio financeiro* co-mo um “direito” do apóstolo (1Cor 9,3-12; 2Ts3,9), esse é um direito que ele dispensava paranão atrapalhar a receptividade ao evangelho(1Cor 9,12; ver Fabricação de tendas) e paraatrapalhar os apóstolos rivais que pregavam porganho financeiro (1Cor 9,15-18; 2Cor 2,17;11,7-12). Paulo também se referiu aos “sinaisdistintivos do apóstolo” que eram evidentes noprocesso de implantação da Igreja (2Cor 12,12).É difícil saber se “sinais milagrosos, prodígios,atos de poder”, em 2 Coríntios 12,12, define oconteúdo desses sinais apostólicos ou o que osacompanhava, ou mesmo se eram palavras usa-das pelos adversários*. O problema é a repetiçãode “sinais” (s¶meia) no dativo plural, que comu-mente define instrumento ou acompanhamento(“com sinais milagrosos, prodígios, atos depoder”). Entretanto, a referência ao que os sinais“produziram” (kateirgasth¶) (por ato de Deus,um caso da voz passiva divina do verbo) ao ladoda freqüência deste tipo de anacoluto em Paulo(Blass-Debrunner-Funk, §467), faz a balançapender a favor do primeiro. Que sua pregaçãonão era apenas de palavra, mas de “poder doEspírito”, é pensamento paulino recorrente (Rm15,19; 1Cor 2,4; Gl 3,5; 1Ts 1,5; ver EspíritoSanto; Poder).

Enquanto os adversários procuram legitimarsua autoridade por meio de formalidades comocartas de recomendação e apoio financeiro,

AUTORIDADE

AUTORIDADE

A.p65 28/03/2008, 15:25135

136Aa

Paulo se volta, antes, para o nascimento e a exis-tência contínua de uma Igreja (1Cor 9,2; 2Cor3,1-2), para o fiel testemunho* do Evangelho(e.g., 1Cor 4,1-2; 2Cor 1,18; 4,5) e para a re-signação nas tribulações como missionário(1Cor 4,9-13; 2Cor 4,7-12; 6,4-10; 11,23–12,10;ver Angústias, tribulações, provações) comoprincipais provas de sua autoridade apostólica.A falta de testemunho fiel, em especial, marca apessoa como “falso” apóstolo (2Cor 11,13-15)e “anátema” (Gl 1,8; ver Maldição).

Há alguma dúvida quanto ao intento da se-gunda visita de Paulo a Jerusalém* (Gl 2,1-10).A linguagem de Gálatas 2,2 parece indicar queseu propósito era a confirmação de seu evange-lho: “expus-lhes o Evangelho que prego entreos gentios... às pessoas mais consideradas, porreceio de estar correndo, ou ter corrido, em vão”.Isso parece subentender que Paulo consideravasua autoridade dependente da aprovação dos“Doze”. Contudo, em outras passagens de Gála-tas, Paulo nega ardorosamente que seu aposto-lado e seu Evangelho fossem dependentes, dealgum modo, do reconhecimento ou da confir-mação humanos (Gl 1,1.11-12.15-17). Muitacoisa depende da interpretação que se dê a “cor-rer em vão”. Sua indiferença à posição dos Dozedeixa claro que Paulo não lhes atribuía uma au-toridade superior à sua (“o que eles eram poucome importa”, Gl 2,6). Portanto, ele não tem emmente a necessidade de correção ou confirma-ção apostólica. Isso se confirma por eis kenon(ver Futilidade), que alhures em Paulo funcionacomo advérbio de resultado que significa “semefeito” (2Cor 6,1; Fl 2,16; 1Ts 3,5). O encontrode Paulo com “as pessoas mais consideradas”na Igreja de Jerusalém sugere antes que ele sepreocupava em saber se o “evangelho diferente”(Gl 1,8) tinha o apoio do apostolado de Jerusa-lém. A missão de Paulo aos gentios e, a longoprazo, o próprio cristianismo ficariam compro-metidos e, assim, “sem efeito”, se as correntesjudaica e gentílica da Igreja não concordassema respeito da natureza do evangelho*.

1.4. Limitações. O alcance da autoridadeapostólica não era ilimitado. Paulo estabelecelimites definidos para o exercício de sua autori-dade. Esses limites, com os quais estavam deacordo Paulo e as “colunas” da Igreja de Jeru-

salém, equivaliam a uma divisão étnica de tra-balho. Paulo devia pregar aos gentios, e Tiago,Pedro e João deviam ir aos judeus (Gl 2,9) —divisão que está de acordo com o comissiona-mento de Paulo como “apóstolo dos gentios”(Rm 1,5; 15,15-16; Gl 1,16; 1Tm 2,7; verMissão). Mesmo assim, esses limites não eramabsolutos, pois a estratégia evangelizadora dePaulo incluiu um anúncio inicial na sinagoga(At 13,5.14; 14,1; 17,2.10; 18,4; 19,8).

Paulo também se refere à “norma que Deusnos atribuiu” (2Cor 10,13). Essa “norma” foitransgredida em Corinto por intrusos que “ultra-passaram” seu limite e procuraram desalojarPaulo de seu legítimo campo missionário (2Cor10,12-15). A que correspondia essa “norma”atribuída está claramente explicado em Roma-nos 15,18-20, onde Paulo fala do anúncio doEvangelho em lugares “onde o nome de Cristoainda não fora pronunciado, para não edificarsobre alicerces assentados por outro” apóstolo.Corinto tornou-se “campo” de Paulo, não porqueeles eram gentios, mas porque ele foi “o primei-ro a chegar” até eles (ephthasamen, 2Cor 10,14).

O conceito de região é introduzido por 2Coríntios 10,15-16. Paulo parece ter incluídoem seu “terreno” as Igrejas que, como Laodicéiae Colossas, seus convertidos — não ele pessoal-mente — instituíram (ver Colossenses). Era prá-tica paulina concentrar os esforços evangeli-zadores nos grandes centros urbanos, com oobjetivo de ampliar sua esfera de autoridade(kata ton kanona, 2Cor 10,15) para as regiõescircundantes (ta hyperekeina, 2Cor 10,16), pelosesforços evangelizadores de seus convertidos(e.g., At 19,1-7; cf. Cl 1,3-8; ver Colaboradores).A limitação da autoridade paulina aos gentiosque ele ou seus convertidos foram os primeirosa alcançar explica, na verdade, por que as cartaspaulinas são dirigidas quase exclusivamente aocírculo de Igrejas de explícita mistura de judeuse gentios (1–2 Cor, Gl, Ef, Fl, 1–2Ts). Alémdisso, se é verdade que nenhum apóstolo foidiretamente responsável pela fundação da Igrejade Roma*, isso também justifica a liberdade dePaulo para se dirigir à Igreja romana de modoautoritário (ver Romanos).

1.5. Exercício. Embora Paulo considere suaautoridade uma garantia que possuía em virtude

AUTORIDADE

AUTORIDADE

A.p65 28/03/2008, 15:25136

137A a

de sua comissão apostólica (Fm 8) e esperasseque suas Igrejas a aceitassem sem discussão(1Cor 14,37; cf. 1Cor 7,17), esse era, mesmoassim, um direito do qual ele costumava abrirmão, em favor da argumentação comprovada.Seu relacionamento com suas Igrejas é, comraras exceções, articulado em termos de exorta-ção em vez de ordem. Parakale∞, apelo de quemtem autoridade para mandar, mas o tato de nãoo fazer (Rm 12,1; 16,17; 1Cor 1,10; 4,13.16;16,15; 2Cor 2,8; 6,1; 10,1; 12,18; Ef 4,1; Fl 4,2;1Ts 4,1.10; 5,14; 1Tm 2,1; Fm 9,10), e er∞ta∞,pedido feito entre iguais (Fl 4,3; 1Ts 4,1; 5,12;2Ts 2,1), são o modo usual de Paulo instruirsuas Igrejas. Essa abordagem originou-se de seuconceito de autoridade como o que almeja a“edificação”, não a “ruína” (2Cor 10,8). O mi-nistério pastoral é concebido em termos de edu-cação versus autoridade (2Cor 1,24: “Não se-nhoreamos a vossa fé, mas cooperamos para avossa alegria”). As principais imagens empre-gadas evocam a intimidade de relacionamentosfamiliares — “cheios de ternura, como uma mãeacalenta ao peito as crianças que alimenta” (1Ts2,7; cf. Gl 4,19); e “tratando cada um de vóscomo um pai a seus filhos, nós vos exortamos,encorajamos...” (1Ts 2,11-12; cf. 1Cor 4,15;2Cor 12,14; ver Pastor).

