Romance -...

77
Romance “Os textos a seguir, foram vencedores do Concurso Municipal de Literatura Prêmio Jorge Amado - 2017, promovido pela Prefeitura do Município do Salvador”

Transcript of Romance -...

Page 1: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

19

Romance“Os textos a seguir, foram vencedores do Concurso

Municipal de Literatura Prêmio Jorge Amado - 2017, promovido pela Prefeitura do Município do Salvador”

Page 2: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

137

AutoraLaila Maria

Barreto

JIMIN, PARA VOCÊ

Capítulo 1 – Eu sei que isso é crime

Jimin

Eu adoro as manhãs de segunda. Não entendo por que as pessoas a odeiam –talvez por terem que trabalhar ou estudar, embora eu faça isso todos os dias sem reclamar – elas são tão boas para se ter um pouco de paz, sem crianças gritando o tempo inteiro como se zumbis estivessem tentando comer seus cérebros. Seria legal ver isso acontecer por trás de minhas janelas, exceto se eles me vissem e quisessem comer o meu cérebro também; isso seria trágico. Outro fator que me faz adorar as segundas é que consigo muita inspiração para exercer meu trabalho de escritor. Por quê? Bem, toda segunda algo de interessante acontece na vizinhança e isso me dá muitas ideias para escrever. Foi exatamente esse motivo que me levou a mudar para cá; procurei o lugar perfeito, uma vizinhança com diversos tipos de famílias e pessoas, uma mais problemática que a outra. Problemas...eu gosto de problemas. É por isso que me mudo a cada dois anos para um lugar novo, em busca de novos problemas e mistérios que não apenas me sustentam através de meus livros, como também me entretém. Não é por acaso que sempre mantenho um binóculo bem ao lado de minha janela. Sim, eu sei que isso é crime, mas não posso evitar; seria um crime não os observar quando eles claramente me pedem para fazer isso ao deixarem suas janelas abertas e gritarem excessivamente. Mas voltando aos problemas, eu definitivamente os adoro. Na época que estudava, minha matéria favorita era matemática, embora resolver os problemas do Joãozinho que precisava saber quantas maçãs ele poderia colocar em um cesto vazio (que aliás, é apenas uma) não fosse tão divertido quanto casos de traições e disputas por guardas de cachorro. Quando o despertador tocou às seis da manhã, fiz a primeira coisa que sempre faço quando acordo: expulsar Mickey Mouse da cama que, por acaso, é meu gato – eu gosto de peculiaridades, e isso inclui um gato com nome de um rato. Comprei quatro camas diferentes para ele, mas o pestinha prefere deitar na minha, e não importa quantas vezes eu arremesse uma almofada nele, ele sempre volta. Levantei e fui direto pra cozinha seguido de Mickey, que já mirava os olhos no pote de ração que ficava em cima do armário. Quando decidi adotá-lo, ele era magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer coisas simples como andar por muito tempo. Na verdade, a gordura dele só não o impedia de subir em minha cama, o que me faz pensar que talvez ele só seja um preguiçoso e esfomeado. Mas tudo bem, não vou julgá-lo, se eu fosse um gato com comida à vontade e um lugar quente para dormir, faria o mesmo. Tomei meu costumeiro chocolate quente (afinal, quem gosta de café? Eu não; é muito ruim), acompanhado de meu remédio e fui até a sala com uma faca de cortar pão para abrir uma das cartas em cima da mesa de centro. Me joguei no sofá e peguei

3ºLUGAR

E.M. de Pirajá da SilvaProfessor(a) Orientador(a) - João Paulo BispoGerência Regional /GR - Liberdade/Cidade Baixa

Page 3: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

138

um montinho delas.– Contas, contas, contas… – murmurei para mim mesmo. – Que surpresa! Um desconto para assinatura de revistas de moda.Suspirei. Nenhuma resposta, como já esperado. Não entendo por que as pessoas ignoram tanto cartas, elas são tão mais cheias de sentimento que as mensagens de texto que se falam por aí. Talvez eu devesse desistir de enviar cartas para as pessoas, até porque, nada de bom pode vir de alguém que prefere conversar por WhatsApp – passando pelo transtorno de receber imagens de “bom dia” com fotos de gatinhos, bebês e flores – ao conversar pessoalmente com alguém; ou por cartas. Quantas eu enviei esse mês? Seria difícil dizer. Todos os meses fazia questão de separar parte do meu dinheiro com as vendas do livro para pagar pelas cartas, mas nunca recebi uma resposta. As cartas normalmente são sobre soluções para os seus problemas (os dos meus vizinhos, é claro) então por que eles nem sequer me enviam um simples “obrigado”? Era muita falta de consideração! Mas também existe a possibilidade de eu ter recebido e não saber, isso porque não divulgo meu endereço nessas cartas e nunca uso meu nome verdadeiro. Se tornou uma espécie de tradição enjoativa que não consigo me livrar, então caso um dia alguém receba uma carta com a assinatura “Jimin, para você”, pode ter certeza que é uma das minhas. De qualquer forma, isso não deve importar muito, contanto que eu tenha conseguido ajudar aquela pessoa. O resultado das minhas ações pode ser observado através do meu binóculo, das janelas abertas e dos gritos. Às vezes, consigo capturar o olhar agradecido de um destinatário (ou pode ser frutos da minha imaginação, nunca saberemos). Desde a minha infância, eu venho vivendo em um mundo um tanto imaginário; nunca saio de casa, nem mesmo para ir à padaria comprar um pão. Precisei inventar um novo jeito de viver em espaços pequenos, mas que para mim deveriam significar um mundo inteiro. Basicamente, uma nova fórmula para a felicidade. Acredito que estou no caminho e que logo, logo conseguirei chegar. Sendo assim, me identifiquei bastante com a Rapunzel, exceto pelo fato de que sempre mantive meus cabelos bem aparados, o suficiente para não servir de corda para alguma princesa fazer rapel em mim.Já que não havia mesmo nenhuma carta para ler, decidi pegar minha máquina de escrever e pôr em prática algumas ideias que tive durante o sono. Isso seria uma tarefa bem sucedida, se não fosse pela interrupção de um gato intrometido e desocupado que subiu miando sem parar em minha máquina de escrever e estragou o que já era quase que uma página inteira, significando que eu teria que reescrever tudo.– Mickey! Seu peste! – Gritei irritado, tirando-o de cima. – O que você quer?Ele continuava a miar. Por isso valorizo as pessoas que têm filhos, porque se cuidar de um gato já era difícil, imagina um ser humano? Não tenho um por cento da paciência necessária. Fui até a cozinha, peguei o pote de ração de cima no armário e completei a tigela que já estava quase cheia para só então ele parar de miar.

Page 4: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

139

Capítulo 2 – Hambúrgueres!!!

Laura

Eu tenho que parar de comer essas porcarias que a Meg me fornece todos os dias quando entro uma hora depois do restaurante fechar. Após um dia inteiro de pratos finos, que custam os olhos da cara e só alimentam formigas, esperava-se que um pouco disso sobrasse para sua melhor amiga, certo? Errado. Ao invés de receber o tão famoso caviar, acabo ficando com uma coxa de frango frito (ou carbonizado). Não que eu não tenha dinheiro para pagar, mas me recuso a gastar tanto com comida para pinto. – Você deveria parar de comer essas porcarias – disse Meg, me olhando do outro lado da mesa com uma cara de horror, como se eu fosse um monstro faminto. Não sou um monstro, mas estava mesmo faminta. – Você quer dizer as porcarias que você me dá? – Questionei a meio caminho de pôr mais um frango na boca. A pessoa sentada na minha frente é morena e baixinha, deve medir mais ou menos um metro e cinquenta; tem cabelos encaracolados, porém curtos e não tão cheios como os cabelos cacheados costumam ser. Sim, essa é Margareth, alguém que eu conheço desde os meus dez anos e desde aquela época ela sonhou em ter o próprio restaurante e ser a chefe dele. Faz um ano que finalmente conseguiu realizar esse sonho, o que quer dizer que faz um ano que eu como de graça todo o tipo de porcaria que consigo achar no fundo do estoque dela. Ela não se importava com isso; ficava feliz, na verdade, porque depois de anos estudando muito para preparar aquelas comidas de gente rica (principalmente quando precisou ir para o exterior e se especializar nisso) era bom fazer uma comida simples e tipicamente brasileira às vezes, embora tendo uma amiga como eu, isso significasse todos os dias. Quando conheci a Meg, os pais dela tinham uma lanchonete num pequeno shopping perto da minha casa. Toda semana minha mãe me levava até lá ao menos uma vez, como forma de me recompensar por ajudar com as tarefas de casa e ter um bom desempenho na escola. Naquela época eu era muito gorda e sempre ouvia apelidos como: fofinha, fortinha, rechonchuda, bolinha e vários outros que toda pessoa gorda com certeza já ouviu, mas eu realmente não estava nem aí; desde que eu pudesse comer meus hambúrgueres, isso era muito mais importante que a opinião deles. Acontece que quando se tratava de minha comida, eu costumava ser agressiva; isso não era por eu ser gorda, eu só gostava de comer, então fiquei muito irritada quando vi que o hambúrguer estava menor do que o da semana anterior. Na verdade, ele não estava assim tão menor, mas… Devo ter matado minha mãe de vergonha, porque levantei furiosa e fui tirar satisfações com a atendente do caixa que só me deixou mais irritada. Foi quando Meg apareceu e me ofereceu um outro hambúrguer; “o melhor para nossa maior cliente”, ela disse. O mais impressionante dessa história toda é que ela tinha minha idade, mas já era muito talentosa e esperta quando o assunto era trabalhar com pessoas. Passei a ir lá mais vezes, mesmo sem dinheiro, apenas para brincar com ela, foi quando fiquei sabendo que ela já assumia a lanchonete quando seus pais estavam fora. Incrível!– Por que você não come no seu trabalho ou algo assim? – Perguntou Meg. – Você já viu os restaurantes de lá? Não têm o mínimo de higiene! – Respondi. – Além do mais, por que comer em um local desconhecido quando eu posso saborear a comida da melhor cozinheira do mundo? – Não sei se devo ficar emocionada ou muito irritada por você ser tão cara de pau – ela disse isso com os olhos cerrados, como se me avaliasse. – Você definitivamente deve ficar muito emocionada. Meg fingiu estar chorando, colocando as mãos sobre o rosto para esconder

Page 5: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

140

as suas mais sinceras “lágrimas”. Nós duas começamos a rir, mas eu queria chorar porque o frango frito acabou naquele exato momento. Já não sou mais gorda (dietas e exercícios físicos me ajudaram quando comecei a me importar com meu corpo e não suportava mais as piadinhas que sempre faziam) mas isso não quer dizer que eu tenha deixado de gostar de comer, muito pelo contrário. Fora as porcarias que como na Meg, o resto do meu dia é baseado em uma dieta balanceada e foi assim que aprendi que, mesmo as mais gostosas das comidas saudáveis jamais irão se comparar ao gosto maravilhoso de uma batata frita. Levantei da cadeira e peguei meus pertences. Já estava tarde e eu tinha que voltar para a casa e terminar de escrever o artigo para a minha coluna de amanhã. Sim, eu era Jornalista. Sempre fui uma pessoa muito curiosa e gostava de saber tudo o que estava acontecendo no mundo. Além disso, nas redações da escola, eu era a melhor. Ou seja, combine curiosidade com escrita e forme uma nova jornalista, pronta para divulgar qual roupa Angelina Jolie usava no Oscar. Falando a verdade, eu estava mais para uma comentarista. Mas, como sou muito persistente, me recuso a continuar pelo resto da minha vida discutindo as fofocas dos famosos; posso fazer isso com qualquer um e ser paga para isso é muito bom, mas não é o que quero para minha vida. Sinceramente, tem coisas muito mais interessantes e urgentes para serem discutidas e analisadas. Eu, por exemplo, gostaria de escrever artigos de críticas à sociedade atual e essa oportunidade eu teria se conseguisse uma coluna no Jornal Amanhã. Falar sobre todos os problemas que assolam nosso tempo e sobre algumas coisas que os seres humanos têm coragem de fazer uns aos outros não seria incrível? Isso com certeza é bem melhor do que o novo iate que Leonardo DiCaprio comprou. – O quê? Por que está indo embora tão cedo? São apenas onze e meia! Me despedi de Meg, que resmungava sobre não ter mais a sua velha amiga, nada atarefada e peguei o primeiro táxi que passou pela rua, já que meu carro estava no concerto há dois meses. Tudo bem, o cara podia estar me enrolando, mas eu também não tinha muito tempo para ir busca-lo agora, não quando estava tentando uma oportunidade para enviar um artigo meu e conseguir uma vaga no maior jornal do país, por isso só deixava que ele continuasse lá. A melhor parte quanto ao restaurante de Meg é que ele não ficava muito longe de minha casa, então não demorei muito para chegar. Moro sozinha já fazem três anos, mas isso não faz com que não tenha que aturar minha mãe fazendo diversas perguntas sobre a organização da casa – que eu realmente não era muito boa e isso se refletia em roupas espalhadas por todos os cantos e talvez, apenas talvez, algumas comidas podres na geladeira. Não tenho tempo para me preocupar com essas coisas de casa, mas minha mãe não parecia entender isso. Sabendo que não atenderia antes, ela dormia às nove e acordava duas da manhã apenas para me atazanar. Hoje ela ligou um pouco mais tarde, enquanto eu terminava de escrever em meu notebook, quase dormindo em cima dele, às três da manhã:– Alô? Oi! Se você ligou para a Laura – fingi que era uma mensagem gravada – saiba que ela está muito ocupada limpando a casa. Deixe seu recado após o bip. Biiiip. – Eu sei a diferença, sua criaturinha horrenda – ela disse do outro lado da linha. Minha mãe sempre me chamava de criaturinha horrenda; já tinha virado um apelido carinhoso do qual eu sempre ria. – Como foi seu dia? – Cansativo, chato, mas acho que estou perto de conseguir aquela oportunidade que espero tanto. – Farei questão de fazer algo bem politicamente incorreto e arrumar o maior barraco para ser tema de seu primeiro artigo – ela disse rindo. – Do jeito que a senhora é pacífica, é capaz de pisar sem querer numa formiga e ficar chorando um dia inteiro por isso – brinquei. – Ou um mês. Além do mais, o que seria politicamente incorreto para você? Usar uma camisa com mangas mais curtas? Tipo no cotovelo?

Page 6: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

141

– Muito engraçadinha... Nesse momento o gato da vizinha invadiu minha casa e ficou dando voltas pelas minhas pernas. Esse poderia ser meu primeiro tema para o meu primeiro artigo: “Gatos: o que os levam a invadir a casa alheia?”. Mas ele fazia isso tantas vezes que já tinha se tornado uma companhia para mim de todas as madrugadas. – E as tarefas de casa? – Minha mãe começou. – Comprou aquele produto que te indiquei para tirar manchas? – Mãe! – Laura, você tem que limpar essa imundice! Se não fizer isso, eu mesma vou aí pessoalmente te obrigar… – Tudo bem, dona Branca. Mas se continuar com esse seu plano, vai mesmo acabar sendo notícia de jornal. Já posso até ver a manchete: “mãe invade casa de filha e passa mal após ver a bagunça de sua casa”. – Acho que quem vai passar mal é você, criaturinha horrenda – ela ficou em silêncio por um tempo, enquanto ouvia um bocejo do outro lado da linha. – Agora preciso dormir. Seu pai mandou lembranças. E trate de dormir também. Boa noite. Desliguei o telefone e segui a ordem de minha mãe; se tem uma coisa que eu precisava era de um bom momento de descanso. Relatório do dia: tenho que limpar a casa urgentemente.

Page 7: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

142

Capítulo 3 – Cuidado, o monstro está lá fora

Jimin

A campainha da minha casa tocou alto e me deu um susto. Estava totalmente imerso na leitura de um dos meus livros favoritos de minha autora favorita, Agatha Christie. Nesse romance, ela descrevia mais um de seus misteriosos e brilhantes assassinatos que seria resolvido pelo gênio Hercule Poirot. Fechei o livro e o depositei sobre a mesa de centro para ir atender a porta, não sem antes pegar um de meus casacos e óculos especiais. Abri a porta apenas o suficiente para ver quem estava lá fora: Henrique, meu amigo carteiro (e único amigo, também). Ele entrou em minha casa sem pedir licença com uma bolsa cheia de cartas e uma cara cansada, certamente porque estava andando nesse sol escaldante durante toda a manhã. – Obrigado por perguntar. Claro que você pode entrar – Respondi um tanto mal–humorado por ter que interromper a minha leitura. – Como se eu precisasse pedir para entrar – Henrique imediatamente sentou–se no sofá, ficando em silêncio enquanto tentava recuperar o fôlego. – Sabe o que aconteceu neste exato momento? Uma maratona! Fui até a cozinha pegar um copo de água para ele. Assim que entrei, Mickey começou a miar pedindo por ração. Sinceramente, aquele gato era impossível, ninguém podia entrar na cozinha, seu habitat natural, sem pelo menos encher metade de sua vasilha. Fiz o que o senhor soberano Gato pediu e voltei para a sala. – Uma maratona? Não sabia que você era do tipo esportivo… – falei, enquanto entregava o copo para Henrique. – E não sou, mas você me obriga a fazer exercícios. Sua vizinha louca queria falar comigo, perguntando de onde veio aquela carta. E o que eu fiz? Eu corri dela. Tipo, corri muito dela. Eu nunca pensei que brincaria de pega–pega quando grande. – Você não teria que correr se soubesse mentir – me joguei no sofá, ao lado dele. Se tem uma coisa que o Henrique não sabe, é mentir. Sério, ele é péssimo nisso. Sempre que tenta, fica vermelho e começa a suar. Eu ainda acho que ele é uma espécie de reencarnação do Pinóquio, só falta o nariz crescer. – Ah, é? Pois eu não teria que mentir se não fosse por você! Por que não enviar as malditas cartas pelo Correio? – Ele parecia estar extremamente injuriado. Não era a primeira vez que tínhamos essa conversa, mas a cada vez que ele falava sobre isso ficava mais e mais irritado. Tudo bem, eu entendo o lado dele. Se fosse comigo, também ficaria irritado. Mas o que posso fazer? Eu tenho que enviar as cartas, custe o que custar. Além do mais, o conteúdo delas só ajuda as pessoas, não tem por que ficarem tão revoltados...tirando o fato de descobrirem que há alguém bisbilhotando as suas vidas, fora isso, está tudo bem. – Não posso, você sabe. Eu teria que colocar meu nome e endereço. E você não quer que um bando de pessoas sedentas por sangue e armados até os dentes invadam a casa de seu melhor amigo e o mandem para o além, certo?– Na verdade, queria sim.Coloquei a mão no peito fingindo estar extremamente ofendido antes de pegar o copo de sua mão e jogar o resto de água na cara dele. Mas só tinham algumas gotas, o maldito passa bem.Andei até a janela e abri uma brecha da cortina para verificar lá fora. Tinha uma pessoa lá fora, olhando ao redor como se estivesse procurando alguém. Tinha quase certeza de que era a tal vizinha perseguidora. Pelo visto, ela também era muito persistente, já que ainda procurava por Henrique durante todos esses...cinco minutos?– Ela está aqui, como um predador procura a sua presa – Henrique também veio até a

Page 8: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

143

janela para observar. Assim que viu o rosto de seu pesadelo, recuou e fechou a cortina, como se ela pudesse vê-lo tão facilmente através daquela janela. – Eu realmente espero que você não a tenha deixado te ver entrando aqui.– Claro que não, corri sorrateiramente como um verdadeiro ninja. Abandonei Henrique na sala e fui até o quarto pegar uma carta que deixei no criado-mudo. Passei a noite toda escrevendo-a, era o meu primeiro “projeto de enviar cartas para pessoas além dos condomínios em que eu moro”. Sim, era um nome longo, mas não consegui pensar em nada melhor. E obviamente o nome dispensava explicações. Para falar a verdade, não escrevi muita coisa, não é como se fosse uma carta para meus vizinhos, nos quais eu já sabia o que estava acontecendo na vida deles, por conseguinte tendo assuntos com eles. Era apenas uma introdução. “Você deve estar se perguntando: ‘Quem é que envia cartas em pleno século XXI? Será que meu tatara tatara tatara...Enfim, meu avô dos tempos antigos, ressurgiu das cinzas como uma fênix e resolveu enviar um texto sobre como era a vida na sua época?’. Já respondendo a sua pergunta, não, eu não sou seu avô (e nem o seu pai).. Agora você deve estar se perguntando ‘okay, você não é o meu avô. Mas talvez seja um parente meu, de qualquer forma. Algum primo, talvez?’. Também não, eu não tenho o mínimo de ligação com você, não sou nem mesmo seu colega de infância. Eu sou apenas uma pessoa que ainda não consegue aceitar essa atual rejeição a uma tão boa forma de comunicação. Peço encarecidamente que responda essa carta. Por favor, procure por “Henrique Maia” na central do Correio mais próxima.Jimin, para você.”Voltei para sala. Assim que meu querido amigo viu a carta em minha mão, tentou fugir (mesmo com o monstro lá fora). Mal sabia ele que eu tranquei a porta, já prevendo o que aconteceria futuramente naquela conversa. Não só a vizinha era persistente, pois mesmo quando já havia percebido que a porta estava trancada, ainda ficou um tempo tentando abri-la à força. Em seguida, desistiu e voltou para o seu lugar no sofá. – Você não pode me colocar em seus esquemas de novo! Ah, sério. Diz que o Mickey é impossível, mas acho que ele puxou ao dono – ele reclamava sem parar, poderia ficar o dia todo falando o quanto “eu sou um idiota inconsequente”.– É só essa, eu juro. É a última.Henrique pegou uma almofada do sofá e jogou em mim. Depois ficou me olhando, tentando descobrir se eu estava mentindo. Até que seu olhar era assustador, mas ele fazia isso toda vez que eu chegava na sala com uma magnífica carta nova para ser enviada. Desculpe, Henrique, mas você é o único amigo carteiro que eu tenho. Sinto muito, de verdade.– Não, não é a última. Assim como a anterior não foi a última, a anterior da anterior não foi a última, e assim, por diante – tudo bem, eu confesso. Toda vez eu dizia isso, mas eu não podia fazer nada se essa é a única tática de persuasão que eu tinha. Se bem que ela estava perdendo o efeito. Recentemente eu li sobre psicologia reversa, espero que funcione agora, pois o meu projeto não pode acabar desse jeito, sem nem sequer ter verdadeiramente começado.– Entendi. Você é um medroso, nunca pensei que uma pessoa teria medo de enviar cartas. Um amigo medroso…– Você não vai me convencer assim, eu conheço muito bem psicologia reversa.Suspirei. Era uma tática tão boa...só me restava uma opção: fazer um acordo. Não gosto de acordos, mas qualquer coisa é bem vinda em nome do meu projeto.– Tudo bem, Henrique, você não me dá escolhas. Vamos fazer um acordo… – interrompi minha fala e pensei por um tempo o que eu poderia dar em troca. – Admite, você sempre vai acabar aceitando e eu vencendo. Mas, como sou um bom amigo, sinto-me culpado pela sua situação e lhe oferecerei um ótimo pagamento em troca de seus serviços. De agora em diante, só enviarei três cartas por mês. Apenas três, nada mais que isso.

Page 9: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

144

Vi um pequeno brilho em seus olhos. Durante toda a conversa, essa era a primeira vez que ele parecia estar interessado. Creio que o acordo seguiria em frente. Com certeza alguém pensaria “três é muito, não vale a pena”. Mas, garanto que costumo enviar bem mais que isso por mês. Como já disse antes, a vizinhança é sempre bem agitada.– Acontece que não pretendo entregar mais nenhuma carta sua – ele respondeu.Isso me complicou. O que mais eu podia fazer? Tinha certeza que ele concordaria com isso. Tive que tomar medidas desesperadoras.– Tudo bem, se você aceitar entregar essa, eu te dou aquela minha jaqueta de couro que você adora e só envio três cartas por mês.Ele pareceu refletir.– Apenas três, certo? Jure em nome de sua vida que não irá descumprir o acordo.– Eu juro em nome da sua e da minha vida – respondi, com a mão no peito em sinal de respeito e a outra a vista dos olhos de Henrique para que ele tivesse a garantia de que não estava cruzando os dedos.– Você não pode jurar em nome da minha vida...me dê logo essa carta.Entreguei para ele com um sorriso enorme no rosto. A partir desse dia, declaro os acordos como as melhores coisas existente no universo (ficando em terceiro lugar, só perdendo para livros da Agatha Christie e problemas, claro). – O monstro ainda está fora da jaula? – Perguntou Henrique, já pegando seus pertences, pronto para ir embora e voltar ao seu trabalho.Olhei pela janela, nenhum sinal do monstro. Ela finalmente desistiu e voltou para a casa, em nome da minha alegria e da alegria de Henrique. Balancei a cabeça, negando, e entreguei a chave para ele abrir a porta. Logo que girou a maçaneta, recuou, como se tivesse lembrado de algo.– E a minha jaqueta? – Fiz um sinal para que ele esperasse e fui até o guarda-roupa para buscar. Quando estendi para ele, me interrompi; aquela era uma das minhas jaquetas favoritas e a mais cara, mas é como digo: “sempre siga aquilo em que acredita”. Ele continuou: – E você me esqueceu de falar para quem eu devo enviar a carta. O vizinho da casa número 39?– Não, não. Dessa vez, vai ser algo diferente. É um novo projeto meu. Quero que você escolha qualquer casa, há duas quadras aqui, e entregue-lhe a carta. Ele fez um sinal de “okay” com as mãos e abriu a porta, olhando ao redor para ter a certeza de que a vizinha realmente não estava lá, e finalmente voltando para o calor escaldante das ruas.

Page 10: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

145

Capítulo 4 – As cartas de alguém

Laura

– Estou gostando de ver, Laura – meu chefe, Manuel, me parabenizou com um tapinha nas costas. Meu chefe é decididamente um cara enorme, em todos os sentidos. Ele é, com toda certeza, o homem mais alto que conheço e o mais gordo também; devia ter cerca de 2 metros e 15 centímetros de altura e poderia muito bem pesar quase 300 quilos. Mas embora a primeira vista assustasse por ele ser quase um prédio, principalmente em relação às pessoas pequenas, quando o conhecia era fácil perceber que ele é um amor de pessoa. É ele quem está me ajudando com isso de conseguir uma promoção, tentando mostrar meus talentos para o amigo dele. Sorri para ele e recolhi meus papéis da mesa. Acabei tendo que fazer um backup no meu computador do trabalho para poder formatar e isso atrasou minha saída de lá, o que significa que eu não poderia ir até o restaurante de Meg; logo no dia de seu aniversário. Mas Meg entenderia, tenho certeza. O melhor de ser amiga daquela pequenina é que ela sempre vai te perdoar e esquecer o que aconteceu se você lhe der um motivo convincente para ter feito isso ou apenas se recompensá-la por isso. Amanhã faria uma festa pra ela e estaria perdoada. Fui para casa correndo quando lembrei que minha mãe iria me visitar amanhã e eu tinha que fazer uma faxina completa. Normalmente faço isso no sábado (e por “normalmente”, quero dizer de vez em nunca), mas eu realmente não queria ouvir um discurso. Provavelmente já era 11 horas, passaria a noite limpando a casa. Cheguei e o gato da vizinha já estava lá. Às vezes ele fazia meu sofá de arranhador, enfeitando-o com arranhões muito artísticos, uma pena que dessa arte eu não gosto. O peguei no flagra – assim que me viu, saiu correndo. Era incrível como, apesar de não ter nem um peixe no aquário, ainda sofria com esses problemas de pessoas que têm animais de estimação. Ele rasgava minhas correspondências, arranhava meu sofá e já tinha até aberto uns pacotes de biscoitos, sem falar de usar cantos da minha casa como se fossem sua caixinha de areia. Mas mesmo ele sendo um demoniozinho incontrolável, não conseguia ficar brava; era um bichinho muito fofo, todo amarelinho e branco, com aquele olhar de culpa irresistível, ao estilo Gato de Botas. Nem tomei banho, apenas troquei de roupa, prendi meu cabelo e coloquei a mão na cintura olhando para a sala, pensando em por onde eu deveria começar. Chamar aquele lugar de bagunçado chegava a ser injusto com as casas bagunçadas; um lixão deveria ser mais arrumado que aquilo ali. Peguei um saco e comecei a recolher alguns papéis do chão. Sempre que estou com ideias, começo a escrever em qualquer lugar para não esquecer e depois passo para o computador, só que sempre esqueço de jogar o papel fora e, não entendo como, mas eles sempre vão parar no chão. Num dos cantos da sala, perto da porta, tinha um montinho de papéis rasgados. Eu tinha certeza que aquelas eram as minhas correspondências...ah, aquele gato… Recolhi cada uma e coloquei em um saco separado, para que pudesse tentar ler mais tarde. Terminei de limpar a sala e fui para a cozinha. É sério, eu achei comida estragada no sofá da sala e na geladeira. Estava tão podre que seria difícil distinguir quais comidas elas foram um dia. Pizza? Pão? Podia muito bem ter coisas da época da faculdade; tenho certeza que uma empada apodrecida que encontrei foi de uma festinha do meu ano de formatura, dois anos atrás. E o pior: fedia muito. Dizem que o cheiro de um corpo morto é insuportável, talvez seja o mesmo cheiro de uma comida estragada há milênios.Ficarei anos tentando descobrir como é que eu não vi aqueles pedaços mortais de comida antes. Nunca mais guardarei comida para mais tarde, eu poderia ter morrido envenenada só de olhar.

Page 11: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

146

Logo após minha quase morte, segui para os outros cômodos da casa e, mais ou menos umas três horas depois, completei a faxina. Não é por nada não, mas depois da minha grande limpeza, meu apartamento parecia três vezes maior, capaz até de fazer eco. E o chão? Brilhando tanto quanto o meu cabelo seboso por causa do suor. Tomei banho e peguei o saquinho com correspondências rasgadas e uma fita adesiva para tentar montar aquele quebra-cabeça. A maioria das cartas eram contas que eu muito provavelmente teria que tirar a segunda via e outras coisas desinteressantes, mas uma me chamou a atenção. Não tinha selo, endereço (nem meu e muito menos do remetente) ou o nome de quem enviou, era apenas um envelope branco com os dizeres: sim, é para você e não foi um engano. Curiosamente, essa carta era a única que estava inteira, exceto por um rasgo na parte de cima. Não parecia ser contas, promoções ou qualquer outra carta enviada por lojas, então só podia ser uma carta normal, à moda antiga. Quem envia cartas em pelo século XXI?Abri o envelope, tirei uma folha de dentro e li. A carta dizia isso: “Você deve estar se perguntando: ‘Quem é que envia cartas em pleno século XXI? Será que meu tatara tatara tatara...Enfim, meu avô dos tempos antigos, ressurgiu das cinzas como uma fênix e resolveu enviar um texto sobre como era a vida na sua época?’. Já respondendo a sua pergunta, não, eu não sou seu avô (e nem o seu pai).. Agora você deve estar se perguntando ‘okay, você não é o meu avô. Mas talvez seja um parente meu, de qualquer forma. Algum primo, talvez?’. Também não, eu não tenho o mínimo de ligação com você, não sou nem mesmo seu colega de infância. Eu sou apenas uma pessoa que ainda não consegue aceitar essa atual rejeição a uma tão boa forma de comunicação. Peço encarecidamente que responda essa carta. Por favor, procure por ‘Henrique Maia’ na central do Correio mais próxima.Jimin, para você”Essa era a carta mais esquisita que eu já tinha lido, e eu já tinha lido muita carta estranha quando trabalhava de assistente de um escritor de novelas famoso. Procurei por outras coisas que pudessem estar escritas nela, mas era apenas isso. Jimin? Quem seria Jimin? Estava claro que era um pseudônimo, mas para quem? Fiquei curiosa; minha jornalista investigativa interior estava muito animada com todo aquele mistério. Fui dormir pensando nisso, louca para discutir isso com Meg, talvez ela mesma tivesse mandado.

