UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO JORNALISMO
LUIS FELIPE SILVEIRA DE ABREU
ESCREVER A VIDA:
POTÊNCIAS DE BIOGRAFEMA NO PERFIL JORNALÍSTICO
Porto Alegre
2015
LUIS FELIPE SILVEIRA DE ABREU
ESCREVER A VIDA:
POTÊNCIAS DE BIOGRAFEMA NO PERFIL JORNALÍSTICO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação Social – Habilitação Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Rocha da Silva
Coorientação: André Corrêa da Silva de Araujo
Porto Alegre
2015
Eu odeio o jornalismo. Não estou interessado em
jornalismo. Não estou interessado em informações,
mapas, em filme militante, em filme político. Deus
me livre. Aquecimento global, liberar maconha. Não
estou interessado em filmes políticos, sociais,
genéricos. Nada que é genérico me interessa. Quero
saber das pessoas que eu filmo, só.
Eduardo Coutinho
RESUMO
Este trabalho discute a questão da escrita biográfica no âmbito do perfil jornalístico, investigando
as relações possíveis com a ideia de biografema. Parte-se de uma revisão bibliográfica do gênero,
que discute sua constituição formal e afirma a importância do uso do detalhe descritivo nesses
textos. A partir daí propõe-se um percurso teórico pela obra de Roland Barthes, relacionando
conceitos criados por ele que iluminam as questões do detalhe e da escrita da vida: fait divers,
efeito de real, punctum e biografema. Essas perspectivas imbricam-se na análise empírica, que
dedica-se a verificar a existência desses conceitos em potência no corpus, constituído por seis
perfis escritos por João Moreira Salles para a revista piauí.
PALAVRAS-CHAVE: perfil jornalístico; escrita biográfica; biografema; Roland Barthes; João
Moreira Salles
ABSTRACT
This work discusses the issue of biographical writing under the journalistic profile, investigating
possible relationships with the idea of biographeme. The research begins with a literature review
of the genre, which discusses its formal constitution and affirms the importance of the use of
descriptive detail in these texts. From there it is proposed a theoretical route by the work of
Roland Barthes, relating concepts created by him that illuminate the issues of detail and life
writing: fait divers, real effect, punctum and biographem. These perspectives overlap in the
empirical analysis, which is dedicated to verify the existence of these concepts in potency in the
corpus, composed of six profiles feature articles written by João Moreira Salles to the piauí
magazine.
KEYWORDS: journalistic profile; biographical writing; biographeme; Roland Barthes; João
Moreira Salles
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 7
2 VIDA EM TEXTO: O PERFIL JORNALÍSTICO ................................................................ 11
2.1 Escrever o outro: o perfil jornalístico .................................................................................. 11
2.1.1 Definição .............................................................................................................................. 11
2.1.2 Historiografia ....................................................................................................................... 13
2.1.3 Questões formais .................................................................................................................. 16
2.2 A escrita biográfica ................................................................................................................ 19
2.2.2 (Im)Possibilidades ................................................................................................................ 21
3 DO FAIT DIVERS AO BIOGRAFEMA: ESCRITA DA VIDA E POÉTICA DO
DETALHE EM ROLAND BARTHES ...................................................................................... 26
3.1 O Texto ................................................................................................................................... 27
3.2 O fait divers e a vida no texto jornalístico ............................................................................ 29
3.3 Do efeito de real ao punctum: potências do detalhe ............................................................ 32
3.4 O biografema na apreensão do sujeito ................................................................................ 35
3.5 Do fait divers ao biografema ................................................................................................. 38
4 POTÊNCIAS DO DETALHE NO PERFIL JORNALÍSTICO ............................................ 40
4.1 Entre o perfil e o biografema ................................................................................................ 41
4.2 Metodologia ............................................................................................................................ 44
4.2.1 Corpus .................................................................................................................................. 44
4.2.1.1 A revista ............................................................................................................................. 45
4.2.1.2 Os perfis segundo João Moreira Salles.............................................................................. 45
4.2.1.2.1 Os matemáticos .............................................................................................................. 47
4.2.1.2.2 O presidente .................................................................................................................... 48
4.2.1.2.3 O jornalista ..................................................................................................................... 48
4.2.1.2.4 O caseiro ......................................................................................................................... 49
4.2.2 Cortar o Texto: as lexias ...................................................................................................... 49
4.3 Séries de lexias: o detalhe no perfil jornalístico .................................................................. 51
4.3.1 Cabelos selvagens: o detalhe enquanto fait divers .............................................................. 51
4.3.2 Vascaínos: detalhes biográficos ........................................................................................... 55
4.3.3 Cinco cuecas: o detalhe enquanto símbolo .......................................................................... 60
4.3.4 Garrafas de leite: o detalhe biografemático ........................................................................ 63
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 69
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 73
7
1 INTRODUÇÃO
“Que chance teria o mais hábil dos biógrafos contra o biografado que o visse chegando e
decidisse divertir-se?” (BARNES, 1988, p. 42).
Esta questão surge no começo do romance O papagaio de Flaubert (BARNES, 1988), do
britânico Julian Barnes, estabelecendo-se como o fantasma que assombrará o decorrer da trama.
O livro tem início quando um velho aposentado, entusiasta da obra de Gustave Flaubert, visita
dois diferentes museus dedicados à memória do romancista francês, na Normandia. Em cada um
deles é exibido um papagaio empalhado, que as curadorias informam ser a ave que acompanhou
o escritor durante a composição da novela Um coração simples (FLAUBERT, 2004). “Mas
como?”, pergunta-se o personagem. Um dos papagaios - se não ambos - tem de ser falso.
A partir desta percepção de como é fácil e corriqueiro atribuirmos fatos e objetos ilusórios
à memória daqueles que buscamos lembrar e retratar, o romance questiona a validade das
empreitadas biográficas, definidas como “uma coleção de furos, amarrada com um barbante”
(BARNES, 1988, p. 42). O livro transforma-se ele mesmo em uma biografia iconoclasta de
Flaubert, descartando apresentar uma única narrativa de vida em detrimento de uma construção
plural, que lança mão de materiais de escrita pouco ortodoxos: uma lista dos animais de
estimação possuídos pelo escritor ao longo de seus 58 anos, uma análise dos esboços de
romances nunca concretizados, uma ficcionalização das cartas enviadas por uma de suas amantes,
etc.
Questionamento semelhante deu origem ao presente trabalho. Não nos deparamos com
nenhum papagaio indutor de epifanias, mas partimos de um ponto de vista parecido: como se
escreve uma vida? É possível reduzir uma existência a um texto? Se é, o que se perde neste
processo? Se não, o que resulta deste fracasso? São dúvidas antigas na literatura, bem
exemplificadas por Paul Valéry (2003). Em seu livro sobre o pintor impressionista Edgar Degas -
outro dos textos que deram origem à nossa inquietação - o poeta esclarece não estar biografando
(ainda que opte por não descartar de todo o rótulo):
Não se trata de uma biografia segundo as regras; não tenho uma opinião muito boa das
biografias, o que prova apenas que não fui feito para escrevê-las. De todo modo, a vida
de alguém não passa de uma sequência de acasos, e de respostas mais ou menos exatas
a acontecimentos casuais (VALÉRY, 2003, p. 17).
8
Que são esses acasos, acontecimentos casuais? Como um gênero dedicado
exclusivamente à sua captura pode grassar, mesmo exercendo uma tarefa tão atravessada de
tensionamentos?
Aqui entra em cena o jornalismo, também condenado à escrita dos acontecimentos
fugazes da vida cotidiana. Dedicaremos e direcionaremos nossa reflexão ao perfil, gênero do
jornalismo exclusivamente dedicado à problemática da escrita do outro. Perfilar é escrever um
sujeito, e tal atividade configura-se como centro da atividade jornalística, conforme apontam
nomes como Tom Wolfe (2005) e Edvaldo Pereira Lima (2002). Devido a esta força, o perfil
assumiu protagonismo no fazer jornalístico a partir do século XX, ainda que tal proeminência
não tenha se traduzido em interesse acadêmico. Há poucas pesquisas realizadas a respeito (uma
busca no Banco de Teses da Capes, por exemplo, não revela mais de uma dúzia de trabalhos), e
as investigações restringem-se aos aspectos históricos ou aos problemas formais, não
defrontando-se com as implicações biográficas deste fazer. Situação complexa, já que
compreender os modos como o texto defronta-se com as (im)possibilidades de retratar o outro
parece-nos um importante passo para uma atuação mais consciente da atividade jornalística,
capaz de perceber as armadilhas que as particularidades da linguagem e da escrita impõem a
esse fazer.
Deste modo, somou-se a essa vontade de aprofundar os estudos a respeito do perfil e da
escrita da vida a proposta de tomar o texto jornalístico como escritura1. Com base nos trabalhos
do crítico e semiólogo Roland Barthes, nos dispomos a tensionar o perfil jornalístico sob o
conceito de biografema: biografias mínimas, formadas por fatos comezinhos, gostos e
impressões breves. Barthes cria o conceito justamente por deparar-se com o dilema acima
exposto: o faz no livro Sade, Fourier, Loyola (2005), quando propõe-se a escrever sobre três
filósofos, mas percebe que a escritura rejeita servir de instrumento à representação de sujeito. O
jeito é atacar pelas margens, retratar um sujeito que não o é, biografar mais o afeto sentido do
que o agente que o causa.
1 O uso do termo “escritura” é corrente em traduções e textos sobre Barthes e outros integrantes do estruturalismo e
pós-estruturalismo francês, ainda que não seja muito utilizado na língua portuguesa para fazer referência a textos.
Leyla Perrone-Moyisés (1998) explica que o termo é uma tradução mais próxima do original francês écriture,
referindo-se à escrita potente, praticada pelo escritor. Perrone-Moisés (1998, p. 78) afirma que “toda escritura é
portanto uma escrita; mas nem toda escrita é uma escritura, no sentido barthesiano do termo”, o que valida o uso da
palavra como método de diferenciação entre tais instâncias textuais.
9
Deste modo, além da questão biográfica, une perfil e biografema a questão do detalhe
descritivo. Assumida como característica essencial da escrita jornalística por autores como Vilas
Boas (2003) e Wolfe (2005), a caracterização de personagens através de pequenas notações
físicas e/ou psicológicas pode ser encarada como uma forma de dar concretude ao relato, e esta
visão é problematizada pelo trabalho de Barthes. O biografema é, vale lembrar, uma questão de
estratégia, conforme aponta Costa (2010), um modo de subverter as contingências biográficas.
A partir dessas leituras e de outras, as planejadas e também as inesperadas que o processo
de pesquisa impõe, chegou-se a problemas e objetivos que visam observar as relações detectáveis
entre perfil e biografema. Tendo em vista as dificuldades que a escrita biográfica apresenta, como
o perfil estrutura-se? Como o conceito de biografema auxilia a compreender esta estrutura? Quais
potências movimentam-se neste processo de estrutura? Que funções possuem os detalhes
narrativos neste cenário?
Para acercamo-nos destas interrogações, o trabalho dividiu-se em três capítulos teóricos:
Na primeira parte, intitulado Vida em texto: O perfil jornalístico, abordamos frontalmente
a questão do perfil, para melhor compreender esta materialidade que será problematizada ao
longo da monografia. Através de uma revisão bibliográfica, busca-se conceituar o que constitui o
gênero, qual foi seu desenvolvimento histórico e as questões formais envolvidas em sua
produção. A partir destas últimas características, chega-se à filiação do perfil à biografia, cujas
teorias auxiliam-nos a ter uma visão mais ampla a respeito dos percalços da escrita da vida.
Apresentamos uma breve linha do tempo da publicação de biografias e de sua fortuna crítica,
destacando as principais teorias sobre o gênero.
Aparecem aí visões clássicas e muitas vezes opostas a respeito da escrita biográfica, como
as de Pierre Bourdieu (1996) e Marcel Schwob (1997). Tais autores contribuem de forma
determinante neste primeiro momento, mas compõem uma reflexão inicial. Esta expande-se a
partir do estudo das obras de Roland Barthes, o que ocorre no segundo capítulo, Do fait divers ao
biografema: Escrita da vida e poética do detalhe em Roland Barthes. O texto propõe um
percurso teórico entre diversos conceitos do semiólogo francês: parte-se do fait divers,
instrumento de crítica ideológica à escrita jornalística, e chega-se ao biografema, passando pelas
ideias de punctum e efeito do real como reguladoras da presença do detalhe e do afeto na
escritura. Com isto, busca-se compreender que formas a escrita biográfica assume e quais as
10
potências que a perpassam, permitindo seu desenvolvimento para além da imobilidade professada
pela dúvida: “É mesmo possível escrever uma vida?”.
Por fim, o capítulo de análise do corpus propõe-se como uma crítica ao perfil, nos termos
de Barthes, que estabelece a crítica como um metadiscurso: texto que tem por objetivo debruçar-
se sobre a obra objeto, desmontando-a para observar as relações e sentidos ali instaurados. Para
realizar tal procedimento, selecionamos os seis perfis publicados por João Moreira Salles na
revista piauí2 de 2006 a 2014: textos abordando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o
repórter esportivo Paulo Vinícius Coelho, o caseiro Francenildo Santos Costa e os matemáticos
Artur Ávila e Fernando Codá Marques. As reportagens foram fracionadas em lexias, como
proposto por Barthes (2002), unidades de extensão arbitrária (parágrafos inteiros, trechos, frases
soltas, etc.) e selecionadas de modo a melhor observar os sentidos que constituem o texto: aqui,
no caso, escolheram-se trechos onde houvesse presença do detalhe narrativo. Após, as passagens
foram reunidas em quatro grupos, de acordo com sua função, diferenciadas tendo em mente os
conceitos de Barthes: detalhes de faits divers, detalhes biográficos, detalhes simbólicos e detalhes
biografemáticos.
Procedamos aos nossos papagaios, portanto.
2 O nome da revista é utilizado desta maneira pelo veículo, com a primeira letra em minúscula. Neste trabalho,
optou-se por manter a grafia original.
11
2 VIDA EM TEXTO: O PERFIL JORNALÍSTICO
O estudo do perfil jornalístico é o estudo de uma carência teórica3. A despeito de ser
apontado por nomes como Tom Wolfe (1984) e Edvaldo Pereira Lima (2002) como um dos
gêneros mais importantes e promissores do jornalismo moderno, o perfil encontra-se pouco
estudado. São poucos os esforços que visam sua conceituação e compreensão, fato que podemos
atribuir à sua relativa juventude - ainda que suas origens sejam de difícil rastreio, autores como
Vilas Boas (2003) e Weinberg (1992) apontam as décadas de 1920 e 1930 como ponto de partida
para a popularização do gênero. Neste capítulo propomos uma sistematização desses esforços de
pesquisa a respeito do perfil, realizando uma revisão bibliográfica que busca construir uma
historiografia e uma definição do gênero.
A partir disto, tendo em vista que o perfil calca-se na apreensão textual de um indivíduo,
apresentaremos elementos da teoria biográfica. Como veremos a seguir, a ligação entre perfis
jornalísticos e biografias é direta. Sendo esta última um gênero mais antigo e estabelecido, as
discussões sobre sua constituição nos valerão para suprir a já mencionada carência conceitual
suscitada pelo tema do capítulo. A partir disto, será possível apresentar perspectivas teóricas que
lidam de forma mais direta com os problemas constitutivos da escrita biográfica, seus objetivos e
percalços, em muito análogos aos do perfil.
2.1 Escrever o outro: o perfil jornalístico
2.1.1 Definição
Um dos primeiros esforços de conceituação do gênero parte de Sodré e Ferrari (1986, p.
126) em seus estudos sobre o texto da reportagem impressa. Para os autores, “perfil significa
enfoque na pessoa - seja uma celebridade, seja um tipo popular, mas sempre o focalizado é
protagonista de uma história: sua própria vida” (p. 126). O texto do perfil é um tipo especial de
narrativa, que constrói-se sobre o relato de atos e ideias da personagem em questão. Esta
3 No Brasil, o único livro dedicado exclusivamente ao gênero é Perfis e como escrevê-los (VILAS BOAS, 2003). O
tema aparece de forma tangencial em Sodré e Ferrari (1986), Kotscho (1986) e Vilas Boas (2002), mas como algo já
dado, sem que se problematize seu estatuto. Academicamente, a busca pelo termo direciona de forma recorrente às
pesquisas de Edvaldo Pereira Lima (2002), Amanda Tenório Pontes da Silva (2009, 2010), e a algumas teses
esparsas que utilizam o perfil como ferramenta e não como fim, a exemplo de Elman (2008).
12
característica o torna muito próximo de gêneros textuais como a história de vida, nos campos da
Sociologia e da Antropologia, e como a biografia, nos domínios da Literatura e da História -
Weinberg (1992), inclusive, irá se referir aos perfis como “short-term biographies”, biografias de
curta duração. Para Sodré e Ferrari, o perfil destaca-se dos demais gêneros da reportagem por eles
citados por considerarem-no o tipo de texto que mais aposta no sujeito enquanto objeto da
reportagem. O enfoque humanístico e a abordagem muitas vezes confessional conferem às
matérias não apenas um diferencial estilístico: se “a humanização do relato, pois, é tanto maior
quanto mais passa pelo caráter impressionista do narrador” (SODRÉ e FERRARI, 1986, p. 15), a
carga informacional aumenta na mesma medida. Seria, então, o perfil o gênero com mais
potência de contato com leitor.
Na esteira deste trabalho, surgem outras definições teóricas que compõem com esta
caracterização. Para Edvaldo Pereira Lima (2002, n.p.), por exemplo, “perfil [é] matéria de
caráter biográfico que retrata concisamente momentos de uma vida, através de entrevistas,
descrições, narrações de episódios marcantes”. Seria, portanto, um jornalismo que mira sua visão
mais nos atores do que na peça, preferindo focalizar os sujeitos dos fatos (mas vale notar que essa
operação não é excludente: muitas vezes a escolha do personagem a ser perfilado origina-se de
sua ligação com algum acontecimento da hora).
A ocorrência do termo “vida” nas duas definições observadas ressalta este forte caráter
subjetivo dos perfis. Ao transformar o outro em pauta, as matérias acabam por ter uma relação
com a alteridade muito particular, tornando-se o “filão mais rico das matérias chamadas
humanas” (KOTSCHO, 1995, p. 42). Sobre isto, escreve Vilas Boas (2003, p. 14):
Os perfis cumprem um papel importante que é exatamente gerar empatias. Empatia é a
preocupação com a experiência dos outros, a tendência a tentar sentir o que sentiria se
estivesse nas mesmas situações e circunstâncias experimentadas pelo personagem.
Significa compartilhar as alegrias e tristezas de seu semelhante, imaginar situação do
ponto de vista do interlocutor. Acredito que a empatia também facilita o
autoconhecimento (de quem escreve e de quem lê).
Ainda de acordo com o autor, os perfis movimentam sentidos a partir da observação dos
personagens enfocados. Vilas Boas frequentemente incorre em comparações entre o perfil e a
fotografia, chegando a chamar o gênero de “retrato”, em relação com o portrait fotográfico. Para
ele: “Enquanto os portraits expressam, necessariamente, uma fisionomia, por mais tosca, os
perfis jornalísticos expressam uma trajetória, por mais sintética” (p. 19).
13
2.1.2 Historiografia
Tais conceituações não são impositivas: normas transcendentes que definem o que o perfil
deve ser. Sua formulação advém de estudos sobre o desenvolvimento histórico e social do
formato, o que permite perceber quais traços são intrínsecos ao perfil e repetem-se ao longo de
sua história de publicação. Vilas Boas (2003) e Weinberg (1992) realizam este trabalho de
memória e permitem-nos aqui apresentar uma concisa linha do tempo do gênero, que nos
permitirá compreender com mais clareza as implicações de sua definição.
Ainda que tenha se desenvolvido junto aos demais gêneros jornalísticos e possa ser
observado em publicações de até dois séculos atrás, o perfil ganhou proeminência e regularidade
de publicação apenas a partir da década de 1930. Weinberg (1992) atribui essa popularização a
dois repórteres, cujos trabalhos servem de matriz estilística e conceitual para o desenvolvimento
posterior do gênero: Joseph Mitchell e Lincoln Barnett. Após sua contratação, em 1938, Mitchell
foi o responsável por tornar a revista The New Yorker, fundada 13 anos antes, em uma referência
na edição de perfis. Seu trabalho buscava retratar o dia a dia e a personalidade de figuras
marginais: escreveu sobre os estivadores, os índios moicanos cooptados para trabalharem na
indústria de aço, os trabalhadores do mercado de peixes de Manhattan, entre outros. Já na década
de 1960, Mitchell publicaria um livro paradigmático para o gênero: O segredo de Joe Gould
(MITCHELL, 2003), que retomava um perfil escrito por ele em 1942, sobre um mendigo nova-
iorquino de pendores literários.
Já Barnett começou a trabalhar na revista Life em 1937, e logo também passou a chamar
atenção por seus perfis. Ao contrário de Mitchell, porém, preferia tomar como objeto indivíduos
de destaque na sociedade de Nova York. Celebridades, ricaços e demais figuras da alta roda eram
explorados por suas reportagens - dezesseis delas seriam posteriormente reunidas por Barnett no
livro Writing on life: Sixteen close-up, de 1951.
