O AGRICULTOR NA ELECTRA DE EURÍPIDES · 2011-11-08 · ELECTRA DE EURIPIDES US Diz GRUBE 6 que o...

12
HVMANITAS—Vol XLVI 0994) JORGE DO DESERTO Universidade do Porto O AGRICULTOR NA ELECTRA DE EURÍPIDES UM HOMEM SIMPLES NO REINO DO ÓDIO As figuras secundárias do teatro trágico grego, mesmo aquelas cuja menoridade é indiscutível, podem ser proveitosamente analisadas sob variados pontos de vista. No trabalho que agora apresentamos — e que constitui um capítulo da nossa dissertação de Mestrado — tentamos mostrar como Euripides, ao decidir incluir uma figura de Agricultor na sua Electra, torna esta personagem produtiva através de uma articulação contrastante com as figuras principais do drama, Orestes e Electra. Importa esclarecer que não nos move o desejo de aprofundar as razões da escolha desta figura específica — tema suficientemente vasto para outro trabalho de igual extensão —, mas apenas o objectivo de demonstrar, a partir da personagem que temos, de que modo o poeta lhe confere eficácia e a transforma em instrumento para que, logo desde o início do drama, se tornem evidentes alguns dos sentidos fundamentais da peça. Será, portanto, uma análise extremamente funcional e muito próxima do texto aquela a que nos dedicaremos nas páginas seguintes. O texto em que baseamos o estudo é o da edição de DIGGLE. Euripides sempre se deu bem com a surpresa. É marca frequente do seu teatro que as coisas não corram segundo as expectativas de quem vê, seja porque uma cena que parece iminente é inesperadamente retar-

Transcript of O AGRICULTOR NA ELECTRA DE EURÍPIDES · 2011-11-08 · ELECTRA DE EURIPIDES US Diz GRUBE 6 que o...

HVMANITAS—Vol XLVI 0994)

JORGE DO DESERTO

Universidade do Porto

O AGRICULTOR NA ELECTRA DE EURÍPIDES

UM HOMEM SIMPLES NO REINO DO ÓDIO

As figuras secundárias do teatro trágico grego, mesmo aquelas cuja menoridade é indiscutível, podem ser proveitosamente analisadas sob variados pontos de vista. No trabalho que agora apresentamos — e que constitui um capítulo da nossa dissertação de Mestrado — tentamos mostrar como Euripides, ao decidir incluir uma figura de Agricultor na sua Electra, torna esta personagem produtiva através de uma articulação contrastante com as figuras principais do drama, Orestes e Electra.

Importa esclarecer que não nos move o desejo de aprofundar as razões da escolha desta figura específica — tema suficientemente vasto para outro trabalho de igual extensão —, mas apenas o objectivo de demonstrar, a partir da personagem que temos, de que modo o poeta lhe confere eficácia e a transforma em instrumento para que, logo desde o início do drama, se tornem evidentes alguns dos sentidos fundamentais da peça.

Será, portanto, uma análise extremamente funcional e muito próxima do texto aquela a que nos dedicaremos nas páginas seguintes.

O texto em que baseamos o estudo é o da edição de DIGGLE.

Euripides sempre se deu bem com a surpresa. É marca frequente do seu teatro que as coisas não corram segundo as expectativas de quem vê, seja porque uma cena que parece iminente é inesperadamente retar-

112 JORGE DO DESERTO

dada, seja porque, de repente, aparece uma personagem com quem

ninguém contava e a intriga muda de rumo *.

Parece, no entanto, certo que nenhuma outra peça de Euripides

terá começado de forma tão diversa das expectativas da assistência como

a Electra. Em vez de um palácio, uma choupana. Quem aparece não é

um servo, um deus, um Orestes, uma Electra. Não vemos Orestes

orando a Hermes, como em Esquilo, ou um Pedagogo mostrando a

Orestes os lugares onde ele sempre devia ter estado, como em Sófocles.

