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Quem tem medo da confusão entre as artes? Who’s afraid of confusion between the arts? Prof. Ms. Ivair Reinaldim, PPGAV/EBA-UFRJ Resumo: O artigo analisa as bases teóricas e ideológicas do crítico Michael Fried ao caracterizar o minimalismo como “não-arte”, devido a sua ênfase na teatralidade. Teatro, nesse contexto, é compreendido como essência da noção romântica de Gesamtkunstwerke, situação combatida pela crítica modernista, por considerar a diluição das fronteiras entre as áreas de competência de cada arte um fator de decadência. Palavras-chaves: minimalismo, teatralidade, Modernismo, Gesamtkunstwerke, extradisciplinaridade Abstract: The article analyzes the theoretical and ideological bases of the critic Michael Fried to characterize the minimalism as "non-art," because of its emphasis on theatricality. Theater, in this context, is understood as romantic essence of the concept of Gesamtkunstwerke, countered by the critical situation modernist, considering the dilution of the border between areas of competence of each art a factor of decay. Keywords: minimalism, theatricality, Modernism, Gesamtkunstwerk, extradisciplinary Em 1967 o crítico norte-americano Michael Fried publicou o texto “Arte e objetidade” [Art and Objecthood] na revista Artforum, estabelecendo a diferença entre a natureza do objeto minimalista e a obra de arte modernista. Nele, o crítico acusa os artistas minimalistas, designados como “literalistas”, de enfatizarem a teatralidade de seus trabalhos, em detrimento da especificidade dos meios plásticos, uma vez que, ao se colocarem num campo movediço, entre pintura e escultura, exigiam do espectador a redefinição constante de sua posição e de sua percepção. Teatralidade, então, caracterizaria um efeito ou uma propriedade cênica, espécie de presença de palco, que não condizia com o que a Teoria Modernista define como qualidade da obra de arte. Segundo o crítico, ressaltar a teatralidade seria produzir “não-arte”. Curiosamente, desde a década de 1950 tornaram-se mais frequentes as pesquisas no campo do Happening, do Environment, das performances; formas híbridas, que exploram as interconexões entre artes plásticas, teatro,

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  • Quem tem medo da confuso entre as artes? Whos afraid of confusion between the arts?

    Prof. Ms. Ivair Reinaldim, PPGAV/EBA-UFRJ

    Resumo: O artigo analisa as bases tericas e ideolgicas do crtico Michael Fried ao caracterizar o minimalismo como no-arte, devido a sua nfase na teatralidade. Teatro, nesse contexto, compreendido como essncia da noo romntica de Gesamtkunstwerke, situao combatida pela crtica modernista, por considerar a diluio das fronteiras entre as reas de competncia de cada arte um fator de decadncia. Palavras-chaves: minimalismo, teatralidade, Modernismo, Gesamtkunstwerke, extradisciplinaridade Abstract: The article analyzes the theoretical and ideological bases of the critic Michael Fried to characterize the minimalism as "non-art," because of its emphasis on theatricality. Theater, in this context, is understood as romantic essence of the concept of Gesamtkunstwerke, countered by the critical situation modernist, considering the dilution of the border between areas of competence of each art a factor of decay. Keywords: minimalism, theatricality, Modernism, Gesamtkunstwerk, extradisciplinary

    Em 1967 o crtico norte-americano Michael Fried publicou o texto Arte e objetidade [Art and Objecthood] na revista Artforum, estabelecendo a diferena entre a natureza do objeto minimalista e a obra de arte modernista. Nele, o crtico acusa os artistas minimalistas, designados como literalistas, de enfatizarem a teatralidade de seus trabalhos, em detrimento da especificidade dos meios plsticos, uma vez que, ao se colocarem num campo movedio, entre pintura e escultura, exigiam do espectador a redefinio constante de sua posio e de sua percepo. Teatralidade, ento, caracterizaria um efeito ou uma propriedade cnica, espcie de presena de palco, que no condizia com o que a Teoria Modernista define como qualidade da obra de arte. Segundo o crtico, ressaltar a teatralidade seria produzir no-arte.