Mesmo assim, Paulo de vez em quando usa-va sua autoridade como uma espécie de “ben-gala” para advertir os “filhos” do que acontece-ria se suas exortações não fossem seguidas. Eleadverte os arrogantes de Corinto que, se fossepreciso, iria até eles com “varas” (1Cor 4,21) eteria de “cortar no vivo, segundo o poder que oSenhor me deu” (2Cor 13,10; cf. 2Cor 10,8;ver Disciplina).

Com as Igrejas que haviam ultrapassado oestágio de exortações, Paulo não hesitava emexercer sua autoridade. Ele ordena à Igreja tessa-lonicense*, “em nome do Senhor Jesus Cristo”,que guardem distância dos membros da comuni-dade que se recusavam a trabalhar (2Ts 3,6-15).De modo semelhante, ordena à Igreja coríntia,como alguém que já julgou, que seja “entreguea Satanás” um membro que se envolveu sexual-mente com a madrasta (1Cor 5,3-5; ver Casa-mento e divórcio, adultério e incesto; Sexuali-dade). Na carta considerada penosa, intermediá-

ria das canônicas 1 e 2 Coríntios (ver Coríntios),Paulo ordena à Igreja que corrija o indivíduoque publicamente contestou sua autoridade(2Cor 2,5-11; 7,9-13). Contudo, a associaçãode ordem e exortação em 2 Tessalonicenses 3,12mostra a relutância de Paulo em usar uma abor-dagem enérgica (“A estes tais, dirigimos estaordem e esta exortação no Senhor Jesus Cristo:que trabalhem com tranqüilidade e comam opão que eles mesmos ganharem”).

2. De outros apóstolos2.1. Autoridade e tradição. A autoridade

apostólica não era autoridade inovadora. Con-sistia em um centro comum de tradições* (verCredo) a respeito da vida e do ensinamento deJesus, cuidadosamente preservadas e transmiti-das pela Igreja primitiva. A tarefa apostólica eraa da transmissão (pared∞ka) fiel dessas tradi-ções (tas paradoseis) às novas congregações,não de criação (1Cor 11,2; 2Ts 2,15). O proces-so de transmissão era de viva voz e também porcarta (2Ts 2,15).

As cartas de Paulo nos dão vislumbres doconteúdo dessas tradições, que incluíam deta-lhes da morte, da ressurreição* e das apariçõesde Cristo (1Cor 15,3-8), da instituição da novaAliança* por Jesus (1Cor 11,23-26; ver Ceiado Senhor), dos ensinamentos de Jesus concer-nentes ao fim dos tempos (2Ts 2,1-15; ver Esca-tologia) e da instrução quanto à conduta ética(Rm 6,15-18; Fl 4,8-9; ver Ética) e quanto àsresponsabilidades comunitárias (2Ts 3,6-15; cf.1Cor 11,2-34).

Paulo lembra com freqüência a seus conver-tidos que transmitiu fielmente a tradição (1Cor15,3; cf. 1Cor 11,2.23) e está empenhado em queseus convertidos encontrem os que, por sua vez, atransmitam fielmente (2Tm 2,2). Algumas Igrejassão louvadas por conservar “as tradições tais co-mo” Paulo as transmitiu a elas (1Cor 11,2; cf. Rm6,17); a outras ele ordenou que o fizessem (Fl 4,9;2Ts 2,15; 3,6). O papel do transmissor versus odo inovador explica o cuidado de Paulo na distin-ção entre quando ele recorre à tradição (1Cor7,10; 9,14; 11,23-26; 1Ts 4,15) e quando não re-corre (e.g., “julgai vós mesmos”, 1Cor 10,15; cf.1Cor 7,12.25.40; 2Cor 8,10). Por causa dos sofri-mentos pelos quais passam os apóstolos ao trans-

AUTORIDADE

AUTORIDADE

A.p65 28/03/2008, 15:25137

138Aa

mitir o ensinamento de Jesus, Paulo diz quetransmitiu às suas Igrejas o que recebeu “do Se-nhor” (1Cor 11,23; ver Jesus, Palavras de).

É, então, complicado entender o que Pauloquer dizer em Romanos 2,16 (cf. Rm 16,25; 2Tm2,8) com “meu evangelho”. Considerando seupapel como transmissor, em que sentido ele falado evangelho como unicamente seu? Não é oconteúdo que é original, pois ele define seu evan-gelho como “Jesus Cristo ressuscitado dentre osmortos, nascido da estirpe de Davi” (2Tm 2,8).Além disso, a facilidade com a qual ele variaentre “meu evangelho”, “o evangelho” (e.g., Rm1,1.9.16) e “nosso evangelho” (e.g., 2Cor 4,3)sugere algo mais além de uma forma especifica-mente paulina do evangelho. Talvez a chave se en-contre em Gálatas 1,12, onde Paulo faz a distinçãoentre primeiro receber o evangelho por transmis-são humana e, como no seu caso, por revelaçãoespecial (ver Conversão e vocação).

2.2. Autoridade e instrução dos gentios.Paulo não era um inovador do querigma (verPregação, querigma), nem criador daquilo quepregava aos gentios. Embora seja comum pensarque Paulo divergia do apostolado de Jerusalémao pregar e dar instrução àqueles para os quaisrecebeu uma comissão especial, suas declara-ções indicam outra coisa. 1 Tessalonicenses 1,9-10 representa o resumo da pregação de Pauloem Tessalônica. O fraseado (al¶thin∞, “verdadei-ro”; anamenein, “esperar”; t∞n ouran∞n, “céus”)e a fraseologia (“para servir [a] Deus”, “paraesperar... o seu Filho”), que não são caracterís-ticos de Paulo, sugerem que Paulo usou o voca-bulário da pregação missionária judeu-cristã emvez de introduzir algo que fosse distintamenteseu. Também a linguagem de voltar-se “paraDeus, abandonando os ídolos, para servir ao Deusvivo e verdadeiro” (1Ts 1,9), descrição típica doque significava a conversão dos gentios ao cris-tianismo, sugere isso (cf. o discurso paulino noAreópago, em At 17,16-32; ver Atenas).

Uma conclusão semelhante leva a instruçãoética de Paulo em 1 Tessalonicenses 4,1-12, quese concentra naquilo que os judeus percebiamser os três principais abusos gentios: imoralidadesexual (ver Sexualidade), falta de amor* e ocio-sidade. O fato de Paulo, em 1 Tessalonicenses4,1, usar fraseologia técnica para transmitir a

tradição a fim de descrever essa instrução (pare-labete) indica mais uma vez que ele não erainovador, mas apenas transmissor do que secostumava considerar instrução apropriada enecessária aos convertidos gentios. A compara-ção com as condições apresentadas na Assem-bléia de Jerusalém para aliviar a tensão da con-fraternidade entre judeus e gentios também su-gere isso (At 15,19-21).

