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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Faculdade de Educação
LUCIANA PALHARES DE SOUZA
AUTONOMIA ZAPATISTA: ELEMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO ANTI-HEGEMÔNICA
CAMPINAS2019
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LUCIANA PALHARES DE SOUZA
AUTONOMIA ZAPATISTA:
ELEMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO ANTI-HEGEMÔNICA
Dissertação de Mestrado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação em Educaçãoda Faculdade de Educação daUniversidade Estadual de Campinas comoparte dos requisitos exigidos para aobtenção do título de Mestra emEducação, na área de concentração deEducação.
Supervisora/Orientadora: PROFª. DRª. CAROLINA DE ROIG CATINI
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DADISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ESTUDANTE LUCIANAPALHARES DE SOUZA E ORIENTADA PELA PROFESSORADOUTORA CAROLINA DE ROIG CATINI.
CAMPINAS2019
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
AUTONOMIA ZAPATISTA:
ELEMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO ANTI-HEGEMÔNICA
Autora: Luciana Palhares de Souza
COMISSÃO JULGADORA:
Profª Drª Carolina de Roig CatiniProf. Dr Alexander Maximilian Hilsenbeck FilhoProf. Dr. Gustavo Moura de Cavalcanti Mello
A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo deDissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.
2019
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AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente à Carolina Catini, pela amizade e pela orientação, por abrir a
possibilidade de um estudo que esteve para além da formação acadêmica e pela leitura, ao
mesmo tempo rigorosa e generosa. Aos professores Gustavo Moura, Cassio Brancaleone e
Alexander Hilsenbeck, pelas trocas, leituras e sugestões, que certamente me ajudaram a
delinear o caminho da pesquisa. Às professoras Fabiana Rodrigues, Luciana Henrique e Maria
Orlanda Pinassi, pela disponibilidade de ler e conversar sobre o trabalho.
Ao Rafa, por atravessar essas águas lado a lado, nas agitações e calmarias, pelas
provocações e questionamentos, que a gente siga se acompanhando e aprendendo a escutar e a
mirar. À minha mãe, Odana, ao meu pai, Milton, e à minha irmã, Elisa, pelo apoio, pelas
oportunidades e pelos momentos juntos. À família Palhares, sempre tão presente, pelos
meandros daquilo que nos forma, seus nós e como enfrentá-los. Agradeço em especial à vó
Suzana, por me ensinar a olhar as pequenas belezas da vida para trabalhar o espírito.
Às minhas outras irmãs, Flor, Julia, Laura, Mafe, Liz, Lila, Lai e Pacata, pela presença
essencial, pelas leituras e conversas, pelo aprendizado conjunto de que só é possível nos
fortalecermos se compartilharmos a vida e as lutas. Às queridas amigas de bruxaria, pelo
desafio dos exercícios coletivos nesse tempo tão fragmentado. Aos queridos amigos Bruno,
Fernando e Zé, pela caminhada, conversas, cervejas e resistências compartilhadas.
À Luisa, à Mi e ao Ian, obrigada pelas trocas, cumplicidade e amizade, fundamentais
nesses anos de mestrado que passamos juntos. Ao Grupo de Estudos Educação Crítica, pelos
momentos importantes de leituras e conversas; sem vocês não seria possível compreender
Benjamin da mesma maneira.
À Nina e ao Vagner, pela escuta e pelo cuidado.
Esta pesquisa contou com o apoio financeiro do CNPq.
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“Una luna en cada pecho regalaron los dioses a las mujeres madres, paraque alimentaran de sueño a los hombres y mujeres nuevos. En ellos viene la
historia y la memoria, sin ellos se come la muerte y el olvido. Tiene latierra, nuestra madre grande, dos pechos para que los hombres y mujeres
aprendan a soñar. Aprendiendo a soñar aprenden a hacerse grandes, ahacerse dignos, aprenden a luchar. Por eso cuando los hombres y mujeres
verdaderos dicen "vamos a soñar" dicen y se dicen ‘vamos a luchar’”.
Viejo AntonioLa historia de los sueños
"Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega auma experiência cósmica que este último mal conhece. (...) O trato antigocom o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez. É embriaguez,
decerto, a experiência na qual nos asseguramos unicamente do maispróximo e do mais distante, e nunca de um sem o outro. Isso quer dizer,
porém, que somente na comunidade o homem pode comunicar emembriaguez com o cosmos. É o ameaçador descaminho dos modernos
considerar essa experiência como irrelevante, como descartável, e deixá-lapor conta do indivíduo como devaneio místico em belas noites estreladas.
Não, ela chega sempre e sempre de novo a seu termo de vencimento, e entãopovos e gerações lhe escapam tão pouco como se patenteou da maneira
mais terrível na última guerra, que foi um ensaio de novos, inauditosesponsais com as potências cósmicas. Massas humanas, gases, forças
elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de alta frequênciaatravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo eprofundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-
se poços sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmoscumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da
técnica. Mas, porque a avidez de lucro da classe dominante pensavaresgatar nela sua vontade, a técnica traiu a humanidade e transformou o
leito de núpcias em um mar de sangue. Dominação da Natureza, assimensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica. Quem, porém,
confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das criançaspelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação, antes de
tudo, a indispensável ordenação da relação entre as gerações e, portanto,se se quer falar de dominação, a dominação das relações entre gerações, e
não das crianças? E assim também a técnica não é dominação da Natureza:é dominação da relação entre Natureza e humanidade (...)"
Walter Benjamin"A caminho do Planetário"
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RESUMO
A proposta central desta dissertação é compreender a relação entre as concepções deautonomia e educação segundo a perspectiva zapatista. Para isso, analisamos comunicados erelatos de integrantes e porta-vozes desse movimento indígena e mexicano, que sistematizamquestões importantes para pensar os sentidos desses dois conceitos para as lutasanticapitalistas. Se, por um lado, é recorrente relacioná-los, por outro, percebe-se que a noçãode autonomia recebe diferentes matizes no debate sobre a educação. Nos interessa, no presenteestudo, delimitar o seu sentido anti-hegemônico e antissistêmico. Consideramos que o próprioprocesso organizativo das comunidades zapatistas possui um caráter educativo, pelo qualprefiguram-se novas relações sociais. Procuramos refletir também sobre as possibilidades dereconstrução da experiência coletiva como processo de formação para resistir à barbárie denosso tempo e sobre a importância, presente nos textos zapatistas, de se apropriar da históriapela perspectiva “dos de abaixo”. As leituras dos textos “Experiência e Pobreza” (1933), “ONarrador” (1936) e das teses “Sobre o conceito da história” (1940), de Walter Benjamin, nosauxiliam nessa reflexão.
Palavras-chave: zapatismo; educação; autonomia; experiência; história.
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ABSTRACT
The main purpose of this dissertation is to understand the relation between the conceptions ofautonomy and education according to the Zapatista view. In order to do this, we analyze thecommuniques and accounts of members and spokespersons of this indigenous and Mexicanmovement, which systematize important issues to think the meanings of these two concepts forthe anticapitalist struggles. If it is recurrent to relate them, it has also been given differentmeanings recurrently. The notion of autonomy receives different nuances in the debate oneducation. In the present study, we are interested in defining its anti-hegemonic andantisystemic meaning. In order to do so, we consider that the organizational process of theZapatista communities has an educational character, prefiguring new social relations. In theZapatista texts, we also sought to reflect on the possibilities of reconstructing the collectiveexperience as a process of formation to resist the barbarism of our age and on the importanceof appropriating history through the perspective of the "below". The reading of the WalterBenjamin's texts "Experience and Poverty" (1933), "The Storyteller" (1936) and theses "Onthe Concept of History" (1940) helped us in this reflection.
Key-words: zapatismo; education; autonomy; experience; history
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RESUMEN
La propuesta central de esta disertación es comprender la relación entre las concepciones deautonomía y educación según la perspectiva zapatista. Para ello, analizamos comunicados yrelatos de integrantes y portavoces de ese movimiento indígena y mexicano, que sistematizancuestiones importantes para pensar los sentidos de esos dos conceptos para las luchasanticapitalistas. Si, por un lado, es recurrente relacionarlos, por otro, se percibe que la nociónde autonomía recibe diferentes matices en el debate acerca de la educación. Nos interesa, en elpresente estudio, delimitar su sentido antihegemónico y antisistémico. Consideramos que elpropio proceso organizativo de las comunidades zapatistas ejerce una función educativa, por elcual prefiguranse nuevas relaciones sociales. Se trata de reflexionar también sobre lasposibilidades de reconstrucción de la experiencia colectiva como proceso de formación pararesistir la barbarie de nuestro tiempo y sobre la importancia, presente en los textos zapatistas,de apropiarse de la historia por la perspectiva de los de abajo. Las lecturas de los textos"Experiencia y Pobreza" (1933), "El Narrador" (1936) y de las tesis "Sobre el concepto de lahistoria" (1940), de Walter Benjamin, nos auxilian en esa reflexión.