***

Acordei com o barulho da campainha tocando. Olhei para o relógio e o desespero percorreu todo o meu corpo: já era meio dia. Não, eu não tinha perdido o horário do trabalho... Era sábado, estava de folga, mas esse é o dia em que minha mãe viria me visitar. Ela me disse que estaria aqui às onze horas, isso quer dizer que ela estava plantada lá fora faz uma hora, pois sim, minha mãe é uma pessoa extremamente pontual.Nem poupei esforços para me arrumar, só corri desesperadamente para abrir a porta. Minha mãe estava com as mãos na cintura e uma cara mais assustadora que qualquer ser sobrenatural de um filme de terror. Podia ver a morte passando bem diante dos meus olhos (de novo, a primeira vez foi com as comidas estragadas). Queria cavar um buraco bem fundo e me esconder lá pelo resto da minha vida. Ela entrou e nem disse nada, tal ação que não significava algo bom, meus anos de experiência garantem isso. Acho que mudei de ideia, eu não queria cavar um simples buraco, mas sim ir para o centro da Terra. Em 5 segundos, algo, “sem querer”, sairia voando inocentemente e pararia na minha cara. 1, 2, 3...e então eu fui acertada por uma almofada. É só isso que você tem para oferecer, mãe?– Eu não acredito que você me deixou esperando uma hora, Laura! – Minha mãe não

Page 12: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

147

gritava quando brigava comigo. Seu tom mudava? Sim, mas ela nunca gritava. Quem via de longe, nem pensaria na possibilidade de uma discussão.– Desculpa mãe, cheguei tarde do trabalho ontem e não ouvi…– Não interessa, Laura! Uma hora! Esperei uma hora sentada aí fora.Minha mãe se sentou no sofá, mas logo se levantou para tirar de seu caminho um montinho de papéis que eu tinha deixado ali e olhar para um deles, a carta. A deixou de lado e começou a andar pela casa, tocando nos móveis para ver se tinha poeira. Ela realmente avaliou todos os cômodos, como uma senhora poderosa confirma se sua empregada fez um bom trabalho. Como minha mãe já sabia minhas técnicas, também olhou debaixo dos tapetes, e claro que não encontrou nada pois eu limpei cada minúsculo local. – Até que está limpo, dá pro gasto – ela falou, fingindo não estar claramente emocionada. Eu podia ver lágrimas nos olhos dela...tudo bem, não lágrimas, mas ela estava emocionada sim, eu tenho certeza.– Dá pro gasto? Você nunca viu uma casa tão limpa quanto essa – me gabei.Sentei-me no sofá para conversar com ela. Já não a via fazia um tempo, estava muito ocupada com o trabalho. Quer dizer, eu ligava para ela todos os dias, mas não podia vê-la pessoalmente. Fico pensando que, talvez, quando eu ganhasse a promoção, não teria mais tanto trabalho assim, mas acho que pode ser o contrário. Minha responsabilidade seria bem maior do que é agora.– E o seu trabalho? Você já terminou de escrever?– Ainda não...mas eu acho que conseguirei essa vaga. Estou dando meu sangue, suor e lágrimas nisso. E você sabe que quando eu quero algo, eu consigo – respondi. Sim, era verdade. Lembro do dia em que passamos na frente de uma bomboniere, eu queria um doce, mas ela se recusou a me dar. Não fiquei gritando na frente de todo mundo, como muitas crianças fazem quando querem algo. Muito pelo contrário, fiz uma negociação pacífica, argumentando com a minha mãe e a convencendo de que ela, sem dúvida alguma, deveria comprar aquele doce para mim. E sim, eu consegui.– Mãe, por acaso, só por curiosidade mesmo, você me enviou uma carta sem endereço ontem?Ela olhou para mim, parecendo estar muito confusa. Não preciso nem de resposta, ela me criou, posso ter certeza que não sabia do que eu estava falando. Um candidato eliminado, faltam...talvez dois, ou três. Quem iria querer brincar de remetente misterioso comigo? Não tenho muitos amigos justamente pela falta de tempo, então não tinham muitas opções.A senhora Branca estava prestar a responder, se não tivesse sido interrompida pela campainha tocando (de novo, hoje é um dia movimentado). Não precisava abrir a porta para saber quem era, pois eu mesma a convidei. De quem eu estava falando? De Meg, claro! Não fui para a festa de aniversário dela ontem, tinha que fazer algo, mesmo pequeno, para comemorar seu mais um ano de vida no planeta Terra. Minha mãe levantou para abrir a porta, mas eu a impedi antes, caso contrário, a surpresa seria estragada.– Não atenda a porta agora – sussurrei para que Meg não pudesse me ouvir. – Eu vou para a cozinha e você deixa Meg entrar, mas não fale para ela que eu estou aqui. Finja que não estou em casa.– O quê? Mas por quê? – Ela entendeu o recado e também falou baixinho.– Mãe, como pôde se esquecer do aniversário da Meg, que foi ontem? – Okay, posso dizer que ela é alguém com um raciocínio rápido, porque rapidamente abriu a boca e a fechou rapidamente como se estivesse falando “ah, entendi”, completando com um “você não foi pra festa dela ontem e quer compensar hoje, entendi”, e mais um “a cabeça de vento se esqueceu mais uma vez”. O primeiro pensamento está certo, mas o segundo não, eu não esqueci o aniversário dela, eu só não pude ir.Peguei o bolo em cima da mesa e me escondi atrás do balcão. Escutei os passos de

Page 13: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

148

minha mãe e a porta se abrindo. – Meg, que bom ver você. A propósito, feliz aniversário – ela provavelmente abraçou Meg e as duas deviam já estar andando em direção ao sofá. Essas pessoas de hoje em dia estão tão sedentárias.– Obrigada, senhora Branca. Estava esperando pela senhora ontem – de acordo com minha incrível dedução, diria que mamãe estava pronta para se defender, dizendo que era tudo culpa minha. Mas Meg foi mais rápida, era uma ótima concorrente na competição de “quem fala mal mais rápida sobre a Laura”. – Mas eu aposto meu restaurante que Laura não lhe avisou. Cadê ela? Preciso esganá-la.– Eu também, mas, infelizmente, ela não está aqui. Teve que fazer uma viagem de negócios e me pediu para cuidar da casa enquanto estava fora – essa é a minha mãe! Isso com certeza ia convencer Meg. Na verdade, qualquer coisa convenceria Meg, ela é muito ingênua. Agora é a minha deixa. Acendi a vela do bolo e silenciosamente, me levantei com o bolo ainda na mão e andei na ponta dos pés. Quando cheguei perto das duas, gritei um “buu” bem alto e Meg deu um pulo. Tenho que admitir que ela quase caiu. Também tenho que admitir que eu teria rido muito se isso tivesse acontecido. Pareço ser má, mas qualquer um riria também.– Laura! Precisava mesmo disso? Pensei que você só ia chegar com o bolo e cantando – mamãe reclamou, mas estava se controlando para não rir. Ela colocou a mão na boca, mas acabou não resistindo e caiu na gargalhada. Já eu gostaria de saber como é que se respira, porque está difícil. Coloquei o bolo na mesinha da sala, sabendo que um enorme acidente poderia acontecer – e com enorme acidente digo o bolo caindo das minhas mãos devido ao ataque de uma criatura raivosa. Logo em seguida, Meg me atacou com soquinhos, mas até ela estava rindo após se recuperar do choque. Mesmo que eu ainda estivesse rindo, tive que me controlar e me esquivar dos socos para poder falar.– Se você não soprar a vela do bolo agora, não poderá fazer um pedido pois ela estará morta.Meg parou de me socar e olhou para o bolo. Eu tinha esquecido completamente de comprar velas novas e acabei sendo obrigada a utilizar a vela já usada que tinha em casa. Só sobrava um pequeno pedaço dela, no qual acabaria em poucos segundos.– Mas e a música de parabéns? Vai pular essa parte? – Margareth questionou, não querendo quebrar o ritual sagrado (e constrangedor, na minha opinião. Eu nunca sabia o que fazer na hora dos parabéns quando eu sou a aniversariante). – Quem se importa com a música de parabéns? – Ela olhou para mim, bem fundo, na minha alma, como se estivesse falando “eu me importo com a música de parabéns”. Então eu cantei a música – cem vezes mais rápido do que o normal, com a minha mãe me acompanhando. Segundos depois, ela apagou a vela e todos batemos palmas.Fui até a cozinha pegar talheres e uma faca para cortar o bolo. O bolo era de chocolate, o meu favorito. Como não sei cozinhar muito bem, comprei ele na padaria. Só conseguia fazer o básico, dá última vez que tentei fazer uma comida mais “complexa” queimei a comida, a panela e quase a casa toda pois tive o descuido de esquecer um lenço em cima do fogão, a minha sorte foi que mamãe estava em casa e sentiu o cheiro de algo queimando e, como uma bombeira em ação, apagou o fogo no lenço. Mas enfim, duvido que fosse um bolo melhor que o da Meg, mas dá pro gasto. Afinal, bolo é bolo (menos o meu solado, aquilo não é um bolo).– Tenho certeza que você não fez esse bolo – opinou a minha mãe. Eu ia discordar e defender a minha dignidade, mas não estava em condições de fazer isso. Tudo bem, sou humilde, admito os meus erros.Comemos o bolo e ficamos conversando durante um bom tempo. Não era a primeira vez que nós três nos reunimos, costumamos fazer isso sempre que podemos, somos todas boas amigas. Quando terminamos de comer, minha mãe se ofereceu para lavar

Page 14: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

149

a louça. Por educação, falei coisas como “não precisa, eu lavo depois”, mas na verdade eu queria dizer “vá em frente”. Se bem que, se eu dissesse isso, ela iria se recusar a lavar, então a estratégia da educação e negação era, sem dúvida alguma, a melhor. Aproveitei meu momento a sós com Margareth para questionar sobre a carta.– Meg, por acaso, só por curiosidade mesmo, você me enviou uma carta sem endereço ontem?Meg olhou para mim da mesma forma confusa que mamãe. Eu também a conhecia o suficiente para dizer que ela estava realmente confusa, mas Meg era boa com encenação. Não posso garantir que era verdade.– Não, por que eu enviaria? – Não sei, mas alguém me enviou uma. É muito estranho, veja – peguei a carta e entreguei para ela. A observei enquanto lia, suas expressões iam de surpresa, confusão, curiosidade para diversão. Meg olhou o envelope (coisa que eu já fiz), inclusive olhou dentro dele, tentando achar alguma pista do remetente. Mas claro que, assim como eu, não achou absolutamente nada.– Oh, que estranho. Não tem nenhum endereço, e aqui fala sobre um tal de Henrique. Pode ter sido ele que colocou a carta aqui, talvez o próprio tenha escrito a carta – ela leu mais uma vez e a entregou para mim.– Não, ele pode ter entregado a carta, mas não escrito. Minha experiência como jornalista investigativa me diz que não.– Mas quem faria isso? Qual o propósito da brincadeira? E você não é uma jornalista investigativa.Lancei um olhar indignado para ela, fingindo não estar acreditando que ela não achava que eu pudesse ser esperta como uma jornalista investigativa. – Mas é tão inteligente quanto uma – Meg se corrigiu. Eu não engoli a reação de Meg. Ela não parecia estar mesmo mentindo, mas ela não me enganava. Aquele era exatamente o tipo de brincadeira que faria. Infelizmente, não tenho o poder de detectar mentiras. Resolvi que responderei a carta e irei para a central do Correio na segunda, procurar pelo tal Henrique Maia. Mesmo se a pessoa que escreveu a carta seja um conhecido meu, tenho certeza que esse Henrique era alguém que eu não conhecia. Até por que seria muita burrice selecionar alguém que já sabia que eu conhecia para pregar uma peça em mim.Não avancei muito na minha investigação naquele dia. Não era mamãe, ela certamente não tinha capacidade para isso (o que eu já sabia, mas tinha que eliminar as possibilidades. Desculpa mamãe). Mas podia ser Meg ou até mesmo o meu chefe. Consegui pensar em uma teoria que se encaixa perfeitamente com a minha situação: e se meu chefe tivesse enviado esse enigma para mim, como um teste para saber se sou boa o suficiente para ele me indicar ao cargo que eu queria? Afinal, um bom repórter é um bom analista e investigador. Meus pensamentos foram interrompidos pela minha mãe, que voltava da cozinha com uma vasilha de pipoca numa mão e uma caixa de CD na outra.– Trouxe um filme para assistirmos. Que tal? – Mamãe entregou a caixa para vermos qual filme era. Concordamos e ficamos todas quietas no sofá, comendo pipoca e assistindo ao filme muito bem escolhido pela senhora Branca. Relatório do dia: tenho que me lembrar de nunca mais deixar minha mãe plantada na porta, pois da próxima vez, posso levar muito mais que uma almofadada na cara; ainda não sei se posso confiar em Meg, mas preciso tentar com o meu chefe antes de voltar para ela; tenho que me lembrar também de nunca mais guardar comida para depois, aprendi com essa faxina que ele nunca chega.

Page 15: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

150

Capítulo 5 – Caro senhor misterioso

Laura

Eu estava no trabalho, sentada em uma cadeira e com os pés em cima da mesa comendo um salgadinho (tudo bem, eu assumo, tenho saído da dieta esses dias...talvez meses...). Minha mesa estava lotada de papéis, esperando para serem entregues ao meu chefe. Terminei todo o meu trabalho do dia e provavelmente ficaria de bobeira esperando o horário para ir embora. Como eu precisava ir para a central do Correio, pedirei para meu chefe que ele me libere mais cedo hoje. Como tenho uma boa credibilidade com ele, não fico preocupada sobre ele não deixar; ele com certeza deixaria. Além disso, também preciso fazer um interrogatório com o mesmo. Entretanto, dessa vez terei que ser mais discreta, diferente dos casos de mamãe e Meg, pois ele é realmente muito esperto, conseguiria me enganar facilmente. Ainda acho que foi ele que enviou a carta, não há nada que me convença que não foi. A lógica diz que é ele – se bem que não sou detetive e sim uma jornalista. Tenho que aproveitar o tempo livre também para escrever a resposta da carta. Não coloco a culpa na minha falta de tempo porque não demoraria tanto assim, mas...eu nem sequer tenho a certeza de quem foi que a enviou, como posso falar com alguém que não tenho assunto? Não sou do tipo antissocial, mas mesmo assim creio que isso é algo difícil para qualquer um, principalmente quando esse alguém quer dar uma de misterioso. Okay, vamos tentar... “Sério, quem é você? Um ser misterioso que envia cartas aleatórias através de amigos carteiros é alguém bem estranho e suspeito. Talvez você seja um psicopata, um ladrão ou qualquer criminoso querendo reunir informações pessoais minhas; ou talvez seja somente alguém estranho que não tem nada para fazer...” Não, não está bom. Não posso chamar alguém que eu nem conheço de desocupado, seria rude demais. Não sei o que ele faz pra poder julgar dessa forma. Mais uma vez... “Caro senhor misterioso,Sério, quem é você? Um ser misterioso que envia cartas aleatórias através de amigos carteiros é alguém bem estranho e suspeito. Talvez você seja um psicopata, um ladrão ou qualquer criminoso querendo reunir informações pessoais minhas e nesse caso, eu nem deveria estar te respondendo; ou talvez seja somente alguém muito peculiar. Acredito que seu nome não seja Jimin e também que você provavelmente sabe meu nome (ou, pelo menos, o seu amigo Henrique saiba ou possa descobrir de qualquer forma). Devo dizer que acredito na sua informação sobre não ser meu avô, mesmo que escreva cartas desse tipo em pleno século XIX, mas saiba que descobrirei caso você seja algum conhecido meu. Investigarei como uma verdadeira detetive profissional. Mas, deixando isso de lado, por que cartas? Por que não uma mensagem eletrônica, que é algo bem mais prático e rápido? Eu sei que as pessoas andam muito ligadas as telas de computador e celular atualmente, presas no mundo da tecnologia, mas tem muitas vezes que a tecnologia melhora a vida de qualquer pessoa, não precisa ter toda essa negação a ela. Mas tudo bem, gosto de seu pensamento diferenciado, nunca recebi uma carta, além das contas, promoções e coisas do tipo, em toda a minha vida. A sua é a primeira (isso se você não contar aquelas cartas que fazemos no dia do amigo para trocar com os colegas de classe) e me deixou um tanto surpresa. Admito que você despertou a minha curiosidade, e por isso estou enviando essa resposta. Porém, por favor, responda essas três perguntas básicas:1- Qual o seu hobby?2- Qual é o seu sonho?

Page 16: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

151

3- O que você faria se visse alguém passando mal na rua?É só isso, por favor, responda a minha carta (se bem que eu sei que você vai responder) Atenciosamente, Laura” Agora sim estava perfeito. Na verdade, estava mais que perfeito. Mas por que essas três perguntas? A partir das respostas, saberei se alguém que eu conheço a enviou, eu não seria uma jornalista de verdade se não pudesse desvendar histórias por trás de respostas (ou a verdade por trás da mentira). Tudo se trata de uma análise de caráter, algo que se pode fazer até mesmo com pessoas que você não conhece. E, para a minha felicidade, sou boa com esses tipos de análises. E, falando em análises...lá vem meu chefe. Era a hora da verdade (ou da possível verdade). Todos, por favor, silencio no tribunal, a grande investigação começará em 1 minuto. Ele estava saindo de sua sala e ia de mesa em mesa cumprimentar os funcionários. Desde que entrei neste departamento, sua personalidade nunca foi diferente; ele sempre foi alguém simpático, gentil, e muito, muito esperto. Não era à toa que era o chefe. Ainda estava praticamente jogada na cadeira, com os pés na mesa e a mão suja de salgadinho. Se outros funcionários estivessem na minha situação, imediatamente se arrumariam em questão de segundos, mas eu já fiquei assim várias vezes e o chefe nunca reclamou comigo. Meus colegas de trabalho dizem “Você deveria se comportar mais, pode perder o emprego por causa disso”, mas veja bem, eu sou uma jornalista, tenho que ser totalmente verdadeira. Não quero inventar mentiras como os vários jornalistas fazem por aí só para manipular seus telespectadores ou pelo simples fato de não ter ideia do que escrever. Além disso, sou boa no que faço e ele sabe que não conseguirá alguém melhor que eu. Certo, serei mais humilde na próxima. Meu chefe cumprimentou quase todo mundo e andou em direção a mim para falar comigo. Ele voltou seu olhar para a minha mesa cheia de papéis e depois para mim; em seguida, abriu um sorriso e pegou os papéis. – Por que será que eu não fico surpreso? Se quiser, já pode ir pra casa. Ou pode ficar aqui escrevendo seu artigo para o projeto, como preferir – disse Manuel, tentando impedir que toda a papelada voasse. – Quero ser liberada, preciso resolver um assunto – Manuel pareceu ficar surpreso com a minha resposta, visto que eu sempre escolhia permanecer lá. E eu realmente ficaria, se o assunto não fosse urgente. – Irei a central de Correio, tenho que entregar uma carta urgentemente. Talvez você saiba que carta é essa. – Não, não sei – imagino que ele queria dizer “Por que eu saberia?”. Um brilho surgiu em seus olhos e ele não estava mais confuso, o peixe foi fisgado, estalou os dedos e falou. – Ah, sim, sei sim. Aqueles seus cartões postais que você comprou para sua prima do exterior. Suspirei, que decepção! Ele não era fácil, não era mesmo. – Esse mesmo, na sexta lembrei que tenho que enviar. Não vou simplesmente mandar fotos pra ela, ela não gosta que as pessoas só pensem na internet e esqueçam as cartas. – É um pensamento um tanto diferente. – Sim, muito diferente. Aliás, ela insistiu que eu enviasse, por isso estou indo agora mesmo fazer isso. Combinei com um amigo chamado Henrique – tudo bem, não é possível que ele não demonstrasse nenhuma reação interessante após o nome Henrique ter sido citado. – Okay então. Vai lá, vejo você amanhã. Levantei e peguei minha bolsa. Relatório do dia: nada foi descoberto. Meu chefe era duro na queda. Amanhã devo tentar de novo, mas acho que só vou descobrir algo, mesmo que pouco, quando a pessoa misteriosa me enviar outra carta. Creio que nem mesmo o tal de Henrique Maia poderá me ajudar, a não ser que seja alguém muito

Page 17: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

152

fácil de recolher informações (o verdadeiro tagarela, ou alguém que definitivamente não saiba guardar segredos. Esse tipo de gente sempre facilita muito meu trabalho, gosto muitos deles, de verdade) Manuel se despediu de mim e voltou para sua sala. Demorei um tempo para arrumar toda a minha bagunça, mas tentei fazer isso o mais rápido possível pois estava ansiosa demais para esperar tanto. As respostas das minhas dúvidas esperavam por mim lá fora, eu que não as deixaria plantadas (como fiz com a pobre da minha mãe no sábado. Desculpa mãe, eu realmente sinto muito). Deixei tudo limpinho, me despedi dos meus colegas e do segurança e saí do escritório, pronta para conversar com uma pessoa desconhecida e enviar cartas. Esse, definitivamente, seria um longo e maravilhoso dia!

Page 18: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

153

Capítulo 6 – O tanto de sorte que estou tendo hoje

Laura

O calor estava insuportável, e o mais incrível é que ontem mesmo estava um pouco frio; o clima anda muito rebelde ultimamente, ele precisa aprender boas maneiras. E é neste calor, nas ruas cheias e esburacadas, que eu andava em direção ao ponto de ônibus para ir a central do Correio mais próxima da minha casa (infelizmente, meu carro ainda está no conserto). Há uma possibilidade de Henrique não estar lá, o que seria uma tremenda perda de tempo e me mataria de curiosidade por mais alguns dias. Eu sou capaz de ficar esperando horas a chegada dele, esse é o meu nível de desespero. Infelizmente, cheguei atrasada e o ônibus que eu teria que pegar foi embora sem mim. Anotando o tanto de sorte que eu estou tendo hoje: primeiro não consegui recolher informações com meu chefe; segundo, o tempo mudou de repente e me transforma em uma poça de suor; terceiro, o mundo todo resolve “passear” bem naquela hora, o que me torna uma poça de suor apertada tentando abrir espaço entre uma multidão; quarto, perco o ônibus, veremos qual vai ser o próximo grande acontecimento. No caminho, pude refletir sobre o conteúdo escrito na carta. Enquanto andava pela rua, vi várias e várias pessoas com os olhos vidrados nas telas do celular, esbarrando umas nas outras devido à falta de atenção e não falando nem mesmo um “desculpe”, somente abriam os olhos por um momento para o mundo real e depois voltavam a observar atentamente a tela do celular. Isso é frustrante, realmente muito frustrante. Mas não podemos esquecer aqueles apressados que fazem o mesmo, trocando a tela do celular pelo relógio de pulso. Sério, pra que tanta pressa? As pessoas hoje em dia andam tão apressadas que parecem nunca estar no presente, sempre no futuro, sem viver o que acontece agora e, por isso, coisas que representam tanto sentimento, como as cartas, simplesmente deixaram de existir. Está certo que é bom viver com toda a tecnologia e como ela torna tudo mais prático, mas por outro lado parece que todos estão se tornando cada vez mais uns robôs... essa pequena carta já me fez refletir muito sobre muita coisa, daria até uma reportagem; vou adicionar à lista. Cheguei ao destino desejado, o momento de descobertas estava mais próximo do que qualquer um podia imaginar. A central estava vazia, com apenas algumas poucas pessoas enviando documentos e atendentes atrás do balcão. Andei até um atendente que estava livre. – Com licença, será que eu poderia falar com Henrique Maia? – Henrique Maia? – Repetiu o atendente. – Ele não está presente no momento. – Mas quando ele volta? – Daqui a umas...duas horas. Acredito que seja melhor que você volte mais tarde ou amanhã. Essa era exatamente o que eu temia durante todo o caminho. Agora, adiciono mais algo para a minha lista de “o tanto de sorte que estou tendo hoje”: quinto, de todas as horas em que Henrique Maia poderia estar fazendo o trabalho entregando cartas na rua, logo essa foi justamente a hora que ele escolheu para fazer isso e não aparecer quando eu queria. Ótimo! – Oh, não, é urgente. Vou esperar mesmo, não tenho nenhum compromisso agora – respondi com uma animação que poderia mover montanhas.Eu não voltaria amanhã ou mais tarde, de jeito nenhum, prefiro ficar esperando. Não quero ter o azar de sair por um minuto e, de repente, quando voltasse, escutasse a mesma frase. Fiquei pacientemente, durante horas, sentada em uma cadeira aguardando. Creio que o atendente olhou estranho para mim e pensou que eu sou muito maluca, mas ele não sabe a urgência da situação (ou talvez ele simplesmente

Page 19: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

154

tenha achado que eu era algum tipo de namorada do tal Henrique e não estivesse acreditando em como ele teria conseguido alguém tão bonita quanto eu – okay, serei mais humilde futuramente). Se ele tivesse recebido aquela carta, faria o mesmo – tudo bem, talvez não, eu que sou curiosa demais, muitos teriam simplesmente ignorado a carta e pensado que era somente uma brincadeira sem graça. Passaram-se cerca de duas horas (duas horas de tédio e ansiedade), quando um rapaz com as roupas características de um carteiro chegou. Ele tinha os cabelos lisos e castanhos claro, era levemente vesgo e tinha os olhos escuros, cor de café. Podia ser por meu faro de jornalista ou minha incrível capacidade de dedução (ou apenas pelo fato dele ter um crachá), mas aquele era Henrique. Posso estar louca, mas ele parece ser o tipo de pessoa que deixa cartas de pessoas misteriosas para outras pessoas que nem mesmo ele conhece; aquele não era o carteiro que costumava deixar as correspondências no prédio. O mesmo entrou na área exclusiva para funcionários e, logo em seguida, o atendente veio falar comigo. – O senhor Henrique Maia chegou, por favor, só espere um minuto – ele entrou na mesma porta exclusiva e, um tempo depois, voltou com Henrique o seguindo logo atrás. Confuso era uma palavra fraca para descrevê-lo naquele momento, mas eu entendo, não é todo dia que alguém te persegue no seu trabalho. Levantei para cumprimenta-lo, o que foi constrangedor porque ele estava olhando para mim como se eu fosse um ser de outro mundo. O atendente voltou para o seu posto e nos deixou a sós. – Então...o que deseja? – Ele suava como se estivesse andando dez quilômetros, o que poderia ser explicado pelo fato de seu trabalho realmente envolver caminhadas, mas não era essa a explicação certa. Diria que ele estava nervoso; muito nervoso. O porquê eu não entendo. Peguei a carta na bolsa e ergui para que ele pudesse ver. Na mesma hora, pareceu entender o que eu queria e, sem nenhum motivo aparente, surgiu uma expressão de raiva em seu rosto.– Ah, aquele patife – sussurrou para si mesmo, mas assim que percebeu que eu estava escutando, tentou controlar as suas emoções. Não fazia nem um minuto que o conheci, mas Henrique parecia ser totalmente incompreensível para mim. Primeiro fica estranhamente nervoso, depois fica estranhamente irritado. Ainda irritado, me levou para um local mais reservado, e com mais reservado digo para fora da central. – Eu recebi essa carta e ela diz que eu devia procurar por você... – Sim, eu sei – ele ficou irritado novamente, ficou calado por um tempo, preso no mundo de seus pensamentos. – Quer dizer, eu sei que você recebeu essa carta. Como previ, foi ele mesmo que a colocara debaixo da minha porta. Na verdade, esse não era o grande mistério. – E imagino que não foi você quem a escreveu – insinuei, falando lentamente pois agora eu estava nervosa. – Quem foi? Por favor, diga-me se puder. Henrique olhava ao redor, eu já estava esperando que um monstro aparecesse e nos atacasse, pelo menos era isso que ele deixava a entender. Realmente não dava para entender seu nervosismo. Agora ele começava a falar baixinho, com medo de alguém o ouvir. – Me desculpe, mas eu não posso. Assenti, já imaginava que essa seria a resposta. Vasculhei minha bolsa mais uma vez e peguei a carta-resposta que escrevi. Entreguei para ele, no qual suspirou e recuou um pouco em pegá-la. Meus planos iniciais eram de conversar o máximo possível para extrair mais informações, porém ele estava tão nervoso e apreensivo que resolvi deixar isso para depois. O que quer que fosse que o incomodava, com certeza tinha ligação com aquelas cartas. Pela sua surpresa ao me ver, imagino que ele não esperava ver ninguém o procurando por causo disso, me fazendo concluir que ele não

Page 20: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

155

estava ciente do conteúdo da carta e muito menos concordou facilmente em entrega-la, além de provavelmente não querer de forma alguma que eu tivesse contato com ele. – É só isso. Obrigada por me atender, talvez eu tenha que vir aqui mais vezes. Henrique assentiu e voltou para dentro da central, enquanto eu fui diretamente para o ponto de ônibus...pelo menos foi isso que aconteceu inicialmente, mas a minha curiosidade me fez voltar. Para conversar com Henrique? Não mesmo, pelo menos hoje, isso não daria certo. Na verdade, eu pretendia andar silenciosamente atrás dele (coisa que chamam de perseguição, uma palavra incorreta para a situação). De acordo com a minha conclusão, assim que fosse dispensado do trabalho seguiria imediatamente para a casa do tal remetente misterioso. Se eu o seguisse sem que ele percebesse, poderia descobrir o dono da carta de uma vez por todas e acabar com aquele mistério. E foi isso o que eu fiz, esperei Henrique sair (o que durou no máximo uns 10 minutos) e o segui. Honestamente, não sou a pessoa mais silenciosa do mundo, se entrasse em uma academia de ninjas, seria expulsa no mesmo dia e ainda seria completamente proibida de ingressar em qualquer outra academia, pelo bem da humanidade. Porém, quando é necessário, as pessoas desenvolvem habilidade que nunca pensariam ter. No meu caso, já estava esperando um troféu e uma roupa preta de ninja profissional. Henrique andava lentamente até o ponto de ônibus. Pensei que ele pegaria um, mas, na verdade, somente continuou a andar. Pelo visto, o caminho da casa do desconhecido não era muito longe da minha, o que me deixava com maiores possibilidades de investigar pela vizinhança. Ótimo, essa seria a minha (única) sorte do dia. Por incrível que pareça, ele ainda não tinha reparado em mim. Ou era muito desligado, ou eu era muito boa na arte da perseguição; a primeira opção é a mais adequada. Andamos por cerca de uma quadra, quando ele parou em um ponto de ônibus e sentou. Frustrante, muito frustrante! Ou ele estava indo para a própria casa, ou a casa do escritor da carta era mais longe do que eu imaginava. Mas tinha algo estranho nessa história, por que ele não ficou no ponto de ônibus perto da central? Pra que andar para um mais longe? Só via duas explicações: ele gosta de fazer caminhadas ou ele percebeu que eu estava o seguindo e resolveu que não poderia fazer o que pretendia agora. Desisti do meu plano e votei para o ponto de ônibus perto da central (não poderia ficar naquele com o senhor Maia lá). Relatório do dia: hoje não foi nada, nem um pouquinho, produtivo; mas pelo menos consegui enviar minha resposta, agora esperarei pacientemente pela próxima carta e também tentarei extrair informações de meu chefe, mais uma vez. Além disso, espero que no meu próximo encontro com Henrique eu possa realmente conversar com ele. Após todas as minhas decepções, declaro hoje como oficialmente o dia mundial do azar. Por favor, façam festas em homenagem a esta data. Caso contrário, terão tanto azar quanto eu, e isso definitivamente não é nada legal!