    Curiosamente, desde a dcada de 1950 tornaram-se mais frequentes as pesquisas no campo do Happening, do Environment, das performances; formas hbridas, que exploram as interconexes entre artes plsticas, teatro,

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    msica, dana, vdeo, literatura, etc., sem se definirem pelo predomnio de uma linguagem ou outra. A noo de obra de arte total, Gesamtkunstwerke, proposta por Wagner e em consonncia com o sentimento romntico, perpassando as poticas futuristas, construtivistas, dadastas e surrealistas, com forte destaque no contexto da arte contempornea, tem como modelos histricos a pera e o teatro de variedades, conforme ressalta a historiadora RoseLee Goldberg. Todas essas propostas artsticas poderiam, portanto, ser rotuladas por seu carter teatral, em detrimento suposta pureza da arte modernista. Mas justamente nos trabalhos minimalistas, por explicitarem os limites da produo artstica do modernismo, que Fried diagnostica tal condio.

    Nosso objetivo nesse artigo, enfim, compreender alguns posicionamentos de Michael Fried em relao ao minimalismo, contrapondo-os a algumas ideias dos artistas Donald Judd e Robert Morris, pontos de partida para a reflexo do crtico. Em seguida, averiguar suas referncias terico-ideolgicas, sobretudo atravs dos textos de Clement Greenberg, principal crtico da vanguarda modernista norte-americana, e mais profundamente, das consideraes de G.E. Lessing, presentes no seu livro Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia, escrito no sculo XVIII. A partir dessas questes poderemos estabelecer cruzamentos tericos que problematizaro o mal-estar frente noo romntica de confuso entre as artes.

    Fried e as implicaes da arte literalista Em primeiro lugar, importante compreendermos que o minimalismo

    nunca foi um movimento programtico, consciente, por parte dos artistas. Termos como arte minimal, estruturas primrias, arte literalista, entre outros, caracterizam-se como estratgias tericas para conciliar artistas que durante os anos 60, nos Estados Unidos, estavam produzindo obras com caractersticas comuns. O terico/artista David Batchelor comenta que quase todo trabalho aproximadamente geomtrico, vagamente austero, mais ou menos monocromtico e de aparncia geral abstrata foi ou provvel que seja rotulado de minimal num ou noutro momento. (BATCHELOR, 2001, p. 6-7)

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    Some-se o uso de materiais industriais, composio modular, repetitiva e simples, alm de uma importante produo terica dos artistas, explicitando intenes e referncias, mas tambm, muitas vezes, norteando o modo como os trabalhos deveriam ser compreendidos.

    Desse modo, Michael Fried assume no s os trabalhos minimalistas em si, mas os textos de artistas, sobretudo os de Donald Judd e Robert Morris, como base para sua anlise crtica. Judd, por exemplo, ressalta em seu clebre ensaio Objetos especficos [Specific Objects] segundo ele escrito em 1963 e s publicado em 1965, em Arts Yearbook 8 , que

    A metade, ou mais, dos melhores novos trabalhos que se tm produzido nos ltimos anos no tem sido nem pintura nem escultura. Frequentemente, eles tm se relacionado, de maneira prxima ou distante, a uma ou a outra (FERREIRA e COTRIM, 2006, p. 96).

    Assim, entre a pintura e a escultura modernistas, Judd identifica nesses trabalhos uma diluio das fronteiras das artes: por serem tridimensionais, aparentavam-se mais com a escultura, tal como os trabalhos de Brancusi, Gabo ou Pevsner; porm, dialogavam com as questes especficas e limites da pintura, principalmente com as novas possibilidades e problemticas legadas por artistas como Pollock, Rothko e Newman.

    Judd considerava que os limites fsicos da tela [shape] e o ilusionismo espacial na pintura apresentavam-se como problemas a serem solucionados, pois determinam e limitam o arranjo de todos os elementos da composio, tornando-a relacional, uma coisa em relao outra algo que Greenberg j havia explicitado anteriormente na pintura modernista. A soluo apontada pelo artista era tratar a pintura no como composio (imagem, nos dizeres de Judd), mas como objeto, e assim destac-la da parede, tornando-a tridimensional, inserida no espao real. Contudo, no bastava aproxim-la da escultura, uma vez que esta tambm se caracteriza pelo conjunto de partes somadas e relacionadas entre si composio por adio , estabelecendo hierarquias entre seus elementos. Contra essa condio, artistas minimalistas afirmaram valores, tais como totalidade, unicidade e indivisibilidade, criando trabalhos que no fossem nem pintura nem escultura, mas coisas, objetos

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    especficos. Assim, a simplicidade do formato [shape], aliada ordenao simples, uma coisa depois da outra, que garante a totalidade do objeto.