Palabras-clave: zapatismo; educación; autonomía; experiencia; historia.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Mapa do México com a identificação das vinte quatro províncias...........................29
Figura 2- Mapa com identificação das regiões econômicas do estado de Chiapas....................30
Figura 3- Mapa com identificação da presença de povos indígenas em Chiapas.......................31
Figura 4- Cartaz do aniversário de 35 anos do EZLN...............................................................37
Figura 5 - Mapa com a localização dos cinco Caracóis no estado de Chiapas..........................63
Figura 6 - V Congresso Nacional Indígena (dezembro de 2016)..............................................71
Figura 7 – I Encontro de los Zapatistas y las ConCiencias por la Humanidad..........................71
Figura 8 – Ilustração da Hidra Capitalista utilizada no livro publicado pelo EZLN com textos utilizados durante o Seminário................................................................................................102
Figura 9 – Cartaz do I Encontro los Zapatistas y las Conciencias Por la Humanidad.............109
Figura 10 – Ilustração zapatista...............................................................................................112
Figura 11 – Visão externa das salas de aula da Escuela Autónoma Rebelde Zapatista La Realidad...................................................................................................................................119
Figura 12 – Visão externa das salas de aula da Escuela Autónoma Rebelde Zapatista La Realidad...................................................................................................................................119
Figura 13 – Visão externa das salas de aula da Escuela Autónoma Rebelde Zapatista La Realidad...................................................................................................................................120
Figura 14 – Tenda (a frente) e Escola autônoma (ao fundo) em La Realidad.........................120
Figura 15 – Entrada da escola e clínica autônomas em La Realidad.......................................121
Figura 16 – Entrada da escola e clínica autônomas em La Realidad.......................................122
LISTA DE TABELAS
Tabela 1– Caracóis zapatistas e sua organização política e territorial em Chiapas....................61
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ALCA - Área de Livre Comércio das Américas
APPO - assembleia Popular dos Povos de Oaxaca
ARIC - Associação Rural de Interesse Coletivo
CEDOZ - Centro de Documentação Sobre Zapatismo
CEIEG - Comité Estatal de Información Estadística y Geográfica de Chiapas
CELMRAZ - Centro de Español y Lenguas Mayas Rebelde Autónomo Zapatista (em espanhol)
CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CCRI-CG - Comitê Clandestino Revolucionário Indígena - Comando Geral do EZLN
CIG - Conselho Indígena de Governo
CNI - Congreso Nacional Indígena (em espanhol)
Cocopa - Comissão de Concordia e Pacificação
Conai - Comissão Nacional de Intermediação
EPRAZ - Escuelas Primarias Rebeldes Autónomas Zapatistas (em espanhol)
ESRAZ - Escuela Secundaria Rebelde Autónoma Zapatista Primero de Enero (em espanhol)
EZLN - Exército Zapatista de Libertação Nacional
FLN - Forças de Libertação Nacional
FRAYBA - Centro de Direitos Humanos "Fray Bartolomé de las Casas"
FZLN - Frente Zapatista de Libertação Nacional
INEGI - Instituto Nacional de Estadística y Geografia
JBG - Juntas de Bom Governo
MAREZ – Municípios Autônomos Rebeldes Zapatistas
MIRA - Movimiento Indígena Revolucionario Antizapatista (em espanhol)
MLN - Movimento para a Libertação Nacional
Morena - Movimento Regeneração Nacional
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MST - Movimento dos Trabalhadores sem Terra
MTST - Movimento dos Trabalhadores sem Teto
NAFTA - Tratado Norte-Americano de Livre Comércio
ONG - Organização Não Governamental
PAN - Partido da Ação Nacional
PRD - Partido da Revolução Democrática
PRI - Partido Revolucionário Institucional
SERAZ-LN – Sistema Educativo Rebelde Autônomo Zapatista de Libertação Nacional
UNEM - Unión de Maestros de la Nueva Educación para México (em espanhol)
UNESCO - United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (em inglês)
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SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................................................14
1. Problemática e percurso investigativo...............................................................................14
2. Procedimentos de investigação e exposição da pesquisa...................................................23
Capítulo 1 – O movimento zapatista e a resistência anticapitalista: uma perspectiva histórica.28
1.1 - O Exército Zapatista e a história de resistência indígena em Chiapas...........................38
1.2. As declarações da Selva Lacandona e o processo de construção da autonomia zapatista...............................................................................................................................................49
Capítulo 2 – A construção da autonomia como processo educativo anti-hegemônico: uma análise a partir dos comunicados zapatistas...............................................................................72
2.1. Ellos y Nosotros: sobre o caráter anti-hegemônico nos exercícios de autonomia..........75
2.2. Escuelita Zapatista..........................................................................................................89
2.3. Seminário “El Pensamiento Crítico Frente a la Hidra Capitalista”...............................102
2.4 Conciencias e Comparte................................................................................................108
Capítulo 3 – O projeto de educação zapatista e a formação para a autonomia.......................115
3.1. Educação contra o Estado............................................................................................122
3.2. A organização da autonomia educativa: o Sistema Educativo Rebelde Autônomo Zapatista de Libertação Nacional (SERAZ-LN).................................................................133
Considerações Finais...............................................................................................................142
Referências Bibliográficas.......................................................................................................148
ANEXO...................................................................................................................................156
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Introdução
1. Problemática e percurso investigativo
A presente dissertação de mestrado se propôs a analisar as concepções de autonomia e
educação a partir da perspectiva do movimento zapatista e seus comunicados. As perguntas que
orientam nosso percurso investigativo podem ser colocadas da seguinte maneira: o que os zapatistas
comunicam sobre o processo educativo implicado nos exercícios de autonomia organizados desde as
comunidades indígenas? Isto é, qual a concepção de autonomia política e de formação enunciada
pelo próprio movimento? E, considerando que o projeto de autonomia desse movimento inclui a
articulação com outras organizações, quais concepções e princípios os zapatistas procuram
comunicar no intuito de construir uma resistência anticapitalista e anti-hegemônica internacional?
Consideramos que essa reflexão pode contribuir para futuras investigações e práticas no âmbito da
educação crítica voltada para a emancipação social.
Nossa hipótese é que educação e autonomia estão necessariamente ligadas em um contexto
no qual a luta por emancipação se manifesta em práticas onde prefiguram-se novas relações sociais,
de onde emergem processos individuais e coletivos de aprendizagem. Através da análise de
documentos disponibilizados pelo movimento e da bibliografia consultada, buscamos compreender o
caráter educativo de tais práticas sob dois aspectos. O primeiro envolve as atividades nas quais o
movimento dialoga com a sociedade, já o segundo consiste no processo pelo qual as comunidades
indígenas constroem seu autogoverno.
Assim, procuramos pensar a relação entre educação e autonomia a partir das atividades
abertas para indivíduos e coletivos que não são orgânicos ao movimento. Em grande parte, estes
correspondem aos simpatizantes ou aderentes à Sexta Declaração da Selva Lacandona – documento
escrito em 2005 pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) – os quais, enquanto
apoiadores e organizações de diversas nacionalidades e do México, formam a chamada Sexta
Nacional e Internacional. Optamos por concentrar nossa análise em quatro atividades organizadas
entre o período de 2013 a 2017: a chamada Escuelita Zapatista (2013 e 2015), o Seminário “El
Pensamiento Crítico Frente a la Hidra Capitalista” (2015), o Festival CompARTE por la
Humanidad e o Encontro L@s Zapatistas y Las ConCIENCIAS Por La Humanidad (ambos
realizados em 2016 e 2017).
No âmbito das comunidades zapatistas, o caráter educativo pode ser entendido como a
formação dos sujeitos pela luta, pelo trabalho na comunidade e pelas relações sociais que dão sentido
às experiências coletivas. Neste aspecto, a relação entre educação e autonomia pôde ser analisada a
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partir da investigação sobre o projeto de educação que deu origem às escolas autônomas,
procurando também colocar questões que vão além da forma escolar, já que a escola é apenas um
dos espaços, entre outros, onde se concebe a formação para a autonomia.
Nesse processo de investigação, tratamos de delimitar o debate teórico sobre a noção de
autonomia, especificamente a indígena. Existem muitas formas de pensar esse conceito e seu caráter
polissêmico dá margem a apropriações que acabam por obscurecer certas práticas e projetos
políticos. A reflexão sobre a variação do seu significado aparece com frequência nas discussões de
movimentos antissistêmicos influenciados pelos pensamentos marxista e anarquista, mas também
pelas experiências populares da América Latina, entre as quais podemos destacar aquelas conduzidas
pelos povos originários.
Essa, sem dúvida, é uma temática de contornos pouco claros, cuja abordagem no campo da
esquerda pode ir desde a autodeterminação dos povos, passando pela autonomia relativa ao Estado,
até a alienação do trabalhador frente a reestruturação produtiva do capital ou ao problema da
consciência de classe. Ao mesmo tempo, a discussão sobre esse conceito remonta a um debate
histórico que envolve a luta por emancipação humana1 e a construção de formas de organização
social para além do capitalismo.
A noção de autonomia nesse campo político – ora relacionada à exaltação da ação direta, ora
associada à ação livre da classe trabalhadora como pré-condição da democracia socialista – segue até
os dias atuais permeada pelos diversos momentos da luta anticapitalista e suas contradições. Após a
queda do chamado socialismo real e com o avanço das políticas neoliberais, nota-se um processo de
ruptura com a tradição política e teórica da esquerda entre os anos 1980 e 1990, o qual se traduz
“no desenvolvimento de problematizações teóricas que tentam abrir o conceito de luta de classes,
ancorado de maneira clássica, como se sabe, na centralidade do Estado para o processo
revolucionário” (TISCHLER, 2011, p. 338).