Este desenvolvimento inicial lançou as bases não apenas da estética e da ética do perfil,
mas também delimitou seu espaço de publicação: o gênero é visto quase que exclusivamente em
revistas, em especial naquelas de periodicidade mensal, à maneira das já citadas Life e The New
Yorker. Outros veículos nestes moldes, como a Esquire e a Harper’s cimentaram esta tradição ao
longo das décadas seguintes, entre 1950 e 1970, período tido como o mais fértil para o
desenvolvimento e destaque das matérias de viés humanista. Vilas Boas (2003, p. 22) descreve o
espírito da época e a mentalidade que guiava essa produção:
14
O importante era a pessoa (...) Esperava-se que a matéria lançasse luzes sobre o
comportamento, os valores, a visão de mundo e os episódios da história das pessoas,
para que suas ações pudessem ser compreendidas num contexto maior que o de uma
simples notícia descartável
Tal concepção seguiu sendo tomada como norte da produção de perfis jornalísticos até os
anos 1960. A década viu o surgimento de um novo tipo de redação jornalística nos Estados
Unidos, em uma tendência que ficou conhecida como Novo Jornalismo. O termo referia-se a
extensas reportagens, escritas utilizando técnicas próprias da ficção, tais como uso de pontos de
vista e fluxo de consciência. Um dos expoentes do movimento e principal responsável por sua
formulação conceitual e crítica, Tom Wolfe (2005) aponta uma matéria de Gay Talese como o
texto que primeiramente apontou para as possibilidades abertas pelo estilo: o perfil do boxeador
Joe Louis, publicado pela Esquire em 1962. Lima (2002) e Weinberg (1992) destacam o trabalho
posterior de Talese como paradigmas para o gênero. A reportagem Frank Sinatra está resfriado,
capa da Esquire em 1966, é considerada pelos autores como peça exemplar daquilo que passou a
caracterizar perfis: “É um típico perfil dos tempos em que o jornalismo era enriquecido com
recursos da literatura de ficção” (VILAS BOAS, 2003, p. 27).
No Brasil, em época análoga, o perfil também ganha prestígio nas revistas jornalísticas,
como a Manchete e, sobretudo, a Realidade. Esta última, atenta Vilas Boas (2003), apresentava o
estado da arte do gênero, ajudando a moldar os princípios do perfil a partir de textos de repórteres
como José Hamilton Ribeiro, Luiz Fernando Mercadante e Roberto Freire. Instados a “conduzir
diálogos verdadeiramente interativos a fim de humanizar ao máximo a matéria” (VILAS BOAS,
2003, p. 25), os textos abordavam de celebridades como Roberto Carlos até anônimos soldados
na Guerra do Vietnã. Mais recentemente, a tradição do perfil parece ter perdido parte de sua
força, abandonando a condição de protagonismo na reportagem impressa. Ainda assim,
determinados esforços individuais ainda permitem a circulação de reportagens do gênero. Nos
EUA, Weinberg (1992) destaca o trabalho de Walt Harrington, do jornal Washington Post, e de
Madeleine Blais, do Miami Herald. Seu texto, porém, é datado. Após sua publicação, na década
de 1990, outros repórteres notabilizaram-se pela produção de matérias focadas em personagens.
Entre os mais bem sucedidos encontra-se David Remnick, editor-chefe da The New Yorker desde
1998. Na tradição da revista que comanda, Remnick se notabilizou por seus perfis das mais
variadas figuras, escrevendo sobre personagens como Mike Tyson, Tony Blair e Philip Roth -
alguns de seus textos foram reunidos na coletânea Dentro da floresta (REMNICK, 2006).
15
No Brasil, o vácuo pós-fim da Realidade, encerrada em 1976, não chegou a ser
preenchido por nenhum veículo em particular até 2006, com a criação da piauí, como aponta
Werneck (2010). A revista, criada aos moldes da New Yorker, “queria oferecer ao leitor, todos os
meses, matérias alentadas, cuja leitura, à prova de turbulências, exige mais do que os quarenta
minutos de um voo na ponte aérea Rio-São Paulo” (WERNECK, 2010, p. 292). Os textos longos
e apurados ao longo de meses dão possibilidades aos perfis florescerem: a revista paulista
especializou-se em perfis de personagens vultuosos do cenário nacional na atualidade, como os
políticos Dilma Rousseff, Marina Silva e Fernando Henrique Cardoso. Em seu “Editorial da
Edição 0”, um folheto que circulou entre assinantes de revistas da Abril quando do lançamento da
Piauí, já anunciava-se esta pretensão de apresentar matérias de cunho humanístico com
frequência:
piauí será uma revista para quem gosta de ler. Para quem gosta de histórias com começo,
meio e fim. Como não se inventou nada melhor do que gente (apesar de inúmeras
exceções, vide... deixa pra lá), a revista contará histórias de pessoas. De mulheres e
homens de verdade. Ela pretende relatar como pessoas vivem, amam e trabalham,
sofrem ou se divertem, como enfrentam problemas e como sonham. piauí partirá sempre
da vida concreta (PIAUÍ, 2006, n.p.)
Jornalistas como João Moreira Salles, Consuelo Dieguez, Daniela Pinheiro e Luiz
Maklouf Carvalho representam a linha de frente da produção do gênero no veículo: os quatro são
autores dos textos reunidos na única coletânea de perfis da piauí editada até hoje, Vultos da
República (WERNECK, 2010). Cabe aqui destacar Moreira Salles, cujos perfis publicados na
piauí constituirão o corpus do presente trabalho. Fundador da revista, um de seus principais
ideólogos e porta-voz mais ativo, o repórter (e previamente documentarista4) sintetiza em seus
trabalhos a linha editorial acima exposta, dedicando-se a matérias longas e complexas, enfocando
tanto figuras de destaque do cenário nacional (como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso)
quanto indivíduos desconhecidos das manchetes (o matemático Fernando Codá Marques, por
exemplo).
4 Não parece-nos desprezível constatar que na filmografia de Salles há três longas realizados em chave de “perfil
audiovisual”: Nelson Freire, de 2002, é um filme biográfico sobre a vida e a carreira do pianista; Entreatos, de 2004,
cola sua câmera em Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhando-o nos bastidores de sua campanha (vitoriosa) à
Presidência da República, em 2002; já Santiago, de 2007, relembra o mordomo argentino que serviu à família Salles
por décadas, buscando compreender a complexidade de sua vida pessoal, oculta na rotina de trabalho.
16
2.1.3 Questões formais
Tendo delineado os contornos e a trajetória do perfil, evidenciando onde ele distancia-se
dos demais gêneros da reportagem e constitui-se enquanto um corpo singular merecedor de
estudo próprio, podemos proceder à reflexão de questões mais específicas do gênero, entre as
quais aquela apontada como foco do presente trabalho: o uso do detalhe descritivo na composição
narrativa de textos de não ficção jornalísticos.
De início, faz-se necessário revisar a concepção narrativa do perfil de forma geral. De
acordo com Sodré e Ferrari (1986), ele pode dividir-se em três formas distintas: a transcrição
literal da entrevista com a fonte, formato conhecido como ping-pong no jargão jornalístico; um
texto em discurso indireto, enunciado pelo repórter e contendo somente a voz deste, com
impressões do encontro com a personagem em questão; e uma espécie de híbrido destas duas
formas, com a narração mesclando as percepções do jornalista (ainda que ela não se apresente em
primeira pessoa) com as falas do enfocado. Assim como Werneck (2010) e Vilas Boas (2003),
não consideraremos entrevistas enquanto perfis, por dispensarem a construção narrativa e
constituírem um gênero outro. Já o segundo tipo apontando pelos autores é menos comum, e
também não nos parece adequado à nomenclatura de perfil5. Ater-nos-emos, portanto, ao formato
terceiro: uma reportagem em texto corrido, contendo descrições, transcrições de diálogos e, por
vezes, apartes reflexivos.
Sobre este último modelo, Sodré e Ferrari (1986) escrevem: “Trazendo a experiência para
o presente, o texto intensifica a impressão de realidade, ao mesmo tempo em que compartilha
com o leitor a descoberta do caráter do entrevistado” (p. 131). Realizando semelhante esforço de
categorização, mas trabalhando no nível do conteúdo, Kotscho (1995) distingue algumas
abordagens diferentes sobre o perfil. Há o tipo mais comum, textos que buscam lançar luz sobre
alguma celebridade. Outra vertente, contrária a esta, diz respeito a perfis de figuras
desconhecidas do grande público, que se tornam pauta por alguma peculiaridade. (Essa dicotomia
é observável historicamente, como abordamos anteriormente, ao tratar dos trabalhos de Lincoln
Berrett e Joseph Campbell). O autor também destaca os perfis póstumos, análogos aos obituários,
e os perfis que surgem em meio a uma reportagem maior, devido ao destaque de algum indivíduo
5 Este estilo de texto é mais comum em reportagens produzidas à guisa de elegia, quando o jornalista relembra uma
fonte recentemente falecida que por ela foi perfilada. Um exemplo é a matéria Meus voos com Campos, publicada
pela Piauí quando da morte do político Eduardo Campos. Disponível <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-
94/despedida/meus-voos-com-campos>. Acesso em 9 mar. 2015.
17
nos fatos da narrativa. Este último tipo também é lembrado pro Sodré e Ferrari (1986), sob o
nome de miniperfil: “(...) os personagens são secundários: o relato é interrompido para dar lugar a
um enfoque rápido sobre eles, sob forma narrativa ou de curta entrevista” (p. 139).
Em todas essas abordagens destaca-se o uso do detalhe enquanto ferramenta narrativa. A
importância do elemento descritivo é uma espécie de mantra das reflexões sobre o estilo
jornalístico. Wolfe (2005) cita o registro de gestos, hábitos, gostos e estilos, além de demais
miudezas, como um dos pilares da escrita não-ficcional do Novo Jornalismo6. Para o escritor (p.
55), a catalogação destes elementos cotidianos e sua justaposição, na reportagem, com fatos de
maior impacto são “simbólicos, em geral, do status de vida das pessoas (...) (do) padrão de
comportamento e poses por meio do qual a pessoa expressa sua posição no mundo” (grifo do
autor)”. Tal recurso estético passaria a ser considerado de vital importância para a reportagem
impressa, como considera Lima (2005). O autor assim define os elementos descritivos do texto
jornalístico:
A descrição é como um corte na dinâmica narrativa. Em lugar de focar a ação,
interrompe-a momentaneamente para ilustrar características físicas e particulares de
pessoas, ambientes e objetos. Serve ao propósito de iluminar os personagens de um
acontecimento, o lugar onde se dá, os artefatos ali presentes (LIMA, 2005, n.p.)
Se representa um importante elemento comunicativo na reportagem, de modo geral, o
registro de detalhes que compõem cenas e destacam a aparência e/ou personalidade das
personagens adquire dimensão ainda maior dentro do perfil jornalístico. Nas matérias do gênero,
a profusão de trechos descritivos é mais perceptível e assume protagonismo - se Lima (2005)
recomenda seu uso para dinamizar a narrativa, o perfil torna estas passagens a própria tônica do
texto. Tomemos como exemplo a já citada coletânea Vultos da República. Ao comentar os perfis
nela presentes, Werneck (2010) atenta para sua capacidade de observação. Se aborda figuras de
larga inserção midiática, como José Dirceu, estas reportagens fazem-no a partir do realce de
pequenos elementos que escapam ao estereótipo da imagem pública. No caso de Dirceu, o caso é
sua vaidade, com a descrição de sua nécessaire de cosméticos; já na matéria sobre José Serra,
descreve-se o político ainda jovem, quando era tido pelos amigos como um galã afeito a
conquistar suas pretendentes cantando Nat King Cole. Tais elementos seriam, segundo Werneck
(2010), a principal característica do perfil, responsável pela imersão do leitor no universo das
6 O autor nomeia quatro recursos chave para o estilo. Para além do uso dos detalhes descritivos, exalta o uso de uma
construção cena a cena; a reprodução de diálogos na íntegra; e a transição entre pontos de vistas, com o objetivo de
introduzir a voz de diversos personagens.
18
figuras abordadas. A reflexão de Vilas Boas (2003) segue no mesmo sentido, aprofundando a
reflexão. Para ele, o perfil vale-se, mais do que qualquer outro texto jornalístico, do poder de
observação do repórter e sua capacidade de transformar estes elementos não-verbais em texto. O
recurso, para ele, é utilizado de forma a exprimir de forma mais acurada e completa o sujeito
sobre o qual escreve-se:
O fato de os atos e as reações de uma personagem deixarem transparecer, ainda que de
maneira fluida, as suas características, tem uma enorme importância na estruturação de
um perfil. É a possibilidade de descrever uma pessoa contando o que ela faz e como faz,
permitindo a incorporação num texto descritivo de trechos narrativos. São recursos
consideráveis (VILAS BOAS, 2003, p. 29)
A deflagrada presença deste elemento estilístico no perfil, especificamente, e na
reportagem, de forma geral, derivaria da tradição literária realista, em especial a que decorre do
trabalho de Honoré de Balzac. Wolfe (2005) retoma uma cena do romance A prima Bette
(BALZAC, 1952), em que Balzac descreve a mobília de um cômodo. Sem usar um único adjetivo
endereçado aos donos do quarto, o romancista os descreve com precisão, afirma Wolfe (2005, p.
56), através do uso de detalhes como o estofamento dos móveis:
Balzac vai empilhando esses detalhes tão impiedosamente e, ao mesmo tempo, tão
meticulosamente (...) que dispara as lembranças que o leitor possui seu próprio status de
vida, suas ambições, insegurança, prazeres, desastres mais as mil e uma pequenas
humilhações e coups do status na vida cotidiana (...)
É o tipo de construção para qual o crítico literário James Wood (2012) chama atenção,
abordando a mesma tradição realista que Wolfe, citando também Balzac, mas também o
romancista Gustav Flaubert e o contista Anton Tchekov. Para ele, o uso dos detalhes, da forma
como se dá nestes trabalhos, confere estidade ao texto: “Por estidade entendo qualquer detalhe
que atrai para si a abstração e parece matá-la com um sopro de tangibilidade” (WOOD, 2012, p.
65). Esta tangibilidade faz-se necessária na medida em que o texto aspira à representação realista:
é preciso que a abstração própria do texto seja ancorada no real pela concretude do detalhe.
O perfil é um texto de objeto fugidio. A ideia de retrato escancara esta questão: é um
produto estático que visa a captura de uma figura móvel. É uma situação até mais instável que a
da fotografia, por resultar não de um clique maquínico, mas de uma longa construção narrativa:
“Mais, o perfilado não é exatamente um modelo em pose. Sua imagem não pode ser pretendida,
portanto, e talvez nem se consiga que ela seja plenamente natural ou espontânea” (VILAS BOAS,
p. 19). A construção do indivíduo neste tipo de matéria é, portanto, indicial – o que há de
19
verdadeiramente humano no relato, a empatia acima descrita, está em determinados detalhes, não
ao cabo do texto. Os perfis atuam como biografias suspensas em processo: sintetizam os dados da
vida, focalizando em episódios específicos, congelando somente uma fração do tempo. “O que
importa, na verdade, assim como no cotidiano, é o momento, o instante. Ou seja, como ele [o
perfil] lê a sua vida a partir do atual” (SILVA, 2010, p. 411).
A problemática do perfil é, como observamos, escrever o outro. Mais que os dados e os
fatos, as opiniões e as estatísticas, interessa-o escrever aqueles que movimentam estas
circunstância. Esta escrita, porém, é constrangida por contingências das mais variadas ordens. Há
questões do próprio jornalismo, cuja relação com a alteridade é historicamente ruidosa - os
encontros com o outro ocorrem, se tanto, nas brechas do discurso, para usarmos o termo de
Fernando Resende (2009). Concomitante a este problema, a escrita do outro defronta-se com as
dificuldades impostas pelo meio da mensagem, a narrativa escrita. Trata-se de traduzir a vida
para os termos do texto. O esforço hercúleo desta tarefa e o atrito aí perceptível nos levam a
questionar a possibilidade de tal empreitada. O perfil assume-se enquanto escrita da vida, relato
dos fatos de uma existência, e os recursos formais que apontamos como constitutivos do gênero
são menos malabarismos estéticos do que estratégias de enfrentamento deste problema: Como
irei escrever uma vida?
2.2 A escrita biográfica
De modo não a responder esta pergunta, mas a compreender como ela se forma e de que
modos ela vem sendo enfrentada na narrativa de não-ficção biográfica, parece-nos necessário
ampliar a discussão para além dos campos do perfil e do jornalismo propriamente ditos. A partir
de uma visão mais ampla, tentaremos melhor assimilar estas particularidades. Dada a conclusão
de que o perfil é um texto de ordem biográfica e de que esta pretensão ordena sua narrativa,
apresentaremos aqui teorias que abordam a biografia7. Sendo um gênero mais antigo e
estabelecido, a bibliografia a respeito é mais extensa e complexa, abordando questões de fundo
mais reflexivo, em dissonância com o “tom de manual” que perpassa os escritos sobre o perfil.
7 Ainda que existam trabalhos discutindo a respeito desta relação entre biografia e jornalismo, as razões e as
particularidades deste intercâmbio não serão problematizadas aqui. Partimos do ponto pacífico de que há pontos de
contato entre as áreas e o estudo de uma é fértil para a análise da outra, perspectiva permitida pelas leituras de
Weinberg (1992), Vilas Boas (2002, 2003) e Dosse (2009).
20
Para melhor compreender como a prática de escrever o outro surge e perdura ao longo da
história da literatura, faz-se necessário aqui um breve resgate histórico. Os trabalhos mais
frequentemente apontados como fundadores do gênero são os escritos do ensaísta e filósofo grego
Plutarco (46 - 120) (WEINBERG, 1992; DOSSE, 2009). Seus textos - reunidos no volume Vidas
paralelas (1991), de publicação original estimada entre os anos 96 e 98, destinavam-se a
relatarem os feitos e as trajetórias de grandes figuras Greco-Romanas como Temístocles, Cícero e
Marco Antônio.
O volume é sintomático para compreensão sobre qual modalidade textual foi apontada
como biografia nos séculos inicias desta atividade de escrita, no período que Dosse (2009) chama
de Idade Heróica da produção biográfica. Os textos tratavam indivíduos apenas pretensamente:
seu foco não era o sujeito, mas sim seu papel social, as posições que ocupou e os feitos por ele
realizados. Uma biografia de Alexandre, o Grande, por exemplo, não trataria de suas relações
interpessoais, mas sim de seus feitos enquanto estrategista militar. Além disto, raramente os
livros tratavam de apenas uma pessoa, preferindo apresentar um painel de diversos sujeitos que
tivessem tido alguma afinidade social: volumes sobre generais, sobre reis, duques, etc. De acordo
com Weinberg (1992, p. 8): “O que alguns estudiosos chamaram de biografia antes de 1750
consistia geralmente em agrupar grupos de vidas, com os grupos sendo determinados por posição
e função social, por profissões”8 (tradução nossa). Outra postura semelhante desta época
primordial era a produção de textos hagiográficos, sobre a vida dos santos, como os trabalhos do
abade inglês Aelfric de Eynsham (955-1010). Sobre ele e seus colegas de ofício, escreve James
Clifford (apud Weinberg, 1992, p. 8, tradução nossa): “Seu objetivo era a edificação. Sua
justificativa era a glória de Deus, através do louvor aos seus santos9”.
Em meados do século XVIII, a situação começa a alterar-se e os estudos sobre o gênero
são unânimes ao apontar o trabalho de James Boswell como ponto de virada da concepção
biográfica. Em 1791, o advogado escocês publicou Vida de Samuel Johnson (BOSWELL, 2007),
relato de sua amizade de mais de vinte anos com o poeta e crítico literário supracitado. Sua opção
de focar a narrativa em uma só pessoa e a tentativa de esgotar a figura lançando mão de uma
profusão de provas documentais (anotações do biógrafo e do biografado, cartas, diários, etc.) e da
8 No original: “What some scholars have called biography before 1750 consisted largely of putting together groups
of lives, the groupings being determined by social rank and function, by profession”. 9 No original: “Their purpose was edification. Their justification was the glory of God, through the praise of his
saints”.
21
própria extensão da obra (mais de 1000 páginas na edição original) eram elementos estranhos ao
fazer biográfico da época. O estilo e a estrutura provocaram estranheza, mas logo foram
incorporados pelos estudiosos da época, lançando as bases do fazer biográfico que se vê hoje,
como afirma Dosse (2009).
Uma das primeiras reflexões críticas modernas a respeito da biografia é realizada pela
escritora Virginia Woolf (2014). No ensaio A arte da biografia, publicado originalmente em
1939, ela lembra Boswell e, a partir dos trabalhos inspirados por ele, passa a questionar a
constituição do gênero biográfico e sua relação ambígua com a história e o romance: seria a
biografia capaz de capturar a verdade sem incorrer em ficcionalizações10? Seguiram-se a esse
uma série de questionamentos semelhantes ao longo do século XXI. O fenômeno, denominado
por Dosse (2009) como eclipse biográfico, dá-se por uma alteração no regime de historicidade e
pela ascensão dos estudos sociais ligados à Escola dos Annales11, cuja lógica é refratária à escrita
da vida do modo como ela ocorria à época. Ocorre, decorrente desta reavaliação teórica dos
limites biográficos, uma alteração no pacto de leitura destes textos. Se antes o acordo era
referencial - esperava-se do texto uma versão fiel, cópia carbono, da vida -, a partir do século XX
o vidro de tal trato estilhaça-se. A pedra é a questão: “Como legitimar um gênero que se debruça
sobre uma existência que é forçosamente atirada ao acaso, sobre uma vida que é por si só
proliferante, caótica e incerta?” (COSTA, 2010b, p. 106).