    Ao assumirem essa postura, esses artistas inverteram o jogo da percepo artstica: o que passa a valer no a obra de arte autnoma, mas o modo como os objetos minimalistas so experimentados pelo espectador. Assim, criam tenso em relao prpria arte modernista, pois trabalhos antes vistos como pinturas ou esculturas passariam a ser percebidos como objetos. Para Fried, essas implicaes eram por demais perigosas: segundo o crtico o que conta numa pintura no sua objetidade, ou seja, seu formato, sua configurao [shape], mas seu contedo formal, interno prpria pintura; seu contedo deve se estabelecer atravs da especificidade do meio e no pela literalidade de sua presena, por sua especificidade enquanto objeto.

    Essa condio acarretaria ao minimalismo o atestado de no-arte (pinturas e esculturas modernistas, como formas autnomas identificadas ao conceito de arte, no seriam essencialmente objetos). Assim, o crtico conclui de modo categrico: a adoo literalista da objetidade nada mais do que um apelo a um novo gnero de teatro; e o teatro hoje a negao da arte. (FRIED, 2002, p. 134) Mas como e por que o crtico chega a esse tipo de vinculao? Por que justamente no teatro que ele enfatiza a falncia da arte, enquanto discurso modernista?

    A noo de teatralidade estaria no nos objetos minimalistas em si, mas na relao destes com o observador. A experincia desse encontro a de um objeto em uma situao, in situ, incluindo a presena fsica do indivduo diante do trabalho. Fried cita Robert Morris, a partir do texto Notas sobre escultura [Notes on Sculpture], publicado em 1966, em duas partes, na Artforum:

    O objeto to somente um dos termos dessa nova esttica. Essa de certo modo mais reflexiva, porque a conscincia que algum tem de si mesmo existindo no mesmo espao que o trabalho mais forte do que em trabalhos anteriores, com suas muitas relaes internas. O espectador torna-se mais consciente do que antes do fato de estar ele mesmo estabelecendo relaes, uma vez que apreende o objeto a partir de posies variadas e sob

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    condies variveis de luz e contextualizao espacial. (MORRIS apud FRIED, 2002, p. 135)

    Portanto, o observador passa a ser sujeito em relao a um objeto dado, numa determinada situao, e a conscincia corporal transforma-se em parmetro para a conscincia da escala do objeto e da dimenso do ambiente, do espao entre as coisas. A base da percepo do trabalho constitui-se na experincia fenomenolgica: o objeto o centro da situao, pois ele que a cria, modificando o espao que ele ocupa, mas a situao pertence inegavelmente ao espectador, s se completando mediante sua presena fsica. As relaes no so mais internas aos trabalhos, como ocorria no modernismo, mas pertencem situao como um todo.

    Fried percebe a a nfase teatral dos objetos literalistas, funo da cumplicidade que o trabalho quer ter com o observador, sujeito em relao ao objeto, experincia aberta que existe necessariamente no tempo, numa durao indefinida. E justamente a favor do teatro, embora no explicitamente em seu nome, que os valores especficos da pintura e da escultura modernistas so rechaados. Assim,

    h uma guerra em curso entre o teatro e a pintura e a escultura modernistas, entre o teatral e o pictrico uma guerra que, apesar da rejeio explcita da pintura e escultura modernistas por parte dos literalistas, no basicamente o efeito de um programa ou de uma ideologia, mas de experincia, convico, sensibilidade. [...] o teatro e a teatralidade hoje esto em guerra no apenas com a pintura modernista (ou com a pintura e a escultura modernistas), mas com a arte em si mesma e na medida em que diferentes artes podem ser descritas como modernistas, com a sensibilidade modernista em si mesma. (FRIED, 2002, pp. 139, 141)

    Tanto o sucesso quanto a sobrevivncia de cada arte, segundo o crtico, estaria na sua capacidade de eliminar o teatral de seus efeitos especficos, algo que ocorreu internamente ao prprio campo do teatro, quando se pretendeu, com Brecht e Artaud, estabelecer uma relao diferente com sua audincia. a dependncia audincia, algo que no intrnseco pintura ou escultura, que a sensibilidade modernista considera intolervel no teatro em geral e nos trabalhos minimalistas: o confronto do objeto com o espectador faz

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    com que a situao experimentada promova a iluso de que o objeto existe exclusivamente para o sujeito, uma audincia de uma pessoa s. Na medida em que uma arte especfica se aproxima do teatro ela entra em decadncia, pois este se constitui como denominador comum de uma srie de atividades aparentemente incompatveis entre si.