Quem, enfim, nos aparece é um homem, pobremente vestido, que relata

os antecedentes do drama. Como diz GRUBE 2 , podia ser um escravo,

mas as suas vestes são pobres demais; vai ser um choque saber que

estamos diante do marido de Electra 3.

Em primeiro lugai, convém notar que esta personagem é, não uma

causa, mas uma consequência de uma opção que a ultrapassa. Ela

decorre directamente daquela que é uma das fundamentais inovações

1 Veja-se como, nesta mesma Electra, se retarda o reconhecimento, quase até ao impossível. Ou, por outro lado, atente-se nas inesperadas entradas de Tin-dáreo e Pílades, no Orestes.

2 GRUBE, 297. 3 Deixamos de lado, aqui, a questão da cronologia relativa das duas Electros,

a de Sófocles e a de Euripides, ainda mais se as opções, quanto a este problema, têm, como diz KITTO, A Tragédia Grega (II, 259, n. 1) «mais de fé do que de razão». A questão tem sido abordada em vários tons. Frequentemente, procura-se encon­trar, na peça de um dos autores, elementos que possam ser interpretados como res­postas directas ao outro, com o objectivo de estabelecer uma relação de causalidade entre os dramas. Tal procedimento não tem, no entanto, apaziguado a controvérsia. Para a Electra de Euripides tem sido defendida a data de 413, com base nas refe­rências dos Dioscuros ao regresso de Helena ao Egipto, acompanhada por Menelau (1278-1283), o que tem sido entendido como uma antecipação, por parte de Euripides, do enredo de Helena, a apresentar em 412; outro argumento é, ainda, o anúncio, feito pelos dois irmãos, da sua partida para os mares da Sicília (1347-1348), enten­dido como referência à protecção que irão prestar à frota enviada em socorro de Nícias, no início de 413.

O último desenvolvimento desta controvérsia, valioso também pela forma como sumaria as posições anteriores, encontra-se em W. BURKERT, «Ein Datum fur Euri­pides' Elektra: Dionysia 420 v. Chr.» MH 47 (1990) 65-69, que, baseado na inter­venção dos Dioscuros e nas referências existentes, ao longo da peça, aos dois irmãos, particularmente a Castor, e no facto de, para os atenienses, estas figuras estarem ligadas à cidade de Esparta, defende uma interpretação destes passos que os rela­ciona com a situação vivida entre Atenas, Esparta e também Argos, na transição de 421 para 420. A defesa de 420 representa uma substancial antecipação em relação à data normalmente aceite.

Para o que realmente nos interessa — a eficácia da personagem na peça onde está inserida—, esta é, contudo, uma questão marginal.

ELECTRA DE EURÍPIDES 113

de - Euripides no tratamento desta história : a deslocação de Electra — e do cenário do drama — do palácio real para este ambiente cam­pestre. Esta mudança exige uma personagem que a ilustre. Como é óbvio, não faria sentido que evoluíssem neste cenário apenas as per­sonagens que o poderiam fazer, de modo igualmente produtivo, nos corredores palacianos. Além disso, para Euripides esta mudança não representa só uma questão de maquilhagem. A este novo cenário corresponde um conjunto de valoies novos, como teremos oportuni­dade de ver. Valores que o cenário, sozinho, não pode representar. É ao Agricultor que cabe dar-lhes voz, de modo a instaurar uma rela­ção contrastante com as outras personagens do drama.

São dois, ambos breves, os momentos em que está em cena. O pri­meiro corresponde à parte inicial do Prólogo (1-81). Os primeiros cinquenta e três versos constituem um monólogo, nos restantes dia­loga com Electra. O segundo momento ocorre no final do Primeiro Episódio (341-431). Aí intervêm, também, Electra e Orestes. Vejamos tudo isto com mais pormenor:

É com ele, como já se viu, que a peça abre, num monólogo de cin­quenta e três versos, que poderemos dividir em duas partes.

