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E. P. THOMPSONE A TRADIÇÃO DE CRÍTICA ATIVA DO MATERIALISMO HISTÓRICO
MARCELO BADARÓ MATTOS
RIO DE JANEIRO2011
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CAPÍTULO IV
E. P. Thompson no Brasil
“Então, olhemos a história como história – homens situados em contextos reais (que elesnão escolheram) e confrontados perante forçasincontornáveis com uma urgência esmagadorade relações e deveres, dispondo, apenas, deuma oportunidade restrita para inserir sua
própria ação – e não como um texto parafanfarronices do tipo assim deveria ter sido.”
E. P. Thompson
Em um artigo cujo objetivo era examinar “a influência do trabalho de Thompson nos
estudos sobre a classe trabalhadora na história indiana”, Rajnarayan Chandavarkar apresentou
um interessante caminho de análise para estudar a recepção do historiador inglês na Índia,
procurando responder, basicamente, a três diferentes questões: como os historiadores indianos
“leram” Thompson; o que eles “tiraram” dessas leituras; e como exploraram as possibilidades
e expectativas abertas por sua teoria social “quando confrontadas com as evidências da
história da classe trabalhadora indiana”.1 Parece ser um bom ponto de partida para uma
análise da recepção do historiador inglês.2
Chandavarkar também chama a atenção para alguns paradoxos levantados pela grande
influência de Thompson entre os historiadores indianos. E um dos mais interessantes é
justamente o que se explicita quando percebemos que os escritos de Thompson eram
caracterizados por seu foco exclusivo na Inglaterra, porém “para alguém que estava tão atento
às especificidades de um contexto social e cultural peculiar, é notável que a influência de seu
trabalho seja global.”3
No caso específico do Brasil, Sílvia Lara já levantou questão similar, ao inquirir, a
partir de sua especialidade de estudos (a história da escravidão no Brasil), a respeito de que
“relação poderia haver entre estudos sobre a formação da classe operária inglesa, as relações
gentry-plebe ou as leis e o direito na sociedade inglesa setecentista, e a escravidão africana, o
1 Rajnarayan Chandavarkar, , “'The making of the working-class': E. P. Thompson and Indian History”, History
Workshop Journal , 43, 1997, p. 177-178. A despeito de discordar de boa parte das interpretações deChandavarkar sobre a obra de Thompson, a leitura de seu artigo foi muito inspiradora para a discussão que pretendi fazer neste capítulo. Agradeço a Dilip Subramanian e a Cláudio Batalha a indicação desse texto.2 Desenvolvi inicialmente uma parte dos argumentos presentes neste capítulo em um pequeno artigo, M. B.Mattos, “E. P. Thompson no Brasil”, Outubro, no. 14, São Paulo, 2010.3 Ibid., p. 177.
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processo de abolição e a história dos negros depois da emancipação no Brasil?”4
Claro está que não é apenas pelos temas específicos de análise e, certamente, não é
pelo recorte espacial de seus estudos que Thompson alcançou essa influência “global”. São
sua concepção de história, de um ponto de vista teórico e metodológico e, principalmente, sua
prática de historiador – a forma como exerceu esse ofício – que podem explicar o forte
impacto de sua obra entre historiadores de outros países e, cada vez mais, de outras gerações.
No entanto, é certo que no que tange à história social do trabalho, por razões óbvias, sua
influência internacional é mais decisiva. Também no caso brasileiro isso é perceptível e, por
isso mesmo, ainda que não exclusivamente, é nesse campo de discussão que este capítulo
concentra sua análise.
Porém, não seria possível restringir uma análise da recepção da obra de E. P.
Thompson no Brasil ao debate dos historiadores. Thompson foi e é referência importante para
discussões entre filósofos, assistentes sociais, economistas e especialistas na ciência da
educação, só para ficar em alguns exemplos. Só este último, um campo no qual sua influência
é tão disseminada que aqui não seria possível fazer mais que esta simples menção.5 Já entre os
cientistas sociais, a presença das referências a Thompson é praticamente contemporânea das
primeiras menções a sua obra pelos historiadores brasileiros. Nesse caso, me arrisco a alguns
comentários, pois a história social do trabalho no Brasil nasce depois e sempre necessitou
dialogar com os estudos sobre trabalho dos cientistas sociais.
E.P. Thompson entre os Cientistas Sociais brasileiros
Talvez pela natureza de seus estudos, em si já bastante marcada pelo recorte
interdisciplinar, explique-se o fato sintomático de que Thompson tenha sido inicialmente
tomado como referência no Brasil não apenas por historiadores, mas também por estudos da
área das ciências sociais.
Assim é que os estudos de Thompson sobre os motins de alimentos no século XVIII
inglês serviram como inspiração para a análise dos quebra-quebras de trens no Brasil dos anos
1970. José Álvaro Moisés e Verena Martinez-Alier tentaram explicar uma sequência
4 Sílvia Hunold Lara, “ Blowin' in the wind : E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil”, Projeto História ,no. 12, São Paulo, out. 1995, p. 43.
5 A influência de Thompson na área da Educação já gerou, inclusive, uma recente introdução a sua obra paraeducadores escrita por Liane Maria Bertucci; Luciano Mendes Faria Filho & Marcus Aurelio Taborda deOliveira, Edward P. Thompson: história e formação, Belo Horizonte, Edufmg, 2010. Também representativo
é o exemplo dos capítulos de Célia Regina Vendramini e de Maria Célia Marcondes de Moraes & RicardoGaspar Müller na obra coletiva organizada por Ricardo Gaspar Müller & Adriano Duarte, E. P. Thompson: política e paixão, Chapecó, Argos, 2011 (no prelo).
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significativa de episódios semelhantes de quebra-quebras, buscando fugir à ideia de que
representariam episódios completamente espontâneos de violência incontida de uma massa
economicamente submetida a grande arrocho. Na literatura da história social que procura
explicar os movimentos de revoltas da multidão no período pré-industrial – Rudé, Hobsbawm
e Thompson – Moisés e Alier buscaram uma explicação que destacasse as motivações e o
sentido político de mobilizações que possuem uma racionalidade própria.6 Após mencionarem
as referências à historiografia inglesa – marcando sua distância da noção de Hobsbawm dos
movimentos da “turba” como fenômenos pré-políticos, tendentes a desaparecerem com o
avanço do capitalismo industrial – os autores enunciam sua hipótese de trabalho:
“a nossa hipótese toma os acontecimentos que aparentemente surgem como
uma consequência “irracional” ou “anárquica”, embora inevitável em face das
duras condições de vida a que estão submetidas as massas no contexto do
regime autoritário vigente, para, a um nível mais analítico, tentar demonstrar
que sua eficácia política tem uma lógica, que opera ao nível dos efeitos que
provoca diante do Estado e delas próprias”.7
Já a definição de classe social como processo e relação, característica da obra de
Thompson a partir de A formação..., seria citada por estudos sociológicos a respeito do novo
sindicalismo (fenômeno que irrompe na cena política brasileira a partir das greves dos
metalúrgicos do ABC em 1978). Um dos mais significativos é o de Éder Sader, que toma o
conceito de experiência de Thompson como central para sua reflexão sobre a emergência dos
novos movimentos sociais em fins dos anos 1970.8
É interessante observar uma citação feita por Sader de um texto de Francisco Weffort,
sobre as greves de Contagem e Osasco, de 1968, publicado alguns anos após as greves e que
se transformou numa referência por propor que naqueles movimentos a “organização
autônoma e pela base da classe operária”, colocava em questão a permanência da estrutura
sindical oficial.9 A citação resgatada por Sader referia-se, no texto de Weffort, ao movimento
operário e trazia em seu bojo uma expressão que a historiografia brasileira enfaticamente
associou a Thompson. No texto de Weffort lia-se: “o movimento operário não pode ser visto
apenas como dependente da história da sociedade mas também como sujeito de sua própria
6 José Álvaro Moisés & Verena Martinez-Alier, “A Revolta dos Suburbanos ou ‘Patrão o Trem Atrasou’”, inContradições urbanas e movimentos sociais, Rio de Janeiro/São Paulo, Paz e Terra/Cedec, 1978.
7 Ibid., p. 22.8 Ver por exemplo Eder Sader, Quando novos personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos
trabalhadores da grande São Paulo. 1970-1980, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p.44. O texto de
Thompson citado é o artigo “Luta de classes sem classes”.9 Francisco Weffort, Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco, 1968, São Paulo, Cebrap, 1972
(Cadernos Cebrap, 5), p. 92.
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história e, como tal, capaz de influir sobre a sociedade.”10
Na discussão de Sader encontramos também uma das marcas características dos
estudos sobre movimento operário no Brasil produzidos na época, a combinação de
referências a Thompson com recursos a autores que trataram de representações e imaginário
em termos não marxistas, como Castoriadis, e que tomaram as relações de poder como
transcendendo a dominação de classes, descrevendo conflitos e resistências como reações ao
“controle social”, nos termos de Michel Foucault. Também se encontram em seu texto
referências a autores associados ao movimento “autonomista” italiano, da virada da década de
1960 para 1970, como Toni Negri. Nessa combinação eclética de autores, invocada para
rejeitar o determinismo que derivaria a ação dos movimentos sociais diretamente das
condições estruturais da sociedade capitalista, Sader condensa bem os questionamentos de
uma geração de autores que buscava entender a reemergência dos trabalhadores na cena
política brasileira dos anos 1980, através de movimentos em que se destacava a busca por
“autonomia”.11 De um lado, não se pretendia romper com a ideia da “existência objetivamente
dada das classes sociais”.12 Por isso, as definições de Thompson ajudavam a pensar a situação
objetiva das classes, ainda que rejeitando determinismos, tal como se vê na seguinte passagem
de Sader:
“Embora as pessoas se encontrem, de saída, numa sociedade estruturada já de
determinada maneira, a constituição histórica das classes depende da
experiência das condições dadas, o que implica tratar tais condições no quadro
das significações culturais que as impregnam. E é na elaboração dessas
experiências que se identificam interesses, constituindo-se então coletividades
políticas, sujeitos coletivos, movimentos sociais.”13
Já os demais autores, seriam invocados em socorro a uma tentativa de definir as
subjetividades coletivas em termos distintos daqueles normalmente associados ao conceito de
consciência de classe ou do sujeito histórico potencialmente revolucionário – o proletariado –
nas análises de Marx e de boa parte do marxismo. As mudanças perceptíveis na ação coletiva
dos trabalhadores seriam assim pensadas, por Sader, como “reelaboração do imaginário
10 Ibid., p. 10. Em Thompson, a afirmação aparece associada à ideia da “agência”, de forma mais enfática em Amiséria da teoria, por exemplo, na p. 179. Mas, como procurei demonstrar, sua lógica está presente desde pelo menos os artigos do New reasoner , em fins dos anos 1950.
11 A ênfase na discussão sobre a autonomia aparece em muitos estudos sobre os trabalhadores brasileiros publicados no início dos anos 1980. Uma publicação reuniu em seus primeiros números muito dessadiscussão. Trata-se da revista Desvios, cujo primeiro número circulou em 1982 e que reunia em seu coletivo pesquisadores e militantes como o próprio Sader, Marco Aurélio Garcia, Marilena Chauí, Maria Célia Paoli e
Vera Silva Telles.12 E. Sader, Quando novos personagens entraram em cena, p. 47.13 Ibid., p. 45.
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constituído, através de novas experiências, onde se produzem alterações de falas e
deslocamentos de significados.”14Embora utilizando a concepção de sujeito coletivo, o autor
procurava com ela dar conta não exatamente de uma classe com sua respectiva consciência de
classe, mas de:
“uma pluralidade de sujeitos, cujas identidades são resultado de suas interações
em processos de reconhecimentos recíprocos, e cujas composições são
mutáveis e intercambiáveis. As posições dos diferentes sujeitos são desiguais e
hierarquizáveis; porém essa ordenação não é anterior aos acontecimentos, mas
resultado deles. E, sobretudo, a racionalidade da situação não se encontra na
consciência de um ator privilegiado, mas é também resultado do encontro de
várias estratégias.”15
Cabe assinalar que referências cruzadas deste tipo poderiam ou não encontrar respaldo
nos textos de Thompson da época. Castoriadis e a revista Socialismo ou Barbárie, por
exemplo, são citados como aliados políticos na luta contra o stalinismo e todo tipo de
marxismo petrificado em A miséria da teoria, embora não o sejam como referência teórica,
pois Thompson afirma que percorreu seu próprio caminho para desenvolver tais críticas.16 Por
outro lado, Thompson mantinha uma postura crítica em relação à noção de controle social e
sublinhava os limites dos estudos e das políticas que se centravam nos aspectos identitários e
nas representações, bem como na fragmentação dos sujeitos, defendendo a necessidade de
uma intervenção pautada pela perspectiva política classista e por uma referência na grande
política.17
No caso da Antropologia, também nos anos 1980, a presença de Thompson se faria
sentir em algumas obras fundamentais como referências para estudos posteriores sobre a
classe trabalhadora, numa perspectiva que abriu caminho para um frutífero diálogo com a
história social do trabalho. José Sérgio Leite Lopes destacou como a combinação de
referências dos “estudos de historiadores sociais, preocupados com as mentalidades coletivas
da classe trabalhadora (...) cujo ponto culminante é o livro de Thompson, The making of the
english working class” com os estudos antropológicos de comunidades foram importantes
para a geração de uma problemática antropológica na literatura especializada sobre a classe
operária:
14 Ibid., p. 46.15 Ibid., p. 55.16 E. P. Thompson , A miséria da teoria, p. 186.17 Ver a esse respeito o prefácio de E. P. Thompson, Writting by candlelights. Ver também, a resposta deThompson a uma crítica publicada com o título de “The Making”, em The New York Review of Books, Vol. 38,no. 21, 19/12/1991.
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“Isto é, uma problemática não exclusivamente voltada para os aspectos políticos, ou
para as condições materiais de vida dessa classe, mas enfatizando a sua prática
cotidiana, as suas tradições, a sua diferenciação interna, o seu pensamento, a sua
internalização subjetiva de suas condições materiais de existência.”18
Um excelente exemplo de como tal problemática se traduziu em estudos específicos é
dado pela própria obra de José Sérgio Leite Lopes. Em A tecelagem dos conflitos de classe na
cidade das chaminés, analisando a trajetória das formas de dominação e as manifestações do
conflito de classes numa das maiores (a maior durante alguns anos) indústrias do ramo têxtil
no Brasil, localizada em Paulista, cidade vizinha a Recife, José Sérgio recorre a Thompson em
diversos momentos.
