8/18/2019 Yonne Leite
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YONNE E FREITAS LEITE,
Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, RJ .
LINGOISTIC E
NTROPOLOGI
Separata da Revista
CIENCI E
CULTUR
Vol. 27 12)
8/18/2019 Yonne Leite
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Na área das ciências humanas onde mais ecoou
em
nosso País
a potencialidade de íntima
colaboração
de dois campos de
c o-
nhecimento, foi, sem dúvida, entre a Lingüística e a
Antropologia.
The area of human sciences in which the potentiality of intimate
colaboration of two fields of knowledge more echoed in our
country was undoubtedly that between Linguistics and Anthro
pology.
Lingüística e
ntropologia
Recebido para publicação em
23/7/1975
YONNE DE FREITAS LEITE Museu Nacional
Universidade
Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, GB. ·
NA ÁREA DAS CIÊNCIAS
HUMANAS ONDE MAIS
ecoou em nosso País a potencialidade de ínti
ma colaboração de dois campos de conheci
mento foi, sem dúvida, entre a Lingüística e a
Antropologia.
Não
seria exagero dizer que a
Lingüística ganhou entre nós fama e prestígio
e despertou maior interesse nos meios intelec
tuais não pelos conhecimentos das estruturas
lingüísticas em si e
por
si, mas sim pela sua
possibilidade de oferecer um método de tra
balho dos mais rigorosos, passível de ser utili
zado por outras áreas. Nesse sentido podemos
dizer que a Lingüística no Brasil se populari
zou nos últimos vinte anos através
da
Antro
pologia.
Refiro-me especificamente à grande divulga
ção e aceitação dos trabalhos de Claude Lévi
Strauss
na
década dos sessenta e à grande
voga do estruturalismo.
É
célebre entre os
cientistas sociais a colocação feita, em seu
artigo A análise estrutural em lingüística e
antropologia
I
de que
no
conjunto das ciên
cias sociais ao qual indubitavelmente pertence,
a lingüística ocupa, entretanto, um lugar excep
cional; ela não só é
uma
ciência social como
s outras, mas a que, de
há
muito, realizou
os maiores progressos: a única, sem dúvida,
que pode reinvidicar o nome de ciência e que
chegou, ao mesmo tempo, a formular um mé
todo positivo e a conhecer a natureza dos fa
tos submetidos
à
sua análise .
Também
se tor
nou lugar comum a comparação que fez entre
* Conferência realizada na XXVII Reunião Anual
da
SBPC,
em
Belo Horizonte,
MG
.
1 . ln Antropologia estrutural. Tradução de Chaim
Katz e Eginardo Pires, Edição Tempo Brasileiro,
Rio de Janeiro, 1967.
Ciência e Cullura 27 12 : 1.281·1.292
o papel desempenhado pela Física Nuclear en
tre as ciências exatas e a Lingüística, especifi
camente a fonologia, entre as ciências huma
nas. É de Lévi-Strauss a frase A fonologia
não pode deixar
de
desempenhar perante s
ciências sociais o mesmo papel renovador que
a física nuclear, por exemplo, desempenhou no
conjunto das ciências exatas
2
•
Por que tal papel renovador foi atribuído à
lingüística? Qual a descoberta que a aproximou
das ciências exatas?
Por
que especificamente
a fonologia? Todas essas perguntas são impor
tantes para o entendimento das afirmações de
Lévi-Strauss.
Indubitavelmente foi
na
fonologia que a me
todologia da lingüística estrutural mais se de
senvolveu. Foi através do estudo da parte
sónica que se chegou
à
depreensão no contínuo
sonoro de
uma
unidade mínima de funciona
mento, que se denominou de fonema. E mais
ainda, tal como o átomo, essa unidade mínima
foi decomposta em componentes
(ou
traços)
básicos, cuja presença ou ausência caracteriza
vam e diferenciavam
uma
unidade da outra.
Por
exemplo, em português, o par de palavras
pote
e
bote
se diferencia apenas pelo primeiro
segmento. Essa diferença
é
devida
à
ausência
de um traço no caso de pote e à presença desse
traço no caso de bote
.
Tanto em
pote
quanto
em
bote
o primeiro segmento é produzido pela
interrupção total da corrente de
ar na
boca,
isto é, p e são produzidos com o mesmo
modo de articulação. E mais na articulação de
ambos os dois lábios estão fechados, isto é,
ambos têm o mesmo ponto
de
articulação. Isto
2. Idem.
- ' I
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1.282
quer dízer que quanto ao modo e quanto ao
ponto de articulação os dois segmentos têm os
me
sm
os traços: ambos são oclusivos e ambos
são bilabiais.
Os
dois segmentos
se
diferenciam,
erltretanto, porque em p não há vibração das
cordas vocais enquanto em
b
há a
vi
br ação das
cordas vocais.
Em
portugu
ês
esta presença ou
ausência de vibração das cordas vogais nas con
soantes oclusivas e fricativas acarreta a dis-
tinção entre o significado dos vocábulos. Diz-se
nesses casos
que
os dois segmentos estão em
oposição
ou
em contraste oposicão essa mar
cada pela presenç?. ou ausência do traço de
sonoridade. p e b são assim conside
rados fonemas
em
português. Já em outros
casos, como
por
exemplo, em pares como
tua
e
tia ou doa e dia pronunciados no dialeto ca
rioca, a diferença entre oJde tua e o é] ~ tiq
ou entre o d
de
doa e o [ de
ciia
9ue se deve
à
desoclusãõ reta
rdada
de [C:] e [ ~ ] versus a
desoclusão
imediata
de
t
e d não é fonêmica.
Essa diferença não distingue significados: a
ocorrência
da
desoclusão retardada em portu
guês é previsível e determinada pela vogal alta
que se lhe segue. Nesse caso tem-se o que se
chama de variantes posicionais ou alofones.
Foi
esta nocão de
oposição
e a de traços dis
tintivos, n o ç õ ~ s essas trabalhadas
em
profun
didade
na
fonologia, que Lévi-Strau
ss
levou
para
a Antropologia e aplicou com sucesso ,
preliminarmente
na
análise de
var
iant
es
de mi
tos e no estudo de sistemas de parentesco. Em
seu artigo A estrutura dos' mitos
3
, seguindo
uma técnica semelhante à usada
para
a de
preensão de fonemas, estabelece uma unidade
mínima de interpretação - o mitema. E, no
sistema de parent
es
co, aprofundando a noção
de oposição pelo seu uso em Lingüística, refor
mula a teoria existente sobre unidades nuclea
res, partindo de
um
sistema opositivo nas ati
tudes de relacionamento dos pares pai/filho ,
irmão/ irmã, marido/ mulher, tio materno/ filho
da
irmã.
