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Construindo uma Teoria Multifactorial da Notícia como uma Teoria do Jornalismo Jorge Pedro Sousa * Universidade Fernando Pessoa Índice 1 Introdução ........................ 2 2 Notícia .......................... 4 3 Tendência “divisionista” para a explicação das notícias 6 4 Tendência "unionista"para a explicação das notícias . . 10 5 Circulação, consumo e efeitos das notícias ....... 12 6 A Teoria Multifactorial da Notícia (enquanto Teoria do Jornalismo) ....................... 15 6.1 Primeira equação (1) ................. 17 6.2 Segunda (2) e terceira equações (3) .......... 26 7 Testando o modelo ................... 28 8 Considerações finais ................... 42 9 Bibliografía ....................... 43 * Jorge Pedro Sousa é investigador e professor associado da Universidade Fernando Pessoa, nas áreas do Jornalismo (teoria, redacção e fotojornalismo), Planeamento da Comunicação e Teoria da Comunicação. É doutor em Ciên- cias da Informação pela Universidade de Santiago de Compostela (1997). Tem vários livros e artigos publicados sobre jornalismo e comunicação. Foi jorna- lista e assessor de imprensa antes de se dedicar em exclusivo à docência e à pesquisa. E-mail: [email protected]

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Construindo uma TeoriaMultifactorial da Notícia como uma

Teoria do Jornalismo

Jorge Pedro Sousa∗

Universidade Fernando Pessoa

Índice

1 Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 Notícia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 Tendência “divisionista” para a explicação das notícias64 Tendência "unionista"para a explicação das notícias. . 105 Circulação, consumo e efeitos das notícias. . . . . . . 126 A Teoria Multifactorial da Notícia (enquanto Teoria do

Jornalismo) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156.1 Primeira equação (1). . . . . . . . . . . . . . . . . 176.2 Segunda (2) e terceira equações (3). . . . . . . . . . 267 Testando o modelo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 288 Considerações finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 429 Bibliografía . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

∗Jorge Pedro Sousa é investigador e professor associado da UniversidadeFernando Pessoa, nas áreas do Jornalismo (teoria, redacção e fotojornalismo),Planeamento da Comunicação e Teoria da Comunicação. É doutor em Ciên-cias da Informação pela Universidade de Santiago de Compostela (1997). Temvários livros e artigos publicados sobre jornalismo e comunicação. Foi jorna-lista e assessor de imprensa antes de se dedicar em exclusivo à docência e àpesquisa. E-mail: [email protected]

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Resumo

Neste texto, o autor sustenta que existe conhecimento empírico ereflexivo suficiente para se estruturar uma Teoria da Notícia ca-paz de responder às questões "por que é que as notícias são comosão?", "por que é que temos as notícias que temos?"e "quais osefeitos das notícias?". O autor apresenta, assim, a sua Teoria Mul-tifactorial da Notícia, que beneficia do trabalho de pesquisadorescomo Michael Schudson (1988) ou Shoemaker e Reese (1991) ese estrutura em três equações interligadas. A primeira das equa-ções mostra que a notícia é um produto de nove variáveis; a se-gunda equação mostra que a notícia tem efeitos fisiológicos, afec-tivos, cognitivos e comportamentais sobre as pessoas e que essesefeitos dependem das várias circunstâncias do receptor; a terceiraequação evidencia que a notícia tem efeitos sobre a sociedade, asideologias e a cultura (o que se reflecte na história).

1 Introdução

À semelhança das ciências exactas e naturais, as ciências humanase sociais devem procurar agregar os dados dispersos fornecidospela pesquisa em teorias integradoras, entendidas como explica-ções integradas para fenómenos comprovadamente correlaciona-dos, susceptíveis de explicar determinados fenómenos com baseem leis gerais predictivas, mesmo que probabilísticas. As ciênciasda comunicação devem, assim, ultrapassar a sua condição de "dis-ciplinas sérias"próximas da filosofia, como lhes chamou Debray1,para assumir a sua cientificidade, como pretendia Moles (1972).Isto implica avançar para a enunciação de teorias sempre que ospesquisadores considerem que existem dados científicos e evidên-cia suficientes. No campo do jornalismo, essa opção tem sido se-guida por pesquisadores como Shomaker e Reese (1992), Sousa

1 Entrevista a Régis Debray, conduzida por Adelino Gomes e publicada nosuplementoMil Folhasdo jornalPúblico, a 23 de Novembro de 2002.

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(2000; 2002) e mesmo Schudson (1988), contando, porém, com aoposição de autores como Traquina (2002) ou Viseu (2003).

Uma teoria do jornalismo deve partir da observação de que hánotícias jornalísticas2 e de que estas têm efeitos. Em resultadodesta evidência, uma teoria do jornalismo deve centrar-se no pro-duto jornalístico - a notícia jornalística, explicando como surge,como se difunde e quais os efeitos que gera. Em suma, a teoria dojornalismo deve consubstancializar-se como uma teoria da notíciae responder a duas questões:

• Por que é que as notícias são como são e por que é quetemos as notícias que temos (circulação)?

• Quais os efeitos que as notícias geram?

Uma teoria da notícia, à semelhança de outras teorias cientí-ficas, deve ser enunciada de maneira breve e clara, deve ser uni-versal (ou seja, deve chegar a leis científicas universais, mesmoque probabilísticas), deve ser traduzível matematicamente e deveainda ser predictiva. Deve atentar no que une e é constante e nãono que é acidental. Isto significa que o enunciado da teoria deveser contido, explícito e aplicável a toda e qualquer notícia que setenha feito ou venha a fazer. Uma teoria da notícia, como qualquerteoria científica, será válida unicamente enquanto não ocorreremfenómenos que a contradigam, pois o conhecimento científico,que é construído, como qualquer outro tipo de conhecimento, émarcado pela possibilidade de refutação e, portanto, pela revisi-bilidade.

À luz do que foi dito, este texto tem por objectivo contribuirpara a edificação de uma teoria da notícia, enquanto teoria do jor-nalismo, marcada pela cientificidade e pela matematização.

2 Ou seja, há notícias produzidas pelo sistema jornalístico a partir de refe-rentes reais.

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2 Notícia

Uma teoria científica tem de delimitar conceptualmente os fenó-menos que explica e prevê. A teoria do jornalismo deve ser vistaessencialmente como uma teoria da notícia, já que a notícia é oresultado pretendido do processo jornalístico de produção de in-formação. Dito por outras palavras, a notícia é o fenómeno quedeve ser explicado e previsto pela teoria do jornalismo e, por-tanto, qualquer teoria do jornalismo deve esforçar-se por delimitaro conceito de notícia.

É preciso também notar que o conceito de notícia tem uma di-mensão que poderíamos classificar como táctica e uma dimensãoque poderíamos classificar como estratégica. A dimensão tácticaesgota-se na teoria dos géneros jornalísticos. Nessa dimensão,distingue-se notícia de outros géneros, como a entrevista ou a re-portagem. Todavia, a dimensão estratégica encara a notícia comotodo o enunciado jornalístico. Esta opção é aquela que interessa àteoria do jornalismo enquanto teoria que procura explicar as for-mas e os conteúdos do produto jornalístico.

Complementando uma definição de notícia dada por Sousa(2000; 2002), pode dizer-se que uma notícia é um artefacto lin-guístico que representa determinados aspectos da realidade, re-sulta de um processo de construção onde interagem factores denatureza pessoal, social, ideológica, histórica e do meio físico etecnológico, é difundida por meios jornalísticos e comporta in-formação com sentido compreensível num determinado momentohistórico e num determinado meio sócio-cultural, embora a atri-buição última de sentido dependa do consumidor da notícia.

A notícia é umartefacto linguísticoporque é uma constru-ção humana baseada na linguagem, seja ela verbal ou de outranatureza (como a linguagem das imagens). A notícia nasce da in-teracção entre arealidade perceptível, ossentidosque permitemao ser humano “apropriar-se” da realidade, amenteque se esforçapor apreender e compreender essa realidade e aslinguagensquealicerçam e traduzem esse esforço cognoscitivo.

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As notícias ocupam-se com as aparências dos fenómenos queocorrem na realidade social e com as relações que aparentementeesses fenómenos estabelecem entre si. A notícia não espelha a re-alidade porque as limitações dos seres humanos e as insuficiênciasda linguagem o impedem3. Por isso, a notícia contenta-se emre-presentar4 parcelas da realidade, independentemente da vontadedo jornalista, da sua intenção de verdade e de factualidade. Essarepresentação é, antes de mais, indiciática5. A notícia indicia osaspectos da realidade que refere. Ao mesmo tempo, a notícia in-dicia as circunstâncias da sua produção. Ou seja, entre notícia,realidade e circunstâncias de produção há um vínculo de conti-guidade. Mas a notícia pode também ter estabelecer relações desemelhança com a realidade que referencia. Por esse motivo, anotícia pode assumir igualmente uma dimensão icónica6, corres-pondente, aliás, à própria ambição de iconicidade dos jornalistasque a produzem, ou seja, à vontade de o enunciado produzido(notícia) ser semelhante à realidade enunciada.

Vários factores interferem na construção da notícia. A natu-reza indiciática da notícia, ou seja, o facto de na notícia estaremindiciadas as circunstâncias da sua produção, permite determinaresses factores, nos quais se devem basear as explicações que sedão para explicar por que temos as notícias que temos e por queas notícias são como são. Na teoria unificada do jornalismo queneste texto se sustenta, esses factores podem ser denatureza pes-soal, social, ideológica, cultural, histórica, do meio físicoe dosdispositivos tecnológicos.