As formas e modos de dominação política e de classe são compreendidos a partir das
discussões de Thompson – assim como dos aportes de Pierre Bourdieu – “enfatizando tanto
esta interiorização da dominação, e também da resistência à dominação, quanto os aspectos
propriamente simbólicos por ela assumidos.”19
O autor também se apoia em Thompson para definir classe e consciência de classe,
enfatizando o caráter de (auto)construção histórica e cultural da classe. 20 Na análise das
formas de dominação encetadas pela empresa (o “modo paulista de dominação”) e das
resistências a essas formas pelos trabalhadores, José Sérgio recorre às análises de Thompson
sobre a “teatralização da dominação” e o “contra teatro do terror popular”.21
Destaque-se ainda o recurso pioneiro às referências de Thompson à lei e ao direito, em
Senhores e caçadores, para rediscutir a relação da classe trabalhadora brasileira com o direito
trabalhista instituído na Era Vargas, uma discussão que, como discuto adiante, foi retomada e
ampliada pela historiografia a partir da década seguinte.22
Essa presença de Thompson como referência nas obras dos cientistas sociais manteve-
se ao longo dos anos 1980 e 1990. Uma boa amostra pode ser buscada nas referências ao
historiador inglês presentes em artigos da principal revista brasileira da área, a Revista
Brasileira de Ciências Sociais ( RBCS ), publicada pela ANPOCS. Acompanhando os números
de 1 a 50 da RBCS , pude constatar a presença de referências a E. P. Thompson em total de 12
artigos, em 11 edições do periódico acadêmico, entre os anos de 1986 e 1998. Numa
18 José Sérgio Leite Lopes, “Introdução: formas de proletarização, história incorporada e cultura operária”, in J.S. L. Lopes (org.), Cultura e identidade operária. Aspectos da cultura da classe trabalhadora, Rio de Janeiro,UFRJ/Marco Zero, 1987, p. 12.19 J. S. L. Lopes, A tecelagem dos conflitos de classe na cidade das chaminés, Brasília, EdUNB/Marco Zero,1988, p. 21.20 Ibid., p. 22.21 Ibid., pp. 215 e 586.22 Ibid., p. 359.
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apreciação geral pode-se dizer que, se esse autor não é um dos “campeões de citações” entre
os artigos da RBCS , a constância com que aparece não é desprezível.
Os textos de Thompson citados foram: A formação da classe operária inglesa; A
economia moral da multidão; Exterminismo e Guerra Fria; Miséria da Teoria; Modos de
dominação e revoluções na Inglaterra; Tempo, disciplina do trabalho e capitalismo
industrial ; Costumes em Comum e Senhores e Caçadores.23 Os dois primeiros foram citados
mais de uma vez (cinco vezes no caso de A formação...). Ou seja, parte significativa da obra
do historiador inglês circulou nos debates dos cientistas sociais brasileiros.
Tais textos foram citados para tratar de temas como os aspectos simbólicos e religiosos
da luta de classes, o conceito de classe social, o marxismo, as revoltas da multidão e a
ecologia. Como o primeiro tema é mais frequente, pode-se dizer que foram aqueles pontos em
que Thompson afirmou ter tido mais “inspirações” antropológicas os que mais repercutiram
no debate dos cientistas sociais brasileiros. Note-se, porém, que não há referências a uma
contribuição propriamente teórica do autor para os debates entre história e antropologia ou
demais Ciências Sociais.
Entre os historiadores
Entre os historiadores brasileiros, a presença de Thompson como referência é
absolutamente generalizada. É fato que do grupo de historiadores ingleses cujas obras
ganharam o mundo no pós-guerra, Hobsbawm é o que possui mais obras traduzidas para o
português. Há que se ter em conta, entretanto, que ainda que com muitos dos seus livros mais
importantes sem traduções, Thompson conseguiu se tornar uma fonte de inspiração para um
conjunto muito mais amplo de trabalhos de pesquisa em História, sobre os mais diversificados
objetos. É o que se pode perceber, por exemplo, na coletânea Domínios da História, publicada
em 1997, em que Thompson aparece como referência importante para todos os capítulos mais
gerais da obra, dedicados às discussões sobre História Econômica, Social, do Poder, das
Ideias e História das Mentalidades e Cultura. Além disso, surge em notas e comentários
também em alguns dos artigos que tratam de campos mais específicos de estudo.24
Após a sua morte, algumas publicações especialmente dedicadas a sua obra, ou a
23 Respeitei aqui a forma como os textos foram citados pelos artigos, traduzindo apenas os títulos, pois algunsforam citados no original. Modos de dominação foi publicado no Brasil em As Peculiaridades dos ingleses, Aeconomia moral e Tempo, disciplina foram publicados em Costumes em comum. Não fiz distinção entre artigosde pesquisadores brasileiros e traduções, pois a escolha dos autores traduzidos revela opções teoricamente
orientadas dos editores brasileiros da revista.24 Ciro Cardoso & Ronaldo Vainfas (orgs.), Domínios da História, ensaios de teoria e metodologia, Rio deJaneiro, Campus, 1997.
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reflexão sobre seus aportes demonstraram essa importância.25
Um outro bom indicador da importância da referência a Thompson no Brasil pode ser
encontrado na coletânea de entrevistas Conversas com historiadores brasileiros,26 que reúne
depoimentos de quinze entre os mais destacados representantes da área. Desses, sete
mencionam explicitamente a importância do referencial Thompsoniano em seus trabalhos.
Há, entre os demais, pelo menos uma outra depoente que, embora não mencione essa
referência, faz dela uso direto em seus trabalhos.27 Portanto, nota-se a importância da obra de
Thompson no Brasil entre todas as gerações de historiadores ainda ativos, dos formados nos
anos 1950, aos que foram seus alunos nos anos 1970 e começaram a publicar seus trabalhos
na década de 1980.
No depoimento de Emília Viotti da Costa, por exemplo, o historiador inglês aparece
listado entre os historiadores que mais a influenciaram e é retomado, juntamente com Eric
Hobsbawm e Raymond Williams para caracterizar o marxismo como um “pensamento vivo” e
tais pensadores como os “que produziram maior impacto em minha geração”.28
Tal referência a Thompson como representante do marxismo como “pensamento vivo”
não é, entretanto, a única nos depoimentos. Há várias menções ao impacto das leituras de
Thompson para o estudo de temas e questões específicas. João José Reis, por exemplo, ao
tratar de sua obra A morte é uma festa,29 sobre o episódio de um levante urbano em Salvador
na primeira metade do século XIX, conhecido como a “Cemiterrada”, afirma que “com o
risco de abusar de um conceito usado por Thompson para um fenômeno específico, talvez eu
possa dizer que tratei a Cemiterrada como expressão de uma economia moral do sentimento
religioso”.30
Na entrevista de Laura de Mello e Souza, Thompson aparece como “de certa forma”,
um representante de uma historiografia “mais voltada para temas da marginalidade”,
explicando assim sua influência na construção do livro Os desclassificados do ouro.31
25 É o caso da coletânea de artigos de Thompson, precedida por artigos de historiadores brasileiros avaliando suatrajetória, As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Ou do dossiê especial publicado pela revista Projeto História, São Paulo, no. 12, 1995. Ou ainda da coletânea organizada por R. Müller & A. Duarte, E. P.
Thompson: política e paixão, decorrente de um seminário realizado em 2003, que já dera origem a um númeroespecial da revista Esboços, no. 12, 2004.26 José G. V. Moraes & José M. Rego, Conversas com historiadores brasileiros, São Paulo, Ed. 34, 2002.27 Os entrevistados que mencionam E. P. Thompson são Emília Viotti da Costa, Fernando Novais, Maria Odila daSilva Dias, Ciro Flamarion Cardoso, Edgard De Decca, João José Reis e Laura de Mello e Souza. Também éentrevistada Angela de Castro Gomes, que embora não mencione Thompson na entrevista recorre a sua obra em A invenção do trabalhismo, São Paulo, Vértice, 1988.28 Moraes & Rego, Conversas, pp. 70 e 81.29 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês de 1835, edição revista e
ampliada, São Paulo, Cia. Das Letras, 2003, (1a. ed. 1986).30 Moraes & Rego ,Conversas, p. 330.31 Ibid., p. 374. A obra comentada é L. M. Souza, Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século
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Em se tratando de E. P. Thompson não poderia deixar de haver polêmica, ainda que
centrada nos usos de sua obra entre nós. É o que podemos constatar do trecho da entrevista de
Ciro Cardoso, em que este afirma: “o Thompson é muito bom; o que eu andei criticando
muito, na época, foi a tentativa de casar Thompson e Castoriadis feita na Unicamp. Tentaram
juntar um filósofo de direita e que não trabalha com o conceito de classe social, como é o
Castoriadis, com um pensador de esquerda.”32
O ponto é explorado na entrevista com Edgard De Decca, representante da Unicamp
na coletânea, através de uma pergunta em que os entrevistadores afirmam que “na Unicamp se
estabeleceu a convergência entre a historiografia marxista inglesa com tradições filosóficas
francesas representadas, por exemplo, por Foucault e Castoriadis”. Na resposta, De Decca
afirma que considera a renovação historiográfica contemporânea menos como obra da
“história nova” (a terceira geração dos Annales), e “mais nessa tendência que surgiu da
confluência entre a história marxista da nova esquerda com as correntes da filosofia da
diferença, de Michel Foucault. O que ocorre é que elas abrem duas perspectivas
complementares: o pensamento da margem e o pensamento da individualidade. A história que
se fazia então era a história dos coletivos, dos grandes silêncios, dos grandes sujeitos. Aí se
começou a interpelar as margens, a revolução perdia o horizonte coletivo. Ato revolucionário
então passa a ser a atitude que se tem perante normas, regras, instituições etc. ”33
De Decca destaca a responsabilidade da Unicamp por ter introduzido uma vertente
historiográfica que chamava a atenção para a luta de classes (e menciona sua iniciativa de
traduzir The making ) para dizer que, com Thompson, “começamos a aprofundar a questão do
fazer-se dos sujeitos históricos, como os sujeitos históricos se constituíam”. Precisa, porém,
de que sujeitos trata ao afirmar: “Nós não vamos estudar os grandes sujeitos históricos, mas
os sujeitos anônimos, os ‘pequenos sujeitos’. Então o nosso projeto tinha um horizonte
bastante nítido nesse aspecto. E nós tínhamos um respaldo intelectual enorme. Com oThompson, com o Hobsbawm, você nunca está mal acompanhado”.34
Nesse caso, há que se concordar com Ciro Cardoso em sua crítica ao uso eclético e ao
XVIII, Rio de Janeiro, Graal, 1982. No livro Thompson é referido pelos seus artigos na coletânea coordenada por D. Hay, Albion’s fatal tree. e por Senhores e caçadores, para destacar como essas obras evidenciam “o caráter violentamente classista da justiça”. (p.121, nota 116)32 Moraes & Rego ,Conversas, p. 228. Referência semelhante aparece adiante na entrevista, p. 234.33 Ibid., pp. 279-280.34 Ibid., p. 272. É interessante notar que no livro mais conhecido de Edgard S. De Decca, O silêncio dos
vencidos, São Paulo, Brasiliense, 1991, não há qualquer referência a Thompson e o debate teórico foi feito a partir do marxismo “clássico”, com Marx e Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e Louis Althusser sendo asreferências mais citadas.
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“casamento” de difícil conciliação entre Thompson e Castoriadis ou Foucault. Pelos termos
do comentário de De Decca, parece produzir-se uma suposta “confluência” entre autores de
matriz muito distinta, afirmando “complementaridade” onde muitas vezes se explicita não
apenas diferença, mas oposição de ideias.35 Se em Thompson há vários estudos sobre questões
desconsideradas pela historiografia tradicional – como cerimônias de trocas de esposas,
músicas jocosas, ou mesmo os motins do pão – seu objeto jamais pode ser definido como “os
pequenos sujeitos”. De forma homóloga a seu repúdio aberto à “pequena política”, como
procurei demonstrar no primeiro capítulo, também aqui é forçoso reconhecer que seus objetos
foram a classe trabalhadora em formação, a “plebe” inglesa do século XVIII, os modos de
dominação, ou seja, temas e questões que envolvem sim os “grandes sujeitos” (não os
“pequenos”) da história: as classes sociais e suas lutas. Em Thompson também não parece
existir respaldo para ideias expressas na entrevista de De Decca, como a de que “a revolução
perdeu o horizonte coletivo” ou de que “ato revolucionário” passou a ser o questionamento de
normas e instituições. Vimos que o historiador inglês debateu a fundo a questão da revolução
e ainda que pudesse ter uma leitura própria sobre ela não a retirou do horizonte.
Parece-me, nesse caso, que se trata de buscar sim “o respaldo intelectual enorme” da
historiografia marxista britânica, mas para fazer cumprir o programa da historiografia
francesa da terceira geração dos Annales que a princípio foi negada, ou se procurou contornar através da referência a filósofos, como Foucault e Castoriadis, que ao fim e ao cabo também
influenciaram os historiadores franceses da “nova história”.
Ressalte-se que esta leitura de Thompson não é exclusiva de De Decca, ou da
“historiografia da Unicamp”, que ele fortemente contrapõe à tradição uspiana. Na mesma
coletânea de entrevistas encontramos afirmações bem semelhantes nos comentários
justamente de Fernando Novais, representante maior da historiografia da USP em sua geração.
Para Novais, “da terceira geração [dos Annales] participa o Vovelle, que continua sendo
marxista; e, ao mesmo tempo, o trabalho de Thompson poderia estar na Nova História”.36
Um apanhado menos que superficial das referências à obra de E. P. Thompson na
35 Já toquei no ponto da relação entre Thompson e alguns dos autores citados por De Decca. Chama a atençãocomo a leitura de De Decca (coordenador da coleção que publicou A formação e Senhores e Caçadores) sobreThompson é totalmente pessoal. Em outro artigo de sua autoria, para além de vários equívocos quanto a títulos,datas e outros detalhes (explicados pelo fato de que afirmou ter escrito o artigo “de memória”), o historiador brasileiro considera que para Thompson “desde a década de 60 era muito claro o papel da narrativa. A narrativa é
tudo, a narrativa é que constrói o objeto histórico”. E. S. De Decca, “E. P. Thompson: um personagem dissidentee libertário”, Projeto História, no. 12, São Paulo, out. 1995, p. 117.36 Moraes & Rego ,Conversas, p. 130.