Com a irrupção de movimentos sociais latino-americanos, sobretudo na década de 1990,
outros espaços de organização na cidade e no campo colocaram em questão a atuação dos partidos e
sindicatos de esquerda, trazendo a ideia de autonomia coletiva como processo de organização e
resistência. Nesse contexto, em que muitos defendiam perspectivas teóricas como “o fim da
história”2, o levante zapatista de janeiro de 1994 inspirou organizações populares em todo o mundo
pela radicalidade com relação à negação do Estado e das políticas neoliberais. Ao analisar as
1 “Toda emancipação é redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem. A emancipação política é aredução do homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, acidadão, a pessoa moral. Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual realtiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vidaempírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizadosuas “forces propres” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a forçasocial na forma da força política” (MARX, 2010 [1843], p. 54)
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concepções de autonomia e democracia a partir das lutas indígenas no México, principalmente a do
movimento zapatista, Esteva (2011) chama a atenção para a longa tradição da palavra “autonomia”
nos movimentos populares mexicanos, a qual se afasta da tradição autonomista europeia.
La lucha por la autonomía empezó en realidad desde antes de que el país existiera yconsiguió que al final del periodo colonial los territorios bajo control y gobierno de lospueblos fueran llamados “repúblicas de indios”. En el siglo XIX se registró todo género derebeliones, siempre asociadas con la autonomía, y el XX se inauguró con una revoluciónsocial marcada por ese tema: la “reconstitución de los ejidos” que levantó a los pueblosreivindicaba explícitamente los regímenes comunales autónomos que lograronreconstituirse en la Colonia y se desmantelaron con las leyes de Reforma y la dictadura dePorfirio Díaz. La autonomía universitaria, en la década de 1920, forjó evocaciones yconnotaciones que reaparecieron en la década de 1970. En 1985 y 1994 se unieron a laexpresión “sociedad civil” para acotar la nueva semántica de la transformación social, enla que no se entienden una sin la otra. El levantamiento zapatista trajo la autonomía alcentro del debate político en México. Mientras el gobierno la rechazaba de plano, seafirmó como demanda política popular (ESTEVA, 2011, pp. 122-123).
As referências à “sociedade civil”, tão presentes nos discursos zapatistas, ao mesmo tempo
que encontram eco em estudos sobre a autonomia e organizações autônomas, também são fonte de
confusão, devido à controversa história conceitual e prática relacionadas à expressão, explica o
autor. Para ele, seu significado se define como a esfera da sociedade que se organiza de forma
autônoma, independente e antagônica com relação ao Estado (ESTEVA, 2011, p. 123). Tais
características de organização existem em muitas comunidades indígenas e, de forma menos
recorrente, em outros grupos rurais ou urbanos. Na maioria dessas experiências, têm-se praticado a
autonomia “sempre a contrapelo do regime dominante” – como afirma Esteva (2011), evocando a
noção de história de Walter Benjamin – e apesar da contínua exposição da vida cotidiana às
contradições e dissoluções provocadas tanto pelo regime jurídico-político imposto pelo Estado,
quanto pela exploração econômica realizada em função dos interesses de livre mercado (idem, p.
126).
Segundo essa leitura, a aspiração autonômica protagonizada pela resistência dos povos
originários do México não se inclui na democracia formal e também não se restringe aos seus
movimentos, que possuem objetivos e alcances próprios. Além disso, seus objetivos excluem a
possibilidade de adequar-se às formas do regime capitalista.
(…) lo que parecen buscar actualmente muchos movimientos populares en México, que seresisten a rendir sus experiencias de autogobierno real a una democracia individualista yestadística, manipulada por partidos y medios, que en parte alguna ha sido capaz de
2 Teoria retomada no final dos anos 1980 por autores, como o estado-unidense Francis Fukuyama, que sugerem o fimdos processos históricos enquanto processos de transformações sociais e políticas. Tal ideia ressurge no contexto daqueda do Muro de Berlim, quando acreditava-se que os antagonismos entre projetos políticos capitalistas e socialistashavia terminado e que a consequência seria a estabilidade sob o capitalismo.
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cumplir lo que ofrecen sus defensores. Al viejo lema del centralismo democrático, estánoponiendo el descentralismo: parecen convencidos de que la democracia depende dellocalismo, de las áreas locales em que la gente vive (idem, p. 141-142).
A perspectiva de uma outra democracia no México, determinada pelos processos vividos a
partir do âmbito local é, portanto, descentralizada, tal como interpreta Gustavo Esteva. A proposta
comunalista impulsionada pelas experiências das comunidades indígenas do estado de Oaxaca no
México, praticada também em outras regiões, traz importantes elementos para essa reflexão.
Enquanto corrente importante do movimento indígena nacional, o comunalismo possui entre seus
principais teóricos Gustavo Esteva e Benjamin Maldonado, entre outros3. Ambos, ao trazerem o
conceito de comunalidad4 expandem um pouco mais a compreensão sobre o significado de
autonomia indígena. Segundo Maldonado (2002):
(…) la comunalidad sigue siendo la naturaleza propia del ser indio y de la estructura de lacomunidad india, y la estructura comunitaria es una estructura de coerción interna propiapara la autonomía. Las ideologías sociales revolucionarias más avanzadas anhelanconstruir un mundo en el que la gente tenga poder, se relacionen con sus vecinos paraorganizar y ejercer el poder, la producción, las necesidades comunes y discutir losproblemas, que esté signada por la solidaridad, que las personas estén dispuestas alsacrificio por construir y defender la colectividad, que sepa recibir de cada quien según suscapacidades y dar a cada quien según sus necesidades, que tenga la fortaleza para impedirque la explotación vuelva contra ellos una vez vencidos los explotadores por la revolución.Las comunidades indias, como observaron grupos anarquistas europeos en la sierramazateca en 1998 y 1999, tienen eso: una asamblea de todos, una capacidad de trabajarintensamente por el colectivo, una larga experiencia de ayuda mutua además de unaidentidad generada por una cultura compartida durante siglos de historia. Esa vivenciaautonómica, basada en la comunalidad, es la que el Estado mexicano ha tratado decontener a través de diversos mecanismos y estructuras (MALDONADO, 2002, p. 121).
A comunalidad, como princípio ou condição estrutural das comunidades indígenas, expressa
um modo de vida baseado na identidade coletiva, em que se articulam os saberes e valores
comunitários com as formas de organização política, social e cultural (BRANCO, 2015). Assim, mais
do que a dimensão local ou territorial, o elemento autogestionário é aquele que sustenta ou dá
suporte para a concepção de autonomia indígena. Como afirma Maldonado, não é possível existir
autonomia sem autogestão, ou seja, ser autônomo senão por meio da autogestão (MALDONADO,
2002).
A comunalidad está fundamentada em quatro aspectos – território, poder, trabalho e disfrute
comunais – segundo o mesmo autor. Tem como base a cultura e constitui o sentido de vida dos
3 Cf. também Floriberto Díaz, Jaime Martínez Luna e Carlos Beas.
4 “Por comunalidad devemos entender o caráter coletivo, a identidade, os saberes comunitários, que articula suasformas de organização (o trabalho, o território, a festa e o poder comunal) com os valores da vida em comunidade”(BRANCO, 2015, p. 152).
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povos indígenas, tanto em sua expressão local, quanto em sua expressão étnica. Nessa lógica
impressa nas relações sociais das comunidades, o agir e o pensar são necessariamente coletivos e não
individuais. A partir deles, o exercício de certa autonomia e da prática da autogestão, em graus
diferentes, são duas características dessa forma de resistência que fortalecem e impelem os povos
indígenas a recriarem e adaptarem suas instituições políticas (Idem, p. 68). Como escreve
Maldonado:
Las comunidades indias han resistido a la invasión, y dos características de essaresistencia han sido el ejercicio de cierta autonomía y la práctica en distintos grados de laautogestión. Pero la cultura de resistencia india ha implicado la creación y adaptación deinstituciones políticas, fortaleciendo diversas formas de autonomía defensiva, que ahoraavanza hacia su transformación en autonomía constructiva. En ese sentido, la creatividadautonómica requiere ser pensada y desarrollada para que los pueblos indios se re-creen emfunción de sus objetivos en la perspectiva de su historia política. La defensa del derecho ala autodeterminación es, por tanto, uno de los aspectos actuales de la propuestacomunalista. Pero esta defensa no implica exigir su reconocimiento al Estado, al menos nohasta ahora, y esto no se debe a falta de discusión o fortaleza (Ibidem, p. 68).
Para Maldonado (2002), o Estado confisca as condições necessárias para a autonomia,
entendidas como o princípio de ajuda mútua, o poder nas mãos do coletivo representado pelo espaço
político da assembleia, a vontade de servir gratuitamente à comunidade e a defesa do território e
cultura mantidos ao longo da história. Também atenta para o fato de que “Vivir en autonomía parece
ser la última propuesta pacífica de los pueblos indios de México (a pesar de que fue detonada por
las armas zapatistas) para liberarse de la dominación” (MALDONADO, 2002, p. 77).
Ao voltarmos nossa atenção para o contexto brasileiro, evidencia-se a luta histórica de
diversos movimentos indígenas e quilombolas pela sobrevivência, cultura e demarcação de seus
territórios. Se cultura e território são essenciais para o exercício e fortalecimento das autonomias
indígenas, é importante lembrar que no Brasil comunidades inteiras sofreram a desterritorialização
violenta realizada pelos sucessivos governos desde a colonização. Apesar da maior parte dos seus
territórios de ocupação estarem completamente degradados – pelo agronegócio, desmatamento e
poluição dos rios – para muitos desses povos, a ideia de contraposição ao Estado ressoa nas formas
de conduzir a política organizada desde as comunidades, mesmo sendo a reivindicação por direitos
pauta central de suas lutas.
