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Cinema, educação

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO: MESTRADO

    DELTON APARECIDO FELIPE

    NARRATIVAS PARA ALTERIDADE: O CINEMA NA FORMAO DE PROFESSORES E PROFESSORAS PARA O ENSINO DE

    HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NA EDUCAO BSICA

    MARING

    2009

  • DELTON APARECIDO FELIPE

    NARRATIVAS PARA ALTERIDADE: O CINEMA NA FORMAO DE PROFESSORES E PROFESSORAS PARA O ENSINO DE

    HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NA EDUCAO BSICA

    Dissertao apresentada ao Programa e Ps-Graduao em Educao, da Universidade Estadual de Maring, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Prof. Dr. Teresa Kazuko Teruya

    MARING 2009

  • DELTON APARECIDO FELIPE

    NARRATIVAS PARA ALTERIDADE: O CINEMA NA FORMAO DE PROFESSORES E PROFESSORAS PARA O ENSINO DE HISTRIA E

    CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NA EDUCAO BSICA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, da Universidade Estadual de Maring, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao.

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________ Prof. Dr. Teresa Kazuko Teruya (orientadora)

    Universidade Estadual de Maring UEM

    _____________________________________________ Prof. Dr. Maria Luisa Merino de Freitas Xavier

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre RS

    ____________________________________________ Prof. Dr. Walter Lcio de Alencar Praxedes Universidade Estadual de Maring UEM

    MARING

    2009

  • Dedico este trabalho

    minha me, Teresa de Ftima Felipe e,

    minha irm, Maria Crislaine Felipe,

    minhas meninas bonitas do lao de fita.

  • AGRADECIMENTOS

    Prof. Dr. Teresa K. Teruya, amiga e orientadora, por acreditar em mim e me apresentar

    os caminhos a serem trilhados no mundo da pesquisa.

    Prof. Dr. Maria Luisa Merino Xavier, ao Prof. Dr. Walter Lcio de Alencar Praxedes e

    Prof. Dr. Lizete Shizue Bomura, membros da banca examinadora, pelas valiosas

    contribuies na realizao deste trabalho.

    Prof. Dr. Geiva Carolina Calsa, Prof. Dr. Analete Regina Schelbauer, ao Prof. Dr.

    Joo Luiz Gasparin, Prof. Dr. Amlia Kimiko Noma, Prof. Dr. Irizelda Martins

    Souza e Silva e ao Prof. Dr Luiz Hemenergildo Fabiano, por compartilharem comigo seus

    conhecimentos na sala de aula ou nos corredores da universidade.

    Aos professores e as professoras que participaram do curso de extenso: O cinema no

    ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, por

    compartilharem comigo seus medos, tenses, sensibilidades, expectativas e conhecimentos.

    s minhas eternas amigas, Fabiane e Tatiane, que, em muitos momentos no decorrer deste

    processo foram meu ponto de apoio e refgio.

    Aos meus grandes amigos-irmos, Alex, Fernando, Henrique, Joo Neto e Saulo, pelo

    apoio contnuo.

    A todos aqueles que contriburam para realizao desta pesquisa: aos amigos e amigas do

    mestrado turma de 2007, aos amigos e amigas do Grupo de Estudo e Pesquisa Informtica

    Aplicada a Educao (GEPIAE) e Grupo de Estudo e pesquisa em Psicopedagogia

    (GEPESP) e ao Hugo e Mrcia , por caminharem junto comigo.

    Ao CNPQ por um ano de bolsa para realizao deste trabalho.

  • Ningum nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou por sua religio. Para odiar as pessoas precisam aprender; e, se elas podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao corao humano do que seu oposto.

    (MANDELA, 1991).

  • FELIPE, DELTON APARECIDO. NARRATIVAS PARA ALTERIDADE: O CINEMA NA FORMAO DE PROFESSORES E PROFESSORAS PARA O ENSINO DE HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA NA EDUCAO BSICA. 152 f. Dissertao (Mestrado em Educao) Universidade Estadual de Maring. Orientadora: Prof. Dr. TERESA KAZUKO TERUYA. Maring, PR, 2009.

    RESUMO

    A aprovao da Lei 10.639/2003 estabelece a obrigatoriedade do ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, demanda um repensar das aes pedaggicas no espao escolar e no currculo. Esta Lei combate as sub-representaes e os esteretipos vividos pela populao negra ao longo da histria brasileira. Sua efetivao na sala de aula exige formar um novo perfil de docentes e discentes a fim de que, no processo de reflexo sobre o eu e o outro, eles se apropriem de conhecimentos necessrios para questionar a pedagogia excludente que ainda existe nas escolas. Nesta dissertao, analisamos a interveno pedaggica com filmes no ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana como fonte de pesquisa histrica na educao bsica. Para alcanar esse objetivo, estabelecemos a seguinte questo norteadora: De que maneira o uso do cinema como fonte de pesquisa pode colaborar com o ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, como prope a Lei 10.639/2003? Realizamos uma pesquisa-ao participativa, oferecendo um curso de extenso destinado a contribuir com a formao de professores e professoras da rede estadual de educao do municpio de Maring, PR e regio. Durante o curso, exibimos trs narrativas flmicas: Amistad (1997) de Steven Spielberg; Macunama: um heri de nossa gente (1969) de Joaquim de Andrade e Vista a minha pele (2003) de Joel Zito Arajo. Verificamos que os filmes provocaram reflexes sobre a prtica docente, problematizando os conceitos de raa, etnia, igualdade, diferena, cultura e conhecimento. Do pblico participante, selecionamos 22 docentes como sujeitos da pesquisa. As anlises dos dados obtidos indicam que a interveno pedaggica com as narrativas flmicas e as discusses contriburam para ampliar o conhecimento dos docentes sobre os filmes e repensar as suas subjetividades, posturas pessoais e os preconceitos historicamente assumidos. Conclumos que, na educao escolar, a utilizao das narrativas flmicas um caminho possvel para serem discutidas as questes desafiadoras da nossa atualidade.

    Palavras-chave: Formao de professores e professoras. Narrativas flmicas. Histria e cultura afro-brasileira e africana. Relaes tnico-raciais.

  • FELIPE, DELTON APARECIDO. NARRATIVES FOR ALTERITY: THE CINEMA IN TEACHER EDUCATION TO THE TEACHING OF HISTORY, african and AFRICAN-BRAZILIAN CULTUREs IN PRIMARY SCHOOLING. 151 pages. Dissertation (Master in Education) State University of Maring. Supervisor: Prof. Dr. TERESA KAZUKO TERUYA. Maring, PR, 2009.

    ABSTRACT

    The approbation of Law #10.639/2003, which establishes the compulsory teaching of history, African and African-Brazilian cultures in primary schooling, claims some thinking about the pedagogical activities both in schools and school syllabus. This Law fights against the sub-representations and stereotypes faced by the black population throughout Brazilian history. Its effectiveness in the classroom requires the education of a new profile of teachers and students so that they, in the reflective process upon the I and the other, may acquire some necessary knowledge in order to question about the excluding pedagogy that still goes on in schools. In this dissertation, we analyze the pedagogical intervention with the use of films in the teaching of history and the African-Brazilian culture as a historical research source in primary schooling. In an effort to achieve this goal we raised the following question: How can the use of cinema, which is seen as a research source, contribute to the teaching of history, African and African-Brazilian cultures in primary schooling as proposed by the Law #10.639/2003? We conducted a participating research action by holding an extra academic course in order to contribute to the education of the teachers from the state schooling in the city of Maring, PR and other surrounding cities. Along this course, we showed three filming narratives: Amistad (1997) by Stephen Speilberg; Macunama: um heri de nossa gente (1969) by Joaquim de Andrade, and Vista minha pele (2003) by Joel Zito Arajo. We observed that these films brought about some reflections upon teacher practice, such as questionings concerning race, ethnicity, equality, inequality, culture and knowledge. Twenty-two teachers were selected among the whole participants and were taken as research subjects. The analyzed data showed that the pedagogical intervention with the use of the filming narratives and the discussions made helped to broaden the teachers knowledge about films and to (re)think on their subjectivities, personal conduct and the historical prejudices. At last, we concluded that the use of filming narratives in schooling is a possible way to discuss some challenging issues of our present life.

    Key words: Teacher education. Filming narratives. History, African and African-Brazilian cultures. Racial-ethnic relationships

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Comparao entre o Primeiro e o Segundo Questionrio do Filme

    Amistad.............................................................................

    127

    Tabela 2 Comparao entre o Grfico 1 e o Grfico 4.................................. 128

    Tabela 3 Comparao entre o Quadro 11 e o Quadro 14............................... 129

    Tabela 4 Comparao entre o Primeiro e o Segundo Questionrio do Filme

    Macunama.....................................................................................

    130

    Tabela 5 Comparao entre o Grfico 2 e o Grfico 5................................. 131

    Tabela 6 Comparao entre o Quadro 12 e o Quadro 15............................... 133

    Tabela 7 Comparao entre o Primeiro e o Segundo Questionrio do Filme

    Vista a Minha Pele.........................................................................

    134

    Tabela 8 Comparao entre o Grfico 3 e o Grfico 6................................. 135

    Tabela 9 Comparao entre Quadro 13 e Quadro 16..................................

    136

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Dados dos docentes que Participaram Curso: Cinema no Ensino

    de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana na Educao

    Bsica............................................................................................

    64

    Quadro 2 Dados e Identificao dos Sujeitos Selecionados Para Pesquisa. 69

    Quadro 3 Questionrio sobre o Ensino da Histria e Cultura Afro-

    Brasileira e Africana na Educao Bsica e sobre o Uso de

    Filmes em Sala de Aula na Educao Bsica...............................

    71

    Quadro 4 Primeiro Questionrio sobre o Filme Amistad............................ 75

    Quadro 5 Segundo Questionrio sobre o Filme Amistad............................ 82

    Quadro 6 Primeiro Questionrio sobre o Filme Macunama...................... 83

    Quadro 7 Segundo Questionrio sobre o Filme Macunama..................... 87

    Quadro 8 Primeiro Questionrio sobre o Filme Vista a Minha Pele.......... 89

    Quadro 9 Segundo Questionrio sobre o Filme Vista a Minha Pele.......... 92

    Quadro 10 Dados sobre os Professores e Professoras que Utilizam Filmes

    em Sala de Aula...........................................................................

