ENSINAR, APRENDER E CUIDAR — LIÇÕES EXTRAÍDAS DA EMPIRIA
LÚDICA EM ESPAÇOS DE FORMAÇÃO, ESCOLARIZAÇÃO E
ACOLHIMENTO
Esse painel une três textos que se propõem a uma reflexão sobre as implicações da
rubrica lúdica nos espaços institucionais com crianças e jovens, não importando o grau,
a série de estudo ou o tipo de formação. O primeiro trabalho objetivou investigar as
retóricas lúdicas, narradas por professoras, no cotidiano da Educação Infantil. Serviu de
instrumento para a coleta dos dados, um questionário semiestruturado, aplicado às
participantes, com dados coletados numa visita aos seus loci de trabalho, com o qual
pôde identificar a noção que essas professoras têm de brincadeira, o método que
utilizam, bem como suas narrativas que alegorizam tais atividades. O segundo trabalho
envolve os alunos do Curso de Pedagogia da Faculdade de Formação de Professores, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Com base em narrativas das memórias de
infância e linguagens artísticas, concluiu-se que há o reconhecimento do componente
lúdico, como princípio pedagógico, contribuindo significativamente para apropriação, a
(re)produção e a (re)invenção daquilo que os pequenos apreendem no mundo em que
habitam. O terceiro texto tem como objeto a brincadeira da criança aprisionada; se as
brincadeiras têm determinações de aspectos sociais e culturais, com quais referências
usam o imaginário infantil, uma vez que são marcadas pelo abandono, negligência e
violência. Assim esses textos se juntam para sua convivência acadêmica e se orientando
pelas lentes da ―cultura lúdica‖, a qual se supõe frequentar o espaço natural e cultural da
formação de escolares e de instituições protetivas. Os trabalhos revelam que no
cotidiano dessas instituições, a ludicidade se figura como importante linguagem aos
ritos do ensinar, do acautelar e do aprender de crianças e jovens.
Palavras-Chave: Formação, Acolhimento. Ludicidade
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BRINCANDO NA EDUCAÇÃO INFANTIL — ENSINAR E APRENDER COM
RETÓRICAS LÚDICAS
Cleomar Ferreira Gomes – UFMT
Resumo
O presente texto objetivou investigar, na cultura do brinquedo e da brincadeira, as
retóricas lúdicas, narradas por professoras no cotidiano da Educação Infantil‖. Serviu de
instrumento para a coleta dos dados, um questionário semiestruturado, aplicado às
participantes, com dados coletados numa visita aos seus loci de trabalho, com o qual
identificamos a noção que as professoras têm de brincadeira, o método que utilizam
para desenvolver atividades lúdicas no ambiente escolar, bem como as narrativas que
alegorizam tais atividades, na esperança didática de obter algum resultado positivo na
educação de crianças pequenas com o uso de brinquedos e brincadeiras. Antes de lidar
com essas informações, supomos apropriado considerar aquilo que alguns teóricos dos
termos ― brinquedos e brincadeiras ― relevam como válidos pela pena da ciência. Foi
muito rico para pesquisadores e professoras saber como elas lidam com esses conceitos
no seio de trabalho e como aproveitam esses conhecimentos adquiridos nos cursos de
formações específicas e estudos para, na intervenção, auferir algum resultado prático.
Para tanto formulamos algumas questões que pudessem cercar esses conhecimentos no
modus operandi de cada uma dessas professoras. As respostas nos revelaram, que os
discursos são favoráveis à entrada de brinquedos, de jogos e de brincadeiras no espaço
escolar porque são importantes no curso natural do desenvolvimento das crianças. De
modo particular foi possível analisar as formas de envolvimento e as intervenções
destas professoras, e aquilo que narram como percepções, noções e mesmo intervenções
pedagógicas, alegorizam ou melhor representam as funções estéticas e pedagógicas que
as brincadeiras e os brinquedos se submetem quando entram nos espaços de
escolarização.
Palavras-chave: Educação Infantil. Alegorias Brincantes. Intervenção pedagógica.
Brinquedo e Brincadeira: Da importância das noções
Esses vocábulos, no terreno da escola de crianças pequenas se traduzem como
atividades que se situam, preferencialmente, no campo simbólico, como diz Château
(1987): no solo paradigmático dos jogos de faz de conta. Eles nascem de uma força
criativa que tem o ser humano, as crianças por excelência, de exercer a sua rubrica
lúdica, isto é, uma capacidade natural de fazer coisas, manipular objetos, produzir fatos
e de inventar histórias que põem em ação um preenchimento do tempo de sua existência
subjetiva e social.
Essas atividades devem ter a preocupação primordial de ajudar as crianças a
estimularem-se para sua criatividade, à aprendizagem das regras sociais, e a se
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libertarem dos ―horrores do mundo de gigantes‖ como prefere Benjamin (1984, p. 64),
porque esse mundo é feito de obrigações pesadas demais para a cultura infantil que tem
outra realidade para dar conta. É bom lembrar que essa criança a que se refere esse autor
se materializaria numa ―criança ideal‖ e não nas ―crianças reais‖ que conhecemos,
sobretudo aquelas dos países mais empobrecidos, onde têm, desde cedo, a sua infância
lúdica esboroada pelas dificuldades existenciais (fome, escolarização precária,
insalubridade, riscos sociais, maus tratos) e que doravante serão impelidas aos apelos do
mundo do trabalho precoce.
As brincadeiras
É bom repetir que o termo brincadeira não existe noutra cultura linguística como
nós o utilizamos por aqui. Muitas vezes se confunde com a palavra ludicidade, que não
consegue separar aquilo que dissimula, que simboliza e o que dá prazer. A qualidade
que tem um objeto (brinquedo) ou uma atividade (brincadeira) é que faz despertar um
estado lúdico, a espontaneidade, o senso de humor e a alegria. É uma atividade livre,
instável, voluntária e não sujeita a ordens externas ao seio da própria brincadeira. O
professor de crianças pequenas deve saber que é precisamente em tal fato que reside sua
espontaneidade ou aquilo que apregoa Huizinga (1990), como sendo a sua primeira
característica.
Desse modo poderíamos acentuar que a brincadeira é a ação de brincar, uma
atividade espontânea, composta de regras flexíveis, que carrega a função precípua de
entreter e que escorre em tempos e espaços à escolha do brincador, de caráter atemporal,
sendo mais exclusiva da Cultura Infantil.