Atemo-nos aqui às primeiras incursões de
Lévi-Strauss no uso
da
metodologia lingüística.
Sua
obra
é bastante conhecida do público bra
sileiro. Livros como O cru e o cozido O tote-
mismo hoje O pensamento selvagem ultrapas
saram o domínio dos antropólogos e
já
perten
cem ao mundo
da
literatura e
da
filosofia.
Vale mais a pena lembrar que entre os an
tropólogos brasileiros as idéias de Lévi-Strauss
CIÊNCIA E
CULTURA, 27(12), DEZEMBRO 1975
não se restringiram à discussão acad.êmica ou
a exposições em salas de aulas ou conferências.
Elas foram utilizadas
para
a interpretação de
dados empíricos, oriundos de -trabalhos de
campo entre populações indígenas brasileiras.
Parte desses trabalhos foram reunidos num
livro intitulado
Mito c linguagem social
4
•
As
sim é que Roberto Cardoso de Oliveira, em
seu artigo Totemismo
Tukúna?
invoca entre
os Tukúna do alto Solimões uma ordem totê
mica consubstanciada nos epônimos clânicos
transformados em signos que codificariam a
ordem social e que viriam a constituir um
plano de referência eficaz para o comporta
mento. E Roberto da Matta, depreendendo os
mitemas do mito do fogo e do mito da origem
do
hcmem
branco entre os Timbira, mostra
como eles estão relaêionados do ponto de vista
estrutural, mantendo entre
si
relações inversas
e simétricas. Dentro dessa mesma perspectiva
Laraya
em O sol e a lua
na
mitologia xin
guana analisa três versões de mitos de origem,
uma Bakairi, outra Kalapalo e outra Kamayrá,
mostrando que as diferenças são apenas apa
rentes. Os elementos básicos encontrados nes
sas versões são em essência os mesmos e eles
servem como um modelo, em termos ideais,
para a ação social. Já Júlio César
M_elatti
em
O
mito e o
Xamã ,
estabelecendo os mitemas
de biografias de xamãs e os mitemas do mito
Kraho que explica
as
origens dos poderes àe
curar, mostra que essas biografias revivem o
mito.
Porém devemos lembrar que a potenciali
dade da lingüística como fornecedora de um
método para
as _ciências so_ciais não foi desco
berta de Lévi-Strauss. Como o próprio Lévi
-Strauss assinala
5
,
Marcel Mauss já dissera
antes que
A
sociologia estaria certamente,
muito mais avançada se tivesse procedido, em
todas as situações , à maneira dos lingüistas .
Ver essa possibilidade de procedimento é por
certo, iluminador.
Tentar
apLicar esse proce
dimento
é
sem dúvida, um desafio estimulante,
desafio que Lévi-Strauss aceitou e onde exer
citou seu
poder
criativo com inteligência, leve
za e charme, qualidades essas que tanto encan
taram aos intelectuais brasileiros. O importante
para nós é que esse encantamento não ficou
no nível da aceitação passiva e deslumbramen-
5 .
A
análise estrutural
em
Lingüística e Antro
pologia .
In
ntropologia
estrutural
(Trad. de Chaim
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CIÊNCIA E
CULTURA,
27(12),
DEZEMBRO 1975
to. Produziu seus efeitos no exercício antropo
lógico, sendo suas proposições testadas em
vistas de dados e situações outras.
Porém, até aqui
só
temos falado da relação
entre a LingüísÜca e a Antropologia de um
modo abstrato e unidirecional: a lingüística
serviria de modelo
para
o estabelecimento de
um método de análise. Outros modos de rela
cionamento
.são
igualmente possíveis e outras
perguntas são igualmente válidas, quais sejam
1) até onde os resultados concretos da análise
lingüística podem contribuir
para
o conheci
mento antropológico ou
numa
direção inversa;
2) em que o conhecimento dos métodos e/ ou
resultados antropológicos podem contribuir
para
o conhecimento lingüístico?
A primeira possibilidade de utilização dos
resultados concretos da lingüística pela antro
pologia adveio da lingüística histórica e do
método comparativo de reconstrução e classi
ficação. A Lingüística Histórica Comparativa
parte do pressuposto de que certas semelhan-'
ças entre línguas diferentes não são devidas ao
mero acaso ou a fatores universais. Certas se
melhanças só podem ser explicadas por cone-
xão histórica. -
Eviderrtemente
há
entre as línguas, seme
lhanças que têm sua explicação em fatores
universais, isto é são inerentes à caracterização
e à própria definição de linguagem humaná.
Assim é que as línguas têm nomes e verbos,
possessivos e pronomes, negação e interroga
ção etc. Outras semelhanças são meramente
aci9_ntais. Vale a pena relembrar aqui o clás
sico exemplo dado
por
Bloomfield
6
da simila
ridade superficial e aparente entre o grego
moderno mati e o malaio mata ambas as pala
vras significando olho . Seria fantasioso atri
buir qualquer explicação a não ser a mera
casualidade a essa semelhança de forma e
sentido. Do mesmo modo devem ser interpre
tadas, por exemplo,
as
semelhanças entre a
palavra do Tapirapé
ma
e o vocábulo português
mão ou ainda entre o radical preso Tapirapé
-pi e o português
pé,
embora haja uma corres
pondência de sons e sentido.
P.ara que as correspondências de som
tido tenham um valor
para
a Lingüístic-ª Com
parativa Histórica é preciso que haja recorrên
cia e sistematicidade. E o que acontece,
por
exemplo,
na
repetição sistemática da corres
pondência entre
e
em sânscrito, grego e latim,
6. Language, cap. XVII, Henry Holt, 193 3.
1.283
zero em celta e nas línguas germânicas. Essa
correspondência se encontra em palavras como
sânscrito
pi
ta:, grego pa te:r, latim pater,
irlandês antigo
adir,
gótico
fadar,
norueguês
antigo fader, inglês antigo fceder. Essa corres
pondência se repete sistematicamente em ou
tros vocábulos como latim porkus, irlandês
antigo
ork,
inglês antigo
fearh .
Essas correspondências sistemáticas permi
tem a reconstrução de prato-formas e a hipó
te_se aqui é que essas prato-formas representa
riam um estágio mais antigo comum a todas
as línguas que contribuíram
para
sua recons
trução. Essa língua comum teria se diferencia
do em virtude de divisões súbitas de grupos
que
se
distanciaram geograficamente, quer por
migração, quer por intrusão de outros grupos,
e passaram, assim, a ter um desenvolvimento
lingüístico diverso. O rp.étodo comparativo per
mite assim a classificação genética das línguas
e a reconstrução do vocabulário e gramática
da língua hipotética da qual as outras se ori
ginaram.