Uma teoria do jornalismo deve ocupar-se unicamente dano-tícia enquanto fenómeno jornalístico, isto é, deve ocupar-se dos

3 Para uma melhor compreensão deste fenómeno, consulte-se a tese douto-ral de José Rodrigues dos Santos (2001).

4 Alguns semióticos dizem mesmosimular.5 Recorre-se aqui à clássica divisão dos signos estabelecida por Peirce.6 Também pode funcionar como símbolo, mas esta discussão já transcende

os objectivos da presente definição de notícia.

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enunciados que são produzidos porjornalistas credenciadose quesão veiculados emespaços jornalísticospormeios jornalísticos7.

A notícia comporta informação comsentido compreensívelnum determinadomomento históricoe num determinadomeiosócio-cultural. Se dentro de um contexto um determinado factoemerge da superfície plana da realidade, sendo percepcionadocomo notável e, portanto, como um acontecimento digno de setornar notícia (Rodrigues, 1988), noutro contexto esse mesmofacto pode passar despercebido por não ter um enquadramentoque permita observá-lo como um facto notável, ou seja, como umacontecimento8.

Finalmente, a notícia só se esgota no momento do seucon-sumo, já que é nesse momento que ela produz efeitos e passa a fa-zer parte dos referentes da realidade. Esses referentes são a parteda realidade que formam a imagem que os sujeitos constroem darealidade. Por isso, a construção de sentido para uma notícia de-pende da interacção perceptiva, cognoscitiva e até afectiva que ossujeitos com ela estabelecem9.

3 Tendência “divisionista” para a explicação dasnotícias

Há autores que consideram que as explicações que têm sido avan-çadas para explicar os formatos e conteúdos das notícias são insu-ficientes para se edificar uma teoria do jornalismo e por vezes sãotambém antagónicas e contraditórias. O mais referenciado defen-sor lusófono desta tese é, provavelmente, Nelson Traquina (2001;

7 Para efeitos deste artigo, é estéril debater as fronteiras do jornalismo, oque é e não é jornalismo, quem é e quem não é jornalista, o que é ou não é ummeio jornalístico.

8 Para sustentação e aprofundamento deste argumento, consulte-se Sousa(2000; 2002).

9 Para sustentação e aprofundamento deste argumento, consulte-se Sousa(2000; 2002).

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2002). Para Traquina (2002: 73-129) há a considerar várias "teo-rias", que podem ser resumidas da seguinte maneira:

• Teorias do espelhoCom base nesta explicação, as notícias são vistas como oespelho da realidade, conforme a ideologia profissional clás-sica dos jornalistas.

• Teoria da acção pessoal ou dogatekeeperEsta explicação nasce da metáfora dogatekeepingaplicadaà produção de informação jornalística. De acordo com estaexplicação, as notícias resultam da selecção de aconteci-mentos, com base nas opções particulares de cada jornalistaselector.

• Teoria organizacionalA teoria organizacional enfatiza que as notícias são o re-sultado das condicionantes organizacionais em que são fa-bricadas, como as hierarquias, as formas de socialização eaculturação dos jornalistas, a rede de captura de aconteci-mentos que o órgão jornalístico lança sobre o espaço, osrecursos humanos e financeiros desse órgão, a respectivapolítica editorial, etc.

• Teoria da acção políticaSegundo Traquina, os defensores desta explicação susten-tam que as notícias distorcem a realidade, embora pudes-sem ser o seu espelho. Há duas versões desta "teoria". Umadelas afirma que as notícias são dissonantes da realidadeporque os jornalistas, sem autonomia, estão sujeitos a umcontrole ideológico e mesmo conspirativo que leva osme-dia noticiosos a agirem como um instrumento ao serviço daclasse dominante e do poder. Por isso, para esses teóricosas notícias dão uma visão direitista, liberal e conservadorado mundo e contribuem para a sustentação dostatu quo. Aoutra versão sustenta que osmedianoticiosos são instru-mentos da ideologia dos jornalistas. Estes são vistos como

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quase totalmente autónomos em relação aos diversos po-deres. As notícias seriam enviesadas da realidade porquereflectem as convicções ideológicas e políticas dos jornalis-tas e as suas ideologias profissionais. Como os jornalistas,para esses pensadores, são maioritariamente de esquerda,as notícias tendem a privilegiar uma visão esquerdista domundo.

• Teoria estruturalistaDe acordo com esta explicação, as notícias são um produtosocialmente construído que reproduz a ideologia dominantee legitima ostatu quo. Isto acontece porque os jornalistase os órgãos de comunicação social têm uma reduzida mar-gem de autonomia, cultivam uma cultura rotinizada e buro-cratizada e estão sujeitos ao controle da classe dominante,proprietária dos meios de comunicação, que vincula osme-dia às suas (primeiras) definições dos acontecimentos. Asrotinas produtivas são vistas como uma cedência ao domí-nio dos poderosos. As notícias condensam essa relação es-trutural entre osmediae os definidores de sentido para osacontecimentos e ajudam a construir uma sociedade con-sensual e normalizada, em função da ideologia dominante-hegemónica.

• Teoria construcionistaA explicação construcionista para as notícias é mais elabo-rada do que as anteriores. Para os académicos que perfilhamessa explicação, as notícias são histórias que resultam deum processo de construção, linguística, organizacional, so-cial, cultural, pelo que não podem ser vistas como o espelhoda realidade, antes são artefactos discursivos não ficcionais– indiciáticos- que fazem parte da realidade e ajudam-naa construir e reconstruir. Assim, o conceito de distorçãoé visto como inadequado e as atitudes políticas dos jorna-listas -observados como relativamente autónomos, embora

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constrangidos pela linguagem, pelas organizações noticio-sas, pelas negociações com as fontes, etc.- não são entendi-das como um factor determinante no processo jornalísticode produção de informação. As rotinas são vistas como oresultado de um esforço organizacional para assumir umavantagem estratégica.

• Teoria interaccionistaDe acordo com esta linha explicativa, as notícias resultamde um processo de percepção, selecção e transformação deacontecimentos em notícias, sob a pressão do tempo, porum corpo de profissionais relativamente autónomo e auto-rizado, que partilha de uma cultura comum. Os jornalistassão vistos não como observadores passivos, mas sim comoparticipantes activos na construção da realidade. As notí-cias são encaradas como uma construção social, sendo li-mitadas pela natureza da realidade, mas registando aspec-tos tangíveis dessa realidade. As notícias registam tambémos constrangimentos organizacionais, os enquadramentos enarrativas culturais que governam a expressão jornalística,as rotinas que orientam e condicionam a produção de notí-cias, os valores-notícia e as negociações entre jornalistas efontes de informação.

Como é visível, as diferentes "teorias"expostas por Traquinanão têm fronteiras muito bem definidas. Há entre elas pontos decontacto, explicações comuns. Aquilo que as une é mais impor-tante do que aquilo que eventualmente as separa. Por exemplo, asrotinas são relevadas em várias delas. Usando os mesmos dadosde Traquina, é possível tecer uma teia explicativa global para asnotícias - é uma questão de sistematizar esses dados. Este é umdos principais argumentos que sustentam as teses "unionistas".

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4 Tendência "unionista"para a explicação dasnotícias

Em 1988, Michael Schudson escreveu que as teorias unidimensi-onais não conseguem explicar as notícias. "As explicações paraas notícias serem o que são só terão interesse se pressupomos quenão é óbvio as notícias serem o que são. Se estivermos convenci-dos de que as notícias apenas espelham o mundo exterior ou quesimplesmente imprimem os pontos de vista da classe dominante,nesse caso não é necessário mais nenhuma explicação."(Schudson,1988: 17) Por isso, para compreender as notícias, segundo Schud-son (1988), há que conciliar várias explicações. Isoladas, essasexplicações são insuficientes para explicar as notícias que temose por que elas são como são, mas em conjunto revelam todo o seupoder explicativo:

a) Acção pessoal –As notícias são um produto das pessoas edas suas intenções.

b) Acção social –As notícias são um produto das organiza-ções noticiosas, da sua forma de se adaptarem ao meio e dos seusconstrangimentos, independentemente das intenções pessoais dosintervenientes no processo jornalístico de produção de informa-ção.

c) Acção cultural – As notícias são um produto da cultura edos limites do concebível que uma cultura impõe, independente-mente das intenções pessoais e dos constrangimentos organizaci-onais.

Ao reconhecer as insuficiências das explicações unidimensi-onais e ao cruzar essas explicações para explicar por que é queas notícias são como são, Michael Schudson dá pistas para se ali-cerçar uma teoria unificada do jornalismo, no que diz respeito aoprocesso de produção de informação.

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Por seu turno, ao estudar o processo degatekeepingno jor-nalismo, Pamela Shoemaker (1991), baseada nos resultados depesquisas anteriores, deu conta da existência de diversos factoresque influenciam esse processo. Esses factores foram agregadospela autora em quatro níveis de influência:

a) A um nível individual , o processo degatekeepingé in-fluenciado por modelos de pensamento, pela heurística cognitiva,por valores e características pessoais, pela concepção que os in-tervenientes no processo têm do seu papel social, etc.

b) Entre o nível individual e um terceiro nível, o processo éinfluenciado pelasrotinas produtivas;

c) A um nívelorganizacional, o processo de selecção e pro-dução de informação é constrangido pelas características organi-zacionais (recursos, hierarquias, etc.), pelos processos organiza-cionais de socialização dos jornalistas e pelas dinâmicas própriasque a organização noticiosa estabelece com o meio;

d) A um nívelsocial, institucional, extra-organizacional, oprocesso degatekeepingé influenciado pelas fontes de informa-ção, pelas audiências, pelos mercados, pelas entidades publici-tárias, pelos poderes políticos, judiciais, etc., pelos lóbis, pelosserviços de relações públicas, por outros meios jornalísticos, etc.