Dos brinquedos e de crianças
Cascudo (1988, p. 146), com seu dicionário do folclore brasileiro, apresenta dois
diferentes sentidos para brinquedo. Num primeiro, tanto brinquedo como brincadeira
são sinônimos de jogos, rondas, divertimentos tradicionais infantis, cantados,
declamados, ritmados ou não, de movimento. Num segundo, o brinquedo é um objeto
material para brincar ― carro, arco, boneca, soldados, papagaio, figuras ― assim como
a própria ação de brincar ― brinquedo de dona-de-casa, de cabra-cega, de galinha-
gorda, de chicote queimado. Como se vê nessas duas acepções há por um lado o
dinamismo de uma atividade e doutra parte o leiaute de um objeto em que vigoram a
experiência lúdica.
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Algumas informações de Cascudo nos pareceram servir em especial para o
assunto do presente ensaio. A primeira diz respeito às brincadeiras infantis mais
preferidas. No dizer do autor, essas brincadeiras mais populares (idem, p. 146) são as
mais universais e de livre movimentação individual. Essas brincadeiras dificilmente
desaparecem: são das mais admiráveis constantes sociais, transmitidas por via oral,
abandonadas numa geração e reerguida na outra, numa sucessão ininterrupta de
movimento e de canto. A segunda diz respeito às menos preferidas das crianças. ―São as
que restringem o direito de alguma improvisação no gesto e na carreira. Esgotam
rapidamente o desejo de brincar e monotonizam o grupo‖. (Idem, ibidem loc. cit.). São
brincadeiras que não promovem a excitação, não têm uma força ou vivacidade tal que
possam absorver por completo o brincador. Seriam, numa linguagem própria de criança,
aquelas brincadeiras sem graça, xoxas ou ―chatas‖.
Para autores da língua francesa como Brougère (1995) e Manson (2002), por
exemplo, a noção de brincadeira ― de ―jogo‖ ― precisa ser relativizada quando se
pretende pesquisar sobre o assunto. Brougère recomenda partir do princípio de que jogo
― a brincadeira ― ―é uma palavra complexa e que é preciso às vezes, um consenso no
que é.‖ Há pesquisadores que se interessam pela utilização da palavra jogo, ―pelo
discurso sobre o jogo‖, por uma reflexão sobre a palavra jogo, seu campo semântico e,
portanto, o ―centro do trabalho‖ é a significação mais do que o jogo em si. O autor
inclui-se entre aqueles que não se interessam pelo que ele denomina como ―retórica‖
sobre o jogo, à guisa do que faz Sutton-Smith (1997) em sua obra ―The ambiguity of
play‖. Para Brougère essa reflexão é secundária, quando nos dirigimos às atividades
endereçadas às crianças. Mas podemos nos interessar pelo uso da palavra, mostrando ―o
que as pessoas chamam de jogo, o que os mais velhos e as crianças chamam de jogo‖,
isto é, pensar a questão da palavra jogo, ―mas em relação ao que consideram aqueles
que brincam e aqueles que não brincam. São elas que podem dominar a resposta, não o
pesquisador‖. Pode ser, explica Brougère, que venhamos a descobrir que é importante o
que é chamado de jogo (brincadeira), mas isso se descobrirá no campo, nas observações,
na conversação. Num primeiro tempo, o que interessa é ver o que as crianças fazem.
Outro autor que alerta o pesquisador sobre as armadilhas das categorizações ou
conceitos iniciais ―muito fixos‖ ― os pré-conceitos ― e da importância da experiência
que é preciso dar ao que os sujeitos denominam jogo é o americano Tobin (1997). Mais
importante que o nome conferido ao jogo ― brincadeira ― e do que as categorizações
dos brinquedos é saber o que as crianças estão pensando enquanto estão brincando ou
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jogando. ―Na pesquisa, diz esse autor, nós necessitamos de entrevistas, de técnicas, de
métodos que possam compreender os espíritos que estão jogando... O que podemos
fazer? Observar... Precisamos conversar com as crianças. Elas têm muito a nos ensinar,
a ver coisas importantes que nos façam penetrar no mundo da ciência.‖
No intuito de nos aproximar do que realmente é o brinquedo e a brincadeira e as
prováveis diferenças entre os dois termos, depois de ter lido gente autorizada a respeito
do assunto, buscamos das próprias crianças aquilo que observamos e ouvi das
professoras de crianças pequenas, numa contribuição, aqui posta, como um reforço
teórico a partir do empírico.
Da pesquisa feita – o método
O método, segundo Lakatos e Marconi (2010, p. 65) ―é um conjunto das
atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia, permite
alcançar o objetivo ― conhecimentos válidos e verdadeiros ― traçando o caminho a ser
seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista‖; e se para Cervo e
Bervian (2002, p. 23-25), não criamos um método, porque ele está intrinsecamente
ligado ao assunto da pesquisa, considerando que a investigação brota do problema de
eleição, por isso o uso desse conjunto de etapas de que se serve o método científico,
para fornecer subsídios necessários na busca de um resultado para as questões
norteadoras da pesquisa irá estimular o nascimento desse caminho que ajudará o
pesquisador a realizar tal investigação, a desvelar seus mistérios e a produzir suas
constatações, inspiradas pelas hipóteses de trabalho.
Foi se pautando por estas assertivas que entramos em campo, com ― um
método ― ou critérios para a busca da explicação das questões ou dos problemas
específicos, descritos no que seriam as brincadeiras vistas e feitas pelas professoras de
crianças miúdas ― da educação infantil.
Supondo que o brincar é o ato de manifestação da ludicidade, exercida por
homens e animais filhotes, que envolve o ser brincante, que o brinquedo seria todo o
material ou as ―coisas‖ que se utilizam como objeto para brincar e que a brincadeira
seria essa atividades simulada por nossa imaginação, ―entramos em campo‖ com o
objetivo cardeal de investigar a cultura do brinquedo e da brincadeira pela percepção
das professoras da rede municipal da baixada cuiabana, enquanto professoras da
primeira etapa, Educação Infantil, do Ensino Básico, e enquanto alunas da disciplina
―Brinquedos e Brincadeiras no cotidiano da Educação Infantil‖, sob a nossa batuta.
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Em sua ementa essa disciplina reza pelas seguintes temáticas: O brincar como
eixo curricular e sua prática no cotidiano da educação infantil. O brincar e suas teorias.