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historiografia brasileira deve estar atento a diversas áreas. Seus estudos sobre movimentos de
protesto coletivo e motins da multidão tiveram forte influência sobre os estudos de
historiadores brasileiros a respeito de motins urbanos, à exemplo da revolta da vacina no Rio
de Janeiro da primeira década do século XX.37 As análises de Thompson sobre a lei e o crime
influenciaram muitas pesquisas sobre a legislação brasileira e as formas de criminalização dos
modos de viver das populações pobres e trabalhadoras, tanto no período mais recente, quanto
sob a vigência da escravidão. Também no campo das análises sobre a “cultura popular” e nos
debates teóricos sobre a “história cultural”, E. P. Thompson é presença marcante entre os
historiadores brasileiros.38 Eu não teria aqui nem espaço nem erudição suficiente para dar
conta de tantos campos.
Thompson e a história social do trabalho no Brasil
Diante da amplitude temática da repercussão de Thompson na historiografia brasileira,
darei maior atenção à recepção de seus escritos sobre a história social do trabalho, entendida
no seu sentido mais amplo, como incluindo tanto as pesquisas sobre a escravidão quanto as
referentes aos trabalhadores assalariados. Temáticas como a da cultura popular e a do direito,
no entanto, serão enfocadas, mesmo não sendo privilegiadas, dado o vínculo que possuem
com os estudos sobre os trabalhadores escravizados ou “livres”.
É relativamente recente, entre nós e mesmo internacionalmente, a aceitação
generalizada de que a história social do trabalho pode e deve reunir os estudos sobre formas
de trabalho não assalariadas (mesmo as “não livres”) e as pesquisas sobre trabalhadores
“livres”/assalariados. No Brasil, até bem pouco tempo atrás, história do trabalho foi entendida
como sinônimo de história do movimento operário e estudos sobre o trabalho no período
anterior a 1888 eram exclusivamente definidos como parte do campo de pesquisas sobre
escravidão. De forma análoga, numa visão dominada por essa dicotomia, estudar o trabalho
“livre” no período de domínio escravista (ou “os homens livres na ordem escravocrata”) era
estudar as “margens” da sociedade e estudar o negro após 1888 (“o lugar do negro na
sociedade de classes”) também significava buscar entender os setores “marginalizados” do
desenvolvimento capitalista. Não há espaço aqui para aprofundar a análise sobre a
37 A referência a Thompson, especialmente ao artigo “Economia moral da multidão”, aparece, por exemplo, emJosé Murilo de Carvalho, Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, Rio de Janeiro,Companhia das Letras, 1987, p. 182.38 Ronaldo Vainfas, em capítulo dedicado a analisar as grandes referências da história cultural toma Thompson
como um dos três “modelos” mais expressivos da história cultural (Carlo Ginzburg e Roger Chartier seriam osoutros dois) e uma “referência muito adotada” pelos historiadores brasileiros. R. Vainfas, “História dasmentalidades e história cultural”, In C. Cardoso & R. Vainfas (orgs.), Domínios da História.
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importância das pesquisas que ultrapassaram tais barreiras e complexificaram as análises de
uma história social do trabalho que envolve trabalhadores escravizados e livres em suas
diversificadas relações ao longo da história da sociedade brasileira.39 Mas esse comentário é
necessário para se explicar porque, para entendermos as influências que a obra de E. P.
Thompson exerceu sobre a historiografia do trabalho no Brasil, será preciso proceder por
etapas, analisando primeiro a historiografia da escravidão para em seguida tematizar os
estudos sobre trabalhadores “livres”. Conforme avançarmos na discussão, entretanto, essas
barreiras serão quebradas em minha análise, como o foram pela historiografia, especialmente
sob a influência thompsoniana.
E. P. Thompson e a história da escravidão no Brasil
Os primeiros estudos sistemáticos sobre a escravidão no Brasil foram, é claro, escritos
fora do circuito universitário, até porque este só se constituiria entre nós a partir da década de
1930. Entre fins do século XIX e os anos 1930, tais estudos podiam refletir sobre a escravidão
como uma “necessidade” nas condições específicas da colonização portuguesa na América ou,
especialmente na versão dos que se engajaram nas campanhas abolicionistas do fim do século
XIX, como um mal, que tardou a ser extirpado, liberando enfim o Brasil para trilhar o
caminho de desenvolvimento civilizatório. No mais das vezes, entretanto, possuíam em
comum uma visão que negava aos negros africanos e aos nascidos no Brasil, submetidos à
escravidão, qualquer papel significativo nos processos sociais nos quais se viram
envolvidos.40
Quase sempre, acompanhando essa perspectiva estava uma concepção racialista, que
imputava à “raça” negra uma inferioridade biológica que lhe impediria efetivamente de
desempenhar qualquer papel protagônico no jogo da história. 41 O silêncio sobre o papel do
negro no período escravista, e em especial sobre sua trajetória no pós-1888 correspondia a um
desejo – explicitado em alguns casos, latente em outros – de extinção. Pelo “branqueamento”
ou pela progressiva desaparição, o que se esperava era apagar no Brasil do futuro essa herança
indesejada do passado escravista.
Foi na década de 1930, em meio a renovação dos estudos sobre a história do Brasil
39 Faço um balanço mais apurado dessa discussão na Introdução de M. B. Mattos, Escravizados e livres:
experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca, Rio de Janeiro, Bom Texto, 2008. No planointernacional, ver Van der Linden, Workers of the world.40 O caso mais emblemático é o de Joaquim Nabuco. Dele, ver por exemplo, Minha formação, Brasília, Edunb,1981, p. 137 (a primeira edição dessa obra é de 1900). Uma exceção por valorizar a luta dos próprios escravos
entre os que participaram da campanha abolicionista foi Evaristo de Moraes, A campanha abolicionista (1879-1988), Brasília, Edunb, 1986 (a primeira edição foi publicada em 1924).41 Lilia Schwarcz, O espetáculo das raças, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
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que marcou aquela conjuntura, que surgiram as primeiras interpretações a fugirem desse
padrão. De um lado, a perspectiva marxista sistematizada por Caio Prado Jr. apresentava a
possibilidade de se perceber o negro/escravo como participante ativo (embora não
necessariamente protagonista) das lutas sociais do seu tempo, nas revoltas contra o Estado
colonial/imperial e nas formas de resistência à própria escravidão. 42 De outro lado, o viés
“culturalista” de Gilberto Freire, que procurava superar o racialismo até então dominante,
afirmando a troca cultural entre brancos, índios e negros e positivando a miscigenação como
exercício de adaptação da civilização europeia (ao fim e ao cabo sempre dominante) aos
trópicos.43 A proposta, com maiores ou menores mediações, de maior repercussão social a
partir de suas análises foi aquela que procurou relativizar a noção do Brasil como um país
racista, para apresentá-lo como uma sociedade tendente à integração (via miscigenação) e
aberta à possibilidade de uma “democracia racial”.
Quando a Universidade começou a se debruçar sobre o tema da escravidão, cientistas
sociais e historiadores tiveram o mérito inegável de pôr em questão tanto o racialismo
sobrevivente quanto o mito da democracia racial. Afinal, como a reapresentação do dado cor
nos censos a partir de 1940 mostrava, os descendentes de escravos estavam longe de terem
encontrado uma sociedade aberta no Brasil do século XX. Continuavam a ser os pior
remunerados, menos escolarizados e submetidos às piores condições de vida entre o enorme
contingente de trabalhadores pobres da sociedade brasileira.44
A partir, principalmente, do esforço de Florestan Fernandes e alguns de seus
estudantes e futuros colegas da chamada “escola sociológica paulista”, a escravidão e a
presença do negro na sociedade pós-1888 passaram a ser objeto de estudos mais
sistemáticos.45 Apesar de seus inegáveis méritos, tais estudos continuaram reservando pouco
espaço para o papel dos negros em sua própria história no Brasil. No período escravista,
abordado sob uma lógica teórica weberiana como uma sociedade de castas ou de ordens, a
coisificação econômica imposta ao escravo (convertido em mercadoria) extrapolaria para uma
subjetividade coisificada, redundando em uma capacidade de ação coletiva profundamente
42 Caio Prado Jr, Evolução política do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1933.43 Gilberto Freyre, Casa grande e senzala, Rio de Janeiro, José Olympio, 1933.44 Os trabalhos de Carlos Hasenbalgh são um bom exemplo de análise acadêmica dos dados estatísticos quecomprovam a persistência da desigualdade racial. Ver, por exemplo, C. Hasenbalg, Discriminação e
desigualdades raciais no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1979.45 Os primeiros ensaios de interpretação nessa direção aparecem em Roger Bastide & Florestan Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, São Paulo, CEN, 1959. O estímulo inicial para esse e outros estudosdesenvolvidos no Brasil veio de um projeto internacional da Unesco. Os frutos universitários dessa linha de pesquisa é que foram mais desenvolvidos na USP, em obras como F. Fernandes, A integração do negro na
sociedade de classes, 3a. ed., São Paulo, Ática, 1978, 2, vols. (1a. ed. 1965); Fernando Henrique Cardoso,Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, São Paulo, Difel, 1962; e Otávio Ianni, As metamoforses doescravo, São Paulo, Difel, 1962.
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limitada, cuja única válvula de escape era a violência, quer individual ou coletiva (do suicídio
à revolta). A herança da coisificação escravista não seria leve, pois após 1888, na ausência de
qualquer projeto político de “integração”, pela educação ou mesmo pelo mercado de trabalho,
dos ex-escravos na nova sociedade capitalista em construção, restava aos seus descendentes a
marginalidade, num estado que, via Durkhein, seria entendido como de “anomia social”.
Uma síntese dessa natureza pode passar por cima de nuanças significativas. Assim, a
afirmação da coisificação dos escravos é mais direta, por exemplo, na análise de Fernando
Henrique Cardoso sobre a passagem da escravidão ao capitalismo, em que aos escravos
(como aos homens pobres livres) é reservado o papel de “testemunhos mudos de uma história
para a qual não existem senão como uma espécie de instrumento passivo sobre o qual operam
as forças transformadoras da história.” Mesmo as lutas reconhecidas desses segmentos –
como os quilombos – são classificadas como “desvãos da história que, se têm força para
comover os pósteros e construir símbolos, em si mesmos não apontam as saídas
estruturalmente válidas.”46
Com muito mais contradições reconhecidas, essa ideia de uma falta de efetividade das
lutas sociais dos negros – agora focando nos descendentes de escravos no século XX –
aparece também na obra de Florestan Fernandes, para quem a tendência à integração social de
uma sociedade de classes era contrarrestada no Brasil por uma permanência do preconceito
racial. Frente a esse quadro, os movimentos coletivos dos negros pelo reconhecimento de seus
direitos à integração plena e democratização das relações raciais/sociais encontravam pouco
eco em uma maioria de descendentes de escravos mais propensa a trilhar caminhos
individuais e buscar formas mais sutis de adaptação às regras excludentes daquele quadro
social. Com isso, por um lado, Florestan procurava sepultar qualquer interpretação centrada
no marco da democracia racial, afirmando que:
“Onde os interesses e os liames das classes sociais poderiam unir as pessoas ou
os grupos de pessoas, fora e acima das diferenças de 'raça', ela divide e opõe,
condenando o 'negro' a um ostracismo invisível e destruindo, pela base, a
consolidação da ordem social competitiva como democracia racial .”47
Por outro lado, embora reconhecendo que “a única força de sentido inovador, e
inconformista, que opera em consonância com os requisitos de integração e de
desenvolvimento da ordem social competitiva, procede da ação coletiva dos 'homens de cor'”,
46 F. H. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 112, apud. Flávio Gomes, Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, Ed. revista eampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 310.47 F. Fernandes, A integração, p. 459.
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Fernandes avalia negativamente o potencial dessas lutas, pelo seu sentido imediatista e pela
reação negativa dos “brancos”. Disso resulta que a única solução por ele apresentada como
eficiente é externa aos atores sociais: “qualquer inovação construtiva, de sentido mais amplo,
teria que resultar de técnicas racionais de controle”.48
Os anos 1970 e a primeira metade dos anos 1980 foram marcados por uma renovação
profunda nos estudos sobre escravidão, especialmente em função das discussões sobre o modo
de produção escravista colonial. Críticas tanto das definições patriarcalistas da escravidão
quanto da matriz weberiana de análise do escravismo típica da Escola Sociológica Paulista, de
um lado, tais discussões romperam com a noção de que a colônia portuguesa nos trópicos (e o
Império que a sucedeu, em grande medida) poderia ser completamente entendida em função
das determinações externas do “antigo sistema colonial”, afirmando a existência de uma
dinâmica social própria no território brasileiro, apesar do peso da dependência colonial. Por
outro lado, foram capazes também de superar a ortodoxia do marxismo da III Internacional
sob a influência de Stálin, defendendo a possibilidade da existência de formas societárias
diferenciadas das que teriam caracterizado a evolução europeia, o que levaria à ruptura com o
modelo estático da sequência dos modos de produção, que aplicado ao caso brasileiro
orientara – tanto teórica quando politicamente – uma análise dual sobre o passado recente, que
teria sido fortemente marcado por “sobrevivências feudais”.49 Muito embora tais estudos
reservassem espaço para as formas de resistência dos escravos e outros que partilharam seus
pressupostos tenham feito destas seu foco principal de análise, seu privilégio à dimensão
macro estrutural da discussão sobre a escravidão era evidente.
Novos estudos, produzidos nos anos 1980, sobre as revoltas de escravos, tomaram de
empréstimo a Thompson suas discussões sobre a “economia moral da multidão”, para tentar
compreender a lógica política dos levantes contra os senhores. Um estudo pioneiro nesta
direção foi o de João José Reis sobre a revolta dos malês em Salvador, cujo vínculo com o
referencial Thompsoniano já foi aqui mencionado a partir de suas declarações em uma
entrevista.50 Na mesma linha, estudos posteriores sobre os quilombos no Brasil escravista
tiveram inspiração Thompsoniana explícita, como no caso das obras de Flávio Gomes, que
48 Idem, p. 462. Supondo que a ideia de “técnicas racionais de controle” remeta à planificação socialista, poucoespaço parece haver na análise do autor para a ação coletiva dos negros em direção a esse caminho.49 Os primeiros estudos a afirmarem a existência de um modo de produção escravista colonial no Brasil foram publicados em 1973 por Ciro F. S. Cardoso, “Sobre los modos de produción coloniales de América”; “SeveroMartínez Peláez y el carácter del regimén colonial” e “El modo de producción esclavista colonial em América”,in Juan Carlos Garavaglia (org.), Modos de producción em América Latina. Cuadernos de pasado y present , no.