2.3. Autoridade e colegialidade. A autoridadeapostólica fundamenta-se, em última instância,no chamado para anunciar o evangelho; e, embo-ra existissem divisões de trabalho e “campos”designados, Paulo considera a tarefa de evange-lização (ver Missão) um esforço cooperativo eigualado ao da lavoura, onde, trabalhando “jun-tos” (1Cor 3,9), um “planta” e outro “rega”, con-forme o Senhor determina (1Cor 3,5-6).

Entretanto, nem todos consideravam a tare-fa evangelizadora um trabalho de colaboração.Paulo compara a fundação da Igreja* em Corintoà de um arquiteto que, tendo lançado o funda-mento, vê os que foram contratados para cons-truir a estrutura superior se afastarem da plantainicial e até mexerem no fundamento (1Cor3,10-12). Paulo adverte que “o dia do juízo”*aguarda essas pessoas e, então, a qualidade daobra de cada um será trazida à luz (1Cor 3,13-15; ver Recompensas). Não está claro se Paulotem em mente os esforços judaizantes da corren-te farisaica da Igreja de Jerusalém (1Cor 7,18),ou talvez o próprio Pedro* (1Cor 3,21; cf. 1Cor9,5). Se Pedro está em vista, então Corinto éuma transgressão da divisão de trabalho com aqual concordaram Paulo e “as colunas” (Gl 2,9)e também uma invasão em um “campo” que oSenhor designou para Paulo (1Cor 3,10).

Não que Paulo relutasse em partilhar a tarefaapostólica. Está claro que ele acolhia outros após-tolos como colaboradores. A distinção está emseu entendimento de autoridade pois, embora ti-vesse em mente a colaboração, Paulo não admi-tia a idéia de co-autoridade. Para Paulo, a autori-dade consistia no relacionamento entre pai e fi-lho que foi instituído por intermédio do processode implantação da Igreja. Porque chegou primei-ro a Corinto com o evangelho, Paulo se dirigia aeles como “filhos queridos” (1Cor 4,14). O fatode tê-los gerado “em Jesus Cristo” dava a Paulo

AUTORIDADE

AUTORIDADE

A.p65 28/03/2008, 15:25138

139A a

o direito de pedir aos convertidos para ser seus“imitadores” (1Cor 4,16; ver Imitação) e expli-ca o cuidado que ele, por sua vez, tomava pararespeitar o campo designado para Tiago emJerusalém (At 21,20-26).

A situação coríntia demonstra que a autori-dade apostólica não isentava ninguém de julga-mento. “Pois todos deveremos comparecer adescoberto diante do tribunal de Cristo”, Pauloafirma, “a fim de que cada um receba o prêmiodo que tiver feito durante a sua vida corporal, se-ja o bem, seja o mal” (2Cor 5,10; cf. 1Cor 3,13-15). Aqui a posição apostólica não faz diferença,pois Deus não julga com base na situação daspessoas na Igreja (Gl 2,6). Isso está claro peloconflito entre Paulo e Pedro* em Antioquia, por-que Pedro não agiu direito quando deixou detomar as refeições com os gentios (Gl 2,11-14).

3. De adversáriosComo Paulo considera a tarefa apostólica umtrabalho de “colaboração”, é de certa importân-cia vê-lo referir-se a “falsos apóstolos” (2Cor11,13-15; ver Apóstolo; Adversários). Por si só,a motivação errada não fazia de alguém umadversário aos olhos de Paulo. Desde que Cristofosse anunciado, ele se alegrava (Fl 1,18; cf.1Cor 15,11). Mesmo se alguém anunciasseCristo “por inveja e rivalidade” ou para tornar ocativeiro “ainda mais penoso” para Paulo, issonão lhe importava (Fl 1,15-18). A “falsidade”deles parecia antes originar-se de um conceitoerrôneo de apostolado e, conseqüentemente, deum exercício de autoridade errado. Eram especi-ficamente os que reivindicavam o crédito do tra-balho missionário alheio (2Cor 10,15-16), quepregavam um evangelho diferente (2Cor 11,4;Gl 1,8) e que invadiam a seara alheia (2Cor10,12-14) que Paulo rotulava de “falsos”. Oobjetivo deles não era “colaborar”, mas “suplan-tar”, justificando suas ações pelas alegações demelhores credenciais. Eles traziam e solicitavamcartas de recomendação (2Cor 3,1-3), alegavamuma herança superior à de Paulo (2Cor 11,21-21) e se vangloriavam de maior espiritualidade*(“visões* e revelações”, 2Cor 12,1; “sinais mila-grosos, prodígios, atos de poder”, 2Cor,12-12).Seu intento não era pregar o evangelho, massim “corromper-se, longe da simplicidade de-

vida a Cristo” (2Cor 11,3; cf. Gl 1,8). O ganhofinanceiro (2Cor 2,17; 11,20) e o desejo de do-minar (“escravizar”, “esbofetear”, 2Cor 11,20)era sua motivação. Como tal, eles se disfarçavamde servos* da justiça*, quando, na verdade, eramservos de Satanás* (2Cor 11,14-15), não após-tolos de Cristo (2Cor 11,13).

Há quem considere Paulo excessivamentesevero no julgamento desses apóstolos rivais.Contudo, onde o Evangelho e o compromissocom Cristo estavam em jogo, como na Galáciae em Corinto, as observações paulinas estão deacordo com julgamentos feitos no AT contrafalsos profetas, que tinham a intenção de desviarIsrael do compromisso com Yahweh e a Aliança(e.g., Dt 18,20; cf. Jr 28,15-18). O rótulo “adver-sário” não era dado aos que contestavam Paulopessoalmente, mas sim aos que prejudicavamseu papel de pregador (ver Pregação) e mestre(ver Ensinamento) do evangelho em uma comu-nidade específica. Em última análise, se Cristoe sua Igreja são servidos, então as rivalidadespessoais não têm importância.

4. Na IgrejaA autoridade não é prerrogativa exclusiva doapóstolo. Paulo reconhece as formas individuaise corporativas de autoridade na Igreja. Ele exortaos tessalonicenses a ter “consideração para comaqueles que entre [eles] labutam e velam(proistamenous)... no Senhor” (1Ts 5,12). É umaautoridade que consiste em trabalho, não emposição ou situação pessoal. Como tal, eles de-vem ser tidos em “alta estima” (1Ts 5,13). Existetambém uma esfera de autoridade para as mu-lheres na comunidade cristã. Na distinção entre asociedade greco-romana e a judaica, Paulo en-fatiza a mutualidade na relação do casamento*,onde marido e mulher renunciam a “direitos”em favor um do outro (1Cor 7,3-4). Como sím-bolo de sua autoridade, as mulheres são exorta-das a cobrir a cabeça ao rezar e profetizar (1Cor11,10). Os estudiosos despendem considerávelesforço para entender o que Paulo quer dizerem 1 Coríntios 11,10 com “eis por que a mulherdeve trazer sobre a cabeça exousia”. Há muitacoisa que recomenda a interpretação de M.Hooker de que a mulher cobrir a cabeça era sinalda “permissão” que lhe foi dada por Deus para

AUTORIDADE

AUTORIDADE

A.p65 28/03/2008, 15:25139

140Aa

exercer as funções de rezar (ver Oração) e pro-fetizar (ver Profecia) especificadas em 1 Corín-tios 11,5. Alternativamente, cobrir a cabeça tal-vez represente seu papel de “esposa” dentro daordem da criação (1Cor 11,9), enquanto rezar eprofetizar expressam sua função na ordem daredenção (ver Cabeça; Homem e mulher).