    97

    Quadro 11 Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para o

    Filme Amistad..............................................................................

    111

    Quadro 12 Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para o

    Filme Macunama.......................................................................

    119

    Quadro 13: Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para

    Filme o Vista a Minha Pele.........................................................

    122

    Quadro 14 Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para o

    Filme Amistad.............................................................................

    129

    Quadro 15 Atividades Propostas pelos Professores e Professoras para o

    Filme Macunama.......................................................................

    132

    Quadro 16 Contedos sobre o Filme Vista a Minha Pele............................. 135

  • LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1 Contedos no Filme Amistad Primeiro Questionrio ... 107

    Grfico 2 Contedos Trabalhados no Filme Macunama Primeiro

    Questionrio......................................................................

    116

    Grfico 3 Contedos Trabalhados com o filme Vista a Minha Pele

    Primeiro Questionrio......................................................

    121

    Grfico 4 Contedos Trabalhados com o Filme Amistad Segundo

    Questionrio........................................................................

    127

    Grfico 5 Contedos Trabalhados com o Filme Macunama

    Segundo Questionrio .....................................................

    131

    Grfico 6 Contedos Trabalhados com o Filme Vista a Minha Pele

    Segundo Questionrio......................................................

    134

  • ABREVIATURAS E SIGLAS

    ANPUH Associao Nacional de Histria

    CNE Conselho Nacional de Educao

    COPEP Comit Permanente de tica em Pesquisa com Seres Humanos

    FNB Frente Negra Brasileira

    GEPIAE Grupo de Estudo e Pesquisa em Informtica Aplicada Educao

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    LDB Leis de Diretrizes e Bases

    MEC Ministrio da Educao

    MNU Movimento Negro Unificado

    NRE Ncleo Regional de Educao de Maring

    PCN Parmetros Curriculares Nacionais

    SAEB Sistema Nacional de Avaliao da Educao Bsica

    SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia

    UEM Universidade Estadual de Maring

  • SUMRIO

    1 INTRODUO.......................................................................................... 16

    2 A TRANSFORMAO NO ENSINO DE HISTRIA NO BRASIL:

    CAMINHOS PARA TNICO-RACIAL.................................................

    25

    2.1 A DIVERSIDADE TNICO-RACIAL: EDUCAO ESCOLAR E

    ENSINO DE HISTRIA NO BRASIL.......................................................

    28

    2.1.1 Aplicao da Lei 10.639/2003 na sala de aula......................................... 35

    2.2 NOVAS BASES PARA O ENSINO DE HISTRIA DA FRICA NA

    EDUCAO ESCOLAR: DESCONTRUDOS MITOS...........................

    37

    2.2.1 A frica na educao escolar brasileiro.................................................. 41

    2.2.2 Os negros na histria do Brasil: Reflexes sobre o ensino de histria.. 43

    3 CINEMA NA EDUCAO ESCOLAR: CAMINHOS PARA

    ENSINO DA HISTRIA E CULTUA AFRO-BRASILEIRA E

    AFRICANA.............................................................................................

    47

    3.1 O CINEMA COMO PRTICA CULTURAL........................................... 49

    3.1.1 Cinema: O espectador como sujeito social.............................................. 51

    3.2 O CINEMA NA EDUCAO ESCOLAR................................................ 54

    3.2.1 O cinema no ensino de histria: Professores e Professoras e alunos e

    alunas como protagonistas........................................................................

    56

    3.2.2 O cinema e o ensino de histria e cultura afro-brasileiro e africana.... 59

  • 14

    4 CAMINHOS PERCORRIDOS: A PESQUISA...................................... 62

    4.1 CRITRIOS PARA A SELEO DOS SUJEITOS.................................. 67

    4.2 PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS..................................... 69

    4.2.1 Primeiro Encontro: Apresentao do curso............................................ 70

    4.2.2 Segundo Encontro: Exibio do filme Amistad...................................... 74

    4.2.3 Terceiro Encontro: Discusso sobre o filme Amistad............................ 76

    4.2.4 Quarto Encontro:exibio do filme Macunama: um heri de nossa

    gente............................................................................................................

    82

    4.2.5 Quinto Encontro: Discusso sobre o filme Macunama: um heri de

    nossa gente..................................................................................................

    84

    4.2.6 Sexto Encontro: Exibio e discusso do filme Vista a Minha

    Pele..............................................................................................................

    88

    4.3 PROCEDIMENTO DE ANLISE DE DADOS........................................ 93

    5 PROBLEMATIZANDO OS CAMINHOS: APRESENTAO E

    ANLISE DOS DADOS...........................................................................

    96

    5.1 O USO DE FILMES NA SALA DE AULA................................................ 97

    5.2 HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA EM

    SALA DE AULA........................................................................................

    99

    5.3 OS FILMES E A HISTRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E

    AFRICANA EM SALA DE AULA: POSSVEL ESSE DILOGO?...

    102

    5.3.1 Amistad: Concepes iniciais.................................................................... 104

  • 15

    5.3.2 Macunama: Concepes iniciais.............................................................. 113

    5.3.3 Vista a Minha Pele: Concepes iniciais.................................................. 119

    5.4 O IMPACTO DAS REFLEXES REALIZADAS NO CURSO DE

    EXTENSO.............................................................................................

    123

    5.4.1 Amistad: Impacto das discusses............................................................. 126

    5.4.2 Macunama: Impacto das discusses....................................................... 130

    5.4.3 Vista a Minha Pele: Impacto das discusses........................................... 133

    5.5 O CURSO COMO POSSIBILITADOR DE REFLEXES:

    CONSTRUINDO CAMINHOS PARA ALTERIDADE.......................

    136

    6 CONSIDERAES FINAIS................................................................... 140

    7 REFERNCIAS........................................................................................ 143

    APNDICE................................................................................................ 151

  • 16

    1 INTRODUO

    A pretenso em pesquisar a possibilidade do uso da narrativa flmica no ensino da

    histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, como demanda a Lei

    10.639/2003, originou-se das leituras sobre preconceito racial, hierarquizao cultural,

    relaes de poder e identidade cultural realizadas durante o desenvolvimento do projeto de

    iniciao cientifica intitulado: Imagens da frica do Sul: Contribuies da anlise

    flmica para o ensino de histria.

    Na realizao deste projeto, surgiram inmeras dvidas, como, por exemplo: Por

    que os aspectos da cultura africana so pouco valorizados no Brasil? Quais foram os

    construtos sociais que levaram aprovao da Lei 10.639/2003? Qual a lgica cultural

    para que o negro seja sub-representado em diversas instituies sociais?

    Para buscar respostas s nossas indagaes, passamos a questionar a lgica dos

    valores e os sentidos contraditrios que compelem as culturas diferentes para agir como se

    elas fossem unssonas. As identidades so diferentes e, exatamente por isso, devem ser

    aceitas respeitadas e tratadas sem hierarquias. A cultura muda, mas suas tradies devem

    ser resgatadas e preservadas. As dvidas sobre as relaes culturais estabelecidas em nossa

    sociedade nos remetiam s diversas reflexes.

    Uma destas reflexes direcionou-nos para uma certeza inegvel: no h como

    esquecer ou ignorar as questes relativas cultura no espao escolar. O processo

    educacional , inevitavelmente, um processo cultural e, como a cultura um espao de

    diferenas, estas borbulharo a todo instante no ambiente escolar composto por seres

    humanos com distintas formas de conceber o mundo e suas relaes.

    Com base nas leituras de Hall (1997), percebemos que profundas mudanas

    socioculturais das ltimas dcadas, como o desmoronamento das certezas, o afloramento

    das diferenas culturais, a velocidade na circulao das informaes, os cruzamentos entre

    o local e o global, levaram ao questionamento das verdades universais e busca de uma

    sociedade fragmentada e plural.

    Nesse universo de mudanas, ocorreram questionamentos sobre os conhecimentos

    totalizantes. Santos (2003) afirma que as produes cientficas atuais, mesmo no campo da

    fsica e da biologia, que por muito tempo foram consideradas cincias neutras e universais,

    questionam muitas dessas verdades. A ausncia de consensos ou a existncia de falsos

  • 17

    consensos, a constatao de realidades cada vez mais complexas, as certezas relativas, em

    geral, sujeitas mercantilizao da cincia e os intensos debates provocaram uma grande

    ebulio na comunidade cientfica.

    A crtica aos saberes totalizantes abriu caminho para novas formas de pensar e

    conceber o conhecimento. Os diversos setores da sociedade, como os movimentos sociais,

    compreenderam que o conhecimento mvel, transforma-se, assume novas e diferentes

    roupagens ao se inserir em campos epistemolgicos variados e em pocas histricas

    diferentes.

    Hall (1997) afirma que essas transformaes e conflitos tm suas origens em

    fenmenos de ordem cultural. No entendimento de relaes estabelecidas entre as culturas,

    os seus conhecimentos e os seus grupos representativos, h uma espcie de jogo no qual as

    culturas esto imersas, com regras nuviosas, mas que se direciona claramente para um fim

    comum.

    Nesse contexto de questionamentos das hierarquizaes culturais e dos

    conhecimentos totalizantes, a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, foi alterada pela

    Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educao

    nacional, para incluir no currculo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temtica

    da histria e cultura afro-brasileira. A partir desta Lei, tornou-se obrigatrio no currculo

    escolar da educao bsica o estudo da histria da frica e dos africanos, a luta dos negros

    no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional,

    resgatando a contribuio dos povos negros nas reas sociais, econmicas e polticas

    pertinentes Histria do Brasil - art. 26-A, 1 - (BRASIL, 2003).

    Para Gomes (2008), a promulgao da Lei 10.639/2003 abriu um espao

    institucional para discutir a diferena e o outro na instituio escolar, ao exigir que seja

    trazida para dentro da escola a discusso sobre aspectos da cultura africana e do negro no

    Brasil.

