Biocolonialismo

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Brasília a. 49 n. 195 jul./set. 2012 149 Sumário 1. Considerações iniciais. 2. A biopirataria de materiais genéticos humanos oriundos de povos indígenas. 3. Análise da questão perante o ordenamento jurídico. 4. Conclusões. Escrutar quiere decir explorar: exploro el cuerpo del outro como si quisiera ver lo que tiene dentro, como si la causa mecánica de mi deseo estuviera en el cuerpo adverso (...) (BARTHES, 1993, p. 60). Entraban en los pueblos, ni dejaban niños, ni mujeres preñadas ni paridas que no desbarrigaban e hacían pedazos, como si dieran en unos corderos metidos en sus apriscos. Hacían apuestas sobre quién de una cuchillada abría el hombre por medio, o le cortaba la cabeza de un piquete o le descubría las entrañas (DE LAS CASAS, 1986, p. 27). 1. Considerações iniciais Biocolonialismo, biopirataria, biopros- pecção... Essas palavras, a despeito de alguns abusos com que são utilizadas, for- mam, na realidade, conceitos que traduzem o paradigma pós-moderno no que se refere aos avanços da engenharia genética e seus impactos na humanidade. Dessa forma, para a devida compreensão da presente proposta de trabalho, importa o esclareci- mento dos três primeiros conceitos 1 . 1 Quanto ao conceito de biopolítica, citado no tópico, remete-se o leitor às obras “Nascimento da Biopolítica” de Michel Foucault (2008) e “Homo Sacer” de Giorgio Agamben (1995). Thiago Pires Oliveira é Mestrando em Direi- to pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito do Estado pela UFBA. Ex-Professor substituto de Direito Ambiental na UFBA e de Bioética na Faculdade São Salvador. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direito Ambiental e Animal (NIPEDA- -UFBA). Advogado. Thiago Pires Oliveira Biocolonialismo Um desafio para a efetivação do direito dos povos indígenas ao patrimônio genético

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    Sumrio1. Consideraes iniciais. 2. A biopirataria

    de materiais genticos humanos oriundos de povos indgenas. 3. Anlise da questo perante o ordenamento jurdico. 4. Concluses.

    Escrutar quiere decir explorar: exploro el cuerpo del outro como si quisiera ver lo que

    tiene dentro, como si la causa mecnica de mi deseo estuviera en el cuerpo adverso (...)

    (BARTHES, 1993, p. 60).

    Entraban en los pueblos, ni dejaban nios, ni mujeres preadas ni paridas que no desbarrigaban e hacan pedazos, como

    si dieran en unos corderos metidos en sus apriscos. Hacan apuestas sobre quin de una

    cuchillada abra el hombre por medio, o le cortaba la cabeza de un piquete o le descubra las entraas (DE LAS CASAS, 1986, p. 27).

    1. Consideraes iniciaisBiocolonialismo, biopirataria, biopros-

    peco... Essas palavras, a despeito de alguns abusos com que so utilizadas, for-mam, na realidade, conceitos que traduzem o paradigma ps-moderno no que se refere aos avanos da engenharia gentica e seus impactos na humanidade. Dessa forma, para a devida compreenso da presente proposta de trabalho, importa o esclareci-mento dos trs primeiros conceitos1.

    1 Quanto ao conceito de biopoltica, citado no tpico, remete-se o leitor s obras Nascimento da Biopoltica de Michel Foucault (2008) e Homo Sacer de Giorgio Agamben (1995).

    Thiago Pires Oliveira Mestrando em Direi-to pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito do Estado pela UFBA. Ex-Professor substituto de Direito Ambiental na UFBA e de Biotica na Faculdade So Salvador. Pesquisador do Ncleo de Pesquisa e Extenso em Direito Ambiental e Animal (NIPEDA--UFBA). Advogado.

    Thiago Pires Oliveira

    BiocolonialismoUm desafio para a efetivao do direito dos povos indgenas ao patrimnio gentico

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    Assim, a bioprospeco refere-se a toda atividade de pesquisa, no meio ambiente natural, de protenas, de genes e de orga-nismos vivos que sejam de interesse para a Pesquisa e o Desenvolvimento da bio-medicina e da biotecnologia (HOTTOIS, 2001, p. 139).