Com relação aos movimentos populares tradicionais5, não contamos com uma longa
experiência de lutas autônomas em relação a partidos ou centrais sindicais – ou seja, que não estejam
atrelados a estes, do ponto de vista financeiro ou político; que dispensem a estrutura organizativa
5 Neste caso, entendemos como movimentos populares tradicionais como aqueles que direcionam suas reivindicaçõespor direitos básicos (como terra, moradia, saúde e educação) ao Estado, sendo os mais expressivos, no caso brasileiro,o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST).
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hierárquica e a figura dos militantes profissionais, contando com esferas de decisão coletiva e a
rotatividade de funções; e que se sustentem exclusivamente pelos princípios da autogestão (CATINI,
2015, p. 902). Entretanto, há alguns anos, a questão da autonomia estremeceu as bases das
organizações da esquerda brasileira, tanto nas análises de conjuntura quanto nas discussões sobre
estratégia e tática. Tais debates se intensificam sobretudo com as manifestações de junho de 2013 e
as ocupações de escolas por estudantes secundaristas no final de 2015, cujos desdobramentos a nível
nacional se deram no sentido da multiplicação de novos movimentos sociais, mas também na sua
fragmentação e isolamento6, próprias do nosso tempo.
Fragmentação, isolamento, individualismo, precarização das relações de trabalho,
fortalecimento do fundamentalismo religioso, falta de qualquer garantia de direitos, aumento da
violência policial nas periferias são reflexos da barbarização das relações sociais. Contra os padrões
capitalistas de crescimento econômico que tornam a vida cada vez mais insustentável, os coletivos e
organizações da periferia do capital, ao mesmo tempo que trazem a carga de seu tempo histórico,
buscam outras saídas para resistir ao amoldamento imposto pelas formas sociais hegemônicas.
No intuito de problematizar nosso tema de estudo em relação ao contexto atual, nos parece
necessário olhar para a autonomia e a educação enquanto conceitos que traduzem formas sociais,
cuja apropriação também pode obedecer a um discurso que acaba por obscurecer os reais interesses
e práticas do projeto neoliberal. Nesse sentido, o modelo de reestruturação produtiva, baseado no
toyotismo7, constrói sua base ideológica nas ideias de flexibilização, descentralização e autonomia
democrática, onde o gestor (ou o capitalista) dissimula as relações de poder, a precarização e a
exploração ao demandar do trabalhador uma maior responsabilidade em relação ao controle sobre o
próprio trabalho.
Surge, portanto, o envolvimento interativo que aumenta ainda mais o estranhamento dotrabalho, ampliando as formas modernas de fetichismo, distanciando ainda mais asubjetividade do exercício de uma cotidianidade autêntica e autodeterminada.Na verdade, com a aparência de um despotismo mais brando, a sociedade produtora demercadorias torna, desde o seu nível microcósmico, dado pela fábrica toyotista, ainda maisprofunda e interiorizada a condição do estranhamento presente na subjetividade operária edissemina novas objetivações fetichizadas que se impõem à classe-que-vive-do-trabalho.Um exemplo forte é dado pela necessidade crescente de qualificar-se melhor e preparar-semais para conseguir trabalho (ANTUNES e ALVES, 2004, p. 347).
As exigências de novas qualificações profissionais no contexto da reestruturação produtiva –
como a autonomia, a liderança mediadora e a pró-atividade – são extremamente relativas, já que essa
6 Cf. o dossiê “Reflexões sobre a autonomia”, publicado no site Passa Palavra entre março e maio de 2015. Disponívelem: Acesso em: 31 de outubro de 2017.
7 “‘Modelo’ que, desenvolvido na Toyota a partir de 1953, constitui-se enquanto paradigma no processo dereestruturação produtiva verificado no Ocidente a partir da década de 1980” (BATISTA e ALVES, 2009).
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participação e engajamento estão atrelados à manipulação e ao controle dos donos do capital em
função dos próprios interesses. Diante da complexidade de novas formas de relações sociais e das
transformações no mundo do trabalho, há também um reordenamento do ponto de vista das políticas
para a educação. Isso fica explícito nos documentos das agências multilaterais como o Banco
Mundial, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO8),
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e a Organização Internacional do
Trabalho, as quais “recomendam, financiam e supervisionam as políticas educacionais dos países das
periferias, que procuram adaptar-se de forma subalterna à mundialização do capital” (BATISTA e
ALVES, 2009, p. 5). Dentro desse pacote de recomendações, a lógica privatista obteve livre acesso
às políticas para a educação. Como afirma Catini (2015)
Dentre diversos mecanismos para gerir a crise, a política neoliberal operou um processo deintensificação das privatizações, incluindo os serviços sociais, mobilizando um novoconceito de “serviço público não estatal”, com ampliação das “parcerias público-privadas”.Quem coloca em prática a privatização são organizações de diversos tipos, conhecidaspopularmente como ONGs (organizações não governamentais), que passam a competirpelo uso de financiamentos privados ou públicos para fazer a gestão privada de taisserviços sociais como a educação, a assistência social, a saúde, etc (idem, p. 903).
No caso do Brasil, a consolidação das políticas neoliberais nos anos 90 e as reformas
educacionais promovidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, sob influência de organismos
internacionais, como foi mencionado acima, tiveram grande impacto sobre as práticas de educação
não formal exercidas pela sociedade civil. Nesse contexto, as experiências latino-americanas de
educação popular – que haviam tido um papel fundamental nos processos de alfabetização massiva
de jovens e adultos dos anos 60 e 70 – foram cooptadas nas décadas seguintes através de programas
monitorados pelo Banco Mundial, cuja finalidade era a adequação dos modelos educacionais aos
interesses do capitalismo transnacional (KOROL, 2006).
Brandão (1984), ao tratar das suposições do senso comum acerca da educação popular no
Brasil, chamou a atenção para a necessidade de se levantar suspeitas sobre as “construções cômodas
nem sempre reais” (BRANDÃO, 1984, p. 172). O autor afirma que simples dicotomias entre Estado
e sociedade civil, oficial e alternativo, manipulação e participação, entre outras formulações bipolares
e antagônicas, deixam de revelar os projetos e interesses que fundamentam a educação popular
enquanto campo de atuação a partir dos anos 1980, momento em que se desfaz a clara contraposição
ao Estado autoritário e se criam novas formas sociais, nas quais interagem diferentes estruturas e
agentes em projetos educativos.
8 Sigla em inglês: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.
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Tal como acontece com outros domínios de práticas sociais de mediação, em cadamomento de sua história, a educação dirigida a setores populares existe como um espaçode ideias, agências e práticas que entre si estabelecem modos de aliança, evitação ouconcorrência, pelo poder de intervenção de classe através da transmissão deconhecimentos-valores e da organização de categorias, grupos e comunidades populares(BRANDÃO, 1984, p. 173).
Diante das disputas entre práticas, agências e ideias, e da complexidade das novas formas de
relações sociais num mesmo território, a educação formal e não formal têm enfrentado sérias
dificuldades. De acordo com Catini (2015), “a prática política demanda uma associação com a
interpretação crítica do atual momento histórico, como meio para lidar com as contradições sem
enveredar para a tendência de conformação à ordem” (CATINI, 2015, p. 904). Nos parece coerente,
então, compreender a educação também como prática política, pela qual perpassa as relações
estabelecidas com o trabalho, o processo de conhecimento individual e coletivo, as formas de
sociabilidade e os desafios da luta cotidiana frente às formas sociais hegemônicas.
O exercício coletivo dos sujeitos que compõem as lutas anticapitalistas com base na
autonomia vem justamente experimentar uma reorganização social “desde abaixo”, como afirmam os
zapatistas, e questionar as normas e valores do capital a partir das experiências e contradições que
surgem nos processos de resistência. Ao compreendermos que o processo histórico de organização
do movimento zapatista, no caso da presente pesquisa, envolve um princípio educativo, devemos
atentar para o fato de que os indígenas zapatistas são movidos por necessidades próprias, ligadas à
sua relação com o tempo, sua história e às práticas de autogoverno sem, no entanto, se distanciar da
dimensão global ou internacional dessa luta. A aliança estabelecida entre os sujeitos das lutas anti-
hegemônicas de diversos países, sem negar ou eliminar o particular e o local, trata-se de um
elemento importante para analisar a concepção de autonomia e educação zapatistas. Nesse sentido,
apontam para a necessidade de aprender a mirar e escuchar no processo de construção de uma
resistência anti-hegemônica. Este constitui um exercício coletivo ao qual os zapatistas nos convidam.
A contribuição desta pesquisa consiste não somente na reflexão sobre a relação entre os
conceitos de educação e autonomia no debate acerca dos movimentos sociais, e do zapatismo em
particular, mas também em colocar essa relação em diálogo com a crítica da modernidade
desenvolvida por Walter Benjamin. Os conceitos de história e experiência discutidos por esse autor,
nos ajudam a compreender a necessidade do pensamento crítico e da prática transformadora
comunicada pelos zapatistas em seus textos. Também nos auxiliam a pensar a resistência, ensinada
pela luta dos povos indígenas, para sobreviver à barbárie das relações capitalistas e à destruição da
experiência, memória e história coletivas.