A primeira, convencional, coloca o espectador a par dos antece­dentes mais recuados da acção (1-19). Há, no entanto, uma variação que só aparentemente é menor: Egisto é-nos apresentado como o autor material da morte de Agamémnon:

èv ôè ôáfiaoLV

•dvrjiaxei yvvaixòç TCQòç KXvrai/LCVijarQaç òóXQM

%al rov Ovéaxov Tiaiòòç Aíyíaéov %SQÍ. (8-10)

... encontra a morte no seu palácio, diante da armadilha estendida pela esposa, Clitemnestra, atingido pelo braço do filho de Tiestes, Egisto.

A cumplicidade de Clitemnestra não é elidida e, portanto, parece tratar-se de um pormenor sem importância. No entanto, deste modo, Clitemnestra deixa de ser a figura central no crime praticado contra Agamémnon. Um pouco mais adiante, sabemos que Clitemnestra sal­vou Electra da morte que Egisto lhe preparava (27-28). Tudo isto representa uma nítida suavização da figura da mãe de Orestes. Pode­ria, ainda assim, ter pouco valor, se não verificássemos, à frente, que ela é a figura central do ódio desiquilibrado e obsessivo de Electra. Então, estas informações, dadas por uma figura insuspeita de simpatias para com a rainha, assumem a sua verdadeira importância: mostram

8

114 JORGE DO DESERTO

como os sentimentos da protagonista nascem de uma relação desfocada com a realidade4.

Mas é na segunda parte do monólogo (20-53) que esta figura ganha estatura. É aí, também, que Euripides introduz os dados novos, aqueles que justificam o aparecimento deste homem do campo. Assim, ficamos a saber que Electra lhe foi dada em casamento, depois de Clitemnestra a ter poupado a um destino fatal, como forma de evitar uma vingança posterior. É que ele, embora Micénico — facto que não se esquece de salientar (35) —, é pobre e, desse modo, toda a nobreza se esvai, mesmo que se orgu.he da raça de seus pais:

XafiTtQoi yào èç ysvoç ys, %oiqp,áxa>v òè ôf]

Tzévrjteç, ëvûsv rjvyévsi âjiókXvxai. (37-38)

Ainda que notáveis pelo nascimento, foram pobres de bens e, desse modo, a nobreza desaparece.

A isto junta-se um outro aspecto, ainda mais importante para a caracterização desta figura: a não consumação do casamento, conse­quência directa do seu respeito pelo desnível social que o separa de Electra:

Ala%vvofÂ,m yào ôXftimv âvôgãv xéxva

Xaftwv vfiQÍÇeiv, ov naxáÇioç ysyóç. (45-46)

Seria vergonhoso apossar-me da filha de homens ilustres e ultrajá-la, já que, pelo nascimento, não sou digno de tal.

Repare-se que, para ele, isto é uma coisa completamente natural. Ele vê Electra como uma donzela nobre, por quem nutre um infinito respeito. Aproveitar-se de um casamento que, em condições normais, nunca aconteceria é, pelo seu modo de ver, algo contra naturam. Tem, contudo, consciência de que os outros podem não pensar assim. Somos até levados a supor que terá já ouvido comentários menos agradáveis, daí as suas afirmações finais, devolvendo as censuras àqueles que lhas possam fazer, num jogo de palavras com o duplo sentido de yt/ãooç,5.

4 É dessa distorção e das suas consequências que surge, afinal, uma das lições do drama: de como alguém, que alimenta um obsessivo desfasamento com o real, depois de tentar, por todos os meios, alcançar o seu desiderato e de o ter conseguido, descobre que não é esse o caminho para apaziguar o seu fogo interior, ainda mais aceso. Os primeiros sinais deste caminho, é o Agricultor quem os fornece.

5 Cf. PARMENTIER, IV, 194, n. 1.

ELECTRA DE EURIPIDES US

Diz GRUBE 6 que o Agricultor deverá juntar à pena que sente de

Orestes (referida em 47-49) um não confessado temor da sua reacção, caso o casamento se tivesse consumado. Se aceitarmos isto, estaremos a minar o edifício que Euripides quer construir. A opção do Agricul­tor provém de uma lógica íntima, que não se sujeita a pressões exte­riores. É a natureza das coisas, algo tão simples como o não se mistu­rarem o azeite e a água. E um homem de convicções simples e puras, mas essas são inabaláveis.

