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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO: MESTRADO
DELTON APARECIDO FELIPE
NARRATIVAS PARA ALTERIDADE: O CINEMA NA FORMAO DE PROFESSORES E PROFESSORAS PARA O ENSINO DE
HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NA EDUCAO BSICA
MARING
2009
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DELTON APARECIDO FELIPE
NARRATIVAS PARA ALTERIDADE: O CINEMA NA FORMAO DE PROFESSORES E PROFESSORAS PARA O ENSINO DE
HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NA EDUCAO BSICA
Dissertao apresentada ao Programa e Ps-Graduao em Educao, da Universidade Estadual de Maring, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Prof. Dr. Teresa Kazuko Teruya
MARING 2009
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DELTON APARECIDO FELIPE
NARRATIVAS PARA ALTERIDADE: O CINEMA NA FORMAO DE PROFESSORES E PROFESSORAS PARA O ENSINO DE HISTRIA E
CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NA EDUCAO BSICA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, da Universidade Estadual de Maring, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________ Prof. Dr. Teresa Kazuko Teruya (orientadora)
Universidade Estadual de Maring UEM
_____________________________________________ Prof. Dr. Maria Luisa Merino de Freitas Xavier
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre RS
____________________________________________ Prof. Dr. Walter Lcio de Alencar Praxedes Universidade Estadual de Maring UEM
MARING
2009
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Dedico este trabalho
minha me, Teresa de Ftima Felipe e,
minha irm, Maria Crislaine Felipe,
minhas meninas bonitas do lao de fita.
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AGRADECIMENTOS
Prof. Dr. Teresa K. Teruya, amiga e orientadora, por acreditar em mim e me apresentar
os caminhos a serem trilhados no mundo da pesquisa.
Prof. Dr. Maria Luisa Merino Xavier, ao Prof. Dr. Walter Lcio de Alencar Praxedes e
Prof. Dr. Lizete Shizue Bomura, membros da banca examinadora, pelas valiosas
contribuies na realizao deste trabalho.
Prof. Dr. Geiva Carolina Calsa, Prof. Dr. Analete Regina Schelbauer, ao Prof. Dr.
Joo Luiz Gasparin, Prof. Dr. Amlia Kimiko Noma, Prof. Dr. Irizelda Martins
Souza e Silva e ao Prof. Dr Luiz Hemenergildo Fabiano, por compartilharem comigo seus
conhecimentos na sala de aula ou nos corredores da universidade.
Aos professores e as professoras que participaram do curso de extenso: O cinema no
ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, por
compartilharem comigo seus medos, tenses, sensibilidades, expectativas e conhecimentos.
s minhas eternas amigas, Fabiane e Tatiane, que, em muitos momentos no decorrer deste
processo foram meu ponto de apoio e refgio.
Aos meus grandes amigos-irmos, Alex, Fernando, Henrique, Joo Neto e Saulo, pelo
apoio contnuo.
A todos aqueles que contriburam para realizao desta pesquisa: aos amigos e amigas do
mestrado turma de 2007, aos amigos e amigas do Grupo de Estudo e Pesquisa Informtica
Aplicada a Educao (GEPIAE) e Grupo de Estudo e pesquisa em Psicopedagogia
(GEPESP) e ao Hugo e Mrcia , por caminharem junto comigo.
Ao CNPQ por um ano de bolsa para realizao deste trabalho.
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Ningum nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou por sua religio. Para odiar as pessoas precisam aprender; e, se elas podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao corao humano do que seu oposto.
(MANDELA, 1991).
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FELIPE, DELTON APARECIDO. NARRATIVAS PARA ALTERIDADE: O CINEMA NA FORMAO DE PROFESSORES E PROFESSORAS PARA O ENSINO DE HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NA EDUCAO BSICA. 152 f. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade Estadual de Maring. Orientadora: Prof. Dr. TERESA KAZUKO TERUYA. Maring, PR, 2009.
RESUMO
A aprovao da Lei 10.639/2003 estabelece a obrigatoriedade do ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, demanda um repensar das aes pedaggicas no espao escolar e no currculo. Esta Lei combate as sub-representaes e os esteretipos vividos pela populao negra ao longo da histria brasileira. Sua efetivao na sala de aula exige formar um novo perfil de docentes e discentes a fim de que, no processo de reflexo sobre o eu e o outro, eles se apropriem de conhecimentos necessrios para questionar a pedagogia excludente que ainda existe nas escolas. Nesta dissertao, analisamos a interveno pedaggica com filmes no ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana como fonte de pesquisa histrica na educao bsica. Para alcanar esse objetivo, estabelecemos a seguinte questo norteadora: De que maneira o uso do cinema como fonte de pesquisa pode colaborar com o ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, como prope a Lei 10.639/2003? Realizamos uma pesquisa-ao participativa, oferecendo um curso de extenso destinado a contribuir com a formao de professores e professoras da rede estadual de educao do municpio de Maring, PR e regio. Durante o curso, exibimos trs narrativas flmicas: Amistad (1997) de Steven Spielberg; Macunama: um heri de nossa gente (1969) de Joaquim de Andrade e Vista a minha pele (2003) de Joel Zito Arajo. Verificamos que os filmes provocaram reflexes sobre a prtica docente, problematizando os conceitos de raa, etnia, igualdade, diferena, cultura e conhecimento. Do pblico participante, selecionamos 22 docentes como sujeitos da pesquisa. As anlises dos dados obtidos indicam que a interveno pedaggica com as narrativas flmicas e as discusses contriburam para ampliar o conhecimento dos docentes sobre os filmes e repensar as suas subjetividades, posturas pessoais e os preconceitos historicamente assumidos. Conclumos que, na educao escolar, a utilizao das narrativas flmicas um caminho possvel para serem discutidas as questes desafiadoras da nossa atualidade.
Palavras-chave: Formao de professores e professoras. Narrativas flmicas. Histria e cultura afro-brasileira e africana. Relaes tnico-raciais.
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FELIPE, DELTON APARECIDO. NARRATIVES FOR ALTERITY: THE CINEMA IN TEACHER EDUCATION TO THE TEACHING OF HISTORY, african and AFRICAN-BRAZILIAN CULTUREs IN PRIMARY SCHOOLING. 151 pages. Dissertation (Master in Education) State University of Maring. Supervisor: Prof. Dr. TERESA KAZUKO TERUYA. Maring, PR, 2009.
ABSTRACT
The approbation of Law #10.639/2003, which establishes the compulsory teaching of history, African and African-Brazilian cultures in primary schooling, claims some thinking about the pedagogical activities both in schools and school syllabus. This Law fights against the sub-representations and stereotypes faced by the black population throughout Brazilian history. Its effectiveness in the classroom requires the education of a new profile of teachers and students so that they, in the reflective process upon the I and the other, may acquire some necessary knowledge in order to question about the excluding pedagogy that still goes on in schools. In this dissertation, we analyze the pedagogical intervention with the use of films in the teaching of history and the African-Brazilian culture as a historical research source in primary schooling. In an effort to achieve this goal we raised the following question: How can the use of cinema, which is seen as a research source, contribute to the teaching of history, African and African-Brazilian cultures in primary schooling as proposed by the Law #10.639/2003? We conducted a participating research action by holding an extra academic course in order to contribute to the education of the teachers from the state schooling in the city of Maring, PR and other surrounding cities. Along this course, we showed three filming narratives: Amistad (1997) by Stephen Speilberg; Macunama: um heri de nossa gente (1969) by Joaquim de Andrade, and Vista minha pele (2003) by Joel Zito Arajo. We observed that these films brought about some reflections upon teacher practice, such as questionings concerning race, ethnicity, equality, inequality, culture and knowledge. Twenty-two teachers were selected among the whole participants and were taken as research subjects. The analyzed data showed that the pedagogical intervention with the use of the filming narratives and the discussions made helped to broaden the teachers knowledge about films and to (re)think on their subjectivities, personal conduct and the historical prejudices. At last, we concluded that the use of filming narratives in schooling is a possible way to discuss some challenging issues of our present life.
Key words: Teacher education. Filming narratives. History, African and African-Brazilian cultures. Racial-ethnic relationships
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Comparao entre o Primeiro e o Segundo Questionrio do Filme
Amistad.............................................................................
127
Tabela 2 Comparao entre o Grfico 1 e o Grfico 4.................................. 128
Tabela 3 Comparao entre o Quadro 11 e o Quadro 14............................... 129
Tabela 4 Comparao entre o Primeiro e o Segundo Questionrio do Filme
Macunama.....................................................................................
130
Tabela 5 Comparao entre o Grfico 2 e o Grfico 5................................. 131
Tabela 6 Comparao entre o Quadro 12 e o Quadro 15............................... 133
Tabela 7 Comparao entre o Primeiro e o Segundo Questionrio do Filme
Vista a Minha Pele.........................................................................
134
Tabela 8 Comparao entre o Grfico 3 e o Grfico 6................................. 135
Tabela 9 Comparao entre Quadro 13 e Quadro 16..................................
136
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Dados dos docentes que Participaram Curso: Cinema no Ensino
de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana na Educao
Bsica............................................................................................
64
Quadro 2 Dados e Identificao dos Sujeitos Selecionados Para Pesquisa. 69
Quadro 3 Questionrio sobre o Ensino da Histria e Cultura Afro-
Brasileira e Africana na Educao Bsica e sobre o Uso de
Filmes em Sala de Aula na Educao Bsica...............................
71
Quadro 4 Primeiro Questionrio sobre o Filme Amistad............................ 75
Quadro 5 Segundo Questionrio sobre o Filme Amistad............................ 82
Quadro 6 Primeiro Questionrio sobre o Filme Macunama...................... 83
Quadro 7 Segundo Questionrio sobre o Filme Macunama..................... 87
Quadro 8 Primeiro Questionrio sobre o Filme Vista a Minha Pele.......... 89
Quadro 9 Segundo Questionrio sobre o Filme Vista a Minha Pele.......... 92
Quadro 10 Dados sobre os Professores e Professoras que Utilizam Filmes
em Sala de Aula...........................................................................