Page 21: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

156

Capítulo 7 – Não era o entregador de pizza (mas depois era)

Jimin

Alguém batia violentamente na porta de casa. Pelo jeito em que a pessoa em questão se comportava, posso deduzir que Henrique me entregou para os vizinhos, aquele traidor. Não abri a porta de imediato para garantir a minha segurança, observei pelo olho mágico, não era meu vizinho, mas também não era a minha pizza. Deixei Henrique plantado na porta enquanto buscava meu casaco especial e óculos sem nem sinalizar que havia visto que ele estava ali, ele sabia muito bem que não podia sair. Abri a porta, mas a fechei novamente logo quando ele ia começar a falar e já colocava um pé na frente para entrar; tinha esquecido de colocar meus óculos. Abri novamente e saí do caminho de um Henrique de cara amarrada e roupas normais; ele quase nunca aparecia aqui em seus dias de folga, provavelmente para não ser obrigado a fazer hora extra. Henrique se sentou no sofá e ficou um tempo calado e de olhos fechados. Me sentei em sua frente e esperei até que ele quisesse falar. – Nunca mais vão deixar de me zoar lá no trabalho – disse, finalmente. – E a culpa é sua. – Não consigo imaginar por que seria – respondi, solene. Henrique suspirou e passou a mão pelo rosto. Ele tirou de seu bolso um envelope e entregou para mim. – Ela esperou durante duas horas por mim lá na central – ele dizia enquanto eu abria o envelope. – Os caras juraram que ela era minha namorada, mas você não pode nem imaginar o quanto riram da minha cara quando eu disse que não; me chamaram de perdedor e disseram que eu não teria capacidade mesmo. – Era bonita? – Perguntei, ignorando as reclamações dele. – E o que isso importa? A questão não é essa! – Claro que importa, só assim vou saber se seus colegas estão certos. – Não prestei atenção nisso – indagou, irritado. – Prestei atenção no fato de que ela estava lá. Você mandou que me procurassem? Não era esse o trato. – Claro que mandei! Como esperava que eu recebesse as respostas se não posso colocar meu endereço? – Eu esperava que você não me colocasse no meio de seus problemas. Henrique se levantou e pegou Mickey no colo, mas o gato se debateu e o arranhou até que fosse solto. – Mais respeito com o meu projeto – repreendi. – Estou fazendo um trabalho importante, ajudando pessoas. Ignorei mais uma vez os resmungos e comecei a ler a carta. Não sei se existiu alguma razão para Henrique ter entregado a carta naquela casa e nem queria saber, mas dessa vez ele tinha me feito um favor enorme, era a primeira vez que me respondiam com algo que não fossem desaforos e palavrões, o que já era um grande avanço, isso somado ao fato de que ela, Laura, estava realmente entrando nisso. Sorri ao terminar de ler a carta e fui no quarto buscar papel e caneta para escrever as respostas para as três perguntas que ela me fizera e que provavelmente queriam dizer que ela era como eu, gostava de um mistério e não queria uma resposta rápida sobre quem tinha mandando a carta, coisa que não faria nem que ela quisesse, não teria a menor graça. – Está se divertindo com isso, não é? – Ele me tirou de meus devaneios. – Mas não é engraçado. Não me envolva nisso. – Não fui eu que entreguei a carta para ela – ponderei. – Além do mais, você já está nisso. Pelo que percebi, ela não parece ser do tipo de pessoa que desiste fácil e vai

Page 22: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

157

continuar te procurando até que tenha uma resposta minha. Henrique não parecia estar convencido, teria que apelar para uma manipulação de amplo espectro. – E bem, se ela for bonita como você disse, suas chances aumentam se mantiver contato com ela por minha causa; você pode ter uma chance. – Eu não disse que ela era... – Mas é, certo? – O interrompi. – E qual mulher não se interessaria por um homem bonito como você, não é mesmo? – Ela é muito bonita – ele assumiu. Isso! Sabia que conseguiria, ele sempre cai nessa. – Mas você não vai me convencer desse jeito. – E se eu apelar para o fato de que sou seu melhor amigo e você deveria ser mais compreensivo? Fiz uma carinha de cachorro que caiu da mudança e ele suspirou mais uma vez. – Tudo bem. Porém, se isso me prejudicar, de qualquer forma, ainda que mínima, não farei mais. Assenti e comecei a escrever a resposta. Quando terminei, coloquei em um envelope e entreguei a ele, agradecendo. – Como ela é? – Perguntei, curioso para saber a aparência de minha mais nova (e única) correspondente. Henrique ficou calado pensando, como se tentasse se lembrar de sua aparência. – Devia ter um metro e setenta; pele clara; olhos castanhos claros; ruiva, só que acredito que seja pintado; magra, mas não tanto, digamos que ela tem corpo. – Estou impressionado – o provoquei. – Para alguém que não tinha prestado atenção, você me fez uma descrição bem específica. Henrique me fulminou com o olhar, mas nada respondeu. – Porém, não estou falando sobre o físico dela e sim de sua personalidade – expliquei. Já tinha uma grande teoria de como ela deve ser pela carta que me enviou, só que precisava de uma confirmação disso e, embora Henrique não seja o melhor nessas coisas, serve para algo. – Não sei bem...ela parecia como você disse, determinada, não desiste fácil; chegou a esperar meu expediente acabar para me seguir, a propósito. Ri, cada vez mais interessado. – Você a despistou? – É claro! Graças a você, passei a notar quando estou sendo seguido muito mais facilmente. Pretendia vim te entregar essa carta no mesmo dia, mas decidi ir para casa quando ela começou a me seguir. Esse era o Henrique que criei! Estava até orgulhoso de mim mesmo por isso (e dele também, claro). A questão é que ele não é do tipo de pessoa que costuma agir por conta própria na maioria das vezes, então sou eu que costumo orientá-lo com essas coisas, como ser um ninja, por exemplo. Por outro lado, ele é ótimo em seguir pedidos (ordens) de outras pessoas, por isso formávamos uma dupla perfeita, quase cantores sertanejos sem a parte do sertanejo e dos cantores também. Alguém batia na porta novamente, mas não de forma violenta, o que quer dizer que não era um vizinho. Ou seja, é a minha pizza. Conferi pelo olho mágico para ter certeza, sim, era o entregador de pizza – Henrique, atende pra mim – subi as escadas e fui para o quarto pegar o dinheiro para pagar. Entreguei para Henrique e o entregador foi embora. Dividimos a pizza. Eu não sabia que o Henrique viria aqui hoje; não sei como eu comeria uma pizza inteira e detesto quando ela esfria, então foi uma sorte ele estar aqui. Devo aproveitar o momento em que ele está comendo para lhe fazer um pedido muito, muito importante... – Ei, vai ter reunião do condomínio na segunda. – E daí? Você não pode ir – respondeu ele, enquanto comia mais uma fatia de

Page 23: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

158

pizza. – De qualquer forma, essas reuniões não servem pra nada, em tudo quanto é lugar a única função delas é fofocar ou brigar com outros vizinhos. É muita falta do que fazer. Você é sortudo por não poder ir. Henrique sempre reclama das reuniões que tem no prédio em que vive. Os moradores o obrigam a participar pra, no fim, não resolverem nenhuma questão realmente importante, é basicamente uma pura perda de tempo. Se eu fosse obrigado a participar, iria odiar também (ou não). – Exatamente, tem muita fofoca, e por isso você vai por mim. Ele me olhou com uma cara indignada. Acho que atingi o seu limite de paciência e bondade pedindo (exigindo) que ele participasse por mim. Mas eu nunca fui para uma reunião, gostaria de saber como era, preciso de alguém para me representar, e eu só tenho o Henrique. – Quer dizer...eles estão me obrigando a ir – justifiquei, tentando achar uma forma melhor de dizer “eu quero que você vá porque sim” – Eles nem têm como falar com você, não obrigaram nada! – Agora ele comia a pizza como se ela fosse uma pessoa (eu) que o irritasse muito e precisava ser destruída em nome do bem da humanidade. – Eles enviaram um convite, pra mim isso é obrigar – é verdade, eles enviaram mesmo um convite para todas as casas do condomínio, mesmo que não soubessem quem morava em cada uma, como é o meu caso. Creio que ninguém nunca viu meu rosto aqui, não sabe nem mesmo o meu nome. – Por favor, não posso ver e ouvir a reunião através do meu binóculo. E, como você mesmo disse, eu não posso ir. Ele ficou pensando por um momento, provavelmente lembrando de todos os vizinhos que o perseguiram questionando sobre as cartas que eu envio. Mas, veja bem, eles estarão muito ocupados fofocando e brigando, não terão tempo para fazer perguntas a ele. – Tudo bem, mas só porque você não pode ir de verdade. Pulei no sofá em comemoração. Na verdade, meu maior objetivo nisso é ver o que os vizinhos comentam sobre mim. Quer dizer, sobre a pessoa misteriosa da vizinhança que envia cartas falando sobre suas vidas pessoais. – Mas os vizinhos sabem quem eu sou, o carteiro. O que fará quanto a isso? – perguntou Henrique. Essa era uma boa questão, não é como se ele pudesse fingir ser eu, visto que os outros já o conheciam. Portanto, ele teria que ir oficialmente como um representante. – Hm...nada, você só tem que dizer que está me substituindo porque eu...estou em uma viagem de negócios urgente, por isso resolveu me ajudar. Vou fazer uma plaquinha com meu nome pra você usar. – Uma plaquinha com seu nome? Fala sério, isso é realmente necessário? – Mas é claro, os vizinhos não devem te tratar como o carteiro que vem sempre aqui, mas sim como um morador do condomínio, ou seja, eu. Fale isso pra eles, vai ser uma ótima atuação. Henrique me olhou como se pensando “você é totalmente louco, já experimentou fazer uma consulta no psicólogo?”. E a resposta é não, eu nunca fiz uma consulta porque não posso sair de casa e porque não quero. – Eu quero que me conte detalhadamente tudo o que aconteceu na reunião – lembrei a ele. – Vou fazer melhor: vou ligar pro seu celular e deixar no viva voz pra você ouvir – ele deu um risinho maléfico. Por quê? Porque sabia que eu não era fã de celular. Só não rebati porque ele anda fazendo muitos favores pra mim ultimamente...e porque até que era uma boa ideia. Fingi estar irritado e só fiz um “okay” com as mãos. Voltei a comer a minha pizza, pensando no quão divertida será essa reunião. Mal esperava para me atualizar sobre as novidades do condomínio, ouvir xingamentos sobre a minha pessoa e perguntas

Page 24: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

159

como “alguém vive naquela casa? É tão silencioso lá”. Será uma experiência muita agradável (apenas sinto por Henrique, que com certeza terá que responder as clássicas perguntas dos vizinhos no qual ele tanto foge, mas vamos relevar essa parte). Recolhi os pratos e os levei para a cozinha para lavar. Henrique me seguiu. – Deixa esses pratos aí, temos coisas mais importantes para resolver – ele disse do meu lado. – Tipo o quê? – Tipo o que farei se eles começarem a me fazer perguntas. Parei um minuto para pensar em como enrolaria ele dessa vez. Era claro que ele iria receber uma enxurrada de perguntas e esperava que ele fosse muito bom no improviso e que não deixasse pistas de que as cartas vinham de mim, mas também não fazia ideia de como ele poderia se livrar dessa, só que se eu realmente pudesse ir, iria. – Você acha mesmo que eles vão ficar te fazendo perguntas desse tipo? Acho que... não, tenho certeza, eles têm um problema bem maior para resolver. – Qual? – Henrique perguntou, mexendo num enfeite da mesa da cozinha; tomei da mão dele e coloquei no lugar. Se tem uma coisa que eu odeio é desordem. Não chega a ser um toc, não fico nervoso se algo está sujo, mas não consigo trabalhar no meio de bagunça, então mantenho a casa arrumada, principalmente porque sou eu que vivo e limpo aqui. Com isso, quero dizer que tenho amor próprio e valorizo o trabalho que faço aqui; por isso espero que não venha alguém de fora bagunçar tudo, já basta o Mickey. Espero também que não reclamem sobre o fato de que limpo minha estante de livros todos os dias, afinal, na Disney todos os dias alguns postes são pintados seguindo diversas regras e ninguém reclama. – Talvez o fato de que existe um cano que distribui a água para toda a rua que está se partindo – respondi, voltando a enxugar os pratos para guarda-los. – Além do mais, você sempre pode colocar a culpa em outro carteiro. – Sério? Eles vão cair facinho nessa – disse sarcasticamente. – Aliás, como você fica sabendo dessas coisas? – Bem, não é como se eu tivesse muita coisa para fazer o dia inteiro fora escrever, então acabei notando o fato de que um ponto específico da rua está sempre molhado. Guardei os pratos e fui empurrando Henrique para fora. – Agora, se me der licença, tenho que terminar de escrever um capítulo do meu livro – entreguei a carta pra ele e abri a porta. – Me diga se ela responder. Fechei a porta e fui até a minha máquina de escrever, agora com muitas ideias vindas da primeira vez que recebi uma resposta.

Page 25: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

160

Capítulo 8 – Nunca mais eu vou dormir

Laura

Nunca mais eu vou dormir! Estou falando sério. Manuel conseguiu convencer o amigo dele a aceitar um artigo meu no jornal Amanhã, o que é ótimo, se não fosse pelo fato de que não tinha nada pronto, o prazo terminaria em uma noite (porque alguém me ligou tarde da noite para me avisar sobre isso e apenas mencionou que meu prazo se expiraria na manhã seguinte, às sete horas, como se fosse super fácil escrever algo bom nessas poucas horas que eu tinha; de qualquer forma, obrigada Manuel) e eu ainda tinha que escrever minha coluna de moda do dia. Assim que ele me falou, dei pulos de alegria, mas depois passei por um momento de grande tristeza quando percebi que teria que virar a noite para entregar um trabalho razoavelmente bom e eu nem sabia sobre o que escrever. E, antes que esteja se perguntando onde estão todos os meus trabalhos, eu respondo: no lixo (ou talvez debaixo do meu sofá. A verdade é que não fui totalmente honesta quanto a limpeza da minha casa. Já estava cansada, esqueci de pôr no lixo alguns dos papéis que estavam espalhados pelo chão e simplesmente os joguei debaixo do sofá sabendo que minha mãe não procuraria lá; desculpa mãe, sempre fiz isso e você nunca descobriu, mas garanto que não estou mais guardando comida estragada para envenenar meus inimigos numa possível terceira guerra mundial.) Claro que dei uma olhada na lixeira do meu notebook para ver se tinha algo que servisse, mas era tudo realmente muito ruim e eu tinha batalhado demais por essa oportunidade para jogá-la fora, assim como aquela empada de dois anos atrás. Não fazia a mínima ideia do que poderia escrever e já era três da manhã, o que quer dizer que em quatro horas o artigo tinha que estar na mesa do dono do maior jornal do país – o Jornal Amanhã – e eu não tinha nada. Fechei o notebook e peguei a carta para ler mais uma vez, esperando tirar alguma inspiração dali. Cinco da manhã e eu não tinha dormido e nem escrito nada, acabei adormecendo em cima da mesa e acordando apenas uma hora e meia depois, com baba seca na cara, o cabelo todo em pé e vinte ligações perdidas de Manuel, provavelmente querendo saber onde eu estava, faltando apenas meia hora para que eu tivesse que entregar o artigo para análise. Levantei correndo e nem tomei banho, muito menos tirei o pijama que estava; vesti a roupa por cima da que eu já estava vestida, peguei a bolsa e uma garrafa de água que estava em cima da mesa e saí, nem me dando ao trabalho de trancar a porta. Peguei o primeiro táxi que vi pela frente e ignorei o olhar estranho que o homem me lançou quando entrei toda desarrumada e com o cabelo pra cima. Enquanto esperava chegar, tentei desembaraçar o cabelo e tive que colocar a cabeça pra fora da janela (não façam isso, crianças) para lavar o meu rosto sujo de baba e não molhar o carro do rapaz. Foi naquele momento que tive ideia para o artigo. O mais irritante de se trabalhar com a criatividade é que ela vem nos momentos mais inusitados. Faltavam exatos vinte e dois minutos para eu entregar o artigo, estava a quinze minutos de lá, isso tudo poderia definir meu futuro e eu só tinha pensado nisso agora. Abri a bolsa desesperada, peguei meu tablet e comecei a escrever, mas aparentemente a sorte nunca está a meu favor, porque o tablete só tinha 3% de bateria restantes. Antes de conseguir terminar, cheguei ao meu destino, então simplesmente puxei uma nota de cinquenta da bolsa e entreguei ao moço.– Pode ficar com o troco – disse, sem desviar os olhos do tablet que só tinha agora 1% de bateria; nem sabia quanto tinha dado a corrida, provavelmente trinta reais.Enviei o artigo finalizado para meu email quando o tablet já estava se preparando para desligar e suspirei aliviada, estava dentro do elevador. Corri para minha mesa quando

Page 26: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

161

cheguei no andar que trabalho e imprimi o artigo a tempo de entregar para Manuel, que só me olhou de um jeito estranho e o pegou para levar com urgência ao prédio em frente ao nosso, onde ficava a sede do jornal. Faltavam apenas cinco minutos e o office boy teve que ir correndo entregar pois, se tem uma coisa que o amigo de Manuel não suporta é atraso. Só consegui me sentar tranquila quando o garoto voltou, arfando, e disse que havia entregado a tempo. Quase desmaiei de felicidade e prometi a mim mesma que, caso conseguisse o emprego, daria um jeito de contratar o garoto como assistente. Quando finalmente tive coragem de ir ao banheiro ver como estava minha situação, pude entender por que todos estavam me olhando como se eu tivesse antecipado o Halloween. Se eu dissesse que estava parecendo um monstro comedor de criancinhas seria uma ofensa muito grande para eles. Primeiro, aquela penteada rápida de cabelo que dei não adiantou em nada e se continuasse daquele jeito eu provavelmente nunca mais conseguiria desatar os nós e teria que adotar o estilo curtinho. Segundo, a roupa que vesti por cima do meu pijama não escondia em nada que eu havia saído de casa apressada e sem nem mesmo tomar um banho, até por ela deixar minha perna duas vezes maior do que era; eu parecia um esquimó perdido nesse lugar quente, para dizer o mínimo. E nem pretendo comentar sobre a minha cara amassada, meus olhos cheios de remela e olheira e a tentativa frustrada de limpar a baba seca (aparentemente ela tinha alcançado mais da minha bochecha do que eu gostaria que tivesse). Se tivesse uma competição de melhor fantasia de Halloween esse ano, já sabia como viria vestida e queria ver eu perder novamente para a menina do RH que sempre se vestia de pirata.Por sorte, essa não era a primeira vez que me atrasava e já tinha alguns equipamentos jogados pela minha gaveta para caso isso voltasse a acontecer. Dando uma analisada melhor, conseguir até achar duas blusas ali, mas percebi que não tinha como usar aquilo quando senti o cheiro horrendo que vinha delas; parecia que algum bicho tinha morrido, sido enterrado com aquilo e depois tiraram da cova para jogar na minha gaveta só para tirar uma com a minha cara. Ao menos achei algumas maquiagens que não tinham passado da validade e podiam melhorar minha aparência, mas precisei pedir emprestado o resto do que precisava. Jamais quis ser tão organizada quanto agora, me pouparia muito problema.Voltei no banheiro para tirar aquela roupa de baixo e tentar me arrumar o suficiente para que crianças não se assustassem quando me vissem; estava tão cansada que não consegui fazer mais nada o dia inteiro, exceto dormir no sofá da sala de Manuel, que não se importou nem um pouco com isso e só me acordou quando o expediente acabou.Quando cheguei em casa fiquei surpresa por não ter sido invadida e todos os móveis ainda estarem ali, intactos. O meu pensamento, no momento em que larguei a porta destrancada, foi de que, se a casa fosse assaltada, não importaria, desde que eu estivesse trabalhando no Jornal Amanhã e tivesse dinheiro para comprar novos (embora, naquele momento, eu nem tivesse começado a escrever o artigo). Como sempre, a única coisa diferente na casa era o sofá, que havia recebidos novos enfeites (e por enfeites, quero dizer arranhões). Outra coisa estava diferente também, um envelope tinha sido deixado sobre a mesa de centro, provavelmente deixada pelo porteiro, que deve ter fechado a porta quando saiu, porque quando saí ela estava escancarada. Seria a resposta trazida por Henrique? O dia tinha sido tão turbulento que nem tinha tido tempo de investigar Manuel novamente e já faziam dois dias que não via Meg, o que não ajudava a desvendar esse mistério. Apenas dei uma olhada para ver se tratava disso e concluí que sim, por novamente não ter nada no envelope branco, mas estava cansada demais para isso, então simplesmente tomei um banho quente e desabei na cama como uma pedra no que foi, provavelmente, o primeiro dia em anos que eu ia dormir cedo.

Page 27: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

162

Atualizando o tanto de sorte que estou tendo hoje: absolutamente nenhuma sorte. O mundo é muito injusto com a minha pessoa.

***

Só acordei cinco da manhã do dia seguinte, o que tornou o anterior completamente improdutivo. Levantei para pegar a carta e ler. “Cara pessoa, Obrigada por responder a minha carta. Nesse momento em que lhe escrevo, ignoro totalmente meu amigo Henrique que não para de matracar dizendo o quanto se sentiu apaixonado quando viu e que agora já não consegue mais parar de pensar em seus lindos sapatos maravilhosos. Tentei dizer para ele que não pegava bem um rapaz que se considera hétero ficar comentando sobre os sapatos de mulheres de forma tão técnica, mas não existe nada que eu possa fazer, ele simplesmente não se contém.Mas agora falando sobre algo importante, não esperava que me respondesse e muito menos com essas perguntas. Eis aqui as minhas respostas:1. POR QUE PERGUNTAS TAIS COISAS?2. PARA QUE TANTAS PERGUNTAS?3. NÃO ERA MAIS FÁCIL PEDIR O MEU NOME?E uma extra:4. QUAL A COR DO CAVALO BRANCO DE NAPOLEÃO? Espero que tenha as respostas para essas minhas perguntas/respostas e dessa forma eu poderei te responder verdadeiramente quanto aquilo que me perguntou. Queira me desculpar, mas não posso simplesmente sair falando coisas pessoais sobre mim para uma estranha (embora meu amigo já tenha me dado evidências de que você não parece ser nenhuma psicopata). Espero que continue me respondendo pois tenho uma grande revelação a fazer da próxima vez que lhe enviar uma carta.E só mais uma pergunta: O QUE ACHOU DO MEU AMIGO HENRIQUE? Já faz um tempo que ele está sozinho e se você tivesse uma amiga para apresenta-lo, eu agradeceria; talvez assim ele pare de me encher o saco.Com enorme prazer,Jimin, para você.” Sério que ele revidou as minhas perguntas com mais perguntas? Ele não era fácil, coisa que me lembra alguém chamado Manuel. Minhas desconfianças quanto a meu chefe só aumentavam (e quanto a Meg só diminuíam, desculpa Meg). Relatório do dia: as minhas perguntas foram em vão; e eu também estou com saudade do restaurante da Meg, faz muito tempo que não vou para ele. Quer dizer, há décadas eu não vou pra lá! Mentira, faz só dois dias mesmo, mas é um tempo precioso que deve ser considerado.Hoje não poderia ir ao restaurante novamente porque finalmente resolvi buscar meu carro no conserto. Eu diria que isso é um milagre, ou que eu finalmente resolvi parar de ser preguiçosa e fazer um sacrifício em nome do dinheiro que gastei naquele carro (e do dinheiro que gastei consertando-o). Estava totalmente descansada, quantas horas eu dormi ontem? Talvez dez horas. Não sentia um pingo de sono nesse momento e me arrumei mais disposta do que nunca. Peguei minha bolsa e guardei a carta dentro dela, escreveria a resposta no trabalho para já entregar ao Henrique no caminho da oficina do carro. Já tinha ideia de tudo o que escreveria, então só precisaria transcrever para o papel.Estive pensando quando diriam se eu passei no teste ou não – e com estive pensando, digo que eu SÓ pensei nisso durante toda a manhã. De certa forma não seria agora,

Page 28: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

163

poderia demorar cerca de um mês; um mês me consumindo de curiosidade. Ah, é muita crueldade!Dessa vez não precisei pegar um táxi urgentemente e muito menos vestir uma roupa por cima do pijama. Simplesmente peguei um ônibus para ir ao trabalho. Também não cheguei atrasada e nem tinha várias ligações do meu chefe perguntando onde eu estava. Muitos diriam que é um dia tedioso, eu diria que é um dia de glória. Não é nada legal ficar desesperada, correr e ter os olhares sobre você porque você estava com o cabelo mais bagunçado que de um viking, roupas esquisitas e...okay, é muito traumatizante comentar sobre meu rosto.Cheguei rapidamente no trabalho e, na mesma hora, fui para a minha mesa. Resolvi escrever logo a carta, visto que eu havia chegado cedo. Coloquei em um envelope e fui buscar um selo. Infelizmente, tinham acabado todos e a pessoa que havia se encarregado de comprar ainda não tinha chegado. Felizmente, eu poderia pegar um dos extras que o meu chefe sempre guarda no escritório dele. Bati na porta e ele abriu. Para a minha tristeza, ele não parecia estar surpreso ou com qualquer outra expressão que falasse “O resultado do seu teste saiu” (não importando se o resultado era bom ou ruim). Felizmente, ele não estava me olhando de forma esquisita, o que quer dizer que eu estava arrumada, ainda bem. Manuel é do tipo de pessoa extremamente preocupada com a aparência e ele apenas não sabe como fingir quando alguém não se vestiu bem, mas com certeza é o melhor consultor de moda que você irá conhecer em sua vida. Achei super estranho (e chato) quando ele começou a opinar constantemente sobre meu visual, mas confesso que por causa dele, hoje consigo me vestir de forma apresentável. Tudo isso fez mais sentido quando descobri (comprovei) que ele era gay, o que só fez aumentar a admiração que eu já tinha por sua competência com aquilo que faz. O melhor de tudo? Ele simplesmente se ama do jeito que é e fico feliz por isso, embora sinta muita raiva quando acabo sabendo de algum preconceito que sofreu. Sinceramente, em pleno século XXI e as pessoas ainda não perceberam como gays são legais? Acho o máximo poder receber essas consultorias de moda de graça que só um amigo gay pode proporcionar.– Me empresta um selo? – Pedi para ele, que me deixou entrar para escolher.Peguei a caixa de selos e escolhi qualquer um, de preferência dois, caso fosse preciso.– Não vai pegar o de ursinho. Vai ignorar uma coisa tão fofa quanto um urso? – Manuel gostava de colecionar selos, ele tinha uma caixa com vários selos, um diferente do outro. Enquanto meu querido chefe colecionava selos, eu colecionava lixo; cada um com sua mania. Resolvi aceitar para não magoar os sentimentos do meu chefe quanto ao seu amor pelo lindo ursinho.– Claro, desculpa! Com pude escolher um barquinho ao invés de um ursinho? Voltei para a minha mesa e coloquei o selo (de ursinho) no envelope da carta. A guardei novamente na bolsa e comecei a fazer o meu trabalho. Eu sempre procuro adiantar as minhas tarefas (tirando as tarefas domésticas) portanto só tinha pouco a fazer e acabei terminando tudo cedo. Não queria ir embora agora, conseguia pressentir o quanto teria que esperar por Henrique na central, por isso fiquei gastando o meu tempo conversando com meus colegas de trabalho e os ajudando. Quando deu três horas me despedi deles e fui direto para a central do Correio.Para a minha alegria, não tive que esperar duas horas. Henrique estava presente.– Quanto você vai querer? – Henrique perguntou quando me viu. Fiquei confusa.– Do que está falando? – Perguntei.– Quanto quer para parar de responder as cartas?– Está falando de dinheiro?– Não, estou falando de cabras. Tenho uma fazenda – ele disse aquilo de forma tão natural que fiquei em dúvida se estava sendo sarcástico. Aparentemente o humor dele e do amigo misterioso são bastante parecidos.

Page 29: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

164

– Sério?– Não, estou falando de dinheiro – ele tinha a expressão séria. Talvez não fossem tão parecidos. – Não dê cordas às loucuras dele; siga sua vida e assim ele vai me deixar em paz.– Não quero dinheiro – respondi. – E agora já é tarde demais já entrei nisso. Henrique suspirou e passou a mão pela testa. Estendi a carta para ele, que a pegou e guardou no bolso da frente do casaco.– Mais alguma coisa?Pensei por um momento.– Você leu as cartas? – Não. Nem quero saber o que aquele maluco escreveu ali ou o que você respondeu.Ele deu as costas e caminhou em direção à agencia. Em seguida fui para a oficina. Como previsto, meu carro já estava consertado há um bom tempo. Os mecânicos já estavam pensando que eu poderia ter sofrido algum tipo de acidente, pois não aparecia lá desde quando levei o carro para consertar. Expliquei para eles que só não apareci antes por causa da minha preguiça mesmo. Os rapazes riram, não vejo motivo para tal, apenas fui sincera como sempre gosto de ser. A sinceridade é uma virtude que aprendi com minha mãe e acho ótimo quem a tem.No caminho para casa, pensei em passar pelo restaurante de Meg, mas estava muito tarde e provavelmente ela nem sequer estava mais lá. Eu definitivamente tenho que ir vê-la amanhã, vou aproveitar que não tenho compromissos (finalmente). Além do mais, tenho que me distrair para não ficar pensando no artigo do jornal Amanhã. Relatório do dia 2: não esquecer de ir ao restaurante de Meg.