40, Córdoba, maio de 1973. A sistematização da proposta de maior fôlego veio com Jacob Gorender, Oescravismo colonial, 4a. Ed, São Paulo, Ática, 1985 (1a. ed. 1978).50 J. J. Reis, Rebelião escrava no Brasil.
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encarou os grupos e comunidades de fugitivos da escravidão como esforços para “manter a
todo custo sua autonomia” que revelavam o “agenciamento de estratégias de resistência”.51
Assim, é fato que referências às obras do historiador inglês já estavam presentes em
pesquisas sobre a escravidão produzidas na primeira metade dos anos 1980, mas foi em 1988
(em meio aos debates sobre os 100 anos da abolição da escravatura) que a recepção específica
das ideias de Thompson nesse campo de estudos se tornou mais evidente e passou a
desempenhar um papel central nas discussões posteriores.
A melhor representação dessa presença de Thompson como referência nos debates
sobre escravidão daquele momento foi dada pela crítica dirigida por Sidney Chalhoub ao que
ele denominava de “teoria do escravo coisa”.52 O alvo da crítica de Chalhoub era todo tipo de
análise do Brasil escravista que derivasse da condição escrava uma percepção do trabalhador
escravizado como instrumento passivo do poder senhorial, incapaz de agir política e
coletivamente, ou, quando muito, apto apenas a reagir violentamente em alguns episódios,
contra a violência de que era vítima.
Em seu trabalho, Thompson é referência, tanto para sustentar a crítica às
interpretações marxistas centradas nos conceitos de “transição” do escravismo ao capitalismo,
ou na metáfora “base-superestrutura”, quanto para apoiar uma defesa da aproximação entre
História e Antropologia.53
No mesmo momento, Sílvia Lara, outra historiadora da escravidão proveniente da
mesma instituição universitária que Chalhoub – a Unicamp – levantava questões bastante
semelhantes, buscando também apoiar-se em Thompson. Enquanto Chalhoub estudou a
escravidão na maior cidade negra das Américas (o Rio de Janeiro), na segunda metade do
século XIX, Lara estudou o mesmo objeto na região rural de produção açucareira do Norte
Fluminense, na segunda metade do século XVIII. Em seu estudo, resgata as análises de
Thompson sobre os conflitos entre a gentry e a plebe no século XVIII inglês para sugerir a
necessidade de se pensar a história da escravidão a partir de conceitos menos generalizantes
que os empregados pela historiografia anterior (focada no debate sobre o modo de produção),
de forma a perceber o papel dos escravos como “sujeitos históricos, agenciadores de suas
51 F. Gomes, A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-
XIX), São Paulo, Polis/Unesp, 2005, p. 25. Ver também do mesmo autor o já citado Histórias de quilombolas.52 A proposta apresentada nos congressos sobre o tema foi publicada em um pequeno artigo Sidney Chalhoub,“Os mitos da abolição”, Trabalhadores, no. 1, Campinas, 1989. No ano seguinte, o artigo seria em parteretomado na conclusão de seu S. Chalhoub, Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte, São Paulo, Companhia das Letras, 1990.53 S. Chalhoub, Visões da liberdade, pp. 20 e 25. Recorre nessas passagens à Thompson, A miséria da teoria e“Folclore, Antropologia e História Social”.
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próprias vidas”.54 O debate empreendido por Thompson a respeito do paternalismo é central
para sua análise.55
Numa síntese, escrita alguns anos depois, Lara assim se referiu à importância de
Thompson como referência para esses trabalhos (dela e de Chalhoub) que procuraram
valorizar o papel dos escravos como “sujeitos de sua própria história”:
“Ao tratarmos da escravidão e das relações entre senhores e escravos, tanto
quanto ao tratarmos de qualquer outro tema histórico, lembramos, com
Thompson, que as relações históricas são construídas por homens e mulheres
num movimento constante, tecidas através de lutas, conflitos, resistências e
acomodações, cheias de ambiguidades. Assim, as relações entre senhores e
escravos são fruto das ações de senhores e de escravos, enquanto sujeitos
históricos, tecidas nas experiências destes homens e mulheres diversos, imersos
em uma vasta rede de relações pessoais de dominação e exploração.”56
Essa perspectiva analítica fortemente inspirada em Thompson, foi responsável pela
produção, nos vinte anos seguintes, de uma enorme variedade de novos estudos sobre as lutas
dos escravos pela liberdade, as relações entre o referencial cultural africano e suas interações
e releituras no território brasileiro, as trajetórias de vida de cativos e libertos, as práticas
cotidianas dos escravos para adaptarem-se e/ou superarem o cativeiro, entre muitos outros
temas, de tal forma que aqui seria impossível tentar uma apreciação mesmo que genérica
sobre toda essa rica tradição historiográfica. Voltarei adiante a alguns aspectos dessas
discussões.
Em 1988, a ideia do escravo “sujeito de sua própria história” foi apresentada em
franca polêmica com a “teoria do escravo coisa”, o que acabou por gerar réplicas (e tréplicas)
acaloradas. A mais elaborada delas partiu de Jacob Gorender que em 1990 publicou um livro
que sintetizava de forma brilhante todo o debate do centenário da abolição, mas focava-se,
particularmente, na resposta aos dois autores da Unicamp.57 Gorender, já o mencionei, foi um
dos formuladores da teoria do modo de produção escravista colonial e sua obra principal é
apresentada como um tratado de “economia política marxista” da escravidão. Em seu
Escravismo Colonial , o processo de coisificação do escravo (entendida como sua conversão
em mercadoria) é afirmado na sua dimensão econômica, embora disso não se extrapole
54 Sílvia Lara, Campos da violência. Escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808, Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1988, p. 35555 Ibid., p. 112.56 S. Lara, “Blowin’ in the wind”, p. 46.57 Jacob Gorender, A escravidão reabilitada , São Paulo, Ática, 1990.
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propriamente uma conclusão de necessária “coisificação” subjetiva,58 como é o caso de alguns
estudos da “escola sociológica paulista”, em particular o de Fernando Henrique Cardoso sobre
a escravidão no Brasil Meridional.59 Acontece, porém, que, em sua crítica, Chalhoub listou
Gorender ao lado dos demais autores que ele definiu como representativos da teoria do
“escravo coisa”, criando uma situação de polêmica aberta que chegou a ganhar as páginas dos
jornais diários de grande circulação.
De meu ponto de vista, a contribuição de Gorender e a de Ciro Cardoso – rompendo
com o quatripartismo eurocêntrico da evolução linear dos modos de produção e criticando as
interpretações do Brasil centradas na ideia de que o capitalismo comercial europeu explicava
diretamente a dinâmica da colonização – não é necessariamente excludente em relação à
intenção proclamada por Chalhoub e Lara de fazer emergir uma história “a partir de baixo” da
escravidão, que nos permita perceber o papel ativo dos trabalhadores escravizados. Pelo
contrário, a teoria do modo de produção escravista colonial é clara ao definir a luta entre
senhores e escravos como o polo central da dinâmica conflitiva do social sob a vigência da
escravidão. Por certo, no entanto, que seu enfoque se concentra na análise macro estrutural do
modo de produção e não no nível específico de análise das manifestações historicamente
localizadas da luta de classes entre senhores e escravos.
De qualquer forma, reconhecendo em seus “adversários” – que ele definia como a
“escola da Unicamp” – a forte influência Thompsoniana, Gorender se viu instigado a criticar
Thompson e dedicou um capítulo específico de sua síntese/polêmica dos novos estudos sobre
escravidão ao debate teórico contra o que considerou serem as influências perniciosas sobre a
historiografia que criticava, incluindo aí o historiador inglês. Nas poucas páginas que
dedicou-se a debater com Thompson, muito influenciado pela leitura de Anderson em
Arguments whithin the English marxism ,60 e citando apenas alguns trechos de A miséria da
teoria e Senhores e caçadores, Gorender atribui a Thompson uma série de conclusões que não
estão presentes em sua obra. Uma passagem do comentário de Gorender sobre a concepção de58 Gorender, embora destaque, conforme bem assinala Chalhoub, os atos criminosos como a primeiramanifestação de sua subjetividade, o faz justamente para marcar a contradição entre a “coisificação” social a quea redução à mercadoria levava o estatuto dos seres escravizados e a sua existência efetiva como pessoashumanas, da qual não abriam mão. Ver, J. Gorender, O escravismo colonial, pp. 49 e ss.59 Entre as várias passagens do texto de Fernando Henrique Cardoso que afirmam essa passagem direta dacoisificação objetiva à subjetiva, podemos resgatar uma, citada por Chalhoub, em que afirma: “A reificação doescravo produzia-se objetivamente e subjetivamente. Por um lado, tornava-se uma peça cuja necessidade socialera criada e regulada pelo mecanismo econômico de produção. Por outro lado, o escravo auto-representava-se eera representado pelos homens livres como um ser incapaz de ação autônoma. (…) Nesse sentido, a consciênciado escravo apenas registrava e espelhava, passivamente, os significados sociais que lhe eram impostos.” F. H.Cardoso, a escravidão no Brasil Meridional . Chalhoub comenta esse trecho em Visões da liberdade, pp. 38 e ss.60 Ressalte-se que Gorender faz questão de criticar Anderson pelos pontos em que defende Althusser. Mas, tratacomo fato o que Anderson apenas insinua, como uma suposta transição política de Thompson do marxismo aoreformismo trabalhista. E enfatiza a classificação de Thompson como um “culturalista”.
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classes sociais e consciência de classe expressa por Thompson pode servir para ilustrar as
suas incompreensões:
“A ação do sujeito foi sobreposta à estrutura objetiva, de tal maneira que as
classes sociais se fazem sem que se saiba por que vieram a ter existência.
Thompson enfatiza que a classe operária se faz. Mas, antes de se fazer, ela é
feita. Uma vez marginalizado o conceito de modo de produção, não se pode
explicar por que, em determinada época, operários e capitalistas surgiram e
passaram a se enfrentar como classes sociais. Com toda evidência, isto não
decorreu de escolhas individuais ou coletivas, mas das transformações
objetivas nas relações de produção, cujo processo independe da vontade e da
consciência dos homens. Assim não entende Thompson. A consciência de
classe é vista por ele como pedra angular da noção de classe social. Em termos
mais claros: existe uma classe social porque tal conjunto de seres humanos
elabora a consciência de que são tal classe social. Aí está uma inversão
inaceitável a partir de posições marxistas.”61
O trecho é um emaranhado de confusões entre o que Thompson propõe e o que
Gorender acredita que ele tenha proposto. Sabendo o quão Gorender é cuidadoso com as
leituras que expõe, não há outra justificativa se não a da falta de contato maior com a obra de
Thompson para explicar, por exemplo, como pode afirmar que segundo o historiador inglês “a
classe se faz” sem lembrar que para Thompson a classe se faz, tanto quanto é feita, pois em
nenhum momento o historiador inglês nega o papel determinante das relações de produção
sobre a experiência de classe. Isso só para ficar em mal entendidos que poderiam ser
dissipados pela simples leitura do prefácio da Formação da classe trabalhadora. Em outros
momentos deste livro já esclareci como Thompson valoriza, com ênfase própria é verdade,
mas de forma alguma descarta, o conceito de modo de produção. Já quanto à afirmação de
que a ideia de que só há classe (Thompson esclarece, como vimos, no seu sentido “maduro”)
com consciência de classe é uma “inversão” inaceitável do ponto de vista marxista, vale
lembrar que Thompson não foi o primeiro a explicitá-la e sim Marx, bastando perceber como
são tratados os camponeses detentores de parcela em sua análise da França no Dezoito
Brumário para comprovar essa afirmação.
As confusões de Gorender seguem na continuação do mesmo trecho:
“Contudo, de onde a classe social – no caso, a classe operária – extrai sua
consciência de classe? Thompson coloca em primeiro plano a experiência
61 Ibid., p. 101.
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vivenciada, as ações auto-impulsionadas. O que, segundo ele, Marx teria
desprezado. A experiência vivenciada se compõe do amálgama de tradições
culturais, costumes, fé religiosa, laços de parentesco, instituições, afeições e
sentimentos, regras morais, normas jurídicas, etc. Tudo resultando na
experiência como intuição e aprendizagem e na consciência de classe como
consciência afetiva e moral .”62
Nesse ponto, me parece, a leitura da Miséria da teoria, que Gorender parece ter feito,
seria suficiente para evitar outros mal entendidos. Thompson não afirma que Marx desprezou
a dimensão da experiência de classe, embora afirme sim (com exagero criticável) que deu
pouca atenção aos valores e elementos morais em sua crítica da sociedade capitalista. Da
mesma forma, Thompson não define a consciência de classe como uma consciência “afetiva e
moral”, pois, por mais que valorize o papel da moral, lhe atribui um significado
eminentemente político.
Poderia ser feita aqui uma analogia: da mesma forma que Thompson, na polêmica com
Althusser, parece ter comprado a ideia Althusseriana da ruptura epistemológica entre jovem
Marx e Marx da maturidade, criticando o “lado Grundrisse de Marx”, conforme discuti no
primeiro capítulo, Gorender, em sua polêmica com Chalhoub e Lara também assumiu a
perspectiva de que a discussão sobre o modo de produção escravista colonial e o referencial
de análise Thompsoniano eram incompatíveis, gastando páginas para criticar Thompson. Mas,
será que a analogia pode ser levada às suas últimas consequências, ou seja, guardadas as
devidas proporções, se Thompson ao criticar Althusser acaba compartilhando alguns de seus
pressupostos de leitura de Marx, Gorender ao criticar Chalhoub e Lara assume na verdade
alguns dos pressupostos desses autores sobre Thompson?
A resposta não pode ser simples, mas também em Chalhoub e Lara, que dominam
muito melhor que Gorender o referencial thompsoniano, encontro algumas interpretações que
parecem levar ao limite a leitura que fazem da escravidão a partir de explícitas referências à
obra do historiador inglês..