Culminando tensões que datavam já desde o século XVIII (não por coincidência o período
pós-Boswell), a percepção das carências intrínsecas à escrita da vida resulta nesta crise
generalizada. A partir dos anos 1900 a biografia é vista como “o local de refúgio da historieta, do
relato puramente anedótico, sem outra ambição que encantar e distrair” (DOSSE, 2009, p. 181).
2.2.2 (Im)Possibilidades
Voltemos ao artigo de Woolf (2014), que pode ser tomado como um dos primeiros e mais
representativos indícios da instalação desta crise. Para além do intuito inicial do texto (inquerir se
a biografia possui status de arte ou é mero artesanato), levanta-se a questão dos limites impostos
10 Vale lembrar que um dos romances mais importantes de Woolf chama-se Orlando, uma biografia, e apresenta-se
como o relato da vida de um inglês tricentenário que transforma-se em mulher e varia de gênero entre masculino e
feminino ao longo das décadas. Na leitura de Dosse (2009), o livro, dados seu nome e estrutura, serve também de
comentário a respeito da escrita biográfica, e a ambiguidade sexual do protagonista é análoga à indefinição da
biografia entre relato factual e escrita romanesca. 11 Movimento teórico ligado ao periódico acadêmico Annales d'histoire économique et sociale, fundado em 1929.
22
ao biógrafo pelo próprio material. A escritora lembra a obra de Lytton Strachey, que publicou na
década de 1920 duas biografias sobre figuras da monarquia britânica: as rainhas Vitória e
Elizabeth I. Ambas as obras e também a relação entre elas são, afirma Woolf, exemplos precisos
das contingências que envolvem a escrita biográfica. O livro sobre a rainha Vitória - uma
personalidade cercada por diversos registros históricos - foi um sucesso de crítica e público,
sendo considerada uma biografia modelar. Já a empreitada semelhante sobre Elizabeth I, que
reinou em isolamento e da qual pouco sabe-se no tocante a sua vida pessoal, foi considerada um
fracasso e suscitou reações inflamadas dos intelectuais da época. Para Woolf (2014, p. 396) “o
problema está na biografia em si mesma”. Dada sua necessidade de comprovação documental, o
texto biográfico só funcionaria se amparado por uma vastidão de registros históricos. Diz-se que
“o romancista está livre; o biógrafo está amarrado” (WOOLF, 2014, p. 390) pois sua tarefa é
menos de criador do que de estoquista, responsável por catalogar e rearranjar informações
prévias.
A argumentação de Woolf e seu enfoque na questão do realismo e da necessidade de
comprovação factual para este tipo de escrita é uma crítica ancestral. A ela seguiram-se outras
posições teóricas, mais incisivas e voltadas a atacar a própria base epistemológica do gênero. A
mais conhecida e a que mais interessa-nos aqui é a discussão de Pierre Bourdieu sobre a ilusão
biográfica, introduzida em um artigo de 1986. Iniciando a discussão no campo da Sociologia, ao
questionar a validade das histórias de vida enquanto método científico, o filósofo põe em xeque a
proposta primeira da biografia. O próprio conceito de história de vida seria errôneo, analisa
Bourdieu (1996, p. 183):
Falar de história de vida é pelo menos pressupor – e isso não é pouco – que a vida é uma
história e que, como no título de Maupassant, Uma vida, uma vida é inseparavelmente o
conjunto dos acontecimentos de uma existência individual concebida como uma história
e o relato dessa história.
Na visão do sociólogo, tal expectativa de totalização de uma existência em narrativa é
mais que uma ingenuidade: é um erro do senso comum. O recorte de uma trajetória pessoal nada
de concreto poderá dizer, pois exclui as circunstâncias e o que de amiúde ocorre sem que
relacione-se com a grande saga transcrita, reduzida ao esquematismo de começo-meio-fim. Seria,
afirma Bourdieu (1996, p. 190), como “tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar
em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações”.
A ilusão estaria em crer na possibilidade de captar uma vida através do relato da trajetória de seu
23
personagem, criando ligações entre os acontecimentos, o que dá uma forma lógica à existência - o
método que constituiu a feitura das biografias desde seus primórdios. À visão de Bourdieu,
somaram-se outras críticas sociológicas, lembra Dosse (2009). Uma das visões por ele apontada
por sua pertinência é a de Olivier Schwartz, para quem a ilusão biográfica não caracteriza-se
apenas pelo “achatamento” da temporalidade e do contexto social. Mais grave é a miragem “pela
qual o sujeito se atribui no espaço ou no tempo uma identidade unitária que resiste às mudanças e
se torna fundadora da ilusão de um ‘alguém’ fugindo do anonimato” (DOSSE, 2009, p. 211).
Estas questões lembram a visão iconoclasta de Marcel Schwob (1997) a respeito das
biografias - uma perspectiva a respeito do texto que precede elementos do pensamento de Roland
Barthes, como veremos no capítulo seguinte. No prefácio de seu misto de romance e biografia
Vidas imaginárias (1997), Schwob empreende uma reavaliação da escrita da vida. Partindo da
colocação “A ciência histórica nos deixa na incerteza sobre os indivíduos. Ela só nos revela os
pontos pelos quais eles se ligaram às ações gerais” (SCHWOB, 1997, p. 11), o escritor apresenta
um ponto de vista aparentemente similar ao de Bourdieu, porém mais radical (e, vale notar,
anterior: Vidas imaginárias foi lançado em 1896). Para ele, o problema dos biógrafos é crer que
são historiadores. Sob a suposição de que poderiam extrair dos fatos o retrato fidedigno do
homem que os habitou, abriram mão das verdadeiras potências do texto que compunham. Ao
narrar a vida de um sujeito, a preocupação corrente seria enfocá-lo a partir de suas ideias. O
caráter histórico do gênero o levaria a escrever de modo a registrar para posteridade, aos modos
mesmo de Plutarco. Schwob (1997, p. 15) propõe uma recusa a esta concepção, afirmando que “o
ideal do biógrafo seria diferenciar infinitamente o aspecto de dois filósofos que tivessem
inventado mais ou menos a mesma metafísica”. Para ele, não interessa o que disse Sócrates em
seu cárcere. Seus protestos e suas acusações seriam feitas no mesmo tom se o condenado fosse
outro filósofo da época. O que interessa é o modo como passa seus dias na prisão: o que faz.
Lembrando Boswell, Schwob (1997, p. 22) critica-o por não ter a “coragem estética de
escolher”. O livro sobre Johnson é sim potente, escreve o romancista, mas excessivo. Entre as
passagens importantes na visão do romancista, como a descrição dos hábitos do poeta,
intrometem-se análises sobre seus trabalhos. Era preciso cortar, argumenta, e o excedente do
relato é - e é este o ponto nevrálgico do texto de Schwob - o que nele buscar ancorar-se no
verdadeiro: “A arte do biógrafo consiste justamente na escolha. Ele não tem que se preocupar em
ser verdadeiro; deve criar dentro de um caos de traços humanos” (SCHWOB, 1997, p. 22-23).
24
Tal caos seria o caos do atos e humores que compõem uma existência. Em contraposição a
Boswell, Schwob lembra as Brief lifes de John Aubrey, que, no século XVII biografou figuras
como Thomas Hobbes, Francis Bacon e René Descartes pelo viés íntimo. Que roupas gostavam
de usar, seus pratos favoritos, as preferências sexuais, etc.
Insurge-se novamente aqui a questão do detalhe. Dosse argumenta que esta biografia do
comezinho é um dos sintomas da crise biográfica. Descrente da própria capacidade de relato, os
biógrafos passam ao exame dos pormenores de seus objetos: “O desejo de definir com a máxima
clareza os contornos do indivíduo fez a glória de uma escrita do minúsculo, do ínfimo, do
aparentemente insignificante” (DOSSE, 2009, p. 69). O que há são duas formas de manejo dessa
escrita mínima. A primeira já foi por nós apresentada, por meio da obsessão realista que Wolfe
(2005) nutre pelo uso de detalhes balzaquianos na não-ficção. É a postura mais corrente, ligada à
necessidade da impressão de verdade ao relato, também aparente em Woolf (2014, p. 399): “A
biografia alargará seu escopo pendurando espelhos em cantos inesperados”. Tais espelhos,
segundo a escritora, devem refletir “onde e quando viveu o homem real; que aparência tinha; se
ele usava botas com cadarços ou com elástico dos lados; quem eram suas tias, seus amigos; como
ele assoava o nariz (...) (WOOLF, 2014, p. 401). Esse uso dos detalhes, tidos pela autora como
“fatos autênticos”, refere-se a uma produção textual que busca contornar as deficiências
biográficas reafirmando sua captura do detalhe através da descrição minuciosa - uma visão,
portanto, presa ao paradigma da representação. Um outro modo da escrita do detalhe é oposto a
este. Podemos começar a abordá-lo com base em um dos aforismos do romancista
estadounidense Mark Twain: “As biografias são apenas as roupas e os botões da pessoa. A vida
da própria pessoa não pode ser escrita” (apud SCHMIDT, 2004, p. 134). A declaração está em
consonância com Bourdieu (1986), sendo uma síntese do que representa o problema da escrita
biográfica: as grandes trajetórias diacrônicas impostas a ocorrências sincrônicas, a noção de
transcrição da existência, a pretensão de captura do íntimo do outro.
Já se pensarmos com Schwob (1997), a ideia é absolutamente potente. É aqui que a visão
do romancista singulariza-se e repele as críticas biográficas anteriores. Bourdieu, por exemplo, se
tomado sob esta perspectiva, tece sua repreensão a partir de uma constatação banal e equivocada.
Afirma que tomar a vida enquanto trajetória narrativa é um reducionismo, quando para Schwob a
vida é narrativa. Vida e texto não são corpos estranhos de existência paralela, que correm e
cercam-se um ao outro, nunca atrevendo tocar-se: estão imbricados. Como já afirmamos, o texto
25
de Schwob é a pedra de Roseta para a compreensão da teoria biográfica de Roland Barthes,
objeto central de nossa reflexão aqui. Sua reflexão sobre o lugar da verdade na biografia e a
constituição desta a partir de elementos mínimos antecipam e preveem o conceito barthesiano de
biografema, sobre o qual discorreremos no próximo capítulo: uma biografia composta de traços
sem significação prévia, que rejeitam a representação e compõem a criação de um sujeito textual
diverso do social.
De volta ao aforismo de Twain: tendo em mente essa construção teórica, a frase do
escritor estadounidense soa não como o diagnóstico da falência biográfica, mas sim como uma
provocação, um desafio que, vencido, efetivará as verdadeiras potências do texto. Se tentamos
escrever o sujeito, e, no processo, o indivíduo esfuma-se, somos deixados apenas com as roupas
vazias atiradas ao chão. O desafio da escritura é, portanto, fazer ver estes botões e andrajos
comos signos próprios. No lugar de descobrir uma resposta para a questão “Como irei escrever
uma vida?”, formula-se outra pergunta, que toma o lugar desta: “Que vida é possível ver a partir
daquilo que é possível escrever?”.
26
3 DO FAIT DIVERS AO BIOGRAFEMA: ESCRITA DA VIDA E POÉTICA DO
DETALHE EM ROLAND BARTHES
Falamos em escrevível, sobre uma vida ser ou não escrevível. Aqui, o uso do termo
possui duas implicações: uma primeira, mais imediata e superficial, questiona se a vida dá
margem para uma escrita, se é possível captá-la em texto para além dos limites expostos no
conceito de “ilusão biográfica”. O segundo sentido ativa-se pelo próprio uso do termo escrevível.
O neologismo (scriptible no original francês) vem da obra de Roland Barthes (2002 e 2010), e diz
respeito a uma categoria de texto que opõe e complementa as escrituras legíveis - trabalhos
fechados, que permitem um só tipo de leitura. Em contraponto a estes textos que confinam o
leitor a uma posição reativa e representam a maior parte das narrativas produzidas, Barthes
(2002, p. 5) afirma a existência de escritura escrevível: “O texto escrevível é um presente
perpétuo, sobre o qual nenhuma linguagem consequente (o que inevitavelmente torna-lo-ia
passado) pode ser superimposta; o texto escrevível é nós mesmos escrevendo12” (tradução nossa;
grifo do autor).
O escrevível molda-se no ato da escrita e na produção subsequente que enseja, inspirando
a criação de novas escrituras. O que distingue esta potência das outras formas textuais,
meramente legíveis, é a força de sua interpretação, o que para Barthes consiste em um processo
radicalmente diferente daquele que usualmente se entende pelo termo: “Interpretar um texto não é
dar a ele um sentido (mais ou menos justificado, mais ou menos livre), mas, pelo contrário, é
apreciar o plural que o constitui13” (BARTES, 2002, p. 5, tradução nossa). Deste modo, perguntar
se uma vida é escrevível equivale a indagar: que escrituras uma vida ativa? De que modo é
possível interpretá-la? Que espécie de intertexto ela origina? Dentro da reflexão de Barthes, a
vida escrevível é uma vida interpretável, uma que daria a ver sua rede de relações e, através
desta, iniciaria a novo projeto de escrita. Ou ainda: de existência.
O pensamento do semiólogo francês será utilizado de forma extensiva no presente
trabalho e, em especial, neste capítulo. Durante a pesquisa bibliográfica exploratória, realizando
uma revisão da obra de Barthes a fim de compreender sua posição sobre a narrativa biográfica,
12 No original: “The writerly text is a perpetual present, upon which no consequent language (which would inevitably
make it past) can be superimposed; the writerly text is ourselves writing” 13 No original: “To interpret a text is not to give it a (more or less justifed, more or less free) meaning, but on the
contrary to appreciate what plural constitutes it”
27
foi possível observar uma espécie de teoria dispersa por diversas obras, nunca sistematizada,
dizendo respeito à escritura da vida e à função dos detalhes narrativo-descritivos nesta. Portanto,
pretende-se neste capítulo uma apreensão desta suposta teoria, apresentando três conceitos
correlatos que sustentam esta percepção: fait divers, punctum e biografema. Assim, propomos um
percurso teórico entre estas diferentes ideias, em diálogo com a proposta inicial de compreender
as formas pelas quais a escritura retrata (ou não) a vida.
3.1 O Texto
Antes de proceder ao exame dos conceitos e à observação do percurso teórico referido,
acreditamos ser necessário esclarecer a ideia de Texto14 na obra de Barthes, já que esta definição
guia todo o presente estudo de forma intrínseca, ainda que muitas vezes velada. Só pensamos em
narrativa e escritura nos termos do Texto, e a ele recorremos para compreender as potências desta
referida teoria do detalhe e da biografia.
Barthes expõe as bases deste conceito em dois ensaios: Da obra do texto (2004) e, em
menor grau, A morte do autor (2004). A partir da década de 1960, deu-se o desenvolvimento de
diversas disciplinas que abordam a linguagem, de forma mais ou menos direta, como a
linguística, a antropologia, a semiologia e a psicanálise. O encontro destes saberes entre si e na
direção da obra textual altera a compreensão desta, naquilo que Barthes (2004, p. 66) chama de
“deslizamento epistemológico”. Assim, dado este esforço conjunto de reflexão, observa-se na
escritura a existência de duas instâncias: a obra e o Texto. Essa categorização não é uma oposição
rígida: obra e Texto não são contrários e não há juízo de valor na classificação. E, embora a
percepção desta distinção dê-se por um processo histórico, não se trata de considerar o Texto uma
inovação: “Pode haver Texto numa obra muito antiga, e muitos produtos da literatura
contemporânea não são em nada Textos” (BARTHES, 2004, p. 67). O que se dá a partir da
década de 1960 não é a ocorrência do Texto, mas sim sua percepção, possibilitada pela
interdisciplinaridade corrente a partir desta época.
14 Em sua elaboração do conceito, Barthes grafa “Texto” dessa forma, com a primeira letra maiúscula. Além de
destacar o termo, isso permite diferenciar o Texto enquanto conceito e o texto enquanto sinônimo de materialidade
escrita. Assim sendo, escolhemos também utilizar essa diferença gráfica no presente trabalho.
28
O Texto não é material e Barthes atenta para a inutilidade do esforçar de separar Texto e
obra de forma física. O Texto é uma transversalidade, uma força que coloca em curso as
potências de uma escritura, atravessando uma série de trabalhos precedentes. É pluralidade, com
origens diversas, bem como descendências das mais variadas. Ele atua em um campo de
linguagem que ultrapassa a obra e onde são permitidas trocas, diálogos entre diversos trabalhos.
E, mesmo assim, o Texto é órfão: “O intertextual em que é tomado todo Texto, pois ele próprio é
o entretexto de outro texto, não pode confundir-se com alguma origem do Texto” (BARTHES,
2004, p. 71). Com isto, Barthes quer reiterar a questão da morte do autor: uma escritura deve
desligar-se do conceito de autoria para efetivar sua potência. O que um Texto diz é dito pela
linguagem, não pela figura-social “escritor”. Não há espaço para o sujeito no interior do Texto: a
voz do autor, do narrador e dos personagens mescla-se de tal forma que torna-se inútil um esforço
de diferenciação ou hierarquização. São vozes de papel, todas. O que há é a escritura.
A concepção clássica de autor, lembra Barthes (2004), o tem como elemento da mesma
linha cronológica a qual pertence o livro: o escritor é o antes e a obra é o depois. Barthes (2004,
p. 61) nega esta concepção, afirmando que “o escriptor moderno nasce ao mesmo tempo que seu
texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escritura”. O
Texto constrói-se no campo de batalha da própria escritura, no instante em que as palavras são
dispostas em frase e as frases em parágrafos. A discussão a respeito do fim desta ideia de autoria,
devedora, como lembra Barthes, de uma visão antropocêntrica de culto ao sujeito, acaba por
engendrar a conclusão de que a ideia de sentido de uma obra também altera-se radicalmente. O
autor lembra que a significação dos trabalhos artísticos tem sido atribuída historicamente a
características que em verdade são dos sujeitos produtores e não do trabalho em si: “A crítica
consiste ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o fracasso do homem
Baudelaire, a de Van Gogh é a loucura, a de Tchaikovski é o seu vício” (BARTHES, 2004, p.
58). Barthes negará esta concepção ao explicar que o Texto existe somente enquanto discurso e
pratica o “recuo infinito do significado” (BARTHES, 2004, p. 69). Ou seja: prolonga a leitura, dá
prazer ao próprio ato da leitura - é um objeto escrevível, portanto - e a questão da significação
advém deste processo. Há recusa a uma hermenêutica. Enquanto a obra apresenta-se para
significar, o Texto não possui um sentido oculto. A ele Barthes (2004, p.69) irá chamar de
“significante perpétuo”. Ao autor interessa a metáfora do tecido: ao penetrar um pano para
descobrir o que o constitui, nada descobrimos: atravessamos a malha e chegamos ao vazio. O
29
caso é de esgarçar a tessitura para perceber os detalhes da trama, compreender o trabalho dos
fios, aprender como se dá a constituição deste pano para que se possa passar a uma nova costura.
O que neste capítulo buscamos ver são as ferramentas utilizadas para este processo de
análise dos tecidos. Propomos quatro conceitos que fazem as vezes de lupas, tesouras, linhas e
agulhas quando trata-se de analisar o Texto de implicações biográficas: o fait divers, o efeito de
real, o punctum, e o biografema.
3.2 O fait divers e a vida no texto jornalístico
Em seu ensaio A estrutura da notícia, Barthes (2007) realiza um estudo sobre um gênero
específico do jornalismo francês, conhecido como fait divers15. Sob a alcunha algo genérica de
“fatos diversos” reúnem-se os mais diversos tipos de matérias, em uma pluralidade de sentidos e
intenções, naquilo que Barthes (2007, p. 57) chama de “informação monstruosa”. O autor, porém,
identifica como denominador comum desta massa amorfa de notícias o interesse pelas questões
cotidianas e seu caráter anedótico.
“‘Um trem descarrila no Alasca: um veado bloqueara o controle das linhas.’ ‘Um inglês
se engaja na Legião Estrangeira: não queria passar o Natal com sua sogra’” (BARTHES, 2007, p.
62): exemplos trazidos diretamente das manchetes dos jornais locais por Barthes, para que se
analise este gosto do fait divers por aquilo que represente uma cisão com a placidez do dia a dia.
Barthes identifica dois tipos de exemplares do gênero: as narrativas mais comuns são aquelas de
casualidade, quando o nexo entre duas informações de um fato causa surpresa, como nos
exemplos acima transcritos. Fatos espetaculares (um acidente e uma mudança de regime de vida)
com motivos pedestres (um animal selvagem, uma animosidade familiar). Dentre este subgênero,
também podemos observas matérias que chamam atenção para as causas inexplicáveis de seus
acontecimentos, como milagres, fenômenos paranormais, ou, ainda, mais populares como os
contos de crimes reais, cuja popularidade é movida pelo mistério de sua origem. Por outro lado, o
15 Ainda que o conceito e a reflexão de Barthes a respeito deste tipo de jornalismo digam respeito apenas à imprensa
francesa, a observação é universal. Tom Wolfe (2005), ao escrever sobre o estado do jornalismo estadunidense da
década 1960 (época análoga a do ensaio de Barthes), lembra a existência de uma editoria jocosamente conhecida
como “Reportagens especiais da cidade”, longas matérias constituídas por “pequenos fatos ‘divertidos’, engraçados,
geralmente do movimento policial (...) até ‘histórias de interesse humano’ relatos longos e quase sempre
hediondamente sentimentais (...)” (WOLFE, 2005, p. 13). Embora visto com certo desprezo pelos jornalistas, o
gênero fazia sucesso com o público e era visado por repórteres desejosos de construírem textos que ultrapassassem
os limites de espaço e apuração da notícia.