Page 30: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

165

Capítulo 9 – Barracos com classe (ou não)

Henrique

– Não tire essa placa em momento algum – disse meu amigo, no qual se intitulava “Jimin”, enquanto colocava a placa em mim. Eu estava em sua casa, esperando que a reunião de vizinhos do condomínio começasse. Isso pode ser traduzido para: esperando o momento de terror começar. – Não vou tirar, mesmo que ela seja tosca – respondi de mau humor. Sim, eu estava de mau humor, quem não estaria? Hoje seria metralhado de perguntas sobre umas certas cartas de um vizinho fofoqueiro e bisbilhoteiro. E eles com certeza não cairiam no troque do “foi outro carteiro”. Peguei meu celular de cima do criado-mudo e coloquei no bolso, o plano era ligar no viva-voz para que o tal bisbilhoteiro pudesse ouvir a conversa. Ao mesmo tempo que eu estava irritado por isso, também ficava satisfeito por poder obrigá-lo a fazer algo que não gosta – digo...usar celular.– Se isso durar mais de duas horas eu vou embora – alertei para ele.– Não vai durar duas horas, não seja precipitado. E dê-me a carta!Suspirei e entreguei a carta que Laura trouxe ontem. Lá estava eu, em mais uma das suas furadas. Tudo é Henrique, “Henrique faça isso”; “Henrique, não seja chato”; “Henrique, pensei que você era meu amigo”. Não é legal pagar o pato pelas loucuras dos outros.“Jimin” observou a rua pelo binóculo, tentando descobrir quando a reunião começaria.– Tem muita gente saindo de casa – respondeu ele, me deixando olhar pelo binóculo. – Já deve estar prestes a começar. Vá.– Estou indo. Fique com o celular na mão, assim que chegar lá vou ligar.Ele assentiu e eu sai de sua casa e segui para uma pequena pracinha dentro do condomínio. Lá tinha várias cadeiras organizadas em semi-círculos e uma placa um tanto inútil pendurada entre duas árvores escrito “Bem-vindos a décima reunião do condomínio Belo Lar”. Muitas pessoas já estavam sentadas nas cadeiras, a maioria mulheres idosas. Não é por nada não, mas eu diria que é típico delas fazer esse tipo de coisa. Me sentei em uma bem no fundo, quanto mais escondido estivesse melhor.No centro do semi-círculo, tinha uma única cadeira e uma única mesa, provavelmente para o líder da reunião. Uma mulher de meia-idade pegava vários e vários papeis e colocava em cima da mesa, possivelmente ela seria a líder. Ela parecia uma vilã de filme, com um rosto sempre mal-humorado, até mesmo quando tentava rir não parecia estar exatamente contente. Fiquei com mais medo dessa reunião do que já estava antes.Mais pessoas chegavam e se sentavam. Algumas vinham com crianças que não demonstravam estar contentes. Eu as entendo, esse não é um evento nada atrativo para crianças (e nem para mim). Algumas choravam desesperadamente, tentando fugir dos braços de seus pais e correr para dentro de casa; outras insistiam em ir brincar no parquinho, e muitos dos pais permitiam para evitar choros em público.Percebi que muitos assentos já estavam ocupados, então decidi ligar logo para meu amigo do prédio silencioso, prevendo que a reunião estava prestes a começar. Disquei o número de celular dele e ele imediatamente atendeu.– Acho que já vai começar – sussurrei para que os outros não me pudessem ouvir. Eu não queria chamar atenção. – Não fale nada, só escute. E também não faça qualquer outro tipo de barulho, não quero todo mundo olhando pra mim!Ouvi do outro lado da linha um barulho alto de panelas batendo umas nas outras, acompanhadas de uma desculpa fingida dele no fundo. Às vezes fico me perguntando por que continuo sendo amigo dele.Quando a maioria das cadeiras já estavam ocupadas, a vilã de filme interrompeu a sua

Page 31: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

166

conversa com um senhor idoso e foi para o centro do semi-círculo, ficando ao lado da cadeira e da mesa. Ela bateu palmas para chamar a atenção das pessoas.– Bem vindo a décima reunião do condomínio Belo Lar. Sou Regina e resolvi organizar essa reunião para que possamos discutir assuntos importantes que se referem ao nosso lar. José distribuirá para vocês papéis com todos os tópicos que conversaremos hoje.José era o idoso no qual um momento antes ela estava conversando. Ele andava lentamente e entrega os papéis para as pessoas. Sinceramente, eu não sei por que ela escolheu ele para fazer a distribuição, poderia ter sido alguém mais jovem e com maior disposição (e rapidez). Algumas outras pessoas também estavam impacientes com a demora e levantaram, se oferecendo para ajudar – mas se ofereceram com um sorriso e uma voz bastante gentil, para não parecer rude. Se não fosse por elas, demoraria mais de cinco minutos só para fazer isso. Eu não estava lá há muito tempo, mas já me sentia extremamente entediado.– Por favor, abram na primeira página – disse Regina, enquanto todos obedeciam. – Primeiro vamos falar sobre o cano partido. Eu e mais outros moradores ligamos para um encanador para consertar, mas obviamente teremos que ficar sem água durante o tempo do conserto, já que é preciso desligar o registro.– Mas quando ele vem? – Perguntou um jovem com a mão erguida. – Ele vem em dois dias.O jovem abaixou a mão e voltou a ser calar. Aquela reunião, definitivamente, estava mais chata que as do prédio onde moro. – Mas quanto tempo vai demorar o conserto? – Perguntou a idosa ao seu lado, provavelmente era a sua mãe.– Não sei, depende do quão quebrado o cano está. Eu diria que demorará três horas, não mais que isso.Todo mundo começou a falar ao mesmo tempo coisas como “três horas? Isso não é pouco”; “Eu tinha compromisso nesse dia, preciso de água”, e vários outros comentários de insatisfação. Pronto, agora sim parecia a reunião do meu condomínio. Quando será que começará as verdadeiras brigas?– Pessoal, silencio! – Regina tentava, em vão, acalmar os moradores. Quando percebeu que não conseguiria, lançou um olhar fulminante para todo mundo, que se calaram diante de algo tão assustador. Até mesmo eu, que estava quieto o tempo todo, senti medo dela e me encolhi ao olhar para ela. – Se vocês vão reclamar de tudo, que se retirem daqui!Aquilo era como uma sala de aula com o professor assustador. Ninguém fez o que ela mandou (se retirar), somente ficaram calados com os braços na perna, fingindo inocência, assim como um aluno ficaria após levar um sermão do professor. Okay, uma pessoa se retirou sim; mais especificamente, uma criança, que se levantou e disse “tá bom”, andando em direção ao balanço do parquinho. Admito que aquilo foi engraçado, e que tive que me segurar muito para não rir. Nesse mesmo momento, a mulher do centro parecia que poderia explodir de raiva.– Continuando com os assuntos... – prosseguiu ela, que ainda estava com um belo tom de pele vermelho-raiva. – Como teremos esse conserto, a taxa de condomínio será aumentada em dois reais para cada casa esse mês. Todos de acordo?A maioria assentiu sem reclamar, uns resmungaram, mas no fim todos chegaram num consenso e ela prosseguiu para o próximo tópico.– Precisamos falar sobre a implantação de novos brinquedos para o parque. Esses estão caindo aos pedaços e a qualquer momento uma criança pode sofrer um acidente.Fiquei impressionado. Ela se importava com a segurança das pobres crianças? Tudo bem, posso estar julgando-a mal, mas...Quanto a isso, os moradores concordaram; aqueles que tinham filhos, principalmente, e os motivos eram óbvios. Uma mulher sentada ao lado de uma criança, no qual ainda

Page 32: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

167

estava chorando enquanto olhava de forma sonhadora para o parquinho, levantou para chamar a atenção dos outros.– Acho bom, porque meu filho ontem mesmo caiu do balanço – disse a mulher com o filho triste.– Eu o vi caindo ontem, o que aconteceu? – Perguntou uma outra mulher, que estava no lado oposto do semi-círculo.– Aposto que ele estava balançando rápido demais. Seu filho não é um santo, senhora Amanda! – Respondeu um homem muito mal-humorado. Imagino que ele não tenha boas lembranças com o filho daquela mulher. – Certo dia, ele destruiu todas as flores do meu canteiro e nem sequer pediu desculpas. Na verdade, ele agiu de forma muito mal educada. Você precisa ensinar boas maneiras para esse pestinha!A mulher ficou indignada, colocou as mãos nas cinturas e começou a bater os pés no chão.– Como ousa falar isso do meu filho? Você que é um chato e procura problemas com ele toda hora!Regina estava prestes a explodir. Gostaria que tivesse um abrigo anti bombas por perto para que eu pudesse me esconder. Ela bateu na mesa com a bengala de um senhor que estava por perto e começou a falar bem alto, talvez o povo da China pudesse ouvi–la.– Por favor, abram na segunda página – todos a obedeceram, como esperado. – Agora eu gostaria de falar sobre a implantação de novos postes e lata de lixo. A próxima pessoa que interromper com brigas será imediatamente expulsa da reunião.Só não direi que grilos cantavam naquele momento porque eles não costumavam aparecer durante a tarde.– Não que estes postes e as latas de lixo estejam velhos e quebrados, mas eu e outros moradores sentimos a necessidade de implantar outros para aumentar a quantidade. O condomínio está muito mal iluminado, e tem muito lixo espalhado por aqui – ela falava enquanto olhava para certas crianças sentadas em umas das cadeiras. Creio que as mães repararam, mas resolveram não questionar porque ela era assustadora demais.Os moradores concordaram balançando a cabeça. Ninguém tentou questionar.– Acho que deveríamos plantar mais árvores – disse uma jovem que tinha, provavelmente, quinze anos.– Boia ideia – respondeu José, o senhor tartaruga entregador de papéis. – Eu queria mesmo uma árvore do lado da minha casa faz um tempo.– Realmente é uma boa ideia. Então marcaremos algum dia para nos reunirmos e plantar árvores e flores – concluiu Regina. – Talvez após o conserto do cano.Regina chamou o senhor tartaruga e falou algo em seu ouvido, o mesmo, logo em seguida, pegou uma caixa e entregou para ela. Dessa vez ele não demorou.– Agora precisamos conversar sobre moradores indesejados. Tivemos muitas reclamações ultimamente.– Por que não começar pelo filho da senhora Amanda? – Perguntou o homem mal humorado, aquele mesmo que teve o canteiro destruído pela criança da senhora Amanda.Amanda levantou, pronta para bater nele; e bateria, se as pessoas perto dela não a tivessem segurado firmemente. Graças as essas boas almas, uma guerra foi evitada. Ouvi meu amigo rindo silenciosamente através do telefone. Ele não tinha jeito mesmo, não estaria rindo tanto se estivesse no meu lugar. Sabe o que moradores indesejados significa? Isso mesmo, eu! Eu não era um morador do condomínio, mas meu amigo era. E eu diria que ele é um morador indesejado. Regina deu um sorriso disfarçado; até ela estava se divertindo com os problemas alheios. Talvez fosse por isso que ela gostava de fazer essas reuniões: para rir da tristeza alheia e para impor autoridade sobre os outros moradores.

Page 33: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

168

– Ah, cale a boca senhor Cláudio – ela pegou algo de dentro da caixa, era um papel. – Eu gostaria de fazer umas reclamações. Começando pelo morador da casa 20 que decidiu tocar guitarra com o som bem alto após as dez horas da noite, incomodando todo mundo. Pude identificar de quem ela estava falando, pois o inquilino tentava desesperadamente se esconder debaixo da cadeira. Eu diria que ele tem treze anos. Regina lançou um olhar mais perverso do que qualquer outro olhar perverso existente nesse mundo. Senti pena do garoto e gostaria de ajudar a cavar um buraco bem fundo para que ele pudesse se esconder dela. – Sabe o que é isso aqui? Uma multa que seus pais vão ter que pagar. Por sua culpa – ela sorria levemente e não tentava esconder. Eu tinha quase certeza de que ela mora perto da casa do garoto. – Levante-se e venha pegar o seu presente. O menino relutou, mas levantou e andou lentamente (mais lentamente que José) com as mãos nas costas e um rosto vermelho de vergonha. Ele pegou o papel e voltou para o seu assento. Um homem, que parecia muito com o garoto, estava sentado ao seu lado e olhou com raiva para o garoto, como se dizendo “nada de videogame por um mês inteiro”. Se aquele não era o pai dele, eu não sei o que era. – Com licença – a jovem de quinze anos levantou a mão. – Recentemente, eu vi alguém jogando muito lixo pelo chão e derrubando as latas de lixo, e não acho que essa pessoa fez isso sem querer. – E você sabe quem fez? – Perguntou José. Pelo visto, esses dois eram os ecológicos do condomínio. – Não sei, mas era um homem. – Pode deixar que descobriremos quem foi – Regina disse aquela frase com tanta certeza que eu realmente acredito que ela encontrará o culpado, e que a punição dele não será somente uma multa. Sinto dizer que o condomínio terá um morador a menos logo, logo. – Eu sei quem foi – respondeu o morador da casa número 85, vulgo meu amigo. Eu não tinha o mandado não falar nada? – Eu te falei para não fazer barulho, não fale nada – alertei. Ele se calou, mas não acho que foi por causa do meu aviso. Regina pegou novamente outra coisa da caixa, também era um papel. – E esta outra multa é para o filho do morador da casa 90, que anda riscando a casa dos outros. Por favor, senhor Jorge, levante-se para pegar a multa e seja mais responsável com o seu filho. O senhor Jorge não aceitou o insulto tão facilmente quanto o pai do menino da guitarra. Eu poderia prever que em questão de 10 segundos, uma longa discussão começaria. – Você fala tanto do filho dos outros, mas não para pra olhar pro seu! – Jorge estava mais vermelho que um tomate. – Meu filho é muito bem comportado, diferente das outras crianças desse condomínio – a vilã de filme ergueu a cabeça em toda a sua glória, mostrando todo o orgulho que tinha do filho. Mais outras três pessoas levantaram também irritadas. Muito provavelmente, eram pais que levaram reclamações da líder da reunião. – É isso mesmo, seu filho é um mimado! Esqueceu do dia em que ele cortou um fio de energia? Ele quase foi eletrocutado – reclamou uma mulher. Ela estava usava um colar com o nome “Sofia”, seu possível nome – Além do mais, ele fala coisas horríveis para todo mundo. Eu o vi praticando bullying com uma criança no parquinho recentemente. E outro dia a minha sobrinha, que estava passando as férias comigo, veio correndo para a minha casa chorando e dizendo que um menino disse que ela era feia e gorda. – E o dia em que ele fez o maior drama por causa de um celular que queria que

Page 34: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

169

você comprasse? – Lembrou uma idosa chamada Maria que estava de mãos dadas com uma criança. – Seria possível ouvir os gritos dele no outro lado do mundo. Agora Regina deveria mudar o seu nome para Hiroshima ou Nagasaki, porque uma bomba atômica estava prestes a destruí-la completamente. – E ele bateu no meu filho e quebrou o brinquedo dele! – Quem havia falado agora era a vizinha que me perseguiu naquele dia querendo respostas sobre a carta misteriosa. Acredito que ela não me viu, e eu agradeço imensamente por isso. – Ele conseguiu derrubar a minha árvore... – até mesmo o simpático e calmo José se pronunciou, falando baixinho porque tinha medo de Regina. Logo então, a mesma lançou um olhar fulminante para José e ele se encolheu na cadeira.Jorge, que ainda parecia um tomate, ficou feliz por todos estarem participando dessa conversa sobre o filho mal-criado da triste, porém autoritária, Regina. Mas, apesar disso, sua raiva era maior que sua felicidade. Uma multa podia mudar uma pessoa. – Ele fica pichando a parede das casas. É um vândalo! – Jorge passou do nível “tomate” para “maça da Rainha Má”. – Eu tenho uma bela arte muito inapropriada na minha casa por causa dele. E você vai pagar pela pintura. O homem, pai do filho guitarrista, finalmente resolveu não ficar calado e fazer sua reclamação sobre o filho dela. – Certo dia, eu vi ele quase te batendo – falou ele. Mas não em um tom de raiva, e sim de pena. Muita, muita pena. Sinceramente, eu também estava com pena dela, não gostaria de ter um filho como aquele. – Você sabe muito bem, eu que o impedi de bater em você. Um filho não deveria fazer isso com sua mãe, é um assunto muito sério. Regina ficou envergonhada, assim comprovando que era realmente verdade aquilo que o pai do guitarrista falou. Não sei se era impressão minha, mas ela estava quase chorando. Realmente, era um assunto sério. Será que Jimin sabia disso? Provavelmente sabia. – Regina, você tem que dar um jeito no seu filho. Colocá-lo num colégio militar ou algo do tipo. Ele não pode ficar te controlando assim, muitos menos ameaçando bater em você! – Foi José que disse isso. Por mais que tivesse medo dela, José também ficou indignado com a situação e triste por Regina, que, pelo visto, se esforçava muito para dar ao seu filho tudo o que ele precisava. A ex-vilã, e agora vítima, começou a chorar. Ela tentava colocar as mãos no rosto para esconder as lágrimas, mas era impossível esconder o fato de que estava chorando. – Meu filho não é mau, não falem isso dele. Ele é uma boa pessoa... – Regina tentava justificar todas as ações dele, mas não convencia a ninguém. Todo mundo se calou. Acho que estavam constrangidos demais para falar. Inclusive, eu também estava. Jorge, José e Sofia levantaram e tentaram acalmá-la. Ela pegou um lenço e enxugou as lágrimas. Em seguida, respirou fundo e tentou continuar com a reunião. O silencio continuou reinando o local. Amanda resolveu continuar com a conversa, dando oportunidade para que pudessem discutir sobre mais um assunto. Um assunto que talvez não fosse nada agradável para mim. Queria cavar um buraco fundo e me esconder antes que o pior acontecesse. – É...continuando com a reunião... – Amanda interrompia um pouco suas palavras enquanto falava. Muitos pensariam que era por causa da cena que presenciamos há pouco tempo, mas creio que na verdade era por que ela queria falar de algo um tanto...constrangedor? – Tem alguém, um vizinho...acho que ele anda bisbilhotando a gente de alguma forma, e...me enviou uma carta, mas sem endereço. Isso aconteceu com vocês também? Sabia! Era o assunto que eu desejava imensamente que fosse evitado, mas, infelizmente, a vida era injusta. Será que não poderiam falar sobre o filho de Regina? Era bem mais importante que isso.

Page 35: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

170

Vários moradores abriram a boca, surpresos. Todos eram vítimas da curiosidade do meu amigo e acabaram de descobrir que mais alguém também recebeu uma certa carta que falava de suas vidas. Fiquei surpreso por eles estarem surpresos. Pensei que todos sabiam que existia um fofoqueiro de primeira na vizinhança. – Oh, sim. Eu recebi uma há pouco tempo – respondeu um senhor idoso que, até então estava totalmente quieto (assim como vários outros na reunião). – Sério, ele falou tão intimamente sobre mim, como se vivesse comigo. É um stalker! – Jorge, aparentemente, não gostava da ideia de pessoas o vigiando. Eu também não gostaria. Regina voltou para a sua cadeira no centro e não estava mais chorando. Muito pelo contrário, sua expressão má de vilã de filme voltou, tal expressão que me deu mais medo do que qualquer outra que ela fez, afinal, o assunto tinha a ver comigo dessa vez. – Esse é o assunto principal da reunião – todo mundo prestou atenção no que a não mais ex-vilã falava. – Temos um bisbilhoteiro na vizinhança. Eu não quero saber de gente cuidando da minha vida e me enviando cartas. – Quem mais recebeu uma carta dele? – Perguntou José. Ele não parecia ser o tipo de pessoa que despertaria a curiosidade do meu amigo. Mas, pelo jeito que falou, parece que recebeu uma, sim. Tenho que lembrar de perguntar para Jimin se ele recebeu. Quer dizer, eu que entrego as cartas, mas não sou obrigado a saber cada uma que enviei, até porque fazia aquilo com muita má vontade. Após a pergunta de José, metade das pessoas presentes levantaram a mão; levantei também, para não parecer suspeito. Eu não sei como o bisbilhoteiro consegue descobrir o que se passa na parte da vizinhança longe dele, mas, pela quantidade de pessoas que levantaram a mão, diria que suas descobertas vão muito além da casa ao lado. – Mas por que vocês estão reclamando? Ele me enviou uma e falou coisas bastante inteligentes. Na verdade, ele me ajudou com um grande problema – a idosa Maria parecia estar disposta a defende-lo. Jimin, se você estiver ouvindo isso, agradeça a ela. – Simplesmente porque ele está nos vigiando! Isso não é certo! – Regina respondia com muita amargura. Com certeza o morador da casa 85 fez o favor de irritá-la além do limite com a tal carta. Ele conseguiu escolher a pior pessoa para ser sua inimiga. Pela atitude anterior dela, aposto que na carta estava escrito coisas sobre seu filho ditador, e ela não gostava quando falavam mal de seu filho. Formou-se uma grande discussão sobre o “lado bom do bisbilhoteiro” e o “lado mau do bisbilhoteiro”. Por incrível que pareça, até que tinha uma boa quantidade de pessoas o defendendo – mesmo que a quantidade de pessoas falando mal dele fosse maior. Os seus argumentos iam de “mas ele me ajudou a resolver algo”, “ele se importa com a gente” para “ele é um intrometido e deveria ser expulso e preso”. A discussão duraria mil anos, se não fosse por uma amiga de longa data ter interrompido para fazer um comentário. – Recentemente eu recebi uma e perguntei a um carteiro se ele sabia quem enviava, e ele fugiu de mim – contou a vizinha que me perseguiu naquele dia. – Com certeza é ele que as entrega! Agora o assunto se concentrava totalmente em mim, essa era a hora que eu deveria correr o mais rápido possível. – Como ele é? Vesgo, com cabelo castanho? – Não sei quem havia falado, estava imerso demais no meu medo para prestar atenção nas pessoas. – É sim, por quê? – A perseguidora estava confusa sobre a pergunta. Todo mundo conhecia os carteiros que frequentavam o condomínio, inclusive eu, não tinha por que perguntar. – Porque ele está bem aqui. Ali – agora consegui ver quem havia falado, e essa

Page 36: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

171

pessoa apontou para mim. Todo mundo olhou para mim, até a pessoa que estava do meu lado. A vizinha perseguidora parecia que tinha visto um fantasma; Regina quase pegava uma faca invisível e lançava em mim; as expressões de várias outras pessoas iam da raiva para a confusão. Tentei sair de fininho da reunião, mas alguém me segurou pela manga da roupa, impedindo que eu fosse embora. Resolvi ceder e voltar a minha cadeira. Minhas mãos estavam tremendo e eu as escondi no bolso da calça. – Qual o seu nome? – Regina iniciou o interrogatório – Henrique, senhora. – O que você está fazendo aqui? Essa é uma reunião do condomínio – Regina perguntou para mim e minha alma foi embora no mesmo instante. – É...eu vim representando o morador da casa número 85 que teve que fazer uma viagem a negócios... – minhas palavras saiam com dificuldade porque eu estava com medo demais para falar. – É você que envia as cartas? – A reunião virou um interrogatório regido por Regina, a vilã de filme. – Não senhora, eu não. Com certeza é outro carteiro. A vizinha perseguidora não podia acreditar na minha cara de pau. – Mas o quê? Então por que fugiu de mim? Mentiroso! – Ela estava mais que indignada com a minha cara de pau. – Eu não fugi de você. Tinha um compromisso importante então corri para não me atrasar, nem sequer te ouvi me chamando – respondi. A vizinha cruzou os braços. Ela com certeza não estava acreditando na minha desculpa, eu disse que não funcionaria. – E qual carteiro foi? – Questionou Regina. – Não sei, senhora. Eu juro! – Me sentia sujo por jurar tão firmemente, mas minha vida dependia das minhas habilidades de mentir. Além do mais, tinha cruzado os dedos por trás das costas, o que diminuía minha culpa. Regina continuava olhando para mim, tentando conseguir uma confissão, mas não conseguiu e desistiu. As pessoas finalmente pararam de prestar atenção em mim e voltaram aos outros assuntos da reunião. Eu não conseguia prestar atenção em mais nada. – Esperem – interrompeu a menina de quinze anos. – O carteiro falou que estava representando o morador da casa número 85. Eu não sabia que alguém morava lá, quer dizer, a casa sempre está mal iluminada e mal se pode ouvir um barulho vindo de lá e muitos menos gente saindo pela porta... – É que ele constantemente tem que viajar por causa do trabalho – tentei justificar. Talvez essa fosse uma desculpa convincente, não é como se não existisse pessoas assim. Ouviu-se um coro de “aaah”. Jimin nunca saía de casa, mal fazia barulho e suas lâmpadas não eram muito chamativas. Ele não vivia assim por querer, exceto pelo barulho, ele apenas tinha que viver nessa condição especial que lhe foi imposto desde sua infância. Não sei se conseguiria seguir a vida como ele conseguiu. Ele com certeza era uma pessoa forte, eu o admirava por isso e, por esse motivo, muitas vezes concordava com suas loucuras. De uma vez por todas, a atenção do público não estava mais sobre mim e eu pude relaxar novamente, sem ter medo de mais perguntas. Regina pegou seu roteiro e começou a ler. – Okay, abram na página quatro. Agora vamos falar sobre as novas regras do condomínio.

Page 37: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

172

Capítulo 10 – Fui acordado às três da manhã por uma ligação indesejada; odeio isso

Jimin

Assim que a reunião acabou, desliguei o telefone e o coloquei na gaveta, onde, provavelmente, só seria tirado de lá após muito, muito tempo. Henrique ainda não voltou, alguém deve tê-lo encurralado para fazer mais perguntas (provavelmente a vizinha que o perseguiu naquele dia). O que foi aquilo? Nunca me divertia assim há anos, essa era a minha primeira reunião e eu esperava poder escutar muitas outras, claro, se Henrique concordasse. Não sei se ele aceitará na próxima vez, depois do que aconteceu. Muitas das coisas que foram faladas na reunião, e com “muitas das coisas” me refiro às reclamações sobre “moradores indesejados”, não era surpresa nenhuma para mim. Eu via tudo isso pelo meu binóculo e através dos comentários de outros vizinhos. Mas enfim, foi exatamente como Henrique tinha dito que seria, mas ele não disse que seria tão divertido. Enquanto Henrique não voltava, resolvi ler a carta de Laura e responde-la. “Caro senhor misterioso, Primeiro, gostaria de dizer-lhe que não é nada legal perguntar para alguém coisas como ‘você conhece alguém para apresentar ao meu amigo?’ então somente irei ignorar esta sua pergunta. E sobre o Henrique...eu nem sequer o conheço direito, como espera que eu fale sobre ele? Mas uma coisa eu posso dizer: ele não parecia estar de acordo com seus planos e te acha totalmente maluco, estou certa? Se me permite dizer, parece que ele tem uma grande razão para achar isso (embora eu não saiba qual). Talvez você tenha o costume de o meter em enrascadas. Mas enfim, quando me viu (mais especificamente, quando viu a carta) ficou muito nervoso e irritado, você não deveria manipulá-lo tanto assim, isso é muito mau! Mas respondendo suas outras perguntas... 1 – Porque sim. 2 – Para uma investigação sobre a sua pessoa. 3 – Era mais fácil, mas você obviamente não daria. Além do mais, que graça tem isso? 4 (extra) – Não era um cavalo, era um unicórnio. Todo mundo sabe disso. Agora creio que você possa responder as minhas perguntas adequadamente, pelo menos eu espero. Por favor, responda as minhas perguntas com respostas e não com perguntas. Espero ansiosamente pela ‘grande revelação’. Atenciosamente, Laura”

Assim que terminei de ler a carta, peguei uma caneta para responder imediatamente. Ainda não conseguia acreditar que alguém realmente tinha me respondido, meu projeto estava tendo sucesso total. Henrique abriu a porta e entrou em casa. Ele se encostou na porta e suspirou de alívio, o dia foi movimento pra ele. – Por que você foi irritar aquela mulher? – Ele saiu da porta e se jogou no sofá, como sempre fazia. – Que mulher? – Oras, a Regina. A mulher do filho ditador. Por quê? – Mas que tipo de pergunta é essa? – Repreendi, pensei que fosse óbvio o motivo pelo qual eu sempre envio as cartas. – É claro que foi por que ela precisava. Já viu o filho dela? Henrique levantou e foi até a cozinha atacar a minha geladeira. Se ele comesse

Page 38: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

173

tudo, o obrigaria a fazer compras por mim. O segui para me certificar de que ele não ficaria brincando com o enfeite da mesa. Ele pegou dois pacotes de salgadinho no armário e duas latas de refrigerante na geladeira, que gentileza a dele! – Alguns vizinhos me prenderam até após a reunião para me fazer perguntas – ele explicou. Assim como eu imaginei, foi por isso que ele demorou para voltar. – E a tal Regina ficou me olhando de longe. Nunca vi alguém tão...assustador. Nem você conseguiria ficar tranquilo perto dela. – Duvido. Eu posso ser bastante intimidador. Henrique deu de ombros. Acho que ele concorda, ou só não está querendo entrar em mais uma discussão. Henrique ficou calado por um tempo enquanto comia. Mickey subiu no sofá e roubou um salgadinho que estava em sua mão, depois saiu correndo para a cozinha. As leis dos gatos afirmam: se não lhe dão comida o tempo todo, então que consiga por conta própria roubando. – Aquele tal de José – prosseguiu Henrique. – O que teria de tão interessante na vida dele para você ter enviado uma carta? Essa era uma pergunta muito boa. O que tem de interessante na vida de idoso que só fala de árvores? Tudo, e com tudo eu digo: Regina. – Adivinha... – Eu estou te perguntando porque eu não sei! – Henrique não tem o mínimo de senso de humor. – Tudo bem, senhor irritadinho – tentei pensar nas palavras certas para explicar o caso de José. – Você percebeu que ele recuava a cada olhar de Regina? E que ele sempre fazia o que ela mandava? – Sim, era impossível não perceber. Ele claramente tem muito medo dela. Sorri, Henrique estava pegando o jeito quanto a observar pessoas. Ele a cada dia aprendia mais comigo. De técnicas de despistagem para observações precisas. – E é exatamente esse o problema. Ele faz tudo o que ela quer! É como se fosse o cãozinho dela. E, já que ele não falou com amargura sobre mim durante a reunião, ele meio que concorda comigo. Mas obviamente tem medo de seguir as minhas instruções. Henrique concordou com a cabeça. Seria impossível discordar, sendo que ele viu pessoalmente o rosto assustador da mulher mais assustadora do condomínio. Mas, por baixo daquela casca dura, há uma pessoa muito sensível e que precisa urgentemente de ajuda. Depois da reunião, os vizinhos tratarão de dar um jeito no filho dela, mesmo que ela não quisesse. – Mas o que você achou sobre a reunião? Eu diria que é mais divertida que as do seu prédio – perguntei. – Com certeza é mais agitada do que as do meu prédio. Mas não foi legal a parte em que o assunto me envolvia. Ele levantou e pegou a carteira que deixou aqui enquanto estava fora (Henrique é o tipo de pessoa que se preocupa muito com segurança, um tanto paranoico). Depois, ergueu a mão para mim. – Eu sei que você está escondendo a carta aí, me dê logo. Entreguei a carta para ele. Dessa vez não teve relutância por sua parte, acho que deve estar tão abalado pela reunião que resolveu não questionar mais nada por hoje. – Eu tentei subornar ela – confessou ele. – Hã? – Eu tentei subornar ela para que parasse de responder as suas cartas, mas ela rejeitou. Só estou dizendo, antes que você leia isso na próxima carta – Henrique foi até a porta e observou a rua pelo olho mágico. Já tinha virado uma mania, ele não conseguia parar de fazer isso, mesmo que não fosse necessário.

Page 39: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

174

Ri com a confissão dele. Ele realmente não conseguia mentir ou esconder qualquer coisa. – Eu sabia que você ia acabar fazendo isso em algum momento – andei até a estante e peguei uma chave dourada dentro de um pote. – Aqui, é pra você. Não quero ter que ficar colocando aquela roupa toda vez que você aparece aqui. Só não invada a minha casa e roube o meu gato, ele não gosta de gente que não lhe dá comida. – Você é um preguiçoso. Até mais. ***

Devia ser mais ou menos três da manhã quando o celular tocou, me fazendo acordar. Ninguém costuma ligar para mim, então acordei um pouco perturbado com o som. Demorou um tempo para que eu pudesse estar consciente o suficiente para entender a situação. – O quê? Quem liga a essa hora? Abri a gaveta e peguei o celular, na tela havia um número e um nome: Patrícia, a minha irmã – sim, eu tenho uma irmã. Isso aumentou mais ainda a minha surpresa, pois ela não costumava falar comigo (ou eu com ela). Não sei desde quando nos afastamos, talvez desde que meus pais se aposentaram dos negócios e deixou tudo em nossas mãos, mas ela ficou tão obcecada com o emprego que não fazia mais nada além de trabalhar; era sempre “preciso aumentar o número de vendas da empresa”, “preciso manter a clientela”, “preciso criar produtos novos”. Eu não gosto disso, é chato. Além do mais, ela sempre quer mandar no que eu faço, me controlar, e não gosto disso mais ainda. Atendi o telefonema com muita animação (para não dizer ao contrário). – O que você quer? – Perguntei para ela. Eu não tentaria ser gentil e nem nada. – Você poderia experimentar falar um “olá, como vai você?” – pelo tom de voz, ela parecia estar cansada, o que não é nenhuma novidade. Não tem como não ficar exausta com o tanto que ela trabalhava. Não respondi nada, só queria voltar a dormir e não ouvir saudações bobas e mentirosas. – Sua gentileza me impressionada – disse sarcasticamente. – Preciso que você escreva algo para mim. Como previsto, ela não ligou porque estava preocupada comigo ou algo do tipo, mas por puro interesse. Certamente era algo para a empresa no qual eu não estava nem aí. – Eu não tenho nada a ver com a sua empresa. E tinha mesmo que me ligar às três da manhã? – Não é minha empresa, é nossa empresa. Nossos pais queriam que nós dois cuidássemos dela. – Mas eu não quero, não vou te ajudar! – Interrompi a ligação e coloquei o celular novamente na gaveta. Tentei voltar a dormir, mas ela insistia e não parava de ligar. Eu ia desligar o telefone, mas sem querer aceitei a ligação. – Você anda se cuidando? Tomando os seus remédios e não se expondo a luz? – Patrícia fez milhares de perguntas sobre a minha saúde. Mas, obviamente, estava sendo irônica. – E desde quando você se importa com isso? – Interrompi a ligação novamente e desliguei o telefone.O que quer que fosse que ela queria que eu escrevesse, não faria de jeito nenhum, mesmo se for algo rápido e fácil de se fazer. Voltei a dormir tranquilo, sabendo que não teria mais o incomodo barulho do telefone para me acordar.