97
Quadro 11 Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para o
Filme Amistad..............................................................................
111
Quadro 12 Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para o
Filme Macunama.......................................................................
119
Quadro 13: Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para
Filme o Vista a Minha Pele.........................................................
122
Quadro 14 Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para o
Filme Amistad.............................................................................
129
Quadro 15 Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para o
Filme Macunama.......................................................................
132
Quadro 16 Contedos sobre o Filme Vista a Minha Pele............................. 135
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LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 Contedos no Filme Amistad Primeiro Questionrio ... 107
Grfico 2 Contedos Trabalhados no Filme Macunama Primeiro
Questionrio......................................................................
116
Grfico 3 Contedos Trabalhados com o filme Vista a Minha Pele
Primeiro Questionrio......................................................
121
Grfico 4 Contedos Trabalhados com o Filme Amistad Segundo
Questionrio........................................................................
127
Grfico 5 Contedos Trabalhados com o Filme Macunama
Segundo Questionrio .....................................................
131
Grfico 6 Contedos Trabalhados com o Filme Vista a Minha Pele
Segundo Questionrio......................................................
134
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ABREVIATURAS E SIGLAS
ANPUH Associao Nacional de Histria
CNE Conselho Nacional de Educao
COPEP Comit Permanente de tica em Pesquisa com Seres Humanos
FNB Frente Negra Brasileira
GEPIAE Grupo de Estudo e Pesquisa em Informtica Aplicada Educao
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira
LDB Leis de Diretrizes e Bases
MEC Ministrio da Educao
MNU Movimento Negro Unificado
NRE Ncleo Regional de Educao de Maring
PCN Parmetros Curriculares Nacionais
SAEB Sistema Nacional de Avaliao da Educao Bsica
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia
UEM Universidade Estadual de Maring
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SUMRIO
1 INTRODUO.......................................................................................... 16
2 A TRANSFORMAO NO ENSINO DE HISTRIA NO BRASIL:
CAMINHOS PARA TNICO-RACIAL.................................................
25
2.1 A DIVERSIDADE TNICO-RACIAL: EDUCAO ESCOLAR E
ENSINO DE HISTRIA NO BRASIL.......................................................
28
2.1.1 Aplicao da Lei 10.639/2003 na sala de aula......................................... 35
2.2 NOVAS BASES PARA O ENSINO DE HISTRIA DA FRICA NA
EDUCAO ESCOLAR: DESCONTRUDOS MITOS...........................
37
2.2.1 A frica na educao escolar brasileiro.................................................. 41
2.2.2 Os negros na histria do Brasil: Reflexes sobre o ensino de histria.. 43
3 CINEMA NA EDUCAO ESCOLAR: CAMINHOS PARA
ENSINO DA HISTRIA E CULTUA AFRO-BRASILEIRA E
AFRICANA.............................................................................................
47
3.1 O CINEMA COMO PRTICA CULTURAL........................................... 49
3.1.1 Cinema: O espectador como sujeito social.............................................. 51
3.2 O CINEMA NA EDUCAO ESCOLAR................................................ 54
3.2.1 O cinema no ensino de histria: Professores e Professoras e alunos e
alunas como protagonistas........................................................................
56
3.2.2 O cinema e o ensino de histria e cultura afro-brasileiro e africana.... 59
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14
4 CAMINHOS PERCORRIDOS: A PESQUISA...................................... 62
4.1 CRITRIOS PARA A SELEO DOS SUJEITOS.................................. 67
4.2 PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS..................................... 69
4.2.1 Primeiro Encontro: Apresentao do curso............................................ 70
4.2.2 Segundo Encontro: Exibio do filme Amistad...................................... 74
4.2.3 Terceiro Encontro: Discusso sobre o filme Amistad............................ 76
4.2.4 Quarto Encontro:exibio do filme Macunama: um heri de nossa
gente............................................................................................................
82
4.2.5 Quinto Encontro: Discusso sobre o filme Macunama: um heri de
nossa gente..................................................................................................
84
4.2.6 Sexto Encontro: Exibio e discusso do filme Vista a Minha
Pele..............................................................................................................
88
4.3 PROCEDIMENTO DE ANLISE DE DADOS........................................ 93
5 PROBLEMATIZANDO OS CAMINHOS: APRESENTAO E
ANLISE DOS DADOS...........................................................................
96
5.1 O USO DE FILMES NA SALA DE AULA................................................ 97
5.2 HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA EM
SALA DE AULA........................................................................................
99
5.3 OS FILMES E A HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E
AFRICANA EM SALA DE AULA: POSSVEL ESSE DILOGO?...
102
5.3.1 Amistad: Concepes iniciais.................................................................... 104
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15
5.3.2 Macunama: Concepes iniciais.............................................................. 113
5.3.3 Vista a Minha Pele: Concepes iniciais.................................................. 119
5.4 O IMPACTO DAS REFLEXES REALIZADAS NO CURSO DE
EXTENSO.............................................................................................
123
5.4.1 Amistad: Impacto das discusses............................................................. 126
5.4.2 Macunama: Impacto das discusses....................................................... 130
5.4.3 Vista a Minha Pele: Impacto das discusses........................................... 133
5.5 O CURSO COMO POSSIBILITADOR DE REFLEXES:
CONSTRUINDO CAMINHOS PARA ALTERIDADE.......................
136
6 CONSIDERAES FINAIS................................................................... 140
7 REFERNCIAS........................................................................................ 143
APNDICE................................................................................................ 151
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16
1 INTRODUO
A pretenso em pesquisar a possibilidade do uso da narrativa flmica no ensino da
histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, como demanda a Lei
10.639/2003, originou-se das leituras sobre preconceito racial, hierarquizao cultural,
relaes de poder e identidade cultural realizadas durante o desenvolvimento do projeto de
iniciao cientifica intitulado: Imagens da frica do Sul: Contribuies da anlise
flmica para o ensino de histria.
Na realizao deste projeto, surgiram inmeras dvidas, como, por exemplo: Por
que os aspectos da cultura africana so pouco valorizados no Brasil? Quais foram os
construtos sociais que levaram aprovao da Lei 10.639/2003? Qual a lgica cultural
para que o negro seja sub-representado em diversas instituies sociais?
Para buscar respostas s nossas indagaes, passamos a questionar a lgica dos
valores e os sentidos contraditrios que compelem as culturas diferentes para agir como se
elas fossem unssonas. As identidades so diferentes e, exatamente por isso, devem ser
aceitas respeitadas e tratadas sem hierarquias. A cultura muda, mas suas tradies devem
ser resgatadas e preservadas. As dvidas sobre as relaes culturais estabelecidas em nossa
sociedade nos remetiam s diversas reflexes.
Uma destas reflexes direcionou-nos para uma certeza inegvel: no h como
esquecer ou ignorar as questes relativas cultura no espao escolar. O processo
educacional , inevitavelmente, um processo cultural e, como a cultura um espao de
diferenas, estas borbulharo a todo instante no ambiente escolar composto por seres
humanos com distintas formas de conceber o mundo e suas relaes.
Com base nas leituras de Hall (1997), percebemos que profundas mudanas
socioculturais das ltimas dcadas, como o desmoronamento das certezas, o afloramento
das diferenas culturais, a velocidade na circulao das informaes, os cruzamentos entre
o local e o global, levaram ao questionamento das verdades universais e busca de uma
sociedade fragmentada e plural.
Nesse universo de mudanas, ocorreram questionamentos sobre os conhecimentos
totalizantes. Santos (2003) afirma que as produes cientficas atuais, mesmo no campo da
fsica e da biologia, que por muito tempo foram consideradas cincias neutras e universais,
questionam muitas dessas verdades. A ausncia de consensos ou a existncia de falsos
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consensos, a constatao de realidades cada vez mais complexas, as certezas relativas, em
geral, sujeitas mercantilizao da cincia e os intensos debates provocaram uma grande
ebulio na comunidade cientfica.
A crtica aos saberes totalizantes abriu caminho para novas formas de pensar e
conceber o conhecimento. Os diversos setores da sociedade, como os movimentos sociais,
compreenderam que o conhecimento mvel, transforma-se, assume novas e diferentes
roupagens ao se inserir em campos epistemolgicos variados e em pocas histricas
diferentes.
Hall (1997) afirma que essas transformaes e conflitos tm suas origens em
fenmenos de ordem cultural. No entendimento de relaes estabelecidas entre as culturas,
os seus conhecimentos e os seus grupos representativos, h uma espcie de jogo no qual as
culturas esto imersas, com regras nuviosas, mas que se direciona claramente para um fim
comum.
Nesse contexto de questionamentos das hierarquizaes culturais e dos
conhecimentos totalizantes, a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, foi alterada pela
Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educao
nacional, para incluir no currculo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temtica
da histria e cultura afro-brasileira. A partir desta Lei, tornou-se obrigatrio no currculo
escolar da educao bsica o estudo da histria da frica e dos africanos, a luta dos negros
no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional,
resgatando a contribuio dos povos negros nas reas sociais, econmicas e polticas
pertinentes Histria do Brasil - art. 26-A, 1 - (BRASIL, 2003).
Para Gomes (2008), a promulgao da Lei 10.639/2003 abriu um espao
institucional para discutir a diferena e o outro na instituio escolar, ao exigir que seja
trazida para dentro da escola a discusso sobre aspectos da cultura africana e do negro no
Brasil.
Gomes ainda afirma que a Lei no de fcil aplicao, porque trata de questes
curriculares conflitantes, que questionam e desconstroem conhecimentos histricos
considerados verdades inabalveis. Alm disso, exige dos professores e das professoras
repensarem a constituio da suas identidades e subjetividades no seu fazer pedaggico,
permitindo surgir uma srie de questionamentos. Como questionar as relaes de poder
assimtricas que perpassam os contedos escolares? Que novos paradigmas esto se
desenhando no horizonte pedaggico para o trato das questes tnico-raciais nos
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18
currculos? Que materiais didticos-pedaggicos utilizar na sala de aula para levar o eu a
perceber o outro?