É exactamente por esta personagem aliar o seu respeito por Electra a um conjunto de valores simples, mas firmes, que o seu contraste com a princesa, inteligentemente estabelecido por Euripides, se torna tão produtivo. É nestas relações contrastantes com personagens secundá­rias que se afirma muitas vezes, de forma mais nítida, o carácter dos protagonistas. Sabemos todos que o preto se destaca mais quando colocado sobre um fundo branco. É essa a técnica que Euripides uti­liza, ao introduzir este Agricultor.

O primeiro diálogo com Electra, ainda no Prólogo (64-81), é, desde logo, revelador disso mesmo.

Electra entra em cena, certamente reflectindo a imagem de pobreza que presentemente a aflige. Para que a sua fala faça completo sentido e se justifique a diferença de tom entre o que diz agora e mais adiante, teremos de supor que o Agricultor se ausentou por momentos. Terá ido para as traseiras da casa, como sugere GRUBE 7 . OS recuisos de encenação, este como outros, serão sempre, para nós, suposições, mas encarar a sua existência é, também, uma forma de elogiar a arte de Euripides. Trata-se de representar a vida, não de declamá-la.

A princesa vai buscar água 8. Não porque precise (57), mas porque quer lançar em rosto aos deuses a desgraça em que se encontra. Esta diferença entre necessidade e exibição é um dos pontos fortes do seu contraste com o marido. Para o Agricultor, o acto de ir buscar água decorre deste facto singelo: a água é precisa. Para Electra as coisas não poderão, nunca, ser assim tão simples.

« GRUBE, 298.

7 GRUBE, 298, n. 1.

s Ir buscar água é uma atribuição própria do escravo. Tal noção encon-tra-se já nos Poemas Homéricos. Na Ilíada (VI, 457), Heitor — que antevê, amar­gamente, um futuro de escravatura para Andrómaca —, ao descrever as tarefas que ela, sob esse estatuto, se verá obrigada a desempenhar, refere o acto de ir buscar água. Também no próprio Euripides este tópico encontra eco: o Coro de escravas troianas refere-o (7>. 205-2Ò6)— a par da partilha do leito dos seus futuros senho­res — como exemplo do sofrimento que o futuro de escravidão lhe reserva.

116 JORGE DO DESERTO

A sua é a fala do ódio, E, se Egisto é também referido, Clitemnes-tra tem direito a um verso inteiro, que cai como uma maldição :

'H yàg naváÀrjç Tvvòaqíç, fj,rjxr]Q sfirj. (60)

A maldita filha de Tindáreo, minha mãe.

Daqui ninguém inferiria que Electra ainda vive devido à inter­venção de Clitemnestra.

O Agricultor reaparece e vê, agora, Electra. Consciente, como sem­pre esteve e estará, das diferenças entre ambos e da singularidade da situação em que se encontram, lembra-lhe que não é necessário ela fazer aquilo. Ele já lho havia dito anteriormente.

O raciocínio de Electra mostra, então, a sua dupla face. A justifi­cação que agora apresenta mostra-a como esposa dedicada, que faz aquilo que é da sua competência, tratar do arranjo da casa:

"AXiç ò' ë%siç xãÇcofiev eqya' xàv òó/àOíç ô' rjfiãç %QSòJV

êÇevxQemÇeiv. Elaióvxi ò' sQyáxTji

•frvQaêev r/ôv rãvôov evQÍaxetv xaXwç. (73-76)

Tu tens já trabalho suficiente lá fora; o arranjo da casa deve ser cuidado meu. Ao trabalhador que regressa a casa, agrada-lhe encontrar, cá dentro, tudo em ordem.