Page 40: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

175

Capítulo 11 – Nada poderia deter um coração amargurado

Laura

Assim que saí do trabalho, fui para o restaurante de Meg. Graças ao carro, cheguei mais cedo e o restaurante ainda estava aberto. Fiquei em uma mesa que estava vazia até que ele fechasse; o que pareceu durar uma eternidade, mas, na verdade, só durou uns vinte minutos. Após fechar, Meg me obrigou a lavar a louça. Ela disse que era uma punição pelo susto que eu dei em seu aniversário atrasado e por não ter ido a verdadeira festa de aniversário dela, tal punição que eu considero muito injusta. Odeio limpar a minha própria casa, imagine os pratos gordurosos do restaurante da Meg. Bem...talvez limpar a minha casa seja pior, mas é ruim de qualquer forma. – Eu não quero lavar sua louça, um susto não compensa isso – indaguei – Pois eu não vou te dar nada se não lavar – Margareth, insensivelmente, me ameaçou com uma arma mortal. Tive que fazer o que ela mandava, caso contrário, não completaria o meu propósito de hoje: comer as sobras (e não o caviar). Demorou mais que uma eternidade para lavar a louça, hoje o restaurante estava mais movimentado do que o normal, e mais cliente é igual a mais louças para lavar. Fiquei tentada a esconde uns pratos no armário e fingir que eu tinha lavado, mas Meg acabaria descobrindo e me obrigaria a varrer a cozinha também. – Pronto, senhora, terminei. Agora eu quero a minha recompensa. Meg começou a preparar algo para mim, o que era estranho, pois ela normalmente só pegava o que tinha e me dava. Resolvi não questionar. Voltei para a mesa e esperei pacientemente pelo pedido, e ela veio com alguma comida que eu não sei o que era, mas que parecia bom. – Você também vai lavar esses talheres e pratos – disse, enquanto colocava a minha refeição e a dela em cima da mesa. – Mas isso é muito injusto! Ela sorriu de forma maldosa, parece que a vingança duraria mais que um dia. Nada poderia deter o coração amargurado de uma pessoa que não teve sua melhor amiga na festa de aniversário e que quase enfartou no dia seguinte. Acho que eu deveria me curvar para que ela perdoasse os meus pecados, não aguentaria tanto sofrimento. Provei um pouco da comida que ela fez, era realmente muito boa; embora eu ainda não soubesse qual era o nome daquilo. Aquilo poderia ser classificado como frango frito ou caviar? Imagino que seja como frango frito, porque com certeza é bem melhor que caviar; embora eu nunca tivesse comido caviar, experimentei mentalmente e não gostei nem um pouquinho. – Ei, por que não veio para cá durante esses três dias? Isso não é nada normal de sua parte – Meg estava certa, não era nada normal, mas eu tenho meus motivos. – Você viu que eu estou com meu carro novamente, certo? Então, ontem eu o busquei na oficina, era isso que eu estava fazendo. Ela olhou para fora pela janela, aparentemente, ainda não tinha reparado que eu vim de carro. Esperei comentários como “seria esse um milagre?”, mas ela não falou nada do tipo, sua expressão de surpresa valia mais que qualquer coisa que poderia ser dita. – E anteontem? – Perguntou. – Bem...essa é uma história um tanto engraçada – ri ao lembrar da história. Eu não deveria rir, mas, como diz o ditado, “é melhor rir do que chorar”, e eu concordo com isso. – Era noite, bem tarde da noite mesmo, e o meu chefe, Manuel, você o conhece, ligou dizendo que conseguiu convencer o amigo dele a aceitar um artigo meu no jornal Amanhã, mas que eu deveria entregar no dia seguinte.

Page 41: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

176

“Eu fiquei quase a noite toda acordada, mas não consegui pensar em nada e já eram cinco da manhã. Estava morrendo de sono e acabei dormindo sem escrever nem um parágrafo sequer. Quando acordei, tinha várias mensagens de Manuel no celular perguntando onde eu estava, o que quer dizer que eu havia me atrasado para o trabalho.” – Ah, como você é desajeitada – questionou Meg. – Como é que você não tinha nada sendo que escreveu um monte de coisas anteriormente? Inclusive, não foi a minha festa de aniversário por causa disso. Onde estava todos os seus outros artigos? – Eu joguei tudo fora, estavam horríveis – Margareth começou a zombar de mim, rodando o indicador ao lado da cabeça, me chamando de louca. – É sério, aquilo com certeza não serviria para o jornal Amanhã. Sabe, amanhã...o jornal mais famoso do Brasil inteiro... – Não precisa explicar, é claro que eu conheço o Amanhã. Eu também moro no Brasil. – Mas continuando com a história...acordei com várias mensagens de Manuel e tive que me arrumar correndo, até coloquei a roupa por cima do pijama. Eu nem sequer penteei o cabelo, estava completamente horrível – minha grande amiga riu da situação, aposto que estava imaginando meus cabelos para cima e o pijama muito mal escondido por baixo de outra roupa. – Não ria! Mas que grande amiga você é, hein. “Continuando, novamente...peguei um táxi para o trabalho. Eu não sabia o que fazer, afinal, não tinha nada escrito e ainda estava atrasada. A sorte foi que, no caminho para o trabalho, consegui pensar em algo interessante e escrevi rapidamente através do tablet. Quer dizer, não era sorte, mas sim um milagre” – Sim, um milagre, assim como o seu carro lá fora – lancei um olhar fulminante para ela. O deboche sobre o carro veio depois, mas veio. – Cheguei e imprimi o que escrevi, depois entreguei o artigo para Manuel, que entregou para o office boy, que teve que ir correndo e entregar para o amigo de Manuel do Amanhã. Todo mundo estava olhando para mim porque eu estava realmente muito esquisita e fiquei aliviada quando pude ir ao banheiro me arrumar adequadamente. Dormir o resto do dia inteiro e cheguei em casa, tomei banho e desabei na cama. Meg ainda estava absorvendo as informações. Eu não costumava ser uma pessoa de sorte, mas às vezes o mundo exagerava no azar que me dava. – Okay, e o terceiro dia? – No terceiro dia? Eu fiz... – fiquei pensando, tentando lembrar o que eu tinha feito no terceiro dia. Minha memória não é lá muito boa. – Ah sim. Lembra daquela carta estranha? Então, eu fui na central do Correio perto da minha casa entregar a resposta. Conheci o tal do Henrique, ele era estranho. – Estranho como? – Perguntou Meg. – Ele parecia estar nervoso, muito nervoso. E irritado também, já sei que, de jeito nenhum, ele concordava com quem quer que o tenha obrigado a ser o “entregador” de cartas pessoal de um “grande projeto”. Mas é só por isso que ele parecia estranho mesmo, mas só na primeira impressão. A partir da segunda carta, deu para ver que a pessoa azucrinava o coitado. – Tipo eu te obrigando a lavar a louça? Olhei de cara feia para Meg. Aparentemente, eu e Henrique tínhamos amigos exploradores. Será que eu deveria criar um clube em nome de todos os exploradores do mundo? – Sim, tipo você me obrigando a lavar a louça. Ou talvez você seja pior. Meg ficou “ofendida” e tirou o prato de comida de perto de mim, mas eu consegui pegar a tempo dela correr com ele nas mãos e não me devolver mais. Aquela traiçoeira. – Era gato, pelo menos? – Ela perguntou, voltando à mesa. Parei pra pensar um pouco. É difícil definir um conceito de “gato” pra Meg, ela

Page 42: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

177

é do tipo de pessoa que tem uma definição nova de beleza toda vez que se apaixona por um novo ator. – Eu diria que sim – respondi. – Agora estou interessada, conte-me mais – ela pediu, sentando na mesa, apoiando a cabeça nas mãos e os cotovelos na mesa. – Não tem mais o que dizer – disse, após pensar um pouco. Essa conversa toda me fez lembrar da última carta que recebi do “sr. Mistério”, onde ele perguntava se eu tinha alguma amiga para apresentar o Henrique. É, talvez eu tivesse, mas não seria certo apresentar sua melhor amiga para um estranho, certo? Mas e se essa amiga gostasse dele e te agradecesse pelo resto da vida por você ter a apresentado ao homem que seria o amor de sua vida e eles tivessem dois filhos, um cachorro e comprassem uma casinha no interior para sentarem em cadeiras de balanço e darem às mãos um ao outro, enquanto leem livros e revista para pessoas mais velhas? Isso seria algo positivo, certo? Sem contar que me ajudaria na investigação... – E você conseguiu descobrir alguma coisa sobre a pessoa que enviou as cartas? – Meg falou, me arrancando bruscamente de meu breve momento de devaneio. – Não, Henrique não foi muito cooperativo. Em nenhuma das duas vezes – Meg fez uma cara confusa com o “duas vezes”. – Duas vezes porque eu fui entregar a minha resposta para a segunda carta ontem. Provavelmente, quando chegar em casa, terei a terceira carta para ler. – Você vai ficar obcecada nisso até descobrir quem enviou – dei de ombros. Nunca foi dito uma verdade maior que essa, eu realmente não pararia de responder as cartas até descobrir quem as enviava. – E também não vai querer ir para o caminho fácil simplesmente insistindo para que Henrique ou a própria pessoa misteriosa lhe dissesse quem era. – Não adiantaria, nenhum dos dois me falaria. E não teria graça alguma desse jeito. – Ao menos faça um favor para essa sua amiga aqui e me apresente esse rapaz. – Pode ir comigo amanhã, se quiser. – Pode ter certeza que vou. Meg levantou e pegou os pratos para levar para a cozinha. A segui, já que eu teria que lavar aquilo. Ela não teve nem a decência de ficar na cozinha apoiando a minha tristeza, só voltou para a mesa e me esperou lá, sentada, enquanto eu estava fazendo o trabalho sujo (literalmente sujo). Reparei que tinha uma outra coisa cozinhando, mas não parei para olhar o que era porque queria adiantar a tarefa. Mais uma vez, terminei de cumprir as minhas tarefas e fui terminar a minha conversa com minha amiga, tenho certeza que ela tinha mais perguntas a fazer – sobre o que eu não sei. – E você já tem uma teoria de como é a pessoa que envia as cartas através dos textos? – Sobre a aparência, eu não tenho ideia, mas acredito que seja um homem. E quanto a personalidade...creio que seja alguém um tanto sarcástico e com muito senso de humor. E controlador também, aposto que ele conseguiu convencer Henrique a fazer o que ele queria várias vezes. Eu diria que deve ser o tipo de pessoa que muitos achariam estranha, com manias esquisitas; digo isso com base na mania de enviar cartas, que é algo esquisito. “Mas, mesmo que meu chefe seja o oposto disso, acho que há uma possibilidade dele ser o remetente. Mas aquele cara não é fácil mesmo, tentei arrancar informações várias vezes dele, mas todas essas vezes foram em vão. Porém, você sabe que eu não vou desistir dessa possibilidade tão cedo.” Meg riu, ela me conhecia tanto quanto meus pais me conheciam, minhas ações não eram nada imprevisíveis para ela. De repente seu sorriso desapareceu do rosto e ela correu até a cozinha. Quando

Page 43: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

178

entrou, foi diretamente até a panela em cima do fogo ligado; era a coisa misteriosa que estava cozinhando. “Era” é a palavra perfeita para se referir a suposta comida não identificada, porque agora ela é somente um pedaço de carvão. Meg desligou o fogão e olhou tristonha para seu prato carbonizado, era esse o preço que se pagava por obrigar a melhor amiga a fazer tarefas que não lhe dizem respeito. – O que era isso? – O novo prato que eu criei – ela falou melancolicamente. – Mas agora é só carvão. Eu tinha feito pra você experimentar em casa. Não ria, eu sei que você quer rir. Não consegui me conter e desobedeci as suas ordens, mesmo que fosse triste o fato de que aquilo seria para mim, mas que não era mais comestível. – Não se preocupe, amanhã você faz de novo – a tranquilizei. – Tenho que ir, venho tentando dormir cedo esses dias para não causar desastres. – Certo, até mais. Feche a porta quando sair, por favor – ela deu tchauzinho com a mão e jogou no lixo o resto do seu novo prato. Fechei a porta, assim como ela pediu, entrei no carro e dirigi até a minha casa. Assim que estava entrando na portaria do prédio, vi um conhecido meu. Olhos vesgos, cabelos castanhos, sem dúvidas era Henrique. Andei até ele, que se assustou quando me viu. Acho que ele pensava que eu já estava na minha casa dormindo. – Calma, eu não sou nenhum monstro – brinquei, ainda rindo do susto que ele levou. Henrique fez uma cara emburrada e entregou a carta para mim. – Você não deveria chegar de fininho desse jeito – ele entregou mais outras cartas para o porteiro. Pelo visto, acabou virando o encarregado de entregar as cartas para o prédio. – Desculpa, não posso fazer nada se você é medroso. Henrique ficou ofendido com meu comentário (claro, quem não ficaria?), mas não podemos negar a verdade. – Eu não sou medroso! – Protestou. – Claro que não – respondi de forma sarcástica. – Vou subir, tenho que dormir. Até amanhã, quando eu for entregar a resposta. Ele se despediu de mim e foi embora. Subi correndo as escadas e entrei no meu apartamento, ansiosa para ler a carta. O gato da vizinha, como sempre, me seguiu e entrou antes que eu fechasse a porta. Será que a vizinha sabia que ele ficava aqui? Ou ela ficava desesperada procurando pelo felino? Bem, talvez ela nem sequer note que ele sumiu, já que ele vem para cá sempre tarde da noite, quando muito possivelmente sua dona está dormindo. O mais engraçado disso tudo é que, até pouco tempo, eu chamava o gato de “Gato”, por não saber seu nome; isso até descobrir que o nome dele era Cenoura, quando ouvi a vizinha chama-lo para comer. Então resolvi continuar chamando de “Gato” porque, embora seja um nome estranho, ainda era melhor que Cenoura. Quem dá o nome da comida favorita de um coelho para seu gato? Antes de ir dormir, abri a carta para ler. Queria saber as respostas das perguntas que fiz.

“Cara pessoa, Mas é claro que o Henrique não está contra os meus planos e me acha um maluco. Na verdade, ele acredita fielmente que eu sou um gênio! Eu não o manipulo, ele faz tudo porque quer, não tem como recusar uma oferta minha. Ele só discorda às vezes porque é um medroso, mas quanto a isso nada pode ser feito. Mas eu sei que ele tentou te chantagear, e se você tivesse aceitado, teria perdido uma grande oportunidade de continuar uma conversa com uma pessoa interessante e de mente aberta.

Page 44: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

179

Ah, sim, e você não deveria perseguir as pessoas, não é nada legal ter que andar até um segundo ponto de ônibus porque tem alguém atrás de você tentando descobrir a sua localização. Sorte que Henrique foi muito bem treinado por mim e conseguiu enganá-la. E sobre as suas perguntas...eu não vou responder agora, você terá que esperar mais algumas cartas. Tente tirar suas próprias conclusões através de uma conversa natural, não lhe entregarei respostas tão facilmente. Aguarde ansiosamente pelas respostas E sobre a grande revelação...sinto dizer que não tem grande revelação; só quero compartilhar minha história de vida (ou dos outros). Vou te revelar algumas informações: talvez você devesse prestar mais atenção no que acontece com as pessoas ao seu redor, pode gerar momentos divertidos e interessante. Mas o que isso tem a ver com a minha história de vida? Isso simplesmente é um dos meus hobbys, eu descubro (coincidentemente) tudo o que está acontecendo com os meus vizinhos e envio cartas para eles resolvendo os seus problemas. Só que os ingratos nunca me respondem, quer dizer, pode ser um pouco difícil já que eu nunca coloco meu nome ou endereço, mas eles poderiam dar um jeito; os únicos que conseguem, enviam cartas me xingando, logo eu, a pessoa que os aconselhou tão maravilhosamente. O pior é quando ignoram meus conselhos, o que acaba sendo um prejuízo para os próprios. Você é a primeira pessoa que responde a uma carta minha adequadamente, sem xingamentos, eu fiquei totalmente surpreso quando Henrique trouxe a resposta e eu li, e é por esse motivo que vou te contar algumas das polêmicas histórias dos meus vizinhos. PRIMEIRO: uma vizinha que tem um filho explorador e a obriga a comprar tudo o que deseja, mesmo que não seja necessário; às vezes, tenta controlar a mãe a base de violência, tentando bater nela; além disso, é um pequeno vândalo que destrói a propriedade alheia. Certo dia, ele quebrou a minha janela enquanto brincava de jogar pedras, foi aí que eu fiquei irritado e enviei uma carta para a mãe dele, ele foi mexer com a pessoa errada! SEGUNDO: um idoso que tem um medo enorme por uma moradora no condomínio. Em um filme, ela seria a vilã e ele o comparsa idiota que só segue a vilã porque tem medo. TERCEIRO: um outro caso é totalmente o contrário do primeiro, a pobre filha sofre nas mãos da mãe que tentar moldar um futuro que ela (a mãe) deseja, esquecendo totalmente da opinião da filha. Ela quer ser jogadora de futebol, mas a mãe diz que isso é coisa de menino e que ela deveria ser uma médica. Sinceramente, as pessoas não deveriam virar médicos caso não queiram, não quero de jeito nenhum, um dia, ser morto por um médico que faz tudo de mau gosto porque não era aquilo que ele desejava fazer. Medicina é algo que exige dedicação, e dedicação exige interesse. Obviamente, eu enviei uma carta para a mãe em nome das futuras pessoas que seriam pacientes da filha dela, e em nome de todos os jovens que desistem de seus sonhos para viver uma vida que não desejam. Além do mais, por que ela não pode ser uma jogadora de futebol? Tudo bem que é uma profissão um tanto instável, mas ela pode muito bem se tornar a futura Marta do Brasil. E, acima de tudo, nenhuma profissão deveria exigir um sexo em específico, todo mundo pode ser o que quiser. Uma menina pode ser uma jogadora de futebol, e um menino pode ser cabelereiro. QUARTO: a quarta é totalmente chocante, tanto que não pude enviar uma carta, somente uma ligação para a polícia. Não preciso de dar detalhes, somente dizer o que foi: um caso de violência doméstica. Os outros vizinhos acabaram descobrindo um tempo depois de eu ter chamado a polícia, o que facilitou as coisas para a mulher que sofria violência. QUINTO: o típico caso do gay em uma família extremamente homofóbica,

Page 45: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

180

também não exige detalhes ou explicações. Tem várias outras, mas se eu escrevesse tudo, essa carta seria infinita. Não que a minha vizinhança seja assim, tão movimentada, a verdade é que eu me mudo mais ou menos de dois em dois anos, portanto posso ter esse tipo de experiência em vários locais com pessoas diferentes. O que você achou do meu grande hobby? Espero que você entenda e não seja que nem Henrique, que acha uma loucura (acho que acabei de revelar uma mentira). Veja bem: eu estou ajudando pessoas, sou um conselheiro. Todos ficam irritados porque, através do conteúdo das cartas, percebem que alguém (eu) andou os vigiando de alguma forma; eu concordo que não é legal ter alguém te bisbilhotando, mas por que só ver o lado ruim de tudo? A minha curiosidade acaba os ajudando de formas inimagináveis (claro, somente aqueles com a mente aberta o suficiente para aceitar os meus conselhos). Se todos os meus vizinhos parassem de prestar tanta atenção ao lado ruim do mundo, e tentassem ver as coisas boas que surgem para nós, tudo seria melhor e mais bem humorado. Além disso, acredito que muitos deles ficam irritados porque mostro a eles justamente aquilo que eles fingem não ver e querem não ver. O ser humano costuma ser assim, se irrita quando alguém o confronta com a verdade. Mas mesmo com tudo isso, continuo mandando minhas cartas, pois acredito que faço algo importante e posso ajudar a algumas pessoas, mesmo que não tantas quanto eu gostaria. Me diga a sua opinião sobre o meu hobby que eu respondo as suas três perguntas. Na próxima carta, contarei mais relatos sobre a vida dos meus vizinhos. E, caso queira, posso falar um pouco mais sobre algum desses relatos que resumi para você. Jimin, para você.”

Fiquei surpresa com a “grande revelação”. Primeiro, acho um grande atrevimento por parte dele vigiar a vida dos vizinhos – obviamente ele não descobre tudo isso coincidentemente. Mas, ao mesmo tempo, é um hobby peculiar e interessante, confesso que achei incrível. O quão corajoso alguém tem que ser para enviar cartas aconselhando pessoas sobre seus problemas, se submetendo a possíveis discussões com pessoas enfurecidas por ter alguém bisbilhotando a sua vida? Penso que sou audaciosa por escrever críticas para o público em jornais, no qual meu nome estará escrito lá para que todo mundo possa me achar, mas talvez o remetente misterioso seja mais audacioso do que eu. Mas, aparentemente ele ajuda pessoas com esse jeito estranho dele de fazer e, pensando por um lado, todas as pessoas já super expõem sua vida nas redes sociais, que nem deveriam ficar irritadas por ter ela invadida quando se trata de “vida real”, principalmente quando se trata de algo que as ajuda, de certa forma. Com isso, também confirmo mais ainda a minha teoria de que ele é alguém totalmente estranho (o que não é novidade alguma), mas também é alguém incrível exatamente por ser tão estranho. Eu com certeza contaria a Meg sobre essas cartas que ele envia amanhã. Após ler a carta, fui me arrumar para dormir, esperando pelo dia seguinte para experimentar o misterioso novo prato criado pela Meg e para contar a ela as minhas descobertas. Relatório do dia: estou ficando cada vez mais interessada; em quê? Em tudo.

Page 46: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

181

Capítulo 12 – Em alto e bom som

Jimin

– Sua irmã ligou para mim ontem – disse Henrique, que estava organizando sua bolsa com as cartas para a entrega na minha casa. Então Patrícia resolveu importunar Henrique para que ele me convencesse a escrever o que ela queria? Péssima ideia, eu não vou aceitar de jeito nenhum. – Diga a ela que eu não vou escrever e ponto final! – Respondi irritado. – Mas por que toda essa implicância com a sua irmã? – Essa pergunta não é surpresa alguma, pois eu nunca tinha falado a Henrique sobre minha relação com ela. – Vocês mal conversam, ela mal vem visitar você, e você parece a odiar. – Minha irmã é uma egoísta e mentirosa, desde pequena só pensa em si mesma. Não sei quantas vezes levei a culpa pelos problemas dela – expliquei. – Mas quando cresceu, além de egoísta e mentirosa, ela só pensa no trabalho, virou uma maníaca e gananciosa. Não tenho por que me preocupar com ela e nem ela comigo. Henrique não pareceu engolir a história, parece que não era um motivo bom o suficiente para que ele pudesse considerar aquilo como uma justificativa para o nosso afastamento. Ele estava pronto para ir embora, demonstrando estar desinteressado quanto ao assunto, e sua falta de interesse fingida me convenceu a contar. – Ela sabia que eu tinha aquele problema de saúde. Quer dizer, todo mundo da minha família sabia. Em público, ela fingia ter pena de mim, e eu odeio isso, não preciso que ninguém tenha pena de mim. Mas quando todos estavam fora, inclusive os nossos pais, era pior...ela é uma pessoa muito egoísta, tudo que ela quer, ela tem que ter de qualquer jeito, inclusive as coisas que eu tinha. Enquanto todos estavam fora, ela exigia que eu lhe desse meus brinquedos e coisas do tipo, e quando eu recusava, ela abria as janelas, me empurrava para fora de casa ou fazia qualquer outra coisa que pudesse me expor; eu acabava fazendo o que ela queria, porque doía muito. “Quando meus pais chegavam em casa e me viam cheio de feridas, ela mentia dizendo que eu mesmo estava causando isso em mim e meus pais contratavam vários psicólogos para mim, como se eu quisesse cometer suicídio ou somente me machucar de propósito. Ela fazia o teatro dela, dizendo que ‘fez de tudo para me impedir, mas que não conseguiu porque eu era muito forte’, às vezes dizia que eu batia nela quando tentava me impedir de ‘me machucar’. É uma mentirosa e egoísta, isso é bom o suficiente pra você?” Henrique não respondeu nada, ele não sabia como reagir a minha trágica história. Ficou pensado por um tempo o que poderia falar. – Da próxima vez que ela ligar, mandarei ela ir para o inferno – essa sim era a resposta que eu esperava, como ele aprende rapidinho. – Mas você deveria escrever logo isso para ela parar de insistir, seria melhor para você. – Não, aí ela pediria toda hora uma coisa nova. Ele deu de ombros, aceitando que aquela era uma resposta convincente. – Ah, sua carta – Henrique pegou a carta da bolsa e entregou para mim. – Vou indo, tchau. Dei um leve aceno de mão e comecei a ler a carta. Não tinha muitas coisas escritas, mas de uma coisa eu garanto: achei uma pessoa que aceitava o meu projeto. Na verdade, Laura achou incrível (e também disse que era feio ficar vigiando a vida dos outros, mas que mesmo assim era incrível). Devo fazer Henrique ler cada pedacinho dessa carta, vai que ele finalmente aceita o meu hobby. Ah, como é difícil ser um gênio tão, tão incrível a ponto de ninguém te compreender... bem, quase ninguém, pois ela me entendia. Seria meu sonho? Se for assim, eu não quero acordar.

Page 47: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

182

*** – Calma! Já vai! – Gritei do meu quarto para a pessoa que batia forte na porta e sem parar. Fui correndo para abrir a porta e a decepção foi muito grande quando vi que era minha irmã. Tentei fechar a porta na mesma hora, mas ela colocou a mão, impedindo que eu fechasse. – Também senti sua falta – Patrícia disse, entrando sem pedir licença. Mesmo depois de cinco anos sem ver minha irmã, ela continuava com a mesma postura autoritária que tinha desde criança, mas seu visual estava diferente. Ela usava um terninho cinza e um salto agulha que fazia barulho em meu piso de madeira; seu cabelo loiro estava curto, num corte chanel repicado e levemente bagunçado, que lhe dava um ar jovial quando unido às mexas mais claras que ela havia dado. Estava mais forte do que da última vez que a vi, provável efeito da academia que tinha começado a fazer quando paramos de nos falar. – Não quero você aqui, vai embora – falei, abrindo a porta e deixando a passagem livre para ela sair. – Sei que não sou bem vinda e nem espero, mas realmente preciso falar contigo – ela continuou, quando não disse nada: – Não pediria a você se tivesse outra pessoa para fazer. Revirei os olhos e fechei a porta, indicando o sofá para que Patrícia se sentasse. – D... – É Jimin, por favor – cortei-a bruscamente quando ela tentou me chamar pelo nome, só me trazia lembranças ruins. Tentava me recordar da última vez que falei com minha irmã de uma forma mais suave, sem a frieza no tom de voz que eu sempre tinha, mas não conseguia recordar. – Como quiser – ela concordou. – Enfim – continuou. – Preciso que você escreva um livro pra mim, sobre a nossa empresa. – Por que você não contrata um escritor qualquer? Eu não quero fazer isso. – Porque a empresa é nossa e dos nossos pais, quem saberia escrever melhor que os próprios donos? Peguei o papel em cima da estante, era uma lista de escritores dispostos a fazer o trabalho, no qual eu mesmo pesquisei para que Patrícia me deixasse em paz. – Tenho aqui uma lista de escritores em potencial... Patrícia me interrompeu pegando bruscamente o papel da minha mão, olhando rapidamente; ela amassou o papel e jogou no chão, irritada. Não fiz nada, deixei que ela jogasse, má sorte a dela. – Não serve – ela pegou uma pilha de papéis de sua bolsa e entregou para mim. – Tem que ser você. Esses são os pontos principais que você precisa saber para escrever o livro. Resolvi listar motivos para que eu não escrevesse esse livro. – Primeiro: esses tipos de livros são chatos e ninguém vai ler – prossegui. – Segundo: eu não vou escrever, contrate outro alguém. Patrícia suspirou e levantou para olhar em meus olhos. – Quando nos tornamos assim? – Ela perguntou, com um olhar sincero. – Sei que nunca fomos os melhores irmãos do mundo, mas ao menos nos falávamos e brincávamos às vezes. – Deixa ver... – pus a mão no queixo, de forma irônica. – Talvez tenha sido entre toda a dor que você me fazia passar e a sua tomada da direção da empresa, algo assim. – Eu era criança, D... – Jimin! – Gritei, ainda mais irritado por ela tentar justificar toda a perversidade que fazia comigo quando éramos menores. Só faltava ela dizer que gostava de mim, o

Page 48: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

183

que era claro que nunca aconteceu. – Jimin – ela voltou a se sentar no sofá, apoiando os cotovelos nos joelhos, cabisbaixa. – Eu detestei quando você nasceu. Durante quatro anos de minha vida, eu era o centro de todas as atenções; tudo o que eu fazia era fofo, bonito, era o xodó da família. “Aí você nasceu e eu via toda a atenção que tinha antes se esvair a cada minuto. ‘ Vamos brincar, papai’, eu dizia, mas ele nunca tinha tempo porque você era um bebê muito chorão e eles sempre se preocupavam com isso. Sempre tentava pensar que, quando você crescesse, eu teria meus pais de volta pra mim. E então veio a surpresa. Aos cinco anos você teve o primeiro ataque e durante um ano inteiro eu nem via meus pais, deixada na casa de nossos avós como se fosse um objeto que pudesse ser largado assim. Durante um ano inteiro eu só via meus pais por uns cinco minutos toda semana, porque eles tinham que ficar com você no hospital. Minhas esperanças? Que você ficasse bom logo e eu pudesse ter meus pais de volta. Então imagina só quando soube que você nunca iria ficar bom, que eu nunca mais teria a atenção que eu queria de meus pais porque eles tinham um filho especial, agora? Eu sentia raiva e por isso te machucava, para ver se com isso minha dor passaria. Mas isso não está certo, somos irmãos e deveríamos ser os melhores amigos um do outro.” Ficamos em silêncio por um momento, apenas o som da mastigação de Mickey, na cozinha, era o que se podia ouvir. – Li todos os seus livros, um a um – Patrícia continuou. – Você é o melhor escritor que eu já li e estou sendo sincera quanto a isso. Preciso que seja você. – Você esperava que eu me comovesse com esse discurso? – Vociferei. – Sinto lhe dizer que não comoveu. Se o seu problema era inveja de mim, não tenho nada a ver com isso. Não pedi para ser doente e minha vida é uma droga por isso. Nunca pude ir para a escola, ter muitos amigos, ir ao cinema ou qualquer coisa que pessoas normais podem fazer; nunca nem tive uma namorada! Você se sentia injustiçada porque nossos pais me davam mais atenção? Não desejaria esse tipo de atenção nem para meus inimigos que, aliás, nem tenho por não conhecer quase ninguém! “E ainda sim, embora eu tenha sofrido tanto, quase morrido por demorarem a descobrir o que tenho, nunca descontei meus problemas nos outros sendo perverso; muito pelo contrário. E sempre tentei ver o lado positivo das coisas, porque se fosse como você, já não estaria mais aqui há muito tempo.Então fique à vontade para sentir pena de si mesma por tudo o que você passou e criar a ilusão de que sua infância foi ruim, porque você não sabe a sorte que tem de não ser como eu.” Abri a porta da casa com força e apontei para o lado de fora, gritando para ela sair. Bati a porta na cara dela quando tentou dizer uma última coisa e me encostei, deslizando até chegar ao chão, as lágrimas de fúria descendo por meu rosto. – Se você não fizer isso, eu vou contar para nossos pais! – Essa é a ameaça mais ridícula que eu ouvi nesses últimos tempos. – Sua ameaça foi ouvida em alto e bom som – gritei. – E deixe Henrique em paz! Fui para o meu quarto terminar o que estava fazendo; escrever a resposta para Laura. Ela é uma pessoa bem mais interessante e legal que Patrícia, disso eu tenho certeza. Ao ler mais uma vez a última carta que ela tinha me enviado, sorri, já me sentindo mais calmo e quase esquecendo de tudo o que aconteceu.