    Biopirataria um neologismo que desig-na toda bioprospeco exercida de maneira ilegal ou de forma antitica (HOTTOIS, 2001, p. 140). Trata-se de uma prtica que reproduz o modelo de apropriao de ca-pitais vigente durante a Idade Moderna e implantado pelas naes europeias em seu projeto de colonizao das outras partes do mundo, mas que se utiliza de outros dis-cursos ao apropriar-se de outras matrias--primas, alm de outras armas (SHIVA, 2001, p. 27-28).

    O biocolonialismo seria a apropriao indevida de recursos biolgicos dos pa-ses em desenvolvimento (MORIN, 2004) pelos pases detentores do know how bio-tecnolgico, ou seja, os pases que sediam grandes centros de pesquisa, laboratrios e indstrias de engenharia gentica ou bioengenharia.

    Os conceitos de biocolonialismo e de biopirataria guardam grandes semelhan-as; entretanto, conduzem a aplicaes de amplitude distintas. A biopirataria referir-se-ia especificamente prtica de bioprospeco ilegal, ao passo que o bio-colonialismo seria um discurso de poder pautado tanto na biopirataria, quanto na bioprospeco com o intuito de criar uma nova diviso internacional do trabalho en-tre pases lderes da revoluo biotecnolgi-ca e pases fornecedores de biocommodities.

    A questo do biocolonialismo provoca uma remisso ideia de biopoder, visto que h uma interligao entre a dominao do poder e a dominao do indivduo/corpo, em que essa forma de dominao reflexo da primeira, tendo o discurso produzido pelo Biodireito (em seus aspectos norma-tivo, cientfico e/ou judicial) um papel de destaque (OLIVEIRA T., 2010, p. 383).

    Isso explica o motivo de as investigaes envolvendo materiais genticos humanos despertarem paixes e debates acalorados em diversos mbitos da experincia hu-mana, no se limitando s hermticas ctedras acadmicas. Afinal, ao deter o DNA-poder, ou seja, a informao sobre o cdigo gentico de uma pessoa ou de um grupo, o detentor desse saber na realidade estar conhecendo a vulnerabilidade dessa pessoa ou do citado grupo (AZEVEDO, 2003, p. 327). E, em algumas circunstncias, conhecer as fraquezas de algum pode ser mais vantajoso do que conhecer suas fortalezas.

    2. A biopirataria de materiais genticos humanos oriundos de povos indgenas

    Ao redor do Planeta, existem diversos relatos de biopirataria de materiais genti-cos humanos oriundos de povos indgenas. Assim, como a pirataria e o trfico de es-cravos contriburam para que a Inglaterra se capitalizasse no passado e promovesse sua revoluo industrial (GALEANO, 2010, p. 118-119) no sculo XVIII, na contempo-raneidade, teme-se que a histria se repita, com a revoluo biotecnolgica sendo man-tida pela explorao de materiais genticos de populaes vulnerveis dispersas pelos pases em desenvolvimento, pases que tiveram um histrico de colonizao.

    Com a revoluo biotecnolgica, tem crescido o nmero de relatos envolvendo a biopirataria de materiais genticos hu-manos oriundos de populaes autctones dispersas por diversos lugares do planeta. Vandana Shiva relata que: As linhagens de clulas dos Hagahai da Papua Nova Guin e dos Guam do Panam foram patenteadas pelo Secretrio do Comrcio dos Estados Unidos (SHIVA, 2001, p. 26).

    Esses dois casos, famosos no direito internacional da propriedade intelectual, so paradigmticos ao demonstrarem a absurda condio em que se encontra o indivduo no contexto da engenharia ge-

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    ntica: comprimido por aes que visam sua reificao, uma ameaa sua dignidade (SOARES, 2008, p. 261).

    Afinal, a instrumentalizao do ser humano representa uma degradao in-compatvel com sua estruturalidade onto-lgica, de modo que todo desenvolvimento cientfico-tecnolgico poder ser de grande benefcio para a humanidade, desde que se reconhea a dignidade prpria do ser humano e haja o respeito aos direitos de-correntes dessa condio intrnseca ao ser (OLIVEIRA M., 2006, p. 254-255).