    Portanto, o teatro cria a iluso de que as barreiras entre as artes estariam em processo de desmoronamento e que cada arte estaria caminhando em direo a uma sntese desejvel: a Gesamtkunstwerke, ou obra de arte total. Num contexto fluido, em que difcil estabelecer o campo de cada arte, torna-se do mesmo modo difcil considerar conceitos como qualidade e valor, essenciais para o juzo crtico modernista. Duas dcadas antes, o crtico Clement Greenberg, mentor intelectual de Fried, reforava o risco de uma confuso entre as artes. atravs de seus textos, em particular um deles, que encontraremos as bases para entendimento do que se constitui como a essncia da sensibilidade modernista.

    Greenberg e as implicaes de um novo Laokoon Em 1940 o crtico norte-americano Clement Greenberg publicou na

    Partisan Review um dos seus ensaios mais importantes, intitulado Rumo a um mais novo Laocoonte [Towards a Newer Laocoon], reforando que as tentativas de estabelecer distines entre as artes nunca foram inteis. Obviamente, estava se referindo ao projeto de G.E. Lessing, no sculo XVIII, quando este investigou as fronteiras entre literatura (poesia) e artes plsticas (pintura), a partir do caso Laocoonte [Laokoon], ou seja, a comparao de suas representaes na poesia de Virglio (Eneida, II, 200-27) e no grupo escultrico de Agesandro, Antenodoro e Polidoro (c. 175-50 a.C., Museu do Vaticano).

    Contrariando o antigo adgio ut pictura poesis (poesia como pintura), de Horcio, ou seu similar, expresso por Simnides de Ceos e registrado por Plutarco (pintura uma poesia muda; poesia, uma pintura que fala), Lessing defende a separao entre as artes do tempo e as artes do espao, a partir das especificidades de cada campo e do respeito aos

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    respectivos limites. O engano expresso pelos gregos na afirmao da similitude entre pintura e poesia foi mantido por vrios outros crticos no decorrer da Histria:

    Ora eles foraram a poesia dentro dos confins estreitos da pintura: ora eles deixaram a pintura preencher toda a larga esfera da poesia. Tudo o que est certo para uma, tambm deve ser permitido para a outra; tudo o que agrada ou desagrada numa delas, deve necessariamente tambm agradar ou desagradar na outra; e tomados por essa idia, eles proferem no tom mais firme os juzos mais rasos quando eles tomam por erros as divergncias recprocas entre as obras do poeta e do pintor sobre um mesmo objeto, para em seguida culpar uma arte ou a outra, conforme eles tenham maior gosto pela arte potica ou pela pintura. (LESSING, 1998, p. 76)

    Segundo Mrio Seligmann-Silva, tradutor da edio brasileira do livro de Lessing, a competio entre a poesia e as artes plsticas, j expressa em Leonardo Da Vinci, s pode se desenvolver porque se aceitava a existncia de semelhanas entre esses dois campos das artes (LESSING, 1998, p. 10). Nesse sentido, Lessing no renuncia s possveis tradues, chegando mesmo a levantar a hiptese de que o grupo escultrico teve sua origem inspirada na poesia de Virgilio.

    Fato que como a poesia uma arte do tempo, Virgilio pode explorar a passagem dramtica de Laocoonte nas suas mais diversas nuances, inclusive apresentando o pice de sua dor. J no grupo escultrico, apenas um nico instante pode ser representado, pelo fato de tratar-se de uma arte do espao. No entanto, contrariamente maior liberdade do poeta, nem tudo foi possvel aos escultores naquele momento: representar o clmax da dor, o grito horripilante na face de Laocoonte, seria comprometer a Beleza da escultura. Para gregos e romanos, a suprema lei era o Belo; tudo o mais que pode ser abarcado pelas artes plsticas, se no compatvel com a beleza, deve ser totalmente descartado e se compatvel com ela, deve ao menos estar subordinado a ela (LESSING, 1998, p. 91). Desse modo, mesmo ocorrendo uma traduo de um meio para outro, cada artista teve conscincia das especificidades e dos limites de sua rea de competncia na criao de suas representaes.