Na primeira metade do século XX, Benjamin acompanhou as aceleradas mudanças da
sociedade moderna e da Europa provocadas pelo avanço das forças produtivas, incluindo as
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consequências das duas guerras mundiais para as relações sociais e para a cultura. Estando entre os
intelectuais associados à Teoria Crítica e à Escola de Frankfurt, elaborou importantes críticas à
ideologia do progresso defendida tanto por liberais, como pela social-democracia alemã, alvo
principal da crítica benjaminiana (GAGNEBIN, 1982).
Preocupado com a ascensão do fascismo, Benjamin busca refletir sobre os elementos
necessários para as lutas que se propunham combatê-lo. Em sua teoria da história, o autor defende a
necessidade de se pensar a história da perspectiva “dos vencidos”, em oposição a historiografia
dominante e também aquela concebida pelo materialismo determinista, segundo o qual a história se
direciona progressivamente em direção ao socialismo, como se fosse guiada por leis científicas e pelo
desenvolvimento da técnica e das forças produtivas. Como afirma Benjamin em suas teses Sobre o
conceito da história (1940):
O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, impregna nãoapenas suas táticas políticas, mas também suas ideias econômicas. (…) Nada foi maiscorruptor para a classe operária alemã do que a opinião de que era ela que nadava com acorrenteza. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da correnteza, na qual elasupunha estar nadando. Daí era apenas um passo para a ilusão de que o trabalhoindustrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava um feito político(BENJAMIN, 2012, p. 246-247).
Para Benjamin, quando a promessa de futuro assegurado pela ideia de progresso substitui a
prática de organização dos trabalhadores, estes deixam de ser sujeitos da própria história. Diante do
perigo de ser instrumento nas mãos das classes dominantes, o sujeito histórico do presente, como
herdeiro da tradição dos vencidos, deve “apropriar-se da autêntica imagem histórica” (ibidem, p.
244). Segundo o pensamento benjaminiano, cabe a cada geração no tempo de agora libertar os
mortos do passado e impedir o esquecimento da história de lutas solapadas pelo tempo homogêneo e
linear da história oficial, que esconde a barbárie sobre a qual constrói sua marcha em nome do
progresso. Isso depende de articular as imagens do passado, não como ele realmente aconteceu, mas
enquanto recordação que “relampeja no momento de um perigo” (Ibidem, p. 243). Assim, a escritura
da história se liga à uma prática transformadora, ao mesmo tempo redentora e revolucionária, que
implica “escovar a história a contrapelo” (Ibidem, p. 245).
Segundo sua análise, tanto nas Teses como no texto Experiência e Pobreza (1933), o avanço
da técnica em nome do progresso deflagrou uma nova forma de miséria. Essa miséria corresponde à
pobreza de experiências coletivas e à incapacidade de transmiti-las. Tendo em vista essa condição
imposta pela modernidade, a transmissão de sabedorias e ensinamentos do passado através da
rememoração e da narrativa, forma de comunicação artesanal das experiências ao longo das
gerações, encontra-se em vias de extinção. A capacidade de narrar e transmitir a experiência coletiva
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assimilada pela memória desaparece com o dom de ouvir próprio da comunidade de ouvintes
envolvidos por um tempo distendido do trabalho manual, como afirma Benjamin no texto O
narrador (1936).
Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado dedistensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensãofísica, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro onírico quechoca os ovos da experiência (BENJAMIN, 2012, p. 221).
Na teoria benjaminiana, a experiência e sua transmissão eram características de um modo de
vida que possibilitava a produção das necessidades materiais no tempo distendido do trabalho
artesanal. Este difere do tempo histórico da manufatura e da industrialização, mediadas pelas
máquinas que comandam o processo e o tempo de produção. A experiência, portanto, está ligada à
tradição coletiva e não àquela vivida pelo indivíduo. Ela só seria possível em comunidades que não
estão organizadas pela divisão capitalista do trabalho e onde a organização das relações é sustentada
pelo vínculo de uma memória e passado comuns (GAGNEBIN, 1982). Diante da pobreza da
experiência no contexto atual, podemos retomar o conceito positivo de experiência introduzido pelo
autor em Experiência e Pobreza, cuja ideia é “construir com pouco”, seguindo o exemplo daqueles
que criaram a partir do que tinham ao seu alcance. Considerando que a história dos vencidos se
apresenta como “uma catástrofe única” – como interpreta através dos olhos do anjo no quadro
Angelus Novus, de Paul Klee – entendemos que a proposta de Benjamin passa por uma investigação
sobre o passado através das ruínas do presente.
Em nossa elaboração, sobretudo no segundo capítulo, procuramos atravessar a distância
histórica e cultural que afasta o pensamento benjaminiano do pensamento sistematizado pelos
zapatistas nos comunicados, para poder estabelecer relações que consideramos importantes acerca
dos conceitos de educação, autonomia, pensamento crítico, história e experiência. As leituras dos
textos Experiência e Pobreza (1933), O narrador (1936) e das teses Sobre o conceito da história
(1940) nos auxiliam nessa reflexão.
2. Procedimentos de investigação e exposição da pesquisa
O estudo aqui desenvolvido orienta-se por uma perspectiva crítica que se aproxima das bases
teórico-metodológicas fundadas pela concepção do materialismo histórico-dialético, tendo como
ferramenta principal a pesquisa documental. A partir da revisão bibliográfica e da análise de
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documentos zapatistas, buscou-se realizar o tratamento rigoroso das fontes primárias e secundárias,
sem perder a historicidade dos conceitos e problemas apresentados.
Procurou-se investigar e compreender o objeto de estudo – a relação entre as noções de
educação e autonomia zapatistas – enquanto processo inacabado, atravessado pelas diversas
determinações materiais, históricas e culturais que o envolvem. Nos detivemos, sobretudo, a uma
leitura e análise dos comunicados, declarações e outros documentos zapatistas, procurando
compreender sua visão sobre a realidade e as possibilidades de relação com as noções centrais de
autonomia, educação, história e experiência, discutidas em diálogo com as obras de Walter
Benjamin.
Nos parece importante destacar que tais documentos são um registro histórico do processo
de organização do movimento zapatista. Além disso, estão voltados não somente para o próprio
movimento, como também para organizações, redes de apoio e todos aqueles com quem pretendem
se comunicar. Nesse sentido, mesmo com a enorme diferença de linguagem e condições históricas,
observa-se a herança do zapatismo oriundo da Revolução Mexicana, em que o processo de
redistribuição das terras pelos revolucionários e de experimentação da autonomia nos pueblos foram
sistematizados em manifestos, decretos, leis e outros documentos, sendo um dos principais o Plano
de Ayala9.
Os textos analisados foram escolhidos em função dos elementos que nos permitiram
compreender a relação entre as concepções de educação e autonomia zapatistas. A maioria dos
documentos são assinados pelos porta-vozes do EZLN, os Subcomandantes Galeano (Marcos10) e
Moisés – em alguns casos também a Comandancia do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena -
Comando Geral do EZLN (CCRI-CG) – e outros foram escritos por membros das Juntas de Bom
Governo, promotores e promotoras zapatistas11. De modo geral, nota-se a forte presença de
elementos da narrativa oral e de uma certa forma de pensar a realidade, na qual misturam-se teoria
política, cosmovisão maia, as experiências históricas de luta e aquelas compartilhadas no cotidiano
das comunidades.
Galeano ou Marcos, sobretudo, é conhecido pela escrita literária e muitas vezes poética com
a qual comunica as análises, decisões e rumos do movimento. A partir do uso de metáforas e
simbologias, muitas vezes relacionadas à cosmovisão maia, as análises construídas ao longo da
9 Publicado em 28 de novembro de 1911 pelo Exército Libertador do Sul, encabeçado por Emiliano Zapata, o Plano deAyala marca a estratégia política de derrubada do governo mexicano e estabelece as bases do processo de reformaagrária e da organização dos campesinos indígenas nos ejidos.
10 Subcomandante Marcos foi o nome adotado pelo chefe militar e porta-voz do Exército Zapatista até o ano de 2014.A partir de então passa a se chamar Galeano, um companheiro zapatista assassinado nesse mesmo ano.
11 O termo “promotores” identifica aqueles que atuam nas áreas de saúde e educação autônomas dos MunicípiosAutônomos Rebeldes Zapatistas (MAREZ).
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história do movimento desafiam a linearidade da lógica formal12. Como afirma Arellano (2002),
dando como exemplo dois personagens emblemáticos criados por Marcos, Viejo Antonio e Don
Durito de la Lacandona13:
O discurso político neozapatista que navega pela internet em todo o mundo se nutre nosmitos, conceitos e modos próprios das etnias, como na prática política da esquerda. Afigura do velho Antonio, introduzida por Marcos, representa a memória histórica dospovos maias e também a autocrítica de seus próprios deuses e de um passado que não setoma como único e admirável. Trata-se de “um antes” para poder ir mais longe depois.Também a figura de Durito representa a cultura ocidental em seu lado positivo, bom, emsuas utopias e seus sonhos (ARELLANO, 2002, p. 79).
Essas características do discurso zapatista – e em particular dos porta-vozes do movimento –
sustentado por aspectos da memória histórica da luta indígena e da teoria política ocidental,
permitem o acesso às análises que pretendem ser comunicadas pelo movimento sobre o próprio
processo de resistência e sobre a realidade. Conforme observado pelas leituras desses textos, sejam
comunicados ou contos literários, destaca-se também um outro aspecto: muitos deles estão ligados
por uma argumentação encadeada que acompanha, inclusive, a própria conjuntura, sendo que para
compreender esse trajeto argumentativo é necessário lê-los em conjunto.