Resumindo, ao explicar o processo de gatekeeping, PamelaShoemaker montou as bases para a edificação de uma teoria uni-ficada capaz de explicar o processo jornalístico de produção deinformação, com base na interacção de diferentes forças. Maistarde, Pamela Shoemaker e Stephen Reese (1991; 1996) voltarama essa temática, tendo complementado e aprofundado a explica-ção inicial de Shoemaker. Do trabalho de 1996, publicado soba forma de livro (Mediating the Message - Theories of Influen-ces on Mass Media Content), resultou a construção de uma teoria

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unificada dos conteúdos noticiosos, ligada, ademais, aos efeitosdesses conteúdos. Tal como no livroGatekeeping(1991), de Sho-emaker, os autores deMediating the Messageestruturam a suateoria da notícia em vários níveis de influência: a) influências dostrabalhadores dosmedia; b) influências dasrotinas produtivas;c) influênciasorganizacionais; d) influências domeio externoàsorganizações noticiosas; e e) Influênciasideológicas.

Conforme é notório, em relação ao trabalho de Shoemaker de1991, os autores reconhecem a importância da ideologia como umfactor capaz de influenciar o conteúdo das notícias. Agregando asideias de Shoemaker e Reese às de Schudson, e tendo em contaas perspectivas "divisionistas"de Traquina (2001; 2002), é possí-vel perceber que numa coisa os estudiosos do jornalismo estão deacordo:os resultados das pesquisas colocam em evidência quefactores de natureza pessoal, social (organizacional e extra-organizacional), ideológica e cultural enformam e constran-gem as notícias. Uma teoria unificada do jornalismo tem de par-tir desse património comum de conhecimento científico sobre ojornalismo.

5 Circulação, consumo e efeitos das notícias

Uma teoria unificada do jornalismo e da notícia fica incompleta senão lhe for agregada a componente dos efeitos das notícias. Sho-emaker e Reese (1991; 1996: 258-260), por exemplo, chamam aatenção para a necessidade de se interligarem os efeitos das no-tícias e as influências sobre os conteúdos noticiosos numa teoriaunificada da notícia (ou do jornalismo). Os autores argumentamque é necessário conhecer os conteúdos das notícias para se per-ceberem os respectivos efeitos; e que só se percebem os efeitosquando se conhecem os conteúdos. Por outras palavras, pode-sedizer que a notícia apenas se esgota na sua fase de consumo, que é,precisamente, a fase em que produz efeitos. Além disso, Shoema-ker e Reese (1991; 1996: 260) realçam que os efeitos das notíciassobre a sociedade, as instituições e os poderes podem, por sua

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vez, repercutir-se retroactivamente sobre os meios jornalísticos e,portanto, sobre as notícias e os seus conteúdos.

A concepção dos efeitos das notícias deve partir da teoria dadependência, proposta por Ball-Rokeach e DeFleur (1976). Paraestes autores, os meios de comunicação, nos quais se incluem osmeios jornalísticos, são a principal fonte de informação que a so-ciedade tem sobre si mesma. São também os meios de comunica-ção os agentes mais relevantes para pôr em contacto os múltiplossubsistemas sociais. Assim, as pessoas, os grupos, as organiza-ções e a sociedade em geraldependemdos meios de comunicaçãopara se manterem informados e para receberem orientações rele-vantes para a vida quotidiana. Quanto mais uma sociedade estásujeita à instabilidade ou à mudança, mais as pessoas, os grupose as organizações dependem da comunicação social paracompre-enderemo que acontece,receberem orientaçõese saberem comoagir.

O modelo da dependência desenvolvido por Ball-Rokeach eDeFleur (1982; 1993) tem também a vantagem de sistematizarmuito pertinentemente os efeitos da comunicação social e, por-tanto, das notícias. Esses efeitos circunscrevem-se a três catego-rias: efeitos cognitivos (teorias do agenda-setting, da tematiza-ção, da construção social da realidade, do cultivo, da socializa-ção pelosmedia, do distanciamento social, da espiral do silêncio,etc.) efeitos afectivos (teoria dos usos e gratificações, etc.) e efei-tos comportamentais (consequência dos outros dois tipos de efei-tos). A grande vantagem desta sistematização é facultar a integra-ção de diversas "teorias"dos efeitos nessas três grandes macro-categorias, principalmente quando se pensa nos efeitos pessoaisdas notícias.

• Efeitos cognitivosAs notícias produzem efeitos cognitivos pois moldam aspercepções que se têm da realidade ("teorias"da constru-ção social da realidade), podendo mesmo levar as pessoas atomarem atitudes e formarem cognições mais baseadas nos

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conteúdos das notícias do que na própria realidade ("teo-ria"do cultivo); contribuem para a formação de atitudes epara a socialização e a aculturação ("teorias"da socializa-ção pelosmedia); reforçam ou colocam em questão deter-minadas crenças; cultivam valores e propõem a adesão ou arejeição de novos valores (teoria do cultivo); geram o agen-damento público de temáticas relevantes para a vida daspessoas ("teorias"do agenda-setting e da tematização); con-correm para a aquisição de conhecimentos e para o aumentoou diminuição da distância que separa as pessoas em termosde conhecimento ("teoria"do distanciamento social); levama que por vezes as pessoas pensem que pertencem a gruposmaioritários por verem constantemente as suas ideias e mo-dos de vida reflectidos nosmedia, ou, pelo contrário, levamas pessoas a pensarem que estão isoladas ou pertencem agrupos minoritários por não verem as suas ideias e modosde vida reflectidos nosmedia, tendendo a silenciar-se ("te-oria"da espiral do silêncio), etc.10

• Efeitos afectivosAs notícias provocam emoções e sentimentos. Mesmo diri-gidas à razão, colateralmente atingem a emoção. Esta é umadas explicações para o facto de as pessoas, por vezes, con-sumirem activamente informação jornalística de maneira asentirem-se gratificadas ("teoria"dos usos e gratificações).As notícias também podem contribuir para a atenuação ouintensificação dos afectos, por exemplo, através da exposi-ção prolongada a mensagens violentas, no primeiro caso,ou através de mensagens afectivas, no segundo caso; po-dem concorrer para o desenvolvimento de sentimentos demedo e insegurança e até de ansiedade e pânico; e aindapodem ter efeitos ao nível da moral e da alienação, pelo fo-mento da integração ou, pelo contrário, da desagregação de

10 Para uma abordagem mais exaustiva destas teorias, consulte-se Sousa(2003) ou Sousa (2000).

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grupos, organizações e dos membros de uma sociedade emgeral.

• Efeitos comportamentaisAs notícias podem ter efeitos sobre a conduta das pessoas,activando ou desactivando comportamentos. Os efeitos com-portamentais são a consequência dos efeitos cognitivos eafectivos.

É necessário ter-se em consideração que quando se fala deefeitos das notícias se fala de efeitos possíveis ou mesmo pro-váveis a larga escala. No entanto, convém não ignorar que, emúltima análise, os efeitos de uma notícia são relativos, pois de-pendem de cada consumidor da mesma em particular11.

6 A Teoria Multifactorial da Notícia (enquantoTeoria do Jornalismo)

Recordando o atrás sustentado, uma teoria do jornalismo devepartir da observação de que há notícias jornalísticas12 e de queestas têm efeitos. Em resultado desta evidência, uma teoria dojornalismo deve centrar-se no produto jornalístico -a notícia jorna-lística, explicando como surge, como se difunde e quais os efeitosque gera. Em suma, a teoria do jornalismo deve consubstancializar-se como uma teoria da notícia e responder a duas questões: a) Porque é que as notícias são como são e por que é que temos as no-tícias que temos (circulação)? b) Quais os efeitos que as notíciasgeram?

Uma teoria da notícia, à semelhança de outras teorias cientí-ficas, deve ser enunciada de maneira breve e clara, deve ser uni-

11 Para uma mais completa argumentação, consultar Sousa (2000) ou Sousa(2003).

12 Ou seja, há notícias produzidas pelo sistema jornalístico a partir de refe-rentes reais.

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versal, deve ser traduzível matematicamente e deve ainda ser pre-dictiva. Deve atentar no que une e é constante e não no que éacidental. Isto significa que o enunciado da teoria deve ser con-tido, explícito e aplicável a toda e qualquer notícia que se tenhafeito ou venha a fazer.

Os resultados das pesquisas realizadas no campo dos estudosjornalísticos permitem percepcionar que (1) a notícia jornalística éo produto da interacção histórica e presente (sincrética) de forçaspessoais, sociais (organizacionais e extra-organizacionais), ide-ológicas, culturais, históricas e do meio físico e dos dispositivostecnológicos que intervêm na sua produçãoe através dos quaissão difundidas; e (2) que as notícias têm efeitoscognitivos, afec-tivose comportamentaissobre as pessoas e, através delas, sobreas sociedades, as ideologias, as culturas e as civilizações.

Matematicamente, a teoria pode traduzir-se por três equaçõesmultifactoriais interligadas num sistema, daí que a teoria aqui ex-pressa possa denominar-seTeoria Multifactorial da Notícia . Amatematização permite identificar, delimitar, agrupar, sistemati-zar e sintetizar quer (1) os macrovectores estruturantes das notí-cias, ou seja, as forças em que se integram todos os microfactoresque geram e conformam as notícias, quer (2) os macrovectores es-truturantes dos efeitos das notícias, ou seja, os macro-efeitos ondese podem integrar todas as modificações observáveis que as no-tícias provocam ou podem provocar nas pessoas e através destasnas sociedades e nas civilizações.

A matematização não escamoteia a complexidade dos facto-res que impulsionam e direccionam a construção das notícias nema complexidade dos efeitos das mesmas. A matematização per-mite apenas explicitar os macrovectores estruturantes da constru-ção das notícias e dos seus efeitos. A linearidade das equaçõesajuda a clarificar o processo. Porém, como mostram as equações,os processos equacionados são complexos, pois a notícia e os seusefeitos aparecem como um produto de múltiplos factores, que in-terferem nesses processos de forma variável.