Foi
desse modo que
se
conseguiu agrupar,
reconstruindo-se o Proto-Indo-Europeu , lín
guas tão diferenciadas como o sânscrito, o
hitita, o celta, o latim, o russo, o sueco, o
albanês, o alemão, o inglês etc., como mem
bros de
uma
grande família lingüística diferen
ciada do finlandês , do estoniano, do húngaro,
do lapão que formariam, com outras, a família
das línguas ugro-fínicas.
O método comparativo foi posteriormente
e n r ~ q u e i d o
com a glotocronologia. A gloto
cronologia é
uma
técnica que procura datar
estágios anteriores das línguas, num símile da
técnica de datação por meio do carbono 14
para
o material arqueológico . A glotocronolo
gia
7
parte do pressuposto que
uma
parte do
vocabulário de qualquer língua é menos susce
tívél de mudança que outras partes. Essa pN-
. ção mais constante tem sido denominada de
vocabulário básico
e inclui nomes de partes
do corpo, certos termos de parentesco, certos
verbos e nomes comuns
8
,
etc.
Daí
decorrem
7. Para
uma visão didática do método glotocro
nológico consulte-se
Sarah
Gudschinsky The ABC
of Jexicostatistics . Word ,
12(2):
175-210, 1956.
8. Para
a determinação de itens lexicais básicos
consulte-se Morris Swadesh Cuestionario para el
cálculo léxico-estatístico
de
la cronologia pré-históri
ca . Boletín indigenista Venezolano I, 1953 e
To
wards greater accuracy in lexicostatistics dating .
Int ernational journal of American /inguistics, 2 2):
121-137.
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tanto muito tentativas e restritos. As classifi
c ç õ ~ s
mais amplas existentes como a de
Mason 11 e a de Greenberg
12
não seguem o
método comparativo rigoroso de estabeleci
mento de cognatos e de reconstrução paulatina
e gradual dos níveis mais profundos de rela
cionamento.
Com isso não se quer dizer que não se haja
feito em nosso País trabalhos históricos com
parativos seguindo o método comparativo.
Temos, por exemplo, o trabalho
de
Miriam
Lemle 13 em que pela comparação do vocabu
lário básico de 1
O
línguas, reconstrói cerca de
200 cognatos e estabelece uma classificação
interna da Família Tupi-Guarani. Anteriormen
te Dall'Igna 14 Rodrigues apresentara
uma
classificação do Tronco Tupi, num cuidadoso
trabalho, seguindo a técnica léxico-estatística,
isto é, usando glotocronologia sem a intenção
de datar a época de separação entre
as
famílias
e línguas de cada família. Essa sua cautela em
evitar a datação expressa bem a situação da
extensão do conhecimento das línguas indíge
nas brasileiras. Conforme o próprio Rodrigues
explica não nos propomos a empreender qual
quer datação especialmente porque o material
examinado ainda apresenta muitas lacunas
p. 101 )".
Para as línguas
Jê
dispomos apenas do tra
balho de Irvine Davis
1
5 em que usando o
Apinayé, o Canela, o Suya, o Xavante e o
Karajá, reconstrói os prato-fonemas e cerca
de
100 itens vocabulares.
Para
a família Karíbe
temos o trabalho de Desmond Derbishire
16
comparando o Kaxuyana, Hixkariana e o Wai
wai e o de Ernesto Migliazza
7
em que faz o
11. "T
he
languages of South
American
Indians .
Handbook
of
South
Ameri
can Indians vol. 6. Smith·
so
nian Institute, Washington, D .C.
12.
"T
he general classif
ic
at
ion of
Central
and
South American Indian languages . Selected Papers
of the Fifth Congress of Anthropological and
Ethno
-
logical Sciences (A. F.
C. Wallace, ed) University
of Pensylvannia Press, 1960.
13.
Intern
al classification of the Tupi-guarani lin
guistic family . Tupi studies I
(David
Bendor-S
am
uel,
ed) Summer Institute of Linguistics.
Uni
versity
of
Oklahom
a,
Norman,
197 L
14. "A classificação do tronco tupi . Revista de
antropologia
12(1-2):
99-104, São
Paulo
, 1964.
15. Comparative jê-phonology .
Estudos lingüís-
ticos vol. I, (2): 10-24, 1966.
16.
Notas
comparativas sobre três dialetos Kari
be .
Boletim do
Museu
Paraense Emilio Goeldi
n.
0
14
1961.
17.
"Grupos
lingüísticos do território federal
do
Roraima
. Atas
do Simpósio sobre Biota
Amazônica
vol. 2 (Antropologia), 153-173 , 1967.
1.285
cômputo léxico-estatístico entre palavras do
Makuxi, Taulipang e Maiogong.
Há também trabalhos em que se estabelece
a filiação de
uma
língua, como é o caso do
artigo
de
Aryon Rodrigues
18
sobre
os
Cinta
-Larga e o de Sarah Gudschinsky
19
sobre o
Ofayé.
Como se vê, os trabalhos comparativos entre
nós, seguindo técnicas e métodos mais rigoro
sos não atingiram níveis de profundidade tem
poral e grau de abstração como ocorreu nos
estudos do indo-europeu. As poucas classifica
ções existentes limitam-se ao nível da família
e do tronco, não chegando ao nível,
para
se
usar ·a terminologia de Swadesh, do micrófilo,
mesófilo ou macrófilo.
Nada
possuímos que se
compare ao trabalho
de
Sarah Gudschinsky
20
sobre línguas mexicanas, em especial o Maza
teco, em que, comparando dialetos muito se
melhantes, não se limitou
à
reconstrução do
Proto-Mazateco, mas tentou comparar os fatos
lingüísticos com os fatos históricos, referen
dando-os. Qualquer classificação de línguas
indígenas brasileiras, que implique numa in
cursão num nível mais alto, parece sempre aos
especialistas meras especulações.
Os antropólogos estão cientes desta limita
ção
aos
resultados
da
lingüística comparativa,
mas assim mesmo são essas
as
classificações
que usam ao se referirem aos grupos por eles
pesquisados.
Esse estado de coisas, porém,
se
explica.
Conforme dissemos o êxito dos estudos com
parativos do Indo-Europeu decorreu em gran
de parte
da
existência de descrições ricas e
abrangentes das línguas estudadas. Além disso
os comparativistas eram profundos conhecedo
res de várias das línguas que comparavam.
Dedicaram toda sua atividade intelectual a esse
mister.