Se estivéssemos a falar de um casamento normal, estaria tudo bem. Mas não é assim. Como tal, há qualquer coisa que, mesmo não sendo falsa, é, pelo menos, imperfeita. Voltando ao que diz GRUBE

9, não é que Electra esteja a mentir. Ela respeita o marido, quer ajudá-lo. Mas, para ela, as coisas não são assim tão simples.

A réplica do Agricultor é notável:

El xoi òOKEí aoi, axEÏ%E' xal yáq ov noóam

Tiriyal /usÀá&Qcov xœvô'. (77-78)

Se assim te parece, vai... Além disso, a fonte não fica longe de casa.

» GRUBE, 299. O mesmo autor (ibidem) salienta, ainda, que esta fala nos mostra, de relance, o que Electra poderia ter sido. Não parece, mesmo assim, que isso possa ser motivo de grande contentamento.

ELECTRA DE EURIPIDES 117

Para ele, as coisas têm apenas uma única e claríssima face. E a forma como, implicitamente, desvaloriza o grandiloquente protesto de Electra mostra, ainda mais, a forma difusa como esta se relaciona com a realidade.

Ao ir-se embora, o Agricultor pronuncia, ainda, algumas palavras sobre a necessidade do trabalho (80-81). Este é o valor saudavelmentè concreto que o move. E essa saúde que há-de faltar às outras perso­nagens da peça.

Quando volta de novo à cena, no final do Primeiro Episódio, vemos renovada a relação contrastante anterior. Orestes já está em cena, mas a relação triangular é imperfeita, visto que ele e o homem do campo não dialogam directamente. Trata-se de uma insuficiência dramática frequente nas cenas com três actores, aqui sem quaisquer consequências empobrecedoras: o contraste com Electra continua efec­tivo, a longa fala de Orestes constitui, por outro lado, um traço impor­tante da sua caracterização.

Ao chegar, depara-se-lhe uma situação anómala: a sua mulher fala com dois estrangeiros. A sua noção de bem e de mal é simples e directa como ele próprio. E imediatamente verbalizada:

yvvaixí xoi

ala%QÒv /net ãvòqwv êarávm veaviwv. (343-344)

É vergonhoso que uma mulher se demore a conversar com rapazes.

Compare-se esta reacção directa e proporcionada com o compoi-tamento enfático de Electra, quando confrontada, pela primeira vez, com os dois estrangeiros (215-227). Rapidamente, sem sequer pensar duas vezes, se imagina vítima de uma ardilosa emboscada. Afinal, como o resto da intriga comprovará, ardilosa emboscada, nesta peça, só a que ela própria há-de conduzir. Euripides tem o cuidado de man­ter o contraste bem vivo.

Electra tranquiliza o marido. Trata-o carinhosamente: cò (píXrars (345). No entanto, imediatamente a seguir, pede aos desconhecidos que desculpem o que ele disse:

'AXX, & j-évoi, avyyvcore TOïç sígofiévoLç. (348)

Por favor, estrangeiros, desculpai as suas palavras.

118 JORGE DO DESERTO

Se Electra não tem vergonha do marido — e Euripides talvez não quisesse ir tão longe—, há, pelo menos, a marcação de uma nítida distância entre ambos.

O Agricultor esquece imediatamente as suas preocupações iniciais. É um homem sincero, é isso que espera dos outros. A desconfiança não lhe está no carácter. Interessa-se rapidamente por notícias de Orestes. Os oito versos de diálogo esticomítico que se seguem mos­tram o interesse do Agricultor por Electra, culminando, depois, na oferta da sua casa, em mais um gesto simples e sincero. Exorta os escra­vos que acompanham Orestes e Pílades a arrumarem a bagagem dentro da choupana. E só diante do que deverá ter sido o esboço de um gesto de recusa é que avança um pouco mais e nos mostra que tem consciên­cia da sua rectidão moral:

i xai yàg si Tiévrjç ëcpvv, ovroi ró y ïjêoç òvaysvèç TtagéÇo/uai. (362-363)

Mesmo tendo nascido pobre, saberei mostrar que o meu íntimo não é rasteiro.