Nesse sentido, a Lei 10.639/2003, inserida no discurso do respeito pelas diferenas
culturais, vem carregada de conotaes sobre o "eu e o outro". Porque esse eu e o outro
em relao pressupe a descentralizao do olhar, isto , a sensibilidade de se colocar no
lugar do outro, de ver como o outro v, aceitar um conhecimento que no se pauta
exatamente nos nossos modelos hegemnicos de conhecimento, constituindo, assim, uma
noo de alteridade que supera a aceitao do outro apenas como necessidade
econmica.
Para problematizar como a efetivao da referida Lei permite estabelecer relaes
de alteridades na sala de aula, utilizamos as contribuies tericas dos Estudos Culturais.
Primeiro, porque, nesta dissertao, defendemos a relao do currculo com a cultura e
ambos como prticas de significao, produo, relao social, relao de poder e prticas
que produzem e reproduzem identidades sociais.
No caso dos Estudos Culturais, trata-se das viagens de estudos que, ao mesmo tempo em que abordam questes do mbito da cultura global, adquirem os contornos e as matizes das configuraes locais, reinventando-se constantemente nos seus questionamentos e perspectivas de anlises. Os melhores exemplos que posso mencionar situam-se nas problematizaes sobre gnero, raa e etnia, que, com uma fecundidade sem precedentes, tm recomposto todo o panorama dessas discusses em nosso pas e em outros pelos quais tm circulado. (COSTA, 2000, p. 26)
Os Estudos Culturais, desde seu surgimento na Inglaterra, sua expanso pela
Amrica do Norte e a sua chegada no Brasil, tm sido palco para muitos debates
proeminentes em torno do significado da cultura, da reproduo e produo de identidades.
Os temas sobre gnero e sexualidade, raa e etnia, colonial e ps-colonial, no processo de
transmisso e construo de conhecimentos e das relaes de poder entre os sujeitos e entre
os grupos culturais, fornecem elementos relevantes para as anlises atuais sobre currculo.
Segundo motivo, para utilizar as contribuies dos tericos dos Estudos Culturais,
esse eixo investigativo, tanto no Brasil quanto em outros pases, tem conduzido a discusso
sobre cultura, conhecimento e currculo a novos caminhos e horizontes, especialmente por
retirar o significado destes conceitos da caixa fechada e abrir caminhos para novos
enfoques e interpretaes. Os significados trazem tona a dimenso mltipla e incerta nas
quais estes conceitos esto imersos.
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A ao de retirar os conceitos, como o de cultura, de conhecimento e de currculo,
da caixa fechada significa que estes conceitos passam a ser vistos como constitudos
socialmente. Os conhecimentos corporificados no currculo, sua distribuio e seleo so
diretamente mediados e controlados pelos ditames da cultura preponderante na sociedade.
Assim, a cultura no s influencia a maneira como os conhecimentos so selecionados
como ela prpria elemento de seleo.
Hall (2003) alerta que, nos Estudos Culturais, a cultura no venerada, porque isso
tiraria a sua constituio social e retiraria o poder que, inevitavelmente, est em suas mos;
poder de explicar e coordenar as relaes sociais e em fazer selees do que vlido e
aceito e do que intil e irrelevante. A cultura organiza valores e significados da
sociedade, mas tambm institui outros valores e significados ao fazer isto. Por isso
necessrio considerar as suas condies de produo e as relaes com o mundo que
produz (ARAJO, 2004, p. 6).
Nesta perspectiva de cultura, o conhecimento, o currculo e a escola, so remetidos
s estruturas que os criaram, aos interesses polticos que os articularam, s prticas e aos
discursos que engendraram seus sentidos. A educao escolar cultura, porque, alm de
socializar as cincias, as artes e as literaturas, arquiteta significados e valores formulados
no coletivo e nas interaes humanas.
Por ser um produto cultural, o currculo, em suas determinaes do que ensinar nas
escolas, no apenas reproduz conhecimentos neutros, dado que seus tentculos aderem-se a
um processo de conhecimento que constitudo de negociaes intersubjetivas
conflitivas. Assim, ao selecionarem os conhecimentos que devero ser ensinados aos
alunos, as escolas fazem mais do que intermediar saberes ou constituir espao nico de
internalizao de valores e normas, porque os sujeitos no so apenas receptores ou
reprodutores, podem ser, tambm, [...] criadores de significados em relaes socialmente
construdas (SILVA, 1998, p. 113).
Os Estudos Culturais consideram a cultura e a experincia humana como
construes e interpretaes que no so nicas e verdadeiras, mas subjetivas, relativas e
polticas. O conhecimento uma destas construes, j que no neutro, nem homogneo
e nem esttico. Por isso, o conhecimento, neste trabalho, visto como uma categoria
permeada por relaes histricas, sociais e polticas, constitui-se de valores, significados e
sentidos mltiplos. Ou seja, o conhecimento expressa vises particulares, significados
prprios de determinadas culturas e insere-se na disputa pela manuteno do poder.
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20
Os Estudos Culturais consideram a cultura como elemento central da sala de aula e
do currculo, focalizando uma aprendizagem que se paute em torno de questes
relacionadas s diferenas culturais. Para Costa (2008, p. 491) identidade e diferena so
inseparveis, dependendo uma da outra, e compem o eixo das principais discusses da
atualidade preocupadas com justia e igualdade.
No se pode esquecer que a identidade, tal como a diferena, uma relao social.
Isso significa que sua definio - discursiva e lingstica - est sujeita a vetores de fora, a
relaes de poder. Elas no so simplesmente definidas, so impostas. Silva (2000, p. 81)
salienta que a identidade e a diferena no so, nunca, inocentes, segundo o autor, onde
existe diferenciao, a est presente o poder. Ele destaca, no entanto, que h uma srie de
processos que traduzem essa diferenciao, como incluir e excluir, identificando e
representando, marcando, simbolizando quem pertence e quem no pertence; demarcar
fronteiras, que definam e separem ns e eles, classificando normalizando.
Na elaborao do currculo escolar e na ao pedaggica, necessrio
compreender que a identidades e diferenas so produzidas na ao histrica por meio de
discursos e da cultura. Assim, podemos compreender que, quando falamos de identidade e
diferena, no estamos falando de algo natural e sim de jogos de poder que criam
significados vlidos dentro de um universo simblico. Os Estudos Culturais, por meio de
seu princpio base que o questionamento dos discursos histricos, socialmente
constitudos, fornecem um espao narrativo para a compreenso e a anlise crtica de
mltiplas histrias, experincias e culturas que orientam o ensino nos diferentes
componentes curriculares (GIROUX, 2003).
De acordo com Gusmo (1999), quando se tem como objetivo na educao,
assimilar o indivduo ordem social, integrando-o e diferenciando-o por suas
caractersticas pessoais, por gnero e por idade, procura-se garantir a o equilbrio da vida
em sociedade. A educao realiza-se, ento, no interior da sociedade, composta por
diferentes grupos e culturas, visando certo controle sobre a existncia social, de modo a
assegurar sua reproduo por formas sociais coletivamente transmitidas. (p. 14). Ou seja,
certas retricas que adentram as instituies escolares sobre a diversidade so tratadas, em
algumas ocasies, com palavras suaves de eufemismo que tranqilizam as conscincias ou
produzem a iluso de que assistimos a profundas mudanas.
A situao da populao negra brasileira, no que se refere educao, ainda
encontra-se sob as idias normativas. Primeiro, porque o discurso sobre incluso dos
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21
aspectos culturais e histricos, a luta pela cidadania desse segmento populacional, comum
nas escolas, normalmente, no passam do plano das idias. Existem especificidades
prprias dessa populao que precisariam ser lembradas para serem respeitadas. Segundo,
porque essas especificidades so, na maioria das vezes, esquecidas em prol de uma
sociedade harmnica, homognea, em que as individualidades so igualadas por um
modelo comum de cultura, em nome de uma pretensa ordem social.
Na educao escolar, trabalhar na perspectiva da diversidade cultural, significa uma
ao pedaggica que vai alm de reconhecer que os alunos sentados nas cadeiras de uma
sala de aula so diferentes. Por terem suas caractersticas individuais e pertencentes a um
grupo social, necessrio promover uma pedagogia que valorize as diferenas. Isto s ser
possvel mediante a uma pedagogia que valorize a alteridade, como afirma Santos (2006).
A alteridade ser possvel somente [...] num processo inverso ao da
homogeneizao proposta pelo campo poltico das relaes entre povos e culturas
distintas. Compreender o outro significa [...] relativizar o prprio pensamento para
construir um conhecimento que outro (GUSMO, 1999, p.16-17) Enfim, o processo de
ver-se e ver o outro s pode ocorrer em contextos histricos concretos, seja em termos
de senso comum ou em termos de conhecimento cientfico, o que nos leva a considerar
alteridade nesta dissertao como a noo do outro, ou seja, o "eu" conhecer o "outro" que
representa a diferena. Perceber que a cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento de
outras culturas; deve-se, portanto reconhecer que o "eu" uma identidade possvel entre
tantas outras, e no a nica. Que relaes, ento, podem ser feitas entre identidade e
alteridade quando se trata da populao negra?
Vivemos em um pas onde a diversidade tnico-racial notria. No entanto, a
cultura e a ideologia so de matriz europia. A criana negra ou descendente de negros
desenvolve-se nessa ideologia e nessa cultura, situando-se num referencial que no faz
parte da histria de sua ascendncia. No conhece a sua prpria histria, as suas razes, a
importncia que seus antepassados tiveram na construo desse pas. Esse sujeito vai se
construindo dentro de um ideal de ego branco, que o ideal valorizado como um todo.