A brincadeira na infância em diferentes abordagens: filosofia, antropologia, psicologia e
sociologia da infância. O brincar como forma própria de a criança significar e apreender
o mundo. Brincadeira e construção de conhecimento. Brincadeira como experiência de
cultura. Brincadeira e culturas infantis. Jogo, brinquedo e brincadeira: definições e
questões. A ludicidade como mediadora da ação da criança. As culturas infantis na
contemporaneidade e o repertório de brinquedos, brincadeiras e práticas lúdicas ao
longo da história. Os espaços e tempos do brincar em creches e pré-escolas.
Para tanto, aplicamos um questionário semiestruturado (questões em anexo) com
as participantes da disciplina e com os dados coletados identificamos a noção que as
professoras têm de brincadeira e o modo como desenvolvem esta atividade no ambiente
escolar. De modo particular foi possível analisar as formas de envolvimento e
intervenções destas profissionais no momento da brincadeira das crianças. Atividades
práticas nas aulas da disciplina. Como atividades práticas propusemos e realizamos as
seguintes brincadeiras: construção de Brinquedos cantados; Brincadeiras de roda,
brincadeiras com o uso do corpo sem materiais e algumas intelectivas como ―Jan-Ken-
Pô‖ (Para saber mais sobre este jogo infantil ― funcionamento, história e curiosidades,
basta consultar o seguinte endereço: pt.wikipedia.org/wiki/Pedra, papel e tesoura). O
―Resta Um‖ é um quebra-cabeça no qual o objetivo é, por meio de movimentos válidos,
deixar apenas uma peça no tabuleiro. No início do jogo, há 21 peças no tabuleiro,
dispostas com (seis, cinco, quatro, três, dois e uma peças) a formar um triângulo
retângulo ou escaleno. Um movimento consiste em pegar uma peça e fazê-la ―saltar‖ do
tabuleiro, mexendo-se na horizontal (quantas peças quiser ou na vertical, apenas uma
por vez), deixando os espaços em vazio. A peça que foi ―saltada‖ é retirada do tabuleiro.
O jogo termina quando restar apenas uma peça. O jogador vencedor será aquele deixar
ao tabuleiro a última peça ao seu oponente.
Como havíamos trabalhado as rubricas do jogo e da brincadeira segundo a obra
―os jogos e os homens ― a máscara e a vertigem‖ de Caillois (1990), todas as
atividades que aplicamos em sala, sugerimos que fossem ―banhadas‖ ou ―molhadas‖, de
molho com a essa teoria para que elas percebessem a serventia daquilo que chamamos
de pressupostos teóricos, num exercício acadêmico de enxergar a teoria na prática e
prática com a teoria, e que tentassem, numa alegoria, tentar irrigar a prática de cada
uma.
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Significações e interações das professoras com as brincadeiras infantis
Passamos, nesta seção, a mostrar aquilo pode caracterizar-se como o trato
cotidiano dessas professoras e suas relações com as crianças da pré-escola ou creche,
enquanto tais, no uso de brinquedos, brincadeiras e jogos. Este primeiro momento de
descrição resulta da escuta de 30 dos 60 professores em exercício nessas unidade
escolares, o que quer dizer as vozes da metade de todas as que se encontram ―regendo
classes‖ ― que aqui chamaremos de ―alunas-professoras‖ ― todas responsáveis pelas
aulas de Educação Infantil ― que chamaremos ―professores de pré-escola‖, e que terão
a sua identificação com um nome fictício, num acordo com todos eles que colaboraram
com a investigação e que bem podem representar todas as professoras e os professores
das unidades de pré-escolas da rede cuiabana de ensino da Educação Infantil.
Mostramos essas vozes na forma de seus fragmentos mais reveladores e
materializados no papel a modo de serem enxergados e juntados aos comentários tirados
da observação assistemática do grupo em sala de aula do curso, sejam na horas das
brincadeiras e da construção dos brinquedos. Com base no que vimos mostrar, supomos
ser possível caracterizar o cotidiano das professoras dessa ―fatia‖ escolar,
caracterizando, ao mesmo tempo, do ponto de vista das participantes, os brinquedos e as
brincadeiras de sala e os de curso, assim como as relações existentes entre um brincar da
escola para ensinar e um brincar do curso para aprender.
O que alegorizam suas narrativas nos discursos e nas práticas
Ficamos à vontade com a acepção da palavra alegoria assumindo com a
etimologia do termo aquilo que o dicionarista Houaiss trata como o modo de expressão
representar pensamentos, ideias sob a forma figurada. Alegoria, também como dizer
outra coisa além do sentido literal das palavras ou ―significação encoberta‖, naquilo que
ela representa na sua função estética, muito mais que uma interpretação exegética, como
fazem os textos sagrados.
São sagrados para nós as falas, as percepções, as noções e o trabalho das
professoras quando envolvem a aquisição de brinquedos e brincadeiras, que sob, apesar
e além do sentido literal, pode representar outra coisa no sentido metafórico, assim
como fazem as crianças quando se travestem de lobos, monstros, ogros e fadas. Desse
modo particular, as brincadeiras feito máscaras podem pôr em cena o nosso lado mais
burlesco, caricato, mas também mais generoso. É com essa ambiguidade que as
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professoras encaram com seu trabalho, aquilo que os jogos, os brinquedos e as
brincadeiras podem oferecer.
É muito comum quando professores de pré-escola, dizem sobre a usança de
jogos, brinquedos e brincadeiras de crianças, em seu métier, o destaque à palavra
importância, quase sempre acompanhada de uma utilidade na presença desses pré-textos
enquanto estratégias, ou como o Método. Não é incomum também anexarem à palavra
importância uma outra tão surrada quanto esta: o desenvolvimento. Desse modo, com a
hibridação desses dois vocábulos chegamos à locução obsessiva na cultura escolar
quando esta se dirige à função de ser importante porque ajuda no desenvolvimento de
seus alunos. Embora essas mesmas professoras, às vezes se esquecerem que a palavra e
a função carregam uma complexidade porque não é tão fácil nem de se perceber e muito
menos de explicar como isso pode ocorrer no curso do crescimento de um indivíduo: o
brincar pode ser mais que importante; pode requerer mais que manipular brinquedos;
pode ir além do desenvolvimento, pode esconder ou mascarar, com a licença de cada
alegoria algo que esteja subterrâneo. Não é incomum, os alunos, muitas vezes,
simularem prestar atenção às aulas, quando seu corpo já está catapultado no recreio ou
nas aulas lá da quadra.