É então que Orestes, depois de dissipar as dúvidas sobre se será mesmo aquele o cunhado, faz um longo discurso de trinta e quatro versos. O centro da sua fala é a inexistência de uma marca que, de forma segura, separe o justo do injusto. Por arrastamento, nenhuma marca haverá também que separe, seguramente, as acções justas das acções injustas. Daí a pergunta que fica.por responder:

ílmç otiv Tí.ç avrà òiala/Sòjv ôçd-œc, XQIVEî; (373)

Como escolher, então, uma única marca que nos leve a julgar de forma correcta?

É aquele homem do campo, simultaneamente humilde e nobre, que origina estas reflexões. Mas, em Orestes, elas vão mais fundo. Devemos lembrar-nos que estamos diante de um Orestes irresoluto, que tem vindo a adiar o reconhecimento — e que há-de continuar a fazê-lo até tal se tornar insustentável. O que aqui vem à superfície é a sua insegurança quanto aos actos que, segundo o deus, deverá levar a cabo. Não é que Euripides não possa estar a dizer, aqui, palavras que considera justas, em abstracto 10, mas o facto é que elas se adaptam,

•o Como defende PARMENTIER, IV, 183.

ELECTRA DE EURÍPIDES 119

de forma admirável, ao que Orestes sente neste momento. Os espec­tadores sabiam que estava ali Orestes, estavam à espera que ele se desse a conhecei. Agora eram, afinal, confrontados com as suas dúvidas. "Iocoç ô" ãv eX-õoL (399), diz Orestes a respeito de si próprio. Ao desa­parecer dentro da choupana, Orestes deixa os espectadores sem exac­tamente saberem o que podem esperar dele. Euripides, como lhe é habitual, continua a jogar com as expectativas de quem assiste.

Repare-se, agora, no diálogo final entre Electra e o marido. De novo, para além do respeito e amizade que os liga, não há qualquer ponto de contacto entre ambos. Trata-se, de forma nítida, de um caso de diferença de valores. O Agricultor dá valor ao que tem. Electra, pelo contrário, valoriza essencialmente o que falta. Daí que os pen­samentos de um e de outro sigam caminhos paralelos, que não conse­guem tocar-se. Note-se, por exemplo, que Electra ignora a fala do Agricultor em 406-407. Se retirássemos a fala do homem do campo e uníssemos as duas de Electra, ninguém notaria a falta. É, apenas, um simulacro de diálogo n.

Mas o que torna este Agricultor uma personagem especial é que, embora não discuta com Electra, embora respeite o estatuto social superior dela, ele permanece inabalavelmente convencido daquilo em que acredita. Ainda Electra está em cena e já ele vai dizendo que há comida suficiente em casa para saciar os hóspedes pelo menos um dia (424-425). Ficamos a saber que toda aquela pressa, todas as censuras que lhe são dirigidas, representam, para ele, um exagero. É capaz de o dizer, sem com isso afrontar a mulher. Electra, pelo seu lado, con­tinua a ser o que tem sido desde o início da peça: alguém em perma­nente estado de insatisfação. Há-de continuar assim até ao final do drama.

Os últimos seis versos do Agricultor, sozinho em cena, devem merecer-nos alguma atenção:

'Ev xolç toiovroiç d' r\ví% ãv yváfirj néorji, anoTUÕ rà %Qrnj,ad? œç e%ei fj.éya aftévoç, Çêvoíç re òovvai oãfxá r èç vóaov neaòv ôanávaiai a&aar rfjç ô' êgf rjfiéoav fioQãç èç ofMxgòv fjxei' nãç yào êfj.nXrja'&slç âvrjg ô TzÀovaióç re %<b névrjç ïaov q>SQei. (426-431)

11 Existe, contudo, nas palavras de Electra, um eco vocabular da fala do Agricultor: [UXQOïç (407) / afuxQolam (408). A princesa ouviu o marido, demons-tra-o o texto, mas não deu qualquer efectiva atenção às suas palavras.