    Conforme foi citado acima, os casos de bioprospeco ilegal tm atingido diversas etnias ao redor do globo terrestre, inclusive aquelas localizadas em territrio brasileiro. No Brasil, os casos mais notrios envolvem a coleta de sangue de ndios Yanomami no estado de Roraima por pesquisadores norte-americanos e a apropriao de ma-terial biolgico de ndios Suru e Karitiana situados no estado de Rondnia.

    O caso Yanomami refere-se expedio cientfica dos norte-americanos James Neel e Napoleon Chagnon entre os ndios Yano-mami ocorrida no final da dcada de 60 do sculo passado. Nessa expedio, houve a coleta de aproximadamente 12.000 (doze mil) amostras de sangue dos ndios que se encontram armazenadas em universidades estadunidenses dedicadas ao Projeto Ge-noma Humano (DINIZ, 2007, p. 285). Esse episdio, inclusive, foi objeto de uma obra literria escrita pelo jornalista norte-ameri-cano Patrick Tierney denominada Darkness in El Dorado (Trevas no Eldorado).

    Durante aquela pesquisa, surgiram diversas variveis que repercutiram negati-vamente sobre ela: o surto de uma epidemia de sarampo que dizimou um tero da popu-lao Yanomami, interferncias indevidas dos pesquisadores na cultura visando a comprovar a tese da agressividade dos Yanomami e a estocagem de sangue sem o consentimento dessas comunidades indge-nas, o que interpretado como uma ofensa grave a esses povos, visto que, de acordo

    com a religio Yanomami, quando um yanomami morre, todos os seus vestgios corporais tm que ser eliminados (DINIZ, 2007, p. 293-294).

    Na atualidade, em virtude desses epi-sdios, uma das lutas encabeadas pelas lideranas Yanomami consiste na busca da devoluo do sangue para posterior destruio em territrio yanomami. Nesse sentido, houve uma iniciativa da Uni-versidade Federal do Par (UFPA) que devolveu aos ndios algumas das amostras que se encontravam armazenadas em seu laboratrio; todavia, as instituies norte--americanas tm resistido a efetuar essa devoluo (DINIZ, 2007, p. 294-295).

    Recentemente, o Ministrio Pblico Federal instaurou um procedimento ad-ministrativo para recuperar tais amostras, o qual resultou numa ao mais incisiva do governo brasileiro na busca da obteno do sangue extraviado. Fruto disso, no ano de 2010, a Universidade do Estado da Pen-silvnia (Estados Unidos) manifestou-se favoravelmente devoluo das amostras (MURTA, 2010).

    Outros casos polmicos foram os que abrangeram as etnias Suru e Karitiana, situadas no estado de Rondnia, que sofreram um processo extremo de com-moditizao de seus materiais genticos, processo este que chegou ao ponto de uma empresa norte-americana denominada Coriell Cell Repositories (CCR), sediada em New Jersey e vinculada ao centro de pes-quisas Coriell Institut for Medical Research, negociar na internet amostras de DNA desses povos (CORIELL..., [200-?]).

    As amostras de DNA dos ndios Suru foram extradas de ndios na faixa etria entre 16 (dezesseis) a 30 (trinta) anos de idade, ao passo que as amostras de DNA dos Karitiana foram extradas de ndios na faixa etria entre 13 (treze) a 49 (qua-renta e nove) anos de idade. O preo delas est na faixa de US$ 55 (cinquenta e cinco dlares) a US$ 85 (oitenta e cinco dlares) (CORIELL..., [200-?]).

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    Estudando a questo Karitiana/Suru sob a tica jurdica, Taysa Schiocchet (2010, p. 183) disserta que as grandes questes que precisam ser tratadas so: as condies de acesso ao material, a posterior explo-rao de suas informaes, bem como a repartio de benefcios.

    Defende Schiocchet (2010, p. 238) a repartio de benefcios como ferramenta de promoo de cooperao entre os pases desenvolvidos e em desenvolvimento, pois ela permitiria uma adequao do princpio da gratuidade, em face do princpio da justia e da equidade no acesso aos bene-fcios decorrentes da pesquisa, alm de ela se constituir

    num instrumento preventivo da quebra da reciprocidade nas relaes de don, pois como ficou estampado no caso dos Karitiana, a quebra da reci-procidade fez emergir um imperativo de reparao por uma das partes, materializado monetariamente.