Há teoristas que, quando tratam da função dos jogos, elegem uma matriz
psicogenética, porque supõe que os nossos genes são capazes de carregar informações
seletivas e de endereçar a outras gerações de modo natural. Um exemplo clássico seria
quando uma criança aprende a jogar algum jogo sem nunca ter jogado. As informações
atávicas auxiliam na aquisição dessa aprendizagem. Outros assumem que isso só é
possível, no curso das interações que os indivíduos estabelecem com o meio ambiente e
com as pessoas e objetos de seu entorno, sejam de modo objetivado ― no caso da
escola ― ou de modo aleatório ― na vida cotidiana.
Não importa, basta que exista uma escola e lá estarão os jogos, os brinquedos e
as brincadeiras, que se resumirão em atividades lúdicas, porque a criança, dizendo de
um jeito simples, precisa, merece e tem o direito de brincar. Mas nunca se fala de
privilégios porque são ―filhotes‖, assim como qualquer mamífero que têm muita energia
para gastar.
Do questionário (Para o questionário utilizado, foram formuladas essas questões,
mas para este textos utilizaremos apenas aquelas que respondem aos discurso e práticas
de intervenções: O que significa brincar para você? O que representa o brincar para a
criança? Você faz intervenções quando as crianças estão brincando? Quando você era
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criança, costumava brincar de quê? Você costuma brincar com seus alunos? De quê?
Qual é a brincadeira que você percebe que as crianças mais gostam de brincar com
você? Você utiliza brinquedos), que aplicamos a essas professoras foi possível extrair
algumas respostas que nos serviram de categorias de análise. Vamos, por eleição, nos
concentrar nas narrativas que se remetem ao discurso de ser importante e das práticas de
intervenções que ajudam no desenvolvimento das crianças.
Discurso sobre a importância
O brinquedo, segundo essas professoras, carrega o potencial de enriquecer o
mundo infantil, de desenvolver suas habilidades, criatividade e sua autonomia. Serve
também como fuga das atividades em que as crianças devam fazer sentadas, o que
facilita na manutenção do controle. Transforma o ambiente, transportando as crianças
para a ―terra‖ do faz de contas, para um ambiente de ―magia‖ propício à aprendizagem.
O ambiente se torna mais agradável, divertido e alegre. Contribui para um bom
relacionamento entre professor e aluno nas relações interpessoais e é excelente forma de
imprimir na criança o respeito às regras, necessário para a brincadeira e para a vida. Não
se esquecendo sempre de adotar o brinquedo mais adequado para cada faixa etária e
incentivar as crianças ao cuidado com o brinquedo.
Essas falas abaixo podem melhor dizer o que a análise suscita:
É muito importante porque respeita a criança pelo simples fato de ser criança,
deixando assim um ambiente menos formal e mais acolhedor. (Profa.
Carmem – 25 anos).
O brinquedo é algo que as crianças gostam... aprendem como dividir, ter
cuidado e sabem como usar no momento certo... É uma ferramenta que pode
ser usada como um recurso na Educação Infantil. (Profa. Vera – 35 anos).
O brinquedo no ambiente escolar [...] lhes dá a liberdade de viajar na
imaginação. (Profa. Helena – 27 anos).
... sua imaginação trabalha o seu raciocínio lógico e o seu intelecto. Onde a
criança é livre para criar e recriar. (Profa. Denise – 30 anos).
... é através dele que a criança apreende e aprende sobre o mundo em que
vive. (Profa. Marcela – 33 anos).
[...] o brinquedo dá vida ao ambiente escolar e estimula a imaginação das
crianças. (Profa. Jaciara – 30 anos).
Uma outra categoria nos foi necessária para registrar o que elas, as professoras
consideram como intervenção, que nós, por opção preferimos nominar de suas práticas.
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Ao serem perguntados se fazem intervenções quando as crianças estão brincando, as
professoras responderam, na maioria que fazem; às vezes; raramente; sempre e há
aqueles que preferem não fazer intervenção alguma.
Quanto ao tipo de intervenções, foram citadas algumas formas de explorar
situações para estimular o desenvolvimento dos alunos, incentivar e encorajá-los a ter
atitudes e inciativas de como potencializar a afetividade. Uma grande parte dos
professores se posiciona sobre a necessidade de resolver conflitos que ocorrem antes,
durante e após o brincar, julgam que há situações em que seus alunos não são capazes
de resolver, resolução também eficiente quando desrespeitam as regras pré-
estabelecidas.
Alguns consideram o momento do brincar como primordial e apenas tomam a
atitude de observar. Outros já dizem interferir, quando convém, sem atrapalhar a
brincadeira, para fazer perguntas pontuais e pertinentes ao contexto brincante. Há
também um grupo de professores que apenas interferem quando pressentem uma
iminente agressividade entre as crianças ou o risco de acidentes físicos.
A professora Marisa diz se preocupar quando as crianças fazem das peças de
montar armas de brincar, alega intervir e orientar para que essas condutas sejam
evitadas, pois, para ela ―não é uma brincadeira legal‖, isto é, do bem, já que em sua
visão ―arma não é brinquedo‖. A professora Nazaré responde quando se dá sua
intervenção: ―Quando é necessário, nas resoluções de conflitos ou quando a atividade é
direcionada, para alcançar os objetivos planejados, de forma sutil para não estragar a
brincadeira [...]‖. Assim como Nazaré, algumas das profissionais responderam o
questionário mencionando a categoria de atividades dirigidas ou direcionadas.
Abaixo algumas das falas que mostram como são esses tipos de intervenções:
Às vezes. Quando surge conflito entre eles, na disputa pelo mesmo
brinquedo ou quando é necessário fazer uma mediação para estipular regras.
(Profa. Rosa – 30 anos).
Poucas vezes. Quando há briga por um determinado objeto e quando a
atividade que estamos desenvolvendo pede. (Profa. Paula – 29 anos).
Às vezes. Entro na brincadeira por ex.: duas crianças brigavam porque o
coleguinha queria o mesmo pedaço do bolo de chocolate, então entrei na
brincadeira e falei: amiguinha porque não troca o bolo de chocolate por bolo
de abacaxi? E resolveu a questão. (Profa. Maria – 25 anos).