Também a Igreja possui autoridade em vir-tude de ser o “corpo”, do qual Cristo é a “cabe-ça” (Ef 1,22; 4,15-16; 5,23; Cl 1,18; 2,19; verCorpo de Cristo). O exercício responsável daautoridade corporativa era algo que Paulo tinhagrande dificuldade para inculcar em suas Igre-jas. É responsabilidade corporativa da Igreja“examinar” (1Ts 5,19-21) e julgar profecias(1Cor 14,29), advertir os ociosos, encorajar ostímidos e sustentar os fracos (1Ts 5,14), censuraros que erraram (2Cor 2,6), excomungar no casode pecado* persistente (1Cor 5,2; 10,13; 2Ts3,6.14-15) e reintegrar os arrependidos (2Cor2,7-8). Essa autoridade deriva do poder “doSenhor Jesus”, que está presente com os fiéis“reunidos em seu nome” (1Cor 5,4; cf. Mt 18,20)e de posse do “pensamento de Cristo” (1Cor2,16). Aplicar e abandonar penalidades pelopecado era uma coisa que as Igrejas dos gentiostinham dificuldade para fazer. Em mais de umaocasião, Paulo teve de repreender uma Igrejapor não exercer autoridade (1Cor 5,2; 6,1; 2Ts3,6; ver Disciplina).

Parte da dificuldade das Igrejas dos gentiosestava em entender o relacionamento entre auto-ridade corporativa e liberdade individual. Em-bora seja inflexível em sua insistência que “épara sermos verdadeiramente livres que Cristonos libertou” (Gl 5,1; 1Cor 10,25.29; cf. exestin,1Cor 6,12; 10,23), Paulo mesmo assim advertecontra seu uso indiscriminado (e.g., Rm 6,1-23).Ele se empenha, em especial, para que a liberda-de cristã não seja justificação para desconsideraras convenções sociais em vigor (1Cor 11,6.13),obscurecer a distinção entre o certo e o erradopara um irmão “mais fraco” (1Cor 8,11; ver Fortee fraco), exercer os carismas (ver Dons do Espí-rito) sem consideração pela boa ordem no culto*(1Cor 14,33.40) e pelo interesse dos não-crentes(1Cor 14,23-25), nem para pôr em perigo otestemunho cristão na comunidade circundan-te (1Cor 5,1).

Ver também APÓSTOLO; ORDEM E GOVERNO

DA IGREJA; AUTORIDADE CIVIL; CONVERSÃO E VOCA-ÇÃO DE PAULO; DISCIPLINA; LIBERDADE; ADVERSÁ-RIOS DE PAULO; PASTOR, PAULO COMO; PODER;TRADIÇÃO.

BIBLIOGRAFIA: R. J. Banks. “Freedom and Au-thority in Education. II: Paul’s View of Autho-rity”. Journal of Christian Education 56, 1976,17-24; C. K. Barrett. “Paul’s Opponents in 2Corinthians”. In: Essays On Paul. Philadelphia,Westminster, 1982, 60-86; E. Best. “Paul’sApostolic Authority–?”. JSNT 27, 1986, 3-25;H. von Campenhausen. Ecclesiastical Autho-rity and Spiritual Power in the Church of theFirst Three Centuries. Stanford, Stanford Uni-versity, 1969; J. D. G. Dunn. “The RelationshipBetween Paul and Jerusalem According to Ga-latians 1 and 2”. NTS 28, 1982, 461-478; Idem.Jesus, Paul and the Law. Louisville, Westmins-ter/John Knox, 1990, 108-126; E. E. Ellis. “Pauland His Opponents: Trends in Research”. In:Christianity, Judaism and Other Greco-RomanCults: Studies for Morton Smith. parte I, J.Neusner (org.), Leiden, E. J. Brill, 1975; D.M. Hay. “Paul’s Indifference to Authority”. JBL88, 1969, 36-44; B. Holmberg. Paul and Power:The Structure of Authority in the Primitive Chur-ch as Reflected in the Pauline Epistles. Phila-delphia, Fortress, 1983; M. D. Hooker. “Autho-rity on Her Head: An Examination of 1 Cor.XI.10”, NTS 10. 1963-1964, 410-416; R. P.Martin. “Authority in the Light of the Aposto-late, Tradition and the Canon”. EvQ 40, 1968,66-82; K. J. Neumann. “Paul’s Use of Authorityand Persuation in the Corinthian Letters”, Con-sensus 5, 1979, 15-23; J. H. Schütz. Paul andthe Anatomy of Apostolic Authority. Cambridge,University Press, 1975; R. Schnackenburg.“Apostles Before and During Paul’s Time”. In:Apostolic History and the Gospel, W. W. Gasque& R. P. Martin (orgs.). Grand Rapids, Eerdmans,1970, 287-303.

L. L. BELLEVILLE

AUTORIDADES E PODERESAs duas palavras, autoridades e poderes, são ex-pressões simbólicas de uma variedade de pala-vras que Paulo empregou para se referir a pode-

AUTORIDADE

AUTORIDADES E PODERES

A.p65 28/03/2008, 15:25140

141A a

res que foram criados por Deus*, mas, de algummodo, são hostis a Cristo* e sua Igreja*. O sen-tido preciso desses termos em seus vários con-textos foi objeto de debate dos estudiosos noséculo XX. Entretanto, muitos concordam quePaulo falava de uma dimensão espiritual da or-dem criada (há quem acrescente: poderes objeti-vos e pessoais) que, sendo inimiga de Cristo esua Igreja, era, de certo modo, oposta e neutrali-zada ou conquistada por Cristo. Uma abordagempromissora é considerar tais autoridades e po-deres da perspectiva da tradição veterotestamen-tária de guerra santa.

1. Interpretação dos poderes2. Terminologia, contexto e pano de fundo3. A natureza dos poderes4. Cristo e os poderes

1. Interpretação dos poderesA interpretação dos poderes tem sido analisadaem um horizonte hermenêutico moldado porpreocupações políticas e sociais. Enquanto aabordagem existencial de Bultmann via os po-deres como projeções míticas de des-ordemhumana no cosmos, O. Cullmann, ao falar apartir do contexto da Europa logo depois da Se-gunda Guerra Mundial, apresentou uma inter-pretação de Romanos 13 e 1 Coríntios 2,6-8que considerou os poderes autoridades espiri-tuais e civis e, assim, deu uma justificativa teo-lógica para o bem e o mal potenciais do Estado(ver também Morrison). Mas uma linha de in-terpretação muito influente é a que afirma terPaulo desmitificado os poderes e empregado alinguagem para se referir a estruturas da exis-tência terrena tais como tradição, moralidade,justiça e ordem (Berkhof). Essa abordagem foiadaptada por outros que argumentam que Paulose referia a estruturas sociopolíticas da sociedadee também a forças espirituais por trás e dentrodessas estruturas (Yoder, Mouw).

O estudo mais abrangente do assunto foiempreendido por W. Wink, que analisa toda aextensão do uso paulino da linguagem de poder(não apenas onde ela se refere ostensivamente aentidades ou dimensões não-humanas da reali-dade). Ele conclui que Paulo empregou a lingua-gem imprecisa e permutável de poder para sereferir simultaneamente aos “aspectos interiores

e exteriores de qualquer manifestação deter-minada de poder” (Wink, 5). Embora o próprioPaulo acreditasse na realidade ontológica de ummundo espiritual invisível, Wink acha a perspec-tiva paulina muito mais sutil do que foi previa-mente avaliado. Paulo já tomara medidas para ademitologização dessa visão do mundo, expan-dindo a lista de inimigos de Cristo e seu povopara incluir a lei, o pecado, a carne e a morte.Os “poderes são celestes e terrenos, divinos ehumanos, espirituais e políticos, invisíveis e es-truturais” (Wink, 100). Como tais, são passíveisde “deixar de ser potências” e ser “neutraliza-dos” — até mesmo redimidos — no plano deDeus para a restauração cósmica (Wink, 50-53;ver crítica em Arnold, 1989, 48-51, 129-134;1992, 198-201).