    A questo da biopirataria de material biolgico Karitiana inclusive foi objeto de uma ao civil pblica que tramitou na Justia Federal que foi decidida pelo Tribunal Regional Federal da 1a Regio que, entendendo ter ocorrido dano moral e a violao do princpio da dignidade da pessoa humana, decidiu favoravelmente reparao civil dos ndios Karitiana, con-forme o seguinte trecho da ementa:

    AO CIVIL PBLICA. IND-GENAS. COLETA INDEVIDA DE SANGUE E DADOS ANTROPOM-TRICOS DE NDIOS DA COMUNI-DADE KARITIANA. SUSPEITAS DE COMERCIALIZAO DE MATE-RIAL GENTICO NO EXTERIOR. VIOLAO DO PRINCPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HU-MANA. LESO INTEGRIDADE FSICA, MORAL E CULTURAL DOS INDGENAS. INDENIZAO POR DANOS MORAIS. NO-OCORRN-CIA DE PRESCRIO. PRECEDEN-TES DO STJ (BRASIL..., 2007).

    Apenas para efeitos de curiosidade acerca do quanto tais materiais esto se irradiando: o Projeto Diversidade do Ge-noma Humano possui em seu biobanco amostras de DNA justamente de ndios pertencentes etnia Suru e Karitiana que abrangem cinquenta e duas populaes (CAVALLI-SFORZA, 2005, p. 337).

    O interesse cientfico na prospeco de genes de amerndios advm, entre outros motivos, do fato de que as populaes indgenas tendem a ser geograficamente bem delimitadas e em virtude de seus membros compartilharem uma histria bio-lgica em comum (COIMBRA JUNIOR, 1996, p. 420).

    Correlato ao conceito de biocolonialis-mo, h a ideia de imperialismo cientfico que consistiria em custos menores, maior facilidade em obter o consentimento, me-nor oportunidade de reivindicaes legais (leia-se indenizao), menor controle sobre as pesquisas (HOSSNE, 2003, p. 276). Es-sas condies vantajosas vm atraindo o interesse de diversos agentes econmicos interessados em maximizar os seus lucros por meio da bioprospeco ilegal junto a indivduos vulnerados por sculos de descaso de governos impotentes e levianos com o bem-estar de suas populaes.

    3. Anlise da questo perante o ordenamento jurdico

    Neste tpico, pretende-se abordar os diplomas normativos existentes no plano internacional e brasileiro com o propsito de sistematizar um arcabouo jurdico m-nimo que regule os materiais genticos hu-manos oriundos de povos indgenas, bem como enfrente a questo da biopirataria.

    A Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos, proclamada pela Unes-co em 2005, d nfase proeminncia dos princpios da autonomia, da beneficncia e no maleficncia, da justia, do respeito diversidade cultural e ao pluralismo, da no discriminao, da confidencialidade,

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    da solidariedade e cooperao, da res-ponsabilidade em relao biosfera e da obrigao de compartilhar equitativamente os benefcios da pesquisa (FERNANDES, 2008, p. 153).

    Esse instrumento de soft law pode ter inmeras aplicaes com vistas a combater a problemtica da biopirataria de materiais genticos humanos oriundos de popula-es tradicionais. Nesse sentido, alguns princpios elencados acima devem ser des-tacados de modo a expor as diferentes pos-sibilidades que o Biodireito oferece como mecanismo de proteo s populaes em situao de vulnerabilidade, como o caso das populaes indgenas e quilombolas.

    Com o intuito de analisar alguns instru-mentos de combate biopirataria de mate-riais genticos indgenas no direito brasilei-ro, focar-se- na anlise dos princpios da autonomia e da justia e nos mecanismos jurdicos que resguardam esses princpios e protegem os povos autctones do Pas.

    Quando se invoca o princpio da auto-nomia em relao s pessoas vulnerveis, observa-se que esse princpio dever ser aplicado de forma diferenciada e no de acordo com as clssicas balizas da auto-nomia privada estabelecida pelo Direito Civil moderno. Assim, dever haver a proteo das pessoas com autonomia di-minuda ou deteriorada, que implica que se deve proporcionar segurana contra prejuzos ou abusos a todas as pessoas dependentes ou vulnerveis (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2005, p. 217).

    Em face dessa forma particularizada do princpio da autonomia, cresce a im-portncia dos meios de expresso do con-sentimento pela comunidade atingida pela bioprospeco e, tambm, das instncias polticas diretamente envolvidas com tais comunidades.