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Há, ainda, professoras que preferem uma intervenção na brincadeiras e nos jogos, mas a
propósito naquilo que podem escoar a uma outra alegoria, voltada à construção ou
mesmo a uma viagem as suas reminiscências.
Às vezes. Eu proponho às crianças algumas brincadeiras que foram da minha
infância... uma brincadeira mais simples e sutil, que não seja muito
elaborada. (Profa. Luzia – 30 anos).
Às vezes. Quando noto que posso acrescentar algo na brincadeira faço
intervenções, por exemplo, quando estão brincando de carrinhos e um
quebra, eu falo: podemos construir uma oficina? etc. (Profa. Nair – 30 anos).
Como se vê as intervenções são para resolver os problemas ligados à
agressividade ou alguma forma de violência, mas há aquelas, em pequena minoria, que
intervêm propondo um acréscimo na atividade, mudando a sua rota, sem se desgrudar
da intenção maior da escola: estar à cata de novos conhecimentos.
Considerações Finais
As alegorias na forma de escrita, fala e ação das professoras nos conduziram a
alguns desvelamentos sobre brinquedos e brincadeiras de crianças, sob o manto
pedagógico do discurso e da prática.
Com o mantra sobre a importância do brinquedo, dos jogos e das brincadeiras
no ambiente escolar, foi possível observar que os participantes os consideram
essenciais, quando afirmam que estimulam à aprendizagem, auxiliam no processo de
alfabetização, além de servirem para: entreter, descontrair a criança, trazer prazer e
alegria, para desenvolver a flexibilidade motora, a oralidade, a criatividade, os aspectos
emocional, afetivo e a fantasia.
O brinquedo figura como suporte, como motivação para a descoberta do outro e
de si mesmo, favorece a interação social, a socialização, a manipulação de objetos
novos, propicia a combinações de ideias quando estimula a criança a aprender a
compartilhar, a dividir e a cooperar de livre e espontânea vontade, sem aquela obrigação
moralista do dever ser.
Nenhuma das entrevistadas enxergam uma oposição entre o divertimento estéril
e a instrução. Manson (2002, p. 242) descreve que os pedagogos iluministas alertavam
para esse antagonismo entre brincar e estudar. Ratifica esse autor que ―nas obras
pedagógicas como nos livros para a juventude, exprime uma hierarquia de valores, onde
o estudo leva a melhor sobre a brincadeira‖. Os autores contemporâneos de Rousseau
recomendavam que ajudássemos as crianças a não ter repulsa pelo estudo, porque é feito
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de sacrifícios, mas que por outro lado não deveríamos ―esconder os esforços necessários
sob o manto falacioso e encantador do jogo‖. (MANSON, 2002, p. 242).
As intervenções das professoras nos ensinaram, de modo peculiar ela as fazem,
mas quando lemos detidamente suas falas, a alegoria relevante dá-se na diligência
policial, mais que na intervenção pedagógica. Estão mais preparados a intervir para
dissolver conflitos, do que para a mediação de situações litigiosas ou, quem sabe
apresentar uma sugestão para outros caminhos que trariam uma nova energia.
São raros os professores que sugerem um desenho, uma fotografia, uma
filmagem ou outra mídia tendo como mote os brinquedos e as brincadeiras, assim como
são raros os professores que brincam com eles; que tentam extrair uma pauta para
assuntos relevantes ou que proponham uma discussão de gênero, diversidade,
precariedade do espaço escolar, a partir dos episódios litigantes que venha a irrigar uma
conduta de risco.
Os professores intervêm para uma contenção, que nada tem a ver com a
preservação e estimulação do ambiente lúdico. O que não significa que as crianças não
devam ter um olhar de alguém que as cuide, nem tão pouco que se faça vistas grossas às
possibilidades de incidentes que podem ocorrer nestes espaços brincantes. Porque as
crianças, movidas por seu espírito lúdico, muitas vezes se põem em ciladas ou em
situações de risco.
São raras, mas pelas vozes há espaço para intervenções criativas destes
profissionais, quando são capazes de captar as situações de brincadeiras que se
apresentam nos grupos infantis e aos poucos inserir objetos, brinquedos, ideias ou
músicas, e imiscuindo-se, eles mesmos na situações brincantes, tornando assim mais um
brincador.
Por fim, nota-se que os discursos sobre os brinquedos e brincadeiras na educação
infantil denotam que os professores trazem em suas memórias narrativas lúdicas infantis
e tentam, em algumas situações, reproduzir, com seus alunos, as brincadeiras que
conhecem desde criança.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo:
Summus, 1984.
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BROUGÈRE, Gilles. Jeu et Éducation Paris: Harmattan, 1995.
CAILLOIS, Roger. Les jeux et les hommes: le masque et le vertige. Paris Éditions,
Gallimard, 1967.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: EDUSP,
1988.
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POR UMA PEDAGOGIA DA INFÂNCIA — ENTRE O CUIDAR E O EDUCAR
NA PERSPECTIVA DA LUDICIDADE
Tania Marta Costa Nhary
Resumo
Este texto em tela se debruça na esteira das teorias da Sociologia da Infância, com a
ideia de (re)instaurar uma pedagogia da infância, no âmbito da Educação
Infantil. Supomos que a infância, como intensidade, é um situar-se no mundo, um sair
sempre do seu lugar para outros desconhecidos, inusitados, inesperados, possibilitados
também pelo prazer e desafios proporcionados pelos jogos e brincadeiras. Logo, uma
pedagogia da infância sugere o reconhecimento de que as atividades lúdicas envolvam,
por parte dos pequenos, aprendizagens especiais como o desenvolvimento de
autonomia, confiança, cooperação, curiosidade, capacidade de elaborar questionamentos
e críticas, criatividade, formas de socialização e interações e o enriquecimento de
múltiplas linguagens. Nessa perspectiva, o cuidar e o educar se imbricam e se
banham pela ludicidade no contexto escolar. Se reconhecemos a infância como uma
construção, envolvendo um conjunto de representações sociais e de crenças em que se
estruturam dispositivos de socialização, também reconhecemos que a linguagem para
tal deva ser a lúdica. Dessa forma, o pano de fundo da pesquisa em tela envolve
os alunos do Curso de Pedagogia da Faculdade de Formação de Professores, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Com base em instrumentos metodológicos
como as narrativas das memórias de infância e linguagens artísticas — formas de evocar
imagens sobre a infância —, concluiu-se que há o reconhecimento, por parte desses
graduandos, de que o componente lúdico, como princípio pedagógico, contribui
significativamente para apropriação, a (re)produção e a (re)invenção do que os
pequenos apreendem do, no e com o mundo que habitam.
