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    O que um Autor? (Conferncia clebre apresentada em 1969)

    Foucault explica a questo que o leva a formular o ensaio, um ano antes, e aconferncia, um ano depois:

    Mas uma outra questo se coloca: a do autor - e sobre essa que gostaria

    agora de conversar com vocs - essa noo do autor constitui o momento crucial daindividualizao na histria das idias, dos conhecimentos, das literaturas, e tambmna histria da filosofia e das cincias.

    Dessa maneira, Foucault define o ponto de vista sobre o qual ser analisada aquesto do autor:

    Deixarei de lado, pelo menos na conferncia desta noite, a anlise histrico-sociolgica do personagem do autor. (...) Gostaria no momento de examinar

    unicamente a relao do texto com o autor, a maneira com que o texto aponta paraessa figura que Ihe exterior e anterior, pelo menos aparentemente.

    Aqui, o autor explana os dois temas dos quais ir tratar:

    A formulao do tema pelo qual gostaria de comear, eu a tomei emprestadode Beckett: "Que importa quem fala, algum disse que importa quem fala." Nessaindiferena, acredito que preciso reconhecer um dos princpios ticos fundamentaisda escrita contempornea. Digo "tico", porque essa indiferena no tanto um traocaracterizando a maneira como se fala ou como se escreve; ela antes uma espciede regra imanente, retomada incessantemente, jamais efetivamente aplicada, umprincpio que no marca a escrita como resultado, mas a domina como prtica.

    O segundo tema ainda mais familiar; o parentesco da escrita com a morte.(). Esse tema da narrativa ou da escrita feitos para exorcizar a morte, nossa culturao metamorfoseou; a escrita est atualmente ligada ao sacrifcio, ao prprio sacrifcioda vida; apagamento voluntrio que no para ser representado nos livros, pois eleconsumado na prpria existncia do escritor. A obra que tinha o dever de trazer aimortalidade recebeu agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor. VejamFlaubert, Proust, Kafka. Mas h outra coisa: essa relao da escrita com a mortetambm se manifesta no desaparecimento das caractersticas individuais do sujeitoque escreve; atravs de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que eleescreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidadeparticular; a marca do escritor no mais do que a singularidade de sua ausncia; preciso que ele faa o papel do morto no jogo da escrita.

    Para dar continuidade ao tema do apagamento/morte do autor, Foucault comeapor teorizar sobre o conceito de obra:

    Inicialmente, a noo de obra. () Ora, preciso imediatamente colocar umproblema: "O que uma obra? O que pois essa curiosa unidade que se designa como nome obra? De quais elementos ela se compe? Uma obra no aquilo que escrito por aquele que um autor?" Mas suponhamos que se trate de um autor:

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    ser que tudo o que ele escreveu ou disse, tudo o que ele deixou atrs de si faz partede sua obra? Problema ao mesmo tempo terico e tcnico. Quando se pretendepublicar, por exemplo, as obras de Nietzsche, onde preciso parar? preciso publicartudo, certamente, mas o que quer dizer esse "tudo"? Tudo o que o prprio Nietzschepublicou, certamente. Os rascunhos de suas obras? Evidentemente. Os projetos dosaforismos? Sim. Da mesma forma as rasuras, as notas nas cadernetas? Sim. Masquando, no interior de uma caderneta repleta de aforismos, encontra-se uma

    referenda, a indicao de um encontro ou de um endereo, uma nota de lavanderia:obra, ou no? Mas, por que no? E isso infinitamente.

    Dentre os milhes de traos deixados por algum aps sua morte, como sepode definir uma obra? A teoria da obra no existe, e aqueles que, ingenuamente,tentam editar obras falta uma tal teoria e seu trabalho emprico se v muitorapidamente paralisado.