A teoria de que o uso paulino da linguagemde autoridades e poderes era sempre em refe-rência aos anjos* bons a serviço de Deus, não apoderes hostis, foi defendida com certa minúciapor W. Carr. Mas suas interpretações de textoscomo Colossenses 2,14-15 e o expediente exe-gético de concluir que Efésios 6,12 não faziaparte do texto original levaram muitos intérpre-tes a rejeitar sua proposta (ver Wink, O’Brien,125-128). Também tem sido dedicada atençãoà relação entre a referência paulina aos poderese a demonologia implícita nos textos de magiado período (ver Arnold).

2. Terminologia, contexto e pano de fundoA terminologia que Paulo empregou ao falar depoderes era variada, e em alguns casos é ambí-gua para os intérpretes modernos.

2.1. Designações de poder e autoridade.Em grande parte, os termos que Paulo empregatêm certos aspectos em comum: 1) Não sãonomes próprios (e.g., Belial, Beelzebul), nemrefletem capacidades particulares (e.g., Ilusão,Discórdia, Erro, em TSal 8,3), mas parecemser títulos ou classificações nominais, as maisproeminentes das quais se baseiam em qualida-des abstratas de poder e autoridade. 2) Os ter-mos empregados são potencialmente ambíguospara os intérpretes modernos porque, na maiorparte, dependem de seus contextos para definirse se referem a líderes e potentados humanos ounão-humanos — ou, o que é menos plausível,

AUTORIDADES E PODERES

AUTORIDADES E PODERES

A.p65 28/03/2008, 15:25141

142Aa

a ambos. 3) Com muita freqüência ocorrem noplural ou sua pluralidade é subentendida (e.g.,pasan arch¶n, 1Cor 15,24; Ef 1,21; Cl 2,10) e,assim, parecem referir-se a classes de seres.4) Na maioria dos casos, aparecem em uma sériede nomes equivalentes. 5) Os próprios nomessugerem alguma possibilidade de se referirem aescalões de poder dentro do mundo espiritual,mas se esse é o caso os indícios são insuficientespara determinar sua classificação. 6) Ao contrá-rio dos chamados “demônios”, esses poderesnão habitam seres humanos ou ídolos*, não resi-dem “debaixo da terra”; quando seu domínio éindicado ou subentendido, trata-se de “céus eterra”, “este mundo” e “nos céus”. Isso significaque seu poder tem amplitude cósmica.

2.2. Contextos. No corpus paulino somentequatro cartas usam esses termos em contextosque subentendem serem eles poderes não-hu-manos (excluindo-se por enquanto os mais pro-blemáticos stoicheia tou kosmou, “elementosdo mundo”*, que aparecem duas vezes em Gá-latas e também duas vezes em Colossenses):Romanos, 1 Coríntios, Colossenses e Efésios.Dessas cartas, só Romanos e 1 Coríntios são deautoria paulina incontestada e, por grande dife-rença, a maior concentração encontra-se emColossenses (oito vezes) e Efésios (onze vezes).Há quem afirme que a grande ênfase nos “po-deres” nessas cartas reflete situações culturaise religiosas específicas abordadas ou no tempode Paulo (e.g., magia* em Éfeso; ver Arnold,1989) ou no período pós-paulino.

2.3. Termos específicos. O sentido dessestermos depende primordialmente do empregopaulino, porém o contexto mais amplo de seuuso em outra literatura remanescente — emespecial literatura judaica — anterior ou apro-ximadamente contemporânea de Paulo esclare-ce os sentidos que Paulo empregou em seu uso.Mas os indícios precisam ser examinados comcuidado. Afirmações de que esses termos sereferem a poderes cósmicos baseiam-se fre-qüentemente em indícios datados de um séculoou mais depois de Paulo.

2.3.1. Archai (“dominações” ou “autorida-des”: Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21; 3,10; 6,12;Cl 1,16;2,10.15). Arch- era o prefixo mais fre-qüentemente usado para palavras gregas que

denotavam posições de poder humano (Wink,13). Em Daniel 7,27, em que os soberanos dosreinos da terra servem o Altíssimo, o texto gre-go de Teodocião fala deles como archai (LXXexousiai). A possibilidade de encontrar-se oequivalente etíope de archai em 1 Henoc 61,10,em que ele se refere a poderes espirituais aserviço de Deus, é mais problemática, mas pro-vável (ver Wink, 153, n. 2).

2.3.2. Archontes (“príncipes”, 1Cor 2,6.8).Este termo geralmente se referia a soberanoshumanos, sentido que o próprio Paulo usouquando falou de magistrados como autoridadescivis (archontes) em Romanos 13,3 (onde tra-zem a espada e recolhem impostos). Os intér-pretes dividem-se quanto a se 1 Coríntios 2,6.8refere-se a poderes humanos ou espirituais, ealguns sugerem uma referência dupla. Conside-rando isso, o argumento a favor de uma referên-cia a poderes cósmicos precisa de apoio.

A possibilidade de archontes referir-se a po-deres espirituais é ilustrada pelos textos gregosde Daniel. Onde o texto massorético emprega ohebraico ’sar, a LXX e Teodocião (fim do séculoII, mas provavelmente baseado em um texto gre-go muito mais primitivo) falam de Mikael, oarcanjo de Israel, como heis t∞n archont∞n t∞n

pr∞t∞n (“um dos príncipes proeminentes”, emDn 10,13). Teodocião também usa arch∞n (sin-gular) para falar de Mikael em Daniel 10,21 e12,1, onde a LXX traz angelos. Além disso, emDaniel 10,20-21, onde a LXX fala do rei (’sar)da Pérsia e da Grécia como strategos, Teodociãousa consistentemente arch∞n. O termo hebraico’sarîm, que significa “chefes”, “príncipes”, “ca-pitães” ou “soberanos”, como poderes espiri-tuais malévolos deste mundo, pode muito bemestar por trás do uso paulino de archontes em 1Coríntios 2,6.8 (cf. ’sar no sentido positivo como“Príncipe da Luz” angelical que foi designadopara a defesa de Israel contra o Anjo das trevasem 1QM 13,10; 1QS 3,20). Em 1 Coríntios 2, emque Paulo fala dos archontes tou ai∞nos toutou

(“príncipes deste mundo”; cf. 1Cor 4,4), queestão votados à destruição (t∞n katargoumen∞n,1Cor 2,6) e que não conheceram a sabedoriamisteriosa de Deus e por isso crucificaram oSenhor* da glória (1Cor 2,7-8), há um contextoque nos impele a entender que archontes se

AUTORIDADES E PODERES

AUTORIDADES E PODERES

A.p65 28/03/2008, 15:25142

143A a

refere a poderes espirituais (mas ver Fee, 103-105). Não é preciso recorrer a uma cosmologiagnóstica ou protognóstica para justificar esseemprego. Se Paulo tivesse em mente a cosmo-logia danielense de poderes espirituais que es-tavam por trás das nações, ele usaria com muitafacilidade archontes como termo geral para ospoderes espirituais hostis que, como principaistransmissores da sabedoria deste mundo, ignora-vam a sabedoria de Deus para os tempos (cf. Ef3,10) e por isso crucificaram o Senhor da glória.A presença do tema da oposição satânica a Jesusconforme está registrada na tradição evangélica— oposição que culminou quando levaram Jesusà cruz (e.g., Lv 22,3.53) — provavelmente re-presenta um abrangente entendimento cristãoprimitivo do conflito espiritual que estava portrás da oposição humana que levou Jesus à cruz(cf. o emprego de arch∞n com referência a Beel-zebul em Mc 3,22 par.).