Palavras-chave: Infância. Educar. Cuidar. Ludicidade.
Introdução
Na atualidade, muito se tem falado, refletido e discutido sobre infância,
sobretudo no contexto da educação. Mas de que infância se fala? Partimos da ideia que
criança e infância são termos que se complementam, estão imbricados, mas que não
dizem exatamente a mesma coisa. Criança é o ser biológico, que cresce e se desenvolve,
logo, é uma etapa inicial da vida humana que opera segundo aspectos bio-psico-sócio-
culturais.
Como infere Sarmento (2004), infância é um fenômeno social, é construção
sócio-cultural, é uma condição da experiência que faz parte do processo histórico vivido
por cada indivíduo, por cada criança, por isso há distintas infâncias. Como já
mencionava Charles Fourier, por volta de mil e oitocentos, ―a infância está para além
das crianças‖ (apud SCHÉRER, 2009). O rastro epistemológico para esse entendimento
parte de diferentes áreas e contexto, mas aqui vamos priorizar a Sociologia da Infância
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como lugar para se falar de criança e práticas pedagógicas da Educação Infantil. Logo,
procuramos entender o tema ‗estudos da infância‘ como uma ressurgência e em sua
horizontalidade, buscando na urdidura das teorias produzidas, refletir sobre a formação
e a ação de professores para esse segmento de ensino. Não se trata, no entanto, de uma
abordagem linear, mas uma abordagem que escapa ao sentido de verticalidade, do
pensamento sobre o devir-criança submetido a uma única via, qual seja: a condição de
estado preparatório para a vida adulta, ou, no âmbito escolar, com caráter propedêutico
de preparação para as séries iniciais seguintes do ensino fundamental. Não, não é por
essa linha que pensamos e transitamos. Propomos olhar a criança com olhos de criança,
recusando o olhar redutor e adultocêntrico, buscamos entender o ―devir-criança‖.
Ponderamos, como Deleuze e Guattari (1998), que a palavra devir deva assumir a forma
ativa de um verbo, potências de ações não lineares, não encadeadas pelo antes e o
depois, mas marcadas pelo espírito de aión, uma intensidade vivida no aqui e agora,
sempre nova e renovável. Falamos de uma criança encarnada. Assim, nessa esteira de
pensamento, usamos os verbos que dão títulos as partes desse texto com a intenção de
colocar em foco o sentido da ação das palavras escolhidas, colhidas não só pela vertente
teórica estudada como pelos achados da pesquisa em tela, que adotou como heurísticas
as narrativas brincantes e diferentes expressões artísticas com o objetivo de capturar as
imagens das infâncias de sujeitos em formação, no Curso de Pedagogia da Faculdade de
Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – FFP/UERJ.
Então, a partir das referências mencionadas, propomos, aqui se ‗falar de
infâncias‘, se ‗entender a educação infantil‘, pensar a ‗ludicidade‘ e ‗refletir‘ sobre
formação de professores, respeitados os limites de espaço da escrita e o lugar em que
esse texto se insere
Falando de Infâncias
Para tecermos algumas confabulações sobre crianças, como já mencionado,
recorremos à Sociologia da infância, uma área de conhecimento relativamente nova que,
de algum modo, nasceu da confluência de estudos educacionais e sociológicos.
Pensadores como Willian Corsaro, Manoel Jacinto Sarmento, Manuel Pinto, Jans
Qvortrup, dentre outros, se debruçaram sobre o tema com a intenção de afirmar o lugar
da infância na sociedade contemporânea. Não que tenham inaugurado o tema, visto que
desde o Iluminismo a infância já havia sido inventada (SCHÉRER, 2009), mas foi dado
a ele um impulso considerável, fazendo com que a Sociologia, em seus desdobramentos,
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abrisse um campo específico para se pensar e construir conhecimento a cerca dos
pequenos em sociedade.
No entanto, sempre existiu uma diversidade de concepções de infância, mas
diferentes olhares ao longo dos séculos vêm se constituindo como um corolário que
remonta à noções de infância que variam em função de fatores históricos, sociais,
culturais e políticos de cada época. Logo, supomos que o lugar da infância na
contemporaneidade é um lugar de mudanças, visto que sua condição social vem se
alterando em grande escala frente a um mundo que vem mudando por conta de fatores
como a globalização, a pobreza, a exploração do trabalho infantil, as doenças, os
conflitos bélicos, a estrutura financeira, urbana e familiar. Fatores esses que colocam em
cena a concepção de infância que a modernidade instituiu.
O interesse pelo estudo do mundo dos pequenos na atualidade proporcionou o
crescimento de vários métodos, tanto os que capturam o cotidiano infantil quanto os que
capturam a contextualização dessa infância (CORSARO, 2011). No entanto, pensamos
ser necessário compreender os modos de vida dos pequenos para apreender seu
cotidiano vivido também no contexto escolar, pois sem contextualizar os aspectos
sócio-estruturais, familiares, culturais, psíquicos, afetivos e lúdicos do mundo dos
pequenos, reduziríamos nossa capacidade de compreendê-los, de escutá-los, de darmos-
lhes voz e vez. Fazemos isso balizados na ideia de Manuel Sarmento (apud DELGADO;
MULLER, 2006) de que há um ―entre-lugar‖ que considera o espaço-tempo da criança
numa dupla perspectiva. Por um lado ela vive num sistema simbólico que administra
seu espaço social. Por outro, ela vive um processo rápido de transição inerente à sua
condição de criança. Lugar de ponto de interseção de culturas, de gerações, de modos de
educar; lugar híbrido, por si só, em que os pequenos produzem linguagens, códigos,
lógicas, protocolos, artefatos, ou seja, vivem o devir-criança. Esse é um lugar de fusão
de tempos (pela perspectiva geracional), de espaços (pelas inserções sócio-culturais), de
condições (estruturais, financeiras, familiares, psíquicas e afetivas) e de atitudes,
discursos, práticas, valores e ideias (esses últimos, também no aspecto educacional, mas
não necessariamente apenas adquiridos na escola, e nem tampouco que os primeiros
aspectos lá não estejam).