Pelo fato de acompanharem o movimento da realidade e, logo, pelo necessário
“inacabamento” de sua análise, podemos contrapor os comunicados zapatistas à forma de
comunicação tipicamente moderna, segundo Walter Benjamin: a informação, a qual o autor define
pela “verificabilidade imediata” do texto. Em meados da década de 1930, afirma este autor que, “se a
arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação tem uma participação decisiva nesse declínio”
(BENJAMIN, 2012, p. 219). Com o advento da imprensa escrita, o isolamento crescente do
indivíduo na sociedade burguesa e o gradual desaparecimento da memória e da experiência coletivas,
a informação jornalística manifesta-se como principal forma de comunicação, velando o vazio da
vida atomizada pelas relações capitalistas com o culto do atual diariamente renovado (GAGNEBIN,
1984). Ao comparar a informação e a forma narrativa, o filósofo explica que “metade da arte
narrativa está em, ao comunicar uma história, evitar explicações” (Idem, p. 219); de maneira oposta,
a informação “precisa ser, antes de mais nada, ‘compreensível em si e para si’” (Ibidem).
12 No texto de Georgui Plekhanov, “Dialética e lógica” (1907), este autor aponta como as três leis fundamentais dalógica formal: 1) a lei da identidade; 2) a lei da não contradição; 3) a lei do terceiro excluído. Disponível em: Acesso em: 15 de agosto de 2016.
13 Personagem criado pelo Subcomandante Marcos em 1995. Como define José Saramago no prólogo do livro decontos sobre as aventuras e desventuras de Don Durito, trata-se de um escaravelho da Selva Lacandona auto-denominado cavaleiro andante que, em longas conversas com seu fiel escudeiro Marcos, “disserta sobre economiapolítica e neoliberalismo com tanta competência como comentaria sobre as névoas da selva” (SUBCOMANDANTEMARCOS, 2017, p. 5).
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Diante da referência benjaminiana e das leituras dos textos zapatistas, é possível conceber a
presença de aspectos da quase extinta forma narrativa em alguns dos comunicados e também nos
contos do Velho Antônio, por exemplo, ou em outros mais recentes, como os da personagem infantil
Defensa Zapatista. A transmissão, através de porta-vozes, da forma de pensar ou cosmovisão
indígena, em um discurso constituído também por elementos da teoria política, literatura e filosofia
ocidentais, nos levam à hipótese de que o processo de enfrentamento anti-hegemônico construído
pelos zapatistas manifesta-se, inclusive, no próprio discurso pelo qual se comunicam com o mundo.
Considerando as limitações desta pesquisa de mestrado, no que diz respeito à observação do
cotidiano das comunidades zapatistas, suas escolas e relações entre os diferentes sujeitos e gerações,
pareceu-nos fundamental dialogar com outras pesquisas que trazem reflexões e informações
relevantes para a discussão acerca das práticas de educação e autonomia zapatistas. Outras fontes,
igualmente importantes, que nos orientam nessa análise sobre o “autogoverno educativo”14 são os
depoimentos das promotoras e dos promotores de educação das comunidades, registrados em vídeos
e textos publicados no site oficial15 do movimento, bem como no material organizado para as turmas
da Escuelita Zapatista.
Portanto, procuramos analisar o material compilado e sistematizar essas reflexões com o
aporte teórico da bibliografia encontrada. Entre os principais desafios desta pesquisa foram os
critérios para selecionar comunicados, contos, entrevistas e outros documentos considerados fontes
primárias. Para a seleção dessas fontes, utilizamos os seguintes critérios: 1) a autoria corresponder
aos próprios zapatistas; 2) importância para a compreensão da história do movimento zapatista; 3)
presença de elementos ou noções-chave para compreender sua concepção de autonomia e educação,
relacionados à sua visão sobre a própria história e formas de fazer política (tanto na vida cotidiana,
quanto em momentos nos quais dialogam com a sociedade, ou seja, nos encontros e manifestações
públicas).
Tivemos a oportunidade de participar do I Encontro L@s Zapatistas y Las ConCiencias Por
La Humanidad, realizado entre os dias 25 de dezembro de 2016 e 4 de janeiro de 2017. Após o
encontro, a pesquisadora pôde visitar uma das comunidades localizadas no Caracol I Madre de los
Caracoles del Mar de Nuestros Sueños, sediado em La Realidad, no Município Autônomo San
Pedro de Michoacán. A visita, realizada entre os dias 9 e 18 de janeiro, foi possível pela participação
em uma das brigadas de observadores do Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de las Casas
(FRAYBA) – sediado em San Cristobal de Las Casas, Chiapas. Pelo pouco tempo de permanência na
comunidade e pelas restrições de segurança colocados pela Junta de Bom Governo de La Realidad,
14 Expressão utilizada por Bruno Baronnet (2012), para se referir às experiências de educação desenvolvidas pelospovos indígenas da Selva Lacandona, Chiapas, México.
15 Os comunicados podem ser encontrados no site Enlace Zapatista. Disponível em: Acesso em: 5 de outubro de 2018.
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não foi possível conversar e muito menos realizar entrevistas com moradoras e moradores. Mesmo
se isso tivesse sido possível, uma semana não seria suficiente para conhecermos de fato a realidade
zapatista. Ainda assim, a vivência foi fundamental para ter uma experiência direta e não somente
mediada pelos textos e discursos formulados pelo próprio movimento, tanto no encontro – que
reuniu 200 zapatistas representantes dos municípios autônomos e 82 cientistas de onze países
(incluindo o México), além de centenas de apoiadores do movimento – quanto para conhecer uma
comunidade e sua organização interna.
Apresentamos os resultados dessa pesquisa em três capítulos. No primeiro capítulo
buscamos compreender como o movimento se organiza atualmente e a partir de quais determinações
sócio históricas os zapatistas constituíram seu autogoverno. Através de seus comunicados e de
entrevistas, relatos e pesquisas sobre o tema, percorremos alguns dos antecedentes históricos do
movimento zapatista, o contexto da formação do Exército Zapatista de Libertação Nacional e alguns
dos momentos mais relevantes para entender o seu processo de luta por autonomia.
No segundo capítulo, a exposição do estudo se volta para as formas de mobilização da
concepção de educação autônoma tal qual os zapatistas a comunicam para a sociedade. Para analisar
as articulações entre autonomia e educação, tomamos por fonte alguns documentos e materiais
produzidos nos últimos anos e veiculados em encontros organizados pelos zapatistas, abertos aos
coletivos, movimentos e organizações. Nos detivemos a quatro atividades organizadas entre o
período de 2013 a 2017: a chamada Escuelita Zapatista (2013 e 2015), o Seminário “El
Pensamiento Crítico Frente a la Hidra Capitalista” (2015), o Festival CompARTE por la
Humanidad e o Encontro L@s Zapatistas y Las ConCIENCIAS Por La Humanidad (ambos
realizados em 2016 e 2017).
No intuito de compreender as articulações entre as duas noções centrais de nossa pesquisa,
autonomia e educação, buscamos dialogar com pesquisas anteriores que trouxeram análises e
reflexões importantes sobre o projeto educativo construído desde as comunidades zapatistas. Com
tal objetivo, o último capítulo expõe alguns dos princípios autogestionários do Sistema Educativo
Rebelde Autônomo Zapatista de Libertação Nacional (SERAZ-LN) e procura pensar as tensões
entre este projeto e o projeto de educação estatal. Também procuramos analisar a formação dos
promotores de educação e o conteúdo de alguns materiais didáticos voltados para estudantes das
escolas autônomas.
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Capítulo 1 – O movimento zapatista e a resistência anticapitalista: uma perspectiva histórica
Neste primeiro capítulo, buscaremos revisitar a história do zapatismo atual16 no intuito de
compreender os caminhos percorridos por esse processo de organização. Faremos, primeiro, um
breve retrato socioeconômico do estado de Chiapas, a fim de localizar o movimento zapatista e as
comunidades indígenas autogovernadas frente a realidade da região. Em um segundo momento,
analisaremos alguns dos fatores históricos que antecederam a formação do EZLN e o levante
zapatista de 1994. Por fim, trataremos de entender os rumos tomados por esse processo de
organização por meio das seis Declarações da Selva Lacandona, escritas entre 1994 e 2005, as quais
constituem um dos principais registros dessa história.
Revisitar a história e as bases materiais do processo de organização desse movimento nos
auxiliam a entender o que os zapatistas comunicam sobre sua concepção de educação e autonomia
na perspectiva dos “de abaixo”, aqueles que se rebelam e resistem ante a hegemonia capitalista.
Resistência e rebeldia são, segundo eles, armas de luta que dependem de organização coletiva para
descobrir como usá-las. “Descubrimos que con resistencia y rebeldía podemos gobernarse y que
con resistencia y con rebeldía podemos desarrollar nuestras propias iniciativas”17, afirma o
Subcomandante Moisés, chefe militar do EZLN. Dentre essas iniciativas próprias, encontram-se as
experiências de caráter educativo, geradas pelos trabalhos coletivos que constituem o autogoverno
nos pueblos e também pelo processo de luta anticapitalista em seu sentido mais amplo.