É o caso, por exemplo, da forma como Chalhoub recorre aos argumentos de
Thompson – em Folclore, antropologia e história social – para defender uma aproximação
entre História e Antropologia e para apresentar uma leitura nova sobre a busca da alforria
como uma forma de luta pela liberdade difundida entre os escravos. Embora resgate o texto de
Thompson lembrando as considerações que o historiador inglês desenvolve explicando as
especificidades do conhecimento histórico – construído a partir de noções dinâmicas de62 Ibid., p. 101.
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contexto e processo – diante da Antropologia, é ao antropólogo Richard Price que Chalhoub
recorre para apresentar suas definições de cultura e sociedade, como as que se seguem: “por
‘cultura’ entende-se um corpo de crenças e valores, socialmente adquiridos e modelados, que
servem a um grupo organizado como guias de comportamento: por ‘sociedade’ entende-se a
arena de luta ou as circunstâncias sociais que dariam ensejo à utilização das formas ou
alternativas culturais disponíveis”.63
É fato que a dimensão do conflito é bastante valorizada nessa construção, mas ainda
assim, trata-se de uma definição deveras ampliada de cultura e bastante subsumida de
sociedade, que não parece das mais compatíveis com as críticas que Thompson dirige ao uso
corrente do conceito de cultura em Costumes em comum e menos ainda ao tom duro que
adotou na crítica a Raymond Williams no início dos anos 1960. O importante, porém, é
atentar para que tipo de análise da sociedade escravista no Brasil a referência a Thompson é
invocada. Citando a passagem do mesmo artigo de Thompson em que este faz referência à
“ambivalência dialética” de noções como doação/conquista, consenso e hegemonia, etc.,
Chalhoub chega a deduções sobre o Brasil escravista, do tipo:
“Não é difícil perceber o alcance dessas observações (...): numa sociedade
escravista, a carta de alforria que um senhor concede a seu cativo deve ser
também analisada como o resultado dos esforços bem-sucedidos de um negro
no sentido de arrancar a liberdade a seu senhor; no Brasil do século XIX, o fato
de que senhores e escravos pautavam sua conduta a partir da noção de que
cabia unicamente a cada senhor particular a decisão sobre a alforria ou não de
qualquer um dos seus escravos precisa ser entendida em termos de uma
‘hegemonia de classe’; e os castigos físicos na escravidão precisam se afigurar
como moderados e aplicados por motivo justo, do contrário, os senhores
estariam colocando em risco a sua própria segurança.”64
A complicação desse argumento começa com Thompson. Inspirado em Gramsci,
Thompson procura explicar o século XVIII inglês como marcado por uma forma de
dominação hegemônica da gentry sobre a plebe. Em parte via paternalismo, mas,
principalmente, pelo consenso construído em torno do “domínio da lei”, à qual todos os
ingleses “livres de nascimento” poderiam recorrer, Thompson quer demonstrar como se pode
falar nessa complexa relação de dominação de classes em que o consenso se sobrepõe à (ou
63 S. Chalhoub, Visões da liberdade, p. 25.64 Ibid., p. 23.
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reveste a) força. O complicado é que Gramsci contextualizou as formas de dominação
hegemônicas a partir do fim do século XIX, no quadro das “democracias de massa” do
ocidente europeu, com partidos operários, voto universal, etc., ou seja, com as classes sociais
fundamentais do capitalismo em seu momento de maior organização coletiva. E o terreno da
luta de classes do século XVIII na Inglaterra, segundo o próprio Thompson, era o terreno da
“luta de classes sem classes”, ou seja, em que a plebe (ele se recusa a usar outro termo mais
preciso) não era ainda a classe trabalhadora que se formaria nas primeiras décadas do século
XIX.
Trata-se, portanto, em Thompson, de uma expansão bastante livre do conceito de
forma de dominação hegemônica de Gramsci. O que dizer então do Brasil escravista? Se as
díades de Gramsci são pares conceituais não excludentes, em que somente em análises
históricas de situações concretas pode-se “dosar” o peso de cada componente, isso não nos
autoriza a inverter a lógica de sua construção conceitual. Ou seja, como falar em hegemonia
(quer dizer, em consenso se sobrepondo ou revestindo a coerção) numa sociedade escravista,
em que a relação social fundamental é construída primeiramente em base à força e à coerção?
Não quero com isso negar que as lutas de classe do período escravista se travassem também
através das disputas de interpretação sobre os significados da liberdade envolvidas na questão
da alforria, como Chalhoub demonstra brilhantemente, mas a ênfase no aspecto da
“hegemonia” me parece aí sobre-estimada.65
Em outro trabalho, já levantei a questão de que nem sempre a dimensão da
“ambivalência”, desenvolvida com extremo cuidado por Chalhoub é tomada como central por
outros estudos que dele partiram (e também buscaram referência em Thompson), por
exemplo, quando se trata dos efeitos da Lei de 1871 no que tange ao “direito” dos escravos ao
pecúlio e à requisição de mediação judicial para compra da alforria.66 Aqui quero apenas
sublinhar que uma tal ênfase nos consensos – ainda que ambivalentes – em torno da relação
senhor/escravo, acaba por conduzir o autor a uma valorização quase que exclusiva das
estratégias de luta pela liberdade que se dão “no interior” da ordem senhorial e a uma
consequente desvalorização das estratégias contrassistêmicas. É o que se percebe na famosa
passagem da conclusão de seu livro em que ataca a teoria do “escravo coisa” e afirma que o
65 Apesar de ser muito explícita em Thompson sua referência a Gramsci para utilizar o conceito de hegemonia,entre os historiadores brasileiros que reivindicam Thompson como referência há muito pouca atenção para essaconexão teórica, o que talvez explique a superficialidade, ou mesmo os equívocos com que o conceito dehegemonia é tratado, como no caso em que Silvia Lara associa paternalismo a hegemonia (via Thompson) pra
afirmar que o “conceito de hegemonia (…) nada tem em comum com a noção de consenso”. S. Lara, Blowin' inthe wind , p. 49. Voltarei a esse ponto adiante comentando outros autores.66 M. B. Mattos, Escravizados e livres, pp. 152-154.
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binômio escravo vítima/escravo rebelde é parte dessa teoria. A alternativa estaria em buscar os
que “pressionaram pela mudança, em seu benefício, de aspectos institucionais daquela
sociedade.” Trata-se de “combater no campo de possibilidades largamente mapeado pelos
adversários”.67
O mesmo objetivo de superar o discurso do escravo como simples “vítima” da
violência do escravismo é apresentado por Sílvia Lara , levando-a a propor: “não seria melhor
recuperar os escravos como sujeitos históricos, agenciadores de suas vidas mesmo em
condições adversas, não apenas como vítimas? Sobre vítimas é possível somente um discurso
de pena, proteção, discurso que tira desses homens e mulheres sua capacidade de criar, de
agenciar e ter consciências políticas diferenciadas.”68 Concordo integralmente com a
perspectiva que indica a necessidade de algo mais que violência para manter a estabilidade do
sistema e com a ideia de que o discurso da vitimização acaba por diminuir a ação dos(as)
trabalhadores(as) escravizados(as) como sujeitos, mas questiono se não há um certo exagero
na proposta interpretativa que os vê como “seres que agenciavam suas vidas enquanto
escravos”?69 O termo “agência” (no sentido de ação humana, característica do sujeito social),
como tradução literal do inglês não é dos mais fáceis e se presta a confusões, mas os limites
da “agência” (nesse sentido thompsoniano) dos cativos são bastante evidentes quando
lembramos que aquelas pessoas eram vendidas, compradas e alugadas nas “agências” e por
“agentes” no sentido mais comercial do termo que é corrente entre nós.
O problema maior reside na forma como a perspectiva de Thompson aplicada à análise
da classe trabalhadora inglesa – envolvendo a questão da consciência – parece estar sendo
transplantada, sem muitas mediações, em algumas dessas passagens, para o Brasil escravista.
A plebe inglesa do século XVIII – com seus valores com base concreta de “liberdade” e sua
“igualdade perante a lei” – não desenvolveu, segundo Thompson, uma consciência de classe.70
De que “consciência política diferenciada” estaríamos falando quando nos referimos aos
escravos? Não há resposta simples para essa questão, mas por certo que a ideia da luta de
classes sem classes de Thompson chama mais a atenção para a necessidade de se encarar os
limites da consciência dos grupos sociais subalternos – classes, mas em seu sentido
“heurístico” - em sociedades pré-capitalistas.
É possível sugerir como hipótese que, no momento final da escravidão, quando as
lutas pela liberdade tendem a criar uma rede de solidariedade entre cativos, libertos e setores67 S. Chalhoub, Visões da liberdade, p. 253.68 S. Lara, Campos da violência, p. 355.69 Ibid., p. 353.70 Já comentei este ponto no capítulo 2, citando, por exemplo, E. P. Thompson, “Patrícios e plebeus”, in id.Costumes em comum, p. 69.
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sociais “livres” - particularmente trabalhadores –, uma determinada consciência de classe se
manifesta entre os trabalhadores escravizados. Reforça essa hipótese o compartilhamento
interno ao território nacional (em suas maiores cidades principalmente) de experiências entre
escravizados em luta pelo fim da escravidão e trabalhadores “livres” construindo suas novas
organizações e formas de luta. Tanto quanto o fato, no plano das relações externas, de que o
capitalismo, ao espalhar-se pelo globo, socializando os processos de expropriação e as
relações de produção que lhe são próprias, propiciou também a difusão de formas
organizativas, modelos de luta coletiva e propostas ideológicas as quais certamente os
escravizados não ficaram imunes.
Mas, tais hipóteses podem ser testadas para o século XIX, que constitui o período da
chamada “segunda escravidão”, na interessante definição de Dale Tomich. Tomich visa dar
conta do momento em que a escravidão se integra à dinâmica de um capitalismo industrial já
em franco desenvolvimento na Europa, o que distingue aquele momento da etapa anterior, em
que as relações escravistas se inseriam no processo de acumulação primitiva de capital (ou do
“capitalismo comercial” conforme outros preferem caracterizar o período dos séculos XIV a
XVIII).71 Nas palavras de Tomich, no século XIX, quando as relações tipicamente capitalistas
de produção já dominam na Inglaterra, “a escravidão não é mais um pressuposto histórico da
produção capitalista, isto é, condição para a emergência desta”. Agora, com a reprodução
ampliada da relação capital-trabalho, seriam redefinidas as relações entre o trabalho
assalariado e outras formas de trabalho e, assim, a escravidão passa a reproduzir-se como
“produto do capital e é reconstituída dentro do desenvolvimento dos processos históricos da
acumulação capitalista e reprodução ampliada do capital.”72
Seria possível estender tal caracterização para o momento anterior e tratar de todo o
período escravista nos marcos de uma dinâmica da luta de classes em que os trabalhadores
escravizados possam ser compreendidos como sujeitos coletivos portadores de uma
consciência de classe no sentido que Thompson atribui ao termo? Julgo difícil sustentar tal
hipótese, ou seja, na maior parte da vigência da escravidão as análises se movem no terreno
da “luta de classes sem classes”, para empregar a expressão de Thompson, o que não nos
dispensa, em absoluto, de investigar e valorizar a racionalidade própria às ações coletivas dos
que foram submetidos à escravidão.
Mas, o que dizer sobre a historiografia do trabalho quando tratando dos trabalhadores
“livres”?
71 Ver por exemplo, entre os vários textos em que o autor explora a questão, Dale Tomich, “Trabalho escravo etrabalho livre (origens históricas do capital)”, Revista USP , no. 13, 1992.72 Ibid., pp. 116-117.
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Thompson e a História do Movimento Operário no Brasil
No que tange aos estudos sobre a classe trabalhadora “livre”, Claudio Batalha já
apontou a importância tanto da emergência das greves do ABC, quanto “a contribuição e
influência da produção historiográfica vinda do exterior”, para a renovação dos estudos
produzidos nos anos 1980. Segundo ele, “um papel primordial coube à historiografia marxista
inglesa, particularmente A formação da classe operária inglesa, de Edward Thompson”.73
No Brasil, como em outros casos nacionais, a classe trabalhadora demorou a penetrar
as Universidades, não apenas como estudante, mas também como objeto. As primeiras
histórias do movimento operário no Brasil foram escritas por militantes, em livros que
tangenciavam quase sempre a literatura memorialística. A posição política dos militantes e as
disputas internas do movimento plasmavam-se muito diretamente na história que escreviam.74
Os estudos acadêmicos sobre a classe trabalhadora e o sindicalismo no Brasil viveram
certos ciclos quanto às linhas interpretativas mais gerais. De início, predominaram as
abordagens centradas na caracterização da origem (rural, recente, etc.) da classe operária,
como fator determinante dos padrões de sua ação coletiva.75 As críticas mais contundentes a
este primeiro ciclo de análises, deram destaque ao aspecto essencialmente político da ação
coletiva da classe, valorizando as concepções e práticas da vanguarda política (o PCB e suas
lideranças) na explicação dos caminhos da ação sindical.76
Embora excludentes nos princípios, estes dois referenciais de análise tenderam a
caracterizar a classe trabalhadora no Brasil, em especial no período anterior a 1964, no
negativo. Comparando a classe e o sindicato a modelos internacionais ou comparando o
momento anterior ao golpe militar ao período posterior à erupção do novo sindicalismo, no
pós-78, tendeu-se a definir o movimento operário daquele período como pouco combativo,
cupulista e atrelado ao Estado. A definição paradigmática do “sindicalismo populista” foi73 Claudio H. M. Batalha,“A Historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências”, in Marcos C. deFreitas, Historiografia brasileira em perspectiva, São Paulo, Contexto, 2001, p. 152.74 Ver por exemplo o debate entre Astrogildo Pereira e José Oiticica sobre a criação do PCB e os anarquistas.Astrogildo Pereira, Construindo o PCB (1922-1924), São Paulo, Livraria Editora Ciências Sociais, 1980. JoséOiticica, Ação direta: meio século de pregação libertária, Rio de Janeiro, Germinal, 1947.75 Essa marca encontra-se de forma mais ou menos enfática nos trabalhos pioneiros de Aziz Simão, Sindicato e
Estado, São Paulo, CEN, 1966; José Albertino Rodrigues, Sindicato e desenvolvimento no Brasil, São Paulo,Difel, 1968 e Leôncio Martins Rodrigues, Conflito industrial e sindicalismo no Brasil, São Paulo, Difel, 1966.De forma paradigmática, ela é sintetizada em Leôncio Martins Rodrigues, Industrialização e atitudes operárias:estudo de um grupo de trabalhadores, São Paulo, Brasiliense, 1970.76 É o caso dos trabalhos de Francisco Weffort, "Origens do sindicalismo populista no Brasil", Cadernos
Cebrap, nº 4, São Paulo, abril/jun 1973 e "Democracia e movimento operário: algumas questões para a históriado período 1945-1964", artigo publicado em 3 partes, na Revista de Cultura Contemporânea, nº 1 e 2, São Paulo,1978; e na Revista de Cultura e Política, nº 1, São Paulo, agosto de 1979.