2.3.3. Exousiai (“poderes” ou “autoridades”:1Cor 15,24; Ef 1,21; 2,2; 3,10; 6,12; Cl 1,16;2,10.15). Este termo é usado com mais fre-qüência no NT para o direito ou a autorizaçãopara usar poder concedido por uma função,como ilustra claramente o uso paulino da palavraem Romanos 13,1-3 (Wink, 15, 45-47; cf. Mor-rison). Em Daniel 7,27 da LXX, os príncipesterrenos que estão sujeitos ao Altíssimo e o obe-decem são chamados exousiai (contraste o ar-chai de Teodocião em 2.3.1 acima). Um exemplode emprego da palavra mais ou menos contem-porâneo do NT e com uma referência a seresespirituais encontra-se no Testamento de Levi3,8. Aqui os exousiai ocupam os céus mais altose, ao lado dos thronoi (“tronos”), têm o privi-légio de estar na presença de Deus (cf. também1Hen 61,10; 2Hen 20,1). Neste caso, claro, elessão servos de Deus e não do mal.

2.3.4. Dynameis (“potências”: Rm 8,38; Ef1,21). Em Daniel 8,10 da LXX, as “potênciasdos céus” (dynameis tou ouranou) e “as estrelas”são lançadas à terra e pisoteadas pelo “chifrepequeno” (cf. Is 34,4; Mc 13,25). Fílon usoucom freqüência dynameis para se referir a pode-res angelicais (e.g., Fílon, Migr. Abr. 181) e, emJubileus 1,29, o termo é usado para “potênciasdo céu” (cf. “dos céus” em 1Hen 6,10 e comoparte do exército celeste do sétimo céu em 2Hen

20,1). A LXX usa kyrios t∞n dyname∞n (“Senhordos poderes”) em vez de kyrios t∞n strati∞n (“Se-nhor dos exércitos”) para traduzir Yahweh Sa-baoth, “Senhor das hostes” (onde “hostes” refe-re-se ao exército celeste de Yahweh). Isso talvezreflita o uso freqüente de dynameis nos textosjudaicos para referir-se a forças militares (cf.e.g., Sl 102-121; ver Wink, 159-161). Essa asso-ciação militarista sugere que a mesma conota-ção está presente no uso de dynameis em Roma-nos 8,38 e Efésios 1,21, em que os poderes seopõem a Deus.

2.3.5. Kyriot¶tes (“soberanias”: Cl 1,16; Ef1,21 [singular kyriot¶s]). Não está claro se ky-

riot¶s está por trás do termo eslavo para as “so-beranias” que fazem parte do exército celestedo sétimo céu em 2 Henoc 20,1 (cf. 1Hen 61,10;Wink, 20). É plausível afirmar que o termo he-braico memßele∫, usado para o domínio de Belialem 1QS 1,18; 2,19; 1QM 14,9; 18,1; 4Q 286-287, é o equivalente de kyriot¶s (Wink, 20; mashá um possível paralelo ao emprego de Qumranem t¶s exousias tou skotous de 1Cl 1,13). Aofalar de idolatria, Paulo refere-se a “vários deu-ses e vários senhores [kyrioi]” (1Cor 8,5), que,por inferência, ele associa a “demônios” (1Cor10,20). Uma possível conotação é que oskyriot¶tes representam esferas de influênciaespiritual antes entendidas como governadaspelos deuses das nações.

2.3.6. Thronoi (“tronos”: Cl 1,16). Este ter-mo parece ser metonímia para o poder espiritualque ocupa o trono (cf. AscIs 7-8). Em Daniel7,9 da LXX, thronoi refere-se aos tronos estabe-lecidos em lugar do tribunal celeste do Anciãode Dias, o que indica claramente posições deautoridade transcendente. E em 2 Henoc 20,1eles são chamados os “tronos de muitos olhos”que, com os querubins, serafins e forças celestes,ocupam o sétimo céu. Em Testamento de Levi3,8, ocupam o mais alto céu e são privilegiadoscom os exousiai por estar na presença de Deus.O uso do termo em Colossenses* pode ser atri-buído ao conjunto específico de crenças quePaulo contestou em Colossas, talvez ligadas ao“culto aos anjos” (Cl 2,18).

2.3.7. Kosmokratores tou skotous toutou(“dominadores deste mundo de trevas”: Ef6,12). Kosmokrat∞r é usado para o deus Serápis

AUTORIDADES E PODERES

AUTORIDADES E PODERES

A.p65 28/03/2008, 15:25143

144Aa

nos textos mágicos (PGM XIII, 618-640). EmEfésios, a natureza má desses poderes é enfa-tizada pela frase ta pneumatika t¶s pon¶rias

en tois epouraniois (“espíritos do mal que es-tão nos céus”: Ef 6,12).

2.3.8. Angeloi. Em pelo menos um caso,Paulo fala de angeloi (“anjos” ou “mensageiros”)em um contexto que sugere serem eles poderesmalignos que procuram frustrar os desígnios deDeus (Rm 8,38) e, em outros casos, eles parecemser culpados, em certo sentido, e ser julgadospelos fiéis (1Cor 6,3). Mais problemático é o em-prego em Colossenses 2,18, em que os anjos sãoou objetos de devoção inapropriada ou seu culto*de Deus é objeto de aspiração religiosa humana(observe-se a ambigüidade do genitivo na frasethr¶skeia t∞n angel∞n, “culto de anjos” [TEB,BMD, CNBB: “culto aos anjos”]: se genitivoobjetivo, significa culto dirigido aos anjos [TEB,BMD, CNBB: “culto aos anjos”]; se genitivo sub-jetivo, refere-se ao culto angelical de Deus, ouculto conduzido por anjos).

2.3.9. Frases inclusivas. Paulo também em-prega quatro frases que incluem amplamente to-do poder imaginável. Em Romanos 8,39, emuma série de pares contrastantes, ele usa umaimagem espacial, “nem a altura, nem a profundi-dade” (oute hyps∞ma oute bathos), que pode re-ferir-se ao zênite e ao nadir dos corpos celestese, assim, abranger toda a amplitude dos poderescelestes (cf. 1Hen 18,3.11). Ou pode simples-mente referir-se a quaisquer poderes que ocu-pem o alto dos céus ou as partes debaixo daterra — ou qualquer espaço no meio.

Em Colossenses 1,16 está que tudo “noscéus e na terra, tanto os seres visíveis como osinvisíveis” (ta horata kai ta aorata), foi criadopor Cristo. Em seguida são enumerados “Tro-nos e Soberanias, Autoridades e Poderes”.

Em Filipenses 2,10, ao falar do Cristo exal-tado (ver Exaltação), Paulo descreve a submis-são universal ao Senhor soberano usando aimagem espacial de um universo de tríplice di-visão: “todo joelho se dobre nos céus, na terrae debaixo da terra” [epourani∞n kai epigei∞n

kai katachthoni∞n]. Aqui Paulo (ou o autor dohino) parece incluir todo ser racional — huma-no e espiritual, bom e mau — como no fim(ou agora) submisso à soberania de Cristo (em

referência a demônios “nos céus, na terra e de-baixo da terra”, ver PGM IV, 2694-2704). Oeco de Isaías 45,23 lembra o contexto vetero-testamentário da submissão obrigatória dos po-deres terrestres (cf. Is 45,24 e 24,21) como sím-bolos apocalípticos.

Finalmente, em Efésios 1,21, como conclu-são de uma lista de quatro nomes de poderesmalignos, encontramos uma referência global a“qualquer outro nome capaz de ser nomeado,não somente neste mundo, mas ainda no mun-do futuro” (pantos onomatos onomazomenou ou

monon en t∞ ai∞ni tout∞ alla kai en t∞ mellonti).Se isso é considerado autenticamente paulino, éoutro indício que Paulo não pretendia esgotar aspossibilidades de nomes. Contra um fundo cul-tural no qual em geral se acreditava que a bem-sucedida manipulação mágica de poderes malig-nos se baseava no conhecimento do nome do po-der, Efésios enfatiza o triunfo* e a soberania deCristo sobre todo poder — conhecido ou desco-nhecido, real ou imaginado, presente ou futuro.