30
segundo exemplar de fait divers calca-se nas coincidências observáveis nas histórias. Barthes
(2007, p. 64) traz manchetes como “‘Uma mesma joalheria foi assaltada três vezes’; ‘uma
hoteleira ganha todas as vezes na loteria’” para definir esta estrutura, onde a simples repetição de
algo é utilizada para instigar uma sensação de estranheza, como se pudesse existir um motivo
oculto para estas ocorrências, ainda não identificável pelas investigações e não apreensível pelos
leitores.
Em ambas tipologias de fait divers, porém, o que se destaca enquanto denominador
comum é a identificação de ocorrências tidas como anormais no curso rotineiro dos eventos. Não
é usual nem esperado que a mesma pessoa ganhe diversas vezes um sorteio, da mesma forma que
consideramos aberrante um homem abandonar o país por atritos com a sogra. O fait divers busca-
se enquanto representação de uma realidade fraturada pela ocorrência do bizarro, do pitoresco, do
transgressor. Assim, a natureza destes textos é profundamente disciplinar: o registro da quebra da
norma funciona como reafirmação desta. Como define Dion (2007, p. 130): “Estas narrativas
exemplares têm por função denunciar toda espécie de desvios e, assim, reforçar os modelos de
conduta prescritos pela sociedade”.
Se busca escrever a realidade, o fait divers o faz por diversas formas. No que toca
especificamente à narrativa de cunho biográfica, Barthes (2007, p.58) faz a ressalva de que
“‘gestos’ de estrelas ou de personalidades nunca são faits divers, porque implicam, precisamente,
uma estrutura de episódios”’, o que bate de frente com uma característica básica do gênero: um
fait divers é uma estrutura fechada que remete apenas a si própria, começa e esgota-se no próprio
texto. Não é preciso nenhuma informação prévia para sua compreensão: o leitor incauto que abrir
o jornal deve ser capaz de entender a matéria tendo apenas os fatos ali dispostos como bússola
(além claro, de ter internalizado o regime de conduta social do qual o fait divers é instrumento).
Deste modo, as narrativas de celebridade estão excluídas da equação, tendo em vista que
demandam uma certa carga informativa prévia: quem são aquelas pessoas, o que as torna
famosas, qual sua relação com a sociedade a qual se inscreve a reportagem, etc.
Porém, o sujeito pode assumir protagonismo nas narrativas do gênero quando as matérias
não possuem causos espetaculares para contar. Assim, Barthes (2007, p. 59) afirma que “a ênfase
não é posta sobre a própria relação, embora ela continue formando a estrutura da narrativa”. O
foco do texto, assim, desloca-se para suas personagens, chamadas por Barthes de dramatis
personae. Essas essências dramatúrgicas são figuras universais (Barthes utiliza como exemplos
31
os papéis de mãe, criança e idoso) que o fait divers abordará de forma a reforçar: são “espécies de
essências emocionais encarregadas de vivificar o estereótipo” (2007, p. 59). Essas figuras
relacionam-se com o conceito de tipo psicossocial, resgatado por Feil (2010) da obra dos
filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari. Os tipos são figuras arquetípicas, representações de
papéis sociais descritas de modo simples, a gerarem padrões de comportamento que possam ser
aplicados nos mais diversos tipos de narrativas de cunho biográfico: “Talvez o maior problema
das biografias esteja na sua ingenuidade: ela escreve sobre um tipo psicossocial como se estivesse
escrevendo, de fato, sobre um verdadeiro autor” (FEIL, 2010, p. 88).
Tendo isto em vista, podemos observar que os fait divers focados em personas
dramáticas/tipos psicossociais operam de forma contrária às notícias de causalidade: elas
observam a normalidade, o comportamento esperado, os caráteres sociais difundidos e aceitos.
Desta forma, porém, atingem o mesmo resultado: um discurso de reafirmação do status quo.
Assumindo perspectiva semelhante à dos estudos de Barthes e escrevendo sobre um
subgênero ancestral do fait divers (os panfletos contando histórias de assassinatos que circulavam
pela Europa no século XIX), Foucault (1977) atenta para a recorrência de certos termos nos
títulos dos textos: “circunstância”, “explicação”, “acontecimento”. “Detalhe”, sobretudo. Essa
unidade estilística evidencia aquilo que o autor acredita ser a função deste tipo de discurso, a
princípio autônomo da imprensa oficial, mas logo por ela absorvido: “Mudar de escala, aumentar
proporções, fazer aparecer o grão minúsculo da história, abrir ao quotidiano o acesso da
narração” (FOUCAULT, 1977, p. 215).
Esta afirmação denota duas coisas: que a história é composta de grãos, de partículas
celulares; e que o acesso a esta história atômica se dá pela narração dos detalhes comezinhos
cotidianos. Se o fait divers, ao modo como se apresentou nos séculos XIX e XX, utilizou-se desta
percepção para criar um discurso de controle social, por outro lado tornou possível observar as
potências da escrita de não-ficção no que toca os pormenores narrativos. É através deles que o
texto busca atentar para os termos observados por Foucault: “circunstância”, “explicação”,
“acontecimento”. Tal operação perpetuou-se, tornando-se parte integrante do gênero. Ao
processo, Dion (2007, p. 126) dá o nome de ilusão de proximidade:
A acumulação dos detalhes que dão credibilidade, os assuntos e as confidências, tanto
dos autores dos crimes quanto das vítimas, as entrevistas e as fotografias, são muitos dos
procedimentos que contribuem para a autenticidade da narrativa e a ilusão da
proximidade.
32
Essa ideia aproxima-se de outro conceito de Barthes, que também diz respeito à
organização de um texto de forma a produzir simulação de presença: o efeito de real. Formado a
partir de detalhes descritivos, assim como a ilusão de proximidade, o efeito de real também
permite uma exploração do punctum enquanto elemento narrativo.
3.3 Do efeito de real ao punctum: potências do detalhe
O detalhe se introduz no pensamento de Barthes a partir de seus estudos de cunho
estruturalista, quando propõe uma análise científica da literatura. Dividindo o texto literário em
funções que, encadeadas em uma estrutura vertical, constroem os sentidos da obra, o crítico
observa no texto uma hierarquia. Ao abordar as funções mínimas, porém, verifica que elas
parecem não participar do jogo de significação. Assim, chega à seguinte conclusão sobre o
detalhe:
Na ordem do discurso, o que se nota é, por definição, notável; mesmo quando um
detalhe parece irredutivelmente insignificante, rebelde a qualquer função, ele tem pelo
menos a significação de absurdo ou de inútil: ou tudo significa ou nada significa
(BARTHES, 1976, p. 28)
Em seu ensaio O efeito de real (2004), o autor retoma essa concepção para problematizar
ainda mais a questão. Se inicialmente o detalhe descritivo era tido como uma circunstância,
ocorrências inevitáveis na narrativa, o novo trabalho o eleva a condição de partícula motora do
texto. Tratando em especial da literatura realista do século XIX, sobretudo a praticada pelo
romancista Gustave Flaubert, Barthes (2004) identifica um tipo de notação que não é
assignficante por acidente. Citando um trecho da novela Um coração simples (FLAUBERT,
2004), Barthes destaca a descrição de uma sala onde encontram-se um piano, um amontoado de
caixas e um barômetro. Os dois primeiros elementos justificam-se enquanto símbolos materiais e
psicológicos, respectivamente: o piano é sinal de uma situação social confortável, e a confusão
das caixas sinaliza para um estado de desordem tanto prática quanto sentimental. Porém, a que
serve, na grande estrutura do texto, o barômetro?
A descrição de um mero objeto - inusitado, porém não o bastante para constituir um
evento próprio, que evoque sentido a partir de sua estranheza - faz parte do plano de construção
narrativa próprio da literatura realista - fenômeno que Barthes (2004, p. 186) chama “vertigem de
33
notação”. Através da mera denotação, obtém-se um poder conotativo: o efeito de real, que por
meio da introdução do banal no texto mira emular o banal da vida.
A verdade desta ilusão é a seguinte: suprimido da enunciação realista, a título de
significado de denotação, o “real” volta para ela, a título de significado de conotação;
pois no mesmo instante em que esses detalhes são supostos denotarem diretamente o
real, eles não fazem mais que o significarem (...), não dizem nada mais que isto: somos o
real (BARTHES, 2004, p. 189-190).
A ideia de Barthes, a princípio crítica ao procedimento, é retomada e reavaliada por
Rancière (2010). O filósofo atenta para o fato, ignorado na análise inicial, de o procedimento do
efeito de real funcionar como um movimento da escritura para além dos campos da
representação: “ele o faz implementando uma estratégia intermediária: conforme toma o princípio
‘realista’ da história, agarrando‑se ao real enquanto real, ele cria um novo tipo de
verossimilhança, oposta à clássica” (RANCIÈRE, 2010, p. 76). Assim, o detalhe pode operar no
texto de modo dissonante ao procedimento do fait divers: inserir notações e descrições na
escritura não para maximizar a proximidade da obra à realidade a qual se refere, não para ampliar
o grão da história e do cotidiano. Pelo contrário: o detalhe dá início a um novo regime narrativo,
que abre mão da representação em virtude de uma ambientação própria, interna ao próprio texto.
Uma ambientação movida por uma sensibilidade singular, instaurada pelo regime do detalhe,
destinado ao registro da “vida nua”: “O ocioso barômetro expressa uma poética da vida ainda
desconhecida, manifestando a capacidade de qualquer um (...) de transformar a rotina do
dia‑a‑dia na profundeza da paixão” (RANCIÈRE, 2010, p. 79).
A partir desta ideia de um regime afetivo de composição do detalhe, Rancière também
aponta que a concepção de Barthes a respeito do efeito de real já traz, em essência, a reflexão que
culminará no conceito de punctum. Para Barthes, o barômetro faz parte de um “fetichismo do
real”, que considera o “ter-estado-lá” da notação motivo suficiente para sua inclusão na estrutura
na narrativa. Rancière observa que essa linha de raciocínio evoluirá na obra posterior do
semiólogo, dando à concretude do detalhe outro estatuto: “Barthes fará do ‘ter-estado-lá’ das
coisas o punctum que é a verdade da fotografia e repudiará o conteúdo informativo do studium”
(RANCIÈRE, 2010, p. 77).
Punctum e studium são conceitos que surgem na última obra publicada em vida de
Barthes, A câmera clara (2011). Um estudo sobre a materialidade da fotografia, o trabalho
introduz elementos de fenomenologia no trabalho do filósofo, abordando o afeto na relação da
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foto com o observador. Barthes (2011) define a foto como um espaço unário, uniforme, de
interesse geral e difuso. É um objeto que causa uma apreciação superficial, praticamente binária,
dividida entre “gostei” e “não gostei”. Neste contexto de um afeto médio equivalente a um
amestramento, que constitui o studium, Barthes (2011, p. 51) afirma que “às vezes (mas,
infelizmente, com raridade) um ‘detalhe’ me atrai. Sinto que basta sua presença para mudar
minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho”. A este elemento dar-se-á o nome de
punctum.
O punctum é um ponto, uma partícula de interesse agudo, um detalhe feito flecha que
trespassa, simultaneamente, a foto e o observador. Enquanto exemplo para o fenômeno, Barthes
apresenta o retrato antigo de uma família negra. Há, de acordo com ele, uma série de elementos
que suscitam um interesse racional: a estética da composição, o valor histórico, o valor familiar,
etc. Porém, este é um apreço primário. O que o prende à imagem, Barthes explica, são os sapatos
de presilha que uma das fotografadas usa. São elementos como este (dentes ruins, unha
compridas, uma mão sobre uma coxa) que são definidos como punctum.
Mais que ancorar o afeto do observador na imagem, o punctum também atua conferindo
um diferente modo de significação à fotografia em questão. Sendo um “suplemento”, algo que
“acrescento à foto e que todavia já está nela” (2011, p. 65), a existência de um punctum expande
a foto para além de si mesma: é um “extracampo sutil” (p. 67) onde “cria-se (adivinha-se) um
campo cego” (2011, p. 65). Ao apresentar a foto de um menino parisiense fotografado por André
Kertész em 1931, Barthes considera o próprio garoto o punctum e a existência deste afeta-o, leva-
o a perguntar-se: Que vida levou após este retrato? Ainda é vivo? Onde? Como?
Fosse uma fotografia a cena de Um coração simples abordada em O efeito de real, seria o
barômetro um punctum? Rancière (2010) acredita que sim. Para ele, a oposição que Barthes
cunha entre a estrutura literária e as descrições brancas é a mesma que permitirá a distinção entre
studium e punctum. O que muda é a entrada do afeto em campo. Deste modo, é possível realizar
um pensamento reverso: levar o punctum até o campo da narrativa, usá-lo enquanto ferramenta de
estudo do texto. A macroestrutura da obra escrita apresenta-se enquanto um studium uniforme,
funcional, um espaço onde ocasionalmente um detalhe parcial reluz. Ao propiciar o extracampo
no texto, do mesmo modo que o faz na fotografia, a presença do punctum narrativo realiza o
movimento da obra ao Texto, instaurando uma força, um afeto criativo que torna o objeto
escrevível.
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De mesmo modo, propomos que se pense o punctum narrativo no âmbito da escrita
biográfica. Se perfis e biografias também são conhecidas como portraits e retratos, como
lembram Vilas Boas (2002, 2003) e Weinberg (1992), é possível pensar a própria vida que será
tomada na escritura como objeto de uma leitura passível de afeto por determinados traços. A
relação se explicita quando Barthes (2011, p. 40) utiliza a discussão sobre o punctum e a
fotografia para recontextualizar seu conceito de escrita biográfica, o biografema:
Gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam tanto
quanto certas fotografias; chamei esses traços de ‘biografemas’; a Fotografia tem com a
História a mesma relação que o biografema com a biografia.
A partir desta afirmação, é possível inferir uma série de significações que dão substrato à
ideia de uma teoria do texto biográfica em Barthes, que tem como ponto essencial a reflexão do
punctum. Barthes afirma a equivalência das fotografias de impacto emocional com elementos
observáveis no decurso de uma vida. Afirmar que a criação destas biografias construídas com
traços afetivos - os biografemas - está para a biografia comum assim como a fotografia está para
a história é afirmar que esta escrita dá-se por meio da exclusão: se a fotografia recorta do tempo
presente um só fragmento, o biografema também opera selecionando do curso de uma existência
aqueles detalhes que interessam a sua composição.
3.4 O biografema na apreensão do sujeito
Como visto no capítulo 1.2.1, Barthes é um dos teóricos a contribuírem para a ideia de
impossibilidade da escrita biográfica. Se considerou a tradução da existência em escritura uma
utopia, o filósofo enfrentou ele próprio este dilema ao propor-se a escrita de Sade Fourier Loyola
(2005), espécie de meio-termo entre ensaio crítico e biografia intelectual de três autores díspares,
que considera paradigmáticos do pensamento ocidental (Marquês de Sade, Charles Fourier e
Santa Inácio de Loyola). Mas se o Texto é, por vocação e essência, um destruidor de sujeitos,
como produzir uma escritura que tenha como norte a concretude da existência de alguém? A seu
modo, Barthes cria uma resposta, uma nova forma de apreensão textual do vivível. A saída é não
biografar, mas sim biografemar. Esclarecendo o conceito, Barthes (2005, p. 17) escreve a
respeito de uma possível escrita de si próprio - morto e notório, gostaria que um texto sobre si
fosse um compêndio de detalhes:
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(...) gostaria que minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amigo e
desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos:
“biografemas”, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e
vir tocar, à maneira dos átomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido à mesma
dispersão.
Biografemar é, assim, o exercício de coleta dos detalhes de uma vida, aparentes
“desimportâncias” reunidas em texto - os traços biografemáticos, “detalhes insignificantes
transformados em signos de escritura. Signo entendido como aquilo que instiga e dispara um
texto; como aquilo que nos encanta” (FEIL, 2010, p.81). É uma concepção diferente de Texto
biográfico, e também uma compreensão da vida “não como destino ou epopéia, mas como texto
romanesco, ‘um canto descontínuo de amabilidades’” (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 9).
Sendo Texto, o biografema inevitavelmente desintegra o sujeito. Sendo necessária a sua
retomada, ela ocorre através daquilo que “restou” desta destruição. Cacos, fragmentos,
frangalhos, ou, como coloca Barthes (2005, p. 16): “Tal sujeito é disperso, um pouco como as
cinzas que se atiram ao vento após a morte”. Portanto, exclui-se da escritura os grandes fatos, as
formas definidoras. No arranjo desta escolha, à maneira de um fotógrafo, é preciso definir os
limites do enquadramento. Isto é feito selecionando da vida a ser retratada aqueles traços ainda
livres de uma carga simbólica, aspectos comezinhos que encantam justamente por sua miudez.
Mas não apenas aquilo que é banal: é preciso que estes detalhes sejam afetivos. É preciso ser
constituído por “anamneses”, fragmentos da memória que transbordam esta, escorrendo para o
texto produzido: “Chamo de anamnese a ação - mistura de gozo e de esforço - que leva o sujeito a
reencontrar, sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade de lembrança: é o próprio haicai”
(BARTHES, 2003, p. 126).
Como exemplo dessa necessidade de uma potência emocional do detalhe, para Barthes a
escrita de Sade passa pela maneira interiorana pela qual se referia à senhorita Rousset, a
chamando de milli; passa por suas luvas brancas. Mesmo em um momento crítico de sua
existência, quando foi internado em um hospital psiquiátrico devido ao conteúdo anárquico de
seu trabalho, o escritor é visto por Barthes através de um enfoque micro: o que importa é a
relação que mantinha com a roupeira do asilo. Em suma, Barthes (2005, p. 16) explica: “O que
me vem da vida de Sade não é o espetáculo, embora grandioso, de um homem oprimido por uma
sociedade em razão do fogo que ele carrega, não é a grave contemplação de um destino”.
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O que se identifica, o que se utiliza enquanto signos de escritura são “restos”, como
aponta Feil (2010, p. 83). Para o autor, o biografema é “aquilo que sobra da biografia. Mas
‘sobra’ num sentido positivo, num sentido de Acontecimento: o biografema como o
Acontecimento da biografia.” O biografema, portanto, comporta um jogo entre os traços
biográficos comumente utilizados neste tipo de escrita - fatos concretos, pontos de virada na
trajetória do personagem - e os traços biografemáticos. É um processo que se dá pela alteridade:
um detalhe só o é em comparação com o todo da vida - é a escrita desta existência concreta, de
ordem representacional, que concede aos punctuns do biografema seu encanto, como reflete
Perrone-Moisés (1983, p. 10): “O próprio sabor dos biografemas depende de uma prévia
informação. Os punhos de Sade e os vasos de Fourier são contrapontos de suas vidas-obras, o
‘insignificante’ que a memória seleciona, ludicamente, dentro de um conjunto maior.” As
notações e inflexões atuam não como uma totalidade, mas como contraponto a outra narrativa
possível, de uso mais corrente: as “biografias-destino” lembradas por Perrone-Moysés, “onde
tudo parece se ligar e fazer sentido” (1983, p. 14).
Surgido na esteira de uma série de reavaliações teóricas da biografia (COSTA, 2010a), o
conceito de biografema coloca em xeque esta própria noção de “biografias-destino”. Como
coloca Costa (2010a, p. 46):
<Com Barthes> a prática de uma biografia é também uma política de abalo a duas
grandes ficções: a de que a escrita biográfica apenas expõe uma determinada realidade
investigada, fazendo da escrita a operação de se oferecer uma forma final
<comunicável> acerca de uma vida; e a de que o <objeto> da biografia <a vida> é
exterior ao Texto, e que por contingência de pesquisa, ele se põe a definitivamente ser
escrito
Assim, o pensamento biografemático considera ficções tanto a ideia de representação pura
na escrita biográfica quanto a noção de exterioridade do sujeito a ser escrito. O foco no detalhe e
deformação consciente da trajetória narrada através do recorte factual explicitam a incongruência
de crer em uma escritura livre de intenções e potencialidades, que visa apenas apresentar a vida
em sua plenitude. O biografema também introduz a ideia de um sujeito interno ao Texto. É um
retorno do sujeito, um retorno do autor morto por Barthes, mas um retorno seguindo as
contingências inerentes à questão da escritura: é, como já foi colocado, um sujeito fragmentado
dentro do próprio Texto, um sujeito que recusa a representação, que é produzido ao invés de ser
reproduzido. Ao operar por vincos emocional-descritivos que o curso do tempo imprime à vida, o
biografema dá a ver uma continuidade: o que importa a ele não é o sujeito escrito, literalmente,
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mas o sujeito que a escrita dá a ver. O biografema “não se trata de dizer o que foi, mas de avançar
em direção ao que vem” (VIART e VERCIER apud ALMEIDA, 2011, p. 36).
3.5 Do fait divers ao biografema
Apresentados os conceitos, é preciso que compreendamos o sentido deste percurso e as
relações que instauram-se ao expormos que fait divers e biografema são duas pontas de uma
mesma teoria - duas instâncias que, juntas, mostram-se ferramentas teóricas precisas para
compreender os problemas próprios da narrativa biográfica e, por extensão, do perfil jornalístico.