Page 49: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

184

Capítulo 13 – Sofrimento em dose dupla

Henrique

Se toda vez que eu xingasse um de meus colegas, precisasse ser um palavrão novo, teria que recorrer para novos idiomas, porque minha cota estava em seu final. Desde que Laura foi no meu trabalho, a primeira vez, todos os meus colegas não paravam de me chamar de lerdo (até mesmo as mulheres) por não ter ficado com Laura. Era bem idiota esse conceito que sempre empregavam de, se você conhecia uma mulher e estava solteiro, tinha automaticamente que se aproveitar disso (e se, mesmo casado, fosse uma mulher muito bonita, também tinha que se aproveitar disso). Acho que Jimin fica em casa o dia inteiro apenas pensando em como ferrar minha vida mais um pouco, porque ele sempre me coloca nesse tipo de confusão. Só espero pelo dia em que serei preso por algo que ele me obrigou a fazer. Tudo bem, eu tenho a opção de rejeitar esses planos dele, mas não consigo evitar ajuda-lo com essas coisas quando lembro que ele nunca poderia fazê-las.Mas meu dia já estava sendo ótimo (e com isso estou sendo extremamente sarcástico) quando Laura chegou para melhorar ainda mais as coisas (sarcasmo de novo) e, como se não bastasse, ainda trouxe uma amiga com ela. Maravilha! Tragam meu certificado de gay do ano, para que meus colegas não comecem a reclamar da demora.A amiga de Laura era bem pequena, mas isso só a deixava mais bonita. Tinha os cabelos enrolados e curtinhos, a pele levemente escura e um sorriso muito fofo. Quase esqueci que Laura tinha vindo me importunar mais uma vez nessa semana quando a vi, mas claro que a terrorista de cabelos vermelhos não deixaria isso.– Quero minha carta – ela já chegou exigindo.– E eu quero paz – respondi, tentando tirar os olhos da mulher ao lado dela. – E boa tarde ainda é usado pelas pessoas.– Qual é, Henri? Me dá logo! – Laura implorou.– Nos chamamos por apelidos, agora? – Questionei, levantando uma sobrancelha.– Pode me chamar de Laurinha, se quiser – ela lançou um olhar travesso, sorrindo. A amiga dela fingiu pigarrear e Laura olhou para ela, como se só tivesse lembrado agora de sua existência. – Que falta de educação a minha! Henrique, essa é minha amiga Margaret, mas pode chamar de Meg; Meg, esse é Henrique.– Muito prazer em conhecê-la – falei, apertando suavemente sua mão. – O prazer é todo meu – Meg respondeu, sorrindo.– Agora, a minha carta – Laura pediu (mandou).Pedi que esperassem e fui no meu armário buscar, o que só deveria demorar um minutinho, se não tivesse sido parado por meu colega de trabalho, Carlos.– Duas, Henrique? – Carlos provocou, me dando um tapinha no ombro. – Não precisa ser tão egoísta, divide com os amigos.– Quantas vezes vou ter que dizer, Carlos, não tenho nada com ela – suspirei, me afastando dele.– Verdade, mas gosto de ver como você fica nervoso com isso sem motivo algum, exceto se você não gostasse da mesma coisa que eu gosto...Carlos era especialista em encher o saco de qualquer um e adorava insinuar que eu era gay. Trabalhar com esse cara me faz sentir alegre quando vou entregar cartas.– Não sou gay – respondi, fechando o armário.– Em todos os anos que você está aqui, nunca te vi com uma mulher – ele ponderou.– Já pensou que eu posso não ser um galinha desesperado como você? Ou que tenho respeito pelas mulheres? Ou que não preciso te provar nada?– Se não vai mesmo tentar nada com elas, dá a chance pro seu colega aqui.– Já tentou se olhar no espelho hoje? Ou ouvir o que você fala? Quando fizer isso,

Page 50: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

185

avalie se vai ter alguma chance com alguma delas.Saí logo dali, antes que ele continuasse com as insinuações dele e fui até Laura e Meg.– Você me faz um enorme favor? – Falei.– Tudo para o meu carteiro favorito – Laura respondeu, com um leve tom de ironia.– Não vem mais até aqui, deixa que eu vou lá buscar as cartas e entregar. Os rapazes daqui parecem que vivem numa selva, não sabem se portar diante mulheres bonitas como vocês – me senti envergonhado ao dizer isso, mas precisava ser dito.– Estou me sentindo lisonjeada. Tudo bem, não venho mais, só não demore para entregar as cartas.– Não demorarei.Elas já estavam saindo quando Laura se virou. – Venha buscar a carta essa noite, já vai estar pronta – Laura disse isso bem alto e com um olhar cheio de segundas intenções. Não bastava um, agora eu tinha dois Jimins. Entrei correndo na Central e peguei todas as cartas do dia para entregar e fugir dos comentários que iria ouvir por causa dela.

***Eu realmente não pretendia ir à casa de Laura à noite, mas conhecendo aquela mulher, se eu não fosse ela viria amanhã e eu definitivamente não queria isso. Só precisei tocar a buzina uma vez e esperar poucos segundos para que ela atendesse; mal disse “oi” e já fui puxado pra dentro pelo braço, Meg estava sentada no sofá.– Minha casa; sua casa – Laura disse, me indicando o sofá. – Não repare a bagunça. Espere um minuto, vou pegar a carta.Assim que Laura disse para não reparar a bagunça, olhei para os lados e percebi que ela não estava sendo modesta ao dizer para não reparar e sim extremamente sincera; a casa estava uma bagunça! Tinha embalagem de comida espalhada pelo chão, mancha de molho no sofá (que estava todo arranhado, talvez ela tenha um gato também), roupas espalhadas pelos cantos e diversas bolinhas de papel amassadas perto de uma mesa com um computador em cima. Se Jimin visse isso, teria um ataque, no mínimo; o cara era obcecado por limpeza e ela se mostrava o oposto dele.Laura demorou mais do que deveria. Já tinham se passado dois minutos que ela tinha me deixado na sala com Meg quando resolvi puxar assunto.– Então... você conhece ela há muito tempo? – Perguntei, vermelho como um tomate, nunca soube como falar com garotas.– Desde criança – Meg respondeu. – E sim, ela sempre foi desse jeito.Assenti e ficamos mais um tempo em silêncio, até que ela voltou a falar.– Você é amigo do misterioso correspondente que atende por Jimin? – Ela riu ao dizer isso. – Jimin não é o nome dele, é?– Não – sorri. – E sim, sou amigo dele. – Não parece ser uma experiência agradável – Meg analisou.– Ele é uma boa pessoa, mas me põe em certas situações muito... como posso dizer? Perigosas? Tento incentivar ele a fazer aquilo que acredita, mas acabo sendo a pessoa que faz isso tudo acontecer.– Você é um bom amigo.– Acredito que sim.Depois daquilo, a conversa fluiu por muito tempo, até Laura voltar com a carta na mão, mas a essa altura eu já nem me importava com o tempo que ela estava demorando, queria até que tivesse demorado mais.– Desculpe a demora – Laura falou. – Não estava conseguindo achar a carta.– Ah, tudo bem – disse sorrindo, mais para Meg do que para Laura. Peguei a carta e me levantei, sabendo que já estava na minha hora. – Então, já vou indo. Muito bom conversar contigo.– Digo o mesmo – Meg disse, se levantando para apertar minha mão. – Espero te

Page 51: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

186

encontrar mais vezes.– Também espero. Me despedi de Laura e fui embora, mas minha mente ainda estava ali, com Meg.

Capítulo 14 – Nenhum plano é infalível

Laura

Eu deveria ganhar um prêmio. Neste momento eu estava no corredor ouvindo Henrique e Meg imersos em uma conversar animada e tudo por minha causa e tenho certeza que já pintou um clima entre eles dois. Cupidos, me contratem! Tudo bem que todo esse plano tem uma segunda intenção, que no caso seria me aproximar de Henrique e ter novas pistas sobre o misterioso Jimin, mas isso não vem ao caso. Além do mais, Meg estava há tanto tempo sozinha e só trabalhando que eu realmente acho que faria bem para ela ter alguém legal como Henrique parecia ser (também devemos ignorar o fato de que sei bem pouco sobre ele, coisa que já foi ponderada quando comecei a armar esse plano). Já estava ali há vinte minutos quando resolvi voltar e acabar com aquele papo. Isso também fazia parte de meu plano: fazer eles quererem se ver mais vezes e, nesse caso, somente eu poderia unir eles dois (isso até eles assumirem o que está se desenvolvendo). Sim, eu tenho todo esse plano em minha cabeça; sim, sou diabólica. Mas que mal tinha em fazer o bem para a sua amiga, arranjando para ela um cara legal e bonito, e ganhar algo com isso? Não é como se eu estivesse vendendo a alma de minha melhor amiga. A única parte falha desse plano é se eles dois ficassem mesmo todos apaixonadinhos e com isso Meg simplesmente esquecesse de sua amiga que estava com ele em todos os momentos ruins de sua vida (como quando ela perdeu o seu garfo da sorte banhado a ouro na viagem à Paris). Henrique saiu com um sorriso bobo no rosto, o mesmo que Meg sustentava agora. Fiquei surpresa com a rapidez que tudo aconteceu, mas só podia agradecer por ser tão sortuda. Minha melhor amiga se levantou e me abraçou forte. Okay, aquilo me surpreendeu. – Obrigada! Obrigada! Obrigada! – Ela pulou enquanto me abraçava. – Ele é incrível! Bonito, inteligente, fofo... Meg se jogou no sofá suspirando como uma adolescente que tinha acabado de se apaixonar pela primeira vez. Tudo bem, meu plano tinha duas partes falhas. É, nenhum plano é infalível. – Sim, sim, já entendi – falei, louca para mudar de assunto antes que ela começasse a falar apenas sobre isso. – Vai dormir mesmo aqui hoje? – Vou. Quero fazer aquele prato novo pra você. – Só não queime minha panela, custou muito caro. – Sou uma profissional, tá? – Meg fingiu estar ofendida. – Ah, não tem como você inventar algum motivo para eu ver Henrique de novo? Revirei os olhos e assenti, indo para o quarto sob os pulos de alegria de Meg. Eu não sei o que Henrique fez, mas ele conseguiu conquistar a mulher em um dia, assim ficava difícil dizer que amor à primeira vista não era verdade. Relatório do dia: planos infalíveis definitivamente não existem. Sério que vou ter que aguentar isso pela...eternidade?

Page 52: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

187

Capítulo 15 – Algumas cartas depois

Laura

Eu poderia desmaiar agora mesmo. A frase dos meus sonhos finalmente foi dita, eu fiquei tão estupefata que nem consegui escutar as outras palavras do Manuel, a única coisa que eu ouvi foi “Laura, adivinha. Você foi aprovada para o jornal Amanhã!”. Quando percebeu que eu não estava prestando atenção, esperou eu me recuperar do choque para que eu pudesse ouvir direito. Não que eu tenha ficado tão surpresa com o resulto, afinal, me esforcei para isso, dei todo o meu sangue, suor e lágrimas, mas não tem como não ter uma reação dessas. – Você começa a trabalhar lá no próximo mês – explicou Manuel. Sua voz estava um pouco chorosa. No início, pensei que estivesse tão feliz por mim que tinha vontade de chorar, mas depois percebi que o motivo também era outro; agora eu não trabalharia mais com ele, no mesmo local que ele. Mesmo que o prédio onde fica a sede do jornal seja bem em frente ao que eu trabalho no momento, não é a mesma coisa que trabalhar no mesmo prédio, no mesmo andar. Agora que pensei nessa possibilidade, também ficaria muito triste por ter que me afastar dele. Eu poderia chorar, mas não consigo ser tão emotiva a esse ponto. Devo confortá-lo? Sou péssima para confortar pessoas, talvez eu dificulte a situação. – Ah, não chore. Só vou estar a alguns segundos de distância...quer dizer, você pode ver o prédio bem em frente a sua janela. Manuel se virou e começou a abrir várias de suas gavetas procurando por alguma coisa. – Eu não estou chorando! – Ele pegou de dentro da gaveta um papel e, sem se virar, entregou para mim. – Assine isso. Assinei e entreguei para ele. Quando se virou, já não parecia mais estar segurando o choro – e não, isso não é porque agora está chorando de verdade, ele só conseguiu se segurar mesmo. – Quando começar o trabalho, todo dia venho aqui pra te ver..e pra pegar seus selos emprestado. Mas não vamos esquecer das suas dicas de moda também. Manuel riu e mandou eu voltar para a minha mesa e continuar meu trabalho. Estava difícil me concentrar pois eu ainda estava mais que animada com a notícia, meu sonho fora realizado e eu mal esperava para começar a trabalhar lá, dedicarei todo meu esforço para isso. Falando em notícias, sobre as notícias desses últimos meses: Meg e Henrique estão namorando, e isso está ficando cada vez mais insuportável. Chiclete é menos grudento e mel é menos doce que aqueles dois, eu poderia ficar diabética só vendo-os juntos. Devo dizer que me arrependi completamente do plano “infalível” criado por mim. Mas, pelo menos, com isso, consegui me aproximar mais do melhor amigo do senhor misterioso. Infelizmente não tive grandes resultados, Henrique não divulgava nada, uma das poucas coisas que eu descobri foi que ele tinha mais ou menos a idade e Henrique (que também tinha mais ou menos a minha idade), o que, para mim, não era uma grande novidade. Pelo que ele escrevia, também imaginava que não fosse muito velho. Mas pelo menos descobri uma história divertida; a tão famosa reunião de condomínio em que Henrique teve que participar em nome de seu amigo. E, com isso, descobri que o remetente morava em um condomínio, e eu ainda acreditava que ele não morava tão longe assim da minha casa. Acho que ele nem percebeu que divulgara uma informação tão valiosa, e eu fiz questão de não alertá-lo. Mas tem uma coisa que, até hoje, não entendo...por que ele próprio não envia as cartas? Qualquer um pode coloca-las em uma caixa de correio, inclusive ele. E ainda tem a questão da reunião, por que ele não foi? Henrique só se queixava por ter que fazer a parte suja do trabalho, mas nunca divulgava o porquê, especificamente, dele

Page 53: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

188

ter que fazer isso. Não consigo imaginar nada que impossibilite alguém a esse ponto. Eu realmente gostaria de conhece-lo, mas ele se recusa firmemente. Já implorei tantas vezes nas cartas, mas as respostas eram sempre as mesmas; inclusive, até hoje não recebi as respostas das minhas três perguntas, mesmo que, agora elas não sejam mais necessárias. Elas só serviriam para criar um perfil do mesmo, com um pensamento de que era alguém conhecido, mas agora tenho certeza que não é. De qualquer forma, o senhor misterioso, de algum jeito, tornara-se meu amigo. Eu gostava de ouvir suas histórias (ou dos seus vizinhos), e ele de ler as minhas respostas. Ele também anda lendo meus artigos no jornal e me dando dicas valiosas, graças a isso estou mais que preparada para trabalhar no mais famoso do Brasil. Terminei meus afazeres e corri para casa, planejando já adiantar rascunhos de novos artigos para o novo jornal e, claro, ler a carta que, com certeza, já estava na porta da minha casa (possivelmente rasgada por um certo gato).

Capítulo 16 – Eu não a amo

Jimin

Meu binóculo apontava para a porta da casa em frente à minha. Nela estava uma mulher alta, com porte autoritário, cabelos curtos e preto e um terninho incompreensível em pleno verão, pelo visto, a moda deveria ser mantida a qualquer custo em qualquer estação do ano: até mesmo no calor escaldante do verão do Brasil. Esse é um país “abençoado” pelo calor durante todo o ano, na verdade, mas tem vezes que fica intenso demais. A mulher estava conversando com um jovem que segurava várias malas. Perto deles, um carro esperava pelo jovem. Aquela claramente era Regina e seu filho delinquente. Aparentemente, ele estava indo para o colégio militar, já que vestia uma roupa do mesmo estilo. Regina chorava muito e, quando o motorista disse para se apressar, ela abraçou o garoto e o deixou ir para o carro. Alguns vizinhos observavam tudo pela janela (assim como eu) e aparentavam estar absolutamente satisfeitos; sorriam de orelha a orelha, alguns dançavam alegremente, satisfeitos por não ter mais uma pichação em suas casas, uma criança ofendida chorando e um garoto que gritava por um celular. Sinceramente, eu também estava satisfeito, só gostaria de saber se a escola militar foi uma escolha de Regina ou de algum vizinho que a obrigara a fazer isso – aposto na segunda opção. Imagino se Regina ficará menos mal humorada agora ou se descontará todas as suas saudades de forma negativa nas pessoas ao seu redor. Agradeço imensamente por não ter que sair de casa e me comunicar com ela...ou com qualquer outro vizinho. A mulher autoritária ficou parada, vendo o carro em que seu filho estava sumindo de sua vista. Ela continuava a chorar, mas nenhum vizinho resolveu se voluntariar para confortá-la. Pelo menos até esse momento. José, que estava fazendo sua caminhada do dia, se aproximou dela e tentou conversar com a mesma, mas o pobrezinho, no momento seguinte, saiu encolhido com uma Regina brava olhando para ele (talvez torcendo para que ele caísse). Pois é, parece que José terá a honra de receber mais uma carta minha. Regina entrou em sua casa, ainda irritada, e fechou a porta tão violentamente que foi possível ouvir o barulho dela batendo. Quando eu já ia olhar as reações dos vizinhos observadores, de repente o binóculo foi retirado da minha mão por uma certa pessoa indesejável; e não, não era a Patrícia. – Pare de vigiar os outros, você nunca se cansa disso? – Perguntou Henrique, que guardava, indelicadamente, meu querido binóculo numa gaveta empoeirada. Peguei o binóculo das mãos dele e voltei a fazer o que estava fazendo antes.

Page 54: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

189

– Eu não lhe dei uma chave para você atrapalhar meus afazeres – ouvi o som dele abrindo mais gavetas, tive que me segurar para impedi-lo, odeio quando bagunçam a minha casa. – Muito pelo contrário, lhe dei essa chave para você não me atrapalhar. Ele continuava abrindo minhas gavetas, e eu não resisti e tive que parar o que estava fazendo para impedi-lo. – Pare de bagunçar a minha casa, ou você arrumará tudo! – Pra quem é isso? – Henrique apontou para um livro embrulhado dentro da gaveta. – Isso o que? – Parei de fechar as gavetas para ver o que era. – Ah, sim. É pra Laura, deixe isso aí. Henrique se cansou da minha mania de arrumação, desceu as escadas e ficou na sala enquanto eu limpava poeiras da gaveta (que, de acordo com ele, eram imaginários). Desci um tempinho depois, após me certificar de que não tinha mais uma poeira sequer. Ele pegou algo para comer, o meu bolo, e ligou a televisão – no qual eu não assistia fazia um bom tempo. Não liguei para a televisão, mas não queria que ele pegasse o meu bolo. Não é nada delicado roubar o bolo dos outros, principalmente quando este bolo é o último pedaço existente na geladeira. – Acho que você deveria parar de se esconder e dar logo o seu endereço para Laura. Ela não é sua amiga? Com certeza não vai te entregar para os vizinhos ou qualquer pessoa que você irritou. – Não comece com essa conversa, eu já disse que não. Você não entende a magia das cartas. – Eu entendo que você é um antissocial – sua afirmação completamente errada não foi boa o suficiente para ferir a minha alma, mas me deixava irritado. – Eu não sou antissocial – disse. – E devolva o meu bolo. – Certo, vamos assumir que você não é antissocial. Nesse caso, você tem medo de dizer que gosta dela e sabe que vê-la pessoalmente só aumentaria seus sentimentos. – Você faz essa afirmação baseada em que provas? – Questionei. – Nunca vi você presentear ninguém e desde que você começou a falar com ela... podemos dizer que está diferente. – Sua teoria não tem fundamento algum. Dados afirmam que quanto mais se conhece uma pessoa, menos se gosta e, até o momento, não a quero aqui. – Eu discordo – Henrique retrucou. – Se você ama mesmo alguém, quanto mais se conhece, mais passa a amá-la. Veja só eu e Meg. – Pode dizer o que quiser, ainda acho que esse relacionamento de vocês é cheio de segundas intenções, como o fato dela ser cozinheira e você ser péssimo na cozinha, por exemplo. – Pois fique sabendo que eu a amo antes de amar sua comida. Nos últimos meses eu e Laura nos tornamos mais próximos através das cartas. Já sabia exatamente como ela era por causa de uma foto que recebi numa das cartas, mas não pude fazer o mesmo e enviar uma foto minha, simplesmente por não poder e não querer mesmo. Depois de um mês trocando cartas, ela me pediu meu endereço, para que pudesse me ver pessoalmente, mas eu ignorei esse pedido, fingindo não ter notado, e a partir daí ela passou a pedir todas as vezes, mas não podia deixar que ela viesse aqui. – Se você continuar roubando minha comida, vou te expulsar como expulsei minha irmã – disse, depois de um tempo. Patrícia cumpriu com o que tinha dito e ligou para nossos pais. Tive que ouvir uma hora de sermão de minha mãe sobre como eu tinha que ser mais sensível, tratar minha irmã melhor e ter compromisso com “o negócio da família”, mas claro que não registrei nada do que ela me disse. Meus pais não sabiam o que acontecia entre mim e Patrícia e eu não tinha interesse em contar porque não queria que as

Page 55: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

190

coisas mudassem; meu negócio da família era os livros que eu escrevia e que me sustentavam, não preciso do dinheiro deles. – Falando em Patrícia, ela ligou para mim de novo – Henrique disse, desligando a televisão. – Queria saber mais sobre a evolução do seu quadro e o que você andava fazendo. – E o que você disse? – Nada, disse que não sabia. – Ótimo. Não quero que ela fique se metendo em minha vida. O celular de Henrique tocou e não foi nenhuma surpresa quando soube que era Meg; aqueles dois quase que não desgrudavam ultimamente e Laura até vinha comentando sobre isso nas últimas cartas. Estava feliz por Henrique finalmente ter alguém e estar um pouco mais alegre, mas não nego que é chato ter que ouvir ele falar sobre ela por horas quando ele vem aqui. – Tenho que ir – Henrique falou, se levantando. – Amanhã passo aqui e te entrego a sua carta. – Espere! – Pedi quando ele já estava saindo. Peguei o livro na gaveta e lhe entreguei. – Dê a ela, por favor. Ele assentiu e se virou para ir embora, mas se interrompeu. – Tem tomado seu remédio? – Henrique perguntou. – Por que isso agora? – Questionei. – Só pra saber. De repente tive um pressentimento ruim – ele disse isso e foi embora.

Capítulo 17 – O plano

Henrique

Patrícia estava esperando por mim no portão do condomínio Belo Lar. Eu menti para Jimin, não era Meg que havia me ligado, mas sim Patrícia. Na verdade, vinha testando uma teoria há um tempo que se comprovava cada vez mais: se o assunto fosse Laura, Jimin perdia a capacidade de detectar minhas mentiras e eu, é claro, estava me aproveitando disso. Um tempo atrás, falei para ele que não escutaria mais o que ela dissesse, mas acho que já está na hora dele perdoá-la, e não é como se ela não estivesse disposta a se sacrificar pra isso. Todos os dias ela fala comigo pelo telefone e tenta fazer o possível para conseguir tempo para nossas “reuniões”, e, pelo menos até agora, essa era a única vez que conseguiu. Patrícia era uma pessoa realmente muito ocupada, dirigir os negócios da família exigia muito tempo e esforço. – Oi – Patrícia me cumprimentou. Andamos até uma lanchonete próxima – seria perigoso ficar dentro do condomínio. Ela pediu algumas coisas para não incomodar o vendedor e começamos a discutir o assunto em questão.– Você já pensou em algum plano? – Perguntei para ela. – Que não seja ficar ligando o tempo todo até ele aceitar conversar com você, claro.Patrícia riu, envergonhada. Era exatamente isso o que ela pretendia fazer, mas é um plano falho, não funcionará de jeito nenhum. – Nesse caso...posso lançar um produto em homenagem a ele.– É sério isso? Claro que não, primeiro porque ele não está nem aí pra empresa; segundo porque ele não está nem aí para homenagens – era uma ideia realmente ridícula. – Mas é claro que não é sério! – Ela disse rindo mais ainda por eu ter acreditado na veracidade de sua ideia estranha.Ficamos em silencio, pensando em novas possibilidades, mas nenhuma surgia

Page 56: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

191

em nossas cabeças. Jimin não aceitaria um pedido de desculpas tão facilmente, principalmente de alguém que ele guarda rancor há tanto tempo.E então uma ideia brilhante surgiu em minha mente. Talvez não tão brilhante, porque isso tinha tanta chance de piorar a situação quanto de melhorar; na verdade, creio que tinha mais chance de piorar.– Hm...tem uma garota que ela anda trocando cartas... – analisei novamente o plano. – Faz uns meses já. Acho que ele gosta dela, mas não quer admitir. E se nós dois tentássemos juntá-los? Seria um favor para ele, e ele teria que agradecer a você por isso.– Ou poderia me jogar de um prédio por ter me intrometido na vida dele – realçou. – É, também, mas não podemos jogar qualquer ideia fora.Patrícia deu de ombros. Uma garçonete chegou com o pedido dela e ela começou a comer.– E ele já conhece ela pessoalmente? – Patrícia não conhecia totalmente as manias do irmão, mas sabia pelo menos um pouco para estar ciente da sua mania por cartas. – Conhecendo meu irmão, aposto que ele nunca a viu pessoalmente, e que é mais um de seus projetos de “levar o amor pelas cartas para outras pessoas” ou “resolvendo os problemas alheios”. Às vezes acho isso engraçado, mas na maioria é somente estranho.– Isso porque não é você que entrega as cartas e tem que enfrentar vizinhos curiosos ou irritados – disse enquanto ria com a indignação dela, tínhamos algo em comum. – E não, não conhece. Ela nem sequer é vizinha dele, faz parte de seu mais novo projeto no qual eu não lembro o nome.Patrícia pensou, analisando o plano criado por mim. Provavelmente estava pensando em todos os prós e contras existentes, como uma pessoa administradora fissurada por resultados faria (e este perfil combina perfeitamente com a mesma).– É uma boa ideia. Quer dizer, a melhor que temos. Pelo menos não é tão ruim quanto infernizar a vida dele com ligações.Ela pegou uma pequena agenda e começou a anotar tudo detalhadamente.– E como faremos isso? Escrevendo as cartas no lugar deles, fingindo sermos eles?– Seria uma possibilidade, mas como vamos imitar suas letras? Os dois iam rapidamente entender que tais letras não pertenciam a eles.Anotou mais uma vez o que eu dizia na agenda.– Então como pretende prosseguir?– Isso está parecendo uma entrevista de emprego – ela abaixou a agenda, se desculpando. – Enfim, não sei como prosseguir. Acho que você deveria conhecer Laura primeiro, mas não diga que é a irmã dele. Vou dizer pra ela que você é uma prima minha.Patrícia levantou e pagou a conta, pegou a sua bolsa e esperou que eu levantasse.– Vamos hoje? – Perguntou.– Ainda está cedo e eu não tenho trabalho, então pode ser. Ela deve estar no restaurante de Meg agora. – Patrícia franziu o cenho ao ouvir o nome Meg. – Meg, a minha namorada e melhor amiga da Laura.Levantei e a segui até o carro. Eu realmente espero que esse plano dê certo, tudo em nome da paz mundial.

Page 57: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

192

Capítulo 18 – Como ter uma amiga chata

Laura

– Assume, Laura – Meg disse, de repente. – Assumir o quê? – Perguntei, sem entender, tentando me concentrar na carta que estava escrevendo para Jimin enquanto conversava com ela. – Que você gosta do Jimin – parei de escrever quando ela disse aquilo para encará-la. – Não me olhe assim. – Somos amigos – disse, voltando a escrever. – Não, é mais do que isso. Decidi ignorar Meg e continuar escrevendo. Era verdade que eu e Jimin tínhamos nos tornado mais íntimos nos últimos tempos e eu gostava dele, mas éramos apenas amigos. Como poderia me apaixonar por alguém que nem conheço? Mesmo que fosse algo como namoro virtual, a essa altura eu já tinha que ter conhecido ele, mas Jimin se recusava a isso. Uma vez perguntei a Henrique se Jimin se achava feio ou algo assim, porque mesmo uma foto dele, ele tinha se recusado a mandar. O curioso disso é que Henrique afirmou que, na verdade, é bem o contrário e Jimin é bastante narcisista às vezes. – Tenho pelo menos três motivos que comprovam essa teoria – Meg disse. – Isso é algum tipo de plano seu e do Henrique? – Fechei a carta e coloquei no envelope. – Querem que eu e Jimin nos tornemos um casal para sairmos em um encontro de casais? – Sua negação apenas comprova a teoria – Meg provocou. – Além do fato de que, no início, você não ficava com essa carinha boba e esse sorriso quando estava escrevendo a carta. Isso acontece comigo e Henrique, com a diferença de que são mensagens de texto. – Sim, é um plano. Jimin comentou na última carta que Henrique vem insinuando o mesmo. – Isso porque Rique também notou, apesar de ser lerdo para essas coisas. Lembra como ele demorou um mês pra perceber que eu estava a fim dele? Se eu ficasse esperando que ele me chamasse para sair, nunca iria acontecer. Senti um cheiro de algo queimando e ri da cara assustada de Meg quando ela se levantou correndo para ir desligar o forno. Por um lado, ela finalmente iria me deixar em paz com aquilo sobre eu gostar do Jimin; e por outro, teria que esperar mais tempo por minha comida. Isso sempre acontecia quando Meg estava criando um novo prato e fazia enquanto conversava comigo, o que é preocupante, pois é bem capaz dela colocar fogo no restaurante inteiro qualquer dia desses. Ouvi o som da porta se abrindo e falei alto, sem olhar para quem chegava, que o restaurante estava fechado. – Até pra mim? – Reconheci a voz de Henrique e levantei para lhe dar um abraço. – Sempre aberto pra você, cunhadinho – desde que Meg e Henrique começaram a namorar, passei a chama-lo de cunhado, afinal, Meg é minha irmã de outra mãe (e de outro pai). Meg veio correndo da cozinha e se atirou nos braços de Henrique, e só naquele momento de constrangimento que eles sempre me faziam passar que notei a presença de uma mulher acanhada atrás deles. Tinha os cabelos loiros e curtinhos num estilo chanel moderno, mas isso não afetava em nada a sua postura séria e autoritária, como se fosse a chefe em seu trabalho. Quando Meg e Henrique acabaram com o seu enjoo, ele chamou a mulher e nos apresentou: – Laura, Meg, essa é a minha amiga, Patrícia. Toda aquela conversa padrão de quando você conhece alguém aconteceu

Page 58: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

193

até que Meg preparasse algo rapidinho e servisse para nós. A partir daí, o assunto foi basicamente comida e todos as vezes que Meg, embora fosse uma cozinheira graduada numa das maiores escolas de culinária de Paris, sempre acabava queimando alguma coisa. Terminamos de comer e Henrique e Patrícia foram embora, deixando Meg e eu sozinha mais uma vez. – Meio estranha, essa Patrícia – comentei, enquanto Meg fechava a porta do restaurante. – Você achou? Ela é um pouco formal demais, mas... – Não é isso – interrompi, seguindo para meu carro com Meg. – Não sei, ela parecia estar registrando cada palavra minha. – Tem certeza que não foi impressão sua? – Não, é mais que isso. – Já pensou que ela também pode ter notado que você está toda apaixonadinha por Jimin? – Meg me provocou e eu lhe dei um tapinha no braço antes de entrar no carro. Relatório do dia: convencer a Meg de que eu e Jimin somos apenas amigos , embora ele seja alguém que eu bem poderia namorar se, bem, eu não fosse tão ocupada e ele quisesse.