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elaborada por Francisco Weffort:
“no plano da orientação, subordina-se à ideologia nacionalista e se volta para
uma política de reformas e de colaboração de classes; no plano da organização,
caracteriza-se por uma estrutura dual em que as chamadas "organizações paralelas", formadas por iniciativa da esquerda, passam a servir de
complemento à estrutura sindical oficial, inspirada no corporativismo fascista
como um apêndice da estrutura do Estado; no plano político, subordina-se às
vicissitudes da aliança formada pela esquerda com Goulart e outros políticos
fiéis à tradição de Vargas.”77
Essa caracterização no negativo da classe e de sua ação sindical seria compartilhada
por Leôncio Rodrigues, para quem, em contraste com modelos europeus, a situação da classeoperária brasileira se caracterizaria por uma
“diminuição da influência do proletariado na vida social do país e na
configuração de comportamentos ´classistas` menos marcados. Estes traços
são imediatamente visíveis quando se atenta: a) para a fraqueza do
sindicalismo brasileiro; b) para a inexistência de ´partidos operários de
massa` e c) para a influência do populismo sobre as massas trabalhadoras.” 78
As concepções de classe presentes naqueles estudos não compartilhavamhomogeneamente a leitura estrutural-determinista do marxismo que Thompson procurava
superar desde os anos 1950, mas estavam muito próximas de “deduzir a consciência de classe
que 'ela' [nesse caso a classe operária brasileira] deveria ter (mas raramente tem), se estivesse
adequadamente consciente de sua própria posição e interesses históricos reais.”79 A entrada na
cena universitários dos estudos históricos sobre os trabalhadores contribuiria para alterar tal
visão, mas não de imediato. Thompson, ou melhor, a leitura de suas obras pelos historiadores
brasileiros, teve algo a ver com isso.As referências iniciais a Thompson nos estudos sobre o movimento operário brasileiro
desenvolvidos por historiadores universitários já se encontram nos primeiros trabalhos desses
historiadores. O exemplo mais evidente é o de Bóris Fausto que, com seu Trabalho urbano e
conflito social, publicou o primeiro estudo histórico produzido no âmbito universitário sobre
o tema.80
77 F. Weffort, “Origens do sindicalismo populista”, p. 67.78 Leôncio M. Rodrigues,“Classe operária e sindicalismo no Brasil”, in id. (org.), Sindicalismo e sociedade, São
Paulo, Difel, 1968, p.341.79 E. P. Thompson, A formação, p. 10.80 Boris Fausto, Trabalho urbano e conflito social , São Paulo, Difel, 1976. Thompson (do prefácio de A
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Os estudos publicados na virada dos anos 1970 para os 1980, centrados principalmente
na análise da formação da classe operária no Brasil, introduziram maior quantidade e mais
efetivamente incorporaram referências ao historiador inglês. É o caso do texto escrito entre
1979 e 1981 e publicado no ano seguinte por Hardman e Leonardi.81 No livro há referências a
Thompson já no prefácio de Paulo Sérgio Pinheiro, que tentava mostrar como a definição de
classe a partir de Thompson permitia romper com visões sobre a anomia ou fragilidade da
classe operária no Brasil. Dizia ele:
“A classe operária deve ser definida, como já lembrou E. P. Thompson, pelos
trabalhadores como eles vivem a sua própria história; a classe é a consciência
que emerge da luta de classes. Consequentemente, nenhuma experiência de
uma classe operária pode ser considerada mais ‘verdadeira’ do que outra. Não
há nenhum sentido em submeter o proletariado brasileiro a uma competição
com o proletariado de outros países, atribuindo ao nosso uma classificação
patológica: fraco, apático, sofrendo de uma falsa consciência aguda, e às vezes
até como incapaz de sua missão histórica, e assim por diante.”82
O mesmo tipo de preocupação parecia estar embalando as revisões dos estudos a
respeito da classe trabalhadora produzidos sob a égide da sociologia industrial ou do trabalho.
Diante do retomar das lutas operárias a partir de 1978, indagavam-se as interpretações do
passado operário brasileiro, revendo imagens de determinação estrutural de uma subordinação
da classe, desprovida de iniciativa histórica. É o tipo de análise que compõe a resenha de
Paoli, Sáder e Telles, publicada pela Revista Brasileira de História, em 1983. Embora
Thompson não seja ali explicitamente citado (ao contrário de Castoriadis, que aparece no
título e em referência no primeiro parágrafo do texto), percebe-se a presença de uma dada
leitura de seu conceito de experiência e de agência dos sujeitos, que, como vimos, estava
presente de forma mais explícita em outros trabalhos dos autores da resenha:
“Impressionados pelas demonstrações desses sinais de vida própria dos
dominados, muitos de nós nos voltamos para a interrogação do seu significado
e de sua gestação. Vivemos todo um movimento intelectual de revisão
histórica, buscando as raízes do presente, invisíveis nas formas passadas de
representação do social. Foi então questionada uma imagem construída
Formação) é citado já na introdução do trabalho, p. 8.81 Francisco Foot Hardman & Victor Leonardi, História da indústria e do trabalho no Brasil: das origens aosanos vinte, São Paulo, Global, 1982.82 Paulo S. Pinheiro, “Prefácio”, F. F. Hardman & V. Leonardi, História da indústria, p. 14.
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intelectualmente, no interior da qual os trabalhadores eram vistos como
subordinados ao Estado graças a determinações estruturais da industrialização
brasileira. Apoiados nos novos movimentos sociais, toda uma produção teórica
recente procura captar nas experiências dos dominados a inteligibilidade de
suas práticas. O que para nós definiu uma ruptura com a produção anterior
sobre a classe operária foi a noção de sujeito que emerge dessa nova produção,
isto é, o estatuto conferido às práticas dos trabalhadores, como dotadas de
sentido, peso político e significado histórico na dinâmica da sociedade. E foi
precisamente isso que estruturou nossa questão e nos levou a pensar as obras
do período anterior como compondo um paradigma no qual a classe aparece
como sujeito subordinado, sem uma dinâmica própria que emerja de suas
práticas, determinado por condições exteriores à sua existência concreta.”83
Retomando a discussão de Hardman e Leonardi, Thompson aparece em seu estudo,
também a partir da discussão sobre “um determinado conceito de classe, que fugindo às
classificações acadêmicas e sociologizantes, as quais esvaziam historicamente seu sentido, ao
defini-lo enquanto ‘estrutura’ ou ‘categoria’, tenta apreendê-lo concretamente”.84 E passam
então a citar Thompson, em algumas das famosas passagens do Prefácio de A formação...
Interessante notar que os autores fazem uma ressalva à ideia que acreditam estar em
Thompson, de uma “cultura operária”. Definindo cultura à maneira de Williams em Cultura e
sociedade, como “todo um modo de vida”, entendem, a partir de Trotsky, que não há
possibilidade de uma “cultura operária”, pois cada classe dominante forma a cultura
dominante de sua época. A ideia de uma cultura proletária seria relativa mesmo na fase de
transição para a sociedade socialista, pois embora os proletários imprimam aí sua marca à
produção cultural, a tendência deveria ser à supressão das classes, perdendo sentido o
problema de uma cultura de classes.85 Tal viés de diálogo entre Thompson e Trotsky não se
reproduziria com frequência no debate da historiografia posterior.
O impulso maior de difusão da referência a E. P. Thompson, porém, viria
posteriormente à publicação em português de seu Formação da classe operária inglesa, em
1987 e os anos 1980-1990 são profundamente marcados por essa presença. Além desta
referência mais frequente a Thompson, outra característica dos estudos mais recentes na
83 Maria Célia Paoli; Eder Sader & Vera Telles, “Pensando a classe operária: os trabalhadores sujeitos ao
imaginário acadêmico”, Revista Brasileira de História, No. 6. São Paulo, set. 1983, pp. 131-132.84 F. F Hardman, & V. Leonardi, História da indústria, pp. 317-318.85 Ibid., pp. 318-319.
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história social do trabalho brasileira é o avanço recorrente de seus recortes cronológicos de
pesquisa para o período pós-1930.
Um bom exemplo é a obra A Invenção do Trabalhismo de Ângela Gomes, que,
publicada em 1988, logo se transformou em referência fundamental dos estudos posteriores
sobre as relações entre trabalhadores e Estado na Era Vargas (embora também apresente uma
contribuição muito significativa para o debate sobre o movimento operário na Primeira
República). Nela a autora recorre a Thompson em diversas passagens e, particularmente na
Introdução, destaca a referência à concepção de formação da classe do historiador inglês,
pensada como sendo “tanto um fato de história econômica quanto um fato de história política
e cultural”.86 Tal aporte foi decisivo para uma análise que destacou a “palavra operária” no
processo de formação da classe nos anos anteriores à chegada de Vargas ao poder, bem como
para uma percepção dos trabalhadores como sujeitos conscientes no processo de implantação
da proposta trabalhista.
Toda uma sequência posterior de estudos buscou, abordando o período compreendido
entre os anos 1930 e o início da ditadura militar, rever os usos tradicionais da caracterização
do período como marcado pelo populismo – e em especial a ideia de um sindicalismo
populista – para destacar o papel ativo dos trabalhadores e suas organizações no período. Sob
a influência de Thompson, tais estudos também procuraram pautar-se pela valorização da
“agência” da classe trabalhadora.
Hoje já é possível listar muitos exemplos de trabalhos que questionam os limites das
análises centradas em tal caracterização do “sindicalismo populista”.87 Mas o debate sobre o
populismo foi além, incluindo uma revisão do conceito mesmo, que para alguns deveria ser
restringido a sua dimensão mais estritamente política, tendendo a circunscrever-se a uma
caracterização da forma de exercício da dominação no plano do Estado, naquele período, e
para outros, deveria ser completamente abandonado. Tal debate interessa mais diretamente a
esta discussão, não tanto pelo seu conteúdo específico, ao qual é claro não se pode deixar de
mencionar, mas especialmente pelo recurso a E. P. Thompson como uma referência central a
todos os trabalhos de historiadores que investiram no debate recente sobre o populismo.
A primeira linha de análise, que restringe a abrangência do conceito, é adotada por
86 A. C. Gomes, A invenção do trabalhismo, p. 16.87 Entre os historiadores, essa crítica está presente, por exemplo, nos textos reunidos na coletânea AlexandreFortes et alli, Na luta por direitos, Campinas, EdUnicamp, 1999. Fortes, Fernando Teixeira da Silva, Hélio daCosta, Paulo Fontes e Antonio Negro, seus autores, publicaram, nos últimos anos, uma série de outros estudos namesma linha crítica em relação à noção de sindicalismo populista. Ver também John D. French, O ABC dos
operários. Conflitos e alianças de classe em São Paulo, 1900-1950, São Paulo, Hucitec/Pref. Mun. De SãoCaetano do Sul, 1995. Ou ainda M. B. Mattos, Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro (1955-1988), Riode Janeiro, Vício de Leitura, 1998.
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Hélio da Costa e Fernando T. da Silva, em artigo no qual caracterizam o populismo como “um
espaço de lutas políticas e econômicas dos trabalhadores, tornando-se um campo, portanto,
mais complexo e dinâmico do que pressupunham as teses que reforçavam a imagem de uma
classe operária passiva e manipulada pelo Estado.”88 Para sustentarem sua análise os autores
recorrem aos estudos de Thompson sobre paternalismo, cultura plebeia e justiça na Inglaterra
do século XVIII, buscando ali “alguns princípios gerais da noção de hegemonia utilizada por
Thompson [que] permitem perceber como os trabalhadores retiravam da ideologia formal do
‘modelo paternalista’ os recursos necessários às suas demandas e lutas, utilizando-o como
algo que pertencia ao seu patrimônio adquirido.”89
Um dos caminhos mais profícuos de análise com tal referência foi o estudo das formas
pelas quais os trabalhadores perceberam a legislação trabalhista, lutando para materializar em
direitos efetivos o que se inscrevera na lei. É o que faz Alexandre Fortes, quando reivindica
Thompson para afirmar que a intenção de seu trabalho é “realizar uma história social da
política considerando, como Thompson, que a construção de direitos perpassa a própria
formação da classe trabalhadora, e deita raízes nas características culturais peculiares
assumidas pelas suas configurações em diferentes contextos históricos.”90
Cabe aqui um pequeno desvio na sequência da argumentação para chamar a atenção
para a forma como a influência de Thompson foi incorporada por estudos da “história social
do trabalho” preocupados com essa questão do direito.
Thompson e a luta por direitos
Na tese que deu origem ao livro citado dois parágrafos atrás, Alexandre Fortes
esclarece melhor o contexto do que considera ser uma mudança de foco na historiografia do
trabalho (e no campo mais amplo de estudos sobre a sociedade brasileira) de fins dos anos
1980 em diante. Em sua análise, as pesquisas do início da década (também influenciadas pela
88 Hélio da Costa & Fernando T. Da Silva, “Trabalhadores urbanos e populismo: um balanço dos estudosrecentes”, in Jorge Ferreira (org.), O populismo e sua história. Debate e crítica, Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira, 2001, p. 271.89 Idem, ibidem, p. 224. Vale ressaltar que os autores reconhecem a origem gramsciniana do uso que Thompsonfaz do conceito de hegemonia. No entanto, fazem referência ao debate de Thompson sobre hegemonia no séculoXVIII inglês, mas passam ao largo do fato de que todo o debate a partir de Gramsci sobre o período do pós-1930no Brasil localiza uma crise de hegemonia ou situa a realidade brasileira como característica de uma “revolução passiva”, conceito relativo a casos históricos em que uma dominação hegemônica não se apresenta de forma plena.90 Alexandre Fortes, Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas, Rio deJaneiro, Garamond/Educs, 2004, p. 21. Uma abordagem semelhante perpassa o conjunto dos artigos reunidos naobra coletiva Na luta por direitos. Cabe destacar que esse grupo de autores demonstrou uma grande
preocupação com o estudo sistemático da obra de Thompson, publicando a coletânea E. P. Thompson, As peculiaridades dos ingleses que incluiu estudos sobre a trajetória do historiador inglês, além de diversos artigosem periódicos acadêmicos.