Uma postura de alteridade necessria para que a sociedade, de forma geral,
entenda esta diversidade e consiga se colocar no processo de ver-se e ver ao outro.
Nesse contexto de efetivao da Lei 10.639/2003 na sala de aula, torna-se importante a
construo de representaes positivas da cultura e da histria africana e afro-brasileira nos
diversos setores populao brasileira.
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Frente aos pressupostos apresentados, elegemos como hiptese conceitual da
dissertao: Apesar da aprovao da Lei 10.639/2003 sobre a obrigatoriedade do ensino de
histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, h carncia de propostas
metodolgicas para a efetivao da Lei na sala de aula. Por isso, realizamos uma pesquisa-
ao participativa para responder seguinte questo: De que maneira o uso do cinema
como fonte de pesquisa pode colaborar com o ensino da histria e cultura afro-brasileira e
africana na educao bsica, como prope a Lei 10.639/2003?
Para atender a nossa hiptese, estabelecemos como objetivo geral: Analisar a
interveno pedaggica com filmes no ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana
como fonte de pesquisa na educao bsica.
Este objetivo geral se desdobra em trs objetivos especficos: analisar a relevncia
de se incluir a temtica histria e cultura afro-brasileira e africana nos currculos escolares;
oferecer possibilidade da anlise flmica como fonte de pesquisa para trabalhar com as
relaes tnico-raciais em sala e verificar qual o impacto das discusses sobre as
narrativas na ao pedaggica nos professores e nas professoras.
Para alcanar esses objetivos e investigar a hiptese conceitual junto a um grupo de
docentes da educao bsica vinculados rede estadual, oferecemos um curso de extenso
para analisar filmes que abordam aspectos da histria e cultura afro-brasileira a fim de
coletar dados empricos.
De acordo com Costa (2002a), a pesquisa-ao participativa, na perspectiva dos
Estudos Culturais, pode ser concebida como aliana estratgica do sujeito para pensar e
repensar as suas identidades e sua constituio discursiva. Esse tipo de pesquisa-ao
permite aos sujeitos produzirem relatos de si e questionar as narrativas hegemnicas,
criando um espao de contestao.
Os sujeitos envolvidos nesse tipo de pesquisa-ao compem um grupo com
objetivos e metas comuns, interessados em um problema que emerge em um dado contexto
de atuao, para desempenhar papis diversos (FRANCO; GHEDIN, 2008). Constatado os
problemas vivenciados pelo grupo, o papel do pesquisador consiste em ajud-lo a
problematiz-los. O que pode levar os sujeitos da pesquisa a construir novos conceitos
sobre realidade social.
Ao se considerar que as novas leituras sobre a realidade so limitadas, provisrias e
contextuais, podem o pesquisador e os sujeitos da pesquisa sempre repensar o seu
posicionamento sobre a temtica pesquisada. E a percepo de que essas realidades so
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discursivamente institudas permite que os sujeitos envolvidos questionem os
conhecimentos que so dados como verdades naturais, permanentes e universais.
Durante o desenvolvimento desta pesquisa-ao, procuramos articular a abordagem
quantitativa e qualitativa. O que interessava era conhecer o posicionamento dos sujeitos
envolvidos em face s situaes vvidas e criadas e dimensionar o estranhamento pelos
sujeitos da pesquisa das verdades naturalizadas. Nesse sentido de qualidade, o
levantamento de alguns dados quantitativos se deu com o propsito de apoiar a relao
entre as categorias encontradas. O que se pretendeu foi abordar os significados institudos
pelos sujeitos ao questionar as narrativas hegemnicas estabelecidas. Essa opo
defendida por Bogdan e Biklen (1994), para quem a anlise estatstica junto aos relatos
fornecidos pelos sujeitos possibilita uma compreenso adequada dos conceitos expressos
por eles.
Esta dissertao foi organizada em quatro sees. Na inicial, apresentamos as
mudanas ocorridas na educao escolar, dando nfase disciplina de Histria, j que
uma das disciplinas que tem em seu currculo diversas questes sobre as relaes tnico-
raciais por causa das presses dos movimentos sociais de carter identitrio da dcada de
80 do sculo XX. Alm disso, nesta seo, problematizamos as leis institudas para a
educao escolar e voltadas diversidade tnico-racial no Brasil. Em seguida, analisamos
os desdobramentos histricos que levaram promulgao da Lei 10.639/2003 e o que ela
representa para a populao brasileira.
Na seo seguinte, analisamos o papel do cinema nas relaes sociais e como a
escola pode estabelecer uma relao de dilogo entre a narrativa flmica e o fazer
pedaggico. Nesta dissertao, defendemos a idia de que o cinema pode ser uma
excelente fonte de pesquisa para abordar a histria e a cultura africana e afro-brasileira na
educao bsica. No entanto, necessrio que os professores e as professoras tenham uma
formao terica e metodolgica para oferecer uma anlise consistente dos filmes, que v
alm da ilustrao dos fatos histricos. necessrio olhar os filmes como possibilidade
pedaggica que desperta reflexes sobre a realidade social.
Na penltima seo, apresentamos a metodologia utilizada na pesquisa-ao
durante os seis encontros realizados com os professores e as professoras da rede estadual
de educao que se inscreveram no curso de extenso. Para isso, foi necessrio, em um
primeiro momento, relatar nossa experincia com o curso de extenso: O cinema no ensino
de histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica. Descrevemos, quem so
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os sujeitos da pesquisa e quais foram os critrios para a sua seleo. Entre as atividades
realizadas, foram exibidos trs filmes: Amistad (1997) de Steven Spielberg ; Macunama:
um heri de nossa gente (1969) de Joaquim de Andrade e Vista a minha pele (2003) de
Joel Zito Arajo, para coletar dados empricos. Em seguida, apresentamos os
procedimentos adotados para analisar os resultados.
Na ltima seo, apresentamos e analisamos os dados coletados durante a pesquisa-
ao. A anlise desses dados teve como objetivo verificar se os professores e as
professoras estabeleceram relaes entre os filmes apresentados e a histria e cultura
africana e afro-brasileira e, com base nas respostas obtidas, estabelecemos categorias de
anlise dos resultados. Por fim, conclumos que, na educao escolar, a utilizao das
narrativas flmicas um caminho possvel para se discutir as questes desafiadoras da
nossa atualidade.
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2 A TRANSFORMAO NO ENSINO DE HISTORIA NO BRASIL: CAMINHOS
PARA UMA EDUCAO TNICO- RACIAL
O objetivo desta seo analisar a relevncia do debate sobre o ensino de histria
no Brasil a partir do final da dcada de 70 do sculo XX, com a crise do regime militar.
Tem como objetivo verificar como as questes voltadas para as relaes tnico-raciais so
tratadas pela disciplina de Histria.
Elza Nadai (1992) afirma que, no final de 1970, passou-se questionar os conceitos
elaborados para a sociedade brasileira, como o conceito de democracia racial e o de
cidadania. Com isso, enveredou-se pelo caminho do debate poltico sobre o significado do
ensino de histria no contexto de uma sociedade que estava lutando para se redemocratizar.
Nesse perodo, houve um forte processo de rejeio ao ensino de histria,
recomendado pelos governantes brasileiros para forjar o esprito de nacionalidade.
Questionava-se o ensino preocupado em reproduzir uma narrativa histrica que servia ao
propsito da construo da identidade nacional e da manuteno de determinado grupo no
poder. Ficava evidente, nessas discusses, que a concepo de ensino nascente estava
comprometida com as transformaes sociais almejadas pelos movimentos sociais
emergentes. Neste sentido, as propostas para o ensino de histria desafiavam as condies
polticas para reverter a equao do poder, at ento, representativo da nao brasileira e, a
partir dessa reverso, implementar um projeto social mais justo, mais humano e com a
participao efetiva de todos os grupos sociais.
Os debates sobre quais contedos ensinar e como ensinar, promovidos na dcada de
80 do sculo XX, contriburam para o incio da reformulao de concepes tericas e
metodolgicas da disciplina de Histria, passaram a exigir que os contedos a serem
oferecidos na educao formal levassem em considerao as reivindicaes dos grupos
sociais. Schmidt e Cainelli (2004) entendem que o grande marco de reformulaes desse
ensino concentrou-se na perspectiva de tratar docentes e discentes como sujeitos da histria
e da produo do conhecimento histrico, com o objetivo de formar sujeitos produtores da
histria, no mais receptores passivos, espectadores de uma histria de heris que
compunha os personagens dos livros didticos.
De maneira geral, as discusses sobre a constituio do saber histrico, que se
desenvolveram no final dos anos de 1970 e nos anos de 1980, procuraram acompanhar e se
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atualizaram com os desenvolvimentos tericos, metodolgicos e temticos que se
produziam para alm de nossas fronteiras, em especial na Frana, Inglaterra, Itlia e nos
Estados Unidos, locus de onde vm nossas principais referncias tericas, metodolgicas e
temticas. Nadai (1992) argumenta que outros sujeitos sociais, de maneira progressiva,
foram incorporados nos estudos historiogrficos. A partir 1980, por exemplo, as mulheres,
os negros, os homossexuais, os prisioneiros, os loucos e as crianas, sujeitos que, at esse
perodo, constituam uma ampla gama de excludos, que reclamavam seu lugar na histria
social do pas.
As reformulaes curriculares passaram a ser permeadas por discusses que
questionavam os contedos ensinados na educao escolar em todos os nveis. Aqueles
pertencentes s culturas negadas e silenciadas nos currculos escolares comeavam a reagir
contra a sua marginalizao. De acordo com Gomes (2008), os excludos dos discursos
normativos do currculo escolar lanaram mo de estratgias coletivas e individuais,
articulando-se em redes, dando incio a diversos movimentos sociais de carter identitrio.