    Alm dessas normas principiolgicas, em relao ao patrimnio gentico ind-gena existem instrumentos de hard law, que, a despeito de terem um escopo mais amplo, so igualmente aplicveis. Trata-se

    dos artigos 5o e 225, 1o, da Constituio Federal de 1988.

    O patrimnio gentico humano goza de proteo pela Constituio Federal de 1988. Isso pode ser inferido da proteo ampla conferida pelo art. 1o, III, que dis-pe sobre a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil, tambm da proteo genrica estabelecida no 5o, inciso X, que trata do direito fundamental inviolabili-dade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, sendo assegurado o direito indenizao pelo dano material ou moral decorrente de sua violao.

    Outro dispositivo constitucional que resguarda o patrimnio gentico de forma especfica o art. 225, 1o, II, que prev o dever do poder pblico de preservar a diversidade e a integridade do patrimnio gentico do Pas e fiscalizar as entidades dedicadas pesquisa e manipulao de material gentico.

    No h lacuna normativa com respeito a pesquisas envolvendo o patrimnio ge-ntico de povos indgenas, em virtude de a Resoluo no 304, de 9 de agosto de 2000, do Conselho Nacional de Sade (CNS) estabelecer normas para elas. A referida resoluo prev que so necessrias vrias manifestaes de consentimento, e no so-mente a do ndio na condio de indivduo.

    Dispe o item III, 2.4, da Resoluo CNS no 304/2000:

    2 Qualquer pesquisa envolvendo a pessoa do ndio ou a sua comuni-dade deve:(...) 2.4. Ter a concordncia da comu-nidade alvo da pesquisa que pode ser obtida por intermdio das respectivas organizaes indgenas ou conselhos locais, sem prejuzo do consentimen-to individual, que em comum acordo com as referidas comunidades desig-naro o intermedirio para o contato entre pesquisador e a comunidade. Em pesquisas na rea de sade

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    dever ser comunicado o Conselho Distrital;

    Dessa forma, nos termos com a cita-da norma do CNS, pode-se inferir que a concretizao do respeito autonomia do amerndio, quando este se encontrar como sujeito pesquisado, somente poder ser constatada aps celebrao de instrumen-tos de consentimento: a) pelo prprio ndio particular; b) pela prpria comunidade indgena, por meio de sua liderana ou de deliberaes de natureza coletiva, meios que dependero da organizao sociocul-tural da etnia pesquisada2.

    Para a obteno desses consentimentos, imprescindvel a intervenincia das orga-nizaes indgenas ou conselhos locais de sade3 conforme o dispositivo infralegal supracitado. Cumpre recordar que nos casos em que a pesquisa for efetuada no mbito da sade, dever ser comunicada ao Conselho Distrital de Sade Indgena4.

    Ademais, interpretando o artigo 129, inciso V, da Constituio Federal, em um sentido mais amplo do que o da legitimi-dade processual conferida ao Ministrio Pblico para a defesa dos povos indgenas e combinando-o com o dispositivo pre-sente no artigo 5o, inciso III, alnea e, da Lei Complementar no 75/93, para fins de segurana jurdica da pesquisa no direito brasileiro, tambm recomendvel a in-

    2 Isso ocorre em virtude da diversidade de formas de expresso do poder nas naes indgenas, pois em algumas etnias, as decises so confiadas s lideran-as tribais, enquanto em outras somente podem ser tomadas deliberaes por meio de amplas assembleias tribais ou de restritos grupos, novamente a depender do povo envolvido.

    3 Esses rgos colegiados previstos no artigo 9o do Decreto Federal no 3.156/99 so rgos exclusivamen-te compostos por representantes das comunidades indgenas e no devem ser confundidos com os Conselhos Distritais de Sade Indgena que so instn-cias previstas no artigo 8o, 4o, do Decreto Federal no 3.156/99 com participao de amerndios e no ndios.

    4 rgo que exerce o controle social do ente que compe a base do Subsistema de Ateno Sade Indgena preconizado pela Lei Federal no 8.080/90 que o Distrito Sanitrio Especial Indgena.

    tervenincia do Ministrio Pblico Federal nesses documentos.