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busca da “agência” dos trabalhadores em perspectiva thompsoniana) estiveram mais centradas
em destacar rupturas do movimento operário (especialmente a partir de 1978) com as amarras
da legislação sindical impostas pelo Estado, trabalhando com uma dicotomia, herdada dos
anos 1960, entre autonomia e heteronomia. Quando olhavam para o período anterior a 1930, o
faziam na perspectiva da busca da “autonomia perdida”.
Já os estudos mais recentes, foram construídos sob o impacto de um outro conjunto de
acontecimentos e processos – a campanha das “Diretas Já” de 1984, os trabalhos da
Assembleia Nacional Constituinte em 1987-1988, a mobilização pelo impeachment de Collor
em 1992 – com cerca de uma década de vida legal e ativa de partidos de esquerda e da
existência real, ainda que não legalizada, de centrais sindicais nacionais. Por isso, refletiriam
uma superação daquela dicotomia, inaugurando um “momento da cidadania”, cuja
consequência sobre o trabalho dos historiadores seria uma “abordagem do problema da
“agência” histórica dos trabalhadores, como parte da sociedade brasileira, [que] passaria então
por uma mutação, assumindo a forma do debate sobre o que se convencionou chamar de
'cidadania ativa'”.91
Sua proposta interpretativa concede bastante espaço para o papel das lutas dos
trabalhadores na conquista dos direitos, afinal “o desenvolvimento da cidadania aparece como
expressão de lutas sociais, assim como os direitos emergem da resistência”.92 E os estudos
históricos sobre a trajetória da classe trabalhadora brasileira no pós-1930 (ou mesmo antes)
estariam demonstrando como essa lógica de luta por direitos como busca da “cidadania ativa”
não era uma novidade da redemocratização iniciada no final da década de 1970.93
Tal perspectiva assume uma conotação política clara, chamando a atenção para o fato
de que, apesar das tendências antidemocráticas das classes dominantes, os trabalhadores
teriam procurado garantir o “domínio da lei”, integrando-se ao corpo da nação. Em suas
palavras:
“É bem verdade que o domínio da lei não tem sido prezado pelas classes
dominantes brasileiras. Entre os excluídos dos benefícios do desenvolvimento
econômico, porém, ele tem sido buscado como meio de reconstrução de uma
noção de merecimento e pertencimento à comunidade nacional. Este é o
processo que leva a “crença simbólica nos direitos” a se constituir na própria
expressão do espaço conquistado pelos setores populares em sua luta pela91 Alexandre Fortes, Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a Era Vargas. Campinas,Unicamp, 2001 (Tese de Doutorado em História), p. XXI. Essa discussão presente na alentada tese de Fortes não
foi mantida na versão menor da obra em livro.92 Ibid., p. XXVI.93 Fortes ilustra sua avaliação com os trabalhos dos demais autores de Na luta por direitos.
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transformação da sociedade brasileira.”94
Embora definindo a luta dos “setores populares” como voltada para a “transformação
social”, tal modelo de análise da luta por cidadania parece entender essa transformação nos
termos de uma luta por “inclusão” na comunidade nacional, em prejuízo evidente da
compreensão da dinâmica contrassistêmica – i. e., anticapitalista – que os movimentos da
classe eventualmente possam ter apresentado.
Esse horizonte político é o mesmo que orienta a recuperação das reflexões de
Thompson sobre a lei e o direito em artigo especificamente direcionado a esse tema, de
Adriano Duarte. Duarte analisa vários textos do historiador inglês em que o tema da Lei e do
direito é abordado e valoriza especialmente o famoso capítulo final de Senhores e Caçadores.
A dimensão política da reflexão de Duarte sobre a obra de Thompson é explicitada numa
defesa da democracia:
“A defesa de Thompson do domínio da lei como um benefício humano
inquestionável sugere, também, que se repense a maneira como normalmente se
faz a crítica aos regimes liberal-democráticos. Muitas vezes, a critica ao
capitalismo implica, equivocadamente, uma crítica à democracia, como se ambos
compusessem uma unidade inseparável. Não se pode perder de vista que o
capitalismo só se tornou democrático com a difícil e longa luta pelos direitos:direitos civis, no século XVIII; direitos políticos no século XIX; direitos sociais no
século XX. E essas conquistas devem ser tomadas também como 'bens humanos
incondicionais'. Portanto, foi a ação e a palavra ' dos de baixo' que,
progressivamente, não só tornou o liberalismo democrático como, em muitas
ocasiões, erigiu anteparos ao furor destrutivo do capitalismo. A democracia deve
ser um fim em si mesma e não apenas um meio e, muito menos ainda, um simples
instrumento. Defender o domínio da lei contra o poder arbitrário pode significar,
também, num certo sentido, uma 'defesa das regras do jogo'. O poder arbitrário, o
qual Thompson recusa, necessariamente implica violência, e onde ela emerge
desaparece a política como ação, palavra e contingência. E o poder arbitrário, e a
violência que ele engendra, representa riscos imensuráveis, principalmente para 'os
de baixo'.”95
94 Ibid., p. XXX.95 Adriano Duarte, “Lei, justiça e direito: algumas sugestões de leitura da obra de E. P. Thompson”, in R. G.Müller & A. Duarte, E. P. Thompson: paixão e política. Interessante notar que o argumento de Duarte, além de
inspirar-se na periodização de Marshal para a extensão dos direitos, é muito semelhante à clássica tese de Carlos Nelson Coutinho da “democracia como valor universal”, apresentada inicialmente em 1979. T. S. Marshal,Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar, 1967. C. N. Coutinho, A democracia como valor
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A ênfase política de Duarte na defesa do “domínio da lei” como “um bem humano
universal” se apoia efetivamente em Thompson, mas o autor não deixa de destacar que esse
não é o único sentido da análise da lei em Thompson. Afinal, em diversos outros momentos
de sua obra, o historiador inglês mostrou como a lei e o “teatro dos tribunais” haviam servido
como instrumentos de construção da hegemonia da gentry sobre a plebe, no século XVIII
inglês, ou seja, eram parte central em um processo de dominação social. 96 Por isso, Duarte
acredita que ao longo de sua obra, Thompson “esteja operando com dois modos distintos, e
muitas vezes antagônicos, de apreensão do universo da lei. Ora a lei aparece como mediação dos
conflitos de classe, ora aparece como expressão da dominação de uma classe sobre a outra. Essa
variação depende do contexto.”97 Em outra passagem, Duarte esclarece que “Thompson de
maneira alguma nega que haja uma função classista e mistificadora na Lei. Porém, ela não pode
ser reduzida a apenas isso, ou a uma mera tipologia de estruturas e superestruturas.”98 Enfim, a
dialética da lei poderia ser percebida pelo argumento central de Thompson de que:
“obviamente, não se pode acreditar na imparcialidade abstrata da lei. Onde há
desigualdade de classe, a lei sempre será uma impostura. Não obstante, nos
contextos mais variados, a lei não serve apenas para reforçar o poder dos
dominantes, muitas vezes ela limita esse poder de um modo específico e eficaz e,
ao fazê-lo, dá aos “aos de baixo” certas armas que legitimam suas ações e
restringem sua submissão.”99
No contexto recente de aproximação entre estudos sobre a escravidão e pesquisas
sobre o movimento operário, a referência comum a Thompson nas discussões sobre a lei e o
direito – tipicamente orientadas pelo “momento da cidadania” de que fala Fortes – levaram a
discussão dos paralelos entre as lutas dos escravos pela liberdade (recorrendo aos caminhos da
lei) e as lutas por direito dos trabalhadores “livres” no pós-1930. Um bom exemplo desse
movimento historiográfico é a coletânea organizada por Silvia Lara e Joseli Mendonça,
Direitos e justiça no Brasil . Na apresentação da obra as organizadoras enfatizam que a “lei e a justiça (…) deixaram de ser vistas como simples instrumentos de dominação de classe para se
configurarem como recursos que poderiam ser acionados por diferentes sujeitos históricos que
lhes atribuíam significados sociais distintos.”100
universal e outros ensaios, 2a. ed., Rio de Janeiro, Salamandra, 1984.96 Ver por exemplo, Thompson, “Modos de dominação e revoluções na Inglaterra”.97 A. Duarte, “Lei, justiça e direito”.98 Ibid.99 Ibid.100 Silvia H. Lara & Joseli Maria Nunes Mendonça, “Apresentação”, in id. (orgs.), Direitos e justiça no Brasil,Campinas, Edunicamp, 2006, p. 12. Outro exemplo recente desse encontro entre o tema da escravidão e o dotrabalho urbano livre pós-1888, através do debate sobre lei e direito, aparece no texto de S. Chalhoub &
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Essa leitura, embora também nitidamente inspirada em Thompson, parece ser menos
nuançada que aquela de Duarte, que ressalta com mais clareza o sentido da lei como
instrumento de dominação, não necessariamente simples, paralelo ao sentido do domínio da
lei como “bem humano incondicional” em Thompson. Na apresentação de Lara e Mendonça,
a positivação do caminho legal de acesso aos direitos passa, inclusive, por um deslocamento
do sentido mais coletivo da justiça como “arena da luta de classes”, destacado pelas autoras,
para uma dimensão mais individual. Sem negar o conflito, tal deslocamento canaliza suas
manifestações para os mecanismos institucionais no interior da ordem, o que pode dar a
impressão de que a “arena” do judiciário é certamente palco de conflitos, mas de certa forma
“neutra”, pois que a ação através dos mecanismos da lei não só seria “acionada”, mas também
“formulada” pelos indivíduos que a ela recorrem. Nas palavras das autoras:
“não se trata de obscurecer as relações de dominação e desigualdade das partes
envolvidas nesses conflitos, mas de mostrar como, em cada conjuntura
específica, essas lógicas políticas e jurídicas foram formuladas e acionadas por
indivíduos situados em campos sociais radicalmente opostos.”101
De certa forma, há uma convergência teórica, mas com certeza também política, entre
a forma como Sidney Chalhoub valoriza a ação dos escravos “no campo de possibilidades
largamente mapeado pelos adversários”, a atenção de Alexandre Fortes à luta dos “setores
populares” como orientada pelo desejo de “inclusão na comunidade nacional”, a defesa de
Adriano Duarte “das regras do jogo” e o apreço de Lara e Mendonça pela ação dos indivíduos
situados em campos sociais distintos, “formulando e acionando” as lógicas políticas e
jurídicas da lei. Tal confluência política se dá no contexto do processo de redemocratização
brasileira e dos caminhos trilhados, a partir da década de 1990 especialmente, pelas principais
formas organizativas construídas pelos trabalhadores brasileiros nos anos 1980.
Pelo que discuti no primeiro capítulo, considero que tal combinação entre leitura
histórica e posição política é plenamente compatível com a referência a Thompson. Afinal, ele
sempre construiu argumentos historiográficos cuja inspiração no debate político de seu tempo
é indiscutível. E isto sem qualquer concessão à flexibilização do método científico de
pesquisa histórica. Ou seja, estou distante aqui do relativismo pós-moderno que apresenta as
posições políticas dos historiadores como determinantes últimos de suas conclusões analíticas.
O que destaquei no primeiro capítulo é que Thompson formulou conceitos e teve insights
interpretativos a partir de suas intervenções políticas no presente, mas desenvolveu suas
Fernando Teixeira da Silva, “Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980”, Cadernos do AEL, vol. 14, no. 26, 2009.101 S. Lara & J. Mendonça, “Apresentação”, p. 13.
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análises da história através da pesquisa empírica em que teoria e evidência interagem segundo
a lógica metodológica própria da História.102 Nesse sentido, é possível dizer que suas
considerações sobre o “domínio da lei” são de fato uma referência bastante consistente para a
discussão da “luta por direitos” feita pelos historiadores brasileiros. Ainda que, do meu ponto
de vista, se a defesa do “domínio da lei” (combinada com a discussão sobre o “teatro dos
tribunais” e as formas de dominação ancoradas no sistema legal) em Thompson pode ser
associada ao seu “reformismo-revolucionário”, ou à “reforma como tática, revolução como
estratégia”, conforme procurei caracterizar sua visão da política socialista no primeiro
capítulo, os debates dos historiadores brasileiros parecem valorizar mais a perna “reformista”
na sua leitura de Thompson, ou seja, tendem a tomar a tática por estratégia.
Porém, se o recurso a Thompson como referência aproxima muitos estudos de história
social do trabalho recentes, há diferenças significativas nas leituras que cada um deles fazem
desse referencial thompsoniano. Exemplos de outra natureza dessa diversidade de leituras
podem ser buscados numa outra vertente analítica que também participa do debate sobre o
populismo e as relações entre Estado e trabalhadores no período 1945-1964.
Sai populismo entra trabalhismo; sai marxismo, entra Thompson?
A crítica às teses que caracterizaram a classe como passiva e manipulada são
compartilhadas por um outro conjunto de autores e trabalhos preocupados em rever as
interpretações da relação entre Estado e trabalhadores no pós-1930. Suas conclusões, porém
são distintas das teses esposadas pelos trabalhos afinados com o “paradigma da cidadania” em
suas análises sobre a “luta por direitos”, já que propõe a rejeição do termo populismo e sua
substituição por trabalhismo.103
A grande referência para os autores que propõem essa discussão é a obra já citada de
Ângela Gomes, A invenção do trabalhismo. Como a própria autora explicou, em um artigo
publicado originalmente em 1996 e republicado cinco anos depois com o acréscimo de um
pós-escrito, a crítica ao conceito de populismo em seu livro era ainda implícita. Na forma
explicitada no artigo, a alternativa se construiu em torno da “designação de pacto trabalhista
para pensar as relações construídas entre Estado e classe trabalhadora”. Segundo a autora, a
ideia de pacto “procurava enfatizar a relação entre atores desiguais, mas onde não há um
102 “Embora qualquer teoria do processo histórico possa ser proposta, são falsas todas as teorias que não estejamem conformidade com as determinações da evidência.” E. P. Thompson, A miséria da teoria, p. 50.103 Desenvolvi pela primeira vez os argumentos aqui retomados em forma ligeiramente modificada no primeiro
capítulo de M. B. Mattos (coord.), Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca (1945-1964), Rio deJaneiro, Aperj/Faperj, 2003. Outra balanço crítico da tentativa de substituição de populismo por trabalhismo pode ser encontrada na conclusão do livro de A. Fortes, Nós do Quarto Distrito.