Como foi possível observar nesta apresentação, o pensamento de Barthes frequentemente
incorre em um jogo de oposições: legível/escrevível, obra/Texto, studium/punctum. É possível
pensarmos o fait divers e o biografema nestes mesmo termos, mas atentando para o fato de que
nenhuma destas oposições é dicotômica, maniqueísta. Barthes não opõe, por exemplo, obra e
Texto como polos distantes e irreconciliáveis. Assim pensamos o biografema e os fait divers: são
potências existentes nas narrativas em questão, que efetivam-se em maior ou menor grau. De um
ponto de vista estrutural, o fait divers assemelha-se a um padrão mais comumente visto, também
identificado por Barthes em sua Análise estrutural da narrativa (1976). É um modelo que
podemos comparar a uma montanha-russa: observamos cumes, que elevam-se do resto da
trajetória por serem pontos de interesse - cenas chaves para a trama, eventos espetaculares, a
dramaturgia grandiosa -, intercalados por retas e caminhos poucos sinuosos, desinteressantes à
primeira vista. São os detalhes e descrições banais, que estão na narrativa enquanto
preenchedores de espaço, pausas e pontos de respiro entre a vertigem dos acontecimentos -
Barthes (1976) chamará este tipo de função de catálises. Na estrutura do biografema, esta
disposição das rampas altera-se: há detalhes que ascendem tanto quanto os "fatos concretos". Ou
ainda: a montanha-russa inverte-se, e a vertigem dá-se agora pelas descrições brancas, espaçadas
por fatos espetaculares, tratados agora como platitudes.
A metáfora ajuda-nos a esclarecer que o que há entre o fait divers e o biografema é uma
mudança de postura e compreensão, tanto da narrativa quanto da vida. Ainda que dispostos de
forma oposta, os conceitos não repelem-se. Gravitam um na órbita do outro, ao modo das outras
tipologias barthesianas anteriormente exposta aqui. Diferentemente destes, porém, o percurso ao
biografema não é composto de apenas dois elementos: entre a escrita jornalística espetacular e a
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escritura afetiva temos a eminência do punctum. Espécie de ponto de virada, podemos
compreender o detalhe de poder afetivo como a engrenagem que opera a passagem de um nível a
outro. Melhor: como o elemento que ativa uma potência enquanto suprime a outra, que redistribui
as forças dentro desta narrativa biográfica. Do fait divers ao biografema o que há é a presença de
um ou mais punctuns. O que fica de fora é a primazia da representação, o intuito de escrever a
existência de forma literal, teatralizando a realidade de um sujeito fictício (pois todos o são no
campo da escrita). O que entra na equação é o afeto, que opera destacando detalhes do todo,
trazendo elementos do segundo plano ao foco, recortando o quadro geral da existência de modo a
reinserir de volta na narrativa o sujeito, aqui também fictício, mas que apresentado por uma
perspectiva parcial dá a ver outro modo de escritura, cuja concepção “parece acompanhar e fazer
justiça ao próprio movimento descontínuo e rítmico da vida” (COSTA, 2010a, p. 37).
40
4 POTÊNCIAS DO DETALHE NO PERFIL JORNALÍSTICO
No percurso teórico realizado até aqui, abordaram-se as questões da escrita da vida e da
inscrição do detalhe nesta. Tal construção teve início com a apresentação do perfil jornalístico
como base. A partir da percepção de que o perfil é uma narrativa biográfica, optou-se por uma
pesquisa que abordasse as bases desta relação: não trataríamos, portanto, de teorias do jornalismo
que lançassem luzes sobre o gênero, mas sim de trabalhos a respeito da escrita da vida. Neste
ponto, a partir da ocorrência do problema biográfico - escrevemos, de fato, uma vida? -, a questão
do detalhe apresentou-se de forma incontornável. É corrente na bibliografia sobre as escritas do
perfil e da biografia assumir a enunciação de detalhes enquanto estratégia narrativa de apreensão
da experiência. Isto, porém, é assumido sem maiores discussões.
É neste ponto que a obra de Roland Barthes faz lembrar-se. A partir do biografema
(elemento chave na concepção inicial deste trabalho), pareceu-nos útil utilizar os escritos do
semiólogo para melhor compreender a problemática instaurada pela escrita biográfica. Assim,
teve início uma prospecção bibliográfica de seu trabalho, em busca de uma genealogia do
conceito. Observou-se que ele faz parte de uma teoria complexa, que movimenta diversas ideias e
sentidos pregressos, compondo uma visão peculiar a respeito do lugar da representação e do afeto
na escrita da vida, problematizado-a a partir da inscrição do detalhe. Do fait divers ao
biografema, foi possível perceber o que leva o detalhe a tomar esta proeminência na escrita
biográfica.
Agora, neste ponto do presente trabalho, faz-se necessário retomar esta discussão ocorrida
nos dois capítulos anteriores, para tornamos mais claras as questões que ligam a teoria do perfil
jornalístico e os escritos de Barthes. Após a montagem deste palco conceitual, no atual capítulo
empreendemos também a análise empírica que nele se desenrolará. Se até o momento o problema
de pesquisa que move esta monografia foi abordado de forma circunstancial, tendo sido
aproximado em suas margens, aqui ele toma contornos mais claros: propormos uma análise que
registre as funções do detalhe no perfil jornalístico. Com um corpus selecionado a partir de
pesquisa bibliográfica exploratória, as ferramentas metodológicas utilizadas para esta leitura
crítica serão construídas a partir dos trabalhos de Barthes (2002, 2007).
41
4.1 Entre o perfil e o biografema
Disse-se que o perfil jornalístico possui raízes na escrita biográfica e que esta toma por
base teórica uma ideia de realismo e verossimilhança, baseada na presunção do texto enquanto
registro fidedigno do mundo concreto. Também afirmamos as ideias de Roland Barthes sobre o
Texto e o papel do sujeito neste, onde sofre um apagamento progressivo, gerando um vácuo que é
tomado paulatinamente pela linguagem. Aproximar estas duas reflexões é, portanto e a princípio,
um trabalho de detectar mais as divergências do que as convergências.
A visão de Tom Wolfe (2005), por exemplo. O jornalista afirma uma escrita do detalhe
como propulsora do caráter literário do jornalismo, responsável por alçá-lo às mesmas estética e
importância da literatura realista do século XIX, tendo Balzac como meta. O que ele perde de
vista, diria Barthes (2004), é que o realismo é o que de menos potente há nesta estratégia de
escrita não-ficcional. A ilusão de presença é denunciada pelo semiólogo já em sua reflexão sobre
o efeito de real: assim como os realistas que toma por modelo, Wolfe acredita que “o ter-estado-
lá das coisas é um princípio suficiente da palavra” (BARTHES, 2002, p. 42, grifo do autor).
Desta forma, esta visão canônica do perfil, endossada pelos autores até aqui apresentados, crê no
aperfeiçoamento da mímese como um fim, ao passo que Barthes (2004) afirma o real como uma
instância não representável, apenas demonstrável. Quando aborda a escritura e a presença do
detalhe, como no punctum ou no biografema, a minúcia descritiva não está ali para oferecer uma
âncora que afixe o texto à experiência do vivido: ela escreve-se por motivos outros, afetivos e
pessoais, e acaba por oferecer uma linha de fuga, uma perspectiva outra de encarar a alteridade
dos sujeitos e sua tradução rumo à escritura.
Os pontos de contato entre Barthes e o perfil têm início se lembrarmos do
desenvolvimento da escrita biográfica no século XX. Assumindo suas deficiências enquanto fac-
símile do real, o texto biográfico passa a buscar uma abordagem mínima, que extraia sentido de
uma observação dos detalhes. Lembremos uma colocação de François Dosse (2009, p. 55):
“Gênero híbrido, a biografia se situa em tensão constante entre a vontade de reproduzir um vivido
real passado, segundo as regras da mimesis, e o polo imaginativo do biógrafo”. A postura que
começa a tomar forma no campo biográfico é uma forma de desequilibrar esta balança em favor
do polo imaginativo. Como já identificamos, Schwob (1997) é decisivo na composição desta
mudança de estratégica escritural - e Barthes retoma a partir de onde o romancista parou.
42
Seu conceito de biografema é uma radicalização da postura miniaturista e indicial que a
escrita biográfica vinha tomando. Se de Santo Inácio de Loyola o que persiste não é o regime
monástico e sim seu olhar triste e injetado (BARTHES, 2005), é porque, como já havia
identificado Schwob (1997), o que difere os sujeitos não são seus feitos, como acreditava-se
desde Plutarco, e sim suas minúcias. Barthes radicaliza esta ideia ao propor biografias mínimas,
que atenham-se apenas a estes dados - e que o tomem não como contrapontos curiosos e lúdicos,
sob o risco de incorrer no fait divers. Se o pensamento que originou a ideia de biografema nasce
da teoria biográfica da qual o perfil nutre-se, é possível traçar um caminho inverso, que observe a
concepção biografemática na composição do texto biográfico jornalístico. As dúvidas que
instauram a crise biográfica e suas experimentações de formas representacionais daí decorrentes
ocorrem também no perfil. Lembremos este trecho de uma reportagem sobre o músico Roberto
Carlos, escrita por Roberto Freire e publicada na revista Realidade. Transcrita por Vilas-Boas
(2003), a matéria é apontada como exemplo de uma tendência que surge a partir da década de
1960, a dos perfis autoconscientes:
‘Eu nunca o havia visto fora do palco e dos vídeos’, assume Freire no texto. ‘Não eram
os fatos de sua vida pessoal que interessavam, mas seu comportamento diante da
profissão e da popularidade, suas reações de homem diante de tudo o que o rodeia
diariamente (...) Seria possível saber como se sente um ídolo, convivendo semanas com
ele, participando de todos os seus momentos?’ (FREIRE apud VILAS BOAS, 2003, p.
25).
A consciência dessa incapacidade para o registro gera um paradoxo, tendo em vista que o
objetivo primeiro do perfil é o retrato. A ideia de portrait é cara aos teóricos do perfil, de Vilas
Boas (2003) a Weinberg (1992), pois explicita essa necessidade de captura da existência. O que
faz uma fotografia se não imprimir a matéria própria do objeto - a luz que toca seu corpo - em um
suporte físico, de papel? No entanto, estes autores ignoram que é esta mesma metáfora que ajuda-
nos a compreender o problema: o perfil, por sua condição de texto, resulta em um erro de
paralaxe - quando a imagem acessível pelo visor da câmera não é a mesma a ser captura pelo
obturador, resultando em uma distorção na foto final. O que registra-se não é o que observa-se, e
o que se quer enquanto apreensão de uma realidade resulta em algo diverso.
Assim, é necessária a apropriação de modos de escrita que tenham este problema em
vista, como assumiram Schwob e Barthes. Deste último vem o uso do detalhe enquanto
biografema - o que é essencialmente uma estratégia, como nos lembra Costa (2010a) - e o que
43
propomos a partir de toda exposição realizada até aqui é pensá-lo no âmbito da escrita
jornalística.
Isto posto, deixemos claro que um perfil não pode ser um biografema. Há contradições
muito profundas sendo interseccionadas nesta proposta, o que faz ruir de imediato a hipótese. A
noção de sujeito que instaura a ideia de biografema é impossível ao jornalismo e a sua obsessão
por personalismo e concretude. O jornalismo presume autoria (algo repelente à teoria de Barthes),
lembra Resende (2009), e ela já está dada de saída pelo próprio suporte do texto: um
jornal/revista nominado, de periodicidade e linha editorial estabelecidas, matérias com
assinaturas, etc. Há mesmo dúvidas se o perfil ou qualquer outra forma de jornalismo pode ser
considerada uma narrativa, como algo mais que um discurso de caráter funcional. Walter
Benjamin (1986, p. 203) levanta a questão, ao denunciar um conflito profundo entre narração e
informação: “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em
histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações”. A
narrativa necessita de liberdade, ao passo de que a informação precisa totalizar para comunicar
sua mensagem, reduzir os sentidos e conformar os acontecimentos. Em resumo, há muito sujeitos
e muitos fatos claramente definidos no jornalismo – este sendo um efeito ideológico próprio da
prática, como aquele denunciado por Barthes como fait divers - para que o perfil possa pulverizar
a identidade e propor um texto de afeto, de forma a construir um biografema. O que não impede,
porém, de apontar nesta direção e apresentar um devir biografemático.
O percurso teórico pela obra de Barthes resultou em um esquema que propõe uma espécie
de “comporta textual”: o Texto biográfico como se dotado de um mecanismo que determina seu
caráter realista ou subjetivo, que o aproxima ou distancia da mímese ou do afeto, que define as
potências presentes de fait divers e biografema. A este mecanismo atribuímos o punctum: é a
presença do detalhe como instância reguladora. O que unifica as duas perspectivas de texto
apresentadas até aqui é esta concepção. Tomamos, portanto, o perfil em seu caráter de escritura,
como um corpo Textual que possa vir a ser preenchido por estas potências mencionadas. Nem só
narrativa funcional, nem só escrita mínima de um sujeito fragmentado, e sim tudo isto ao mesmo
tempo, definido pela instância dos detalhes narrativos que o compõem. Se a literatura é a forma
de trapacear o fascismo natural da língua, como afirma uma das mais célebres teses de Barthes
(1998), queremos o detalhe enquanto a armadilha que pega pelo pé a impostura jornalística,
subvertendo seus efeitos de real.
44
4.2 Metodologia
4.2.1 Corpus
Como já indicamos, o corpus da pesquisa tratará dos perfis escritos por João Moreira
Salles e publicados na revista piauí16. Esta escolha observou as reflexões dos estudos do perfil
apresentadas no capítulo 2: buscaram-se textos representativos do que é universalmente
considerado “perfil jornalístico”, aos modos de produção clássicos.
Traremos aqui trechos de todos os seis perfis em formato longo publicados por Salles
entre 2006 e março de 2015, quando iniciou-se a redação do presente texto. Neste período, o
autor também foi responsável por dois obituários e uma porção de textos biográficos publicados
na seção “esquina”, dedicada a reportagens concisas e de caráter mais anedótico. Não
consideraremos os textos elegíacos, pelos motivos já explicados no subcapítulo 2.1.3. Já os perfis
curtos não serão analisados justamente por sua extensão. Como exposto acima, verificar as
funções e instâncias do detalhe no tecido narrativo demanda uma materialidade complexa.
Percebe-se nos perfis que esta seleção resulta em um corpus homogêneo, mas
diversificado. As reportagens guardam semelhanças de estilo e conteúdo entre si e fornecem uma
base sólida para que se pense sobre o gênero perfil, apresentando diversas formas por ele
possibilitadas: matérias biográficas, que apresentam a trajetória pessoal e intelectual de seus
personagens; reportagens que realizam um recorte temporal e focalizam o sujeito em apenas um
determinado momento de sua vida; perfis com foco no subjetivo; perfis que partem do
personagem para a análise do contexto social no qual ele integra-se; perfis com uma só fonte;
perfis de apuração extensa e enciclopédica, etc.
Apesar desta diversidade, o específico que nos interessa - o uso do detalhe -, é um
denominador comum e isto está presente já de saída. A partir de 2010, os perfis de piauí
passaram a serem agrupados sob a mesma cartola (jargão jornalístico para o termo que antecede o
título de uma matéria e antecipa seu assunto): Vultos. A depender do personagem perfilado, o
16 A limitação de tratar de apenas um autor e focar em um dado veículo é própria e necessária ao formato
monográfico, por questões de extensão e profundidade do texto. Porém, é preciso que reconheçamos que este recorte
é redutivo: abordamos assim um tipo específico de perfil, conformado não apenas pelas características do gênero,
mas também pelas questões de estilo do autor e linha editorial da revista. Não abordaremos o problema de forma
frontal durante a análise, mas é necessário registrá-lo, por não o considerarmos desprezível.
45
termo altera-se: o já citado Vultos da República para atores do espectro político, Vultos da
Ciência se tratam-se de figuras acadêmicas (como no caso de Artur Ávila e Fernando Codá
Marques, como veremos a seguir), Vultos dos Negócios, Vultos do Futebol, etc. O vulto aqui é
usado como sinônimo de eminência, autoridade e notabilidade, mas interessa-nos a polissemia do
termo, que também refere-se a uma figura obscura, pouco visível, fantasmática. Ao assumir o
personagem de um perfil como um vulto, retoma-se a ideia do sujeito do texto biográfico como
um sujeito indicial, tomado na própria amorfia de seu ser e recuperado (recriado) na matéria
escrita através de detalhes - estes como as sombras que compõem o vulto, apagado pela
contraluz, mas de contornos ainda visíveis.
4.2.1.1 A revista
Fundada em 2006, a piauí estabeleceu-se no jornalismo brasileiro como uma filiação
contemporânea de veículos clássicos do jornalismo literário, como as citadas Esquire, Realidade
e, sobretudo, a The New Yorker. Neste sentido, a escolha pela piauí como objeto insere-se na
tradição histórica de estudos do gênero, mas busca não repisar o chão já conhecido: escolhe-se
uma revista contemporânea, para compreender o desenvolvimento do gênero até hoje, e
brasileira, para entender como o formato adequa-se às conformidades da imprensa local e da
língua portuguesa. Também nos interessa aquilo que aponta Werneck (2010) e que era já
prenunciado no material de divulgação da revista (PIAUÍ, 2006): com um espaço de publicação
amplo (é corriqueiro as matérias tomarem mais de uma dezena de páginas), incomum na
imprensa de hoje, permite-se ali um maior trabalho da forma textual - algo importante à análise
crítica aqui necessária, que visa perceber o funcionamento do perfil como Texto, verificando o
jogo de significações e potências instaurado em seu interior. Como a revista prima por
reportagens mais complexas, é possível observar um maior número de relações possíveis,
enriquecendo a análise.
4.2.1.2 Os perfis segundo João Moreira Salles
Já a opção por focar em Moreira Salles também tem bases diversas. A primeira é ser o
repórter o idealizador e um dos fundadores da publicação, criada com “pretensões (...)
relativamente simples: queremos fazer uma revista perene, que seja divertida e que revele coisas
46
curiosas, importantes, fúteis, boas e ruins sobre o Brasil”17. Seus textos destacam-se pelo
tratamento estético e narrativo cuidadoso, que demonstram um entendimento do texto jornalístico
não só como veículo informacional, mas como uma obra em si, um fim tanto quanto um meio.
Em seu trabalho é possível, como propusemos anteriormente, tomar a reportagem como uma
escritura. Finalmente, a escolha por Salles também é prática: sua produção na piauí é esparsa, o
que permite uma leitura em profundidade de todos os textos já publicados por ele na revista - algo
que não seria possível com repórteres mais prolíficos da publicação como Consuelo Dieguez ou
Bernardo Esteves, por exemplo.
Cabe registrar também que Salles possui uma visão própria sobre a posição do detalhe no
perfil jornalístico, registrada no ensaio Ouvido, instinto e paciência (2006), a respeito das
reportagens de David Remnick. Partindo do texto de Remnick sobre o ex-vice-presidente
estadunidense Al Gore, Salles (2006, p. 571) destaca uma cena que descreve o café da manhã do
político, notando a inclinação do repórter para uma “alternância entre a observação miúda e a
análise geral, entre o pequeno e o grande”. Descreve-se o cenário, com destaque para o cardápio
da refeição, escolha narrativa que Salle credita a um impulso de humanização dos personagens,
tornados mecânicos pela própria natureza do texto jornalístico. Gore é uma chave para a
compreensão da política no século XXI, mas não nos esqueçamos que ele também adora ovos
mexidos como todos nós.
Salles também lembra um texto de Remnick sobre o escritor Amós Oz. Após uma série de
parágrafos de implicações biográficas – suas ideias, sua origem, seus prêmios -, o texto aposta no
mínimo, descrevendo com profusão de detalhes um dos passeios diários do israelense pelo
deserto. É a partir daí que se alarga a compreensão possível daquele indivíduo que é perfilado,
afirma Salles (2006, p. 572): “A partir de quase nada, intuímos que Oz é um homem curioso,
atento às coisas do mundo, refratário a clichês e, se não feliz, é ao menos afortunado”. Essa
técnica narrativa é definida pelo repórter como “uma retórica das coisas, de acordo com a qual o
personagem se revela não só pelo que diz, mas também pelo que o cerca” (SALLES, 2006, p.
571). Essas reflexões demonstram que Salles não apenas produz perfis, mas é alguém com uma
17 Dados disponíveis em entrevista de Salles ao Digestivo Cultural:
<http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=8&titulo=Joao_Moreira_Salles>. Acesso em
26. mar. 2015.
47
bem demarcada posição teórica sobre esse fazer, fato que também nos levou a tomá-lo como
corpus de nosso trabalho18.
Definidas as motivações que levaram à escolha pela piauí e por Salles, cabe agora
apresentar brevemente cada um dos seis textos a serem analisados.
4.2.1.2.1 Os matemáticos
Artur tem um problema, publicado na edição 40 (SALLES, 2010), é um marco em
especial. Seu retrato do prodígio da matemática brasileira Artur Ávila é o ínicio da incursão do
repórter no universo científico e dá origem, de forma direta, aos dois outros perfis a serem
escritos por Salles nos anos seguintes. O matemático é abordado em seu trabalho e em seu dia a
dia, tendo descritas em igual importância tanto seu poder de resolver problemas complexos
quanto seu gosto por sandálias de dedo. Além de apresentar Ávila, já tido à epoca como um dos
maiores matemáticos brasileiros, o texto apresenta fundamentos da disciplina e explica a
existência do IMPA (Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada), tido como um dos
grandes centros de formação matemática em todo o mundo.