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A Teoria Multifactorial da Notícia pode, então, ser traduzidacom as seguintes três equações:

(1)

(2)

(3)

6.1 Primeira equação (1)A primeira equação do sistema mostra que anotícia (N) é umafunção(f) do produto (ou interacção) de várias forças, segundoos resultados das pesquisas que têm vindo a ser produzidas sobreo campo jornalístico (Sousa, 2000; Sousa, 2003; Traquina, 2003;Shoemaker e Reese, 1991, 1996), a saber:

• Força pessoal (Fp) –As notícias resultam parcialmente daspessoas e das suas intenções, da capacidade pessoal dosseus autores e dos actores que nela e sobre ela intervêm.

• Rotinas (R) – As notícias resultam parcialmente das ro-tinas dos seus autores, normalmente consubstanciadas empráticas profissionais e organizacionais.

• Força social –As notícias são fruto das dinâmicas e dosconstrangimentos do sistema social (força social extra - or-ganizacional - Fseo)e do meio organizacional em que fo-ram construídas e fabricadas (força sócio-organizacional -Fso).

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18 Jorge Pedro Sousa

• Força ideológica (Fi) –As notícias são originadas por con-juntos de ideias que moldam processos sociais, proporcio-nam referentes comuns e dão coesão aos grupos, normal-mente em função de interesses, mesmo quando esses inte-resses não são conscientes e assumidos.

• Força cultural (Fc) – As notícias são um produto do sis-tema cultural em que são produzidas, que condiciona queras perspectivas que se têm do mundo quer a significaçãoque se atribui a esse mesmo mundo (mundividência).

• Força do meio físico (Fmf) –As notícias dependem domeio físico em que são fabricadas.

• Força dos dispositivos tecnológicos (Fdt) –As notíciasdependem dos dispositivos tecnológicos usados no seu pro-cesso de fabrico e difusão.

• Força histórica (Fh) –As notícias são um produto da histó-ria, durante a qual agiram as restantes forças que enformamas notícias que existem no presente. A história proporcionaos formatos, as maneiras de narrar e descrever, os meios deprodução e difusão, etc.; o presente fornece o referente quesustenta o conteúdo e as circunstâncias actuais de produ-ção. Ao ser simultaneamente histórica e presente, a notíciaésincrética.

Há ainda a considerar que as diferentes forças que se fazemsentir sobre as notícias não têm sempre o mesmo grau de influên-cia na construção das mesmas. Daí que subsista a necessidadese introduzirem variáveis que dêem conta dessa variabilidade dograu de influência dos factores. Assim, todos os factores da pri-meira equação do sistema são antecedidos por uma variável (α1 aη1).

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As evidências que conduzem à primeira equação

Os resultados das pesquisas que têm vindo a ser produzidas so-bre o campo jornalístico permitem alicerçar a primeira equaçãoda teoria13. Vejamos alguns exemplos, necessariamente de formamuito resumida:

• Força pessoal

Desde que White (1950) lançou os estudos com base na útilmetáfora dogatekeepingque se estuda o papel do jornalista, en-quanto pessoa individual, na conformação da notícia. No seu es-tudo pioneiro, o autor concluiu que a selecção das notícias é umprocesso subjectivo, fortemente influenciado pelas experiências,valores e expectativas dogatekeeper. Essas ideias foram revistas,no sentido de enfatizar factores como os constrangimentos orga-nizacionais, mas não foram abandonadas. Por exemplo, os estu-dos sobre “o que vai na mente"dos jornalistas, nomeadamente nocampo do papel das cognições, mostram que há, intencional ouinvoluntariamente, influências pessoais sobre as notícias. Stoc-king e Gross (1989) provaram que os jornalistas fazem um usoadaptado de rotinas cognitivas que lhes são familiares para or-ganizar as informações e produzir sentido e tendem a procurar eseleccionar informações que confirmam as suas convicções.

A auto-imagem que cada jornalista tem do seu papel pessoalpode, igualmente, ser um factor influente na selecção de informa-ção. Por exemplo, Johnstone, Slawski e Bowman (1972) mostra-ram que alguns jornalistas se consideravam “neutros”, perspec-tivando as suas profissões como meros canais de transmissão, eque outros se viam como "participantes", acreditando que os jor-nalistas necessitam de pesquisar para descobrir e desenvolver ashistórias. A auto-imagem que cada jornalista tem do seu papelinfluencia, portanto, a construção das notícias.

13 Nos livros de Sousa (2000; 2002; 2003), Shoemaker e Reese (1991; 1996)e Shoemaker (1991) encontram-se abundantes referências aos resultados daspesquisas sobre jornalismo, sistematizados de acordo com a tese apresentada.

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Se bem que as notícias possam reter marcas das fontes, o queé manifestamente uma forma de manifestação pessoal sobre asnotícias, os jornalistas não são meros agentes passivos peranteas fontes, negociando com elas informações e seus significados.Por este motivo, e uma vez que há contactos entre a organizaçãonoticiosa e as fontes através dos jornalistas, as relações entre estese as fontes de informação podem melhor situar-se na esfera socialextra-organizacional.

• Rotinas

As rotinas produtivas situam-se a meio caminho entre a forçapessoal e a força social, pois correspondem a formas mecanicistaspessoais de proceder, embora esses mecanicismos representem,igualmente, uma maneira de os jornalistas se defenderem de críti-cas e de as organizações noticiosas fazerem estrategicamente faceao imprevisto e conseguirem garantir que o produto informativose faz (Tuchman, 1972; 1978).

• Força Social

A pesquisa tem demonstrado que, independentemente da von-tade dos jornalistas, apenas uma pequena parcela de factos seconverte em notícia. Os estudos sobrenewsmakinglançam al-guma luz sobre esse fenómeno, enfatizando vários mecanismosque transcendem a acção pessoal do jornalista, entre os quais aforça social, que se pode situar em diferentes níveis: umaforçasócio-organizacional(que se refere aos constrangimentos decor-rentes das organizações noticiosas) e umaforça social extra -organizacional(referente a todos os constrangimentos que influ-enciam o jornalismo a partir do exterior).

Ao nível organizacional, as notícias são influenciadas por fac-tores como a rede que estendem para pescar acontecimentos dig-nos de se tornarem notícia (Tuchman, 1978), o desejo de lucro(Gaunt, 1990), os mecanismos de socialização que impelem osjornalistas a seguir as normas organizacionais (Breed, 1955), a

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competição entre editores e editorias (Sigal, 1973), os recursoshumanos e materiais (Sousa, 1997), a hierarquia e a organizaçãointernas (Sousa, 1997), a dimensão e a burocracia interna (Shoe-maker e Reese, 1996), os constrangimentos temporais (Schlesin-ger, 1977), etc.

Ao nível extra-organizacional, as notícias são influenciadaspor factores como a audiência e o mercado (Gaunt, 1990; Kerwin,1993), as relações (problemáticas) estabelecidas entre jornalistase fontes de informação, com prevalência dos canais de rotina14

(Sigal, 1973), etc.

• Força ideológica

Pode considerar-se a ideologia como um mecanismo simbó-lico que, integrando um sistema de ideias, cimenta a coesão e in-tegração de um grupo social em função de interesses, conscientesou não conscientes (a cultura também cimenta coesões, mas nãoem função de interesses).

A força ideológica sobre as notícias exerce-se a vários níveis.Embora não se possa excluir que as ideologias políticas possaminterferir na orientação dos órgãos de comunicação social e na ac-tuação dos jornalistas, nos estados de direito democráticos e nasempresas jornalísticas profissionalizadas as principais ideologiasque moldam as notícias são as ideologias profissionais dos jorna-listas, em concreto a ideologia da objectividade e a ideologia doprofissionalismo (Sousa, 1997; 2000; 2002). Ambas as ideolo-gias procuram relegitimar continuamente a função dos jornalistasnas sociedades democráticas. A ideologia da objectividade, porexemplo, é, segundo Sousa (2000; 2002) uma das causas da ori-entação descritiva e factual das notícias, da ambição mimética emrelação à realidade que as notícias tornam explícita, da identifi-cação sistemática das fontes de informação nos enunciados no-ticiosos, da rede de facticidade (Tuchman, 1972; 1978), etc. A

14 São muitas as pesquisas sobre as relações entre jornalistas e fontes. Con-sultar, por exemplo, Sousa (2000; 2002) ou Santos (1997).

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ideologia do profissionalismo desenvolve alguns dos mais nobresideais do jornalismo, indiciados nos conteúdos noticiosos: cora-gem para reportar mesmo em situações de perigo, algumas delascolocando em causa a própria vida do jornalista; vontade de sepa-rar desejos e ideias pessoais da actuação profissional, etc. (Sousa,1997; 2000; 2002).

As notícias também tendem a possuir um conteúdo ideológicoque decorre, sobretudo, das práticas profissionais. Nesse caso,as notícias transformam-se num produto para a amplificação dospoderes dominantes, para a definição do legítimo e do ilegítimo,do normal e do anormal e para a sustentação dostatu quo(Hall,1978; Shoemaker e Reese, 1996).

• Força cultural

Os processos denewsmakingocorrem num sistema sócio -cultural. As notícias transportam consigo os “enquadramentosculturais” (frames) em que foram produzidas. Por vezes, não ha-vendo outros enquadramentos disponíveis, os jornalistas usam en-quadramentos já usados para interpretar os novos acontecimentos(Traquina, 1988).

Karl Manoff (1986) e Gaye Tuchman (1976; 1978) fizeramnotar que a escolha de umframenão é inteiramente livre, poisdepende do “catálogo deframesdisponíveis” num determinadomomento sócio-histórico-cultural, isto é, depende do aspecto queo real assume nesse momento.