Entre
nós, e isto é importante frisar,
o número dos que se dedicam a esse tipo de
atividade é exíguo. Isto porque, em primeiro
lugar o estudo descritivo
de
línguas indígenas
exige períodos prolongados de trabalho de
campo em aldeias indígenas distantes. Para se
dominar relativamente bem uma dessas lín
guas, precisa-se de tempo, dedicação e dispo
sição para afastar-se dos centros urbanos por
18. "A classificação dos cinta larga . R evista de
antropologia 14 : 27-30, São Paulo, 1966.
19. Ofaié-Xavante, a
Jê
language .
Estudos sobre
línguas e culturas indígenas
1-16. Summer Institute
of Linguistics, Brasília, 1971.
20 .
"Mazatec
dialect history Language
34
(4),
1958.
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1.286
vanos períodos em vários anos. O trabalho
comparativo também é lento, detalhado e mi
nucioso, exigindo horas que somadas perfazem
anos. Ora, poucos entre nós, com as obriga
ções da atual vida acadêmica teriam material
mente condições
para
desempenhar essa tare
fa.
Não seria inoportuno lembrar aqui que os
grandes trabalhos comparativos do indo-euro
peu foram feitos no século XIX e primórdios
do século XX, tempos em
que
a estrutura
acadêmica, as expectativas do trabalho intelec
tual e a concepção de produtividade na vida
universitária eram outras.
Se nos parece pouco promissora es_a
p r ü n ~ i -
ra õ Ssil5iliâ-aâê- :da- utilização dos resultados
da lingüística comparativa
para
os antropólo
gos referendarem suas teorias sobre migrações,
povoamento sucessivos e conexões históricas o
que não se dirá do campo aberto pelo trabalho
de Benveniste a que nos referimos atr ás.
Tal
empreendimento, em que se procura desvendar
um princípio de unidade que se esfacelou pelas
modificações da sociedade, se baseia na cuida
dosa depreensão dos semantemas em suas re
lações com as instituições e valores sociais.
Em suma,
p t e ~ i s a
de
uma
boa etimologia.
Ora, é exatamente .essa área o estudo das lín
guas indígenas brasileiras que tem dado mar
gem às maiores fantasias e deduções despro
vidas de qualquer validade.
Na
Tupinologia
houve durante um certo período a crença de
que as línguas indígenas eram aglutinantes.
Qualquer palavra
Tu
pi ·deveria ser decompos
ta
em
uma
série de elementos .cada um com
um significado.
Já
em 1930, José de Oiticica,
em sua comunicação ao Congresso de Ameri
canistas em Hamburgo
2
1 alertava para a pre
cariedade e interpretações duvidosas das eti
mologias em Tupi. O próprio Benveniste ao
definir a escolha das línguas indo-européias
para o trabalho a que se propõe deixa clara
a posição privilegiada dos estudos do indo
-europeu. Segundo ele (p. 9):
Entre
as lín
guas do mundo, as da família indo-européia
se prestam às investigações mais extensas no
es
paço e no tempo, às mais variadas e as mais
profundas por se estenderem da Ásia Central
ao Atlântico,
por
serem atestadas
por
um pe
ríodo de quase quatro milénios, por estarem
ligadas a culturas de níveis diferentes, porém,
muito antigas, estando algumas delas entre as
mais ricas que já existiram,
por
fim,
por
terem
21.
D::J
método
no
estudo das línguas sul-ameri
canas . Boletim do Museu NaciOnal
ZX l),
Rio de
Janeiro, 1933.
CIÊNCIA E CULTURA, 27(12), DEZEMBRO
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várias dessas línguas produzido
uma
literatura
abundante e do mais alto valor.
Por
tudo isso
as línguas indo-européias foram por muito
tempo um objeto exclusivo de análise lingüís
tica .
Há, p o r ~ m
uma maneira outra por que a
LingüTs.ticâ pode auxiliar praticamente aos
antropólogos . Muitos antropólogos estudam
populações ágrafas e muitas dessas populações
são monolíngues. Em outras o português falado
pelo indígena é pobre, precário e deficiente.
A maioria dessas línguas não foi estudada, isto
é inexistem gramáticas para que o antropó
logo possa aprender a língua e com ela se co
municar com o grupo estudado. Mesmo quan
do existem estudos mais
prdundos
(e parte
desse trabalho vem
sendD
feito pelo Summer
Institute of Linguistics, no Brasil), esses estu
dos estão apresentados numa forma extrema
mente técnica que
só
um conhecedor da ter
minologia lingüÍstica pode tirar dele um pro
veito efetivo. Isto é mesmo
para
os grupos
mais estudados inexistem gramáticas pedagó
gicas. Os antropólogos, então, procuram a
Lingüística para aprenderem as técnicas que
lhes permitam depreender a gramática dessas
línguas para poderem
se
comunicar com os
grupos estudados. Mesmo quando há uma
bibliografia lingüística, no trabalho de campo
e pela natureza de seu trabalho, o antropólogo
sempre se defrontará com situações lingüísticas
que ele terá de analisar e resolver, pois nem
tudo está contido nos trabalhos específicos de
lingüística.
Porém para os antropólogos o conhecimento
da linguagem não
se
limita a usá-la para a
comunicação com os membros da sociedade
em estudo. Do ponto de vista meramente fun
ciÓnal a linguagem é vista como um veículo
de comunicação. Porém do ponto de vista
epistemológico, o problema é mais complexo.
As correntes filosóficas que tratam da corre
lação linguagem, pensamento e realidade se
dividem e
se
entrelaçam. O papel
da
linguagem
no processo de cognição é talvez um dos pro
blemas mais antigos da
e p i s ~ e m o l o g i a
Algu
mas correntes consideram a linguagem apenas
como
um
meio do homem estabelecer contato
com a realidade, um meio de
ex
pressão fiel
do
mundo objetivo. A linguagem seria uma cópia
desse mundo. Outros pensam que a linguagem
não é uma cópia da realidade, mas é ela quem
faz a realidade. A linguagem, pois, não ex
pressa a coisa em
si
mas ela cria o mundo
objetivo. Outros sustentam a hipótese de que
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CIÊNCIA E
CULTURA,
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todos os homens passaram pela .mesma evo
lução biológica, sendo a imagem do mundo
formada
neste processo
de
evolucão a mesma.
Segue-se daí que elementos lingüísticos co
muns são encontrados
em
todas as línguas.
Nessa controvérsia
Humboldt
adota
uma
posição moderada.
Para
ele seria minimizar o
estudo
da
linguagem considerá-la apenas como
um
meio
de
estabelecer contato
com
o
mundo
objetivo. A verdadeira essência das pesquisas
em lingüística seria a de se
estudar
a partici-
pação
da linguagem na confecção das idéias.