    De igual forma, aplica-se Fundao Nacional do ndio (FUNAI) por ser o ente da Administrao Indireta da Unio que executa as aes para proteger e fazer respeitar todos os seus bens conforme preconiza o caput do artigo 231 da Consti-tuio Federal5.

    Considerando o exposto acima, somente o princpio da autonomia, contextualizado com a ideia de vulnerabilidade, propicia s populaes indgenas um arcabouo jurdico que permite obstar diversas aes de biopirataria e assegurar-lhes a proteo da dignidade humana.

    Quando se invoca o princpio da justia no contexto biotico, percebe-se que ele se refere obrigao tica de tratar cada pessoa de acordo com o que se considera moralmente correto e apropriado, dar a cada um o que lhe devido, da que se pode vislumbrar a correlao entre esse princpio e a distribuio equitativa de encargos e benefcios aos participantes de uma pesquisa envolvendo seres humanos6.

    Contudo, ideias como justia distribu-tiva e tratamento igualitrio de indivduos trazem outras questes para debate: e quando houver uma desigualdade prvia entre os indivduos, como ser possvel pro-porcionar um tratamento igual em um am-biente desigual? Um eventual tratamento igualitrio num ambiente de desigualdade no geraria mais desigualdade?

    5 O art. 2o, inciso IX, do Estatuto da FUNAI apro-vado pelo Decreto Federal no 7.056/2009 dispe que competncia desse rgo o exerccio do poder de polcia em defesa e proteo dos povos indgenas, alm do artigo 3o do mesmo Estatuto preconizar que a FUNAI o rgo de assistncia populao indgena. Em que pese essas consideraes, com amparo no princpio da justia, havendo divergncia de entendimentos quanto intervenincia, dever prevalecer o Ministrio P-blico, visto sua funo institucional de proteo dos povos indgenas.

    6 Pessini e Barchifontaine (2005, p. 218) vo asso-ciar o conceito de justia na tica da pesquisa em seres humanos com a justia distributiva.

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    a partir dessa realidade que se recorre ao conceito de vulnerabilidade, o qual per-mite o estabelecimento de diferenas na distribuio de encargos e benefcios a fim de proteger populaes que se encontram em uma situao de desigualdade decor-rente de sua incapacidade substancial para proteger interesses prprios devido a impe-dimentos (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2005, p. 218).

    Fermin Schramm (2008, p. 406), ao dis-cutir o papel da biotica da proteo na resoluo dos problemas morais dos pases em desenvolvimento, aprofundar o con-ceito de vulnerabilidade, distinguindo-a em trs tipos: vulnerabilidade (vulnerabilidade primria) que se refere a condio ontol-gica de qualquer ser vivo, suscetibilidade (vulnerabilidade secundria) que seria a condio de algum poder ser afetado pelo desamparo e vulnerao (vulnerabilidade propriamente dita), que envolve algum diretamente afetado pelo desamparo e im-possibilitado de exercer suas capacidades, numa vida digna e com qualidade7.

    O princpio da justia permite superar as dificuldades dos indivduos integrantes de populaes vulnerveis ao proporcio-nar um tratamento adequado realidade dessas populaes, fazendo distines de tratamento que maximizem as oportuni-dades para aqueles que se encontram em situao de vulnerabilidade.

    Os povos indgenas, por terem sofrido um processo de opresso scio-poltico--econmico-cultural, tanto pela Metrpole colonizadora portuguesa, quanto pelo Estado brasileiro ps-1822, podem ser considerados como populaes em estado de vulnerabilidade, conforme Pessini e Bar-chifontaine (2005), ou de suscetibilidade/vulnerao, conforme Schramm (2008), pois sua histrica marginalizao no somente buscou extinguir sua identidade como

    7 O autor vai ainda expor que a biotica da prote-o se refere aos problemas morais envolvidos pelas prticas que dizem respeito vulnerao humana.

    ainda privou tais populaes dos servios e bens pblicos mais bsicos (sade, edu-cao, meio ambiente, etc).

    Diante disso, em ateno aos princ-pios do respeito diversidade cultural, ao pluralismo e da confidencialidade pre-vistos na Declarao de Biotica e Direitos Humanos da Unesco (2005), os Estados devem adotar aes mais restritivas de modo a tutelar os direitos das comunidades indgenas, inclusive promulgando normas que intervenham diretamente com o fim de assegurar aos povos indgenas a proteo de seu material gentico e que rejeitem qualquer tentativa de patrimonializao desses materiais.