3. A natureza dos poderesNo corpus paulino, os poderes são mencionadosem uma variedade de contextos específicos, par-ticularmente os que correspondiam a episódiosdecisivos da história de Cristo: foram criados pe-lo Cristo preexistente* em seu papel criador (Cl1,16); conduzidos em procissão triunfal comoinimigos derrotados na cruz (Cl 2,15 e, possivel-mente, 1Cor 2,6.8); submetidos ao Cristo triun-fante, exaltado e reinante (Ef 1,21; cf. Cl 2,10;Fl 2,10); e serão destruídos em sua consumaçãoescatológica do plano de Deus (1Cor 15,24).

3.1. Os poderes criados por intermédio deCristo. Colossenses 1,15-16 afirma que Cristocolaborou na criação de “tronos”, “soberanias”,“autoridades” e “poderes”, juntamente com“tudo... nos céus e na terra, tanto os seres visí-veis como os invisíveis” foram criados “nele”(en aut∞), “por” (di’ autou) e “para” (eis auton)ele. Os poderes eram originalmente criação di-vina e deveriam encontrar sua meta em Cristo.Contudo, o mesmo hino* cristológico* do qualessa declaração faz parte afirma que Cristo re-conciliou tudo para ele na cruz (Cl 1,20). Pode-mos legitimamente supor que Paulo e o autor dohino (se sua origem não é paulina) compartilha-

AUTORIDADES E PODERES

AUTORIDADES E PODERES

A.p65 28/03/2008, 15:25144

145A a

vam a premissa bíblica básica de que a criaçãooriginal era boa e estava em harmonia com osdesígnios de Deus. A necessidade de fazer a paz,juntamente com a afirmação posterior da vitóriade Cristo sobre os poderes na cruz (Cl 2,15),significa que alguma coisa tinha saído errado eos poderes se tornaram hostis a Deus e seusdesígnios. Quanto às circunstâncias dessa trans-formação, só nos resta conjeturar. Alguns intér-pretes afirmam que, da perspectiva paulina, oproblema com os poderes é terem sido erronea-mente considerados pelos colossenses comorivais de Cristo (Cl 2,7.20). Eles são o espectrode uma imaginação religiosa supersticiosa daqual os que crêem em Cristo foram libertados.Mas, como já observamos, o entendimento depoderes que existem como servos angelicais deDeus está bem representado em textos que refle-tem o judaísmo do tempo de Paulo, e tambémencontramos a noção de que alguns deles sãoseres espirituais hostis “caídos”. Parece provávelque Paulo entendesse que os poderes pertenciama essa segunda categoria e que ele lhes atribuiuuma existência ontológica espiritual, emboratalvez não exatamente no mesmo sentido queos colossenses.

3.2. Os poderes como inimigos de Deus,Cristo e seu povo. O judaísmo palestinense dotempo de Paulo enfrentava um problema existen-te havia muito tempo, mas que era monumental:o poder de ocupação dos romanos, que desafiavaa santidade de seu Templo, da Torá e do territóriosagrado. Mais que social e político, esse era umproblema teológico que exigia uma teodicéia.Da perspectiva apocalíptica de um judaísmo sec-tário (das últimas décadas do século I a.C.) vemuma resposta que lança luz na linguagem pau-lina dos poderes: a Regra da Guerra de Qumran(11QM, 4QM491-496).

Ao ampliar o relato da batalha escatológicaque se encontra em Daniel 11,40–12,3, o rolodescreve uma guerra na qual os justos de Israel,chamados “Filhos da Luz”, são auxiliados porMikael e as forças angelicais para derrubar os“Filhos das Trevas”, que são ajudados por Be-lial e seus poderes das trevas. Nessa batalha,vários adversários tradicionais de Israel (Edom,Moab, Amon, Filistéia, 1QM 1,1-2) seriam der-rotados primeiro e a batalha final seria travada

com os “Kitim de Ashur” (1QM 1,1-14; 11,11;cf. Nm 24,24), provavelmente uma referênciaaos romanos e sua invasão da Palestina durantea segunda metade do século I a.C. A apropria-ção pelo rolo das Regras da Guerra da lingua-gem e das metáforas da guerra divina e dosnomes tradicionais dos inimigos de Israel, ago-ra fortalecidos pelos poderes demoníacos, su-gere um caminho para entender a descriçãopaulina dos poderes.

Como antigo judeu farisaico (ver Paulo, ojudeu), Paulo professava ter sido zeloso pelacausa de Israel* (Gl 1,13-14; Fl 3,5-6), paixãotransformada pelo encontro com o Senhor res-suscitado (e.g., Rm 9,1-5). A conversão* dePaulo deu origem a uma reavaliação radical dolugar que, no plano redentor de Deus, ocupa-vam a Torá, o Templo e o território da herançaprometida. Além disso, os gentios*, antes con-siderados inimigos do propósito de Deus nahistória, eram agora o povo ao qual ele era cha-mado a proclamar a boa nova (ver Evangelho)da paz* escatológica iniciada por Jesus, o Mes-sias. Os gentios já não eram inimigos de Deus(Rm 5,10; 8,7; 11,28; Cl 1,21).

Na teologia paulina, encontramos provas demudança hermenêutica pela qual os símbolostradicionais de Israel eram reinterpretados, inclu-sive a Torá, o Templo, o sacrifício, a pureza, opovo de Deus e até a herança da terra (Cl 1,12-14). Do mesmo modo, parece que os temas deYahweh, o guerreiro divino, e os inimigos tradi-cionais de Israel foram transformados. Os gen-tios, que outrora estavam “longe”, eram estran-geiros e inimigos (Ef 2,17; cf. Cl 1,21), agoraeram o enfoque da graça* salvífica de Deus.Eles já não podiam ser considerados inimigosde carne e osso, objetos da “interdição” (&¶rem)da antiga aliança de guerra divina. De modo pa-radoxal, esse castigo foi infligido ao próprioMessias, quando ele foi suspenso na cruz (Gl3,10-14) e abriu caminho para judeus e gentiosserem uma nova pessoa escatológica em Cristo(cf. Ef 2,14-18). Os verdadeiros inimigos já nãoeram os romanos, mas os poderes espirituaisque estavam à espreita por trás das faces huma-nas das autoridades e dos impérios deste mundo.

Aqui Paulo encontrou precedente no AntigoTestamento: “Quando o Altíssimo deu às nações

AUTORIDADES E PODERES

AUTORIDADES E PODERES

A.p65 28/03/2008, 15:25145

146Aa

seu patrimônio, quando separou os filhos de Adão,ele fixou os territórios dos povos, segundo o nú-mero dos filhos de Israel. Pois o apanágio do Se-nhor é o seu povo, e Jacó, o patrimônio que lhecabe” (Dt 32,8-9; cf. Sr 17,17; Jub 15,32-32). Osdeuses e ídolos* das nações eram, na realidade,demônios* (Dt 32,17; cf. 1Cor 10,20) que seriamjulgados pelo juiz de toda a Terra (Sl 82; Is 24,21).Esse entendimento dos poderes espirituais portrás das nações foi mais desenvolvido na visãodos animais monstruosos que representam os im-périos em Daniel 7,2-8, do “Príncipe” da Pérsia eda Grécia combatidos pelo “de aparência huma-na” e de Mikael, o Príncipe de Israel, em Daniel10,13.20-21. E há indícios de que a Paulo se jun-taram outros judeus nessa visão do mundo (cf.Jub 15,30-32; 1Hen 89,59-61; 90,20-25, emque parece que os setenta pastores representamos anjos das nações; cf. Is 24,21).