120 JORGE DO DESERTO

Sempre que penso nestes assuntos, vejo que a riqueza tem um grande valor, seja para acolher estrangeiros, seja para suportar as despesas quando se trata um doente; o sustento diário, por outro lado, precisa de pouco: todo o homem, rico ou pobre, se satisfaz com igual quinhão.

Diz BLAICKLOCK 12 que estas palavras confirmam que ele é a única

referência sã em toda a loucura que atravessa o drama. De facto, é a única personagem solidamente ligada à realidade, uma realidade de coisas simples e puras, seguras e certas. Coisas tão naturais que podem desenvolver-se em pensamentos simples, que exprimem singelos con­ceitos morais: se o destino nos une a alguém superior a nós, devemos respeitar essa pessoa tal como a sua condição o exige. Ou ainda: se uma mulher conversa com dois jovens desconhecidos, isso não está certo; se, de fora, chegam amigos, devemos imediatamente pôr à dis­posição deles tudo o que possuímos.

Para Electra, pelo contrário, esta realidade não interessa, a não ser como desagradável evidência do que nela falta. Deste modo, nunca a consegue encarar de frente. Para Orestes, ela é a antecâmara de um passo que não está preparado para dar. Tenta evitá-la, nem que seja cercando-a de palavras

Ao sair de cena, à procura do Velho, o Agricultor vai de vez. Euripides parece descartar-se inabilmente de uma personagem que toda a lógica aconselhava a de novo aparecer, quanto mais não fosse pelo motivo simples de tudo se passar em sua casa 13. Mas a lógica que aqui funciona é outra: a partir de agora, na acção, vai entrar-se no reino do excepcional. É um reino de vertigem, num crescendo que só pára quando a protagonista choca com essa definitiva parede, a morte e o horror dela. Com a instauração desta excepcionalidade, o Agricultor e os seus valores não têm lugar nesta trama. Se voltasse, Euripides não saberia o que fazer com ele.

Disse-se no início que este Agricultor era uma directa consequência do novo cenário em que Euripides enquadrava a sua história. Disse-se —• e repete-se agora —• que este cenário precisava de alguém que lhe desse espessura, que fizesse viver os seus valores. É que ao abandono

!2 BLAICKLOCK, 176. O mesmo autor (ibidem) atribui a Tindáreo, no Orestes, um papel semelhante.

13 No Êxodo, contudo, os Dioscuros determinam que o Agricultor seja largamente recompensado, em termos materiais (1286-1287). Será Pílades a encar-regar-se.dessa tarefa. No momento do apaziguamento possível, eis que o homem simples e o seu comportamento elevado são, ainda que brevemente, recordados.

ELECTRA DE EURIPIDES 121

de uma Electra, reduzida à pobreza, soma-se — e isso é muito mais importante — a sua presença junto de uma realidade que não vê. É uma realidade feita de coisas aparentemente pequenas, a simplici­dade, a justeza e verticalidade de intenções, a pureza de sentimentos. O seu contraste com a obsessão demente da protagonista é — mesmo se, inteligentemente, não recorre ao confronto directo — um dedo que se ergue, acusador.

Enquanto está em cena, este Agricultor representa toda aquela limpidez a que Electra não acede, tudo aquilo que Orestes não é capaz de compreender. Rodeando-os de um mundo sólido e firme, Euripides salienta, ainda mais, o terrível desamparo dos dois irmãos.

BIBLIOGRAFIA CITADA

BLAICKLOCK, E. M., The Male Characters of Euripides. A Study in Realism. Wel­lington, 1952.

BURKERT, W., "Ein Datum fur Euripides' Elektra: Dionysia 420 v. Chr." MH 47 (1990) 65-69.

GRUBE, G.M.A., The Drama of Euripides, London, 1941, reimpr. 1961. KITTO, H.D.F., Greek Tragedy, London, 31961, reimpr. 1966 (trad. port. A Tragédia

Grega, Coimbra, 1972). PARMENTIER, L., Euripide. Electre. Paris, s1982.