A instituição é retomada em O senhor dos anéis, publicado na piauí 87 (SALLES, 2013),
perfil de Fernando Codá Marques, matemático também formado pelo IMPA. De caráter
fortemente biográfico, a reportagem apresenta a trajetória do cientista, um jovem alagoano que
tornou-se uma das maiores promessas da geometria mundial. O foco é seu maior trabalho até
então, a descoberta do toro (uma forma geométrica circular, de centro cavado) ideal - algo que
motivo o título paródico da reportagem. Em paralelo, o texto constrói dois “perfis impessoais”:
um sobre o desenvolvimento da geometria espacial, descrevendo as peculiaridades da disciplina e
as teses que a marcaram nos últimos séculos, e outro sobre a criação e estabelecimento do IMPA,
lembrando a gênero do instituto e o levou-o a florescer em um país sem tradição nas ciências
exatas.
Ávila também retorna: o mais recente perfil escrito por Salles é Conversas antes da
medalha, apresentado na piauí 96 (SALLES, 2014). O texto aborda os dias imediatamente
anteriores à entrega da Medalha Fields (maior honraria do mundo matemático, concedida a cada
18 Ainda que essa posição de Salles possua implicações nas materialidades por ele produzidas, não utilizaremos suas
ideias como base para a análise dos perfis – fazê-lo seria incorrer na armadilha do Autor denunciada por Barthes
(2004). Porém, este câmbio entre Salles-repórter e Salles-teórico-do-perfil é explorado com maior atenção em nossas
considerações finais.
48
quatro anos a, no máximo, quatro cientistas por vez). Salles descreve as andanças de Ávila -
primeiro brasileiro a receber a distinção - por Paris antes da cerimônia de entrega, em uma
narrativa íntima e subjetiva. O estilo se assemelha ao de O andarilho, bem como a apuração: uma
única fonte, acompanhada de perto por alguns dias em viagem.
4.2.1.2.2 O presidente
O andarilho, publicada originalmente na piauí 11 (SALLES, 2007) e depois apresentada
na coletânea Vultos da República (2010), acompanha as viagens internacionais do ex-presidente
brasileiro Fernando Henrique Cardoso. Afastado do centro do poder desde 2002, o político é
apresentado em sua faceta acadêmica, sendo professor convidado de universidade estrangeiras.
Salles segue FHC naquilo que chama de sua “temporada americana”, quando leciona na
Universidade Brown, em Rhode Island, e viaja pelo país dando palestras em outras instituições de
ensino. Chama atenção o formato: FHC é a única fonte, mas o texto não é apresentado em
formato de entrevista. Pelo contrário: interessa-se muito mais pela ambientação e descrição das
viagens e reuniões do que pelo que o político tem a dizer. Isto, somado ao fato de ser o primeiro
perfil escrito por Salles para a revista, estabelece a importância do texto como um paradigma dos
procedimentos narrativos a serem analisados a seguir.
4.2.1.2.3 O jornalista
A alegria são 61 telefonemas, presente na piauí 17 (SALLES, 2008a), mostra o dia a dia
de trabalho de Paulo Vinicius Coelho. O comentarista esportivo é conhecido pelo público por sua
memória e apego aos dados estatísticos. As origens e implicações deste método de comentário,
que empilha informações aparentemente irrelevantes - “‘É que ele vinha com aquelas histórias de
que 'Nunca o São Paulo venceu o Náutico com gol no segundo tempo’” (SALLES, 2008, p. 26) -,
são, aqui, desmitificadas. Demonstra-se que são reflexos da personalidade de PVC, como o
jornalista é conhecido, com sua fé no poder da informação e na função do jornalismo, além de
seu caráter avesso à espetacularização.
49
4.2.1.2.4 O caseiro
O caseiro, apresentado no número 25 da revista e posteriormente incluído em Vultos da
República (WERNECK, 2010), trata de Francenildo dos Santos Costa, caseiro de uma casa em
Brasília que tornou-se pivô, em 2006, de um escândalo envolvendo o então ministro da Fazenda,
Antônio Palocci, acusado de receber propinas na referida casa. Costa é utilizado como ferramenta
pela oposição ao governo, de modo a enfraquecer Palocci. Perdido entre os circos burocráticos e
demagógicos da Capital, o caseiro sofre um golpe pessoal ao ter o sigilo bancários ilegalmente
quebrado por funcionários da Previdência, o que revela uma série de depósitos recentes em
valores consideráveis - pondo em dúvida sua honestidade e o distanciando definitivamente do pai
biológico, responsável pelo dinheiro. O texto deixa claro que objetiva humanizar Costa, à época
tido apenas como um peão movido pelas engrenagens do sistema político - e, deste modo, a
reportagem serve também de perfil deste sistema, como afirma sua linha de apoio no site da
revista: “De como todos os poderes da República - Executivo, Legislativo, Judiciário, polícia,
imprensa, governo, oposição - moeram Francenildo dos Santos Costa”19.
4.2.2 Cortar o Texto: as lexias
De modo a compreender o papel do detalhe nestes perfis, observando quais funções
desempenham na narrativa e que relações travam com as ideias de fait divers e biografema, a
análise aqui exposta realizará uma leitura em profundidade e cruzada dos seis textos que
compõem o corpus. Dada a importância de Barthes na construção de nosso pensamento até aqui,
é necessário que empreendamos esta leitura sob seus termos. Tomar-se-á o perfil em uma
perspectiva crítica, naquilo que Barthes (2004) compreende pelo conceito: um discurso segundo
que busca interpretar o discurso primeiro. Como já apontamos, o autor propõe a interpretação não
como uma atividade hermenêutica, que prospecta significados ocultos, mas como um jogo de
desconstrução, que visa apreciar a constituição de um Texto. Assim é a crítica:
Trata-se pois, uma vez mais, de uma atividade essencialmente formal, não no sentido
estético mas no sentido lógico do termo. Poder-se-ia dizer que para a crítica o único
modo de evitar a ‘boa consciência’ ou a ‘má-fé’ de que se falou no começo é propor-se
por fim moral não o deciframento do sentido da obra estudada mas a reconstituição das
regras e constrangimentos de elaboração desse sentido. (BARTHES, 2014, p. 162)
19 Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-25/anais-de-brasilia/o-caseiro>. Acesso em 26 mar.
2015.
50
Buscamos, portanto, verificar tais “regras e constrangimentos” e, como Barthes (2004, p.
190), “abrir caminho a imprevisíveis trocas, ao jogo infinito dos espelhos”, no seio do Texto,
interpretando os usos do detalhe e seu papel na escritura total. Como método para a construção
desta crítica do perfil utilizaremos um procedimento inspirado pela divisão do objeto,
metodologia empregada por Barthes em S/Z (2002) para analisar o conto Sarrasine, de Balzac.
O crítico divide o texto base em lexias, recortes de parágrafos, frases ou até mesmo
palavras individualizadas, unidades de leitura selecionadas do todo de modo a compreender a
constituição da escritura e a movimentar sentidos. Barthes (2002, p. 13, tradução nossa) afirma
ser o método de seleção guiado pela subjetividade (é possível aqui pensarmos nos termos do
punctum): “Sua dimensão, empiricamente determinada e estimada, dependerá da densidade das
conotações, variável de acordo com os momentos de texto20”. Esta aparente arbitrariedade
permite uma leitura iconoclasta do texto, que rejeita seu sentido geral, retirando sua impostura de
objeto natural e assumindo o objeto como pura escritura. Deste modo, é possibilitado ao crítico
traçar “(...) zonas de leitura com o fim de observar nela a migração dos sentidos, o afloramento
dos códigos, a passagem das citações21” (BARTHES, 2002, p. 14, tradução nossa). A seleção
fecha os olhos para a obra para dar a ver o Texto.
Montaremos aqui esquema interpretativo semelhante, visando identificar na materialidade
do corpus unidades prenhes de questões e significações, que ganham em potência ao serem
retiradas de sua macroestrutura e organizadas em uma tipologia própria, que sugere novos
encadeamentos. Buscamos assim dividir os objetos de nosso corpus - “um pequeno terremoto”,
como escreve Barthes (2002) a respeito da seleção das lexias -, identificando nas reportagens os
detalhes narrativos dos quais tratamos teoricamente até aqui. Após a seleção, eles foram
agrupados por similaridades e compuseram séries de sentido, que dão a ver as funções possíveis
do detalhe na narrativa biográfica, variando sua potência de instâncias ora mais próximas do fait
divers ora nas margens do biografema.
A série 4.3.1 trata do detalhe curioso, divertido, próprio da narrativa superficial e
disciplinar do fait divers. Já a série 4.3.2. comporta os detalhes de ordem biográfica, os traços de
20 No original: “It’s dimension, empirically determined, estimated, will depend on the density of connotations,
variable according to the moments of the text”. 21 No original: “(..) zones of reading, in order to observe therein the migration of meanings, the outcropping of codes,
the passage of citations”.
51
descrição da vida mais comum nas narrativas não-ficcionais: nacionalidade, filiação, produção
intelectual, relações interpessoais, etc. O detalhe enquanto símbolo é abordado na série 4.3.3.,
que traz descrições que significam por hábito ou convenção. Ainda que apresentadas de forma
individual, as séries relacionam-se e compõem um percurso, sendo apresentadas em uma ordem
que vai do mais representacional ao mais afetivo, desaguando na série 4.3.4. Aqui, foram
agrupadas as “desimportâncias”, detalhes que dizem respeito a personagens mas nada informam
além dos gostos e inflexões que Barthes (2005) toma como traços biografemáticos.
4.3 Séries de lexias: o detalhe no perfil jornalístico
4.3.1 Cabelos selvagens: o detalhe enquanto fait divers
A leitura de Barthes (2007) coloca-nos o fato de que o fait divers utiliza o detalhe para
fins moralizantes. As minúcias descritas - o corte de cabelo do personagem de uma história, a
roupa de outro, as peculiaridades do local onde o fato ocorreu - visam o registro do desvio da
norma. A descrição do vestiário exótico de um juiz, por exemplo, é um detalhe que diz menos
respeito ao sujeito-juiz do que à figura social-juiz, da qual espera-se elegância e sobriedade.
Assim, aqui, os detalhes dizem respeito a uma representação da realidade, como aponta Dion
(2007) em seu conceito de ilusão de proximidade. Estas descrições possuem efeito coagulante:
acumulando-se umas sobre as outras, dão concretude à mímese. Se descrevem tão bem o cenário,
deve ter sido assim mesmo que ocorreu. É este um dos usos mais corrente do detalhe nas
narrativas biográficas, em especial a do perfil, que por sua constituição jornalística apresenta-se
enquanto discurso factual.
No corpus aqui selecionado, foi possível identificar um pendor pelo detalhe pitoresco,
complementando com estranheza e humor a pintura dos retratos dos personagens, uma das
facetas do fait divers. A imagem mais poderosa desta série são os cabelos de Fernando Henrique
Cardoso, um detalhe recorrente em O andarilho. Na primeira vez que surgem na narrativa, são
quase imperceptíveis, aparecendo apenas como composição para uma cena de diálogo, no qual
um professor estadunidense indica a FHC o tema de sua disciplina. Os cabelos significam aqui
apenas a ilusão de proximidade:
52
Tem as mãos enfiadas nos bolsos. "Odeio frio", murmura. Faz 4 graus. Logo antes de
alcançarem o prédio, Snyder informa: "O curso se chama Desenvolvimento, mercados e
estados". Lutando com os cabelos que uma rajada de vento tornara selvagens, FHC
comenta: "Mercados e estados? É um diálogo de surdos" (SALLES, 2010b, p. 15).
Temos aqui neste breve trecho uma série de pequenos detalhes: a descrição da postura
corporal do personagem, que esconde-se dentro do próprio casaco para fugir do frio; a
apresentação do clima, com a medida exata da temperatura; o sentimento que o personagem nutre
por este mesmo clima; e, por fim, a imagem dos cabelos revoltosos. Todas estas descrições
contribuem para a construção de um sentido comum, de proximidade com o narrado: indicar que
a cena ocorre no inverno de Rhode Island, um ambiente agressivo ao político tropical. A
referência capilar, porém, passa a chamar atenção por sua recorrência. Poucos parágrafos depois,
reaparece: Salles descreve um encontro de FHC com os alunos aos quais deu uma palestra, no
curso descrito anteriormente:
No final da aula, já fora do prédio, cinco alunos o rodeiam. Apesar do frio, um rapaz
ruivo e sardento está de sandália de dedo, camisa havaiana e uma toalha molhada em
torno do pescoço. FHC, tentando domar os cabelos, se vira à esquerda e à direita para
atender à diminuta platéia. Não podia estar mais feliz. “Eles gostam muito disso”
(SALLES, 2010b, p. 16).
O quadro é semelhante ao anterior (o cenário é, inclusive, o mesmo), mas a referência ao
penteado revolvido pelos ventos invernais já não compõe de forma homogênea com o resto das
descrições: um segundo personagem, abordado apenas por seu vestuário curioso, e a alegria de
FHC, cercado de jovens que o adulam. Tal singularidade da descrição dos cabelos fica clara em
sua próxima aparição no texto, quando, após uma maratona em aviões que cruzam os EUA de
costa a costa, FHC profere uma palestra no William J. Clinton Presidential Center, em Little
Rock, no Arkansas, a respeito de sua autobiografia:
É aplaudido de pé, e pelos vinte minutos seguintes autografará uma pilha de The
Accidental President of Brazil, além de posar para dezenas de fotos de celular. Sorri em
todas, mas desiste de arrumar o cabelo, que a essa altura adquiriu vida própria (SALLES,
2010b, p. 23).
Aqui, os cabelos nada dizem de imediato e seu estado não se refere, ao contrário dos
exemplos anteriores, à reconstrução do cenário e dos fatos. Se antes poderíamos tomar estes
detalhes como modos de conferir realismo ao relato - uma função mais imediata, conforme já
apontamos -, a descrição aqui caminha para outra instância do fait divers. Em seus termos, é
possível considerarmos esta obsessão pelo desalinho visual como o registro do paradoxo social:
53
um ex-presidente conhecido pela alcunha de Príncipe dos sociólogos viajando por terras
estrangeiras com os cabelos desarrumados. Lembremos que Barthes (2007) nega o fait divers
enquanto biografia de celebridades: se é necessário tomar um sujeito como foco, o que abordar-
se-á será sua persona, seu papel profissional, familiar, etc. Deste modo, o detalhe enquanto fait
divers é aquele que trata de temas da vida pública dos personagens do perfil: os cabelos de FHC
não dizem respeito a seu cuidado com a imagem e seu gosto22, mas ao fato de um político de aura
aristocrática apresentar-se em público com o penteado em desalinho. Esta contradição, cerne
deste uso dos detalhes, aparece de forma mais explícita na última descrição dos cabelos utilizada
na matéria, quando o político comenta as agruras das tarefas institucionais de um presidente,
como comandar o desfile militar de 7 de setembro: “‘A cada bandeira de regimento, a gente tinha
de levantar, era um senta-levanta infindável’, lembra-se com um esgar de pavor. Sem falar dos
cabelos: ‘Em setembro venta muito em Brasília, então o cabelo fica ao contrário’ (SALLES,
2010b, p. 31). Aqui estão, lado a lado, a função política e o visual desarranjado; a implicação
litúrgica do cargo e o desalinho do vestuário contrastando com a seriedade do momento. O
registro do desvio da norma, nem que seja de uma norma baseada em gel e laquê.
Este jogo repete-se em alguns dos outros perfis, ainda que em menor grau. Artur tem um
problema, por exemplo, faz um registro contínuo dos hábitos de trabalho de Artur Ávila. Se um
matemático é tido como uma figura intelectual, um homem das ciências regrado, apaixonado por
métodos e acostumado ao trabalho em laboratórios com quadros negros recobertos de contas, os
detalhes que Salles registra aqui contradizem essa visão: “Artur costuma acordar por volta do
meio-dia. Trabalha muito na cama e preza o tempo morto” (SALLES, 2010a, p. 37); “Artur
prefere ‘fazer conta de cabeça’” (SALLES, 2010a, p. 37); “(...) de bermuda, camiseta e sandália
de dedo, seu uniforme quando está no Rio, Artur se recorda (...)” (SALLES, 2010a, p. 39). Não
espera-se que um dos maiores matemáticos do mundo seja afeito a sandálias e abomine acordar
cedo, chegando a faltar aulas de sua pós-graduação por esse motivo, mas é justamente este
aspecto de Artur que Salles busca enquadrar com suas descrições. O perfil sobre Fernando Codá
Marques aposta no mesmo paradoxo: a matemática e o cotidiano. Salles lembra as circunstâncias
em que o geômetro finalizou seu maior trabalho, a resolução da Conjectura de Willmore, escrito
em parceria com um amigo: “Num churrasco em Stanford, enquanto todos comiam, os dois
tomaram uma caneta e fizeram uma última conta” (SALLES, 2014, p. 42). A ciência de ponta 22 Isto em um primeiro momento: estas descrições também são indiciais, dizendo respeito a uma exacerbada vaidade,
e retornam na série 4.3.3.
54
sendo realizada por jovens de bermudas, discutindo em meio a carnes e cerveja é uma
irregularidade da norma de senso comum, e é isto que as descrições nos mostram nestes textos.
O detalhe enquanto fait divers denota também um uso anedótico da descrição - eram,
afinal, uma seção à parte dos jornais, sendo tidos muito mais como entretenimento do que como
jornalismo. Isto está também nos cabelos de FHC, nos termos em tom de absurdo usados para
descrevê-los, a fim de atingir maior efeito humorístico: cabelos selvagens, cabelos que adquirem
vida própria, cabelos ao contrário. Este caráter do detalhe aparece em Salles sobretudo nas
descrições físicas. O texto A alegria são 61 telefonemas apresenta seu perfilado deste modo:
“Paulo Vinicius Coelho está com 38 anos. Seu rosto tem algo de divertido. Há um discreto
parentesco com o personagem Wallace, do desenho animado Wallace e Gromit” (SALLES, 2008,
p. 26). A comparação com um ser animado, de uma comédia inglesa em stop motion, tem
motivos humorísticos: compara-se o sujeito a ser escrito com um boneco. No caso de PVC, a
comparação também apresenta uma contradição, ao passo que o texto apresenta-o como um
sujeito sério, de uma ética de trabalho rígida, pouco afeito à brincadeiras e frivolidades, ainda
que pareça um personagem de desenho infantil.
Curiosamente, lança-se mão da referência a Wallace em descrições em outro caso. No
perfil sobre Francenildo dos Santos Costa, Salles apresenta o advogado do caseiro no caso da
quebra de seu sigilo bancário: “Wlicio Chaveiro Nascimento tem um rosto divertido. Lembra o
personagem Wallace, do desenho animado Wallace & Gromit. Costeleta grisalha, sorriso largo,
lábio inferior meio caído para fora e fumante contumaz” (SALLES, 2010c, p. 79). Os usos destes
detalhes são análogos à função que desempenham no texto sobre PVC: ilusão de presença,
através da descrição do perfilado, e humor, através de uma metáfora inesperada e anedótica. Em
ambos os casos, piadas com funções de claras inclinações ao fait divers: ser um Wallace, no caso
de PVC, é um paradoxo com sua função de jornalista sério e de respeito; para Wlício, é indício de
seu quixotismo diante de um caso que envolve as mais altas esferas de poder do país. Do
advogado de um homem responsável pela queda do Ministro da Fazenda não espera-se que tenha
o rosto de um desenho, que possua a boca torta, que seja alguém que “atendia os clientes numa
sala na sobreloja do hotel onde morava” (SALLES, 2010c, p. 79).
Esta instância primeira e superficial do detalhe é recorrente pois diz respeito às funções
dos indivíduos e sua relação com as normas sociais, dados facilmente observáveis e que, na maior
parte das vezes, são os objetivos de um perfil: apresentar quem é determinado político, mostrar os
55
métodos de trabalho de um jornalista, compreender as implicações da rotina de um matemático.
O detalhe enquanto fait divers realiza esta tarefa pela via da curiosidade, das personas dramáticas
e pelo registro do respeito ou não das instituições do senso comum. A apreensão destas figuras
por uma chave semelhante, porém mais subjetiva e menos moralizante, dá-se pela apresentação
destes traços enquanto detalhes biográficos.
4.3.2 Vascaínos: detalhes biográficos
Embora os dois últimos séculos tenham sido de revoluções e reformulações no campo da
biografia, o conceito básico desta escrita permanece o mesmo, assumindo-se como a escritura
responsável pelo levantamento de informações factuais a respeito de uma vida. Como aponta
Pignatari (1996, p. 13): “Da arte ao documento, extraindo fios da mais variada natureza sígnica, o
biógrafo arma uma teia interpretante, graças à qual apreende, capta, “lê” a vida de alguém, tal
como a aranha à mosca”. Tal teia é composta de fios das mais variadas espécies, traços da vida
alheia que dão-se a ver no texto de diversas maneiras, como a partir de detalhes.
Tomemos as descrições que dizem respeito àquilo que é tido como o formato clássico da
biografia: a trajetória de vida. Toma-se a figura a ser escrita e busca-se, através de fontes
diversas, reconstruir seu passado e condensar em uma narrativa de desenvolvimento lógico os
caminhos que o levaram até sua situação presente. Embora não componhamos com a crítica de
Bourdieu (1996) a esta forma, por nossa filiação à concepção barthesiana da narrativa, cabe aqui
lembrar as observações de Dosse (2009, p. 211), que apontam outra miragem gestada nesta forma
de vetorização dos caminhos vividos: “Admite também outra forma de ilusão própria ao gênero,
ainda mais grave, pela qual o sujeito se atribui no espaço ou no tempo uma identidade unitária
que resiste às mudanças e se torna fundadora da ilusão de um ‘alguém’ fugindo do anonimato”.
Tal tentativa de encaixe dos indivíduos em fôrmas identitárias rígidas dá-se nas narrativas
analisadas principalmente pelos detalhes relativos à filiação e formação.