Elisabeth Bird e Robert Dardenne (1988) falam das notíciascomo sendo construídas no seio de uma gramática da cultura.São, assim, representativas dessa cultura e ajudam a compreen-der os seus valores e símbolos. Inclusivamente, enquanto narra-tivas míticas, as notícias possuem códigos simbólicos reconheci-dos pela audiência. Por exemplo, as notícias, segundo os autores,recriam um sentimento de segurança ao promoverem uma certaordem e ao estabelecerem fronteiras para o comportamento acei-tável. Shoemaker e Reese (1996: 114) dizem, por seu turno, queas histórias jornalísticas, para serem atraentes, tendem a integrar

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os mitos, parábolas, lendas e histórias orais mais proeminentesnuma determinada cultura.

Por seu turno, Hall (1978) assinalou que no processo jorna-lístico de fabrico de informação é mobilizado um inventário dodiscurso. Neste processo, os jornalistas não se limitam a usar de-finições culturalmente determinadas, pois têm de integrar novassituações em velhas definições. Do mesmo modo, para Phillips(1976), um acontecimento deve corresponder ao esperado (valorda consonância). Por isso, as notícias são repetitivas, o que acen-tua a sensação de que existe novidade sem mudança. Segundo E.Barbara Phillips, os jornalistas têm ainda uma linguagem própria,que Nelson Traquina (1993) traduz como jornalês.

É possível usar o conteúdo das notícias como ponto de partidapara a compreensão da produção cultural pelo sistema jornalís-tico. Três exemplos. Nimmo e Combs (1983) estudaram comoos news mediarepresentavam a realidade, a partir da lógica darepresentação dramática - actores, actos, cena, motivos, cenáriose agente sancionador (a fonte principal que justifica os aconte-cimentos, as acções e a conclusão dos dramas). Robert Smith(1979), por seu lado, estudou várias estações de televisão, tendoconcluído que usavam nas notícias um número considerável denarrativas consistentes e previsíveis, entre as quais 83% poderiamser classificadas em três categorias: 1) “homem decide”; 2) “so-frimento”; e 3) “vilão apanhado”.Michael Schudson (1988), porsua vez, diz que as notícias podem ser vistas na perspectiva dosgéneros literários, assemelhando-se a romances, tragédias, comé-dias e sátiras. As páginas sociais de um jornal são como um ro-mance, que pode, contudo, ser mesclado de comédia. A reporta-gem de um incêndio já é uma tragédia. Algumas notícias de polí-cia são quase uma forma abreviadíssima de romance policial. ParaSchudson, as notícias são semelhantes porque as pessoas contamhistórias de forma semelhante.

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• Forças do meio físico e dos dispositivos tecnológicos

Não há muitos estudos sobre a influência do meio físico so-bre o trabalho jornalístico. De qualquer modo, é quase intuitivodizer-se que um jornalista pode produzir mais e melhor num localapropriado ao seu trabalho do que num escritório inadequado edesconfortável.

Por outro lado, os estudos sobre a aparição das novas tecnolo-gias no quotidiano das redacções (computadores, telecomunica-ções, Internet) e a emergência do jornalismo on-line têm relevadoa influência dos dispositivos tecnológicos sobre os processos jor-nalísticos. Os meios informáticos permitem ao jornalista corrigir,rever e alterar facilmente os textos, coisa que não acontecia comas antigas e pesadas máquinas de escrever. Com a redacção ligadaem rede, as chefias podem rapidamente rever, corrigir e rescrevertextos. Mas há mais exemplos da influência dos dispositivos tec-nológicos sobre os formatos e conteúdos das notícias. Por exem-plo, o cruzamento de texto e infografia, possibilitado pela infor-mática, contribuiu para a generalização e para a reformulação dasformas de noticiar, criando novos géneros jornalísticos – os info-gráficos. No patamar dos conteúdos, o jornalismo assistido porcomputador e as redes informáticas, em particular a Internet, dãotambém ao jornalista novos instrumentos de busca de informaçãoque ajudam transformar as notícias. Mas a Internet também temdiminuído a importância da figura do jornalista como gestor pri-vilegiado dos fluxos de informação no meio social. Há, porém,a considerar que a sobrecarga informativa também pode não serbenéfica e aproveitável para o cidadão, pelo que os jornalistas,no futuro, poderão ter um importante papel a desempenhar comoanalistas e selectores de informação.

Com a introdução dos computadores tornou-se também maisfácil e de difícil detecção manipular digitalmente imagens e atécriá-las (Sousa, 1997).

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• Força histórica

Os diferentes tipos de forças que enformam a notícia num de-terminado momento fizeram-se igualmente sentir ao longo da his-tória. Por seu turno, a evolução histórica reflecte-se sobre essesmesmos factores na actualidade. Pode-se, assim, dizer que as no-tícias que temos são fruto da história. Vários dados fundamentama asserção. Por exemplo, os avanços nos processos de transmis-são e difusão de informação trouxeram novas formas de noticiar.O critério de noticiabilidade da “actualidade” ganhou uma dimen-são mais relevante a partir do aparecimento do telégrafo. Por ou-tro lado, e ainda como exemplo, a urbanização e a organização doterritório permitiram a concentração de consumidores de informa-ção em núcleos urbanos, facilitando a distribuição de jornais. Estefactor, aliado à alfabetização, contribuiu para o aparecimento dosprimeiros jornais generalistas (Álvarez, 1992).

Outros factores históricos marcaram o desenvolvimento dojornalismo. Por exemplo, ao longo dos anos tem-se assistido aoalargamento do conjunto de temas noticiáveis, devido, entre ou-tras razões, à evolução dosframesculturais (Álvarez, 1992). A in-fluência das vitaminas na saúde dificilmente seria um tema eleitopara notícia há décadas atrás, mas agora é-o. Nos anos sessenta,a corrente que ficou conhecida por (segundo) “Novo Jornalismo”,por seu turno, contribuiu para colocar a perspectiva do jornalista,necessariamente subjectiva e impressiva, no centro da enuncia-ção noticiosa. A evolução recente do jornalismo para a análise(v.g., Barnhurst e Mutz, 1997) terá beneficiado desse movimento,tal como terá beneficiado de factores como a televisão, onde ojornalista-vedeta assume uma posição central.

Um registo curioso da evolução histórica do jornalismo podedelinear-se a partir da tese do primeiro doutor em Comunicação,Tobias Peucer. Peucer debruçou-se, em 1690, sobre a forma derelatar notícias, tendo identificado alguns fenómenos paleojorna-lísticos antigos. Por exemplo, antigos gregos, como Homero, ouantigos romanos, como Júlio César, já usavam nas suas narrativasformas de estruturação textual (dispositio) semelhantes à técnica

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da pirâmide invertida. O próprio Peucer, na sua tese doutoral, in-tituladaDe Relationibus Novellis, propunha que no relato “notici-oso” se respeitassem escrupulosamente as regras que mandavamindicar o sujeito, objecto, causa, maneira, lugar e tempo. Esteselementa narrationisacabam por corresponder às seis questõesa que tradicionalmente se dá resposta na notícia: “Quem?”, “OQuê?”, “Quando?”, “Onde?”, “Como?” e Porquê?” (Casasús eLadevéze, 1991). Vê-se, assim, que certas técnicas jornalísticastêm raízes históricas profundas, apesar de, por vezes, haver inova-ções, como a entrevista de pergunta-resposta, que surgiu no séculopassado. Com frequência, contamos histórias de maneira seme-lhante à forma como os nossos antepassados as contavam. Mesmoformas alternativas de estruturar o texto noticioso, como o relatocronológico, a técnica da pirâmide normal ou a introdução de uminício e de um final fortes no texto obedecem a fórmulas retóricasa que os nossos antepassados recorriam, respectivamente omo-dus per tempora, o modus per incrementae o relato nestoriano(Casasús e Ladevéze, 1991).

6.2 Segunda (2) e terceira equações (3)A segunda equação do sistema evidencia que, a nível pessoal(Ep), os efeitos fisiológicos (F), afectivos (A), cognitivos (C1)e comportamentais (C2) de uma notícia (N)15 são uma função(g) do produto (ou interacção) das seguintes variáveis:

• Notícia – Os efeitos de uma notícia dependem da próprianotícia. Atendendo a que cada notícia tem um formato eum conteúdo, influenciando ambos o processo de percep-ção, recepção e integração da mensagem, então a variávelnotícia deve segmentar-se em duas variáveis, oformato danotícia (Nf) e oconteúdo da notícia (Nc).

15 Usa-se, conforme atrás enunciado, a sistematização dos efeitos da comu-nicação proposta por Ball-Rokeach e DeFleur (1982; 1993).

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• Pessoa (P) –Os efeitos de uma notícia dependem da pessoaque a consome, da capacidade perceptiva dos seus sentidos,da sua estrutura mental, da sua personalidade, da sua expe-riência, da sua mundivivência, da sua mundividência, etc.

• Circunstâncias (C) –Os efeitos da notícia dependem dascircunstâncias (C)da pessoa que a recebe. As circunstân-cias que rodeiam a pessoa respeitam aomeio em que a no-tícia é difundida (Cm), àscondições físicas da recepção(Cf), àsociedade (Cs), à ideologia (Ci), àcultura (Cc) e àprópriahistória (Ch)16.

As notícias nem sempre provocam efeitos cognitivos, afecti-vos e comportamentais de idêntica grandeza. Por isso, tambémna segunda equação é necessário introduzirem-se variáveis, destafeita para darem conta da dimensão de cada efeito. Em con-sequência, os factores expressos na segunda equação são ante-cedidos por uma variável (α2 a η2), a exemplo do que sucede naprimeira equação, para dar conta do peso de cada efeito.