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Estado todo-poderoso nem uma classe passiva porque fraca numérica e politicamente.”104
No pós-escrito incluído na republicação de seu artigo em 2001 há um avanço, que
substitui o “pacto trabalhista” pela expressão mais simples “trabalhismo”, opondo-a de forma
ainda mais explícita ao populismo. Repetindo de forma sintética sua rejeição às ideias
subjacentes ao uso da “palavra” populismo - “classe trabalhadora ́ passiva` e sem consciência,
sendo ´manipulada` por políticos inescrupulosos que a ´enganavam`, e que não tinham, na
verdade, representatividade política e social” -, a autora afirma que, optou por utilizar a
“palavra” trabalhismo, cuja “invenção” acompanhara. Em sua análise, “trabalhismo seria
usado (...) como uma categoria, passando a se referir a um certo conjunto de ideias e práticas
políticas, partidárias e sindicais, o que poderia ser identificado para além de seu contexto de
origem histórica: o Estado Novo.”105
O interessante é que também a tese centrada na valorização do trabalhismo busca
sustentar-se na referência a Edward Thompson, embora de uma forma distinta da adotada
pelos historiadores que comentei como associados à tese da “luta por direitos”. Já mencionei
como em A invenção do trabalhismo Ângela Gomes cita o historiador inglês como referência.
Quem levou mais longe a proposta de substituição do conceito de populismo pelo de
trabalhismo, entretanto, não foi Ângela Gomes, mas Jorge Ferreira, organizador da coletânea
em que Gomes republicou seu artigo e autor de um outro artigo na mesma obra. Assim, se
para Ângela Gomes, a ideia de “pacto trabalhista” envolvia Estado e trabalhadores, numa
“relação entre atores desiguais”, no texto de Jorge Ferreira, a assimetria dos atores é
esquecida. Em seu lugar, surge “uma relação, em que as partes, Estado e classe trabalhadora,
identificaram interesses comuns.”106
Analogamente, o discurso trabalhista, que para Ângela Gomes “apropria e re-significa
o discurso operário” construído na Primeira República, no artigo de Jorge Ferreira aparece
com outra significação, como uma continuidade, não uma apropriação, da “palavra operária”:
“no trabalhismo estavam presentes ideias, crenças, valores e códigos comportamentais que
circulavam entre os próprios trabalhadores muito antes de 1930”.107
No que interessa mais para minha discussão, Thompson é também invocado por
Ferreira como referência fundamental, sendo citado em várias passagens. E Ferreira o faz
opondo não apenas sua concepção de trabalhismo às concepções dos teóricos do populismo,
104 A. C. Gomes, “O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito”, In JorgeFerreira (org.), O populismo e sua história, p.47.105 Ibid., p. 55.106 J. Ferreira, “O nome e a coisa: o populismo na política brasileira”, in id. (org.), O populismo e sua história,
p. 103.107 Ibid., p. 103.
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mas opondo Thompson ao que ele considera ser a principal referência teórica daqueles
teóricos: a obra de Antonio Gramsci. Já no artigo de Angela Gomes comentado, as análises
tradicionais do populismo são associadas a uma matriz conceitual baseada na obra do italiano
Antonio Gramsci. Já os estudos que renovaram o campo, partiam muitas vezes da referência a
Edward Palmer Thompson. Nas palavras da autora, “Gramsci, muito utilizado nas análises
sobre o fenômeno populista no Brasil, começava a ganhar competidores dentro do próprio
campo marxista, que se renovava, merecendo destaque a contribuição de E. P. Thompson”. 108
No texto de Jorge Ferreira, porém, a associação entre a referência em Gramsci e os
erros da teoria do populismo é ainda mais ressaltada. Embora afirmando o refinamento do
marxismo de Gramsci e as várias possibilidades de leitura de seus conceitos, o autor acredita
que, ao utilizarem-se do conceito de hegemonia de Gramsci, os historiadores brasileiros
estariam simplificando a primeira definição de populismo, que incluía uma "tríade repressão,
manipulação e satisfação". Segundo Ferreira, através de Gramsci, a teoria do populismo teria
se reduzido à "dicotomia repressão e persuasão", o que o leva a concluir que "houve uma
regressão na maneira de se pensarem as relações entre Estado e classe trabalhadora na época
de Vargas.”109 O autor afirma não pretender negar a existência do aparato repressivo e de
propaganda do governo, mas questiona a abordagem das "relações entre Estado e classe
trabalhadora a partir de paradigmas explicativos, ao mesmo tempo opostos e complementares,
centrados na repressão e na manipulação, ambos surgindo como formas de violência estatal
sobre os assalariados, física uma dimensão, ideológica a outra.”110 Não cabem aqui,
simplesmente por uma questão de foco da análise, comentários sobre a forma como os
conceitos de Gramsci são tratados por Ferreira, embora, pela maneira como apresentei alguns
aspectos da obra do revolucionário sardo nos capítulos anteriores já deva estar claro que
discordo desse tratamento.
Por outro lado, na crítica ao conceito de populismo desenvolvida por Ferreira
encontramos Thompson associado aos mais diversos autores que estudaram a "cultura
popular", como Carlo Ginzburg, Roger Chartier, Peter Burke, Robert Darnton, Natalie Davis,
Giovani Levi, apresentados como historiadores que “passaram a utilizar o conceito de cultura
- categoria até então restrita às análises antropológicas”, além de ser associado a uma
“narrativa densa” (talvez numa referência não explicitada à descrição densa de Gertz). Tudo
isso compatibilizado com o subtítulo “De Gramsci a Ginzburg, de Foucault a Thompson”.111
108 A. C. Gomes. “O populismo e as ciências sociais”, p. 44.109 J. Ferreira, “O nome e a coisa”., p. 85.110 Ibid., p. 88.111 Ibid., pp. 96-98.
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O resultado de um tal mescla teórica é uma análise que trata o ideário
getulista/trabalhista como correspondendo literalmente à consciência de classe dos
trabalhadores brasileiros da época: “Compreendido como um conjunto de experiências
políticas, econômicas, sociais, ideológicas e culturais, o trabalhismo expressou uma
consciência de classe, legítima porque histórica.”112 Ou seja, da crítica ao conceito de
populismo chega-se à valoração positiva de uma proposta característica, na época, de uma
perspectiva de intervenção política própria às classes dominantes, pautada pela conciliação de
classes – o trabalhismo – não apenas como conceito substitutivo, mas como correspondente à
própria consciência da classe naquele momento. E Thompson aparece como referência para
tais conclusões.
Nesse caso, acredito que há uma leitura da obra de Thompson que despreza vários dos
argumentos postos pelo historiador inglês contra proposições semelhantes às apresentadas por
Ferreira. Em primeiro lugar pela apresentação de uma oposição entre o historiador inglês e o
revolucionário sardo, em cujos conceitos e análises Thompson explicitamente se baseou,
combinada à aproximação de Thompson a autores que ele explicitamente criticou, justamente
no debate sobre o conceito de “cultura popular” (como no caso de Peter Burke, conforme
discuti no capítulo 3). Além disso, pelo tratamento bastante distinto que faz do conceito de
consciência de classe daquele apresentado por Thompson, que sempre afirmou que tal
consciência se desenvolve como consciência de que os interesses comuns à classe se opõem
aos das classes dominantes. Sem mediações de qualquer nível – paternalismo, ideologia,
hegemonia – apresentar o trabalhismo como a consciência da classe trabalhadora brasileira é
caminhar em sentido oposto, ao retirar de cena o conflito social fundamental.
Trata-se aí de uma clara tentativa de “domesticação” das propostas interpretativas do
historiador inglês. Uma domesticação que é perpassada por um viés “culturalista”, de difícil
associação com os textos de Thompson. Tomo domesticação no sentido conferido por Aijaz
Ahmad, que usa o termo para se referir a uma apropriação dos conceitos e dos propósitos de
Gramsci, inscritos no território do marxismo, por uma proposta política e por uma leitura
acadêmica que apresentam como centrais no pensamento do autor italiano apenas a discussão
da democracia e as temáticas relacionadas à cultura.113
No Brasil, porém, mais que de Gramsci, é de Thompson que encontramos com maior
frequência as leituras domesticadas pelo culturalismo. Nesse aspecto, a discussão sobre
“cultura popular” feita por alguns historiadores brasileiros, quando incorporando Thompson,
112 Ibid., p. 103.113 A. Ahmad, Linhagens do presente, p.259.
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parece muito claramente associá-lo a autores e debates dos quais ele muitas vezes se
diferenciou. Ronaldo Vainfas, por exemplo, chega a definir o historiador inglês como “uma
espécie de ‘versão marxista’ da história cultural”, por ele identificada como uma evolução da
“história das mentalidades” de matriz francesa.114 Tal perspectiva permite toda a sorte de
confusões sobre a obra de Thompson, como as afirmações de que ela “parte de um marxismo
mais convencional (estudo de ideologias, consciências de classe etc.) para um conceito mais
elástico e histórico-antropológico de cultura popular”, ou que “o conceito de cultura popular
de Thompson exprime, sem deixar de ser marxista, um relativo afastamento do autor em
relação à tradição marxista britânica”115
Não preciso retomar todos os argumentos do capítulo 3, nem tampouco as passagens
de Thompson em Costumes em comum, criticando os usos correntes do termo “cultura
popular”, ou sua crítica a Williams nos anos 1960, resgatada mais de 15 anos depois no debate
que se seguiu à publicação da Miséria da teoria, para afirmar que essas caracterizações não
correspondem, de forma alguma, às concepções explicitadas nos textos de Thompson.
Por que então o recurso a Thompson para operar-se a domesticação aqui discutida?
Uma possível resposta talvez esteja no fato de que, no interior do debate que travou contra o
que considerava uma perspectiva determinista do marxismo, Thompson tenha sido acusado de
culturalista por outros marxistas. Recorrer a Thompson seria, nesse sentido, uma busca de
legitimação no interior do próprio debate marxista para o culturalismo praticado pelos seus
“usuários”.
Do ponto de vista aqui assumido, a dificuldade não está, portanto, no uso de
referências a Thompson, mas justamente na tentativa de apresentar como distante do
marxismo um autor que compartilha um referencial assumido do materialismo histórico, que o
leva a formular propostas interpretativas voltadas para a explicação de modos de dominação
social em meio à dinâmica do conflito, da luta de classes. Pensar a classe através de
Thompson, desprezando a luta de classes para chegar a uma ideia de consciência da classe
trabalhadora como legitimamente representada na proposta política dos dominadores é, para
dizer pouco, uma contradição. Política, tanto quanto historiográfica, é claro.
Assim, retomando a discussão sobre esses dois caminhos de interpretação da trajetória
da classe trabalhadora brasileira no século XX, que buscaram inspiração em Thompson, posso
concluir este capítulo. Primeiro, afirmando que na leitura das teses que se centram na ideia da
114 R. Vainfas, “História das mentalidades e história cultural”, p. 155.115 Ibid., p. 157.
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“luta por direitos”, Thompson é invocado para lastrear uma perspectiva que apresenta os
trabalhadores (como também os escravos para as discussões sobre o período escravista) como
“sujeitos de sua própria história”, ressaltando sua formação como classe, sem esquecer os
contextos específicos de luta de classes em que tal processo se dá. Tal caminho interpretativo
valoriza fundamentalmente os espaços legais – institucionais como os locais privilegiados
para a busca da resolução dos conflitos. Os modos de dominação e as construções
hegemônicas são lembrados, mas o caminho da “cidadania”, como conquista e
reconhecimento de direitos comuns a todos(as) é o mais valorizado para o entendimento das
estratégias políticas dos trabalhadores.
Já no caso das perspectivas mais claramente “domesticadoras” da referência a
Thompson para entender os trabalhadores no Brasil pós-1930 o conceito de classes sociais
não pode desaparecer, mas o de luta de classes é esquecido completamente. Associando o
historiador inglês à tradição historiográfica francesa dos Analles – tão forte como referência
sobre os historiadores brasileiros – na discussão sobre “cultura popular”, todas as restrições
levantadas por Thompson aos usos “ultraconsensuais” desse termo ficam de fora,
equiparando-se a discussão deste autor às leituras culturalistas que ele tão veementemente
rechaçou. A dimensão da lei também é destacada, mas os modos de dominação desaparecem.
Conceitos centrais como o de exploração, ou mesmo a dimensão de determinação das relações
de produção sobre a experiência são menosprezados. Como é desconhecida a insistência de
Thompson em afirmar a fundamentação básica do materialismo histórico contida na assertiva
de Marx de que o “ser social determina a consciência social”. Isso se faz no mesmo compasso
em que a crítica de Thompson à tradição idealista que buscou ancoragem em Marx é
estendida como se fosse uma crítica a toda(s) a(s) tradição(ões) marxistas, subvalorizando,
entretanto, a crítica tão dura quanto a primeira que Thompson desenvolve ao pensamento
conservador em História.
Longe de querer aqui apresentar uma única leitura possível, ou a leitura correta, da
obra de Thompson, meu esforço foi tentar entender como o historiador inglês foi incorporado
ao arsenal teórico dos historiadores brasileiros numa época em que a ascensão das lutas da
classe trabalhadora na cena política do fim da ditadura militar e início do restabelecimento das
instituições democráticas impôs as discussões sobre a classe aos estudos históricos. Nas
décadas de 1990 e na década de 2000, entretanto, não apenas as lutas da classe refluíram,
como também o referencial marxista foi posto em xeque nas ciências humanas em geral.
Thompson permaneceu como referência nessas últimas duas décadas, mas seus usos foram progressivamente alterados, revelando não tanto uma reavaliação de suas obras e
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contribuições, mas muito mais um leitura seletiva, ou em alguns casos a tentativa (pouco
importa se consciente ou não) de domesticá-lo.