    Gomes ainda afirma que a Lei no de fcil aplicao, porque trata de questes

    curriculares conflitantes, que questionam e desconstroem conhecimentos histricos

    considerados verdades inabalveis. Alm disso, exige dos professores e das professoras

    repensarem a constituio da suas identidades e subjetividades no seu fazer pedaggico,

    permitindo surgir uma srie de questionamentos. Como questionar as relaes de poder

    assimtricas que perpassam os contedos escolares? Que novos paradigmas esto se

    desenhando no horizonte pedaggico para o trato das questes tnico-raciais nos

  • 18

    currculos? Que materiais didticos-pedaggicos utilizar na sala de aula para levar o eu a

    perceber o outro?

    Nesse sentido, a Lei 10.639/2003, inserida no discurso do respeito pelas diferenas

    culturais, vem carregada de conotaes sobre o "eu e o outro". Porque esse eu e o outro

    em relao pressupe a descentralizao do olhar, isto , a sensibilidade de se colocar no

    lugar do outro, de ver como o outro v, aceitar um conhecimento que no se pauta

    exatamente nos nossos modelos hegemnicos de conhecimento, constituindo, assim, uma

    noo de alteridade que supera a aceitao do outro apenas como necessidade

    econmica.

    Para problematizar como a efetivao da referida Lei permite estabelecer relaes

    de alteridades na sala de aula, utilizamos as contribuies tericas dos Estudos Culturais.

    Primeiro, porque, nesta dissertao, defendemos a relao do currculo com a cultura e

    ambos como prticas de significao, produo, relao social, relao de poder e prticas

    que produzem e reproduzem identidades sociais.

    No caso dos Estudos Culturais, trata-se das viagens de estudos que, ao mesmo tempo em que abordam questes do mbito da cultura global, adquirem os contornos e as matizes das configuraes locais, reinventando-se constantemente nos seus questionamentos e perspectivas de anlises. Os melhores exemplos que posso mencionar situam-se nas problematizaes sobre gnero, raa e etnia, que, com uma fecundidade sem precedentes, tm recomposto todo o panorama dessas discusses em nosso pas e em outros pelos quais tm circulado. (COSTA, 2000, p. 26)

    Os Estudos Culturais, desde seu surgimento na Inglaterra, sua expanso pela

    Amrica do Norte e a sua chegada no Brasil, tm sido palco para muitos debates

    proeminentes em torno do significado da cultura, da reproduo e produo de identidades.

    Os temas sobre gnero e sexualidade, raa e etnia, colonial e ps-colonial, no processo de

    transmisso e construo de conhecimentos e das relaes de poder entre os sujeitos e entre

    os grupos culturais, fornecem elementos relevantes para as anlises atuais sobre currculo.

    Segundo motivo, para utilizar as contribuies dos tericos dos Estudos Culturais,

    esse eixo investigativo, tanto no Brasil quanto em outros pases, tem conduzido a discusso

    sobre cultura, conhecimento e currculo a novos caminhos e horizontes, especialmente por

    retirar o significado destes conceitos da caixa fechada e abrir caminhos para novos

    enfoques e interpretaes. Os significados trazem tona a dimenso mltipla e incerta nas

    quais estes conceitos esto imersos.

  • 19

    A ao de retirar os conceitos, como o de cultura, de conhecimento e de currculo,

    da caixa fechada significa que estes conceitos passam a ser vistos como constitudos

    socialmente. Os conhecimentos corporificados no currculo, sua distribuio e seleo so

    diretamente mediados e controlados pelos ditames da cultura preponderante na sociedade.

    Assim, a cultura no s influencia a maneira como os conhecimentos so selecionados

    como ela prpria elemento de seleo.

    Hall (2003) alerta que, nos Estudos Culturais, a cultura no venerada, porque isso

    tiraria a sua constituio social e retiraria o poder que, inevitavelmente, est em suas mos;

    poder de explicar e coordenar as relaes sociais e em fazer selees do que vlido e

    aceito e do que intil e irrelevante. A cultura organiza valores e significados da

    sociedade, mas tambm institui outros valores e significados ao fazer isto. Por isso

    necessrio considerar as suas condies de produo e as relaes com o mundo que

    produz (ARAJO, 2004, p. 6).

    Nesta perspectiva de cultura, o conhecimento, o currculo e a escola, so remetidos

    s estruturas que os criaram, aos interesses polticos que os articularam, s prticas e aos

    discursos que engendraram seus sentidos. A educao escolar cultura, porque, alm de

    socializar as cincias, as artes e as literaturas, arquiteta significados e valores formulados

    no coletivo e nas interaes humanas.

    Por ser um produto cultural, o currculo, em suas determinaes do que ensinar nas

    escolas, no apenas reproduz conhecimentos neutros, dado que seus tentculos aderem-se a

    um processo de conhecimento que constitudo de negociaes intersubjetivas

    conflitivas. Assim, ao selecionarem os conhecimentos que devero ser ensinados aos

    alunos, as escolas fazem mais do que intermediar saberes ou constituir espao nico de

    internalizao de valores e normas, porque os sujeitos no so apenas receptores ou

    reprodutores, podem ser, tambm, [...] criadores de significados em relaes socialmente

    construdas (SILVA, 1998, p. 113).

    Os Estudos Culturais consideram a cultura e a experincia humana como

    construes e interpretaes que no so nicas e verdadeiras, mas subjetivas, relativas e

    polticas. O conhecimento uma destas construes, j que no neutro, nem homogneo

    e nem esttico. Por isso, o conhecimento, neste trabalho, visto como uma categoria

    permeada por relaes histricas, sociais e polticas, constitui-se de valores, significados e

    sentidos mltiplos. Ou seja, o conhecimento expressa vises particulares, significados

    prprios de determinadas culturas e insere-se na disputa pela manuteno do poder.

  • 20

    Os Estudos Culturais consideram a cultura como elemento central da sala de aula e

    do currculo, focalizando uma aprendizagem que se paute em torno de questes

    relacionadas s diferenas culturais. Para Costa (2008, p. 491) identidade e diferena so

    inseparveis, dependendo uma da outra, e compem o eixo das principais discusses da

    atualidade preocupadas com justia e igualdade.

    No se pode esquecer que a identidade, tal como a diferena, uma relao social.

    Isso significa que sua definio - discursiva e lingstica - est sujeita a vetores de fora, a

    relaes de poder. Elas no so simplesmente definidas, so impostas. Silva (2000, p. 81)

    salienta que a identidade e a diferena no so, nunca, inocentes, segundo o autor, onde

    existe diferenciao, a est presente o poder. Ele destaca, no entanto, que h uma srie de

    processos que traduzem essa diferenciao, como incluir e excluir, identificando e

    representando, marcando, simbolizando quem pertence e quem no pertence; demarcar

    fronteiras, que definam e separem ns e eles, classificando normalizando.

    Na elaborao do currculo escolar e na ao pedaggica, necessrio

    compreender que a identidades e diferenas so produzidas na ao histrica por meio de

    discursos e da cultura. Assim, podemos compreender que, quando falamos de identidade e

    diferena, no estamos falando de algo natural e sim de jogos de poder que criam

    significados vlidos dentro de um universo simblico. Os Estudos Culturais, por meio de

    seu princpio base que o questionamento dos discursos histricos, socialmente

    constitudos, fornecem um espao narrativo para a compreenso e a anlise crtica de

    mltiplas histrias, experincias e culturas que orientam o ensino nos diferentes

    componentes curriculares (GIROUX, 2003).

    De acordo com Gusmo (1999), quando se tem como objetivo na educao,

    assimilar o indivduo ordem social, integrando-o e diferenciando-o por suas

    caractersticas pessoais, por gnero e por idade, procura-se garantir a o equilbrio da vida

    em sociedade. A educao realiza-se, ento, no interior da sociedade, composta por

    diferentes grupos e culturas, visando certo controle sobre a existncia social, de modo a

    assegurar sua reproduo por formas sociais coletivamente transmitidas. (p. 14). Ou seja,

    certas retricas que adentram as instituies escolares sobre a diversidade so tratadas, em

    algumas ocasies, com palavras suaves de eufemismo que tranqilizam as conscincias ou

    produzem a iluso de que assistimos a profundas mudanas.

    A situao da populao negra brasileira, no que se refere educao, ainda

    encontra-se sob as idias normativas. Primeiro, porque o discurso sobre incluso dos

  • 21

    aspectos culturais e histricos, a luta pela cidadania desse segmento populacional, comum

    nas escolas, normalmente, no passam do plano das idias. Existem especificidades

    prprias dessa populao que precisariam ser lembradas para serem respeitadas. Segundo,

    porque essas especificidades so, na maioria das vezes, esquecidas em prol de uma

    sociedade harmnica, homognea, em que as individualidades so igualadas por um

    modelo comum de cultura, em nome de uma pretensa ordem social.

    Na educao escolar, trabalhar na perspectiva da diversidade cultural, significa uma

    ao pedaggica que vai alm de reconhecer que os alunos sentados nas cadeiras de uma

    sala de aula so diferentes. Por terem suas caractersticas individuais e pertencentes a um

    grupo social, necessrio promover uma pedagogia que valorize as diferenas. Isto s ser

    possvel mediante a uma pedagogia que valorize a alteridade, como afirma Santos (2006).

    A alteridade ser possvel somente [...] num processo inverso ao da

    homogeneizao proposta pelo campo poltico das relaes entre povos e culturas

    distintas. Compreender o outro significa [...] relativizar o prprio pensamento para

    construir um conhecimento que outro (GUSMO, 1999, p.16-17) Enfim, o processo de

    ver-se e ver o outro s pode ocorrer em contextos histricos concretos, seja em termos

    de senso comum ou em termos de conhecimento cientfico, o que nos leva a considerar

    alteridade nesta dissertao como a noo do outro, ou seja, o "eu" conhecer o "outro" que

    representa a diferena. Perceber que a cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento de

    outras culturas; deve-se, portanto reconhecer que o "eu" uma identidade possvel entre

    tantas outras, e no a nica. Que relaes, ento, podem ser feitas entre identidade e

    alteridade quando se trata da populao negra?

    Vivemos em um pas onde a diversidade tnico-racial notria. No entanto, a

    cultura e a ideologia so de matriz europia. A criana negra ou descendente de negros

    desenvolve-se nessa ideologia e nessa cultura, situando-se num referencial que no faz

    parte da histria de sua ascendncia. No conhece a sua prpria histria, as suas razes, a

    importncia que seus antepassados tiveram na construo desse pas. Esse sujeito vai se

    construindo dentro de um ideal de ego branco, que o ideal valorizado como um todo.