Capítulo 19 – Desde quando essas crianças ficaram tão espertas?

Jimin

Certa vez, eu disse que adorava as manhãs de segunda, mas eu menti; quer dizer, eu não menti, mas hoje é uma manhã de segunda feira e eu estou completamente entediado. Depois de ceder a televisão e assistir a um filme, meu tédio não passou e eu continuo aqui, sentado no sofá, olhando para as paredes. Não havia confusão entre os vizinhos, não havia ideias para livros e muitos menos alguém para conversar. Até mesmo Mickey estava na cozinha, me ignorando e, muito provavelmente, dormindo. Abri a cortina e olhei o “mundo” externo através da janela. Mesmo daqui, conseguia ver os enormes prédios no horizonte, o sol brilhando e o azul intenso do céu. O barulho dos carros buzinando eram altos, o mesmo barulho de todas as segundas em que as pessoas se apressavam desesperadamente para ir à escola ou ao trabalho e dificultavam o trânsito. O condomínio, nesse momento, estava pouco movimentado, afinal, era manhã e era segunda, somente umas poucas crianças brincavam de futebol, enquanto riam e gritavam a todo momento. Todos os dias tento me lembrar da última vez em que pude ser alguém normal como essas crianças, mas me recordava somente de pequenos momentos; tais momentos que eu sentia falta. Lembro-me de quando, enquanto brincava, chutava a bola tão alto que ela caía no muro do vizinho, e eu saía correndo, com medo da reação dele. Gostaria de fazer isso agora e chutar uma bola na casa da minha vizinha (vulgo Regina).Continuei parado na janela, observando por um longo tempo, controlando meus impulsos de abri-la. No momento seguinte, um objeto voou para o meu rosto e recuei imediatamente, mesmo sabendo que um vidro impediria que o objeto em questão me acertasse. Na verdade, recuei covardemente. O objeto misterioso caiu no chão assim que colidiu com o vidro da janela; era uma bola. Quando chequei a janela, percebi que a bola fez uma pequena rachadura no vidro (e que uma criança seria esganada hoje mesmo, aquele vidro era caro, difícil de conseguir e a fila de espera por ele era de quase seis meses para ser acertado por uma bola de um jogador de futebol muito inexperiente). Tentei encontrar o culpado, mas ninguém estava lá fora. Eu realmente não sei como

Page 59: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

194

não vi alguém chutando em direção a janela bem diante dos meus olhos, acho que estava imerso demais em meus pensamentos. Olhei mais atentamente e encontrei a ponta de um pé aparecendo por trás de uma árvore com o tronco grande. Péssimo esconderijo, agora você, jogador inexperiente, está correndo perigo de perder uma bola novinha. – Ei, garoto – chamei. – Eu estou vendo o seu pé, não adianta se esconder. A criança saiu de trás da árvore e andou devagar para perto da bola, com os braços colados no tronco e a cabeça abaixada. Essa era a forma de um controlador fingir estar se sentindo profundamente culpado e fazer com que a vítima tenha pena e deixe de lado a sua punição para lhe dar doces, consigo entender os planos diabólicos por trás de atitudes de crianças. O menino pegou a bola, colocou entre os braços e veio até mim se desculpar. – Desculpa, moço – disse, falando baixinho para que eu pensasse que ele estava chorando. – Foi sem querer – Você arranhou minha janela, esse vidro é caro! – Falei de uma forma grossa para assustá-lo. Funcionou, porque na hora ele fingiu estar se sentindo mais culpado ainda. Quanto mais eles fingem, com mais medo eles estão. – Eu não sabia que alguém morava nessa casa. Ninguém sabia que alguém morava nessa casa, exceto na hora de enviar contas de “vaquinhas” para implantar novos jardins na praça. – Pois mora, e esse alguém está muito bravo. – Se você quiser, posso te dar doces como pedido de desculpas – ofereceu o garoto. Fiquei comovido, ninguém nunca me ofereceu doces antes. Mas até parece que uma bala vai pagar pelo vidro quebrado. O menino tirou balas de seu bolso e estendeu a mão para a janela. O deixei lá e peguei um monte de envelopes na estante da televisão. Abri um dos envelopes e mostrei o que estava dentro para a criança. – Sabe o que é isso? – Mostrei um dos recibos. – Uma conta do parquinho que você brinca. Abri mais outro envelope. – E isso é uma conta da piscina em que você também brinca – apontei para a rachadura na janela e mostrei um papel em branco. – E esse último aqui é a futuro conta que eu terei que pagar pelo vidro da janela que você destruiu enquanto brincava. Você acha que balas valem o meu prejuízo? – Bem... – o garoto falava inocentemente e parecia estar, de certa forma, se divertindo agora. Ele achava o meu sofrimento muito engraçado, tudo porque não sabia que vender livros é mais difícil do que se pode imaginar. – Balas são doces, contas não. Por que não escolher o doce ao invés do amargo? Aquela resposta tocou no fundo do meu coração amargurado (e não estou sendo sarcástico). Lembro-me de todas as vezes que eu preferi reclamar ou negar fatos ao invés de aceitar as coisas boas ao meu redor...as pessoas boas ao meu redor... Abri um pouquinho a janela. – Quer saber? – Declarei. – Você tem razão, me dá essa bala. – Escolha uma – o garoto colocou as balas em cima do parapeito da janela para que eu pudesse escolher. Peguei a de laranja e fechei novamente a janela. O menino pegou o resto das balas e colocou no bolso. Jogou a bola no chão e começou a chutar com cuidado para evitar quebrar mais janelas (ou mais ainda a minha janela). Ele ficou lá durante um bom tempo brincando sozinho e eu continuei na janela olhando. A tarde já estava próxima de chegar, devia ser umas onze horas.– Por que está brincando sozinho? – Perguntei para o garoto. – Hã? Meus amigos foram todos sair com os pais, e eu não quero ficar fazendo dever de casa então vim brincar sozinho.Ele continuou jogando a bola de uma árvore para a outra.

Page 60: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

195

– E você, por que tá aí, sozinho? – Falou, tentando puxar assunto comigo.– Oras, hoje é segunda, todo mundo trabalha nas ruas. Eu fico em casa porque trabalho em casa.A criança olhou para mim inquisitivamente.– Não, digo quase todos os dias. Você nunca sai de casa e ninguém nunca entra aí, por isso eu pensei que ninguém morava nessa casa.Tudo bem, agora uma criança muito esperta está se voluntariando para cuidar da minha vida e eu ficava sem boas respostas todas as vezes em que ele falava. Se vou perder uma discussão com uma criança, como é que vou conseguir enrolar Henrique, que anda aprendendo a me questionar com Laura?– Você está errado...bem, eu realmente nunca saio de casa, mas muitas vezes alguém entra aqui.O garoto parou de jogar bola e resolveu prestar mais atenção na nossa conversa. Ele estava com aquele olhar travesso de alguém que estava prestes a puxar o seu cabelo.– Ah, é mesmo? Quem? – O menino me questionava a cada comentário.– O carteiro vesgo – ele riu, como se a minha resposta fosse patética. – Mas não só para entregar cartas, ele é meu amigo, caso queira saber.– Então é você que envia as cartas para os vizinhos, as cartas que deixam eles irritados? – Como é que ele adivinhou? Provas como “você é um amigo do carteiro, então você envia as cartas” não são boas o suficiente.– E com base em que argumento você afirma isso?– Só alguém estranho e que não sai de casa como você ficaria observando a vida dos outros o tempo todo. – ele pegou a bola e chutou novamente na minha janela, olhei ameaçadoramente para ele. – E você só tem um amigo, até eu tenho mais amigos que você.Depois disso, senti uma imensa vontade de prendê-lo e, talvez, de apagar as suas memórias para que ele não espalhasse pelo condomínio que eu enviava as cartas; tudo o que eu não queria era pessoas enraivadas procurando por mim.– Tudo bem, eu admito. Mas não conte para ninguém que eu envio as cartas. Você não quer pagar a conta da minha casa destruída, certo? Custaria umas mil balas – o menino negou com a cabeça, com medo de ter que comprar mil balas e dar todas elas para mim. – E de que importa se eu só tenho um amigo? Um único amigo verdadeiro é bem melhor que dez amigos falsos! – É verdade, mas a diferença entre nós dois é que eu tenho dez amigos falsos por falta de opção, já você tem um amigo verdadeiro porque se esconde das pessoas. Okay, eu não quero mais falar com aquele menino. Ele estava ferindo profundamente o meu ego, nunca pensei que isso aconteceria. – Aposto que tem mais alguém que você gosta – continuou. – Mas que você está se escondendo dessa pessoa. Fechei as cortinas, irritado. Por que essa história está me perseguindo? Parecia, ultimamente, que ninguém mais tinha um outro assunto que não fosse a minha suporta queda por Laura. Será que ninguém não percebia que eu não gostava dela? Quer dizer, gosto sim, mas não desse jeito que as pessoas acham que eu gosto, até porque eu nunca a vi pessoalmente; não que eu não quisesse, mas é que ela não sabia sobre os meus problemas de saúde. Não que isso fosse um real impedimento, mas... talvez eu só não esteja preparado para vê-la agora. – Não quero mais falar com você, vá brincar em outro lugar – gritei bem alto para que ele pudesse ouvir e voltei para o meu sofá, pronto para contemplar mais uma vez a minha entediante parede. A manhã de segunda estava indo embora, mas não me sentia animado com a tarde que estava por vir. Mais ou menos no meio-dia ouvi a voz de uma mulher chamando alguém, os barulhos da bola se batendo contra a parede da minha casa e as árvores do condomínio sumiram. Abri a cortina para conferir se o garoto ainda estava lá; e não, não estava,

Page 61: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

196

mas ele deixou uma lembrança para mim, uma bala de chocolate com um bilhete escrito “Por que escolher a laranja azeda se você pode optar pelo chocolate doce?”

Capítulo 20 - Um plano levemente infalível

Henrique

Eu estava novamente naquela lanchonete com Patrícia, daqui a pouco viraríamos clientes vips, mas não podemos fazer nada se aquele é um dos poucos locais decentes para uma reunião. Além do mais, eu estava em horário de almoço, tinha que comer alguma coisa. – Agora que você já conheceu Laura – falei, enquanto olhava o cardápio – já tem algum plano? Patrícia pegou novamente a sua agenda e abriu na última página escrita. Sua letra era indecifrável, quase como uma letra de médico, e imagino que estava tudo uma bagunça também. – Bem, ela é uma jornalista. Às três horas, provavelmente, ainda estará no escritório – ela parou para conferir as anotações. – Ela também é muito curiosa, então podemos ligar através de outro número para o chefe do escritório, dizendo que temos uma notícia e queríamos compartilhar com aquele jornal. E, então, falaremos onde será o encontro; no caso, vai ser nesse condomínio. Patrícia ficou esperando por uma resposta minha, eu só fiz um gesto de mão mandando-a prosseguir. – Como eu disse, ela é curiosa, então vai querer ser a pessoa responsável a ir nesse encontro. Mas não só diremos o nome do condomínio, como também o número da casa, que é a casa do D...Jimin. Ele obviamente vai estar em casa, de resto deixamos que o tempo faça seu trabalho. Fiquei impressionada com o plano de Patrícia, parece que Jimin não é o único inteligente da família. Acho que poderia dar certo, a não ser que ele fingisse não estar em casa, e isso ele sabia fazer muito bem, afinal, os vizinhos nem sequer sabiam que alguém morava naquela casa. Bati palmas para ela. – Muito bem. Ótimo plano – ela sorriu, feliz por ter dado uma boa sugestão. – Mas vamos fazer isso amanhã, hoje está muito tarde. Chamei pela garçonete e continuei conversando com Patrícia enquanto esperava pelo pedido. Amanhã seria um dia de glória.

Capítulo 21 – Fui tapeada

Laura

– Mas que cara é essa? – Perguntei para Manuel. Eu estava no escritório, na minha mesa, e Manuel conversava comigo quando recebeu uma ligação que o deixou com um brilho nos olhos. – Essa é a primeira ligação misteriosa que eu recebi em toda a minha vida – ele guardou o celular, pegou um papel e começou a escrever algo. – Eis o que alguém me falou: “venha para o condomínio Belo Lar, casa número 85. Tenho algo para contar e gostaria que seu jornal publicasse. Aseguro-lhes que é de extrema importância”. Muito estranho, parece coisa de filme. Fiquei mais curiosa do que deveria, a ligação nem era pra mim, mas gostaria de poder resolver esse mistério.

Page 62: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

197

– E você vai? – Eu? Não. Pode ser um trote ou algo pior, não é seguro ir. – Nesse caso, eu vou – respondi. Manuel ficou atônito. Eu entendo que, em uma situação como essa, deve-se pensar nas consequências e armadilhas possíveis, mas o que eu posso fazer se a minha curiosidade não se relaciona com a minha segurança? Levantei e peguei as minhas coisas. Tirei uma folha de papel de uma prancheta e peguei uma caneta. – Qual o endereço mesmo? – Perguntei, pronta para anotar. Manuel olhou para mim como se quisesse dizer “Sério que você vai fazer isso?”. Esperei pacientemente pela sua resposta, tentando convencê-lo com o meu olhar de cachorro que se perdeu na mudança. – Você não vai mesmo, não se deve confiar em ligações como essas! – Não seja tão pessimista, Manuel – entreguei o papel e a caneta para ele. – Eu chegarei com uma notícia de ouro. Meu chefe esperou que eu desistisse dessa ideia maluca, mas acabou cedendo. Pegou o papel e a caneta e escreveu o endereço. – Você é mesmo muito teimosa – ele entregou o papel para mim e eu saí na hora, pronta para descobrir a tal notícia de ouro que deixaria todos os leitores estupefatos. O local ficava um pouco próximo da minha casa, não demorei muito para chegar lá. O condomínio Belo Lar era bastante agradável, tinha muitas árvores e casas bem feitas. E ele era enorme, não consigo imaginar quantas casas cabiam naquele lugar. Logo que vi o tamanho do condomínio, fiquei um pouco desanimada por ter que procurar, entre tudo aquilo, uma única casa. Casa 85... Não sei por quantos minutos caminhei até achar a casa, era como um labirinto. A casa número 85 era de tamanho médio, não tinha nada de especial. Percebi que o vidro de uma das janelas estava rachado, mas, fora isso, a casa encontrava-se em ótimo estado. Me aproximei da porta e toquei a campainha, ninguém respondeu. Toquei novamente e a resposta foi a mesma. Pelo visto, era um trote. Fiquei irritada com o tempo que me fizeram perder. Se eu tivesse escutado Manuel, não teria que vir até aqui por nada. Andei novamente pelo labirinto de casas para sair do condomínio e voltar para a minha casa, não voltaria para o trabalho pois já estava perto do horário de sair mesmo. Parei para procurar as chaves do carro na bolsa e fui interrompida por uma mulher. Ela tinha cabelos pretos e usava terninhos; era a segunda pessoa com um estilo “executivo” que eu conhecia nessa semana. – Olá – a mulher se apresentou para mim. Seria ela a pessoa da ligação? – Sou Regina. Nunca te vi por aqui, por acaso está interessada em morar no condomínio. Fiquei mais frustrada ainda. Depois dessa pergunta, era certo que essa mulher, Regina, não foi quem ligou – a não ser que seja ela sim, mas ela queria fazer uma brincadeira comigo. Sinceramente, prefiro o trote. – Ah, não. Eu só vim visitar alguém, mas ele não está. – Quem você veio visitar? – O morador da casa 85. Regina ficou em silencio, tentando lembrar de alguma coisa. Ela parecia ainda mais estranha que a Patrícia, tinha um olhar meio rígido e um tanto assustador; eu nunca iria querer procurar confusão com aquela mulher, com certeza. Ela me lembrava uma das vizinhas de Jimin, a que tinha um filho delinquente e que foi para o exército posteriormente. Já estava tão familiarizada com os vizinhos dele que era quase como se eu morasse no mesmo lugar, embora nem soubesse onde ele é. – A casa 85, lembrei...aquela casa parece estar sempre vazia. Na verdade, nunca vi ninguém sair de lá, mas lembro que alguém compareceu a uma reunião em nome

Page 63: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

198

dele um dia. Se quer ouvir a minha opinião, todas as pessoas do condomínio deveriam ser tão silenciosas quanto o morador daquela casa. Aquelas palavras eram familiares para mim, mas eu não conseguia lembrar o porquê. Agradeci a Regina e voltei para o meu carro. Ainda estava irritada com o trote sem graça. Assim que sai do carro, parei na porta do prédio e liguei para Manuel, avisando que era um trote e que eu já estava em casa. Mas que perda de tempo! Relatório do dia: fui tapeada! Lembre-se, sempre escute o seu chefe. Também lembre-se que terninhos fazem parte da nova tendência da moda. Por último...eu lembro de algo, só não sei o que é (isso foi um pouco confuso).

Capítulo 22 – Por que faz tantas perguntas?

Jimin

Hoje não era uma segunda de tédio, era uma terça de tédio. Depois que o filho delinquente da Regina foi embora, a vizinhança estava muito tranquila e Henrique já tinha voltado para o trabalho. Não tinha nem mesmo um filme interessante para ver, o tédio estava me consumindo novamente. Estava com medo de começar a olhar para as paredes. Queria que Laura estivesse aqui, pelo menos ela me daria atenção e nós conversaríamos sobre livros da Agatha Christie e as antigas fofocas do meu vizinho. A verdade é que ela me entendia como todos os outros não. Laura era uma apaixonada por mistérios como eu e ia até o fim naquilo que acreditava; éramos muito parecidos nesse sentido, mas já me peguei imaginando nós dois juntos e seria algo catastrófico. Por quê? Primeiramente porque Laura é uma especialista em bagunça e eu simplesmente detestava bagunça, como já havia mencionado. Segundamente porque...bem, não existe segundamente (essa palavra nem existe, na verdade). Algo bateu na minha janela. Eu abri a cortina para ver o que foi, e era uma bola novamente. E adivinha quem estava atrás da árvore, com as pontas dos pés à mostra? Isso mesmo, o pestinha. Agora ele me perseguiria todos os dias? E jogaria a maldita bola na minha janela? – Mas você vai mesmo bater na minha janela todos os dias? Ele colocou as mãos nos bolsos e estendeu, mostrando mais um monte de balas. Como a mãe daquele garoto permitia que ele comprasse esse tanto de doces todos os dias? Quando eu era criança, minha mãe só me deixava comer um chocolate por semana e eu, é claro, detestava isso, mas hoje a agradeço por ter os dentes perfeitos. Porém não vou reclamar, peguei uma, dessa vez de chocolate, e ele sorriu ao ver a minha escolha. – Você não quer brincar comigo? – Ele me convidou. – Cadê os seus amigos? Ele pegou um caderno cheio de contas e mostrou para mim. – Eu já terminei meu dever, estou entediado – confessou. – Sai daí, vem brincar comigo. O que eu deveria falar? Simplesmente não posso sair, mesmo que o dia estivesse nublado., ainda poderia acabar me machucando muito. Mas o garoto estava realmente implorando, e nós dois estávamos entediados. O que custa sair por um tempinho? Talvez surja umas poucas erupções, mas... Fiz um sinal mandando ele esperar e subi as escadas até o meu quarto. Me vesti com roupas que cobriam quase que totalmente o meu corpo (incluindo luvas) e sai. – Mas que roupa é essa? – questionou o garoto. – Você está com frio?

Page 64: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

199

– Não, é só o meu...estilo. Não me questione senão eu não brinco mais. O garoto (cujo nome eu ainda não sabia) jogou a bola para mim; quer dizer, para o meu rosto. – A janela não pôde te salvar dessa vez – o menino diabólico ria da minha situação. – Mas eu não posso fazer nada se você é tão ruim jogando. Não aceitei o insulto e jurei para mim mesmo que venceria aquela partida, custe o que custar. Criei uns gols improvisados e começamos a jogar. Eu estava muito fora de forma, porque após cinco minutos me sentia tão cansado quanto uma pessoa que correu em uma maratona se sentiria. Além disso, minha pele também ardia um pouco, mas eu tentava ignorar o incômodo. Durante a partida, a bola resolveu acertar a minha janela uma...duas...três vezes ou mais. Só que, em nenhuma delas, fui eu que chutei. É tudo culpa do menino diabólico sem nome. No fim, eu perdi a partida. Se não tivesse deixado de jogar há anos, não teria perdido para uma criança que achava que a janela alheia era o gol. Entrei em casa e convidei o garoto para beber um pouco de água. Ele não hesitou, estava curioso demais para saber como era lá dentro. Na verdade, ela não tinha nada de interessante aos olhos dos outros, não sei o que tanto chamaria a atenção de uma criança. Logo que entrou, ele direcionou os olhos para a estante de livros e ficou boquiaberto. Se aproximou um pouco mais da estante e eu torcia para que ele não fizesse bagunça. Sorte que ele só ficou olhando mesmo. – Uau, quantos livros! – O menino parecia estar realmente admirado. – Você gosta de mistérios? Eu também gosto. Enquanto ele tagarelava, fui na cozinha pegar água. Tirei as luvas por um momento e vi que, nas minhas mãos, já tinham manchas vermelhas. Coloquei as luvas de novo, não queria que ninguém visse isso. O garoto já não estava olhando para os livros. Por um milagre, Mickey resolveu sair da cozinha e ficar um pouco na sala, mas se arrependeu no mesmo momento pois uma certa pessoa resolveu persegui-lo. – Não me responsabilizo caso ele te arranhe. Entreguei a água para ele, e ele bebia enquanto tentava pegar o gato (missão que eu considero impossível, Mickey pode ser gordo, mas quando se trata de seus interesses, eles poderia correr mais rápido que um guepardo). – Quem é essa? – O garoto perguntou, apontando para uma foto em cima da mesa de centro, a foto de Laura. – Sua namorada? – Não – respondi. – É apenas uma amiga. – Sério? Então me apresenta sua amiga; ela é muito bonita. – Não acha que é um pouco novo demais para ela? – Perguntei, o encarando.] – Eu seria bobo se perdesse essa oportunidade só porque ainda tenho dez anos – o menino se calou por um momento e ficou olhando a foto. – Por que você não namora ela? Por que crianças têm a mania insuportável de serem inconvenientes e fazerem perguntas inconvenientes? – Não vai responder? – Ele insistiu. – Só pode ser porque você gosta dela. – Não gosto, não – afirmei. – Gosta sim, senão não ficaria todo vermelho quando disse isso. Me sentei, deixando isso de lado, arfando de tão cansado que estava. Não era fácil correr e manter o fôlego enquanto se estava vestindo roupas grossas que cobriam todo o seu corpo. A bala que ele havia me dado ontem ainda estava em cima da mesa. A peguei e levantei, tendo uma ideia do que fazer. – Sabe – falei para o garoto – eu sei de um lugar onde vende doces japoneses. Você já experimentou algum?

Page 65: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

200

O menino negou com a cabeça. – Ótimo, vou te levar até lá – ia pegar a minha carteira, quando lembrei de um detalhe. – Sua mãe não está em casa, não é? – Não, ela volta um pouco mais tarde hoje – a criança parou de perseguir o gato e abriu a porta. – Eu sei, “vamos e voltamos antes que sua mãe chegue”. Não andamos muito até o tal lugar. Era, mais ou menos, a umas duas quadras da minha casa. Mais especificamente, bem ao lado do prédio de Laura. Ela tinha me falado desse lugar uma vez antes. Quando chegamos lá, comprei algumas para dividirmos. Nos sentamos em um banco de uma praça bem próximo do prédio e ficamos aproveitando os doces por um tempo. Uma mulher, com um cabelo ruivo muito parecido com o de Laura andava em direção ao prédio. Ela parecia estar irritada, com um andar pesado, mas ao mesmo tempo parecia estar frustrada. Quando pude ver seu rosto direito, confirmei que aquela era Laura. Ela falava no telefone com alguma pessoa e parou bem na frente do prédio. Pessoalmente, era mais bonita do que por fotos. Mas o que estava fazendo voltando para casa nessa hora? Era muito cedo. Fiquei olhando enquanto ela ainda conversava pelo telefone. O garoto estava concentrando jogar migalhas de um bolo que não gostou para o pombo. – Não é aquela moça bonita da foto? – Ele falou, puxando minha manga quando acabou com as migalhas de bolo e ele a viu. – Não vai falar com ela? – Não. Ela parece ocupada – respondi, sem tirar os olhos dela. – Bobagem! Ei moça! – Ele gritou e antes que continuasse a isso, tapei sua boca com as mãos, enquanto ele se debatia. O soltei quando ela entrou no prédio. – Por que você não me deixou chamá-la? – Porque... porque não é da sua conta – falei, irritado. – Você é muito grosso! – O garoto disse isso e saiu andando em direção ao condomínio, eu correndo atrás dele.

Capítulo 23 – Ele está completamente incontrolável

Henrique

Toquei a campainha da casa do Jimin. Assim que entrei no condomínio, Regina me parou falando que alguém havia estado aqui ontem querendo falar com a pessoa no qual eu representei naquela reunião. Com as palavras de Regina e as de Meg, que me contou sobre Laura dizer terem passado um trote e a feito perder tempo que nem idiota, concluo que meu amigo foi um covarde e fugiu, como sempre.Ele demorou para abrir a porta e apareceu com a típica roupa completamente coberta que sempre usava quando tinha que o fazer. Entrei porque estava muito cansado; era isso que acontecia quando se falava com Regina, ela sugava o fundo da sua alma.– Eu te dei uma chave para não ter que abrir a porta, sabia? – Disse, enquanto pegava o espanador para limpar a poeira inexistente da estante. Eu o ignorei, ele me dava uma chave, mas reclamava quando entrava enquanto ele vigiava os vizinhos. Como poderia saber quando ele está cuidando da vida dos outros? – Você entregou o livro? – Perguntou Jimin, enquanto limpava mais uma vez a sua estante já limpa. Ou ele amava limpeza, ou era um maluco por limpeza. – Entreguei – Jimin não retirou a roupa que vestira para abrir a porta, o que era estranho, já que ele imediatamente a tirava quando voltava as suas tarefas de casa. Tenho que perguntar indiretamente sobre ontem de tarde, pois gostaria de ouvir ele inventando desculpas dizendo que não ouviu nada (ou fingindo que estava dormindo).

Page 66: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

201

– Ei, eu vim ontem aqui de tarde, mas você não me atendeu, por quê? – Que horas você veio? – Mais ou menos às três horas. Ele continuou a sua limpeza sem me responder, creio que tentava lembrar o que estava fazendo ontem à tarde para não “me atender”. Sua reação seguinte só comprovou a minha teoria de que ele simplesmente ignorou Laura; Jimin podia ser razoavelmente bom com mentiras, mas quando era algo grande, ele não escondia muito bem e ficava com uma expressão um tanto nervosa no rosto. – Três horas? Eu estava dormindo – justificou. Sim, é uma mentira...pelo menos eu acho que é, depois de todos os meses de treinamento com...bem, ele mesmo. Poderia o pupilo aprender com seu mestre? Não tentei confrontá-lo, caso contrário, eu acabaria revelando o meu plano e de Patrícia. Fiquei sentado descansando por um tempo; ainda era a minha hora de almoço e eu aproveitei para almoçar na casa dele. Fui na cozinha preparar alguma coisa. Sinceramente, odeio quando isso acontece. Isso o quê? Cozinhar algo e um certo alguém pegar um pedaço sem a sua permissão, ele sempre fazia isso e eu me vingava tocando nos móveis dele, deixando-os fora do lugar – não tem mais nada que ele odeie mais que isso. Exceto, talvez, marcas de dedo no espelho. Jimin estendeu a mão para “me roubar” e eu o impediria, até que vi uma mancha vermelha na mão dele que antes estava escondida na manga da blusa. Segurei o braço dele. – O que é isso? Como você conseguiu essa brotoeja? – Ele soltou o seu braço da minha mão bruscamente e escondeu a mancha novamente com a manga da blusa. – Eu fui abri a porta para pegar uma encomenda e esqueci de colocar a luva. Por que você está fazendo tantas perguntas hoje? – Jimin tentou pegar novamente o que eu preparei, e dessa vez com sucesso. – E não mexa nos quadros! Ele virou para consertar os quadros e eu vi novamente: mais manchas vermelhas, dessa vez no seu pescoço. O pequeno momento em que ele abre a porta não faria isso, eu sabia exatamente o que ele fez. Fui até ele e levantei a manga da sua camisa, tinha tantas manchas que pessoas poderiam confundir com catapora. – Jimin, você saiu? Você não pode sair! – Ele fugiu de mim mais uma vez. – O que deu em você? Por que fez isso? – Não é da sua conta. Olhei para ele, irritado. De repente, uma ideia veio na minha cabeça. – Você não estava dormindo às três horas, certo? Você nem sequer estava em casa! Jimin não respondeu as minhas perguntas, só continuou a sua arrumação compulsiva, evitando olhar para mim. – Aonde você foi? – Tentei obter uma resposta mais uma vez, e, assim como as outras, não teve sucesso. Desisti de conversar com ele, levantei para ir embora. – Não vou tentar discutir com você. Passar bem! – Falei, irritado. Saí da casa dele e voltei para o meu trabalho, ainda tentando entender por que ele fez isso e aonde ele foi. Eu com certeza contaria aquilo para Patrícia, se Jimin não pretende se cuidar, então que essa tarefa fique para outra pessoa. Seria esse o pressentimento ruim que tive?