A mobilizao das culturas negadas atinge as escolas, as universidades e a produo
do conhecimento. Na disciplina de Histria, organizam-se vertentes que reivindicam uma
perspectiva da histria de todos os homens e no somente dos heris. De acordo com essas
vertentes, e entre elas a Nova Histria Cultural, no era mais possvel aceitar as narrativas
com nfase exclusiva na viso europia. Schmidt e Caineli (2004) argumentam que esse
processo atingiu os currculos, os sujeitos e suas prticas, instalando um processo de
renovao que, nesse perodo, ficou restrito mais teoria do que sua efetivao na prtica.
Dentre os movimentos sociais que lutavam pela representatividade nas esferas
sociais brasileiras, encontra-se o Movimento Negro Unificado (MNU). De acordo com
Pereira (2002), tal movimento iniciou-se em So Paulo na dcada de 70 do sculo XX, em
pleno regime militar, com o objetivo de combater o mito da democracia racial e denunciar
que o Brasil uma nao racista, na qual os negros estavam subrepresentados na maioria
das instituies sociais. Alm disso, o MNU tinha como papel destacado fomentar um
processo de constituio da identidade positiva do negro e de sua conscientizao poltica
na vida nacional. Paul Singer, um dos fundadores do MNU, em carta aberta, lida em ato
pblico no dia 7 de julho de 1978 nas escadarias do Teatro Municipal de So Paulo,
posiciona-se a respeito da discriminao no Brasil:
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No podemos mais calar. A discriminao racial um fato na sociedade brasileira, que barra o desenvolvimento negro, destri a sua alma e sua capacidade de realizao como ser humano [...]. No podemos mais aceitar as condies em que vive o homem negro sendo discriminado da vida social do pas, vivendo no desemprego, subemprego e nas favelas. No podemos mais consentir que o negro sofra perseguies constantes da polcia sem dar uma reposta. (SINGER, 1981, apud SILVA, 2001, p. 38)
A manifestao do MNU teve dois propsitos: o primeiro, como um movimento de
denncia de existncia do racismo no Brasil. A elite brasileira tentava constituir, no Brasil,
a idia de que todos eram tratados como iguais independente de sua cor. Essa idia
apoiava-se nas publicaes das obras de Gilberto Freire, Casa Grande & Senzala de
1932, e de Srgio Buarque de Holanda, Razes do Brasil, de 1947, nas quais afirmavam
que, apesar da escravido que houve no Brasil, no se sobressaiu o racismo, visto que o
negro, o ndio e o branco se misturam amigavelmente.
Segundo propsito, como processo de formao da identidade positiva do negro,
por meio de aes polticas, com a valorizao de seus aspectos simblicos, formas de
vestir, de pentear e de falar. O bloco afro Il Aiy, um dos primeiros blocos de carnaval
representativo da cultura afro-brasileira, captou esse sentimento dos ativistas das
organizaes negras, fazendo o seguinte registro:
Durante este tempo demos o nosso grito de liberdade [...] A liberdade de podermos ser negros, de danar a nossa dana, de cantar o nosso canto. Canto esse que conta a nossa histria e nossa libertao. E esse verdadeiro canto ecoou no Curuzu: um canto de f por um mundo melhor. O brilho da avenida no ofusca o brilho desta raa de origem nag (CADERNOS CANTO..., 1988, p. 32)
Percebemos, nesse registro, que os ativistas acreditavam no reconhecimento e na
recriao dos aspectos da cultura negra. Representados socialmente, eles ampliam os
argumentos para a ao poltica de combate ao racismo. Silva (2001) lembra que a
afirmao de traos distintivos culturais e fsicos da populao negra, alm de servir como
resposta imediata s posturas racistas, indica que as identidades individuais ou coletivas
no podem ser interpretadas como avesso identidade social.
Aps trs dcadas de reivindicaes do MNU, consideramos que houve avanos na
luta contra o racismo e a discriminao da populao negra no Brasil, mas, ainda, o
racismo e o preconceito persistem na sociedade brasileira. Hoje, no mais aceitvel a
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idia de democracia racial entre os brasileiros. Com a promulgao da Constituio de
1988, considerada por muitos uma constituio cidad, houve uma tentativa de valorizao
dos diversos povos e culturas existentes no Brasil, por exemplo: o 5 artigo, no pargrafo
XLII, prev que casos de discriminao racial sero tratados como crimes imprescritveis e
inafianveis. Este artigo reconhece a existncia do racismo no Brasil.
No podemos s reconhecer a existncia do racismo no Brasil, necessrio
combat-lo e trabalhar para amenizar as conseqncias da submisso e da marginalizao
do negro brasileiro. Nesse ponto, ainda encontramos grandes dificuldades. Uma das
primeiras instituies sociais chamada a entrar na luta contra o racismo e para a
valorizao da populao negra em seus aspectos fsicos e culturais como formadoras da
populao brasileira foi escola. H uma crena de que a escola, em cada momento
histrico, constitui-se uma expresso e uma resposta sociedade. Ela reflete uma porta de
entrada para a construo de um Brasil onde convivem as diversas influncias que
caracterizam a formao do nosso povo.
2.1 A DIVERSIDADE TNICO-RACIAL: EDUCAO ESCOLAR E ENSINO DE
HISTRIA NO BRASIL
A professora Beatriz Petronilha Gonalves e Silva (BRASIL, 2004) no Relatrio
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais
Para o Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana, defende que, para as
instituies de ensino desempenharem seu papel de educar, necessrio que constituam
um espao democrtico de produo e divulgao de conhecimentos e de posturas que
visam uma sociedade justa.
Ao estudar as origens da educao escolar pblica brasileira, verificamos que os
negros no foram alvos das instituies de ensino, j que a escolarizao visava formar o
ideal de homem brasileiro que tinha como referncia o homem branco europeu. Quando
analisamos o pensamento educacional brasileiro depois da abolio da escravido, o negro
e sua cultura foram silenciados no currculo escolar. (FELIPE; TERUYA, 2007).
Durante um sculo da implementao da escola pblica no Brasil, o negro e sua
cultura poucas vezes foram contemplados nos contedos programticos e, quando o foram,
eram abordados de forma distorcida e estereotipada. Somente depois de 1980, com as
constantes reivindicaes do Movimento Negro Unificado, houve tentativas de inserir
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conceito de pluralidade na educao brasileira. Embora a relao entre educao e
diversidade tenha surgido na dcada de 1980, passa predominar no debate educacional e
nas leis voltadas a educao nacional s depois de 1990.
bem verdade que os debates, promovidos depois de 1980 sobre a pluralidade
cultural do Brasil, favoreceram vrias modificaes importantes na educao escolar e no
ensino de histria no Brasil. Fernandes (2005) reconhece que, apesar da renovao terico-
metodolgica da histria nos ltimos anos, o contedo programtico dessa disciplina na
educao bsica ainda tem primado por uma viso monocultural e eurocntrica de nosso
passado. Isso significa que a educao escolar ainda no aprendeu a valorizar a diversidade
tnico-racial que compe o ambiente escolar.
Entendemos que o termo diversidade empregado aqui tem o sentido utilizado por
Abramowicz (2006, p.12) ao afirmar que [..]diversidade pode significar variedade,
diferena e multiplicidade. A diferena qualidade do que diferente; o que distingue uma
coisa de outra, a falta de igualdade ou de semelhana. Pensar em uma educao para a
diversidade levar em considerao os aspectos culturais dos mais diferentes grupos,
permitindo que eles expressem a si prprio na busca da aprendizagem e do conhecimento.
Tambm entendemos os conceitos de raa e etnia como construes sociais,
forjadas nas relaes entre cultura, conhecimento e poder. O conceito raa, utilizado dentro
de uma perspectiva poltica, nada tem a ver com conceito biolgico de raa cunhado no
sculo XIX. Silva, no Relatrio sobre a Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2004), afirma que o
termo raa, utilizado nesse contexto de questionamento de uma cultura homognea,
utilizado para informar como determinadas caractersticas fsicas, como cor da pele, tipo de
cabelo, entre outras, influenciam, interferem e at mesmo determinam o destino e o lugar
social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.
O emprego do termo tnico, na expresso tnico-racial, como faz Silva (BRASIL,
2004), serve para marcar que as relaes tensas causadas pelas diferenas na cor da pele e
traos fisionmicos o so tambm por causa da raiz cultural plantada na ancestralidade
africana, que pode diferir em viso de mundo, valores e princpios das origens indgena,
europia ou asitica.
Em um resgate da histria do negro no Brasil, importante ressaltar que os
africanos negros, que aportaram em nosso territrio na condio de escravizados, so
vistos como mercadoria e objeto nas mos de seus proprietrios. Foi atribuda ao negro
uma participao subalterna na construo da histria e da cultura brasileira, embora tenha
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sido ele a mo-de-obra predominante na produo da riqueza nacional, trabalhando na
cultura canavieira, na extrao aurfera, no desenvolvimento da pecuria e no cultivo do
caf em diferentes momentos de nosso processo histrico. Quando se trata de abordar a
cultura dessas minorias, estamos pensando no sentido poltico da palavra, j que os dados
do IBGE demonstram que a populao negra brasileira de 47,2% (BRASIL, 2007), mas
ela vista de forma folclorizada e pitoresca e as culturas europias elevadas condio de
superiores e civilizadas.
O ensino de histria do Brasil ainda est permeado pela concepo da historiografia
brasileira que prima pelo relato dos grandes fatos e feitos dos chamados heris nacionais,
geralmente brancos, escamoteando, assim, a participao de outros segmentos sociais no
processo histrico do pas. Para Silva (1998), a maioria das concepes histricas que
perpassa o ensino de histria no Brasil despreza a participao das minorias tnicas,
especialmente de ndios e negros. Quando eles aparecem nos livros didticos, seja em
forma de textos, seja em forma de ilustraes, so tratados de forma pejorativa e, portanto,
preconceituosa e estereotipada.