Situados em uma região de grande riqueza natural, não só os zapatistas, mas a maior parte da
população chiapaneca são alvo de diversos ataques vindos do Estado e do setor privado (nacional e
internacional). Como afirmam Ceceña e Barreda (1995): “Las riquezas naturales de Chiapas que lo
convierten en uno de los paraísos del mundo, con condiciones inigualables para el desarrollo de la
vida, lo hacen, paradójicamente, uno de los espacios más inhóspitos para la vida del hombre”
(CECEÑA; BARREDA, 1995, p. 77).
Na periferia do México, com cerca de 5,2 milhões de habitantes – sendo aproximadamente
um quinto indígena – Chiapas é um dos principais abastecedores de energia elétrica, petróleo e gás
natural do país (ver localização geográfica na figura 1). Apesar da importância estratégica para a
economia mexicana, é o segundo estado com os piores índices de desnutrição, analfabetismo e
16 Encontramos na bibliografia consultada duas terminologias para se referir ao movimento zapatista atual: zapatismoe neozapatismo. Optamos pela primeira, levando em consideração a diferença entre a forma como os zapatistas sereconhecem e são reconhecidos por uma parte dos apoiadores externos: “Nosotros somos los zapatistas del EZLN,aunque también nos dicen ‘neo zapatistas’ (...)”. Cf. “Sexta Declaração da Selva Lacandona”. Disponível em: Acesso em: 10 outubro de 2018.
17 Subcomandante Moisés. “Apuntes de resistencia y rebeldía”, Comunicado de 6 de maio de 2015. Disponível em: Acesso em: 10 de outubro de 2018.
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carência de recursos na área de saúde, além da falta de água encanada, luz e saneamento básico nas
localidades ainda mais marginalizadas.
Figura 1 - Mapa do México com a identificação das vinte quatro províncias
Fonte: Instituto Nacional de Estadística y Geografia (INEGI)
Localizado na fronteira com a Guatemala, esse estado divide-se em quinze regiões
econômicas (ver figura 2 com identificação das regiões econômicas do estado de Chiapas).
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Figura 2- Mapa com identificação das regiões econômicas do estado de Chiapas
Fonte: CEIEG Chiapas, 2017
Segundo a última estimativa do governo federal, referente ao ano de 2015, a maioria da
população indígena chiapaneca concentra-se nas regiões: Altos Tsotsil-Tseltal, Norte e Selva
Lacandona (ver Figura 3). Essa população, de acordo com o Centro de Documentação Sobre
Zapatismo, corresponde aos povos Tseltal (37,9 por cento da população indígena total), Tsotsil
(33,5%), Ch’ol (16,9%), Zoque (4,6%), Tojolab’al (4,5%) e Mame, Chuj, Kanjobal, Jacalteco,
Lacandón, Kakchikel, Mochó ou Motozintleco, Quiché e Ixil (que juntos equivalem a 2,7 por cento
da população indígena do estado)18. Chiapas, junto com Oaxaca e Yucatán, localizados também ao
sul e sudeste do país, concentram a maioria dos povos indígenas mexicanos. Estima-se que em 2017
o México contava com uma população total de 123 milhões de habitantes, dos quais 21,5 por cento
considerava-se indígena19. Em todo o território nacional são contabilizadas 68 línguas faladas pelos
povos originários (e 364 variantes).
18 Fonte: Centro de Documentação Sobre Zapatismo (CEDOZ). Disponível em: Acesso em: novembro de 2017.
19 Fontes: Instituto Nacional de Estadística y Geografia (INEGI). Disponível em: Acesso em: novembro de 2017.
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Figura 3- Mapa com identificação da presença de povos indígenas em Chiapas
Fonte: CEDOZ 2018
Assim como aconteceu no Brasil e na América Latina de modo geral, desde o final da década
de 1980 os sucessivos governos mexicanos deram continuidade às políticas neoliberais através de um
conjunto de medidas, entre elas a privatização de diversos setores sociais. A gestão de Enrique Peña
Nieto, presidente entre 2012 e 2017, retoma uma segunda ascensão do Partido Revolucionário
Institucional (PRI)20, que governou o país ao longo de sete décadas até os anos 2000. De volta ao
poder neste último mandato, prosseguiu com as políticas de espoliação dos povos indígenas através
das ações de despejos, queimadas, assassinatos, desmatamento e poluição do solo e da água,
sobretudo no Sul e Sudeste do país. Em 2018, o presidente Andrés Manuel López Obrador, do
partido Movimento Regeneração Nacional (Morena), é eleito com promessas de combate à
corrupção das elites políticas, de acabar com a violência gerada pelo narcotráfico e, no que diz
respeito aos povos originários, de reconhecimento do direito à sua autodeterminação.
Entretanto, segundo a análise zapatista, os projetos do atual governo não significam uma
alternativa, mas sim uma continuidade das políticas neoliberais em curso. Com relação ao sudeste
mexicano são, em realidade, projetos de despojo e entrega dos territórios indígenas em função dos20 Fundado em 1928 como Partido Nacional Revolucionário, em 1938 recebe o nome de Partido da RevoluçãoMexicana sob a liderança de Lázaro Cárdenas, o então presidente mexicano. No ano de 1946 é constituído comoPartido Revolucionário Institucional. O PRI se manterá no poder até os anos 2000, quando perde as eleições para oPartido da Ação Nacional (PAN), e retorna em 2012 com o presidente Enrique Peña Nieto (RIBERTI, 2011).
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interesses dos grandes representantes do capital. Em comunicado de agosto de 2018, os
Subcomandantes Moisés e Galeano afirmam que a fronteira sul do México – composta pelos estados
de Chiapas, Tabasco, Campeche, Yucatán e Quintana Roo – servem aos “novos planos geopolíticos”
como filtro para conter o fluxo de imigrantes vindos da América Central em direção à fronteira
estabelecida entre Tijuana e San Diego, no norte do país. De “território esquecido”, a região
fronteiriça do sudeste mexicano começa a transformar-se “em uma das prioridades de conquista e
administração”21, analisam os zapatistas.
Nesse contexto, apresentado acima de maneira sucinta, o movimento zapatista tem se
organizado ao longo dos anos contra as práticas políticas hegemônicas, empregadas por grupos e
partidos que se posicionam tanto no campo da direita como da esquerda. Junto a outros movimentos
indígenas e coletivos de diferentes países, os zapatistas afirmam colocar em prática uma outra forma
de fazer política, “abaixo e à esquerda”.
A resistência das comunidades indígenas organizadas em território zapatista consiste na luta
pela autodeterminação com significativa melhora nas esferas da saúde, educação, alimentação,
moradia, entre outras. Esse processo ocorre a partir do levante de 1 de janeiro de 1994 e acelera-se
após 2001, quando passam a se dedicar de forma permanente ao autogoverno nos municípios
autônomos, contando também com o apoio internacional. Sobre essa mudança nas condições de vida
nos pueblos, afirmam na Sexta Declaração da Selva Lacandona, de 2005:
El EZLN, durante estos 4 años, también le pasó a las Juntas de Buen Gobierno y a losMunicipios Autónomos, los apoyos y contactos que, en todo México y el mundo, selograron en estos años de guerra y resistencia. Además, en ese tiempo, el EZLN fueconstruyendo un apoyo económico y político que les permita a las comunidades zapatistasavanzar con menos dificultades en la construcción de su autonomía y en mejorar suscondiciones de vida. No es mucho, pero es muy superior a lo que se tenía antes del iniciodel alzamiento, en enero de 1994. Si usted mira uno de esos estudios que hacen losgobiernos, va a ver que las únicas comunidades indígenas que mejoraron sus condicionesde vida, o sea su salud, educación, alimentación, vivienda, fueron las que están enterritorio zapatista, que es como le decimos nosotros a donde están nuestros pueblos. Ytodo eso ha sido posible por el avance de los pueblos zapatistas y el apoyo muy grande quese ha recibido de personas buenas y nobles, que les decimos “sociedades civiles”, y de susorganizaciones de todo el mundo. Como si todas esas personas hubieran hecho realidadeso de que “otro mundo es posible”, pero en los hechos, no en la pura habladera.22
21 Subcomandantes Moisés e Galeano. “300. Segunda parte: un continente como patio trasero, un país comocementerio, un pensamiento único como programa de gobierno, y una pequeña, muy pequeña, pequenisimarebeldía”. Comunicado de 21 de agosto de 2018. Disponível em: Acesso em: outubro de 2018.
22 EZLN. “Sexta Declaração da Selva Lacandona”. Disponível em: Acesso em: novembro de 2017.
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A construção da autonomia pelas comunidades zapatistas junto ao EZLN guia-se sobretudo
pelo objetivo de transformar as condições de reprodução da vida dos povos indígenas, o que não
restringe o movimento ao caráter étnico e regional. A dimensão anticapitalista dessa luta por
democracia, liberdade e justiça também se dá no encontro com outros “calendários e geografias”,
para utilizar uma expressão zapatista. Na ocasião do Seminário El Pensamiento Crítico Frente a la
Hidra Capitalista, organizado em 2015, o Subcomandante Galeano, porta-voz do Exército
Zapatista, referia-se à necessidade de analisar o capitalismo de maneira crítica para saber como
combatê-lo. Nas palavras de Galeano:
Hay un elemento que no está explícito pero que es fundamental: la práctica. Lo que nosllama a este inicio de reflexión teórica, porque esperamos que sigan más semilleros, no esaumentar nuestro bagaje cultural, aprender palabras nuevas, tener argumentos para ligar odesligar, o demostrar que siempre podemos ser más ininteligibles. Lo que está en juegoacá, y después en los allá de cada quien según su tiempo, modo y lugar, es latransformación de una realidad. Por eso quienes debemos asumir, entre nosotroas, la responsabilidad de mantener ypotenciar esta reflexión, somos la Sexta. Simple y sencillamente porque nos diferencianmuchas cosas, pero una nos identifica: hemos decidido desafiar al sistema. No paramejorarlo, no para cambiarlo, no para maquillarlo, sino para destruirlo. Y eso, su destrucción, no se logra con pensamientos, aunque, claro, no faltará quien digaque debemos unir nuestras mentes y repetir “desaparece, desaparece” con verdaderas fe ypersistencia. No, pero los pensamientos nos ayudan a entender contra qué nosenfrentamos, cómo funciona, cuál es su modo, su calendario, su geografía. Para usar laexpresión de la escuelita: las formas en que nos ataca.23
Após o levante zapatista no dia 1 de janeiro de 1994, em Chiapas, esse movimento indígena
gerou um impacto político e midiático que ressoa até hoje para além dos limites da nação mexicana.