    Caso haja a patrimonializao do ma-terial gentico ou o acesso indevido a ele por uma instituio bioprospectora, com amparo no j citado princpio da obriga-o de compartilhar equitativamente os benefcios da pesquisa tambm previsto na citada Declarao da Unesco (2005), deve-se buscar a repartio dos benefcios diretos e indiretos obtidos com as pesqui-sas; e, na hiptese do acesso indevido, essa repartio de benefcios dar-se- a ttulo de reparao de danos.

    A Resoluo CNS no 304/2000 apresenta algumas vedaes que visam a proteger os direitos das naes indgenas, conforme se infere do seu item III, nmeros 3, 4 e 5, que versa sobre os aspectos ticos da pesquisa cientfica em populaes indge-nas:

    3 Recomenda-se, preferencialmen-te, a no realizao de pesquisas em comunidades de ndios isolados. Em casos especiais devem ser apresenta-das justificativas detalhadas.4 Ser considerado eticamente ina-ceitvel o patenteamento por outrem de produtos qumicos e material biolgico de qualquer natureza obti-dos a partir de pesquisas com povos indgenas.5 A formao de bancos de DNA, de linhagens de clulas ou de quais-

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    quer outros materiais biolgicos relacionados aos povos indgenas, no admitida sem a expressa con-cordncia da comunidade envolvida, sem a apresentao detalhada da proposta no protocolo de pesquisa a ser submetido ao Comit de tica em Pesquisa CEP e Comisso Nacio-nal de tica em Pesquisa CONEP, e a formal aprovao do CEP e da CONEP.

    Da norma transcrita acima, no dema-siado destacar que o patenteamento de produtos qumicos e material biolgico de qualquer natureza obtidos a partir de pes-quisas com povos indgenas se encontra proibido expressamente no direito brasilei-ro por meio da Resoluo CNS no 304/2000.

    Em face da realidade brasileira, observa--se que os eventos ocorridos com as etnias indgenas Yanonami, Suru e Karitiana foram condutas completamente ilegtimas e ilegais, sendo caracterizadas como bio-pirataria e, apesar de no se encontrarem albergadas pela tutela penal, seja no Cdigo Penal, seja na legislao extravagante, a exemplo das Leis nos 9.434/97 e 11.105/05, ensejam uma responsabilizao adminis-trativa, visto que foram violadas normas da administrao federal (a Resoluo do Conselho Nacional de Sade) e civil, em razo de ter havido um ntido dano moral coletivo s comunidades indgenas.

    4. ConclusesA questo do biocolonialismo provoca

    uma remisso ideia de biopoder, visto que h uma ligao entre a dominao exercida pelos detentores do poder e a dominao do indivduo/corpo, sendo a problemtica do genoma humano apenas um dos elementos de conflituosidade que marcaro a ps-modernidade biojurdica.

    Constata-se que os eventos ocorridos com as etnias indgenas Yanomami, Suru e Karitiana foram condutas completamente ilegtimas, ilegais e imorais perante o or-

    denamento jurdico ptrio. Tais condutas configuram-se atentatrias dignidade da pessoa humana e lesivas a direitos funda-mentais, sendo, nitidamente, caracterizadas como biopirataria, devendo ser imputada a responsabilizao civil e administrativa correspondente.

    Em que pese o carter lesivo a bens jur-dicos que proporcionado pela biopirataria de materiais biolgicos humanos, como o sangue, deve ser citado que inexistem tipos penais aplicveis para essa conduta.

    Os povos indgenas encontram-se em situao de vulnerabilidade ou suscetibili-dade/vulnerao diante dos desafios que o biocolonialismo impe na ps-moderni-dade aos pases em desenvolvimento e s comunidades historicamente marginaliza-das dos pases desenvolvidos.

    Essa suscetibilidade/vulnerao em que se encontram os direitos daqueles que pertencem a alguma etnia indgena diante da sede de bioprospeco dos pases centrais detentores dos principais centros de pesquisa internacional uma das trgicas cenas do que se vislumbrou no passado e que formam a sequncia da condio humana ps-moderna, utilizan-do uma linguagem cinematogrfica para escrever sobre uma situao que aparenta ser a continuao de 1492: a conquista do paraso (1992).

    Referncias

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