O contexto imediato de 1 Coríntios 15,24não deixa dúvida quanto a Paulo ter falado queos poderes eram malignos, pois ali eles sãorelacionados entre os “inimigos” escatológicos(echthroi, 1Cor 15,25-26; cf. Ef 6,12), inclusivea morte (ver Vida e morte). Os poderes tam-bém povoam o pano de fundo deste drama deredenção*: aparecendo entre as barreiras poten-ciais ao amor de Cristo, em última instânciaeles são, mesmo assim, impotentes para impe-dir o triunfo final de Cristo (Rm 8,38). EmEfésios, eles são apresentados ainda mais au-daciosamente como inimigos de Cristo que seopõem à Igreja neste mundo (Ef 6,12). De suaposição vantajosa “nos céus” (ver Céu), elestambém observam a sabedoria de Deus se re-velar em seu plano para o mundo (Ef 3,10).

4. Cristo e os poderesPaulo utilizou a história de Israel para narrar ahistória de Cristo. Paulo transpôs o padrão pro-gressivo de guerra, vitória, realeza, construçãodo Templo e celebração, evidente no AT (e nospadrões míticos do antigo Oriente Próximo).Jesus, o Messias, que combatera o inimigo esaíra vitorioso (Cl 2,15; cf. Cl 1,12-14), estavaagora exaltado e reinava como rei celeste (1Cor15,24-26; Fl 2,9; Cl 3,1; Ef 1,20-22; 1Tm 3,16),construindo seu novo templo* (1Cor 3,16-17;2Cor 6,16; Ef 2,19-22) e recebendo louvor e

obediência (Fl 2,10-11). Para Paulo, o inimigoconsistia não em romanos ou gregos, mas nas“autoridades e poderes” (bem como pecado*,carne*, morte e até a lei*), talvez assim designa-dos para ressaltar a autoridade e o domínio queexerciam neste mundo. Como os reis das naçõesgentias, que se tornariam o escabelo do rei daví-dico (Sl 110), as autoridades e poderes já esta-vam e seriam finalmente postos sob os pés deCristo (1Cor 15,24-28). Se Paulo falou ou nãoque esses poderes seriam despojados do podere conduzidos ao serviço de Cristo ou completa-mente derrotados e, finalmente, aniquilados, éassunto que tem sido debatido. Entretanto, a lin-guagem que Paulo emprega em 1 Coríntios 15,24para falar do fim desses poderes (katarge∞,usada também para a derrota da morte em 1Cor15,26), sugere fortemente sua completa derrotaou aniquilação sem nenhuma possibilidade deredenção. Aqui, mais uma vez, a linguagem re-flete a “interdição” (&¶rem) da guerra de Yahweh.

Embora desempenhassem esse papel na nar-rativa paulina de Cristo, os poderes também eramreconhecidos como poderes cósmicos hostis douniverso, que enchiam de medo os corações demuita gente no mundo romano do tempo dePaulo. Quer associados à magia*, quer aos misté-rios ou à astrologia, a religião popular do mundomediterrâneo do século I imaginava o cosmosassombrado por espíritos nos céus, na terra e de-baixo dela. Paulo abordou a situação anuncian-do que os poderes das trevas foram derrotadospor Cristo na cruz. Embora seu poder ainda fossereal e potente, eles não deviam ser temidos pelos“em Cristo” (Rm 8,37-39). Assim, quando fala-va da hostilidade dos poderes neste mundo e desua derrota por Cristo, Paulo empregava uma lin-guagem que não só era fundamentalmente judai-ca em seu eco de arquétipos veterotestamentáriose no padrão da redenção, mas que também res-soava nos corações de seus ouvintes gentios.

Efésios desenvolve o tema da hostilidadedos poderes para com a Igreja. Em Efésios 6,12-17, a luta terrena da Igreja é descrita em metáfo-ras que lembram a guerra santa de Israel. Porémaqui o inimigo não é de “carne e osso”, masespiritual; a guerra é travada contra “as Autorida-des, os Poderes, os Dominadores deste mundode trevas, os espíritos do mal que estão nos céus”

AUTORIDADES E PODERES

AUTORIDADES E PODERES

A.p65 28/03/2008, 15:25146

147A a

(Ef 6,12). Esses poderes estão sob as ordens de seulíder, “o diabo”, cujas maquinações (methodeiai)eles põem em prática contra a Igreja. As armasda Igreja são a armadura e o escudo defensivos(Ef 6,13-17) e o “gládio do Espírito” (Ef 6,17).O poder* da Igreja militante encontra-se “no Se-nhor” e em “sua força onipotente” e representaos benefícios da obra de Cristo. Desse modo, aIgreja resiste ao inimigo e avança de uma posiçãode poder fundada no “já” da derrota do diabo esuas forças. Embora a terminologia da parafer-nália militar seja tirada do mundo romano, oarquétipo da guerra é claramente israelita.

A imagem completa de conflito e vitória nateologia de Paulo precisa também levar em contasuas declarações a respeito dos “elementos” ou“espíritos elementais deste mundo”, Satanás,demônios e sua descrição do pecado, da carne,da morte e da lei como inimigos de Cristo. Masos aspectos essenciais de sua perspectiva estãoclaros em suas declarações a respeito das auto-ridades e dos poderes.

Ver também ANJOS, ARCANJOS; DEMÔNIOS E

EXORCISMO; INIMIGO, INIMIZADE, ÓDIO; ELEMENTOS/ESPÍRITOS ELEMENTAIS DO MUNDO; CARNE; LEI; VIDA

E MORTE; SATANÁS, DIABO; PECADO; TRIUNFO.

BIBLIOGRAFIA: C. E. Arnold. Ephesians: Powerand Magic: The Concept of Powers in Ephesians.SNTSMS 63, Cambridge, University Press, 1989;Idem. Powers of Darkness: Principalities andPowers in Paul’s Letters. Downers Grove, IL,InterVarsity, 1992; H. Berkhof. Christ and the

Powers. Scottdale, Herald, 1977; M. Black.“pçsat §jous¤ai aÈt“ ÍpotagÆsontai”.In: Paul and Paulinism. M. D. Hooker, S. G. Wil-son (orgs.). London, S.P.C.K, 1982, 74-82; G. B.Caird. Principalities and Powers. Oxford, Claren-don, 1956; W. Carr. Angels and Principalities:The Background, Meaning and Development ofthe Pauline Phrase HAI ARCHAI KAI HAIEXOUSIAI. SNTSMS 42, Cambridge UniversityPress, 1981; O. Cullmann. The State in the NewTestament. London, 1957; M. Dibelius. DieGeisterwelt im Glauben des Paulus. Göttingen,Vandenhoeck & Ruprecht, 1909; J. Y. Lee. “Inter-preting the Powers in Pauline Thought”. NovT12, 1970, 54-69; G. H. C. Macgregor. “Principa-lities and Powers: The Cosmic Background ofPaul’s Thought”. NTS 1, 1954-1955, 17-28; O.Merk. “êrxvn”. EDNT 1,167-168; C. D. Morri-son. The Powers That Be. SBT 29, Naperville,IL, Allenson, 1960; R. J. Mouw. Politics and theBiblical Drama. Grand Rapids, Eerdmans, 1976;P. T. O’ Brien. “Principalities and Powers: Oppo-nents of the Church”. In: Biblical Interpretationand the Church. D. A. Carson (org.). Nashville,Thomas Nelson, 1984, 110-150; H. Schlier. Prin-cipalities and Powers in the New Testament. Frei-burg, Herder, 1961; J. S. Stewart. “On a Neglec-ted Emphasis in New Testament Theology”. SJT4,1951, 292-301; K. Weiss, “érxÆ”. EDNT 1,161-163; W. Wink. Naming the Powers. Phila-delphia, Fortress, 1984; J. H. Yoder. The Politicsof Jesus. Grand Rapids, Eerdmans, 1972.

D. G. REID

AUTORIDADES E PODERES

AUTORIDADES E PODERES

A.p65 28/03/2008, 15:25147

A.p65 28/03/2008, 15:25148