A alegria são 61 telefonemas, talvez o perfil de objetivos mais biográficos dentre os aqui
reunidos, é pródigo na enunciação destes elementos. Em meio às descrições dos métodos de
trabalho de PVC, Salles (2008, p. 27) aponta:
É natural que um menino sonhe em ser astronauta, piloto de avião, pirata ou jogador de
futebol. PVC sonhou em ser jornalista esportivo. A idéia se firmou por volta dos 14
anos, quando se deu conta de que o dia mais importante da sua vida eram as terças-
56
feiras. Logo de manhã, ia montar guarda na banca de jornal, à espera da revista Placar,
que devorava e redevorava ao longo da semana.
Deste modo, o texto instaura uma linha temporal dupla, na qual uma deságua na outra: o
personagem adulto, exímio jornalista, e o personagem criança, fascinado por uma revista
esportiva. Depreende-se daí, simultaneamente, que PVC é um bom profissional porque sempre
sonhou com isto, e que tinha este futuro como meta por ter, desde cedo, um talento inegável para
a profissão, algo que se confirmaria mais tarde. Tal construção, claro exemplo da concepção
identitária própria da biografia, é composta por uma descrição minuciosa: registra-se a idade
exata do início do sonho; o dia da semana em que a revista, combustível dessa obsessão, chega às
bancas; o nome do veículo.
Esta ideia de que os traços constituintes dos indivíduos têm raízes profundas, rastreáveis
até os confins da infância, é intrínseca à biografia e marca presença constante nos perfis
jornalísticos. A reportagem sobre Fernando Codá Marques, por exemplo, opera neste sentido e de
forma marcadamente cronológica, dedicando a primeira metade do texto a apresentar a história
do matemático minuciosamente. São recorrentes parágrafos como:
Nasceu em 1979, em São Carlos, interior de São Paulo, onde os pais, ambos
engenheiros, faziam mestrado. Já completara 1 ano quando voltaram todos para Maceió.
Mais tarde, morariam quatro anos em Porto Alegre, durante o doutoramento dos pais. É
o mais velho de três irmãos (SALLES, 2013, p. 34).
A descrição busca ser exata, referindo-se a datas e locais, e dizendo respeito à
constituição familiar do personagem, clara reflexão do caráter de “história da constituição de uma
identidade fixa” presente no pendor biográfico dos perfis. Isto reforça-se no momento em Salles
(2013) fala em traços que indicam, desde os primeiros anos, a inclinação de alguns para o campo
da matemática. Como Codá Marques, que “Desde cedo mostrou inclinação para as ciências.
‘Rigor e abstração era o que me atraía’ (...) Jamais gostou de nada que tenha sabor prático”
(SALLES, 2013, p. 34). Há aqui uma reflexão em tudo semelhante àquela efetivada no perfil de
PVC, que estabelece já na formação as causas da notoriedade que levam, no presente, a figura a
ser objeto de um texto biográfico. O correlato mais exato à matéria sobre Marques, porém, é o
texto sobre Artur Ávila. Ao tratar de um personagem semelhante, colega de área científica e de
instituição formadora, Salles (2010a, p. 38) propõe a mesma noção de talento precoce, quando na
escola Ávila “já aos 5 anos lia livros de matemática, e, como o currículo lhe parecesse algo
tedioso, ia atrás de material didático de classes mais adiantadas”. A partir daí, elabora-se uma
57
longa linha temporal de sua juventude: participou de quatro Olimpíadas de matemática, de 1992 a
1995, conquistando três ouros; foi convidado a ingressar no IMPA aos 16 anos; doutorou-se em
matemática pura ao 18.
Estes detalhes funcionam na construção não apenas de uma trajetória de vida, um relato
claro que busca elucidar a origens da presente condição, como um gênio. Neste sentido, o pendor
biográfico do detalhe toma outros contornos, expandindo-se para além da reconstrução temporal:
o detalhe funciona, também, como elemento de uma biografia intelectual. O subgênero, de maior
destaque a partir da segunda metade do século XX, busca elucidar personagens que lidam com o
pensamento, contrapondo elementos de suas vidas pessoais privadas à suas obras e ideias
públicas. É uma questão complexa, como lembra Dosse (2009, p. 361), que adiciona mais uma
dúvida - O que dizer que já não esteja nos livros pela personagem já publicados? - ao fazer
biográfico, empurrando-o ao “ponto de paroxismo de sua tensão aporética”. Não obstante, é um
subgênero que grassou nas últimas décadas e instalou-se também na confecção de perfis. Cinco
dos seis textos de Salles que compõem o presente corpus lidam com sujeitos que são também
escritores, que realizam um trabalho intelectual amplamente divulgado. O trabalho é, deste modo,
dado incontornável aqui, e sua presença é dada em detalhes.
Isto está de forma mais clara em A alegria são 61 telefonemas, e já desde o título,
referência à rodada semanal de ligações que PVC realiza ao clubes da primeira divisão do futebol
brasileiro, sabatinando técnicos e diretores em busca de informações mais precisas a respeito de
escalações, lesões de jogadores, eventuais contratações, etc. Salles (2008) é preciso na descrição
da rotina: afirma que o jornalista chega à redação de forma pontual, às 8h, antes de todos os
colegas; cronometra o tempo médio das ligações em três minutos, onde “não há migalha de
conversa desperdiçada” (p. 28); observa a disposição tentacular de PVC, que fala em dois
telefones ao mesmo tempo enquanto responde e-mails; e, por fim, aponta: “Tudo estará à
disposição no blog. Em menos de quatro horas, ele deu 61 telefonemas e conferiu a presença ou
ausência em campo de 250 atletas” (SALLES, 2008, p. 28). Esta construção, e semelhantes, em
composição com os detalhes da trajetória pessoal, estabelece os binômios sujeito concreto x
sujeito intelectual e trabalho público x fazer privado. O pendor biográfico da matéria é modelar,
quase didático, mas tal rigidez não é constante na bibliografia do repórter. Em outros perfis há
uma certa tensão neste jogo. O andarilho, por exemplo. De caráter pessoal e subjetivo, o texto
evita entrar em detalhes sobre o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ainda que a produção
58
intelectual e o fazer acadêmico internacionais sejam a origem mesma do perfil. Esta recusa
parece correlata à reticência própria de FHC em assumir para si a ideologia pela qual sua política
ficou marcada: “Esse é seu drama. Quando está entre alunos e professores, gasta boa parte do
tempo defendendo-se da tese de que sua agenda e seu legado pertencem ao ideário neoliberal”
(SALLES, 2010b, p. 20).
Os dois perfis matemáticos também possuem como mote a produção de conhecimento de
seus personagens. Em ambos os casos, a ideias complexas são explicadas através de descrições
grandiosas, que didatizam os princípios da matemática pura de modo a possibilitar a
compreensão deste campo hermético do conhecimento e permitir ao leitor aproximar-se do que
fazem Ávila e Marques. Lado a lado com estas explicações portentosas, temos colocações mais
sutis, como quando explica-se a desistência de Ávila das Olimpíadas de matemática de 1997:
“Não lhe interessava ganhar pela segunda vez um prêmio que já tinha. Havia coisas mais
importantes a fazer” (SALLES, 2010a, p. 39). Implica-se a ambição do cientista, sua necessidade
de estar em constante movimento intelectual, de confrontar sua própria capacidade - algo
presente também quando fala-se de Marques, de sua necessidade de tornar-se pesquisador em
uma universidade estrangeira como forma de testar seus limites, algo difícil no ambiente tão
familiar do Impa.
A leitura comparada de Artur tem um problema e Senhor dos anéis traz uma peculiaridade
à série dos detalhes biográficos: neste cruzamento, percebe-se que as peculiaridades de Ávila e
Marques interseccionam-se. Ávila gosta de resolver problemas na cama, de madrugada. Marques
reflete caminhando ou no chuveiro. Nenhum deles faz contas, ao menos não antes da necessidade
de resolução finais das hipóteses construídas mentalmente. Se Marques lê apenas livros técnicos
da área ou biografias de cunho histórico, anulando a ficção por considerá-la frugal, Ávila não lê
se não for estritamente necessário, repelindo até mesmo tratados da área. Sobre Ávila, Salles
(2010a, p.37-38) escreve: “Não é incomum ouvi-lo responder “Não sei” ou vê-lo refletir antes de
se manifestar sobre uma pergunta trivial”. Ao conversar com Marques chega à conclusão de que:
Os matemáticos têm o traço adorável de não se constrangerem em dizer “isso eu não
sei”, frase que repetem com frequência. Contudo, há nessa refrescante franqueza certo
desdém por tudo aquilo que não se conforma às categorias de certo ou errado (SALLES,
2013, p. 35).
A recorrências de similaridades nos remete diretamente às reflexões de Schwob (1997) a
respeito da biografia. Sua tese central é de que o relato das ideias nada de relevante diz. Mesmo
59
que as tese dos filósofos diferenciem-se em conteúdo (e, por vezes, em forma), são ainda assim
todas teses. O pensamento, não importa qual, não é do indivíduo. Não diz sobre ele, mas sobre
tudo: “Por mais que isto nos ocupe, nossas ideias gerais podem ser semelhantes às que tiveram
curso no planeta Marte e três linhas que se cortam formam um triângulo em todos os pontos do
universo” (SCHWOB, 1997, p. 12). Por isto mesmo, a leitura dos perfis sobre Ávila e Marques
confunde-se. Passa-se a tomar um pelo outro. A profusão de detalhes de caráter biográfico não
ajuda a definir suas formas - pelo contrário. Schwob (1997) oferece uma saída a esta armadilha
com uma metáfora: o que aparta uma árvore de outra não é a descrição de suas copas ou o cálculo
de suas idades. É o exame das folhas, a observação do modo como suas nervuras espalham-se, os
rasgos e desgastes que a natureza lhe impôs. Assim, elimina-se uma concepção errônea do
detalhe, que toma sua mera presença como um elemento de diferenciação, enquanto partículas
que singularizam o relato. O detalhe por si só não basta para distinguir sujeitos ou para
compreender melhor estes. A depender de seu uso, o que fazem mesmo é “dar cor” à história,
anedotizar a vida - ou pior, quando tomam uma ideia retrógrada e identitária dos indivíduos. À
potência da escritura é necessário que estas descrições sejam não biográficas, mas
biografemáticas. De volta ao corpus, obtemos uma comprovação singela, mas clara disto: o que
mais ressalta-se enquanto fator de diferenciação entre Ávila e Marques é sua postura quanto ao
futebol. Ambos são torcedores do Vasco da Gama desde a infância, a princípio outro detalhe
biográfico, este ainda mais unificador por sua coincidência. Na vida adulta, porém, Ávila
abandonou a paixão pelo esporte em sua paulatina conversão à vida matemática - pouco lhe
interessa no mundo que não sejam problemas complexos. Nunca mais assistiu a um jogo do clube
carioca, ao passo que Marques os acompanha mesmo no exterior, através da internet. Para ele, a
ciência não é um impeditivo para a apreciação do esporte: “discute futebol em mesa de bar,
inclusive ‘futebol antigo: quem era melhor, Romário ou Ronaldo’” (SALLES, 2013, p. 34).
Mas isso é um salto. A instância do detalhe que mais assemelha-se à função biográfica é a
simbólica. Enquanto os traços biográficos são indiciais, apontando para personalidades,
identidades e feitos exteriores ao texto (descrever a rotina atribulada de PVC, por exemplo, é
descrever a fumaça de seu fogo de paixão pelo trabalho), os detalhes simbólicos são arbitrários e,
em aparência, podem parecer biografemáticos, tal como as visões sobre futebol dos dois
matemáticos do Impa, mas significam, ao contrário desses, o fazendo por convenção.
60
4.3.3 Cinco cuecas: o detalhe enquanto símbolo
Os símbolos compõem uma forma mais sutil de detalhe biográfico, mais subjetiva e
menos preocupada com o registro (embora ligue-se ainda a uma perspectiva representacional e
não constitua um biografema). Quando, ao escrever sobre PVC, Salles (2008, p. 28) coloca que
“sua mesa é um desabamento iminente: pilhas de jornais brasileiros e estrangeiros, livros, revistas
esportivas europeias e até um compêndio do congresso internacional dos árbitros de 2000”, não
parece-nos uma descrição da mesma ordem daquelas acima colocadas. Não há nisso nenhuma
indicação de identidade pessoal ou intelectual. O detalhamento e o rigor da observação não estão,
à primeira vista, a serviço da apreensão biográfica. Seria, portanto, uma lexia destinada à série
biografemática? Não parece-nos, e para melhor compreender a razão desta recusa, voltemos ao
trecho de Flaubert que Barthes (2004) cita na formulação do conceito de efeito de real: a
descrição de uma sala, onde há um piano que sustenta um monte de caixas e um barômetro.
Como já apontamos, o barômetro é o elemento de interesse, aquele que - embora criticado por
Barthes, neste momento, como uma prova da obsessão realista pela simulação de presença -
desaguará nas ideias de punctum e biografema. Neste ponto de desenvolvimento do trabalho,
porém, cabe-nos destacar o piano e as caixas, ambos símbolos. Dizer que a personagem possui
um piano é simboliza sua condição social confortável, convencionado seus hábitos burgueses,
dizer que ela possui na sala de casa um amontoado de caixotes é uma referência mais ambígua,
que pode ser tanto de ordem prática (é alguém desorganizado ou alguém de mudança) ou
psicológica (é alguém em desarranjo). Dizer que a mesa do personagem perfilado é uma
avalanche prestes a ocorrer é um detalhe que corre neste mesmo sentido: não possui uma
significação biográfica imediata, mas refere-se a algo, de formas mais ou menos explícitas.
Pignatari (1996) destaca esta funcionalidade biográfica, que busca acercar-se do “objeto
intransponível” que é a vida por meio de uma abordagem marginal. A biografia é crente em uma
noção de verdade e demanda a comprovação dos fatos, mas uma vida não é sempre documentada
em todos os seus movimentos. As lacunas por este fato abertas são preenchidas por índices
subjetivo. Ou seja, “ganham relevo e dimensão certos dados que não dizem respeito à área de
concentração do biografado: crescem, digamos, os setores de complementação” (PIGNATARI,
1996, p. 17).
61
O detalhe enquanto símbolo, portanto, comporta descrições de aparente insignificância
pessoal, mas que articulam-se em conjunto a outras para revelar dados e questões que são de
primeira grandeza para o personagem. À imagem da mesa caótica, somam-se outras descrições
mínimas que Salles (2008, p. 27) observa em PVC:
Na vida prática, é atabalhoado. As alças da mochila que carrega nas viagens têm o dom
de se agarrar a todo vão de porta que se meta no caminho; volta e meia, as pernas se
adiantam apenas para serem atrapalhadas pelo tronco, que, de um repelão, é puxado para
trás.
Tal tendência ao desastre é dada sem maiores considerações neste primeiro momento.
Compõe a figura do jornalista de forma superficial. Algumas frases adiante, porém, o texto
explicita o sentido buscado pelo uso desta descrição: “Nada disso atrapalha a vida dele. O seu
negócio é conhecer futebol, e para cumprir essa função poucos estão tão bem equipados”
(SALLES, 2008, p. 27). Assim, percebe-se que os detalhes das mochilas que agarram-se a portas
e das pernas incontinentes estão ali não como elementos lúdicos da narrativa ou com o objetivo
de enquadrar PVC em uma identidade freak, o clichê do homem alto e desengonçado. Dizem
respeito a um traço mais pessoal, íntimo: sua total dedicação ao trabalho e ao futebol, uma
obsessão que traga-o de tal forma que os demais aspectos da vida parecem um tanto alienígenas,
difíceis de serem dominados. O atrapalhamento não é uma contingência física: anteriormente
descreveu-se a habilidade do repórter para dominar dois telefones e um celular ao mesmo tempo
em que digitava e-mails. A questão é que o talento manifesta-se apenas quando os atos envolvem
sua paixão pelo esporte.
É a mesma lógica que guia as descrições da rotina cotidiana de Artur Ávila, seu estilo de
vida adotado nos últimos anos:
O apartamento do Rio, num prédio pequeno e sem elevador, a uma quadra da praia, é
espartano. As estantes não têm livros e as paredes não têm quadros. Uma mesa, poucas
cadeiras. Uma cama eternamente desfeita e uma televisão plana pregada à parede
(SALLES, 2010a, p. 39).
A vida ascética almejada pelo matemático e o paulatino desligamento de questões alheias
à sua ciência - abre-se mão do futebol, da leitura, das certezas não comprovadas - revelam-se
através destas pequenas constatações. Atentar, como faz a matéria, para o fato de que Ávila não
crê em homeopatia (que prega a diluição dos princípios ativos dos medicamentos), por exemplo,
é perceber que isto liga-se ao ceticismo e o rigor necessários ao fazer das ciências exatas.
Escrever que alguém não crê em tratamentos alternativos e espiritualizados é um dado de pouca
62
relevância, assim posto. Já no caso de um matemático, o detalhe aponta para outra coisa, que
pouco tem a ver com a homeopatia em si. Assim, é possível perceber que o detalhe simbólico
funciona por acumulação.
Talvez o exemplo mais claro disto encontre-se na abertura de O caseiro:
Francenildo dos Santos Costa era caseiro, tinha 24 anos, quatro bermudas, três calças
jeans, cinco camisetas, três camisas, cinco cuecas, três pares de meia, dois pares de tênis,
um sapato e um salário de 370 reais quando tudo começou, em março de 2006.
(SALLES, 2010c, p. 69).
A notação vertiginosa devassa o armário do personagem perfilado e revela, com exatidão,
o número de itens que possuía à época dos fatos narrados. A contagem precisa dá a ver a
verdadeira força da passagem: são poucas as roupas que o caseiro tinha. O salário, também dado
em um número exato, é escasso. Abrir o texto com estes detalhes - banais se pensados em um
contexto puramente jornalístico, informacional - implanta desde o princípio a ideia de que
Francenildo é pobre, muito pobre em contraste com a opulência do cenário no qual desenrolar-se-
á a história. Tal informação irá sendo confirmada e reforçada com outros detalhamentos ao longo
da matéria: “Tomou um ônibus, atravessou o único trecho do país [Teresina-Brasília] que
conhecia e recebeu o que lhe era devido” (SALLES, 2010c, p. 71); “Pararam no Giraffas, uma
cadeia de fast-food, onde Francenildo pediu o lanche mais barato” (SALLES, 2010c, p. 77”); “‘A
única coisa que me passava pela cabeça era que eu tinha que achar uma roupa boa pra ir na CPI.
Eu via todo mundo depondo de terno. Pensei no vexame’” (SALLES, 2010c, p. 78).
Se Francenildo é construído como um homem humilde, acanhado, o tratamento que os
detalhes desta instância reservam a Fernando Henrique Cardosa dão a ver um vaidoso. Retornam
aqui os signos de seus cabelos: não apenas descrições curiosas e divertidas, as referências ao
penteado incontrolável são sempre acompanhadas pelo desagrado do ex-presidente pela situação.
FHC não quer aparecer descabelado. Tal orgulho de si constrói-se no texto por ser acompanhado
de outras descrições de mesma função, que vão aparecendo de maneira esparsa e pontual. Instado
a fazer uma autoapresentação, FHC dispara: “‘Ah! Se é pra falar de mim mesmo, então é fácil.’ E
com um sorriso: "É uma das coisas que mais gosto de fazer’” (SALLES, 2010b, p. 14). Em outro
momento, o político realiza um tour pelo instituto dedicado à memória presidencial de Bill
Clinton:
O roteiro é compacto: réplica em tamanho natural do Salão Oval, arquivos com a
documentação presidencial e, por fim, num golpe de coreografia perfeita, um grande
63
painel intitulado Comunidade Global, com imensas fotografias dos doze líderes de que
Bill Clinton se sentiu mais próximo. Entre eles, dois ex-presos políticos (o checo Vaclav
Havel e o sul-africano Nelson Mandela), um ditador (o chinês Jian Zemin), um rei
(Hussein, da Jordânia, que contribuiu para a construção da biblioteca) e Fernando
Henrique, que sorri, envaidecido (SALLES, 2010b, p. 22)
Outro traço biográfico de FHC dá-se a ver da mesma forma. Diversas descrições dizem
respeito à sua sovinice: nota-se que comprou seus ternos na liquidação, que pechincha com as
atendentes o valor da taxa de bagagem extra, que comemora por pagar meia-entrada de idoso em
museus. (Por sua vez, estes índices não jogam apenas entre si e no interior do texto: aludem
também à imagem pública do personagem, o “presidente que vendeu todas estatais”, motivo pelo
qual não constituem também um fait divers). Desapercebidos, tais signos constroem uma malha
de significação própria, que corre em paralelo à construção biográfica mais bruta, mas aponta em
um sentido semelhante, de reconstrução do sujeito observado. O detalhe é ainda, como já
observamos, uma ferramenta à serviço da representação. É, porém, voltado na direção de uma
escritura afetiva, que não visa apreender e sim reescrever o outro. Isto dá-se pela miúdez da
notação e, na decorrência disto, sua significação lenta. Ao contrário do detalhe de fait divers e do
detalhe biográfico, que, como a informação para Benjamin (1986), impõem um sentido
totalizante à leitura, o detalhe convida o leitor à escrita, como faz um Texto: abre vácuos na sua
notação e demanda uma articulação ativa. Há aqui ainda assim um sentido pregresso que é
desvendável, algo refratário à visão de Barthes do que constitui a real escritura. Esta, no âmbito
biográfico, envolve traços de vida ainda não significados, cuja presença cria um sujeito outro, que
correlato, mas não reflexo, ao sujeito real. A tais traços dá-se o nome de detalhe biografemático.