A terceira equação dá conta dosefeitos sociais, ideológicos eculturais (Esic) de uma notícia (N), evidenciando que estes va-riam, genericamente, em função do produto dos mesmos factoresjá expressos na segunda equação, com diferentes pesos [tambémna terceira equação se tem de considerar que o peso de cada fac-tor na função pode não ser idêntico, pelo que se têm de introduzirvariáveis (α3 a η3)], mas com a diferença de que se tem de intro-duzir a ideia da interacção entre as pessoas (P1 x P2 x . . . x Pn)para representar mecanismos como os da conversação, capazesde contribuir para a mediação dos efeitos sociais, ideológicos eculturais das notícias (ver, por exemplo: Sousa, 2003).

Os efeitos sociais, ideológicos e culturais das notícias são, ge-nericamente, aqueles que são apresentados por diferentes escolasde pensamento comunicacional e várias teorias da comunicação.

16 Várias pesquisas sustentam esta ideia. Veja-se, por exemplo: Sousa(2000) ou Sousa (2003).

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Por exemplo, as escolas críticas, como a Escola de Frankfurt,mostram que as notícias orientam ideologicamente a sociedadeno sentido da manutenção dostatu quo, embora em grande me-dida essa orientação seja co-determinada pela cultura e modos devida (estudos culturais, Escola de Birmingham)17. Ainda a títulode exemplo, estudos no âmbito do agendamento (agenda-setting)mostram que na sociedade se estabelecem agendas de assuntossobre os quais as pessoas falam, co-determinando o que social eculturalmente é considerado como importante, sendo que essasagendas são influenciadas pelas notícias. Outro exemplo suscep-tível de evidenciar que as notícias têm efeitos sociais e culturaisao nível de povos e países inteiros poderia ser tirado da teoria dodistanciamento social, que enfatiza quanto o poder depende doconhecimento e quanto este depende do acesso à informação e dacapacidade funcional de aproveitamento dessa mesma informa-ção18.

7 Testando o modelo

Atendendo a que os efeitos pessoais, sociais, ideológicos e cul-turais da comunicação jornalística e as circunstâncias de que de-pendem a ocorrência e a intensidade desses efeitos são explicita-dos pelas teorias dos efeitos da comunicação, o modelo de efei-tos expresso na segunda e na terceira equação remete para todaa produção teórica que tem sido produzida e que se encontra nasvastas obras sobre teoria da comunicação (por exemplo: Sousa2000; 2002; 2003). Assim, a segunda e a terceira equação apenasvisam clarificar e sistematizar as variáveis intervenientes nesseprocesso, dando conta da forma como interagem. Por exemplo,como vimos, a teoria do agendamento mostra que a inscrição emanutenção de determinados assuntos na agenda pública (efeitosocial) depende de factores como (1) a cognição que cada pessoatem das notícias (efeito pessoal); (2) a conversação e demais in-

17 Para melhor explicitação, consultar: Sousa (2000) ou Sousa (2003).18 Para melhor explicitação, consultar: Sousa (2000) ou Sousa (2003).

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teracções entre as pessoas através da comunicação interpessoal,tendo a notícia por referente; (3) os meios que transmitem a notí-cia (por exemplo, a capacidade de agendamento da televisão e daimprensa é superior à dos restantes meios); e (4) o entendimentocultural e ideológico do que é considerado importante (do que éconsiderado notícia) num determinado momento histórico.

Ao contrário das restantes equações, aprimeira equação re-presenta uma nova e mais completa forma de sistematizar os fac-tores que afectam a produção noticiosa. Ela é o coração da TeoriaMultifactorial da Notícia que aqui se propõe. Portanto, torna-senecessário testá-la, aplicando a várias notícias a análise de facto-res que subjaz às equações, com o objectivo de verificar se as notí-cias dependem efectivamente da conjugação de factores pessoais,sociais, rotineiros, culturais, ideológicos, históricos, do meio fí-sico e dos dispositivos tecnológicos.

Como vimos, a primeira equação traduz matematicamente aideia de que é possível unificar as explicações para as notíciasserem aquilo que são num enunciado teórico claro e predictivoque parte da evidência resultante dos estudos jornalísticos. Asnotícias, podendo indiciar a realidade que referem, também indi-ciam as suas circunstâncias de produção, reveladas nas numerosaspesquisas que constituem o corpo da teoria do jornalismo. Essemecanismo torna possível identificar nas notícias os resultadosdas forças que sobre elas se fazem sentir, impulsionando, direc-cionando e constrangendo a sua produção. Vejamos, em algunsexemplos, como é possível identificar essas forças. No primeirocaso temos uma notícia de 1864 (extraída do primeiro número doDiário de Notícias) e no segundo caso uma notícia recente.

Notícia 1

Suas Magestades e Altezas passam sem novidade em suas im-portantes saúdes.

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Notícia 2

O Presidente da República vai ser submetido a uma cirurgiacardiovascular no próximo mês de Junho, anunciou a Presidênciada República.

O Presidente vai colocar um by-pass coronário, aparelho quepossibilita a circulação do sangue quando os vasos sanguíneosestão semi-obstruídos.

Segundo a Presidência da República, trata-se de uma opera-ção delicada mas comum, que obrigará o Presidente a três sema-nas de internamento.

A cirurgia será feita no Hospital da Cruz Vermelha, em Lis-boa, pela equipa do professor José Luís Santos, que nos últimoscinco anos operou mais de 750 doentes, com uma taxa de sucessode 99 por cento.19

O que ambas as notícias nos revelam sobre si mesmas e sobreas circunstâncias e o contexto em que foram produzidas? Pararesponder a esta questão, vamos analisar, com base nos itens queconsiderarmos mais relevantes, as forças que elas indiciam, par-tindo de um cenário macroscópico. Não poderemos falar de todosos itens de que gostaríamos, por motivos que se prendem com aausência de espaço e com o desconhecimento de algumas das cir-cunstâncias que impulsionaram, direccionaram e constrangeramo fabrico das notícias em causa, mas estamos certos de que o testea que iremos proceder é suficiente para mostrar como a teoria uni-ficada da notícia proposta por Sousa (2000; 2002) é pertinente.

• Forças cultural e histórica

– A primeira notícia é uma notícia de um não-acontecimento.Justifica-se porque foi publicada num contexto de pobreza infor-

19 Notícia verídica com alguns nomes e circunstâncias alterados para pro-tecção dos visados.

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mativa20 que obrigava a imprensa noticiosa nascente21 a aprovei-tar tudo o que se parecesse com uma novidade interessante paraencher o espaço editorial. A segunda notícia é uma notícia deum verdadeiro acontecimento (a doença do Presidente da Repú-blica obriga a uma intervenção cirúrgica) metamorfoseado numacontecimento de rotina (a assessora de comunicação da Presi-dência encarrega-se de promover o acontecimento à categoria denotícia22 e os órgãos de comunicação social aproveitam-na não sódevido ao seu interesse noticioso mas também porque, rotineira-mente, publicam as informações oriundas dos principais órgãosdo Estado).

– As notícias referem-se ao estado de saúde dos máximos re-presentantes do país. Os factos a que elas se referem apenas setornaram notícias porque determinados enquadramentos (oufra-mes) culturais23 os permitem ver como factos notáveis e dignos

20 Pouca era a informação circulante em Portugal.21 A imprensa noticiosa contemporânea tem raízes directas na primeira ge-

ração da imprensa popular que desponta nos Estados Unidos nos anos vinte etrinta do século XIX e na imprensa de negócios que floresce a partir do séculoXVIII. Essa primeira vaga de jornalismo predominantemente noticioso (pennypress) vai-se impor ao jornalismo predominantemente opinativo (party press)até ao final do século XIX, por força de factores como o aumento da informa-ção circulante devido à generalização do telégrafo e à melhoria dos transportese das vias de comunicação. Em Portugal, a fundação doDiário de Notícias, nofim de 1864, assinala precisamente essa viragem noticiosa do jornalismo.

22 Molotch e Lester (1974) apresentaram o conceito de promotores de notí-cias para definir os indivíduos que procuram elevar determinados acontecimen-tos à categoria de notícias. Na segunda notícia, a assessora de comunicação daPresidência funciona como promotora.

Molotch e Lester (1974) baseiam-se nas figuras dos promotores para definirvários tipos de acontecimentos. Porém, no caso presente a definição de acon-tecimentos dos autores não é aplicável, pois a primeira notícia não teve umpromotor a não ser o próprio órgão de comunicação social e a segunda, em-bora tenha um promotor, é um acontecimento de rotina construído sobre umacidente, correspondendo, de certa forma, à rotinização do inesperado de quefalava Tuchman (1978).

23 Goffman (1975) foi o primeiro a teorizar sobre a noção de "enquadra-

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de se tornarem notícias. Explica Schudson (1988: 20) que numadeterminada sociedade só existe um número limitado de notícias,porque só determinados factos é que se inserem dentro dos limi-tes do que é concebível como notícia. Por isso, "As novidadessão comprimidas em velhos ficheiros"(Schudson, 1988: 24). Oestado de saúde dos governantes de Portugal é um desses velhosficheiros sempre recuperáveis, porque corresponde à forma da so-ciedade portuguesa ver o mundo e também porque, no contextosocial e político português, é relevante que os cidadãos conheçamo estado de saúde de quem os governa.

Os enquadramentos, complementados com constrangimentosde outra ordem, como a política editorial das empresas jornalís-ticas, estão na base dos critérios de noticiabilidade, ou seja, doscritérios susceptíveis de transformar acontecimentos em notícias.Neste caso, a referência a figuras de elite funciona como um crité-rio de noticiabilidade em ambas as notícias. Trata-se de um crité-rio de noticiabilidade perene, um critério que já promovia factosa notícias nos tempos dasActae Diurnae24 e que provavelmentecontinuará a regular a transformação de acontecimentos em notí-cias enquanto a sociedade mantiver uma estrutura sócio-políticaque impõe a existência de líderes e liderados.