Esse situar-se no mundo, visto ocupar esse ―entre –lugar‖, um sair sempre do seu
lugar para outros desconhecidos, inusitados, inesperados, contribui significativamente
para apropriação, a (re)produção e a (re)invenção do que os pequenos apreendem do, no
e com o mundo que habitam.
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Buscamos também, para além do suporte teórico, capturar essas imagens de
infâncias a partir de expressões artísticas escolhidas pelos graduandos do Curso de
Pedagogia da FFP/UERJ, sujeitos da pesquisa aqui anunciada, o que envolveu filmes,
obras de arte, histórias infantis, desenhos animados, brinquedos e outras formas de
expressar a noção que esses sujeitos constroem sobre ‗ser criança‘. À guisa de exemplo,
temos: (a) a história do ―Chapeuzinho vermelho‖ e a noção de medo, desobediência e
submissão; (b) obras de Manuel de Barros, como ―Exercício de ser criança‖, como
possibilidade de um ―ser criança‖ cuja criatividade e a imaginação alimentam a
infância; (c) as brincadeiras pintadas na tela Childhood, de Pieter Bruegel, que mostram
que o brincar faz parte da cultura infantil em toda e qualquer sociedade e em qualquer
época; (d) a música ―Saiba‖, de Adriana Calcanhoto, que expressa a pluralidade de
infâncias a partir de figuras conhecidas popularmente; (e) brinquedos como a boneca,
que remete o papel da menina ao cuidado com a casa e a família; (f) o filme O Tambor,
de Volker Scholondorff, onde a criança que perde a fala por acidente usa um tambor
como elemento de comunicação, tornando-se presente pela crítica e pela contestação da
ordem instituída.
Essas formas de expressão (dentre algumas outras aqui não mencionadas) foram
trazidas para as aulas e discutidas à luz das teorias tratadas na disciplina Educação
Infantil, obrigatória, cursada normalmente nos dois primeiros períodos do Curso e
dividida em dois segmentos, com carga horária de 60 horas/aula em cada um deles.
Pensamos em usar a arte como imagem que evoca a memória de formação, visto que
reconhecemos que os professores são produtores de um conhecimento sobre si, sobre os
outros e sobre o cotidiano. No entanto, para a tomada de consciência, são necessárias
reflexões referenciadas às aprendizagens e experiências construídas ao longo da vida
(JOSSO, 2002). Ser professor, na nossa perspectiva, é um pesquisar constante sobre
suas práticas, é um processo de esmiuçar sua própria história de formação, sua história
de vida, possibilitando um movimento de intervenção nas práticas pedagógicas de modo
mais consciente e significativo. Esse caminho investigativo, aliado às narrativas de
infância produzidas por esses sujeitos, nos ofereceu pistas reflexivas sobre a noção de
infância em diferentes textos e contextos, o que remete a projetos, práticas, ações e
didáticas para e com os pequenos.
Pelo exposto, a ideia de infância é a chave de compreensão do modus operandi
das crianças, não só em relação à sociedade, mas sobremaneira no contexto educacional
em que o conceito de infância é atravessado pelas dimensões do cuidar e do educar,
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binômio inseparável, tanto teórica quanto praticamente, mas que para compreendermos
essa indissociabilidade precisamos pensar em uma ação pedagógica que escape de mitos
fundantes no campo pedagógico, antropológico e filosófico (KOAN, 2007). Para esse
autor, o mito pedagógico, que escorre das franjas do ideário socrático-platônico, carrega
a ideia de uma estratégia educativa para a transformação da polis, de formação para a
cidadania e ensino democrático. (p.9). O mito antropológico se declina sobre a lógica de
um tempo cronológico, consecutivo e em progressão desembocando na questão das
aprendizagens (ibdem). Já o mito filosófico remete ao sentido de ser a criança um
―outro‖, um infante que, sem fala, é reconhecido como estrangeiro, como aquele que
habita outro mundo, um mundo à parte (ibdem). Esse ideário mítico foi percebido tanto
em algumas memórias de infância quanto nas expressões artísticas escolhidas pelos
sujeitos da pesquisa, aqui resumidamente apresentadas linhas acima, assim como
buscamos capturá-los nos textos lidos e estudados. Entendeu-se que essa tríade mítica
sustenta ainda discursos e práticas na Educação Infantil, mas que, no entanto, há uma
viragem epistemológica que desperta inquietações que busca superar o enredo desses
mitos trazendo à cena novas maneiras de se pensar, estudar e compreender a
singularidade da(s) infância(s). Mas, para colocarmos esses mitos em confronto
precisamos redimensionar o próprio entendimento de infância no mundo atual;
precisamos pensar e aprender com as crianças, para elas, sobre elas e por elas.
Entendendo a Educação Infantil: entre o cuidar e o educar
Que somente onde estás, tudo seja sempre infância.
Então, tu és tudo, és inexpugnável (Walter Benjamim)
A Educação Infantil, como campo de estudos, pesquisas e práticas na educação é
relativamente recente. Muito ainda precisa ser descortinado sobre o universo dos
pequenos para entendermos a infância nesse contexto educativo.
Quando propomos aqui ―entender― a Educação Infantil, fazemos menção à ideia
de compreender como esse segmento de ensino vem se constituindo. Nossas reflexões e
hipóteses, para além das teorias (re)visitadas, partem também da apreciação de
narrativas de professores em formação no Curso de Pedagogia aqui citado. Para muitos
desses sujeitos há uma falácia de que cuidar dos pequenos é cansativo, mas desafiador.
Um das narrativas revela: ―chego na escola cheia de ideias e vontades, mas quando me
deparo com uma turma de 30 crianças pequenas fico paralisada‖ (R.). Também a ideia
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de Educação Infantil remetida ao cuidar pode ser percebida nos fragmentos a seguir:
“minha mãe disse que me colocou na escola muito cedo porque não tinha ninguém
para cuidar de mim― (J.); ―como eu poderia cuidar de você se tinha que trabalhar pra
te sustentar!! (S.); “tenho poucas lembranças da minha passagem pela educação
infantil, mas o que ficou foi o ritual da merenda, todo aquele cuidado e a insistência
para eu comer tudo pra „ficar fortinha‟ (rs) (F.).
Esse revisitar a memória de infância possibilitou um movimento de recriação dos
sentidos atribuídos a estas vivências e experiências, despertando o interesse e o desejo
pelo estudo e conhecimento teórico de diferentes temas da seara Educação Infantil.