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    Interessa-nos saber que, segundo Lessing, a liberdade representativa da poesia (entendida como literatura) no era extensvel ao teatro: a encenao do momento supremo da dor de Laocoonte tambm deveria ser atenuada no rosto do ator, do mesmo modo que nas artes plsticas, pois o poder de explorar a imaginao do espectador era sempre o limite para as potencialidades de cada arte. O teatro ficaria, ento, num meio-termo entre as artes do tempo e as do espao, num territrio sem fronteiras definidas, compreenso fundamental para o entendimento da acusao de Michael Fried ao minimalismo e, por sua vez, ao prprio teatro.

    Voltando ao Laocoon de Greenberg. O crtico afirma que em todas as pocas houve uma forma de arte predominante, tornando-se prottipo para as demais. Consequentemente,

    as outras tentam se despojar de suas prprias caractersticas e imitar-lhe os efeitos. A arte dominante, por sua vez, tenta ela prpria absorver as funes das demais. Disso resulta uma confuso das artes, pela qual as subservientes so pervertidas e distorcidas; so obrigadas a negar sua prpria natureza no esforo por alcanar os efeitos da arte dominante. No entanto, as artes subservientes s podem ser manipuladas desse modo quando j alcanaram um grau de domnio tcnico que lhes permita se atrever a dissimular seus meios. (FERREIRA e COTRIM, 2001, p. 46, grifo nosso)

    Em relao s artes da pintura e da escultura, no decorrer dos sculos XVII, XVII e XIX, no s elas atingiram um alto grau de destreza, o que possibilitava que uma imitasse os efeitos da outra, como ambas podiam representar os efeitos da literatura. Assim, a nfase retirada da especificidade do meio e transferida para a capacidade de representao do tema, ou seja, de interpretar temas para alcanar efeitos poticos. A pintura francesa do sculo XIX, por exemplo, empenhou-se em cumprir os ditames da sociedade burguesa, dispondo sua capacidade de criar iluso realista a servio da literatura sentimental e declamatria. nesse contexto que nasce a vanguarda, procurando encontrar novas formas culturais de expresso e estimulando a noo de identidade autnoma das artes, ao excluir de seu mbito qualquer valor que lhe seja externo ou nocivo.

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    O resultado foi que, ao excluir o tema das artes plsticas, a vanguarda eliminaria o contedo ideolgico com o qual a sociedade contaminava a arte, iniciando-se uma nfase no contedo formal (especificidade do meio) e no entendimento das artes como disciplinas autnomas. Porm, aps a eliminao do literrio na pintura e na escultura, atravs da nfase nas formas e na busca pela no-representao, coube msica, por ser a menos imitativa das artes, constituir-se como a nova referncia, o novo prottipo: outra fase de confuso entre as artes se prenunciava no horizonte do modernismo.

    S aceitando o exemplo da msica e definindo cada uma das outras artes unicamente nos termos do sentido ou faculdade que percebe seu efeito e excluindo de cada arte tudo o que inteligvel nos termos de qualquer outro sentido ou faculdade, que as artes no musicais poderiam atingir a pureza e a auto-suficincia que desejavam [...]. A nfase, portanto, deveria incidir sobre o fsico, o sensorial. (FERREIRA e COTRIM, 2001, p. 53)

    Para Greenberg, tratava-se de outro equvoco, uma vez que a msica no a nica arte imediatamente sensorial: a pintura, ao tornar-se abstrata, tambm sensria, estimulando a viso do espectador. Desse modo, cada arte atingiu seu estado puro, concentrada na sua rea de competncia, cada uma em segurana dentro de suas legtimas fronteiras, aceitando as limitaes de seus respectivos meios. em virtude de seu meio que cada arte nica e estritamente ela mesma. Para restaurar a identidade de cada arte, a opacidade de seu meio deve ser enfatizada (FERREIRA e COTRIM, 2001, p. 54). O veredicto de Lessing passa a ter validade novamente.