A referência a personalidades de elite não é o único crité-rio de noticiabilidade que impulsionou a publicação das notícias.Baseando-nos na lista de critérios de noticiabilidade pela primeiravez proposta por Galtung e Ruge (1965), é possível identificar ou-tros critérios que permitiram aos jornalistas e responsáveis edito-riais enquadrar os factos relatados na categoria de notícias, comosejam o momento (ambas as notícias eram actuais quando foramdifundidas), a proximidade (ambas as notícias dizem respeito a

mento"ouframe. Um "enquadramento"corresponde às formas de organizar avida para dar sentido ao mundo social e para lhe dar respostas adequadas.

24 Antepassados remotos dos jornais, asActae Diurnae, instituídas por JúlioCésar, serviram inicialmente para dar conta dos debates no Senado de Roma etransformaram-se depois numa espécie de jornal administrativo difundido portodo o Império Romano, com notícias das vitórias das legiões, dos abasteci-mentos de cereais, da Corte Imperial, etc.

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temas que interessam sobretudo aos portugueses), a personaliza-ção (ambas as notícias dizem respeito a pessoas), a negatividade(apenas na segunda notícia) e ainda a inexistência de dúvidas so-bre os factos que relatam.

– Ambas as notícias só puderam ser publicamente difundidasporque Portugal goza e gozava de liberdade de imprensa, princí-pio caro às democracias liberais e que baseia o Modelo Ocidentalde jornalismo (McQuail, 1991; Hachten, 1996), sendo tambémum valor agregador dos jornalistas. As notícias acima seriam im-pensáveis em países como a Coreia do Norte ou mesmo a China,já que o secretismo isola do escrutínio público os dirigentes má-ximos desses países, em alguns casos quase sacralizados (comoacontece na Coreia do Norte).

– Em ambas as notícias o relato é dominantemente factual,evidenciando que o culto dos factos não é novo no jornalismo(Traquina, 1993: 23) e em ambas o núcleo duro da informa-ção surge no parágrafo inicial (lead). Aliás, a primeira notíciaresume-se aolead, embora a segunda esteja redigida com base natécnica da pirâmide invertida. Esta forma de organização do dis-curso não é nova. O jornalismo reinventou-a a partir de meadosdo século XIX25 –segundo Philips (1976), os jornalistas escrevemem "jornalês-- e as agências noticiosas e os jornais aproveitaram-na e generalizaram-na, mas, na realidade, contar-se uma novidadecomeçando pelo facto mais importante e prosseguindo hierárquicae sistematicamente até ao menos importante não é uma maneiranova de narrar. Pelo contrário, já se encontram exemplos nos tex-tos clássicos gregos e romanos (Casasús e Ladevéze, 1991). Asnotícias são, assim, histórias narradas à luz da cultura da socie-dade em que são produzidas (Schudson, 1988) e da cultura pro-fissional (Traquina, 2001; 2002).

– Também a organização interna do discurso não é nova. As

25 Sobretudo a partir da Guerra Civil Americana (Álvarez, 1992).

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notícias respondem a "quem?", "o quê?", "como?", "quando?"e"onde?", embora na primeira notícia as respostas a "quando?"e"onde?"sejam implícitas (onde?, em Portugal;quando?, neste mo-mento). A segunda notícia responde ainda a "porquê?". Não foio jornalismo que deu ao mundo esta forma de relatar novidades.Foram os antigos gregos, senão mesmo antepassados mais remo-tos. Na verdade, a retórica clássica manda que no relato de no-vidades se indiquem o sujeito, o objecto, a causa, a maneira, olugar e o tempo. O que é esta regra senão a regra de ouro da no-tícia, que manda o jornalista não se esquecer de responder às seisquestões fundamentais: "quem?", "o quê?", "quando?", "onde?","como?"e "porquê?"? O formato noticioso, como muito bem sa-lienta Schudson (1982), impõe a forma das declarações: "o poderdosmedianão está só (nem principalmente) no seu poder de de-clarar as coisas como sendo verdadeiras, mas no seu poder defornecer as formas sob as quais as declarações aparecem".

• Força ideológica

– Ambas as notícias encerram uma intenção de verdade. Pro-curam não mentir nem ficcionar sobre a realidade. Esta intençãodiscursiva não ficcional é um dos reflexos da ideologia da objecti-vidade, cultivada pelos jornalistas para se relegitimarem continu-amente no seio do sistema demo-liberal (Sousa, 1997) e revela-seem procedimentos rituais de objectividade (Tuchman, 1972) visí-veis nas notícias, em particular na segunda notícia: a facticidade;as citações entre aspas; o endossamento da responsabilidade pelasafirmações às fontes que as enunciaram, etc.

– Ao darem atenção aos líderes políticos do país e ao concede-rem-lhes rotineiramente espaço, as notícias não só indiciam a or-ganização sócio-política da sociedade portuguesa como tambémcontribuem para relegitimar essa estrutura (Sousa, 1997; 2000;2002). Esta é uma acção ideológica, mesmo que não intencional.

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• Força social

– Ambas as notícias centram-se em acontecimentos actuais,superficiais, aparentemente delimitados no espaço e no tempo (noprimeiro caso centra-se até num "não-acontecimento") e não emproblemáticas dissimuladas na avassaladora paisagem dos factose muito menos em problemáticas antigas. A centralização nosacontecimentos, nos factos, e não nas problemáticas serve comouma luva ao jornalismo. Como escreve Traquina (1988: 37), "osacontecimentos são concretos, delimitados no tempo e mais facil-mente observáveis". E Tuchman (1978) explica que essa centra-lização nos acontecimentos permite transformá-los rapidamenteem notícias, pois torna-se fácil a resposta às questões que fazem oleadnoticioso. Por seu turno, a centralização na actualidade per-mite às organizações noticiosas gerirem melhor os seus recursos edá resposta aos interesses da audiência (ou seja, do mercado), quequer, principalmente, saber "o que há de novo?". Daí que o jorna-lista seja um escravo do tempo, regule a sua acção pelasdeadlinese pelo ponteiro do relógio, tendo aquilo que poderíamos traduzirpor uma "cronomentalidade", aproveitando a noção de Schlesin-ger (1977).

– Ambas as notícias são factuais. Não há comentários, apesarda breve adjectivação interpretativa patente na primeira notícia. Éuma opção que reflecte a política editorial das organizações noti-ciosas no seio das quais ambas as notícias foram produzidas, umdos constrangimentos organizacionais mais relevados nos estudosjornalísticos (ver, por exemplo: Sousa, 2000; 2002).

– Ambas as notícias denunciam rotinas segundo as quais oschefes de Estado portugueses são dignos de serem notícia. Am-bas as notícias denotam ainda procedimentos rotineiros (a técnicada pirâmide invertida e os procedimentos rotineiros de objectivi-zação do discurso, particularmente notórios na segunda notícia,são um bom exemplo). As rotinas são, conforme explicou Tuch-man (1978), uma forma de dar às organizações noticiosas e aos

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jornalistas vantagens tácticas e estratégicas quer no que respeitaà necessidade de preencherem com informação um espaço e umtempo vazios quer no que respeita à necessidade de se defende-rem de críticas. Assim, é num contexto organizacional que asrotinas mais ganham expressão, como dissemos. A técnica dapirâmide invertida e os procedimentos de objectivização do dis-curso são exemplos de rotinas enunciativas que possibilitam aosjornalistas e às organizações noticiosasvencerem o tempoe trans-formarem rapidamente acontecimentos em notícias publicáveis edificilmente sujeitas a críticas.

– Devido às particulares necessidades do fabrico de informa-ção jornalística, o jornalismo é permeável à acção de fontes deinformação regulares, autorizadas, poderosas e credíveis, que be-neficiam de um acesso rotineiro aos meios jornalísticos. São mui-tos os estudos jornalísticos que demonstram essa situação (ver,por exemplo: Sousa, 2000; 2002; Shoemaker e Reese, 1996). Asegunda notícia, baseada, muito provavelmente, (quase?) toda elanas informações fornecidas pela Presidência da República, é umsintoma da situação atrás descrita.

– A rede de captura de acontecimentos (anews net, segun-doTuchman, 1978) das organizações noticiosas funcionou para arecolha de ambas as notícias. Hipoteticamente a primeira notíciaé o resultado da iniciativa dos jornalistas (provém de um canalde iniciativa, na formulação de Sigal, 1973); a segunda notíciarevela o acesso socialmente estratificado e rotineiro aos órgãosjornalísticos (é oriunda de um canal de rotina, de acordo com Si-gal, 1973). Mas ambas as notícias revelam que as organizaçõesnoticiosas mobilizaram recursos para estarem atentas àquilo quese passava nas instâncias supremas do poder político português.

– Os problemas no acesso às fontes (Sousa, 2003: 78) fazemcom que as organizações noticiosas se direccionem para as fon-tes institucionais em detrimento das individuais, pois só entidades

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burocratizadas têm capacidade para manter o fluxo rotineiro de in-formação verídica, credível e autorizada de que as organizaçõesnoticiosas necessitam. No caso em análise, ambas as notícias pro-vêm da chefia do Estado.

– Não se notam directamente, mas adivinham-se em ambas asnotícias condicionantes sociais relacionadas com o mercado e aaudiência. O mercado da imprensa de meados do século XIX an-siava por publicações que oferecessem essencialmente notícias,devido à omnipresença das publicações que traziam essencial-mente artigos políticos. ODiário de Notíciasfoi a resposta deum empresariado arguto e empreendedor a essa necessidade, oque por sua vez se reflectiu na política editorial e, portanto, nasnotícias publicadas. Na segunda notícia revela-se a manutençãodo interesse da audiência por factos – as notícias factuais conti-nuam a constituir a base da informação.