    Uma postura de alteridade necessria para que a sociedade, de forma geral,

    entenda esta diversidade e consiga se colocar no processo de ver-se e ver ao outro.

    Nesse contexto de efetivao da Lei 10.639/2003 na sala de aula, torna-se importante a

    construo de representaes positivas da cultura e da histria africana e afro-brasileira nos

    diversos setores populao brasileira.

  • 22

    Frente aos pressupostos apresentados, elegemos como hiptese conceitual da

    dissertao: Apesar da aprovao da Lei 10.639/2003 sobre a obrigatoriedade do ensino de

    histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica, h carncia de propostas

    metodolgicas para a efetivao da Lei na sala de aula. Por isso, realizamos uma pesquisa-

    ao participativa para responder seguinte questo: De que maneira o uso do cinema

    como fonte de pesquisa pode colaborar com o ensino da histria e cultura afro-brasileira e

    africana na educao bsica, como prope a Lei 10.639/2003?

    Para atender a nossa hiptese, estabelecemos como objetivo geral: Analisar a

    interveno pedaggica com filmes no ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana

    como fonte de pesquisa na educao bsica.

    Este objetivo geral se desdobra em trs objetivos especficos: analisar a relevncia

    de se incluir a temtica histria e cultura afro-brasileira e africana nos currculos escolares;

    oferecer possibilidade da anlise flmica como fonte de pesquisa para trabalhar com as

    relaes tnico-raciais em sala e verificar qual o impacto das discusses sobre as

    narrativas na ao pedaggica nos professores e nas professoras.

    Para alcanar esses objetivos e investigar a hiptese conceitual junto a um grupo de

    docentes da educao bsica vinculados rede estadual, oferecemos um curso de extenso

    para analisar filmes que abordam aspectos da histria e cultura afro-brasileira a fim de

    coletar dados empricos.

    De acordo com Costa (2002a), a pesquisa-ao participativa, na perspectiva dos

    Estudos Culturais, pode ser concebida como aliana estratgica do sujeito para pensar e

    repensar as suas identidades e sua constituio discursiva. Esse tipo de pesquisa-ao

    permite aos sujeitos produzirem relatos de si e questionar as narrativas hegemnicas,

    criando um espao de contestao.

    Os sujeitos envolvidos nesse tipo de pesquisa-ao compem um grupo com

    objetivos e metas comuns, interessados em um problema que emerge em um dado contexto

    de atuao, para desempenhar papis diversos (FRANCO; GHEDIN, 2008). Constatado os

    problemas vivenciados pelo grupo, o papel do pesquisador consiste em ajud-lo a

    problematiz-los. O que pode levar os sujeitos da pesquisa a construir novos conceitos

    sobre realidade social.

    Ao se considerar que as novas leituras sobre a realidade so limitadas, provisrias e

    contextuais, podem o pesquisador e os sujeitos da pesquisa sempre repensar o seu

    posicionamento sobre a temtica pesquisada. E a percepo de que essas realidades so

  • 23

    discursivamente institudas permite que os sujeitos envolvidos questionem os

    conhecimentos que so dados como verdades naturais, permanentes e universais.

    Durante o desenvolvimento desta pesquisa-ao, procuramos articular a abordagem

    quantitativa e qualitativa. O que interessava era conhecer o posicionamento dos sujeitos

    envolvidos em face s situaes vvidas e criadas e dimensionar o estranhamento pelos

    sujeitos da pesquisa das verdades naturalizadas. Nesse sentido de qualidade, o

    levantamento de alguns dados quantitativos se deu com o propsito de apoiar a relao

    entre as categorias encontradas. O que se pretendeu foi abordar os significados institudos

    pelos sujeitos ao questionar as narrativas hegemnicas estabelecidas. Essa opo

    defendida por Bogdan e Biklen (1994), para quem a anlise estatstica junto aos relatos

    fornecidos pelos sujeitos possibilita uma compreenso adequada dos conceitos expressos

    por eles.

    Esta dissertao foi organizada em quatro sees. Na inicial, apresentamos as

    mudanas ocorridas na educao escolar, dando nfase disciplina de Histria, j que

    uma das disciplinas que tem em seu currculo diversas questes sobre as relaes tnico-

    raciais por causa das presses dos movimentos sociais de carter identitrio da dcada de

    80 do sculo XX. Alm disso, nesta seo, problematizamos as leis institudas para a

    educao escolar e voltadas diversidade tnico-racial no Brasil. Em seguida, analisamos

    os desdobramentos histricos que levaram promulgao da Lei 10.639/2003 e o que ela

    representa para a populao brasileira.

    Na seo seguinte, analisamos o papel do cinema nas relaes sociais e como a

    escola pode estabelecer uma relao de dilogo entre a narrativa flmica e o fazer

    pedaggico. Nesta dissertao, defendemos a idia de que o cinema pode ser uma

    excelente fonte de pesquisa para abordar a histria e a cultura africana e afro-brasileira na

    educao bsica. No entanto, necessrio que os professores e as professoras tenham uma

    formao terica e metodolgica para oferecer uma anlise consistente dos filmes, que v

    alm da ilustrao dos fatos histricos. necessrio olhar os filmes como possibilidade

    pedaggica que desperta reflexes sobre a realidade social.

    Na penltima seo, apresentamos a metodologia utilizada na pesquisa-ao

    durante os seis encontros realizados com os professores e as professoras da rede estadual

    de educao que se inscreveram no curso de extenso. Para isso, foi necessrio, em um

    primeiro momento, relatar nossa experincia com o curso de extenso: O cinema no ensino

    de histria e cultura afro-brasileira e africana na educao bsica. Descrevemos, quem so

  • 24

    os sujeitos da pesquisa e quais foram os critrios para a sua seleo. Entre as atividades

    realizadas, foram exibidos trs filmes: Amistad (1997) de Steven Spielberg ; Macunama:

    um heri de nossa gente (1969) de Joaquim de Andrade e Vista a minha pele (2003) de

    Joel Zito Arajo, para coletar dados empricos. Em seguida, apresentamos os

    procedimentos adotados para analisar os resultados.

    Na ltima seo, apresentamos e analisamos os dados coletados durante a pesquisa-

    ao. A anlise desses dados teve como objetivo verificar se os professores e as

    professoras estabeleceram relaes entre os filmes apresentados e a histria e cultura

    africana e afro-brasileira e, com base nas respostas obtidas, estabelecemos categorias de

    anlise dos resultados. Por fim, conclumos que, na educao escolar, a utilizao das

    narrativas flmicas um caminho possvel para se discutir as questes desafiadoras da

    nossa atualidade.

  • 25

    2 A TRANSFORMAO NO ENSINO DE HISTORIA NO BRASIL: CAMINHOS

    PARA UMA EDUCAO TNICO- RACIAL

    O objetivo desta seo analisar a relevncia do debate sobre o ensino de histria

    no Brasil a partir do final da dcada de 70 do sculo XX, com a crise do regime militar.

    Tem como objetivo verificar como as questes voltadas para as relaes tnico-raciais so

    tratadas pela disciplina de Histria.

    Elza Nadai (1992) afirma que, no final de 1970, passou-se questionar os conceitos

    elaborados para a sociedade brasileira, como o conceito de democracia racial e o de

    cidadania. Com isso, enveredou-se pelo caminho do debate poltico sobre o significado do

    ensino de histria no contexto de uma sociedade que estava lutando para se redemocratizar.

    Nesse perodo, houve um forte processo de rejeio ao ensino de histria,

    recomendado pelos governantes brasileiros para forjar o esprito de nacionalidade.

    Questionava-se o ensino preocupado em reproduzir uma narrativa histrica que servia ao

    propsito da construo da identidade nacional e da manuteno de determinado grupo no

    poder. Ficava evidente, nessas discusses, que a concepo de ensino nascente estava

    comprometida com as transformaes sociais almejadas pelos movimentos sociais

    emergentes. Neste sentido, as propostas para o ensino de histria desafiavam as condies

    polticas para reverter a equao do poder, at ento, representativo da nao brasileira e, a

    partir dessa reverso, implementar um projeto social mais justo, mais humano e com a

    participao efetiva de todos os grupos sociais.

    Os debates sobre quais contedos ensinar e como ensinar, promovidos na dcada de

    80 do sculo XX, contriburam para o incio da reformulao de concepes tericas e

    metodolgicas da disciplina de Histria, passaram a exigir que os contedos a serem

    oferecidos na educao formal levassem em considerao as reivindicaes dos grupos

    sociais. Schmidt e Cainelli (2004) entendem que o grande marco de reformulaes desse

    ensino concentrou-se na perspectiva de tratar docentes e discentes como sujeitos da histria

    e da produo do conhecimento histrico, com o objetivo de formar sujeitos produtores da

    histria, no mais receptores passivos, espectadores de uma histria de heris que

    compunha os personagens dos livros didticos.

    De maneira geral, as discusses sobre a constituio do saber histrico, que se

    desenvolveram no final dos anos de 1970 e nos anos de 1980, procuraram acompanhar e se

  • 26

    atualizaram com os desenvolvimentos tericos, metodolgicos e temticos que se

    produziam para alm de nossas fronteiras, em especial na Frana, Inglaterra, Itlia e nos

    Estados Unidos, locus de onde vm nossas principais referncias tericas, metodolgicas e

    temticas. Nadai (1992) argumenta que outros sujeitos sociais, de maneira progressiva,

    foram incorporados nos estudos historiogrficos. A partir 1980, por exemplo, as mulheres,

    os negros, os homossexuais, os prisioneiros, os loucos e as crianas, sujeitos que, at esse

    perodo, constituam uma ampla gama de excludos, que reclamavam seu lugar na histria

    social do pas.

    As reformulaes curriculares passaram a ser permeadas por discusses que

    questionavam os contedos ensinados na educao escolar em todos os nveis. Aqueles

    pertencentes s culturas negadas e silenciadas nos currculos escolares comeavam a reagir

    contra a sua marginalizao. De acordo com Gomes (2008), os excludos dos discursos

    normativos do currculo escolar lanaram mo de estratgias coletivas e individuais,

    articulando-se em redes, dando incio a diversos movimentos sociais de carter identitrio.