Ao colocar em pauta a luta por autonomia dos povos originários, o EZLN aparecia como alternativa
de organização política anticapitalista, opondo-se não só à agenda neoliberal, mas também às
organizações tradicionais do campo da esquerda (frequentemente vinculadas ao sistema partidário e
constituídas por relações hierárquicas entre “base” e “militância”). Naquele momento de descenso
das lutas sociais e de fortalecimento de perspectivas teóricas como “o fim da história”, a repercussão
da insurreição zapatista mobilizou uma ampla rede de apoiadores nacional e internacional, entre
indivíduos, ativistas, coletivos e movimentos sociais. Publicizados no site oficial do movimento e
também nos meios de comunicação independentes, os documentos e comunicados zapatistas
transmitem a importância da relação entre os povos zapatistas e a “sociedade civil”24 no processo de
resistência às tentativas de massacre, pela violência da guerra e pela ameaça do isolamento,
encabeçadas pelo Estado. 23 Subcomandante Galeano. "El Método, la bibliografía y un Drone en las profundidades de las montañas del SuresteMexicano", comunicado de 4 de maio de 2015. Disponível em: Acesso em: 8 de fevereiro de 2019.
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É importante ressaltar que o movimento zapatista não começa com a fundação do EZLN, em
1983, e nem pode ser explicado apenas a partir da insurreição de 1994, em Chiapas. Há centenas de
anos, os povos originários do México têm traçado caminhos de resistência contra a marcha
conduzida pelas forças dominantes em nome do progresso, voltando-se às lutas de seus antepassados
para impedir a instrumentalização de sua história, de sua cultura e sua força de trabalho. Segundo
González Casanova (2008), os maias destacam-se entre os povos mesoamericanos que mais
resistiram à guerra de conquista espanhola, organizando grandes revoltas até o começo do século
XVIII. Portanto, conclui o autor: “que hoy los mayas se rebelen de nuevo como tzeltales, tzotziles,
choles, zoques y tojolobales corresponde a un legado que produce los mismos efectos en otras
regiones de Mesoamérica” (GONZÁLEZ CASANOVA, 2008, p. 266). O EZLN, com 35 anos, e o
movimento zapatista, com 25 anos de existência pública em 2018, colocam-se como herdeiros dessa
tradição de lutas (ver figura 4). Como reafirmam na primeira declaração escrita conjuntamente pelo
Exército Zapatista e Congresso Nacional Indígena, em agosto de 2014:
La guerra contra nuestros pueblos indígenas dura ya más de 520 años, el capitalismo senació de la sangre de nuestros pueblos y a los millones de nuestros hermanos y hermanasque murieron durante la invasión europea, hay que sumar los que murieron en las guerrasde independencia y de reforma, con la imposición de las leyes liberales, durante elporfiriato y en la revolución. En esta nueva guerra de conquista neoliberal, la muerte denuestros pueblos es la condición de vida de este sistema. En las últimas décadas miles ymiles de nosotros hemos sido torturados, asesinados, desaparecidos y encarcelados pordefender nuestros territorios, nuestras familias, nuestras comunidades, nuestra cultura,nuestra vida misma. No olvidamos. Porque esa sangre, esas vidas, esas luchas, esa historiason la esencia de nuestra resistencia y de nuestra rebeldía en contra de quienes nos matan;en la vida y en la lucha de nuestros pueblos ellos viven.25
Na guerra de conquista neoliberal, a morte física e a morte pelo esquecimento, com as
tentativas de solapar a história e a cultura dos povos, são condições das quais se nutrem a
manutenção do sistema capitalista. Diante da ameaça provocada pelo atual estado de barbárie, é
preciso trazer os mortos à “palavra viva”, como dizem os zapatistas26. É na rememoração do
passado, nas palavras que acompanham a compreensão da história – marcada pelo sangue, pelas
vidas e pela tradição de luta dos “de abaixo” – que consiste na essência da resistência e da rebeldia
24 Em documentos como a “Sexta Declaração da Selva Lacandona” e a “Carta à Sociedade Civil Nacional eInternacional”, ambas redigidas em junho de 2005, a “sociedade civil nacional e internacional” aparece como umacategoria ampla: são os grupos sociais “oprimidos, explorados, perseguidos e marginalizados”, que se rebelam contraas condições impostas pelo sistema capitalista; são “trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade”; e tambémconjunto de pessoas “humildes e comuns”, “boas e nobres”, e suas organizações apartidárias (sendo muitas delasOrganizações Não Governamentais - ONGs).
25 Congreso Nacional Indígena (CNI) e Ejército Zapatista de Liberación Nacional. “1ª Declaración de laCompartición CNI-EZLN. Sobre la represión a nuestros pueblos”. Comunicado de agosto de 2014. Disponível em Acesso em: 11 de outubro de 2018.
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contra o avanço do neoliberalismo. Esse fundamento, explicitado no comunicado acima, nos remete
ao problema da transmissão da experiência e memória comuns através das gerações e sua
importância para a apropriação do processo histórico, tema amplamente discutido pela teoria
benjaminiana.
Como analisa Walter Benjamin, no texto O narrador (1936), com o avanço da técnica na
modernidade e das guerras em nome do progresso, a humanidade foi perdendo a “faculdade de
intercambiar experiências” (BENJAMIN, 2012, p. 213). A força explosiva da técnica criada pelo
trabalho humano é, assim, posta em funcionamento contra a vida e a favor da guerra, uma das
manifestações da barbárie. Segundo o autor, com a Primeira Guerra Mundial esse processo começa a
se manifestar com os combatentes, que “voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim
mais pobres em experiência comunicável” (idem, p. 214). Ao vivenciarem o horror da guerra,
enquanto negação da experiência pela barbárie, estes voltavam impossibilitados de transmiti-la.
Esta imagem, encontrada também no texto Experiência e Pobreza (1933), ilustra a questão
trazida pela crítica benjaminiana à modernidade, segundo a qual o desenvolvimento das forças
produtivas coloca em risco a transmissão da experiência “ligada a uma tradição viva e coletiva”
(GAGNEBIN, 1982, p. 67). A noção de experiência, em O narrador, é pensada como substância
viva da arte de narrar histórias capazes de serem transmitidas através do tempo; arte esta cuja origem
encontra-se nas atividades do trabalho manual. Entretanto, a arte de narrar está em vias de extinção,
como escreve o autor:
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as históriasnão são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve ahistória. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se gravanele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias detal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede emque está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje em todas as pontas,depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalhomanual (BENJAMIN, 2012, p. 220).
A narrativa, enquanto “forma artesanal de comunicação” (Idem, p. 221) extrai da experiência
coletiva e da vivência do próprio narrador a força capaz de causar infindáveis desdobramentos para a
história narrada. O processo de assimilação dessa experiência se dá por uma lenta sedimentação de
“camadas finas e translúcidas” constituídas pela tradição oral e pela rememoração. Esta, nas palavras
de Benjamin, “funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração
(...) Ela [a rememoração] tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si”
26 Subcomandante Galeano. “Apuntes de una vida (palabras del SupGaleano en el Homenaje a los compañeros LuisVilloro Toranzo y Maestro Zapatista Galeano)”. Comunicado de 2 de maio de 2015. Disponível em: Acesso em: 11 deoutubro de 2018.
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(Ibidem, p. 228). Segundo a filosofia benjaminiana, a escrita da história se dá por uma prática ao
mesmo tempo redentora e revolucionária. Essa prática, por sua vez, relaciona-se à narrativa dos
acontecimentos que está enraizada na experiência coletiva dos vencidos, cada vez mais anulada pelo
desenvolvimento do capitalismo. De acordo com Benjamin,
a arte de narrar aproxima-se de seu fim porque a sabedoria – o lado épico da verdade –está em extinção. Mas este é um processo que vem de longe. E nada seria mais tolo do quever nele um ‘sintoma de decadência’, e muito menos de uma decadência ‘moderna’. Ele émuito mais um sintoma das forças produtivas seculares, históricas, que expulsamgradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo, conferindo, ao mesmo tempo, umanova beleza ao que está desaparecendo (Ibidem, p. 228).
Apesar da expulsão gradual das experiências coletivas e da capacidade de transmiti-las neste
mundo tomado pelas formas sociais capitalistas, como afirma o filósofo, a luta indígena e dos
zapatistas, em particular, parecem desafiar o curso da história dos