    Portanto, Greenberg sintetiza a sensibilidade modernista reivindicada por Fried, possibilitando que critrios de definio de valor e qualidade em arte possam ser considerados como parmetros objetivos de avaliao judicativa. A partir dessas consideraes, qualquer desejo de sntese artstica, de confuso entre as artes, expurgado do campo autnomo da arte; fora desses limites, estaria a vasta extenso das manifestaes da no-arte. Para Fried, a teatralidade seria um mal a ser combatido exatamente por colocar em risco esses critrios de avaliao. Frente tentativa de delimitao das reas de competncia de cada arte (busca de pureza), o teatro era considerado um

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    elemento desvirtuador da pintura e da escultura, assim como foi a literatura anteriormente. Concordar com Fried, porm, excluir do campo das artes visuais propostas que alargaram as possibilidades de criao artstica e mesmo que apresentaram questionamentos pertinentes para o campo da arte e da cultura como um todo, como o prprio minimalismo. Deveramos, ento, temer a confuso entre as artes?

    Por uma extradisciplinaridade entre as artes O crtico Brian Holmes no recente texto Investigaes

    extradisciplinares: para uma nova crtica das instituies [Extradisciplinary Investigations. Towards a New Critique of Institutions] apresenta-nos os conceitos de tropismo e reflexividade:

    A palavra tropismo transporta o desejo ou necessidade de virar-se rumo a algo alm, a um campo ou disciplina exterior; enquanto a noo de reflexividade indica um retorno crtico ao ponto de partida, uma tentativa de transformar a disciplina inicial, de acabar com sua isolao, de abrir-se a novas possibilidades de expresso, anlise, cooperao e compromisso. Esse movimento de ida e volta ou, melhor, essa espiral transformativa o princpio operativo do que chamarei de investigaes extradisciplinares. (HOLMES, 2008, p. 8)

    Correndo o risco de tratarmos de modo simplista a questo, uma vez que o autor elabora um conjunto de investigaes mais complexo do que o sentido que empregamos os conceitos aqui, pensamos que esses termos constituem-se como importante instrumental terico-metodolgico para enfrentarmos o campo multifacetado da produo simblica contempornea, no s restrito ao campo das artes, mas tambm suas interconexes com o campo das disciplinas, dos saberes humanos, tais como: filosofia, antropologia, poltica, psiquiatria, urbanismo, biotecnologia, etc.

    Reconhecer confuso entre as artes como possibilidades de hibridizaes de linguagens, meios, referncias, etc., tem sido um modo de reavaliar muitas propostas artsticas do sculo XX, a partir de outros critrios crticos. Por outro lado, no necessrio, e perspicaz, renunciar completamente ao legado da crtica modernista: a reflexo a partir das

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    especificidades dos meios ainda pode nos orientar no enfretamento do atual estado de coisas, a separar o joio do trigo. O movimento de ida e volta, tal qual numa performance, assim, parece-nos o meio mais adequado para enfrentar as possibilidades abertas pela arte e pela teoria da arte. No h o que temer.

    Bibliografia: BATCHELOR, David. Minimalismo. Traduo de Clia Euvaldo. 2 ed. So Paulo: Cosac & Naify, 2001. FERREIRA, Glria e COTRIM, Ceclia (org.). Clement Greenberg e o debate crtico. Traduo de Maria Luisa X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. _____ (org.). Escritos de artistas: anos 60/70. Traduo de Pedro Sssekind et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. FRIED, Michael. Arte e objetidade. Traduo de Milton Machado. Arte & Ensaios, Revista do Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais da EBA-UFRJ, Rio de Janeiro, ano IX, n. 9, 2002. GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. So Paulo: Martins Fontes, 2006. HOLMES, Brian. Investigaes extradisciplinares: para uma nova crtica das instituies. Concinnitas, Revista do Instituto de Artes da Uerj, Rio de Janeiro, ano 9, n. 12, jul. 2008. LESSING, Gotthold Ephraim. Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia: com esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da histria da arte antiga. Traduo de Mrcio Seligmann-Silva. So Paulo: Iluminuras: Secretaria de Estado da Cultura, 1998.