Os currculos e os manuais didticos usados na educao bsica insistem em
silenciar e at mesmo chegam a omitir a condio de sujeito histrico e de portador de
prticas culturais das populaes negras e amerndias.
Alm da encucao ideolgica promovida pelo cinema, rdio, TV, revistas e instituies, o livro didtico, pela importncia que lhe atribuda pelo poder do Estado de transmitir Verdades que lhe conferido, consegue de forma sistemtica inculcar na cabea dos jovens e crianas conceitos e vises deformadas e cristalizadas, que passam a ser assumidas como conceitos e vises da realidade que se constitui ideologicamente. (SILVA, 1998, p. 03).
fato incontestvel que somos uma nao com mltiplas culturas, em virtude de
nossa formao histrica, porm o que se percebe que a populao brasileira no
aprendeu a conviver com a diversidade tnico-racial. E a educao escolar ainda persiste
em ministrar os seus contedos pautados em seu imaginrio tnico-racial, um pas que
privilegia a brancura e valoriza, sobretudo as razes europias da sua cultura, ignorando ou
pouco valorizando as outras. Por exemplo, a histria da frica, no currculo escolar, vista
como uma paisagem extica e totalmente desvinculada da histria brasileira, atrelada a
uma imagem de que o africano um semi-selvagem, acorrentado em sua misria.
A fim de combater essa viso monocultural e eurocntrica que foi forjada no saber
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histrico brasileiro, ao ter como padro a viso dos grupos dominantes, o governo
brasileiro, por meio de seus rgos legais, tem incorporado na legislao brasileira alguns
tpicos de modo a contribuir com a visualizao de um Brasil pluritnico. A Lei de
Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB), em seu artigo 26, pargrafo 4,
ratificando posio da Constituio Federal de 1988, determina que o ensino histria do
Brasil levar em conta as contribuies das diferentes etnias para a formao do povo
brasileiro, especialmente das matrizes indgena, africana e europia (BRASIL, 1996a)
Por sua vez, o Ministrio da Educao (MEC), em cumprimento ao dispositivo
constitucional assente no art. 210 de nossa Carta Magna e sensvel necessidade de uma
mudana curricular face emergncia de temas sociais relevantes para a compreenso da
sociedade contempornea, elaborou para a educao bsica os Parmetros Curriculares
Nacionais (PCN).
A grande inovao da nova proposta a existncia de temas transversais que
devero perpassar as diferentes disciplinas curriculares - Lngua Portuguesa, Matemtica,
Histria, Geografia, Cincias e Artes - e permitir, com isso, a interdisciplinaridade no
ensino fundamental, tais como: Convvio Social e tico, Pluralidade Cultural, Meio
Ambiente, Orientao Sexual, Sade, Trabalho e Consumo.
Aps as discusses com as secretarias de educao de estados e municpios e com
especialistas de diversas reas do conhecimento, os PCN foram aprovados pela Cmara de
Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao (CNE), servindo de referncia
nacional para que os sistemas de ensino estaduais e municipais pudessem adequ-lo sua
realidade educacional (BRASIL, 1997).
Reconhecendo a necessidade de uma educao multicultural, os PCN estabelecem
como tema transversal o estudo da Pluralidade Cultural, a fim de ser trabalhada em
diferentes disciplinas curriculares.
[...] temtica da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento e valorizao das caractersticas tnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no territrio nacional, s desigualdades socioeconmicas e crtica s relaes sociais discriminatrias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um pas complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal (BRASIL, 1997, p. 33).
Esse mesmo documento do MEC traz como um dos objetivos gerais da educao
bsica o conhecimento e a valorizao da pluralidade do patrimnio sociocultural do pas,
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bem como aspectos socioculturais de outros povos e naes, devendo alunos e alunas,
professores e professoras posicionarem-se contra quaisquer formas de discriminao
baseada em diferenas culturais, de classe social, de sexo, de etnia ou outras caractersticas
individuais e sociais.
Alm dos PCN, dispomos das diretrizes curriculares elaboradas pelo CNE para a
educao bsica. Recentemente, esse rgo normativo e consultivo do MEC instituiu, com
base no parecer da conselheira Petronilha Beatriz Gonalves e Silva, as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de
Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana.
Ainda no mbito das polticas pblicas governamentais, podemos citar o Programa
Nacional de Direitos Humanos, elaborado pelo Ministrio da Justia na gesto do
Presidente Fernando Henrique Cardoso, que previa, entre uma srie de aes para as
populaes negras no Brasil, o estmulo [...] elaborao de livros didticos que
enfatizem a histria e as lutas do povo negro na construo do nosso Pas, eliminando
esteretipos e discriminaes (BRASIL, 1996b, p. 31).
Mais recentemente, por ocasio do incio do Governo Lula, foi sancionada a Lei n.
10.639, de 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial
da rede de ensino obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira, e d
outras providncias. A Lei estabelece o estudo da histria da frica e dos africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade
nacional, resgatando a contribuio do povo negro nos reas sociais, econmicas e
polticas pertinentes Histria do Brasil (art. 26-A, 1) e, tornando-o obrigatrio no
currculo escolar da educao bsica (BRASIL, 2003).
Nesse momento histrico, a demanda por gerao de oportunidades requer do
Estado e da sociedade medidas que contemplem a populao negra nas oportunidades que
iro amenizar os danos psicolgicos, materiais, sociais, polticos e educacionais herdados
do regime escravista, bem como das polticas explcitas ou tcitas de branqueamento da
populao, de manuteno de privilgios exclusivos para os grupos com poder de governar
e de influir na formulao das polticas no ps-abolio. Tais medidas se concretizam com
iniciativas de combate ao racismo e demais formas de discriminao.
O posicionamento daqueles que j conhecem este dispositivo legal dividido, uns
concordam e outros discordam. Os argumentos da discordncia sustentam que a Lei no se
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traduz, na prtica, em uma mudana necessria e que produziria um acirramento ainda
maior entre os vrios grupos tnicos que compem a populao brasileira. Alem disso,
argumentam os discordantes que a legislao seria racista por privilegiar um setor
especifico do mosaico tnico brasileiro em detrimento dos demais. Um exemplo desse
pensamento do professor Peter Fry (2005) que, em seu livro A Persistncia da Raa
afirma que a Lei 10.639/2003 estaria reapresentando o surrado conceito de raas humanas,
portanto, no possui base cientfica pelo simples motivo que existe apenas uma raa: a
humana. Nesse sentido, Fry afirma que a Lei 10.639 poderia desencadear reaes de outros
grupos, constrangidos por estarem pouco representados nos currculos.
Os argumentos dos concordantes postulam que a Lei fundamental, porque
contribui para ampliar o conhecimento sobre a histria dos negros formadores da
populao brasileira. Para Lopes (2003, p. 19), a Lei 10.639/2003 do CNE vem
reconhecer a existncia do afro-brasileiro e seus ancestrais (os africanos), sua trajetria na
vida brasileira e na condio de sujeitos que contriburam para a construo da sociedade.
Acrescenta que preciso ser inserida no currculo escolar para modificar os contedos
hegemnicos de cunho eurocntrico contidos no sistema escolar, e obter um resultado
desejvel de respeito s diferentes culturas no processo de ensino e de aprendizagem. Essa
alterao, em seus aspectos explcitos e implcitos, precisa ser construda no cotidiano do
fazer pedaggico no interior das escolas, envolvendo alunos, professores, corpo diretivo,
corpo administrativo e comunidade escolar em geral, tendo como suporte um currculo
com base na abordagem da diversidade cultural.
Outro argumento favorvel que, apesar de a Lei de Diretrizes e Base da Educao
Nacional (LDB, 9394) aprovada em 1996, ter explicitamente includo a histria afro-
brasileira como contedo pedaggico, na realidade, nada disso aconteceu. Nessa
concepo, a nova Lei estaria antes de tudo cobrando efetivao de um parecer pedaggico
j existente.
Em nossa perspectiva, o argumento dos que afirmam que a Lei 10.639/2003 estaria
privilegiando uma etnia determinada, a dos negros, no se sustenta. No Brasil, o grupo
afro-descendente negro, mesmo constituindo cerca de 50% da demografia brasileira, ainda
est sub-representado na maioria das esferas da vida social. Essa ausncia de
representatividade repercute no sistema de ensino, que desqualifica ou simplesmente se
cala a respeito da histria e da cultura negro-africana.
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Quanto aos demais grupos, segundo Serrano e Waldman (2007), possvel
argumentar que a prpria lei que incentiva o ensino da histria e cultura afro-brasileira e
africana tambm inclui a discusso sobre a diversidade tnico-racial no Brasil. Estas
medidas contribuem para a reeducao das relaes entre os vrios grupos sociais
constituintes da sociedade brasileira, provocando o questionamento das relaes tnico-
raciais baseadas em preconceitos e na desqualificao do outro. Tal argumento pode ser
comprovado com a aprovao em maro de 2008 da Lei 11.645 que, alm da
obrigatoriedade do ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana na educao
bsica, prev tambm o ensino da histria e cultura indgena (BRASIL, 2008)
Por fim, em relao aos segmentos que repudiam a Lei em nome de um suposto
racismo que estaria perpassando a sua essncia ao prever o ensino da histria e da cultura
afro-brasileira, entendemos que a questo racial no se esgota em um ponto de vista
gentico, necessrio ressaltar os condicionamentos histrico-sociais dos conceitos que
envolvem as questes raciais. Se, no passado, a idia da existncia de raa superior e da
raa inferior legitimava a escravizao com comprovao cientfica da inferioridade dos
negros, atualmente, para legitimar a ordem estabelecida, funda-se na no existncia de
raas, apoiando-se nos direitos democrticos vlidos para todas as etnias. A existncia ou
no de raa depende da convenincia em um determinado momento social.