    A mobilizao das culturas negadas atinge as escolas, as universidades e a produo

    do conhecimento. Na disciplina de Histria, organizam-se vertentes que reivindicam uma

    perspectiva da histria de todos os homens e no somente dos heris. De acordo com essas

    vertentes, e entre elas a Nova Histria Cultural, no era mais possvel aceitar as narrativas

    com nfase exclusiva na viso europia. Schmidt e Caineli (2004) argumentam que esse

    processo atingiu os currculos, os sujeitos e suas prticas, instalando um processo de

    renovao que, nesse perodo, ficou restrito mais teoria do que sua efetivao na prtica.

    Dentre os movimentos sociais que lutavam pela representatividade nas esferas

    sociais brasileiras, encontra-se o Movimento Negro Unificado (MNU). De acordo com

    Pereira (2002), tal movimento iniciou-se em So Paulo na dcada de 70 do sculo XX, em

    pleno regime militar, com o objetivo de combater o mito da democracia racial e denunciar

    que o Brasil uma nao racista, na qual os negros estavam subrepresentados na maioria

    das instituies sociais. Alm disso, o MNU tinha como papel destacado fomentar um

    processo de constituio da identidade positiva do negro e de sua conscientizao poltica

    na vida nacional. Paul Singer, um dos fundadores do MNU, em carta aberta, lida em ato

    pblico no dia 7 de julho de 1978 nas escadarias do Teatro Municipal de So Paulo,

    posiciona-se a respeito da discriminao no Brasil:

  • 27

    No podemos mais calar. A discriminao racial um fato na sociedade brasileira, que barra o desenvolvimento negro, destri a sua alma e sua capacidade de realizao como ser humano [...]. No podemos mais aceitar as condies em que vive o homem negro sendo discriminado da vida social do pas, vivendo no desemprego, subemprego e nas favelas. No podemos mais consentir que o negro sofra perseguies constantes da polcia sem dar uma reposta. (SINGER, 1981, apud SILVA, 2001, p. 38)

    A manifestao do MNU teve dois propsitos: o primeiro, como um movimento de

    denncia de existncia do racismo no Brasil. A elite brasileira tentava constituir, no Brasil,

    a idia de que todos eram tratados como iguais independente de sua cor. Essa idia

    apoiava-se nas publicaes das obras de Gilberto Freire, Casa Grande & Senzala de

    1932, e de Srgio Buarque de Holanda, Razes do Brasil, de 1947, nas quais afirmavam

    que, apesar da escravido que houve no Brasil, no se sobressaiu o racismo, visto que o

    negro, o ndio e o branco se misturam amigavelmente.

    Segundo propsito, como processo de formao da identidade positiva do negro,

    por meio de aes polticas, com a valorizao de seus aspectos simblicos, formas de

    vestir, de pentear e de falar. O bloco afro Il Aiy, um dos primeiros blocos de carnaval

    representativo da cultura afro-brasileira, captou esse sentimento dos ativistas das

    organizaes negras, fazendo o seguinte registro:

    Durante este tempo demos o nosso grito de liberdade [...] A liberdade de podermos ser negros, de danar a nossa dana, de cantar o nosso canto. Canto esse que conta a nossa histria e nossa libertao. E esse verdadeiro canto ecoou no Curuzu: um canto de f por um mundo melhor. O brilho da avenida no ofusca o brilho desta raa de origem nag (CADERNOS CANTO..., 1988, p. 32)

    Percebemos, nesse registro, que os ativistas acreditavam no reconhecimento e na

    recriao dos aspectos da cultura negra. Representados socialmente, eles ampliam os

    argumentos para a ao poltica de combate ao racismo. Silva (2001) lembra que a

    afirmao de traos distintivos culturais e fsicos da populao negra, alm de servir como

    resposta imediata s posturas racistas, indica que as identidades individuais ou coletivas

    no podem ser interpretadas como avesso identidade social.

    Aps trs dcadas de reivindicaes do MNU, consideramos que houve avanos na

    luta contra o racismo e a discriminao da populao negra no Brasil, mas, ainda, o

    racismo e o preconceito persistem na sociedade brasileira. Hoje, no mais aceitvel a

  • 28

    idia de democracia racial entre os brasileiros. Com a promulgao da Constituio de

    1988, considerada por muitos uma constituio cidad, houve uma tentativa de valorizao

    dos diversos povos e culturas existentes no Brasil, por exemplo: o 5 artigo, no pargrafo

    XLII, prev que casos de discriminao racial sero tratados como crimes imprescritveis e

    inafianveis. Este artigo reconhece a existncia do racismo no Brasil.

    No podemos s reconhecer a existncia do racismo no Brasil, necessrio

    combat-lo e trabalhar para amenizar as conseqncias da submisso e da marginalizao

    do negro brasileiro. Nesse ponto, ainda encontramos grandes dificuldades. Uma das

    primeiras instituies sociais chamada a entrar na luta contra o racismo e para a

    valorizao da populao negra em seus aspectos fsicos e culturais como formadoras da

    populao brasileira foi escola. H uma crena de que a escola, em cada momento

    histrico, constitui-se uma expresso e uma resposta sociedade. Ela reflete uma porta de

    entrada para a construo de um Brasil onde convivem as diversas influncias que

    caracterizam a formao do nosso povo.

    2.1 A DIVERSIDADE TNICO-RACIAL: EDUCAO ESCOLAR E ENSINO DE

    HISTRIA NO BRASIL

    A professora Beatriz Petronilha Gonalves e Silva (BRASIL, 2004) no Relatrio

    das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais

    Para o Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana, defende que, para as

    instituies de ensino desempenharem seu papel de educar, necessrio que constituam

    um espao democrtico de produo e divulgao de conhecimentos e de posturas que

    visam uma sociedade justa.

    Ao estudar as origens da educao escolar pblica brasileira, verificamos que os

    negros no foram alvos das instituies de ensino, j que a escolarizao visava formar o

    ideal de homem brasileiro que tinha como referncia o homem branco europeu. Quando

    analisamos o pensamento educacional brasileiro depois da abolio da escravido, o negro

    e sua cultura foram silenciados no currculo escolar. (FELIPE; TERUYA, 2007).

    Durante um sculo da implementao da escola pblica no Brasil, o negro e sua

    cultura poucas vezes foram contemplados nos contedos programticos e, quando o foram,

    eram abordados de forma distorcida e estereotipada. Somente depois de 1980, com as

    constantes reivindicaes do Movimento Negro Unificado, houve tentativas de inserir

  • 29

    conceito de pluralidade na educao brasileira. Embora a relao entre educao e

    diversidade tenha surgido na dcada de 1980, passa predominar no debate educacional e

    nas leis voltadas a educao nacional s depois de 1990.

    bem verdade que os debates, promovidos depois de 1980 sobre a pluralidade

    cultural do Brasil, favoreceram vrias modificaes importantes na educao escolar e no

    ensino de histria no Brasil. Fernandes (2005) reconhece que, apesar da renovao terico-

    metodolgica da histria nos ltimos anos, o contedo programtico dessa disciplina na

    educao bsica ainda tem primado por uma viso monocultural e eurocntrica de nosso

    passado. Isso significa que a educao escolar ainda no aprendeu a valorizar a diversidade

    tnico-racial que compe o ambiente escolar.

    Entendemos que o termo diversidade empregado aqui tem o sentido utilizado por

    Abramowicz (2006, p.12) ao afirmar que [..]diversidade pode significar variedade,

    diferena e multiplicidade. A diferena qualidade do que diferente; o que distingue uma

    coisa de outra, a falta de igualdade ou de semelhana. Pensar em uma educao para a

    diversidade levar em considerao os aspectos culturais dos mais diferentes grupos,

    permitindo que eles expressem a si prprio na busca da aprendizagem e do conhecimento.

    Tambm entendemos os conceitos de raa e etnia como construes sociais,

    forjadas nas relaes entre cultura, conhecimento e poder. O conceito raa, utilizado dentro

    de uma perspectiva poltica, nada tem a ver com conceito biolgico de raa cunhado no

    sculo XIX. Silva, no Relatrio sobre a Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2004), afirma que o

    termo raa, utilizado nesse contexto de questionamento de uma cultura homognea,

    utilizado para informar como determinadas caractersticas fsicas, como cor da pele, tipo de

    cabelo, entre outras, influenciam, interferem e at mesmo determinam o destino e o lugar

    social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.

    O emprego do termo tnico, na expresso tnico-racial, como faz Silva (BRASIL,

    2004), serve para marcar que as relaes tensas causadas pelas diferenas na cor da pele e

    traos fisionmicos o so tambm por causa da raiz cultural plantada na ancestralidade

    africana, que pode diferir em viso de mundo, valores e princpios das origens indgena,

    europia ou asitica.

    Em um resgate da histria do negro no Brasil, importante ressaltar que os

    africanos negros, que aportaram em nosso territrio na condio de escravizados, so

    vistos como mercadoria e objeto nas mos de seus proprietrios. Foi atribuda ao negro

    uma participao subalterna na construo da histria e da cultura brasileira, embora tenha

  • 30

    sido ele a mo-de-obra predominante na produo da riqueza nacional, trabalhando na

    cultura canavieira, na extrao aurfera, no desenvolvimento da pecuria e no cultivo do

    caf em diferentes momentos de nosso processo histrico. Quando se trata de abordar a

    cultura dessas minorias, estamos pensando no sentido poltico da palavra, j que os dados

    do IBGE demonstram que a populao negra brasileira de 47,2% (BRASIL, 2007), mas

    ela vista de forma folclorizada e pitoresca e as culturas europias elevadas condio de

    superiores e civilizadas.

    O ensino de histria do Brasil ainda est permeado pela concepo da historiografia

    brasileira que prima pelo relato dos grandes fatos e feitos dos chamados heris nacionais,

    geralmente brancos, escamoteando, assim, a participao de outros segmentos sociais no

    processo histrico do pas. Para Silva (1998), a maioria das concepes histricas que

    perpassa o ensino de histria no Brasil despreza a participao das minorias tnicas,

    especialmente de ndios e negros. Quando eles aparecem nos livros didticos, seja em

    forma de textos, seja em forma de ilustraes, so tratados de forma pejorativa e, portanto,

    preconceituosa e estereotipada.