Page 67: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

202

Capítulo 24 – Eu amo o mundo exterior

Jimin

Henrique saiu daqui uma fera, mas eu não estava afim de acalmá-lo. Não tenho justificativas, eu realmente saí, mas não para tentar me matar, e sim para tentar viver. Será que toda aquela história de psicólogo começaria novamente? Só falta meus pais ligarem para mim, com aquelas velhas palavras: “querido, precisamos conversar”. Acho que eu deveria desligar o celular. Ontem, quando o garoto fugiu, não consegui alcança-lo. O vi voltando para a casa, enquanto doces caíam de seu bolso. Estive a manhã inteira esperando ele jogar a bola na minha janela; e ainda estava esperando, mas até agora nada. O que eu posso fazer? Era ele quem estava fazendo perguntas idiotas e se metendo no que não devia. Hoje era mais um dia de tédio, nada de interessante acontecia, e eu ainda tinha que ficar convivendo com a certeza de que uma certa pessoa apareceria uma hora ou outra. Voltei a olhar o mundo pela janela, assim como fiz no dia que conheci aquela criança. As palavras dele ainda prevaleciam na minha cabeça. Não as palavras “você é muito grosso”, mas sim “Por que não escolher o doce ao invés do amargo?”, nunca fiquei tão sem reação com algo que alguém havia dito antes. Já era noite, podia ver as estrelas brilhando no céu. Para mim, a noite é mais bela que a manhã. O brilho branco das estrelas e o resplandecer da lua em meio ao céu completamente escuro tornava tudo mais bonito do que deveria ser. Pela manhã, somente o sol iluminava tudo, ele era único, ninguém poderia ser tão grandioso quanto ele; já pela noite...havia várias estrelas e uma lua. Uma multidão de estrelas ajudava a tornar possível uma noite clara, e uma lua, pequena comparada ao sol, mas que, mesmo dependendo de outros para brilhar, ainda sim é única. Afinal, ninguém pode ser dependente igual ao sol, certo? Somos todos estrelas perdidas no meio do infinito, ou uma lua dependente de outras pessoas, do sol, para poder viver e ser feliz. E quando alguém está infeliz...simplesmente nuvens de chuva aparecem e cobrem o seu brilho, assim como a noite de hoje Felicidade...seria eu feliz? Sempre preso dentro de casa e escondido do mundo exterior? Por mais hobbys que tivesse, por mais coisas que descobrisse, ainda não consegui descobrir a coisa mais importante na vida de qualquer pessoa: a receita para a felicidade. Laura me despertou isso; me despertou essa vontade de saber como é realmente viver e me mostrou como, na verdade, nunca fui feliz realmente. Peguei as minhas luvas, coloquei uma touca e sai, não ficaria mais preso nesse pequeno mundo que eu chamo de casa. Ele é pequeno demais para mim, pequeno demais para a minha imaginação. Resolvi voltar para àquela pequena banca que vendia doces japoneses, voltar para àquele velho banco de madeira em frente à casa de Laura. No caminho, começou a chover. Há tempos que não lembro qual era a sensação de sentir os pingos de chuva caindo em meu corpo; batendo no chão e fazendo um barulho aconchegante, enquanto formavam poças d’água que molhavam o meu pé. Sei que muitos odeiam isso; muitos odeiam sentir seus pés molhados e sujos devido a água e as sujeiras do asfalto. Muitos odeiam molhar as suas roupas e os seus cabelos. Mas e eu? Eu amei, simplesmente amei. Nunca me senti tão seguro, era como se cada pingo de chuva resolvesse me abraçar e dizer que está tudo bem e que tudo sempre estará bem. Sentei no banco de madeira, sem me preocupar com um possível resfriado. Ou pior: com a péssima reação que meu corpo teria com toda aquela exposição. Durante a noite, os postes ficavam ligados e lançavam uma luz branca sobre mim, como se eu estivesse em um show e fosse a estrela principal; ou seria a lua principal?

Page 68: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

203

A chuva não cessou em momento algum, e eu não levantei do banco em momento algum, continuei sentado com os olhos fechados, sentindo cada pingo batendo em meu corpo. Definitivamente, eu amo o mundo exterior. Eu amo o verdadeiro grande mundo, mesmo que as nuvens mais cinzas cubram a sua felicidade. Meus pensamentos foram interrompidos por uma voz que, provavelmente, chamava por mim – Senhor? Senhor? Por que você está no meio da chuva? Vai acabar pegando um resfriado... – na minha frente estava uma moça de cabelos ruivos e com um olhar intenso, era Laura. – Você quer um guarda-chuva? Laura tentava achar algo em sua bolsa com uma mão enquanto segurava o seu guarda-chuva com outro. De dentro da bolsa, ela tirou um extra e entregou para mim, eu afastei a sua mão, recusando a oferta, e sorri. – Não...eu gosto da chuva. Laura ficou confusa com a minha reação, guardando o guarda-chuva extra na bolsa. – Eu também gosto da chuva – comentou. – Mas quando ela não está molhando as minhas roupas e o meu cabelo. Peguei a mão dela e a coloquei para fora do guarda-chuva, para que ela pudesse sentir os pingos de chuva caindo em suas mãos. – Veja, não é uma sensação boa? – Eu não sinto nada – disse sorrindo. – Mas esse é um pensamento interessante. Laura sentou ao meu lado, mesmo que o banco estivesse completamente molhado. Nós não falamos nada, só ficamos sentados, ela com o guarda-chuva ainda a cobrindo e eu totalmente molhando, olhando as pessoas correrem para dentro do prédio, fugindo da chuva. Após um tempo, ela levantou. – Bem, eu tenho que ir, já está tarde. Até mais. – Também vou – levantei, já andando para ir embora. Estávamos um pouco longe, quando ela gritou. – Ei, qual é o seu nome? – Perguntou. – David – gritei, e soube, naquele momento que, assim como eu era a lua, Laura era a constelação que faltava para completar minha noite.

***

Cheguei em casa completamente encharcado. Mickey estava me esperando e eu sem querer o molhei, fazendo com que ele corresse assustado. Antes de voltar para a casa, comprei um envelope e um papel e escrevi uma carta. Entrei no prédio de Laura e a entreguei para o porteiro, dizendo para entregar a ela “em nome de Henrique Maia”. Eu estava pronto para isso, estava mais pronto do que nunca. Minha pele ardia e as manchas vermelhas a cobria completamente. Eu também estava com febre, me sentia quente apesar de toda a chuva que tomei. Peguei umas toalhas para me secar, mas, assim como anda acontecendo muitas vezes ultimamente, fui interrompido por um barulho vindo da janela. Abri a cortina, já não estava mais chovendo, mas tinha uma bola rolando pelo chão. Era o meu pequeno amigo desagradável, destruidor de janelas. Ele estava novamente escondido atrás da árvore, mas, como nas outras vezes, as pontas dos seus pés estavam visíveis. – Ei, garoto – chamei – Quantas vezes vou ter que dizer que estou vendo o seu pé? Não adianta se esconder. O garoto saiu de trás da árvore e veio correndo até a janela, sorrindo. Ele colocou as mãos do bolso e pôs balas em cima do parapeito da janela.

Page 69: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

204

– Olá, meu nome é Daniel. Eu sei que você sabe que esse é o meu nome, senhor bisbilhoteiro – disse. – Você quer uma bala? – Na verdade, hoje, pensei em invertermos as coisas – sugeri, sorrindo. – Olá, meu nome é David. Quer uma bala?

Capítulo 25 – O sol brilhava tão intensamente...

Jimin

Eu estava escolhendo as roupas que deveria usar para o encontro. Não demorei muito, pois não sou do tipo vaidoso. Somente optei por cores claras e roupas que cobrissem totalmente o meu corpo para esconder as brotoejas. Olhando pela janela, observei mais uma vez o mundo lá fora. Hoje o céu não estava nem um pouco nublado e o sol brilhava mais intensamente do que nunca. Antes de sair, escrevi quatro cartas para quatro pessoas especiais e as deixei em cima da mesinha de centro da sala. Além disso, também coloquei um pote enorme de ração para Mickey, aquele gato esfomeado. Sai de casa antes da hora pois estava ansioso demais para esperar. Entrei no primeiro táxi que vi passando (afinal, eu não posso dirigir) e cheguei um tempo antes do horário combinado. Durante o tempo, andei pelo festival, encantado com a quantidade de pessoas presentes e todos os stands incríveis. Nunca tinha ido para um lugar como esse em toda a minha vida; nunca tinha estado no meio de tanta gente em toda a minha vida. Era tudo tão incrível – só não mais incrível que a lua. Cansado, me sentei em um banco esperando pela chegada de Laura. Já havia passado cinco minutos do horário combinado e ela ainda não tinha aparecido. Continuei esperando, mas já me sentia muito mais cansado do que deveria. O sol continuava brilhando intensamente, e os raios quentes de luz atingiam a minha pele. Antes que me desse conta, já fechava os olhos, tendo como minha última visão a multidão que se amontoava pelo festival, sorrindo e com os cabelos tão, tão brilhantes graças a luz.

Capítulo 26 – David

Laura

Eu desisto! Não tento mais arrumar essa casa. Semana passada fiz uma outra faxina completa mas nada adiantou e tudo já está uma bagunça de novo. Acho que vou começar a aceitar a sujeira como meu fiel esposo, para amá-lo e respeitá-lo; na alegria e na tristeza; na saúde e na doença (principalmente doença) por todos os dias da minha vida, porque não tinha como me livrar mesmo dela. A minha sorte é que agora sou praticamente cunhada do cara que entrega as cartas do Jimin, caso contrário esse nosso relacionamento por cartas nunca daria certo. Tudo bem, não é bem um relacionamento, mas é quase. Nós já sabemos tanto da vida um do outro e ficamos tão próximos que é quase como se fôssemos aqueles casais de velhinhos que fizeram cinquenta anos de casados e já até enjoou da cara um do outro, com a diferença de que não consigo enjoar do Jimin. Desde que Meg começou a insinuar que eu estava gostando dele e apontar certas coisas que não tinha percebido em mim mesma, passei a pensar nas possibilidades; como boa jornalista que sou, sempre tenho que estar atenta a essas coisas e analisar bem, por isso fiz uma listinha de prós e contras sobre esse rapaz

Page 70: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

205

misterioso que prendeu minha atenção com suas cartas.Prós: é inteligente; curioso como eu; amante de mistérios e, principalmente, Agatha Christie; engraçado; se fosse um jornalista, seria quase tão bom quanto eu (afinal, eu sou a melhor); gosta de gatos (ele até me contou que tem um).Contras: nunca o vi pessoalmente. Depois de fazer essa listinha, ficou bem claro que os “prós” eram maiores que os “contras”, o que só poderia ser um sinal. Na verdade, nunca sei o que pensar sobre as pessoas que posso ou não estar gostando e sempre foi assim. De todos os namorados que tive, Meg era quem sinalizava minhas mudanças e dizia que eu estava apaixonada para só então eu me dar conta disso. Esse era um desses casos. Após finalmente assumir para mim mesma essa possibilidade, passei a não negar mais para Meg que não gostava dele e até deixei escapar que, talvez e apenas talvez, eu realmente gostasse dele. O problema maior é: como posso saber se gosto de alguém, se nem mesmo a conheço? Sou adepta da filosofia de que, quanto mais se conhece alguém, mais a ama e, embora eu saiba tudo sobre Jimin, também não sei nada, por isso vinha tentando convencer ele de nos encontrarmos pessoalmente, com a desculpa de que “isso não iria transgredir as regras de sem contato por vias tecnológicas, ao estilo século passado, porque as pessoas se viam pessoalmente”, só que ele sempre recusava. E sim, eu disse recusava, pois quando cheguei em casa, hoje, a nova carta dele estava no chão, próxima à porta (o que era estranho, pois Henrique vinha deixando em cima do balcão da cozinha, onde pedi que passasse a colocar) e mal pude acreditar no que estava lendo: “ Querida Laura,Resolvi, finalmente, aceitar sua proposta de nos encontramos pessoalmente para que possamos nos conhecer melhor. Acho que já passa da hora desse encontro e eu mal posso esperar.Neste sábado acontecerá um festival que apresentará o melhor da cultura asiática e, como grande amante dos mistérios que circundam essa cultura, acredito que seria interessante se nos víssemos lá. Estarei te esperando em frente ao stand da lojinha de doces japoneses que você comentou haver perto de sua casa (eles também estarão lá, vendendo alguns de seus melhores doces), às 14:00. Você não me reconhecerá, mas irei até você.Te espero ansiosamente, Jimin, para você” Finalmente eu iria conhecer o Jimin!

*** – É oficial, eu não tenho roupa para ir neste encontro – declarei, depois de duas horas tentando escolher alguma roupa no meu guarda-roupa com Meg. Já era uma da tarde e eu ainda estava de roupão, olhando para a minha cama cheia de roupas, sem saber o que vestir. – Como não? Sua cama tem uma pilha de roupas, você que não as quer – Meg respondeu, puxando algumas da base da pilha e fazendo outras cair no chão. – Não posso usar essas roupas no meu primeiro encontro com ele. Meg ficou pensativa por um momento, até que levantou um dedo com a expressão de alguém que teve uma brilhante ideia, mas sua cara voltou a murchar, como se a tivesse dispensado. – O que eu faço? – Perguntei para a minha amiga, tentando encontrar alguma solução. Meg se levantou e vasculhou todo o guarda-roupa em busca de algo que

Page 71: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

206

prestasse, mas nada encontrou, exceto uma caixa escondida num canto, em cima dele. – O que tem aqui? – Ela perguntou, soprando a poeira de cima da caixa e a abriu. Dentro dela tinha um vestido verde que eu só devia ter usado uma vez e que nem mesmo lembrava da existência. – É esse! Usa esse! Corri para o banheiro depois de dar um beijo na bochecha de Meg, pus o vestido, dei os últimos retoques na maquiagem e saí. Mesmo dirigindo no máximo de velocidade permitida na via que peguei, cheguei quinze minutos atrasada e o fato de que uma ambulância acabava de chegar no local tinha me rendido mais cinco minutos de atraso até que eu conseguisse estacionar. Quando consegui passar pelos arcos que delimitavam o festival (que era em área aberta) e o estacionamento, passei pela equipe da ambulância que empurrava uma maca. O rapaz na maca usava uma camisa azul clara, calça jeans e luvas nas mãos (mesmo com o sol forte e o calor intenso); tinha os cabelos loiros e aparentemente os olhos claros, a julgar pela pequena fresta que deixava transparecer a íris de um de seus olhos, o outro completamente fechado. Quando passei por ele, tive a impressão de que ele me seguiu com o olhar e esticou uma de suas mãos para mim, além do fato de achar o rapaz extremamente familiar, mas só quando a ambulância se foi, me dei conta de que eu já o conhecia. Era o rapaz da chuva; era David.

Capítulo 27 – Dente-de-leão

Henrique

Era uma tarde do ano de 2015, o sol brilhava intensamente; para a minha tristeza, pois o calor naquele dia estava mais insuportável do que qualquer outro. Eu andava pelas ruas cumprindo as tarefas do meu mais novo emprego, e esse era o de carteiro, claro. A bolsa pesava um pouco sobre os meus ombros, parece que todo mundo resolveu enviar cartas naquele dia. Na verdade, era o meu primeiro dia no emprego, então eu realmente não tinha como dizer se aquela quantidade de cartas era normal, esperava que não. Para a minha sorte, me designaram para um local bem perto da central do Correio em que trabalho – mesmo que, muito provavelmente, no futuro terei novos destinos, mesmo que este em específico prevaleça. Era um grande condomínio em meio a uma rua pouco movimentada. Parecia um labirinto de tantas casas que tinha, já me sentia cansado só de olhar. De início, fiquei animado em poder conhecer aquele condomínio, sempre ficava curioso em saber como era porque o seu tamanho enorme realmente chamava a minha atenção, mas agora...será que eu poderia escolher um outro lugar, por favor? Entrei no condomínio e percebi que não somente a rua era pouco movimentada, como o próprio condomínio também. Não que poucas pessoas morassem lá, mas todo mundo era tão silencioso e individuais que não se via ninguém brincando no parquinho, nadando na piscina ou apenas sentados nos bancos conversando, lendo um jornal e praticando qualquer outra atividade. Apesar disso, não era um lugar nada triste; pelo menos era o que eu pensava. Várias casas eram pintadas com tons pastéis que passavam para mim uma sensação agradável de tranquilidade; não encontrei nenhuma com cores exageradas. O condomínio também era infestado de árvores e até mesmo flores. Pude ver rosas, violetas, tulipas e várias outras lindas flores, incluindo dente-de-leão. Particularmente, gosto de dentes-de-leão, acho legal a história de que, caso você o sopre, tem direito a um desejo, assim como as velas de aniversário. Peguei um e fiz um pedido: gostaria de poder encontrar algo ou alguém que me

Page 72: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

207

surpreendesse no meu primeiro dia de trabalho, era esse o meu humilde pedido. Indo de casa em casa, entreguei todas as cartas. Várias vezes errei o caminho, era difícil andar em meio àquele labirinto. Estava já indo embora e conferi a minha bolsa para ter certeza de que não havia esquecido nada, e ainda bem que eu conferi, pois uma carta ainda prevalecia no fundo da bolsa. Li o endereço “casa número 85, condomínio Belo Lar”. Fui até lá e me perdi mais umas cinco vezes até conseguir encontrar a casa. Apertei a campainha e esperei que atendessem. Para a minha surpresa, quem atendeu foi um homem completamente vestido da cabeça aos meus. Usava calças que iam até o calcanhar; e nada de sandálias, ele vestia sapatos mesmo; sua blusa tinha mangas cumpridas e até uma luva ele usava. Além disso, também usava óculos escuro e uma touca. Ou ele vivia dentro de um iglu, ou era um completo louco (e fora de moda também, pois suas combinações não era nada legais nem para mim, que não sou especialista no assunto). Fora isso, ele tinha uma pele muito clara, cabelo loiro e olhos azuis escuros.– Com licença, você é David Jones? – Perguntei para o moço estranho na minha frente. Sem responder, ele me puxou pelo braço para dentro da casa. Não sabia como reagir, nenhum dos outros moradores fizeram isso. Sua casa não tinha nada de especial, exceto a grande quantidade de estantes de livro completamente cheias. – Desculpa, não posso ficar na porta por muito tempo – respondeu David, enquanto tirava suas luvas, touca e óculos. Ainda estava sem reação então não respondi nada. David estendeu a mão para pegar a carta. Ele abriu e largou na mesma hora – ninguém liga para o que está escrito em recibos de contas. – Você não acha isso chato? – O senhor estranho pôs a carta em cima da mesa. Sua pergunta me fez acordar da minha confusão. – O quê? – Você não acha chato todas as vezes em que entrega uma carta, é sempre uma carta de conta? Ou de promoção? Era uma pergunta interessante, mas por qual outro motivo alguém enviaria uma carta? Não é como antigamente, que não existia internet e as cartas eram o principal meio de comunicação (tirando a comunicação pessoalmente, claro). Nos dias de hoje existe telefone, redes sociais, mensagens de textos ou até mesmo o rádio...cartas não são realmente tão necessárias quanto antes eram. – Normal, ninguém quer perder tempo conversando com os outros através de cartas quando podem simplesmente enviar uma mensagem de texto, que é muito mais rápido – opinei. – Mas não é isso, as cartas possuem muito mais sentimentos – David começou a subir as escadas e parou no meio do caminho. – Venha. Seu quarto também não tinha nada de especial, era comum como todos os outros. David andou até a janela e pegou um binóculo na sacada, em seguida, mandou eu me aproximar. – Olhe a casa ao lado da casa em frente a esta – ele entregou o binóculo para mim e aprontou. Eu olhei, e não tinha nada de especial, somente uma garota deitada na cama conversando no celular. O achei mais estranho ainda por ter um binóculo em casa e usá-lo para ficar observando os vizinhos; fiquei com um pouco de medo, aquela era a atitude que um maníaco teria, certo? Entreguei o binóculo para David com uma expressão confusa no rosto que o fez rir. – Veja bem, parece uma garota normal, certo? Os pais dela também pensam isso, mas ela esconde algo muito valioso Fiquei mais confuso ainda, não era normal uma pessoa esconder algo de vez em quando? Especialmente adolescentes. David riu novamente da minha confusão.

Page 73: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

208

– E se eu te disser que ela está escondendo uma arara azul debaixo daquela cama? Pensei “uma arara azul? Impossível! Como ela encontrou um animal tão raro quanto uma arara azul?” Peguei o binóculo da mão dele e olhei com mais atenção. Primeiro vi uma pata preta saindo da cama; depois um bico preto saindo da cama; por fim, asas azuis saindo da cama. A não ser que a garota seja louca a ponto de pintar uma ave, aquela era, definitivamente, uma arara azul. – Viu? Não é incrível? Os vizinhos escondem histórias muito mais interessantes do que você imagina! – Ele voltou a descer as escadas e pegou um envelope em cima de sua estante de livros. – E, por isso, eles também precisam de bons conselhos. Qual o seu nome? – Henrique – David entregou o envelope para mim, mas não continha endereço nenhum no envelope; nem o dele e nem do destinatário. – Henrique, escolhi você para ser o meu entregador oficial de cartas nesse grande projeto – quando viu que não entendi nada, ele resolveu explicar. – Eu descobrirei o que anda acontecendo com os vizinhos e escreverei cartas aconselhando-os a resolver os seus problemas, e você vai entregar para eles pois eu não posso pôr o meu endereço nas cartas e muito menos sair de casa. O porquê dele não poder pôr o endereço nas cartas eu entendia, tudo se resumia a: ninguém gosta que outras pessoas estejam vigiando a sua vida, e era exatamente isso o que David estava fazendo. Mas por que ele não pode sair de casa? – Eu não acho que isso seja uma boa ideia... – Por favor! Você vai perder essa oportunidade? Tente pelo menos uma vez. Suspirei e aceitei o convite. Não estava confiante quanto aos resultados desse “grande projeto”, só veio na minha mente imagens de vizinhos me perseguindo, procurando respostas. David bateu palmas de alegria e eu fui embora, já colocando a carta da vizinha com uma arara azul em sua caixa de correio. Estava quase saindo do condomínio quando notei que mais uma carta tinha se escondido na minha bolsa endereçada para David e que com certeza não era uma conta. – Obrigado! Faz tempo que não recebo uma dessas – ele disse, se referindo a carta de uma fã de seus livros. Aquele foi um dia especial; não por causa do estranho projeto do estranho David, mas porque foi naquela tarde iluminada pelo sol, em meio a um calor escaldante, que conheci meu melhor e inconveniente amigo. Parece que o dente-de-leão ouviu o meu desejo.

***

Acordei do meu sono profundo. Estava sonhando com o dia em que conheci Jimin, aquela pessoa tão estranha desde o primeiro olhar e que, agora, agia mais estranhamente do que em qualquer outro momento.Era uma noite nublada quando o meu telefone tocava sem parar. Notificações de ligações perdidas preenchiam a tela do meu celular. Levantei para lavar o rosto e ficar completamente desperto. Verifiquei quem ligou para mim tantas vezes e tão desesperadamente, e o número na tela do meu celular me fez ter os piores pressentimentos e pensamentos que alguém poderia ter.Retornei a ligação, torcendo para que não me falassem o que eu imaginava que escutaria.

Page 74: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

209

Capítulo 28 – A carta

Laura “Cara Laura,Se você está lendo isso, provavelmente eu cometi uma loucura de que não me arrependo, pois essa foi a primeira vez que pude experimentar a sensação que é gostar de alguém e isso não tem preço. Meu nome é David Jones e eu tenho uma rara doença genética chamada Protoporfiria Eritropoiética, uma espécie de alergia à luz. Fui diagnosticado com ela aos seis anos, após um ano internado e sendo diagnosticado com várias outras coisas antes dela. Apesar de ter apenas cinco anos na época, lembro-me perfeitamente de meu primeiro ataque, enquanto estava numa festa de aniversário com várias luzes piscantes que, de certa forma, ativaram minha doença. Por causa dessa doença, tive pancreatite, e quanto mais era exposto a luz, novos sintomas surgiam, tais como: erupções em minha pele, febre alta, anemia fraca e até mesmo, início de falha hepática. Essa doença costuma afetar mais as pessoas brancas e eu fui o sortudo que é branco e tem uma mãe e um pai com essa mesma doença, só que em proporções muito mais leves. Desde então, não posso sair de casa e meus pais precisaram pagar um professor particular. As luzes da minha casa são especiais e os vidros da janela também, mas isso não foi um problema, porque meus pais têm dinheiro para isso. Sou escritor, e é dessa forma que me sustento, mas nunca posso ter contato com meus fãs, porque a luz do computador faz com que manchas vermelhas surjam na minha pele. Quanto ao tratamento? Bem, sou obrigado a tomar doses de betacaroteno todos os dias e esse é o único remédio para pessoas como eu, além das luzes especiais e janelas para impedir a luz. Por que estou te contando isso? Além da minha família, o único que sabe disso é Henrique, por ser meu único amigo e ser o único com quem realmente importo. Quero dizer, isso até você surgir em minha vida. Tenho trinta e cinco anos e nunca tinha me apaixonado por ninguém; nem mesmo sabia como era gostar de alguém, mas você, Laura, despertou isso em mim. Por isso, não assumi para Henrique e até para mim até o momento que decidi marcar um encontro contigo, simplesmente porque não aguentava mais não poder te ver. Sua curiosidade, seu jeito engraçado e o fato de sempre ser gentil e estar me incentivando me atraiu de forma que nunca aconteceu e isso antes mesmo que eu soubesse o quão bonita você é. Passei a sorrir lendo suas cartas, e não apenas quando você escrevia algo engraçado, mas simplesmente por ser você. Tudo só piorou quando resolvi cometer o meu primeiro ato de rebeldia e levar um garoto para aquela loja de doces japoneses perto da sua casa em plena luz do dia. Você parecia irritada no momento e falava ao telefone com alguém, mas estava tão linda... senti que precisava te ver pessoalmente mais uma vez e por isso voltei lá um outro dia e fiquei sentado no banco da praça esperando você aparecer e depois disso, as feridas que já estavam abertas em minha pele da primeira vez que saí em anos, apenas se aprofundaram, só que eu já não me importava. Você pode estar se sentindo culpada por isso, mas não se culpe, porque ninguém é culpado por amar alguém.Henrique percebeu tudo antes mesmo que eu. O conheci há dois anos atrás, quando ele entregava uma conta e logo após uma carta de um fã dos meus livros e desde então ele se tornou meu melhor amigo, por isso sabia quando algo estava diferente. Acho que não fui tão bom com ele durante nossa amizade, mas com certeza

Page 75: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

210

o agradeço por tudo, principalmente por ter me apresentado a você. Ele entrou de cabeça nesse meu projeto e, mesmo não aprovando tudo o que eu fazia, continuava me apoiando, pois é isso o que os amigos fazem. As cartas? Nunca contei isso para alguém, mas existe um motivo para que eu seja tão fascinado por elas e as associe tão facilmente ao puro e verdadeiro sentimento. Aos dez anos, encontrei uma caixa do meu bisavô materno em cima do guarda-roupa de um quarto de hóspede da casa que antes fora dele uma caixa com diversas cartas. A curiosidade sempre fez parte de mim, por isso comecei a lê-las e fiquei encantado. Eram cartas que meu bisavô trocava com minha bisavó; eram cartas de amor. Desde então, resolvi que queria espalhar o amor através de cartas, mas nunca pude imaginar que encontraria meu amor através de uma. E você? Você não despertou apenas o sentimento de amor em mim, mas também o de felicidade.Com você, Laura, eu aprendi o que é a real felicidade e que nunca a tive, não pela limitação que minha doença me dava, mas por nunca ter presenciado isso, até você me mandar aquela carta dizendo que foi aceita para trabalhar no maior jornal do Brasil e eu quase pude ouvir sua voz de entusiasmo e ver seus pulos de alegria. Eu queria muito ter isso, que nunca pude ter, mas você me mostrou como era. Obrigado por despertar todas essas coisas bonitas em mim e espero que eu tenha despertado algo em você também. Eu era como um pássaro preso à uma gaiola e você me permitiu voar. Com todo o meu amor, David, para você” E apenas quando fechei a carta, me permiti chorar.

*** Apenas um mês depois da morte do Jimin voltei a encontrar Henrique. Sempre perguntava a Meg por ele, mas nem mesmo ela tinha notícias; ele havia se isolado completamente de todos, nem mesmo no trabalho tinha aparecido após pedir suas férias atrasadas no último dia que o vi. Eu o entendia. Jimin tinha marcado nossas vidas de tal forma que era quase impossível acreditar que ele já não estivesse mais aqui, principalmente para Henrique, que o teve como melhor e único amigo por dois anos. Ainda tinha dias que chegava em casa e olhava pelo chão para ver se tinha alguma carta sem endereço me esperando, mas sempre era uma decepção. Antes que Henrique sumisse, logo após o enterro, ele me explicou melhor sobre a única coisa que eu não sabia sobre Jimin, além de seu nome. A protoporfiria eritropoiética é uma doença que faz com que as células sanguíneas criem substâncias químicas quando entram em contato com a luz e o fígado não dá conta de filtrar essas substâncias. – Ele foi te ver – Henrique afirmou. – E faleceu a caminho do hospital, quando as feridas da exposição à luz já estavam em estágio avançado de necrose. – Ele foi me ver? Mas não chegamos a nos encontrar... Henrique me estendeu uma foto e então eu liguei os pontos. O rapaz da chuva, o mesmo que foi levado pela ambulância no dia que devíamos ter nos encontrado, era ele. David. Fiquei encarando a foto dele, sorrindo com os cabelos bagunçados e ao lado de um gato sem reação. Nesse mesmo dia fomos em sua casa (a casa que eu deveria tê-lo encontrado) e lá achamos quatro cartas em cima da mesa de centro: uma para mim, outra para Henrique, uma para quem eu descobri ser sua irmã, Patrícia e a última para um menino chamado Daniel, que só vim descobrir quem era dias depois. Relatório do dia: ...

Page 76: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

211

Capítulo 29 – Uma mensagem simbólica

Dois anos depoisLaura

“Caro Jimin, Eu sei que você nunca irá ler essa carta, mas não pude resistir ao impulso de escrevê-la. Você me disse que esperava que tivesse despertado algo em mim e cumpriu com sua missão, pois continuo escrevendo cartas para as pessoas e, assim como você, ajudando com os problemas delas. Mas antes que lhe fale sobre isso, gostaria de te atualizar sobre tudo o que aconteceu nesses dois anos: Sabe aquele último livro que você estava escrevendo? Bem, como me tornei uma jornalista importante, consegui publicá-lo em seu pseudônimo e apenas por ter minha indicação, foi um sucesso total, mas claro que tudo isso se deve principalmente ao fato de você ser um grande escritor. Seus livros da Agatha Christie? Espero que não se importe que eu tenha ficado com eles. Toda vez que pego algum deles para ler, sinto que estou mais perto de você e isso me faz muito feliz. Espero que também não se importe que eu tenha unido nossas cartas num livro e publicado. Desculpe se te magoou, mas eu sentia que o mundo precisava conhecer você e como sempre pensava nos outros antes de si mesmo. Meg e Henrique? Se casaram e estão esperando por um filho. Te dou uma bala se você descobrir qual o nome eles darão ao menino. Espero que esse Jimin seja tão inteligente quanto o original; sua madrinha se encarregará disso. Espero que não se importe, também, que eu tenha ficado com Mickey. Simplesmente me encantei por ele e não consigo deixar de compará-lo ao gato da minha vizinha, Cenoura. Acho que ficaria feliz em saber que os seus outros livros foram doados para um projeto social que atravessa o Brasil inteiro tentando mostrar o valor da leitura para as crianças. E quanto a seus projetos...eu resolvi continuar ajudando no anonimato às pessoas que têm problemas, como você já ajudou algumas. Lembra daquele garoto que tinha os pais homofóbicos? Acho que ele seguiu meus conselhos e decidiu seguir aquilo que o deixa feliz, como você fez quando percebeu do que precisava para ser feliz. A garota apaixonada por futebol também optou pela felicidade e foi seguir seu sonho. Esses são apenas alguns exemplos de pessoas que já consegui ajudar seguindo seus passos, mas tem muito mais. A casa de número 85 continua aparentemente vazia, mas nunca se sabe quem poderia estar espionando por ali com um binóculo. E por último, eu realmente espero que não se importe por eu usar seu pseudônimo, é só que não consigo deixar de pensar em como ele é genial. Com um enorme sentimento de saudade, Jimin, para você.”

Page 77: Romance - educacao3.salvador.ba.gov.breducacao3.salvador.ba.gov.br/premio-jorge-amado/download/Romance/... · magro como papel, agora é tão gordo que quase nem consegue mais fazer

242