Dentro dessa perspectiva a questão
da
lingua
gem refletir ou não a realidade é
um
problema
complexo que envolve a dialética de
fatores
objetivos e -subjetivos na cognição. Para Trier,
Weisberger e outros o problema se simplifica:
a língua não
reflete a realidade, não há fatores
objetivos e subjetivos, ela simplesmente cria
subjetivamente a realidade.
Para
o antropólogo tais perguntas e respos
tas a elas são da
maior relevância. O mister
do antropólogo é ao estudar uma sociedade
chegar à visão do
mundo
que esta sociedade
tem, é depreender os sistemas de valores que
a movimentªm, enfim, o offcio do antropólogo
é
poder traduzir como
pensa
e sente a comu
nidade que ele investiga.
Ora, algumas dessas perguntas epistemoló
gicas que
perduram
há milênios são passíveis
de verificação empírica. E esta verificação
empírica seria
dada
pela lingüística. Evidente
mente
nem
todas as questões filosóficas levan
tadas pelo problema
-da correlação linguagem
e pensamento, ·linguagem e realidade encontra
rão uma comprovação inequívoca.
Há
certas
áreas, porém, que
oferecem perspectivas ani
madoras.
Por
exemplo, a concepção filosófica
de que a linguagem
cria
a realidade e
que uma
mudança
no sistema lingüístico acarreta uma
mudança
na
imagem
da
realidade
pode
encon
trar
uma
comprovação nas pesquisas de etno
lingüística.
Os povos usam sistemas lingüísti
cos diferentes, com morfologia, sintaxe voca
bulário, contextos sociais e culturais diversos.
J?ntão, se analisarmos vários sistemas lingüi:s
tlcos para
ver
se eles acarretam imagens dife
rentesdo mundo, poder-se-ia ter
uma
evidên
cia a favor dessa teoria. E se essa imagem do
mun?o está consubstanciada na língua, os an
tropologos, para poderem traduzir como a
população que estudam vê e
pensa
esse mun
do, precisariam conhecer muito bem a sua
língua.
____
1.287
É bem conhecida pelos lingüistas a hipótese
do relativ:isii _o lingüístico formulada por Sapir,
a qual pode ser sumariada
do
seguinte modo:
a língua que
uma
determinada comunidade
fala e com que pensa, organiza a experiência
e assim molda o
mundo
e a realidade social
dessa comunidade. Em
outras palavras, a cada
língua é inerente uma visão específica do mun
do. Que fique claro que
uma
exegese da obra
de Sapir
não
nos autoriza a dizer que ele pense
que
a língua cria a realidade. Sua tese é a de
que a linguagem é socialmente condicionada
e influencia o modo por que uma comunidade
apreende a realidade. A questão é assim tão
complexa quanto a posiçãÕ de Humboldt, pois
ao mesmo tempo que a linguagem é um
pro-
duto
social, isto é, o sistema lingüístico em
que
somos socializados
molda
a maneira por
que
vemos o mundo, esta realidade social em
que vivemos, diferente
para
cada sociedade,
acarreta
estruturas lingüísticas diferentes. Se
gundo Sapir:
22
A linguagem é
um
guia
para
a realidade social .
Embora
em regra
não
se
considere
de
essencial interesse
para
os estu
diosos da ciência social, é ela que poderosa
mente condiciona todas as nossas elocubrações
sobre
os problemas e os processos sociais. Os
seres humanos não vivem apenas no
mundo
objetivo
nem
apenas no mundo
da
atividade
social como ela é geralmente entendida,
mas
também se
acham
em muito
grande
parte à
mercê da
língua particular que se
tornou
o
meio de expressão da sua sociedade.
É
uma
completa ilusão imaginar que alguém se ajuste
à realidade sem o auxílio essencial
da
língua
e que a língua seja, meramente, um meio oca
sional de resolver problemas específicos de
comunicação ou raciocínio. O fato incocusso
é que o mundo real se constrói
i n o n s i n
temente, em grande parte na base de hábitos
lingüísticos do grupo.
Não há
duas línguas
que
sejam bastante semelhantes
para
que se
possa dizer que representam a mesma reali
dade social. Os
mundos
em que vivem as di
versas sociedades
humanas sãÕ mundos
distin
tos, não apenas
um mundo com
muitos rótulos
diversos.
Entender
um
poema,
por
exemplo, não se
cifra somente em entender as várias palavras
em sua significação usual, mas na compreensão
plena de
toda
a vida na comunidade, tal como
ela se espelha nas palavras ou as palavras a
22. A posição da lingUística como ciência . ln
in
giiística
como
ência
(J.
Matto
so
Câmara
Jr. ,
ed.) Livraria Acadêmica, Rio de Janeiro, 1961.
8/18/2019 Yonne Leite
9/13
1.288
sugerem em surdina. Até atos de percepção
aparentemente simples estão, muito mais do
que se poderia supor, à mercê desses padrões
sociais que se chamam palavras. Quem, por
exemplo, desenha umas doze linhas de forma
diferente, percebe-as como divisíveis em dadas
categorias, como sejam "reta", "quebrada",
"curva", "ziguezague",
por
causa do que su
gerem para a classificação os próprios termos
lingüísticos. Se vemos, ouvimos e sentimos, de
uma maneira geral, tal como o fazemos, é em
grande parte porque os hábitos lingüísticos de
nossa comunidade predispõem certas es·colhas
de interpretação".
A hipótese de Sapir encontrou ampla resso
nância em seu discípulo Benjamin
Lee
Whorf.
Whorf radicaliza as idéias de Sapir, eliminando
suas ambiguidades, precisando as partes vagas
e, portanto, mais sugestivas da
obra
de seu
mestre. Sapir via, como Humboldt, uma rela
ção dialética entre o mundo objetivo (social)
e o reflexo deste mundo na linguagem. Whorf
já
se
aproxima mais de Trier e Weisberger ao
dizer que
o
mundo se apresenta
num
fluxo
caleidoscópico de impressões que devem ser
organizadas pela nossa mente - isto
é
em
grande parte pelo sistema lingüístico de nossas
mentes. Segundo Whorf dividimos a natureza,
organizamo-la em conceitos, e Consignamos
significações de um
dado
modo, em grande
parte
porque somos membros de um acordo
firmado para organizá-la deste modo· - acor
do que vale para toda a nossa comunidade
lingüística e está codificado nos padrões de
nossa língua. Este acordo
é
evidentemente
implícito, mas seus termos são obrigatórios
Não se pode falar de modo algum a não ser
que
subscrevamos a organização e a classifi
cação dos dados decretados no acordo"
23.