Em resumo, nesta dissertao consideramos que, a Lei 10.639/2003 constitui um
passo importante para resgatar e valorizar os diversos grupos tnicos que esto margem
da sociedade brasileira. Os currculos escolares do sistema educacional podem ser aliados
valiosos nessa luta, como ressalta Gomes (2008), esta Lei que no somente uma norma:
resultado da ao poltica e da luta de um povo cuja histria, sujeitos e protagonistas ainda
so poucos conhecidos.
Na educao escolar, verificamos uma dificuldade em ensinar e aprender histria,
trabalhar o real e o imaginrio. O principal problema, quando se trata do ensino de histria
e cultura afro-brasileira e africana, no se encontra em sua complexidade, mas sim nas
informaes disponibilizadas, especialmente na mdia, que so distorcidas e no condizem
com a realidade.
2.1.1 Aplicao da Lei 10.639/20003 na sala de aula.
Sem dvida, a Lei representa um avano ao possibilitar a construo de um
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multiculturalismo crtico na escola brasileira, ao mesmo tempo em que se reconhece uma
luta histrica do movimento negro em nosso pas, cuja bandeira de luta consiste em incluir
no currculo escolar o estudo da histria e cultura afro-brasileira. Por outro lado, no
podemos nos esquecer que ainda precisamos de muitas aes para que a Lei no se torne
letra-morta e contribua, de fato, para uma educao multicultural com o questionamento
das relaes sociais desiguais.
Lopes (2003), utilizando os estudos de Sacristn assinala que o termo multicultural
ambguo e enganador, por se tratar de um rtulo em quede cabem vrias perspectivas. Ela
explica que tanto pode se referir a uma perspectiva assimilacionista, em que uma cultura
dominante objetiva assimilar uma cultura minoritria em condies desiguais e com
oportunidades menores no sistema educacional e social, como pode ser multitnica, um
instrumento para diminuir preconceitos de uma sociedade para com as minorias tnicas, ou
ainda associada a um pluralismo cultural, em que se busca proporcionar vises plurais da
sociedade e de suas elaboraes.
Mas, ainda de acordo com a autora, apesar de tal discurso, no se pode deixar de
identificar o pluralismo cultural com a aceitao do diferente, e essa concepo pode ser
vista sob dois enfoques: o do consenso e o do conflito. O do conflito seria aquele que
exigiria processos argumentativos e embates sociais para sua resoluo e o do consenso
objetivaria superar os conflitos sem confrontao.
Para trabalhar a histria da frica em sala de aula, como nos alerta Conceio
(1999), temos que levar em considerao algumas questes: Como pensar uma escola que
tenha por base uma educao na perspectiva da pluralidade tnico-racial? Como romper
com o modelo pedaggico vigente? O que fazer para que a sociedade civil, organizada por
meio de suas legtimas representaes, inclua o afro-brasileiro? Estas questes so
fundamentais para contemplar os brasileiros descendentes de africanos, para pensar em
uma nova educao escolar. Neste sentido, consideramos necessrio efetivar algumas aes
no processo educativo de sala de aula, especialmente formar um novo perfil de professor e
professora e de aluno e aluna que, no exerccio da reflexo sobre o seu eu e o outro,
apropriem-se dos saberes sobre a histria e a cultura afro-brasileira e africana para serem
socializados com as respectivas comunidades, a fim de romper com a pedagogia que
prioriza o modelo eurocntrico.
Fernandes (2005) afirma que um dos gargalos do sistema educacional brasileiro
reside na qualificao do corpo docente, sobretudo os que exercem o magistrio nas sries
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iniciais do ensino fundamental. Esses professores e professoras, em sua maioria, recebem
uma formao polivalente e, portanto, precisam de qualificao para trabalhar com essa
nova temtica curricular. O autor sugere, para tanto, um esforo por parte dos rgos
governamentais ligados rea de promoo da igualdade racial para oferecer, em parceria
com as instncias educacionais, cursos de extenso sobre a histria da frica e de cultura
afro-brasileira, bem como a publicao de material didtico-pedaggico que possa dar
suporte tcnico atuao desses docentes no processo de ensino e aprendizagem
Dessa forma, para tratar a temtica do negro no currculo escolar, no necessrio
que o professor e a professora sejam negros. A lei tem um carter obrigatrio para todo o
magistrio e com a funo estratgica para a formao do cidado brasileiro. Para cumprir
a lei, os conhecimentos relativos a essa temtica devem ser socializados entre os demais
educadores e educadoras e ampliados para toda comunidade escolar. Com isso, o [...]
professor e a escola no sero mais acusados de serem mediadores - mesmo que
inconsciente - da formao de esteretipos que geram preconceitos que se constituem de
um juzo prvio a uma ausncia de um real conhecimento do outro (SILVA, 2001, p. 73).
Cunha Jnior (1998) enfatiza que o racismo, o preconceito e a discriminao so os
malefcios que existem tanto na escola quanto na sociedade em geral, muitas vezes
mascarados e naturalizados ou, ainda, assumidos explicitamente nas atitudes, nos valores e
nas normas vigentes, presentes em nosso cotidiano. So manifestaes de um processo
cruel de dominao, que mina a cultura dos grupos sociais considerados dominados entre
ns, os negros e os indgenas.
Silva (2001) alerta que trabalhar a partir de valores eurocntricos no sistema escolar
leva as crianas e adolescentes negros a se sentirem inferiores e a serem considerados
como tal pelos demais. A convivncia com a imagem estereotipada, que causa danos
psicolgicos e morais, pode bloquear a personalidade tnica e cultural do afro-descendente.
Felipe e Teruya (2008) afirmam que o brasileiro, de um modo geral, sabe pouco a
respeito dos afro-descendentes, e, quando sabe, seu conhecimento est repleto de idias
preconceituosas. Trata-se de um conhecimento sincrtico. Comea com a entrada do negro
no Brasil como mercadoria. A imagem do negro descalo, seminu e selvagem mostrada
na literatura escrita por brancos, sem contar a histria do africano livre, dono de sua
prpria vida e produtor de sua prpria cultura. Ao falar dos aspectos da cultura africana e
da histria do negro no Brasil, entramos em um campo de tenses e de relaes de poder
que nos leva a questionar as representaes e os esteretipos sobre a frica, os africanos,
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negros brasileiros e sua cultura. A idia de inferioridade cultural dos negros, construda
historicamente e socialmente, justificou os processos de dominao, colonizao e
escravizao.
No ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana no se trata de mudar o
foco etnocntrico marcadamente de raiz europia pela africana, mas de ampliar o foco dos
currculos escolares para a diversidade cultural, racial e social e econmica brasileira. Cabe
s escolas inclurem os estudos e as atividades que proporcionam contribuies histrico-
culturais dos povos indgenas e dos descendentes de asiticos e alm destas, das razes
africanas e europias.
As reivindicaes estabelecidas na Lei 10.639/2003 lanam novas bases para o
ensino de histria, uma vez que o legado eurocntrico resultou em um raciocnio que ainda
hoje dificulta os estudos sobre frica e sobre negro no Brasil, constituindo um srio
obstculo para a compreenso da realidade histrica do continente africano e de seus
descendentes.
2.2 NOVAS BASES PARA O ENSINO DE HISTRIA DA FRICA NA EDUCAO
ESCOLAR: DESCONTRUNDO MITOS.
O conhecimento de um determinado tema, na nossa perspectiva, construto social,
para promover a releitura da histria africana eivada de preconceitos, necessrio
questionar vrios conceitos solidificados no decorrer da histria, necessrio desconstruir
as estereotipias que foram forjadas pelo imaginrio europeu sobre frica e seus
descendentes. Como nos alerta Meneses (2007, p. 56) falar sobre a frica significa
questionar e desafiar crenas adquiridas, pressupostos afirmados e mltiplas
sensibilidades.
Quando nos reportamos ao termo desconstruir, referimo-nos aos procedimentos da
anlise do discurso nos moldes adotados pelo filsofo Jacques Derrida, que pretendem
mostrar as operaes, os processos que esto implicados na formulao de narrativas
tomadas como verdades, em geral, tidas como universais e inquestionveis. A
desconstruo tem possibilitado vislumbrar com nitidez as relaes entre os discursos e o
poder. Ao contrrio do que muitas pessoas pensam desconstruir no significa destruir.
Desconstruir, neste caso, significa uma estratgia de demonstrar para poder mostrar as
etapas seguidas na montagem. (COSTA, 2002a, p. 140).
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Compreender e contextualizar as informaes sobre aspectos do continente africano
, indiscutivelmente, um exerccio critico. Serrano e Waldman (2007) argumentam que
existem vises estereotipadas cultivadas contra os povos africanos e suas regies. Mais do
que qualquer outro continente, a frica terminou encoberta por um vu de preconceitos,
que, ainda hoje, marcam a percepo de sua realidade.
O imaginrio europeu devotou para as terras africanas e para os seus habitantes um
amplo leque de injunes desqualificantes, muitas vezes respaldadas pelos intelectuais
europeus. A frica foi condenada ao papel de espao perifrico da humanidade, alm de
desprovida de adjetivos que engrandecem na viso dos europeus.
Na realidade, os mecanismos simblicos da excluso do outro remontam de muitos
sculos, estando profundamente enraizados no legado cultural europeu. Serrano e
Waldman (2007) revelam que o discurso europeu a respeito da frica antigo, pode ser
localizado um variado conjunto de elaboraes socioculturais. a partir desse passado
remoto que se estratificou o preconceito cultivado contra o outro, personificado em
diferentes momentos pelos brbaros, trtaros, mongis, ciganos, judeus, muulmanos,
assim como pelos negros africanos.
inegvel que o mundo ocidental construiu o seu relacionamento com as
populaes extraeuropias com base em preconceitos de todo tipo. Nesse particular, Cunha
Jnior (1998) afirma que o continente africano foi, inegavelmente, o mais desqualificado
pelo pensamento europeu. Ainda que a imagem da frica tenha variado ao longo do tempo
em decorrncia de diferentes formas de relacionamento estabelecidas com os seus povos,
indiscutvel que este continente foi mais que qualquer outro, naturalizado pelo pensamento
ocidental com imagens negativas e excludentes.