    Os currculos e os manuais didticos usados na educao bsica insistem em

    silenciar e at mesmo chegam a omitir a condio de sujeito histrico e de portador de

    prticas culturais das populaes negras e amerndias.

    Alm da encucao ideolgica promovida pelo cinema, rdio, TV, revistas e instituies, o livro didtico, pela importncia que lhe atribuda pelo poder do Estado de transmitir Verdades que lhe conferido, consegue de forma sistemtica inculcar na cabea dos jovens e crianas conceitos e vises deformadas e cristalizadas, que passam a ser assumidas como conceitos e vises da realidade que se constitui ideologicamente. (SILVA, 1998, p. 03).

    fato incontestvel que somos uma nao com mltiplas culturas, em virtude de

    nossa formao histrica, porm o que se percebe que a populao brasileira no

    aprendeu a conviver com a diversidade tnico-racial. E a educao escolar ainda persiste

    em ministrar os seus contedos pautados em seu imaginrio tnico-racial, um pas que

    privilegia a brancura e valoriza, sobretudo as razes europias da sua cultura, ignorando ou

    pouco valorizando as outras. Por exemplo, a histria da frica, no currculo escolar, vista

    como uma paisagem extica e totalmente desvinculada da histria brasileira, atrelada a

    uma imagem de que o africano um semi-selvagem, acorrentado em sua misria.

    A fim de combater essa viso monocultural e eurocntrica que foi forjada no saber

  • 31

    histrico brasileiro, ao ter como padro a viso dos grupos dominantes, o governo

    brasileiro, por meio de seus rgos legais, tem incorporado na legislao brasileira alguns

    tpicos de modo a contribuir com a visualizao de um Brasil pluritnico. A Lei de

    Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB), em seu artigo 26, pargrafo 4,

    ratificando posio da Constituio Federal de 1988, determina que o ensino histria do

    Brasil levar em conta as contribuies das diferentes etnias para a formao do povo

    brasileiro, especialmente das matrizes indgena, africana e europia (BRASIL, 1996a)

    Por sua vez, o Ministrio da Educao (MEC), em cumprimento ao dispositivo

    constitucional assente no art. 210 de nossa Carta Magna e sensvel necessidade de uma

    mudana curricular face emergncia de temas sociais relevantes para a compreenso da

    sociedade contempornea, elaborou para a educao bsica os Parmetros Curriculares

    Nacionais (PCN).

    A grande inovao da nova proposta a existncia de temas transversais que

    devero perpassar as diferentes disciplinas curriculares - Lngua Portuguesa, Matemtica,

    Histria, Geografia, Cincias e Artes - e permitir, com isso, a interdisciplinaridade no

    ensino fundamental, tais como: Convvio Social e tico, Pluralidade Cultural, Meio

    Ambiente, Orientao Sexual, Sade, Trabalho e Consumo.

    Aps as discusses com as secretarias de educao de estados e municpios e com

    especialistas de diversas reas do conhecimento, os PCN foram aprovados pela Cmara de

    Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao (CNE), servindo de referncia

    nacional para que os sistemas de ensino estaduais e municipais pudessem adequ-lo sua

    realidade educacional (BRASIL, 1997).

    Reconhecendo a necessidade de uma educao multicultural, os PCN estabelecem

    como tema transversal o estudo da Pluralidade Cultural, a fim de ser trabalhada em

    diferentes disciplinas curriculares.

    [...] temtica da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento e valorizao das caractersticas tnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no territrio nacional, s desigualdades socioeconmicas e crtica s relaes sociais discriminatrias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um pas complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal (BRASIL, 1997, p. 33).

    Esse mesmo documento do MEC traz como um dos objetivos gerais da educao

    bsica o conhecimento e a valorizao da pluralidade do patrimnio sociocultural do pas,

  • 32

    bem como aspectos socioculturais de outros povos e naes, devendo alunos e alunas,

    professores e professoras posicionarem-se contra quaisquer formas de discriminao

    baseada em diferenas culturais, de classe social, de sexo, de etnia ou outras caractersticas

    individuais e sociais.

    Alm dos PCN, dispomos das diretrizes curriculares elaboradas pelo CNE para a

    educao bsica. Recentemente, esse rgo normativo e consultivo do MEC instituiu, com

    base no parecer da conselheira Petronilha Beatriz Gonalves e Silva, as Diretrizes

    Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de

    Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana.

    Ainda no mbito das polticas pblicas governamentais, podemos citar o Programa

    Nacional de Direitos Humanos, elaborado pelo Ministrio da Justia na gesto do

    Presidente Fernando Henrique Cardoso, que previa, entre uma srie de aes para as

    populaes negras no Brasil, o estmulo [...] elaborao de livros didticos que

    enfatizem a histria e as lutas do povo negro na construo do nosso Pas, eliminando

    esteretipos e discriminaes (BRASIL, 1996b, p. 31).

    Mais recentemente, por ocasio do incio do Governo Lula, foi sancionada a Lei n.

    10.639, de 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996,

    que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial

    da rede de ensino obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira, e d

    outras providncias. A Lei estabelece o estudo da histria da frica e dos africanos, a luta

    dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade

    nacional, resgatando a contribuio do povo negro nos reas sociais, econmicas e

    polticas pertinentes Histria do Brasil (art. 26-A, 1) e, tornando-o obrigatrio no

    currculo escolar da educao bsica (BRASIL, 2003).

    Nesse momento histrico, a demanda por gerao de oportunidades requer do

    Estado e da sociedade medidas que contemplem a populao negra nas oportunidades que

    iro amenizar os danos psicolgicos, materiais, sociais, polticos e educacionais herdados

    do regime escravista, bem como das polticas explcitas ou tcitas de branqueamento da

    populao, de manuteno de privilgios exclusivos para os grupos com poder de governar

    e de influir na formulao das polticas no ps-abolio. Tais medidas se concretizam com

    iniciativas de combate ao racismo e demais formas de discriminao.

    O posicionamento daqueles que j conhecem este dispositivo legal dividido, uns

    concordam e outros discordam. Os argumentos da discordncia sustentam que a Lei no se

  • 33

    traduz, na prtica, em uma mudana necessria e que produziria um acirramento ainda

    maior entre os vrios grupos tnicos que compem a populao brasileira. Alem disso,

    argumentam os discordantes que a legislao seria racista por privilegiar um setor

    especifico do mosaico tnico brasileiro em detrimento dos demais. Um exemplo desse

    pensamento do professor Peter Fry (2005) que, em seu livro A Persistncia da Raa

    afirma que a Lei 10.639/2003 estaria reapresentando o surrado conceito de raas humanas,

    portanto, no possui base cientfica pelo simples motivo que existe apenas uma raa: a

    humana. Nesse sentido, Fry afirma que a Lei 10.639 poderia desencadear reaes de outros

    grupos, constrangidos por estarem pouco representados nos currculos.

    Os argumentos dos concordantes postulam que a Lei fundamental, porque

    contribui para ampliar o conhecimento sobre a histria dos negros formadores da

    populao brasileira. Para Lopes (2003, p. 19), a Lei 10.639/2003 do CNE vem

    reconhecer a existncia do afro-brasileiro e seus ancestrais (os africanos), sua trajetria na

    vida brasileira e na condio de sujeitos que contriburam para a construo da sociedade.

    Acrescenta que preciso ser inserida no currculo escolar para modificar os contedos

    hegemnicos de cunho eurocntrico contidos no sistema escolar, e obter um resultado

    desejvel de respeito s diferentes culturas no processo de ensino e de aprendizagem. Essa

    alterao, em seus aspectos explcitos e implcitos, precisa ser construda no cotidiano do

    fazer pedaggico no interior das escolas, envolvendo alunos, professores, corpo diretivo,

    corpo administrativo e comunidade escolar em geral, tendo como suporte um currculo

    com base na abordagem da diversidade cultural.

    Outro argumento favorvel que, apesar de a Lei de Diretrizes e Base da Educao

    Nacional (LDB, 9394) aprovada em 1996, ter explicitamente includo a histria afro-

    brasileira como contedo pedaggico, na realidade, nada disso aconteceu. Nessa

    concepo, a nova Lei estaria antes de tudo cobrando efetivao de um parecer pedaggico

    j existente.

    Em nossa perspectiva, o argumento dos que afirmam que a Lei 10.639/2003 estaria

    privilegiando uma etnia determinada, a dos negros, no se sustenta. No Brasil, o grupo

    afro-descendente negro, mesmo constituindo cerca de 50% da demografia brasileira, ainda

    est sub-representado na maioria das esferas da vida social. Essa ausncia de

    representatividade repercute no sistema de ensino, que desqualifica ou simplesmente se

    cala a respeito da histria e da cultura negro-africana.

  • 34

    Quanto aos demais grupos, segundo Serrano e Waldman (2007), possvel

    argumentar que a prpria lei que incentiva o ensino da histria e cultura afro-brasileira e

    africana tambm inclui a discusso sobre a diversidade tnico-racial no Brasil. Estas

    medidas contribuem para a reeducao das relaes entre os vrios grupos sociais

    constituintes da sociedade brasileira, provocando o questionamento das relaes tnico-

    raciais baseadas em preconceitos e na desqualificao do outro. Tal argumento pode ser

    comprovado com a aprovao em maro de 2008 da Lei 11.645 que, alm da

    obrigatoriedade do ensino da histria e cultura afro-brasileira e africana na educao

    bsica, prev tambm o ensino da histria e cultura indgena (BRASIL, 2008)

    Por fim, em relao aos segmentos que repudiam a Lei em nome de um suposto

    racismo que estaria perpassando a sua essncia ao prever o ensino da histria e da cultura

    afro-brasileira, entendemos que a questo racial no se esgota em um ponto de vista

    gentico, necessrio ressaltar os condicionamentos histrico-sociais dos conceitos que

    envolvem as questes raciais. Se, no passado, a idia da existncia de raa superior e da

    raa inferior legitimava a escravizao com comprovao cientfica da inferioridade dos

    negros, atualmente, para legitimar a ordem estabelecida, funda-se na no existncia de

    raas, apoiando-se nos direitos democrticos vlidos para todas as etnias. A existncia ou

    no de raa depende da convenincia em um determinado momento social.