O mais Célebre trabalho
de
Whorf, em que
ele oferece provas
para
sua teoria de que per
cebemos o mundo de
um
dado modo depen
dendo de como a nossa língua divide a cor
rente de acontecimentos em partes, é aquele
em que ele compara a estrutura do verbo em
Hopi
com a das línguas do europeu médio
padrão
24
• Whorf conclui que a categoria tempo
não é concebida pelos Hopi do mesmo modo
como
é
concebida pelos falantes das línguas
23. "Science and linguistics". ln Languag
e
thou
g
ht
and reality p. 207-219 (John B Carrcil, ed.) The
M.I.T.
Pre
ss, 1957.
24 . "
An
American
lndian
model of the universe
in language". ln Lan
guage
thou
g
ht
and reality
p. 57-64.
CIÊNCIA E CULTURA, 27(12)
,
DEZEMBRO
1975
européias padrão. Em suas próprias palavras :
Considero gratuito que um indivíduo
Hopi
que conhece apenas a língua Hopi e as idéias
culturais em sua própria sociedade tenha as
mesmas noções de tempo e espaço - muitas
vezes consideradas como intuitivas - que nós
temos e que geralmente são tidas como noções
universais. De
um
modo geral o Hopi não tem
uma
noção geral ou intuição do tempo como
um fluxo contínuo e suave pelo qual tudo no
universo se passa num ritmo igual - de um
futuro através de
um
presente para um passado
ou no qual, revertendo-se a imagem, o obser
vador está sendo levado continuamente numa
corrente de duração de um passado
para
um
futuro" . . .
O
verbo em Hopi não se apre
senta linearmente com três aspectos e uma
dimensão de tempo, mas numa base de uma
gradação operacional de "mais cedo - mais
tarde".
O livro de
Adam
Schaff
Linguagem e cogni-
ção
em que baseamos a maior parte das
observações aqui feitas sobre o problema da
interrelação linguagem e realidade, linguagem
e pensamento, oferece a todos os interessados
neste problema
uma
visão ampla, numa apre
sentação didáüca, do histórico da questão, suas
possibilidades de verificação empírica e con
tra
-argumentações.
De
um modo geral acre
dita na potencialidade dos trabalhos de etno
lingüística como evidência a favor ou contra
algumas hipóteses epistemológicas.
A concepção de que a linguagem oferece a
divisão do mundo, ou o recorte da realidade,
especialmente seu vocabulário estruturado em
campos semânticos, deu origem em antropo
logia a toda uma linha de pesquisa conhecida
como "ethnoscience". O trabalho de Conklin
25
sobre a classificação das cores em Hanunoo, o
de
Frake
2
6
sobre a concepção
de
doenças
entre os Subanum de Mindanao e os vários
trabalhos de Lounsbury e Goodenough pro
curam mostrar como a taxonomia lingüística
aliada à detecção dos componentes semânticos
dos itens vocabulares traduzem uma visão e
apreensão do mundo própria a cada cultura.
E o único meio de verdadeiramente chegar-se
a conhecer a essência de uma cultura seria es
tabelecer os seus sistemas semânticos classifi-
25.
Hanunóo
colour categories". Southwestern
journal
of
anthropology
(
4):
339-344, 1955.
26. "
The
diagnosis of disease amnog the Subanum
of Mindanao". American
anthropologist
63 1)
:
113-130, 1961.
8/18/2019 Yonne Leite
10/13
CIÊNCIA E CULTURA, 27(12), DEZEMBRO 1975
catórios consubstanciados no vocabulário e
na
gramática.
:b importante observar que a hipótese do
relativismo lingüísti:co, conhecida como a hi
pótese Sapir-Whorf - encontrou guarida nu
ma fase do estruturalismo extremado da lin
güística norte-americana. Os estudos das lín
guas indígenas se intensificaram e um dos
objetivos era descobrir novas estruturas lin
güísticas e mostrar em .quanto elas se diferen
ciavam das chamadas línguas das grandes civi
lizações ou línguas não-exóticas. Essa concep
ção chegou a um
tal grau de radicalismo que
para a descrição das línguas aconselhava-se a
evitar o uso da terminologia até então :corrente
em estudos da linguagem, a nomenclatura co
mo nome, verbo, possessivo, gerúndio, de
monstrativo, incoativo, particípio etc. As par
tes ou morfemas em vez
de
nominados deve
riam ser numerados. Era como se cada língua
fosse um mundo em
si
diferente em tudo de
qualquer outra. Cada língua encerraria assim
uma concepção da realidade e como essa rea
lidade era vista diferentemente por cada cul
tura as línguas seriam intraduzíveis uma
na
outra.
Tal tipo de conceção - em que se anulam
os
aspectos universais do fenômeno lingüísti:co
- foi duramente criticado pelos seguidores da
chamada teoria transformacional. O debate
assumiu
um
tom apaixonado e
as
críticas a esta
concepção foi tão contundente que os trans
formativistas passaram a chamar aos estrutu
ralistas de taxonômicos e diziam que o que eles
faziam não atingia o nível
da
explicação do
fenômeno lingüístico. Apenas classificavam
fatos e os rotulavam.
O tipo de fundamentação dos transformati
vistas é em parte biológi:co - a linguagem
seria uma capacidade inata do homem. Como
disse Eric Lenneberg
27
, em palestra proferida
no Museu Nacional a nossa espécie é dotada
de uma maneira específica
de
processar os
dados da realidade. A principal manifestação
dessa capacidade geral é a capacidade de sín
tese dos processos lingüísticos. Essa capacidade
se
desenvolve paulatinamente em cada criança
acompanhando a maturação orgânica desde
que . a matéria-prima lhe seja fornecida pelo
ambiente num processo que se poderia com
parar
ao da nutrição e crescimento O desa
brochar da linguagem tem seu curso estrita-
27. Fundamentos
biológicos da linguagem . Pu
blicaçõ
es
Avulsas do
Mu
seu N ácional, n.
0
53, 1970.
1.289
mente prescrito pelo caminho maturacional
seguido pela cognição. Há uma etapa da ma
turação que se poderia denominar de disponi
bilidade lingüística. A disponibilidade lingüís
tica é um estado de estrutura lingüística latente.
O desabrochar da linguagem é o processo pelo
qual a estrutura latente se realiza em estrutura
manifesta dando ao tipo lingüístico abstrato
subjacente uma forma concreta.
Tal
formula
ção pode ser vista como a contra parte biológica
daquilo a que os gramáücos têm dado o nome
de gramática universal e gramática particular.