    De tal maneira que insuficiente afirmar: deixemos o escritor, deixemos oautor e vamos estudar, em si mesma, a obra. A palavra "obra" e a unidade que ela

    designa so provavelmente to problemticas quanto a individualidade do autor

    Ele chega concluso de que tratar da obra enquanto conceito to complexoquanto tratar da individualidade do autor. (autoria)

    Agora ele analisar a obra em relao ao seu autor:

    Enfim, o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo ele ser dodiscurso: para um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que sepossa dizer "isso foi escrito por tal pessoa", ou "tal pessoa o autor disso", indicaque esse discurso no uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que seafasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumvel, mas que se tratade uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em umadada cultura, receber um certo status.

    Conseqentemente, poder-se-ia dizer que h, em uma civilizao como anossa, um certo nmero de discursos que so providas da funo "autor", enquantooutros so dela desprovidos. Uma carta particular pode ter um signatrio, ela notem autor; um contrato pode ter um fiador, ele no tem autor. Um texto annimoque se l na rua em uma parede ter um redator, no ter um autor. A funo-autor, portanto, caracterstica do modo de existncia, de circulao e de funcionamentode certos discursos no interior de uma sociedade.

    Quando a autoria passou a ser valorizada?

    preciso observar que essa propriedade foi historicamente secundria, emrelao ao que se poderia chamar de apropriao penal. Os textos, os livros, osdiscursos comearam a ter realmente autores (diferentes dos personagens mticos,diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o

    autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam sertransgressores. O discurso, em nossa cultura (e, sem dvida, em muitas outras), noera originalmente um produto, uma coisa, um bem; era essencialmente um ato - umato que estava colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lcito e do

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    ilcito, do religioso e do blasfemo. Ele foi historicamente um gesto carregado de riscosantes de ser um bem extrado de um circuito de propriedades. E quando se instaurouum regime de propriedade para os textos, quando se editoram regras estritas sobreos direitos do autor, sobre as relaes autores-editores, sobre os direitos dereproduo etc. - ou seja, no fim do sculo XVIII e no inicio do sculo XIX -, e nessemomento em que a possibilidade de transgresso que pertencia ao ato de escreveradquiriu cada vez mais o aspecto de um imperativo prprio da literatura. Como se o

    autor, a partir do momento em que foi colocado no sistema de propriedade quecaracteriza nossa sociedade, compensasse o status que ele recebia, reencontrandoassim o velho campo bipolar do discurso, praticando sistematicamente atransgresso, restaurando o perigo de uma escrita na qual, por outro lado, garantir-se-iam os benefcios da propriedade.

    A autoria em perspectiva histrica textos cientficos e literrios

    Por outro lado, a funo autor no exercida de uma maneira universal e

    constante em todos os discursos. Em nossa civilizao, no so sempre os mesmostextos que exigiram receber uma atribuio. Houve um tempo em que esses textosque hoje chamaramos de "literrios" (narrativas, contos, epopias, tragdias,comedias) eram aceitos, postos em circulao, valorizados sem que fosse colocada aquesto do seu autor; o anonimato no constitua dificuldade, sua antiguidade,verdadeira ou suposta, era para eles garantia suficiente. Em compensao, os textosque chamaramos atualmente de cientficos, relacionando-se com a cosmologia e ocu, a medicina e as doenas, as cincias naturais ou a geografia, no eram aceitosna Idade Mdia e s mantinham um valor de verdade com a condio de seremmarcados pelo nome do seu autor. "Hipocrates disse", "Plnio conta" no eramprecisamente as frmulas de um argumento de autoridade; eram os ndices com queestavam marcados os discursos destinados a serem aceitos como provados. Umquiasma produziu-se no sculo XVII, ou no XVIII; comeou-se a aceitar os discursoscientficos por eles mesmos, no anonimato de uma verdade estabelecida ou sempredemonstrvel novamente; e sua vinculao a um conjunto sistemtico que lhes dagarantia, e de forma alguma a referncia ao indivduo que os produziu. A funoautor se apaga, o nome do inventor servindo no mximo para batizar um teorema,uma proposio, um efeito notvel, uma propriedade, um corpo, um conjunto deelementos, uma sndrome patolgica. Mas os discursos "literrios" no podem maisser aceitos seno quando providos da funo autor: a qualquer texto de poesia ou defico se perguntara de onde ele vem, quem o escreveu, em que data, em quecircunstancias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe dado, o status ou ovalor que nele se reconhece dependem da maneira com que se responde a essasquestes. E se, em conseqncia de um acidente ou de uma vontade explicita doautor, ele chega a ns no anonimato, a operao imediatamente buscar o autor. Oanonimato literrio no suportvel para nos; s o aceitamos na qualidade deenigma. A funo-autor hoje em dia atua fortemente nas obras literrias.