    Em resumo, nesta dissertao consideramos que, a Lei 10.639/2003 constitui um

    passo importante para resgatar e valorizar os diversos grupos tnicos que esto margem

    da sociedade brasileira. Os currculos escolares do sistema educacional podem ser aliados

    valiosos nessa luta, como ressalta Gomes (2008), esta Lei que no somente uma norma:

    resultado da ao poltica e da luta de um povo cuja histria, sujeitos e protagonistas ainda

    so poucos conhecidos.

    Na educao escolar, verificamos uma dificuldade em ensinar e aprender histria,

    trabalhar o real e o imaginrio. O principal problema, quando se trata do ensino de histria

    e cultura afro-brasileira e africana, no se encontra em sua complexidade, mas sim nas

    informaes disponibilizadas, especialmente na mdia, que so distorcidas e no condizem

    com a realidade.

    2.1.1 Aplicao da Lei 10.639/20003 na sala de aula.

    Sem dvida, a Lei representa um avano ao possibilitar a construo de um

  • 35

    multiculturalismo crtico na escola brasileira, ao mesmo tempo em que se reconhece uma

    luta histrica do movimento negro em nosso pas, cuja bandeira de luta consiste em incluir

    no currculo escolar o estudo da histria e cultura afro-brasileira. Por outro lado, no

    podemos nos esquecer que ainda precisamos de muitas aes para que a Lei no se torne

    letra-morta e contribua, de fato, para uma educao multicultural com o questionamento

    das relaes sociais desiguais.

    Lopes (2003), utilizando os estudos de Sacristn assinala que o termo multicultural

    ambguo e enganador, por se tratar de um rtulo em quede cabem vrias perspectivas. Ela

    explica que tanto pode se referir a uma perspectiva assimilacionista, em que uma cultura

    dominante objetiva assimilar uma cultura minoritria em condies desiguais e com

    oportunidades menores no sistema educacional e social, como pode ser multitnica, um

    instrumento para diminuir preconceitos de uma sociedade para com as minorias tnicas, ou

    ainda associada a um pluralismo cultural, em que se busca proporcionar vises plurais da

    sociedade e de suas elaboraes.

    Mas, ainda de acordo com a autora, apesar de tal discurso, no se pode deixar de

    identificar o pluralismo cultural com a aceitao do diferente, e essa concepo pode ser

    vista sob dois enfoques: o do consenso e o do conflito. O do conflito seria aquele que

    exigiria processos argumentativos e embates sociais para sua resoluo e o do consenso

    objetivaria superar os conflitos sem confrontao.

    Para trabalhar a histria da frica em sala de aula, como nos alerta Conceio

    (1999), temos que levar em considerao algumas questes: Como pensar uma escola que

    tenha por base uma educao na perspectiva da pluralidade tnico-racial? Como romper

    com o modelo pedaggico vigente? O que fazer para que a sociedade civil, organizada por

    meio de suas legtimas representaes, inclua o afro-brasileiro? Estas questes so

    fundamentais para contemplar os brasileiros descendentes de africanos, para pensar em

    uma nova educao escolar. Neste sentido, consideramos necessrio efetivar algumas aes

    no processo educativo de sala de aula, especialmente formar um novo perfil de professor e

    professora e de aluno e aluna que, no exerccio da reflexo sobre o seu eu e o outro,

    apropriem-se dos saberes sobre a histria e a cultura afro-brasileira e africana para serem

    socializados com as respectivas comunidades, a fim de romper com a pedagogia que

    prioriza o modelo eurocntrico.

    Fernandes (2005) afirma que um dos gargalos do sistema educacional brasileiro

    reside na qualificao do corpo docente, sobretudo os que exercem o magistrio nas sries

  • 36

    iniciais do ensino fundamental. Esses professores e professoras, em sua maioria, recebem

    uma formao polivalente e, portanto, precisam de qualificao para trabalhar com essa

    nova temtica curricular. O autor sugere, para tanto, um esforo por parte dos rgos

    governamentais ligados rea de promoo da igualdade racial para oferecer, em parceria

    com as instncias educacionais, cursos de extenso sobre a histria da frica e de cultura

    afro-brasileira, bem como a publicao de material didtico-pedaggico que possa dar

    suporte tcnico atuao desses docentes no processo de ensino e aprendizagem

    Dessa forma, para tratar a temtica do negro no currculo escolar, no necessrio

    que o professor e a professora sejam negros. A lei tem um carter obrigatrio para todo o

    magistrio e com a funo estratgica para a formao do cidado brasileiro. Para cumprir

    a lei, os conhecimentos relativos a essa temtica devem ser socializados entre os demais

    educadores e educadoras e ampliados para toda comunidade escolar. Com isso, o [...]

    professor e a escola no sero mais acusados de serem mediadores - mesmo que

    inconsciente - da formao de esteretipos que geram preconceitos que se constituem de

    um juzo prvio a uma ausncia de um real conhecimento do outro (SILVA, 2001, p. 73).

    Cunha Jnior (1998) enfatiza que o racismo, o preconceito e a discriminao so os

    malefcios que existem tanto na escola quanto na sociedade em geral, muitas vezes

    mascarados e naturalizados ou, ainda, assumidos explicitamente nas atitudes, nos valores e

    nas normas vigentes, presentes em nosso cotidiano. So manifestaes de um processo

    cruel de dominao, que mina a cultura dos grupos sociais considerados dominados entre

    ns, os negros e os indgenas.

    Silva (2001) alerta que trabalhar a partir de valores eurocntricos no sistema escolar

    leva as crianas e adolescentes negros a se sentirem inferiores e a serem considerados

    como tal pelos demais. A convivncia com a imagem estereotipada, que causa danos

    psicolgicos e morais, pode bloquear a personalidade tnica e cultural do afro-descendente.

    Felipe e Teruya (2008) afirmam que o brasileiro, de um modo geral, sabe pouco a

    respeito dos afro-descendentes, e, quando sabe, seu conhecimento est repleto de idias

    preconceituosas. Trata-se de um conhecimento sincrtico. Comea com a entrada do negro

    no Brasil como mercadoria. A imagem do negro descalo, seminu e selvagem mostrada

    na literatura escrita por brancos, sem contar a histria do africano livre, dono de sua

    prpria vida e produtor de sua prpria cultura. Ao falar dos aspectos da cultura africana e

    da histria do negro no Brasil, entramos em um campo de tenses e de relaes de poder

    que nos leva a questionar as representaes e os esteretipos sobre a frica, os africanos,

  • 37

    negros brasileiros e sua cultura. A idia de inferioridade cultural dos negros, construda

    historicamente e socialmente, justificou os processos de dominao, colonizao e

    escravizao.

    No ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana no se trata de mudar o

    foco etnocntrico marcadamente de raiz europia pela africana, mas de ampliar o foco dos

    currculos escolares para a diversidade cultural, racial e social e econmica brasileira. Cabe

    s escolas inclurem os estudos e as atividades que proporcionam contribuies histrico-

    culturais dos povos indgenas e dos descendentes de asiticos e alm destas, das razes

    africanas e europias.

    As reivindicaes estabelecidas na Lei 10.639/2003 lanam novas bases para o

    ensino de histria, uma vez que o legado eurocntrico resultou em um raciocnio que ainda

    hoje dificulta os estudos sobre frica e sobre negro no Brasil, constituindo um srio

    obstculo para a compreenso da realidade histrica do continente africano e de seus

    descendentes.

    2.2 NOVAS BASES PARA O ENSINO DE HISTRIA DA FRICA NA EDUCAO

    ESCOLAR: DESCONTRUNDO MITOS.

    O conhecimento de um determinado tema, na nossa perspectiva, construto social,

    para promover a releitura da histria africana eivada de preconceitos, necessrio

    questionar vrios conceitos solidificados no decorrer da histria, necessrio desconstruir

    as estereotipias que foram forjadas pelo imaginrio europeu sobre frica e seus

    descendentes. Como nos alerta Meneses (2007, p. 56) falar sobre a frica significa

    questionar e desafiar crenas adquiridas, pressupostos afirmados e mltiplas

    sensibilidades.

    Quando nos reportamos ao termo desconstruir, referimo-nos aos procedimentos da

    anlise do discurso nos moldes adotados pelo filsofo Jacques Derrida, que pretendem

    mostrar as operaes, os processos que esto implicados na formulao de narrativas

    tomadas como verdades, em geral, tidas como universais e inquestionveis. A

    desconstruo tem possibilitado vislumbrar com nitidez as relaes entre os discursos e o

    poder. Ao contrrio do que muitas pessoas pensam desconstruir no significa destruir.

    Desconstruir, neste caso, significa uma estratgia de demonstrar para poder mostrar as

    etapas seguidas na montagem. (COSTA, 2002a, p. 140).

  • 38

    Compreender e contextualizar as informaes sobre aspectos do continente africano

    , indiscutivelmente, um exerccio critico. Serrano e Waldman (2007) argumentam que

    existem vises estereotipadas cultivadas contra os povos africanos e suas regies. Mais do

    que qualquer outro continente, a frica terminou encoberta por um vu de preconceitos,

    que, ainda hoje, marcam a percepo de sua realidade.

    O imaginrio europeu devotou para as terras africanas e para os seus habitantes um

    amplo leque de injunes desqualificantes, muitas vezes respaldadas pelos intelectuais

    europeus. A frica foi condenada ao papel de espao perifrico da humanidade, alm de

    desprovida de adjetivos que engrandecem na viso dos europeus.

    Na realidade, os mecanismos simblicos da excluso do outro remontam de muitos

    sculos, estando profundamente enraizados no legado cultural europeu. Serrano e

    Waldman (2007) revelam que o discurso europeu a respeito da frica antigo, pode ser

    localizado um variado conjunto de elaboraes socioculturais. a partir desse passado

    remoto que se estratificou o preconceito cultivado contra o outro, personificado em

    diferentes momentos pelos brbaros, trtaros, mongis, ciganos, judeus, muulmanos,

    assim como pelos negros africanos.

    inegvel que o mundo ocidental construiu o seu relacionamento com as

    populaes extraeuropias com base em preconceitos de todo tipo. Nesse particular, Cunha

    Jnior (1998) afirma que o continente africano foi, inegavelmente, o mais desqualificado

    pelo pensamento europeu. Ainda que a imagem da frica tenha variado ao longo do tempo

    em decorrncia de diferentes formas de relacionamento estabelecidas com os seus povos,

    indiscutvel que este continente foi mais que qualquer outro, naturalizado pelo pensamento

    ocidental com imagens negativas e excludentes.