A estrutura latente é responsável pelas peculia
ridades de qualquer enunciado e também pelos
aspectos exclusivamente pertinentes à gramá
tica de uma língua natural . E mais - e isto
é importante frisar - porque aqui a funda
mentação da teoria transformacional se dife
rencia da hipótese do relativismo lingüístico,
Lenneberg continua: Cada indivíduo sadio
normal é uma réplica do outro em termos
seu potencial lingüístico ou estrutura latente
justamente
por ser essa estrutura uma o n s e ~
qüência de processos cognitivos e :curso matu
racional especificamente humanos .
A linha de trabalho da lingüística transfor
macional tem sido exatamente a
de
tentar de
terminar em como se caracteriza formalmente
essa capacidade inata, própria e comum a toda
a espécie humana. Dentro dessa perspectiva
as
diferenças entre
as
línguas seriam meramente
superficiais. Os mecanismos lingüísticos,
as
restrições de operações seriam os mesmos em
todas as línguas. As pesquisas lingüísticas de
hoje procuram mostrar o que
há
de geral e
comum no particular, como cada língua em
sua diversidade esconde aspectos universais.
Procura-se, assim, chegar-se a uma caracteri
zação das línguas humanas e naturais em con
traposição
às
linguagens artificiais ou animais.
Vale a pena tentar reproduzir aqui o que
nos diz Noam Chomsky em sua Introdução à
edição norte-americana do livro de Schaff. Diz
ele sobre a questão dos universais lingüísticos
- A amplitude real dos verdadeiros univer
sais lingüísticos, isto é, aqueles que se mantêm
não por acidente histórico, mas os que são
essenciais à linguagem humana dado o caráter
fixo dos processos humanos mentais - é des
conhecida . E mais ainda, voltando-se à con
cepção biológica de Lenneberg de maturação
e desenvolvimento lingüístico, sabe-se que a
fase de disponibilidade termina
por
volta
da
puberdade e após essa fase se torna quase im
possível aprender como um nativo, t-er as in-
8/18/2019 Yonne Leite
11/13
1.290
tuições de um nativo,
numa
outra língua que
não seja a que se foi exposto e que foi apren
dida primeiramente.
Esse tipo de formulação nos leva a recon
siderar as evidências e conclusões apresentadas
por
Whorf
entre linguagem e cognição. A in
vestigação da hipótese do relativismo lingüís
tico exige
uma
análise exata da estrutura lin
güística considerada.
Ora
, longe estamos de
possuir uma análise cabal e incocussa de lín
guas tão estudadas como, por exemplo, o inglês,
O que
não
se dirá das análises de línguas
indígenas?
A principal argumentação de Whorff, aceita
por Schaff, refere-se à diferença entre a análise
do verbo em línguas européias, e o inglês aí
se inclui, e em Hopi. Para Chomsky o princi
pal defeito
da
argumentação de Whorf é que
sua análise do verbo em inglês
é
incorreta.
Como
ele
di
z
Em
inglês, por exemplo,
não
há
base estrutural
para
a visão ·cósmica pre
sente -
pa
ssado - futuro
que
Whorf atribui
de certo modo corretamente aos falantes das
línguas européias comuns.
Ao
contrário,
uma
análise formal da estrutura do inglês
mostrará
uma distinção presente - passado, um con
junto de aspectos (perfeito e progressivo) e
uma classe de modais, um dos quais é o futuro
(entre
outros mecanismos que servem para
essa mesma finalidade) . Abordando-se o inglês
do
ponto
de vista proposto por
Whorf
, con
cluiríamos que
um
falante do inglês
não
tem o
conceito de tempo como
uma
linha duplamente
infinita, ele próprio ocupando a posição de um
ponto
movendo-se constantemente do p assado
para o presente , mas, ao contrário, ele ·conce
be
o tempo em termos de uma dicotomia básica
entre o que é passado e o que não é ainda
passado e
em
termos de um sistema superim
posto e independente de modalidades
que
en
volve possibilidade, perm1ssao, habilidade,
necessidade, obrigação, futuro (esta última
não
sendo distinta das outras
de nenhum modo
especial). Esta conclusão é absurda, o que
simplesmente serve
para mostrar
que o nosso
conceito de tempo não
é
determinado pelas
categorias lingüísticas de
nenhum modo
detec
tável, mas
é
ao contrário independente delas.
Se isto
é
verdadeiro
pa r
a os falantes
do
inglês,
por
que não o será
para
os falantes
do Hopi?
São por esses motivos que os seguidores da
teoria transformacional vêem com certo ceti
cismo as evidências empíricas apresentadas
pela ethnoscience e
baseada
s
na
linguagem.
Os problemas com que se defronta o lingüista
CI
ÊNCIA
E CULTURA,
2 7 (
12)
,
DEZEMBRO
197
antropólogo
par
a conhecer
uma
língua que
nã
o
é a sua nativa são tão vastos e complexos -
e o controle nativo da língua é necessário
pa
ra
esse tipo de abordagem - que as evidências
que ele
poderá
fornecer estãrão pelo menos
por
enquanto fadadas a não terem
um
conteú
do substancial e profundo.
Em seu artigo Cognition in ethnolinguis
tics
28
,
Eric Lenneberg faz uma avaliação da
metodologia seguida nos trabalhos realizados
e
mostr
a que, se
um
observador está interes
sa
do
em êognição, ele te
rá
de inv
es
tigar as
relações que se obtêm entre a codificação e o
comport
amento que é traduzível pela memória
reconhecimento, aprendizagem, solução de pro
blemas e percepção,
na
esperança de mostrar
que certas peculiar idades desses processos só
podem
ser explicadas pelo conhecimento das
peculiaridades
de
codificação do falante .
Pe
s
quisas
rea
lizadas
com
falantes do inglês de
monstraram apenas que há maior unanimidade
na
resposta ao reconhecimento de cores p
ara
aquelas em que há uma codificação mais ele
vada, isto é, para as quais há um nome bem
definido. Para as outras cores em que
não
há
um
nome bem
definido foram dados tantos
nomes quanto o número de falantes investiga
dos. Por isso se vê que o fato de não se
po
s
suir
um
nome especÍfico para
uma cor
tenha
como conseqüência que as pessoas não reco
nheçam
aquela cor como diferente das
outra
s
- não
houve
apenas
uma
unanimidade nos
nomes dados nesses ·casos, mas as cores foram
percebidas como diferentes .
Resta
-nos falar agora da contribuição que
a antropologia
pode
trazer
para
a lingüística .
A lingüística atual tem evoluído por
uma
linha
extremamente formal, a de tentar caracterizar
os mecanismos que definem as línguas natu
rais das linguagens não-naturais. Seria curioso
notar
aqui que
no
meu trabalho diário
lid-o
com antropólogos e estudantes de pós-gradua
ção em antropologia, todos acham que a lin
güística é necessária
para
seu trabalho embora
não
saibam precis
ar
em quê, nem
por
quê.