    As 4 modalidades pelas quais atuam a funo-autor

    Em outros termos, para "encontrar" o autor na obra, a crtica moderna utilizaesquemas bastante prximos da exegese crist, quando ela queria provar o valor deum texto pela santidade do autor. Em De viris illustribusti, So Jernimo explica quea homonmia no basta para identificar legitimamente os autores de vrias obras:

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    indivduos diferentes puderam usar o mesmo nome, ou um pode, abusivamente,tomar emprestado o patronmico do outro. O nome como marca individual no suficiente quando se refere a tradio textual. Como, pois, atribuir vrios discursos aum nico e mesmo autor? Como fazer atuar a funo autor para saber se se trata deum ou de vrios indivduos? So Jernimo fornece quatro critrios: se, entre vrioslivros atribudos a um autor, um inferior aos outros, preciso retir-lo da lista desuas obras (o autor ento definido como um certo nvel constante de valor); alem

    disso, se certos textos esto em contradio de doutrina com as outras obras de umautor (o autor ento definido como um certo campo de coerncia conceitual outerica); preciso igualmente excluir as obras que esto escritas em um estilodiferente, com palavras e formas de expresso no encontradas usualmente sob apena do escritor (e o autor como unidade estilstica); devem, enfim, ser consideradoscomo interpolados os textos que se referem a acontecimentos ou que citampersonagens posteriores a morte do autor (o autor ento momento histricodefinido e ponto de encontro de um certo nmero de acontecimentos).

    Por que a autoria ainda to importante? E ser que o apagamento do autorvai acontecer?

    Dessa forma, o nome do autor outorga um certo estatuto ao discurso, obra,conferindo-lhe autenticidade (o discurso real, verdadeiro), distino (o discurso temvalor, especial, importante) e permanncia (o discurso conservar-se, fixa-se para aeternidade), assegurando "uma funo classificativa; um tal nome permite reagruparum certo nmero de textos, delimit-los, selecion-los, op-los a outros textos"

    (Foucault2, p. 44-5)

    Dizendo isso, pareo evocar uma forma de cultura na qual a fico no seriararefeita pela figura do autor. Mas seria puro romantismo imaginar uma cultura emque a fico circularia em estado absolutamente livre, a disposio de cada um;desenvolver-se-ia sem atribuio a uma figura necessria ou obrigatria. Aps osculo XVIII, o autor desempenha o papel de regulador da fico, papel caractersticoda era industrial e burguesa, do individualismo e da propriedade privada. No entanto,levando em conta as modificaes histricas em curso, no h nenhuma necessidadede que a funo autor permanea constante em sua forma ou em sua complexidadeou em sua existncia. No momento preciso em que nossa sociedade passa por umprocesso de transformao, a funo-autor desaparecer de uma maneira que

    permitir uma vez mais a fico e aos seus textos polissmicos funcionar de novo deacordo com um outro modo, mas sempre segundo um sistema obrigatrio que noser mais o do autor, mas que fica ainda por determinar e talvez por experimentar."(Trad. D. Defert.)

    FOUCAULT, Michel. O que um autor ?Lisboa, Veja, 1992.Seleo de trechos feitas por Ana Cristina Gambarotto.