    O embrio dessas concepes discriminatrias remete s formulaes surgidas na

    antiguidade clssica. Para os antigos gregos e romanos, a frica compreendia as terras

    situadas entre os pases atuais Lbia e Marrocos, habitados por povos de idioma berbere (o

    termo no designa nenhuma etnia, diz respeito a um grupo de lnguas que integra a famlia

    afro-asitica). Desse modo, refere-se a povos cujas caractersticas so, em alguns

    contextos, muito discrepantes entre si. Seria o caso dos garamantes, nmidas, lbios e

    mauritnios, costumeiramente mencionados nas crnicas e documentos do Imprio

    Romano. Recorda-se que o termo berbere deu origem palavra, brbaro, para identificar as

    populaes cuja lngua e cultura eram consideradas inferiores em relao s greco-

    romanas, consideradas como padro hegemnico. (SERRANO; WALDMAN, 2007).

  • 39

    Historicamente, o regime de estereotipias imposto frica foi reforado pela

    distncia e relativo isolamento do continente em relao ao resto do mundo europeu. A

    frica, em particular a frica negra ou Subsaariana, constitua um domnio nebuloso, por

    causa das informaes fragmentrias e distorcidas. As imagens do continente africano,

    construdas pelo imaginrio medieval, suscitavam todo o tipo de objees. Assolados pelo

    calor inclemente, os territrios meridionais estariam infestados de monstros e outros seres

    fabulosos, coabitando com grupos de semi-humanos ou de humanos inferiores.

    Decididamente, o quadro construdo pelo imaginrio social europeu relacionado frica

    foi contemplado com estigma da subalternidade. No de admirar que as representaes

    confirmem uma pretensa inferioridade.

    Na modernidade, o rebaixamento da frica relaciona-se intimamente s demandas

    da sociedade capitalista ocidental, que, de modo contnuo, reapresenta para o continente a

    condio perifrica do sistema de produo de mercadorias. Desse modo, se, no perodo do

    mercantilismo, foi reservado frica o papel subalterno de fornecer mo-de-obra

    compulsria para a monocultura aucareira e para a extrao de metais e pedras preciosas,

    com a hegemonia do capitalismo industrial, o continente novamente subalternizado,

    enquadrado na condio de manancial de mo-de-obra barata e de fornecedor de matrias

    primas para as potncias industriais. Nesse sentido, a necessidade de justificar o domnio

    europeu induziu e foi mantida mediante o desenvolvimento de teorizao que, apelando

    para as distores conceituais, desqualificava o legado africano em todos os sentidos.

    Se, no perodo mercantilista, a frica reunia caractersticas espirituais, religiosas e

    elementos fabulosos inscritos no seu espao geogrficos, na fase do capitalismo industrial,

    a carncia de civilizao o principal argumento para sua estereotipia. Nessa perspectiva,

    o continente africano passa ser visto como, de fato, deveria ser entendido: um continente

    simplesmente carente de civilizao.

    Mais uma vez, a frica foi alvo da poltica de hierarquizao do conhecimento

    imposto pelas expectativas do mundo europeu e, agora, a constituio do discurso

    desclassificatrio voltado a frica de que ela no era civilizada, cabendo ao europeu

    levar a civilizao ao continente africano. A frica foi inteiramente retalhada e distribuda

    entre as potncias coloniais, que reorganizaram o espao africano aos seus interesses,

    ignorando todo e qualquer arranjo espacial anterior. Segundo Serrano e Waldman (2007)

    com exceo da Etipia, a totalidade do continente ficou de uma forma ou de outra, sob os

  • 40

    interesses econmicos e polticos do imperialista ocidental. No sem motivo, a frica

    passou a ser conhecida como o continente colonial por excelncia.

    Com as imagens elaboradas pelo mercantilismo e pelo capitalismo industrial no

    ps-guerra, no contexto da independncia dos pases do continente africano, propagou-se

    uma nova leitura desqualificante da frica. Atualmente, o continente continua dominado

    pela pobreza, pelo subdesenvolvimento, pelas doenas, pelas guerras entre os grupos

    sociais ali viventes, pelos golpes de Estado contnuos, pelo analfabetismo, pelos refugiados

    da seca e da falta de perspectivas. Em um mundo desigualmente unificado pela

    globalizao, como todas as desprezadas regies meridionais do planeta, a frica ainda

    integra a periferia de flagelos sociais.

    Nesta nova elaborao plena de estereotipias negativas, o futuro no reservaria

    nenhuma benesse para o continente, condenado, a priori, estagnao. Tal como leituras

    anteriores, essa nova coleo de imagens associa-se a um ideolgico, pelo qual a frica

    seria incapaz de conduzir o prprio destino. Ela deve, portanto, continuar a apelar para o

    Ocidente na busca de solues para os seus problemas. Como nas imagens anteriores, a

    viso estereotipada sobre a frica e seus povos, por meio de um discurso generalizante e

    excludente, utiliza-se dos preconceitos e das falsas concepes. Objetivamente, essas

    perspectivas trabalham em prol da confirmao da submisso da frica ao mundo

    ocidental e s suas expectativas econmicas, sociais e polticas.

    Como vimos, todas as construes elaboradas sobre a frica nunca se distanciaram

    da ambio de domin-la e de configur-la como contraponto de uma Europa que se

    arrogava um papel dominante. Ademais, para submeter o que quer que seja, necessria,

    antes de tudo, a iniciativa de concretizar-se no nvel do imaginrio, preferivelmente de

    modo a distorcer a compreenso do outro, habilitando, desse modo, a irrupo de uma

    ideologia de dominao.

    2.2.1 A frica na educao escolar brasileira.

    Por que estudar a histria e a cultura africana nas escolas brasileiras? Se o Brasil

    fosse um pas sem nenhuma parcela de afro-descendentes negros, no seria surpreendente

    que os currculos escolares dispensassem estes contedos. Mesmo assim, por razes da

    histria da humanidade ou mesmo da histria econmica do capitalismo, seria

    indispensvel um conhecimento da histria africana. Surpreendente que o Brasil, sendo

  • 41

    um pas que tem cerca de metade da sua populao e reconhece a sua ancestralidade no

    continente africano, no tenha o ensino de aspectos da histria africana na constituio de

    seu currculo escolar.

    Podemos postular que a Lei 10.639/2003 aponta a necessidade de construo da

    histria do mundo na formao dos docentes. Meneses (2007) argumenta que se trata da

    (re)construo de uma outra histria que considere no s a perspectiva eurocntrica

    dominante, ampliando as possibilidades de conhecimento inseridos no currculo escolar.

    Em nossa perspectiva, no definimos certos conhecimentos como vlidos e

    verdadeiros, enquanto que outros so considerados suprfluos e irrisrios. Cabe escola a

    tarefa de pensar possibilidades de acesso s diferentes culturas, no no sentido de incluir

    em seu calendrio datas exclusivas para trabalh-las, mas no sentido de permitir que os

    alunos compreendam que h diferenas e semelhanas entre uma cultura e outra. As

    relaes de disputa por posies sociais e conhecimentos so carregadas de interesses

    particulares inerentes tanto sua prpria cultura quanto s outras. Por isso, necessrio

    que os alunos conheam a cultura de outros grupos e a histria de sua prpria cultura em

    um processo de interao e alteridade.

    Para o entendimento da histria econmica, poltica e cultural do Brasil, tambm

    necessrio consultar a histria e a cultura africana. Sem estes elementos se constri uma

    histria parcial, distorcida e promotora de racismos. A razo que justifica a excluso da

    Histria Africana nos diversos currculos nacionais das diversas modalidades e nveis de

    ensino o racismo. A excluso da Histria Africana uma dentre as vrias demonstraes

    do racismo em relao populao negra. Ela produz a eliminao simblica do africano e

    da histria nacional.

    Uma das motivaes que os pesquisadores e pesquisadoras e os docentes brasileiros

    devem ter para estudar a histria e a cultura africana a ausncia de sistematizao e

    veiculao das informaes relacionadas ao continente africano. Serrano e Waldman

    (2007) afirmam que essa lacuna evidente tanto na ausncia pura e simples de uma viso

    realista sobre o continente africano quanto em seu desdobramento direto na persistncia de

    uma viso estereotipada e preconceituosa que lhe impingida.

    No seria demasiado afirmar que a viso distorcida sobre o continente africano e

    sua populao associa-se excluso de parcela pondervel da populao brasileira do

    pleno exerccio de seus direitos como cidados, excluso que recai de forma marcante

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    sobre os afro-descendentes. As perspectivas excludentes desmerecem um legado

    extremamente valioso, responsvel por inmeros valores civilizatrios.

    Apesar da histria e da cultura africana no terem a devida ateno por parte dos

    historiadores brasileiros, que deveriam ter pautado essa discusso como uma das

    prioridades para compreender a formao de nosso pas, a Lei 10.639/2003 determina o

    que os estudos sobre temas africanistas devem alcanar em nosso pas. Nesse sentido, a

    frica, seus povos e suas culturas tornaram-se foco de interesse para os profissionais da

    educao, os quais necessitam de capacitao para perceber que a constituio da histria

    de um povo perpassa a dimenso do poder e do saber. Estamos diante de confrontos entre

    distintas experincias histricas, econmicas e culturais, em que o discurso hegemnico

    hierarquiza e inferioriza o discurso do outro.

    Desse modo, no tocante realidade brasileira, o estudo da cultura da populao

    africana posiciona-se como uma contribuio direta aos diversos segmentos da populao

    brasileira, sobretudo da populao negra. Desde os primrdios da colonizao marcada

    pela discriminao racial, os negros tiveram as suas prticas ancestrais abafadas,

    marginalizadas e deturpadas, comprometendo, assim, a sua insero plena no processo

    social brasileiro.

    Essa represso cultural, camuflada pelo mito da democracia racial, desdobra-se no

    no reconhecimento dos valores e das prticas sociais de razes africanas, interiorizadas

    pelo conjunto da populao brasileira, independentemente de sua origem racial.

    Os estudos da histria e cultura africana articula a realidade daquele continente com

    a real