O embrio dessas concepes discriminatrias remete s formulaes surgidas na
antiguidade clssica. Para os antigos gregos e romanos, a frica compreendia as terras
situadas entre os pases atuais Lbia e Marrocos, habitados por povos de idioma berbere (o
termo no designa nenhuma etnia, diz respeito a um grupo de lnguas que integra a famlia
afro-asitica). Desse modo, refere-se a povos cujas caractersticas so, em alguns
contextos, muito discrepantes entre si. Seria o caso dos garamantes, nmidas, lbios e
mauritnios, costumeiramente mencionados nas crnicas e documentos do Imprio
Romano. Recorda-se que o termo berbere deu origem palavra, brbaro, para identificar as
populaes cuja lngua e cultura eram consideradas inferiores em relao s greco-
romanas, consideradas como padro hegemnico. (SERRANO; WALDMAN, 2007).
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Historicamente, o regime de estereotipias imposto frica foi reforado pela
distncia e relativo isolamento do continente em relao ao resto do mundo europeu. A
frica, em particular a frica negra ou Subsaariana, constitua um domnio nebuloso, por
causa das informaes fragmentrias e distorcidas. As imagens do continente africano,
construdas pelo imaginrio medieval, suscitavam todo o tipo de objees. Assolados pelo
calor inclemente, os territrios meridionais estariam infestados de monstros e outros seres
fabulosos, coabitando com grupos de semi-humanos ou de humanos inferiores.
Decididamente, o quadro construdo pelo imaginrio social europeu relacionado frica
foi contemplado com estigma da subalternidade. No de admirar que as representaes
confirmem uma pretensa inferioridade.
Na modernidade, o rebaixamento da frica relaciona-se intimamente s demandas
da sociedade capitalista ocidental, que, de modo contnuo, reapresenta para o continente a
condio perifrica do sistema de produo de mercadorias. Desse modo, se, no perodo do
mercantilismo, foi reservado frica o papel subalterno de fornecer mo-de-obra
compulsria para a monocultura aucareira e para a extrao de metais e pedras preciosas,
com a hegemonia do capitalismo industrial, o continente novamente subalternizado,
enquadrado na condio de manancial de mo-de-obra barata e de fornecedor de matrias
primas para as potncias industriais. Nesse sentido, a necessidade de justificar o domnio
europeu induziu e foi mantida mediante o desenvolvimento de teorizao que, apelando
para as distores conceituais, desqualificava o legado africano em todos os sentidos.
Se, no perodo mercantilista, a frica reunia caractersticas espirituais, religiosas e
elementos fabulosos inscritos no seu espao geogrficos, na fase do capitalismo industrial,
a carncia de civilizao o principal argumento para sua estereotipia. Nessa perspectiva,
o continente africano passa ser visto como, de fato, deveria ser entendido: um continente
simplesmente carente de civilizao.
Mais uma vez, a frica foi alvo da poltica de hierarquizao do conhecimento
imposto pelas expectativas do mundo europeu e, agora, a constituio do discurso
desclassificatrio voltado a frica de que ela no era civilizada, cabendo ao europeu
levar a civilizao ao continente africano. A frica foi inteiramente retalhada e distribuda
entre as potncias coloniais, que reorganizaram o espao africano aos seus interesses,
ignorando todo e qualquer arranjo espacial anterior. Segundo Serrano e Waldman (2007)
com exceo da Etipia, a totalidade do continente ficou de uma forma ou de outra, sob os
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interesses econmicos e polticos do imperialista ocidental. No sem motivo, a frica
passou a ser conhecida como o continente colonial por excelncia.
Com as imagens elaboradas pelo mercantilismo e pelo capitalismo industrial no
ps-guerra, no contexto da independncia dos pases do continente africano, propagou-se
uma nova leitura desqualificante da frica. Atualmente, o continente continua dominado
pela pobreza, pelo subdesenvolvimento, pelas doenas, pelas guerras entre os grupos
sociais ali viventes, pelos golpes de Estado contnuos, pelo analfabetismo, pelos refugiados
da seca e da falta de perspectivas. Em um mundo desigualmente unificado pela
globalizao, como todas as desprezadas regies meridionais do planeta, a frica ainda
integra a periferia de flagelos sociais.
Nesta nova elaborao plena de estereotipias negativas, o futuro no reservaria
nenhuma benesse para o continente, condenado, a priori, estagnao. Tal como leituras
anteriores, essa nova coleo de imagens associa-se a um ideolgico, pelo qual a frica
seria incapaz de conduzir o prprio destino. Ela deve, portanto, continuar a apelar para o
Ocidente na busca de solues para os seus problemas. Como nas imagens anteriores, a
viso estereotipada sobre a frica e seus povos, por meio de um discurso generalizante e
excludente, utiliza-se dos preconceitos e das falsas concepes. Objetivamente, essas
perspectivas trabalham em prol da confirmao da submisso da frica ao mundo
ocidental e s suas expectativas econmicas, sociais e polticas.
Como vimos, todas as construes elaboradas sobre a frica nunca se distanciaram
da ambio de domin-la e de configur-la como contraponto de uma Europa que se
arrogava um papel dominante. Ademais, para submeter o que quer que seja, necessria,
antes de tudo, a iniciativa de concretizar-se no nvel do imaginrio, preferivelmente de
modo a distorcer a compreenso do outro, habilitando, desse modo, a irrupo de uma
ideologia de dominao.
2.2.1 A frica na educao escolar brasileira.
Por que estudar a histria e a cultura africana nas escolas brasileiras? Se o Brasil
fosse um pas sem nenhuma parcela de afro-descendentes negros, no seria surpreendente
que os currculos escolares dispensassem estes contedos. Mesmo assim, por razes da
histria da humanidade ou mesmo da histria econmica do capitalismo, seria
indispensvel um conhecimento da histria africana. Surpreendente que o Brasil, sendo
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um pas que tem cerca de metade da sua populao e reconhece a sua ancestralidade no
continente africano, no tenha o ensino de aspectos da histria africana na constituio de
seu currculo escolar.
Podemos postular que a Lei 10.639/2003 aponta a necessidade de construo da
histria do mundo na formao dos docentes. Meneses (2007) argumenta que se trata da
(re)construo de uma outra histria que considere no s a perspectiva eurocntrica
dominante, ampliando as possibilidades de conhecimento inseridos no currculo escolar.
Em nossa perspectiva, no definimos certos conhecimentos como vlidos e
verdadeiros, enquanto que outros so considerados suprfluos e irrisrios. Cabe escola a
tarefa de pensar possibilidades de acesso s diferentes culturas, no no sentido de incluir
em seu calendrio datas exclusivas para trabalh-las, mas no sentido de permitir que os
alunos compreendam que h diferenas e semelhanas entre uma cultura e outra. As
relaes de disputa por posies sociais e conhecimentos so carregadas de interesses
particulares inerentes tanto sua prpria cultura quanto s outras. Por isso, necessrio
que os alunos conheam a cultura de outros grupos e a histria de sua prpria cultura em
um processo de interao e alteridade.
Para o entendimento da histria econmica, poltica e cultural do Brasil, tambm
necessrio consultar a histria e a cultura africana. Sem estes elementos se constri uma
histria parcial, distorcida e promotora de racismos. A razo que justifica a excluso da
Histria Africana nos diversos currculos nacionais das diversas modalidades e nveis de
ensino o racismo. A excluso da Histria Africana uma dentre as vrias demonstraes
do racismo em relao populao negra. Ela produz a eliminao simblica do africano e
da histria nacional.
Uma das motivaes que os pesquisadores e pesquisadoras e os docentes brasileiros
devem ter para estudar a histria e a cultura africana a ausncia de sistematizao e
veiculao das informaes relacionadas ao continente africano. Serrano e Waldman
(2007) afirmam que essa lacuna evidente tanto na ausncia pura e simples de uma viso
realista sobre o continente africano quanto em seu desdobramento direto na persistncia de
uma viso estereotipada e preconceituosa que lhe impingida.
No seria demasiado afirmar que a viso distorcida sobre o continente africano e
sua populao associa-se excluso de parcela pondervel da populao brasileira do
pleno exerccio de seus direitos como cidados, excluso que recai de forma marcante
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sobre os afro-descendentes. As perspectivas excludentes desmerecem um legado
extremamente valioso, responsvel por inmeros valores civilizatrios.
Apesar da histria e da cultura africana no terem a devida ateno por parte dos
historiadores brasileiros, que deveriam ter pautado essa discusso como uma das
prioridades para compreender a formao de nosso pas, a Lei 10.639/2003 determina o
que os estudos sobre temas africanistas devem alcanar em nosso pas. Nesse sentido, a
frica, seus povos e suas culturas tornaram-se foco de interesse para os profissionais da
educao, os quais necessitam de capacitao para perceber que a constituio da histria
de um povo perpassa a dimenso do poder e do saber. Estamos diante de confrontos entre
distintas experincias histricas, econmicas e culturais, em que o discurso hegemnico
hierarquiza e inferioriza o discurso do outro.
Desse modo, no tocante realidade brasileira, o estudo da cultura da populao
africana posiciona-se como uma contribuio direta aos diversos segmentos da populao
brasileira, sobretudo da populao negra. Desde os primrdios da colonizao marcada
pela discriminao racial, os negros tiveram as suas prticas ancestrais abafadas,
marginalizadas e deturpadas, comprometendo, assim, a sua insero plena no processo
social brasileiro.
Essa represso cultural, camuflada pelo mito da democracia racial, desdobra-se no
no reconhecimento dos valores e das prticas sociais de razes africanas, interiorizadas
pelo conjunto da populao brasileira, independentemente de sua origem racial.
Os estudos da histria e cultura africana articula a realidade daquele continente com
a real