Quanto aos lingüi stas, jamais encontrei um
interessado em saber o
que
é antropologia.
Na
s
estantes dos alunos de pós-graduação em an
tropologia
há
livros de
li
ngüística.
Haverá
livros de antropologia nas estantes dos alunos
de pós-graduação
em
lingüística?
AJ ingüística, ao conceber a linguagem como
uma
capacidade inata ·do homem, passou a
28. nguag
e
29:
46>471
, 1953.
8/18/2019 Yonne Leite
12/13
CIÊNCIA
E
CULTURA, 27 12),
DEZEMBRO
1975
procurar um diálogo maior com a psicologia
e a biologia:
É importante, porém, não nos esquecermos
que - a ·língua se atualiza num determinado
c o ? ~ e x t o
o c i < : i l
As formas podem estar gra
m-aticalmente corretas, mas socialmente erra
das. Ter um controle nativo de
uma
língua
nãõ é apenas falá-la de um modo gramatical
correto, mas socialmente correto também. Ter
um controle nativo de uma língua inclui saber
graduá-la nos diversos contextos sociais.
Cabe
lembrar aqui o exemplo muitas vezes citado
pelo Prof. Castro
Faria
da pesquisadora que
chegou a conhecer bem a língua do grupo
estudado, mas não viu suas implicações so
ciais. Trata-se do trabalho de Nancy Dorian
29
que fala relativamente bem a língua do grupo
e que conta seu infortúnio por não saber com
portar-se geralmente
bem
em termos dos pa
drões nativos do grupo.
Com o incremento e a direção que estão
tomando os trabalhos de sócio-lingüística em
que conceitos de classe social, estratificação,
status etc. são imprescindíveis, é bem provável
que o interesse recomece a despontar . Não é
que o lingüista venha a
se tornar
um sociólogo
ou antropólogo. Apenas é necessário que ele
compreenda a complexidade de uma divisão
em classes e esteja ciente das limitações de
suas conclusões em termos sociológicos.
e a impressão que fica para nós desta breve
avaliação das possibilidades de uso dos resul
tados da lingüística pelos antropólogos é um
tanto desanimadora e pessimista creio que ela
pode ser explicada pela colocação que geral
mente se faz do problema, a qual meramente
traduzi até aqui. Acredito que a questão deve
vista de um outro ângulo. A aproximação
nao se
dá
no nível prático da lingüística ofere
cer resultados concretos à antropologiá -
Ôu
vice-versa. C r ~ i o que o que aproxima ãntro
pólogo e o lingüista é o modo como eles abor
dam o objeto pesquisado e o que intentam
conhecer. O antropólogo almeja entender a
comunidade por ele estudada como um mem
bro daquela sociedade a concebe. Ele tem uma
teoria ou várias, mas não tem um sistema
classificatório apriorístico. Em seu ofício a
l i d a d e
em si pouco importa, o que importa
e como os membros da sociedade a vêem. São
várias as teorias de que dispõe. O l ~ n g ü i s t a
29. A substi tute name system in the Scottish
Highlands . merican anthropo/ogist 72 2) : 303-
-319, 1970.
1.291
por seu lado, procura em sua gramática apre
ender a intuição do falante nativo
da
língua.
Também são várias as teorias, também são
possíveis várias interpretações.
Tanto
o antro
pólogo quanto o lingüista lidam com realidades
de grande riqueza de expressão
para
cuja apre
ensão é necessário intuição, sensibilidade e
imaginação. Ambos lutam com o drama da
validação empírica de suas hipóteses, valida
ção essa tão diferente
da
encontrada nas ciên
cias chamadas exatas. E ambos têm como o
biólogo, o químico, o físico, um mundo con
creto à sua frente , a língua em sua manifes
tação oral e escrita, o antropólogo com a socie
dade com toda sua gama de manifestação
concreta em mitos, organização de família,
sistemas de trabalho, rituais, sistemas jurídi
cos etc.
colaboração seria a meu ver muito mais
profícUa se antropólogos e l i n g ü i s t p à s s a ~ s ~ m
a dialogar em termos de se conhecerem quais
as perguntas que cada campo est'á sê fázendo
_ipos de evidências empíricas
s
está
u s a n ~
_p meu convívio diário corri os antropó
logos do Museu Nacional posso dar um teste
r ~ 1 u ~ ? o dos mais animadores. Creio que tanto
lmgmstas quando antropólogos estão na mes
me fase de impasse, têm as mesmas incertezas
e a natureza de suas certezas é muito seme
lhante. Ambos procuram novos caminhos para
um melhor entendimento dos fatos estudados
e uma explicação mais profunda de sua essên
cia. Nossa posição, no momento, me parece
muito semelhante à do poeta Pedro Salinas, ao
nos descrever a sua tentativa de compreender
a essência da mulher amada. Diz-nos o poeta:
El alma tenías
tan clara y abierta,
y yo nunca pude
entrarme en tu alma.
Busqué los atajos
angostos, los pasos
altos y difíciles
A tua alma se iba
por .caminos anchos.
Preparé alta escala
- soiíaba altos muros
guardándote el alma -
pero el alma tuya
estaba sin guarda
de tapial ni cerca.
Te
busqué la puerta
estrecha del alma,
8/18/2019 Yonne Leite
13/13
1.292
pero no tenía,
de franca que era,
entradas tu
alma.
? En dónde empezaba?
? Acababa en dónde?
Me
quedé
por
siempre
sentado en las vagas
lindes de tu alma.
Se os caminhos para se atingir ao .conheci-
mento são árduos e difíceis, se como nos diz
o poeta, mal sabemos onde começa e onde
acaba, se ainda estamos apenas nos limiares
CIÊNCIA E CULTURA, 27 12), DEZEMBRO 1975
da porta,
se as
dissenções se multiplicam para
permitir que se atravesse essa porta que nos
parece tão estreita, mas que no fundo é tão
ampla
por
que seus limites
não
estão bem
definidos,
se
as
teorias
se
multiplicam num
ritmo muitas vezes quase impossível de ser se-
guido com assiduidade é um sinal da vitalidade
de nossos campos. Pois, conforme nos diz
Emmon Bach em seu artigo modelar Lingüís-
tica e filosofia da ciência no dia em que todos
nós estivermos de acordo e em que todas
as
portas de percepção tiverem sido transpostas
é porque nossa ciência estará morta.
M
N
DEP ANTROPOLOGIA
Autor:
Trtulo:
N o
Cham:
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