• Força pessoal

-Não há análise ou comentário em qualquer uma das notícias.Na segunda notícia há um esforço para explicar a cirurgia e oque se passa com o Presidente da República, mas não temos da-dos para dizer se a informação foi procurada pelo jornalista ou éoriunda dos serviços da Presidência da República, o que é maisprovável. Em ambas as notícias o papel do jornalista26 é essenci-almente o de mero organizador e transmissor da informação. Estaopção, embora possa ser o resultado dos condicionalismos deri-vados da política editorial da organização noticiosa, também podeindiciar a auto-imagem que o jornalista tem do seu papel, que éum exemplo de um condicionalismo pessoal sobre as notícias.

26 Em 1864 ainda não existiam jornalistas propriamente ditos, em especialem Portugal, embora a profissionalização estivesse a avançar a passos largosnos Estados Unidos devido à acção dos repórteres que cobriram a Guerra daSecessão (ou Guerra Civil).

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– Os redactores recorreram, em ambas as notícias, às rotinascognitivas que os ajudam a compreender o mundo e a organizarcoerentemente os dados caóticos que esse mesmo mundo lhes en-via constantemente (Stocking e Gross, 1989). A atenção dada aoschefes de Estado não é apenas cultural. É também o resultado daactividade cognitiva dos jornalistas, actividade esta que lhes per-mite compreender o mundo: um mundo onde há líderes e lidera-dos, onde há estados chefiados por alguém. A forma das notíciastambém não é apenas cultural, nem fruto das políticas editoriaisdas empresas. Quem redigiu a primeira notícia aqui inserida pen-sava, certamente, que redigir notícias era proceder como o fez. Ouseja, mobilizou a sua mente, como sempre o fez, de maneira a darsentido ao mundo das notícias (rotina cognitiva). Por seu lado, arecorrência à técnica da pirâmide invertida, na segunda notícia, éuma manifestação de um saber de narração (Ericson, Baranek eChan, 1987) que paracada jornalistae para a "tribo"jornalística(Traquina, 2002) funciona como uma manifestação de competên-cia profissional. Cada jornalista, sempre que redige uma notíciacom base nessa técnica, dá sentido pessoal a um acto profissionale revalida, aos seus próprios olhos, o seu lugar no mundo.

– Sempre que enuncia alguma coisa, cada pessoa mobiliza pa-lavras que fazem parte do seu inventário discursivo. Doseue nãodo de outra pessoa qualquer. Cada pessoa escreve e fala de ma-neira diferente, por muitas que sejam as semelhanças entre as for-mas de falar e dizer, porque cada pessoa domina a língua de formadiferente. Ambas as notícias ressentem-se necessariamente desseprocesso (Sousa, 2000) – dito por outras palavras, e de maneirasimples, quem as redigiu usou as palavras que conhecia para aselaborar.

• Força dos dispositivos tecnológicos

-Os processos rudimentares de composição e impressão detextos não permitiam notícias muito grandes nem jornais com

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muitas páginas durante quase todo o século XIX. A primeira notí-cia ressente-se dessa circunstância. A segunda beneficia dos pro-cessos actuais de composição e impressão.

Estamos convictos de que a análise baseada na teoria da notí-cia de Sousa (2000; 2002) pode ser aplicada a todas as notícias,pois, como vimos, virtualmente explica todas as notícias, a suaforma e os seus conteúdos. Como exemplo, poderemos fazer umaanálise superficial de mais duas notícias:

Notícia 3

A ministra das Finanças anunciou hoje, em conferência deimprensa, o congelamento por dois anos na contratação de novosfuncionários públicos e a não renovação dos contratos a prazona função pública.

Manuela Ferreira Leite avisou ainda que o Governo está aponderar o congelamento de salários na função pública pelo pe-ríodo de dois anos.

A ministra justificou as medidas com a necessidade de con-tenção do défice e de diminuição da despesa da administraçãocentral.

Notícia 4

Cerca de mil trabalhadores dos sindicatos da função públicaafectos à CGTP manifestaram-se hoje, em Lisboa, exigindo aabertura de vagas, aumentos salariais de cinco por cento e a re-novação dos contratos a prazo.

O secretário-geral da CGTP, Manuel Carvalho da Silva, ar-gumenta que "o problema das finanças públicas é um problemade receita e não de despesa". Por isso, "não podem ser os tra-balhadores a pagarem pela incompetência que o Governo denotano combate à fuga ao fisco, às fraudes fiscais e às falências frau-dulentas".

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Os manifestantes concentraram-se no Rossio e subiram a ave-nida da Liberdade até ao parque Eduardo VII, impedindo o trân-sito nessas artérias.

O que as notícias três e quatro mostram, em particular, é queo espaço mediático é uma arena pública onde diversas entidades,algumas com acesso rotineiro aosmediae outras sem essa ca-pacidade, se digladiam e tentam fazer passar para o público osenquadramentos que desejam dar às notícias. As notícias acimainseridas têm, a propósito dos mesmos factos-base (a não reno-vação dos contratos a prazo, o congelamento de novas vagas eo possível congelamento de salários na função pública), enqua-dramentos diferentes. Isso demonstra que os jornalistas possuemmargem de manobra para, num modelo Ocidental de jornalismo,negociar significados para as notícias, para publicar notícias comenquadramentos diferentes para os mesmos factos e para auscultarquem muito bem entendem a propósito das notícias que são pu-blicadas, desde que não ultrapassem um quadro de controvérsialegítima (Shoemaker e Reese, 1996: 237). A notícia quatro acon-tece precisamente na intercepção da promoção do acontecimentopela entidade interessada (CGTP) com os valores cultivados pelosjornalistas ocidentais, designadamente os valores do equilíbrio donoticiário e da contrastação de fontes. Estamos, portanto, perantefactores de impulsão, direccionamento e constrangimento de notí-cias de carácter multi-dimensional: culturais, ideológicos, sociaise mesmo pessoais.

Também é de realçar que, na notícia quatro, entre mil manifes-tantes o jornalista preferiu falar com o secretário-geral da confe-deração intersindical. Os jornalistas preferem fontes pessoais (va-lor da personalização) representativas, o que confere autoridade àfonte e mais interesse e legitimidade ao respectivo discurso. Aopção do jornalista releva também o valor que é dado ao critériode noticiabilidade da proeminência social das pessoas envolvidas– em mil possíveis fontes pessoais, escolhe-se aquela cuja proe-minência social é maior.

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De destacar igualmente que a notícia três pode ser entendidacomo um teste feito pela ministra para antever a reacção a de-terminadas medidas impopulares. No entanto, possui igualmenteuma dimensão perlocutória (Austin, 1990), na medida em que aministra faz alguma coisa (implementa a medida) pelo facto de adizer (anuncia e amplifica e medida através dosmedia).

Sem espaço para uma análise mais detalhada, podemos dizerque, genericamente, o que foi dito para as notícias um e dois (so-bretudo para a notícia dois) é válido para as notícias três e quatro.Essas notícias:

1. São centradas em acontecimentos actuais relevantes para osportugueses em geral e em particular para a audiência queconfigura o mercado dos órgãos jornalísticos que as publi-caram;

2. Resultam, no primeiro caso, de um pseudo-acontecimentoe, no segundo caso, de um acontecimento mediático, de-nunciando a permeabilidade dosmediaaos acontecimen-tos rotineiros promovidos por entidades poderosas, credí-veis e autorizadas e revelando que a burocracia mediáticasó pode ser alimentada rotineiramente por entidades buro-craticamente organizadas;

3. Têm sentido e podem ser publicadas num estado de direitodemocrático como Portugal, sujeito a um modelo Ocidentalde jornalismo, baseado, sobretudo, no binómio liberdade deexpressão e de imprensa – responsabilidade editorial;

4. Mostram que os critérios de noticiabilidade, plasmados nacultura e na ideologia profissionais e nas políticas editori-ais, regulam a selecção de informação (ambas as notíciasresultam de acontecimentosactuaise com grandemagni-tude, uma vez que afectam bastantes pessoas; ocorrempró-ximodo leitor-alvo; centram-se empessoas; têm um pendornegativo, etc.);

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5. São relatos centrados em factos notáveis, narrados com in-tenção de verdade, enunciados com o propósito não trans-por a fronteira da ficção, que se baseiam nas formas denarrar notícias que foram histórica, cultural, ideológica, or-ganizacional e profissionalmente modeladas (técnica da pi-râmide invertida, rede de facticidade, utilização de aspas,endossamento da responsabilidade das afirmações para asfontes, etc.);

6. São relatos que necessariamente possuem as marcas enun-ciativas de quem os produziu (palavras usadas, etc.).

8 Considerações finais

Estamos convencidos de que é tarefa dos estudiosos do jornalismoconstruir uma explicação unificada para as notícias, se é que osestudiosos do jornalismo querem ambiciosamente chegar a algumlado. Estamos também convencidos que de os estudos jornalís-ticos foram de tal forma férteis que já nos deram matéria-primasuficiente para edificarmos essa explicação unificada de formasimples, breve e clara, como acontece em qualquer teoria cien-tífica, independentemente da complexidade da fundamentação damesma. Estamos ainda convencidos de que qualquer notícia éfruto de condicionantes pessoais, sociais, ideológicas, culturais ehistóricas, do meio físico em que é produzida e dos dispositivostecnológicos que afectam a sua produção. É possível, assim, ex-plicar qualquer notícia em função da interacção dessas forças eprever que qualquer notícia que venha a ser enunciada e fabricadadentro do sistema jornalístico resultará igualmente da interacçãodessas forças. Por isso, pensamos, e consideramos provado, queessas forças têm de estruturar uma teoria unificada do jornalismo.Quando uma notícia vier a contradizer a teoria, será, então, alturade rever a teoria e, eventualmente, de a substituir.

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