4.3.4 Garrafas de leite: o detalhe biografemático
Chegamos desta forma ao ponto máximo da reflexão de Barthes sobre a escrita biográfica.
Conforme já exposto, a ideia de biografema dá-se em um contexto teórico e em uma bibliografia
pregressa que buscam, simultaneamente, apagar e recuperar o sujeito no texto. Esta tensão
paradoxal permite apenas a ocorrência de um Outro em fragmentos, cuja aparição dá-se naquilo
que é bem sintetizado por Feil (2010): os traços biografemáticos, elementos mínimos da vida
observada que não possuem significação própria e, por isto mesmo, são transformados em signos
de escritura.
64
Ao levarmos esta concepção à prática analítica, é possível perceber a fugacidade desse
procedimento escritural. Os detalhes biografemáticos são fugidios. Identifica-se no corpus uma
descrição singular, a notação de algum comportamento ou característica física. A leitura é ágil
para rotular e pensa-se ter identificado um traço de biografema. Os sentidos, porém, também são
rápidos e logo fazem-se presentes: percebe-se que há uma impostura moralizante naquela
descrição, ou, ainda, que sua banalidade é mera aparência, dissimulando uma significação
indicial23. Os barômetros revelam-se pianos. Em nosso corpus, a ocorrência de tais traços é ainda
mais ligeira: a série que reúne os detalhes biografemáticos empalidece diante do volume das
outras já apresentadas. (E é possível atribuir isto às contingências identificadas no subcapítulo
4.1., que identifica um embate subjacente à relação entre escritura barthesiana e texto biográfico,
sobretudo o do perfil, de caráter jornalístico).
O ponto a ser destacado é que justo esta raridade do biografemismo é o que concede
maior potência a suas aparições. O biografema, lembremos, funda-se enquanto contraponto,
como colocam Feil (2010) e Perrone-Moisés (1983). Um traço biografemático posto de maneira
isolada nada diz, pois é só um traço, um risco no vazio. É necessário que ele esteja integrado a
uma estrutura textual de implicações biográficas e que conviva em meio às informações
grandiosas e aos outros detalhes de maior concretude. Coisa alguma é pequena se não estiver
cercada de nada grande.
Um dos exemplos mais claros obtidos na análise está presente em Conversas antes da
medalha. O texto é fortemente biográfico e sua própria concepção advém de um grande fato, que
define a carreira de Artur Ávila: o recebimento da Medalha Fields, maior prêmio possível em seu
ramo de conhecimento. A perspectiva adotada por Salles chama atenção por escolher acompanhar
o personagem antes da entrega do troféu, evitando o caminho jornalístico mais comum, que
consistiria em cobrir a cerimônia. A partir desta escolha, registra-se a ansiedade e a apreensão de
Ávila, seu alívio ao sentir-se reconhecido, entre outras diversas sensações e elementos de sua
personalidade. Destaca-se desse emaranhado de reconstruções psicológicas esta imagem:
“Durante as semanas que antecederam a premiação, podia ser visto por Paris zanzando com uma
garrafa de leite na mão” (SALLES, 2014, p. 34). O matemático explica que o volume de
23 É preciso deixar claro que com isto não pretendemos afirmar o traço biografemático como um elemento puro,
incontaminável. A ideia da escritura pura é aberrante se pensarmos com Barthes: a força do Texto efetiva-se
justamente por surgir em uma rede atravessada por intertextualidades e jogos relacionais. O que queremos dizer é
que a ocorrência de um traço biografemático, sem significação biográfica prévia e/ou imediata, é rara, ao menos no
contexto do perfil jornalístico aqui enfocado.
65
preparativos - provas de ternos, sessões de fotos, entrevistas -, somado a seu trabalho rotineiro,
rouba-lhe o tempo e o impede de alimentar-se corretamente. A ingestão de leite seria um
paliativo. Ainda que esclarecida no texto, a figura do jovem que adentra lojas de alta costura,
toma metrôs e circula por avenidas empunhando uma garrafa de leite é potente e constitui um
demarcado traço biografemático: não há sentido prévio neste dado e ele é um corpo estranho em
um texto informacional, nada dizendo a não ser a poesia própria da imagem insólita. Há aqui até
mesmo o jogo de oposição próprio dos biografemas: beber leite não é uma solução nutritiva que
possa substituir refeições, e é curioso que seja adotada com tal fervor por alguém que vinha sendo
descrito em seu rigor e cientificismo, cuja rejeição de tratamentos alternativos já havia sido
registrada biograficamente.
O andarilho, texto muito semelhante a Conversas antes da medalha, também atribui um
traço do tipo a seu personagem. Acompanhando FHC por aeroportos estadounidenses, Salles
(2010b, p. 17) observa: “De terno, carregando na mão uma pasta e o sobretudo, o ex-presidente ia
empurrando uma mala espantosamente vermelha. ‘As malas têm de ser berrantes, senão levam a
sua sem querer’”. O gosto pela bagagem em cores chamativas poderia ser entendido como um
fait divers, à maneira das referências aos cabelos esvoaçantes, mas o modo em que é enunciado e
a singularidade de sua presença no texto - é a única referência ao dado em toda reportagem -
levam a crer em outra funcionalidade deste detalhe. Ainda que o personagem tente racionalizar o
dado, o apego à bagagem colorida é percebido e apresentado pelo texto como um “gosto”, para
ficarmos no mesmo termo que Barthes (2005) utiliza ao comentar a respeito daquilo que gostaria
ver constituindo um biografema de si. O autor, ao cunhar exemplos de traços biografemático,
lembra o apreço de Sade por camisas de punhos brancos e a paixão de FHC pela mala vermelha
parece-nos semelhante.
Voltemos aos exemplos concretos de traços biografemáticos presentes na bibliografia
existente, aqueles lembrados por Barthes (2005) e Schwob (1997)24. Idiossincrasias e motes de
discurso, costumes e manias, aquilo que nos constitui e sobre o que não temos controle, que é tão
mínimo e tão nosso que não percebemos e é tido como mera circunstância, um dado ínfimo e
24 Schwob não utiliza o termo biografema, que só seria cunhado por Barthes décadas após a publicação de Vidas
imaginárias. O romancista, porém, ao enaltecer as Brief lives escritas por John Aubrey, apresenta como exemplos de
boas biografias aquelas compostas por traços como “Hobbes 'ficou muito calvo na velhice; no entanto, em sua casa,
tinha o hábito de estudar com a cabeça descoberta, e dizia que não sentia frio mas que seu maior aborrecimento era
impedir que as moscas viessem pousar em sua calva'” (AUBREY apud SCHWOB, 1997, p. 18). Compreende-se aí a
influência de Schwob sobre a construção da ideia de biografema, e seus exemplos como elementos ancestrais dos
traços biografemáticos.
66
curioso pouco lembrado pelos de nosso convívio, embora prenda o olho e o ouvido de um ou
outro, eventualmente. Como o fato de FHC ter desenvolvido uma estratégia retórica curiosa em
suas palestras e diálogos públicos, algo imperceptível para a plateia, mas que Salles (2010b)
identifica e nomeia como “aberturas FHC”: “Se a conversa fosse um jogo de xadrez, esse
primeiro lance levaria o nome de abertura FHC: primeiro movimento, impressionar o
interlocutor; segundo movimento, desarmar-se em seguida, quando a primeira impressão já está
sedimentada” (SALLES, 2010b, p. 11-12). Há aberturas alternativas, como observa o repórter: o
político pode começar a conversa com uma piada autodepreciativa ou contando um causo
prosaico, que imprima a ele a impressão de ser um homem comum, de visões e interesses
mundanos. Embora tenha conotações de biografia intelectual, tais traços são biografemáticos.
Não estariam presentes em um elogio fúnebre de FHC, não seriam lembrados como fatos
definidores de sua personalidade. É possível que sequer fossem rememorados. Esta postura
coadjuvante de tais detalhes no modo de ser e portar-se dos personagens, atitudes e questões
comezinhas ampliadas e tomadas como punctum pelo olhar do biógrafo (biografólogo?), são os
tais traços de pouco ou nenhum sentido que grassam na vida de todos, à espera de um afeto que
arrebate um olho capaz de transformá-los em escritura.
Gostos e inflexões, para voltarmos à terminologia de Barthes (2005), elementos de uma
vida esburacada, “pormenores tênues, fontes, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um
canto contínuo de amabilidades” (BARTHES, 2005, p. 16). De fato, qual significação há em
apontar que Francenildo tem “fala baixa e voz triste” (SALLES, 2010c, p. 72) e costuma definir-
se apenas como “meio feliz” mesmo diante de boas novas e vitórias pessoais, qual sentido há
nessa impressão diante do cenário-foco da reportagem, de intriga política e corrupção endêmica?
Ao apontar suas lentes para um sujeito, ainda que no contexto de uma trama grandiosa, é
inevitável fazê-lo, ainda que de raspão, ainda que circunstancialmente, por meio de tais detalhes -
é uma contingência do ato de escritura: não há espaço para o sujeito e, mesmo assim, é necessário
que ele esteja ali. Há o Fernando Codá Marques, matemático prodígio que toma a geometria e faz
dela o campo de suas revelações, mas registra-se, paralelo a este, o jovem alagoano que não sabe
nadar, que é apaixonado por narrativas de máfia como Os bons companheiros e Família Soprano,
que “fala como se sua voz andasse na ponta dos pés, um traço menos de timidez do que de
mansidão” (SALLES, 2013, p. 34).
67
Assim como o Texto cria-se no momento mesmo da escritura, o biografema constrói seu
sujeito no fazer textual. Não há uma identidade exterior que deva ser observada, compreendida e
aí escrita tendo em vista a máxima fidelidade à vida real. A ideia dos traços biografemáticos,
assignificantes, racha esta concepção: nota-se aquilo que não é notável no Outro, de modo a não
suscitar uma referenciação àquilo que é exterior ao texto, ao que é da vida e das figuras públicas.
O significado do sujeito dá-se na palavra propriamente escrita, gestando a emergência de um
sujeito outro. O Fernando Henrique Cardoso das malas vibrantes não é o mesmo que governou o
Brasil de 1994 a 2002. Francenildo e sua melancolia, capaz apenas de felicidades incompletas,
não é aquele que depôs em uma CPI em 2006. São outros seres, inteiramente textuais, que
mantêm com o ex-presidente e com o caseiro ligações fugazes. A partir do biografema, busca-se
responder a questão biográfica ignorando-a, dando uma volta e a surpreendendo por trás. Não
interessa como seria possível escrever uma vida, mas sim o que resulta da vida que é possível
escrever. A função biografemática do detalhe seria assim aquela que caminha na direção de um
rompimento com a noção de escrita enquanto espelho, repelindo a representação e assumindo o
texto como Texto, como tudo que há no papel e tudo que interessa na leitura.
A observação destas quatro séries de funções do detalhe acaba por revelar as nuances da
concepção teórica que o presente estudo construiu nos últimos capítulos. Do perfil ao biografema,
o caminho é tortuoso e pródigo em precipícios e distâncias irreconciliáveis. Ao tomarmos o perfil
como um texto biográfico, torna-se possível observá-lo nos termos aqui colocados, do fait divers
ao biografema, para percebemos sua capacidade de, simultaneamente, aproximar-se e distanciar-
se dos paradigmas jornalísticos e biográficos de factualidade e fidelidade ao real. Se o intuito
inicial da monografia era, como expusemos em sua introdução, investigar a capacidade do perfil
de assumir uma forma biografemática, a análise assumida acabou por desnudar uma rede mais
complexa de sentidos. As potencialidades assumidas pelo perfil a partir das descrições dos
detalhes não restringem-se ao biografema e esta profusão revela a força destas enunciações do
mínimo, capazes de movimentarem as narrativas em sentidos diversos, de maior ou menor
proximidade com a ideia de Texto. As funções não restringem-se nem mesmo a estas quatro
sobre as quais discorremos: um trabalho de maior escopo e/ou guiado por outras ferramentas
conceituais extrairia da mesma materialidade outras diversas formas.
Entende-se daí a capacidade de uma única matéria poder apresentar no mesmo espaço
detalhes pertencentes a vários regimes de significação, e a aptidão de alguns destes detalhes para
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exercerem mais de uma função concomitantemente. Essa pluralidade e coexistência são
indicativos do jogo de relações e influências que instaura-se nestas reportagens, validando-as nos
termos da escritura. É uma trapaça: utilizando as ferramentas historicamente consagradas pelo
escrever realista e herdadas pelas escritas factuais é possível implodir a noção de representação
para, por meio do concreto, afirmar o abstrato.
69
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em seu A câmara clara (2011), Roland Barthes empreende a construção de uma teoria a
respeito da fotografia, buscando compreender quais sentidos movimentam e são movimentados
por ela. Gradativamente, o crítico revela que o esforço parte não só de uma curiosidade
intelectual: precisa apreender a fotografia para entender porque sua busca desenfreada por um
retrato sincero da mãe recém-falecida é infrutífera. Tomado pelo luto, Barthes busca recuperar o
carinho materno ao passar em revisão suas dezenas de fotos da mãe, mas o esforço é mais cruel
que reconfortante: não encontra a matriarca em nenhuma delas. Vê o rosto, reconhece a figura,
relembra o momento em que o retrato foi batido, mas não sente a presença. A mãe está lá, mas
como em um altar, austera e inatingível. Não inspira emoção e a dor é que não a achar é perdê-la
novamente. Isto até deparar-se com uma fotografia há muito esquecida. Sua mãe é ainda menina
e o retrato está um tanto castigado pelo tempo, mas tais dados são desprezíveis diante da força do
momento: é ali que instaura-se um afeto que permite a Barthes a tão ansiada conexão. Naquele
rosto que nunca viu antes, a face que sua mãe tinha décadas antes de dar à luz a ele, Barthes
afirma reencontrá-la. O rosto que reconhece é o que nunca conheceu.
Mas por quê?
Trazemos esta questão por acreditarmos que é chave para a problemática que abordamos
durante todo o presente trabalho, tendo relação direta com as relações observadas ao longo da
monografia. Ilumina-nos o caso da mãe infante pois traz de forma simbólica o problema de
representação da vida e sua resolução através do afeto. A reflexão desenvolvida até aqui buscou
descobrir de que modos o perfil jornalístico pode suceder na complexa tarefa de escrever o outro,
e os resultados obtidos através da pesquisa e da análise subsequente indicam um caminho
semelhante àquele que levou Barthes a seu reencontro materno. Encarar o jornalismo como
escritura e observá-lo criticamente utilizando o biografema como ferramenta nos leva a
compreender que o sujeito não se apanha, se recria. A mãe que Barthes retoma na fotografia de
infância não é aquela morta em 1977, a que cuidou de Roland desde sua juventude tuberculosa
até à maturidade de pop star acadêmico. Não é que Barthes descubra no retrato perdido uma
essência materna oculta desde os primeiros anos naquela mulher - ele é, lembremos, um forte
opositor das interpretações hermenêuticas. O que ocorre é a criação de uma figura materna outra
naquele espaço, tarefa facilitada pela ausência de um rosto reconhecível na fotografia em questão.
70
Ainda sobre essa multiplicidade de sujeitos, fragmentados entre os que se busca retratar e
os que efetivamente aparecem nas obras - sem contar aqueles que perdem-se no meio desse
caminho -, também cabe lembrar de João Moreira Salles. Como exposto durante a apresentação
do corpus, Salles não é só um jornalista escritor de perfis, mas alguém interessado em refletir
sobre sua produção, tendo registrado em texto uma opinião particular sobre o gênero, abrangendo
inclusive a questão do uso do detalhe na escrita jornalística (SALLES, 2006). Tentar construir
paralelos entre esse ensaio e o trabalho efetivo de Salles com os perfis, porém, é uma tarefa que
tende à frustração. Ainda que em determinados momentos Salles aproxime-se de considerações
semelhantes àquelas que tivemos sobre seu trabalho em nossa análise, na maior parte do tempo
há um alheamento. Salles nota no detalhe apenas as funções biográfica e simbólica e fala delas
como meios de “nos aproximarmos do homem” (SALLES, 2006, p. 571), demonstrando uma
crença na possibilidade de capturar a singularidade alheia - embora saiba muito bem do fracasso
inerente a essa tarefa e tenha noção da maior efetividade que há em lançar mão de uma escrita
produtora, tendo em vista a potência dos perfis que escreve. Assim, fica clara a cisão entre autor e
texto, entre a figura intelectual e a força escritural, entre a entidade de carne que racionaliza e o
indivíduo de papel, a quem só a palavra grafada interessa.
O percurso teórico realizado aqui buscou retratar o processo pelo qual essa divisão ocorre,
observando como se dá tal processo de escrita de sujeitos biográficos. Ainda que tomemos o
biografema como nosso cavalo de batalha, elemento central e propulsor da argumentação, foi
possível perceber que ele surge em um contexto mais amplo, sendo constituído de outros
conceitos. O biografema feito matrioshka, a boneca russa que, aberta, revela-se composta de
diversas camadas concêntricas. Falamos de Texto, faits divers, punctum e efeito de real,
apresentamos funções do detalhe que vão do anedótico ao afetivo, passando pelo indicial e pelo
simbólico; embora essas instâncias possam ser compreendidas isoladamente, são enriquecidas se
vistas como um caminho.
Vale aqui esclarecer o uso da ideia de fait divers. Embora tenha sido tratado até o
momento como um outro lado da moeda do biografema, o fait divers aparece na obra de Barthes
com outro intuito. O semiólogo cria o conceito como uma ferramenta de crítica ideológica,
buscando realizar uma denúncia do jornalismo como dispositivo de reiteração do real, uma
modalidade retrógrada e conservadora do texto. O biografema é uma forma outra. Surge também
como crítica, mas no sentido de desmonte que o termo adquire a partir de um segundo momento
71
da obra de Barthes, tratando de um agenciamento de escritura. A crítica à biografia não se dá nos
mesmos termos que a crítica ao jornalismo.
Tal dissonância pode ser vista como uma questão de cronologia: o fait divers surge na
década de 1960, durante a fase mais politicamente engajada de Barthes, enquanto o biografema é
tardio, surgindo na fase do pensamento do crítico que é dedicada ao prazer do Texto. Barthes é
frequentemente apontado por seus estudiosos, como Perrone-Moisés (1983) e Culler (2002),
como um autor plural, cuja obra espraia-se por diversos temas e registros. Das análises da cultura
de massa à semiologia, da ciência literária estruturalista à reflexão fenomenológica da fotografia,
seu trabalho ressignifica-se a partir de cada nova empreitada.
Mas isso é ver a questão tendo em mente o autor Barthes. Crer em pluralidade é ver a
questão pelo aspecto da obra, tomando seus livros por trabalhos individuais, corpos singulares,
crendo na figura de um autor cuja presença basta para conceder sentido. Ao contrário disso,
queremos aqui o Texto.
O próprio crítico faz menção a essa fama de eclético em seu projeto de autobiografia
afetiva, Roland Barthes por Roland Barthes (2003). No fragmento Doxa/paradoxa (p. 85), ele
refaz brevemente seu percurso intelectual, apontando os temas com os quais trabalhou. Embora
reconheça a volúpia temática nessa cronologia, Barthes reúne seus trabalhos sob um mesmo eixo:
“uma doxa (uma opinião corrente) é formulada, insuportável; para me livrar dela, postulo um
paradoxo; depois esse paradoxo se torna grudento, vira ele próprio uma nova concreção, uma
nova doxa, preciso ir mais longe em direção a um novo paradoxo” (2003, p. 85). A pluralidade
revela-se uma unicidade. A diversidade de temas não surge da vontade de um autor caprichoso,
mas sim da força que move os Textos, sempre a mesma: uma recusa às construções que se
apresentam com efeito de Natureza, às verdades absolutas, às conclusões totalizantes.
Tentamos evidenciar esta unicidade aqui ao dispormos em forma de percurso os conceitos
formulados por Barthes nesta sua empreitada anti-mitológica. Como o próprio Barthes, tentamos
identificar a trama de costuras que sustenta seus trabalhos, utilizando destes fios para compor um
novo tecido. Para isso, é preciso recusar o Barthes-autor, dessacralizando-o - a mesma postura
que é possível ver nesta sua teoria sobre a biografia que apresentamos no presente trabalho.
Retirar a ilusão de verdade que há na escrita da vida e preencher o espaço aí deixado vazio com
afetos, os detalhes que advém da ausência de concretude que há, por definição, na escritura.
72
Viu-se aqui que a ideia de perfilar ou biografar alguém é um desafio tão fadado ao
fracasso quanto o de Orfeu na mitologia grega: é preciso resgatar Eurídice do submundo, trazê-la
pela mão para a realidade da luz, mas sem encará-la durante a trilha. Olhar seu rosto faz
desmoronar a tarefa. Eurídice esvai-se. De mesmo modo, é necessário que escrevamos o outro,
mas nesta tarefa é frequente que sintamos o objeto deslizar para fora do alcance quando tentamos
enquadrá-lo. Quando buscamos representar. O jeito é - Barthes nos sugere por meio do
biografema - criar novas formas, novos sujeitos, moldados pelos afetos que nos inspiram. É, para
Orfeu, esquecer a Eurídice que jaz em Hades e cantar outra em seus poemas.
Roland Barthes por Roland Barthes abre, é preciso lembrar, com o aviso: “Tudo isto deve
ser considerado como dito por uma personagem de romance” (2003, n.p.).
73
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