Se reconhecemos ser a Educação Infantil a primeira etapa do processo de
escolarização da criança, havemos de reconhecer também que esse meio, que é
educacional, é também social e cultural. A criança, aí inserida, se reconhecerá tanto
individual como coletivamente, produzirá e consumirá cultura, assim, o mundo que lhe
é dado a conhecer inclui a escola. É também por meio dessa instituição que ela é
cuidada e educada, que ela constrói seu próprio conhecimento a partir de múltiplas
referências, inclusive de sua própria história. Para nós essa instituição, a escola, no bojo
das políticas públicas, é uma das possibilidades de retirada da criança da invisibilidade.
De tal forma, as experiências vividas pelos graduandos se amplificam, se abrem como
manancial crítico-reflexivo quando confrontadas com a teoria.
Claro que reconhecemos a especificidade desse segmento de ensino e que muitos
fatores estão implicados, mas aqui daremos ênfase ao cuidar e ao educar, um binômio
que, embora indissociável, viveu (e talvez ainda viva no interior das escolas) certa
dicotomia, como vimos nas narrativas acima. Ao abordarmos esse binômio adentramos
no próprio contexto da Educação Infantil, compreendendo a rotina, o currículo e o
cotidiano dos pequenos, colocando em destaque que a criança cria cultura, brinca e
nisso reside sua singularidade. E, fazendo a menção à epígrafe escolhida, ‗se lá está, ela
é tudo, é inexpugnável‘. Elas afirmam suas presenças, elas fazem história a partir de
histórias e aproveitam reminiscências do vivido para (re)significá-lo.
No curso linhas acima mencionado, lócus da pesquisa cujo recorte está aqui em
tela, na disciplina Educação Infantil, como componente curricular, fazemos uma
abordagem dos fatores históricos, políticos, sociológicos e estruturais desse campo com
a intenção de abordar a infância por um viés que parte do macro ao micro contexto.
Transitamos, inicialmente, pelo próprio conceito de infância buscando diferentes
conexões. A Sociologia da Infância, como referência, nos conduz a conhecer o campo
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em sua trajetória histórica e política, assim como nos possibilita ler documentos legais
como a Constituição Federal, de 1988, as Leis de Diretrizes e Bases, o Estatuto da
Criança e do Adolescente, Referenciais, Diretrizes e Parâmetros Curriculares, dentre
outros dispositivos, com apuradas lentes de compreensão.
É por meio dessa varredura que vamos entendendo as implicações quanto ao
cuidar e educar no âmbito da escola; é também por ela que nos mobilizamos a refletir
sobre nossas ações na escola de forma a manter a indissociabilidade dessas instâncias.
Dar voz a criança, reconhecer a singularidade da infância e promover aprendizagens que
se dão pelo brincar, quer por situações pedagógicas intencionais e/ou pelo brincar livre,
é, na nossa concepção, uma proposta pedagógica que viabiliza a própria construção do
sentido de infância na Educação Infantil. Para tal, é necessário evitar mecanização de
nossas ações, ter sensibilidade para identificar e promover situações que envolvam o
cuidar e o brincar de forma imbricada, observar e ouvir as crianças reconhecendo que a
infância é uma fase de muitas aquisições e de múltiplos desenvolvimentos. É
necessário, sobretudo, levar prazer aos pequenos motivando-os e incentivando-os a
diferentes descobertas, diferentes experiências. Assim, ter sustentação teórica para
explicitar para os sujeitos da escola (o que envolve a família), por exemplo, que o
brincar é importante, é assumir uma pedagogia da infância em que o cuidar e o cuidar
podem (e devem, a nosso ver) estar atravessados pela ludicidade; é assumir a
necessidade de uma didática que traga sentido para os pequenos, logo, é preciso também
estar comprometido com a criança, criando vínculos e olhando-a com olhos de criança,
reconhecendo a riqueza de seu potencial lúdico na intencionalidade de explorá-lo.
A escola precisa se tornar um espaço de prazer e alegria para todos, como
comenta uma das alunas: “bons tempo aqueles da educação infantil, nós brincávamos
muito e não nos cansávamos, hoje a exigência é grande, as crianças novinhas já têm as
agendas cheias, vindas das classes mais privilegiadas com tantos cursos, ou, as de
menos recursos, são deixadas em escolas sem qualidade, e com tantas crianças na
turma é difícil cuidar e educar como merecem” (G.) ‖; Mas também precisamos
descristalizar várias e antigas práticas pedagógicas: “e como é difícil dar conta de
tantos desafios quando entro na sala de aula. Como desenvolver neles a autonomia, por
exemplo, se o tempo nos devora? Aí não tem jeito, saímos amarrando os sapatos para
eles e guardando os brinquedos espalhado pela sala [...] brincar com eles, impossível,
Nessa hora a gente tenta dar conta da demanda e optamos pelo brincar livre” (A.).
Esse talvez seja um dos maiores desafios: como qualificar esse segmento de ensino em
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meio à políticas que deixam as crianças na invisibilidade? Como reconhecer e valorizar
a profissão docente frente a tantos embates políticos e econômicos? Como, a partir das
teorias estudas, de discussões, críticas e compreensões promover uma mudança de
nossas ações? Como, na formação do professor, prepará-lo para esses enfrentamentos e
para as dificuldades vivenciadas cotidianamente em nossas escolas? O material
empírico colhido pela pesquisa aqui abordada não traz resposta, tão somente levanta
algumas questões, burila ideias, provoca aproximações e afastamento, inquieta, convida.
Pensando a Ludicidade na formação de professores
Onde quer que estejas, sê inteiramente
uma criança (Johann Goethe)
A Ludicidade constitui um traço fundamental de toda e qualquer cultura humana
(HUIZINGA, 2004). Embora o termo também designe jogos e brincadeiras, sua noção é
bem mais abrangente do que se pensa. É uma ação livre assumida voluntariamente, que
envolve o indivíduo por inteiro numa espécie de arrebatamento que traz a sensação de
felicidade, logo, liga-se a prazer, divertimento e lazer. Assim, quando se pensa em
infância essas noções aparecem imbricadas, pois um dos maiores prazer dos pequenos é
brincar. O que caracteriza a infância é o brincar, afirmava Benjamim (xx), e porque
brincam produzem cultura, nisso reside sua singularidade, pois a criança cria, dá sentido
ao mundo que a cerca, vive o simulacro e o escape da realidade sem dela se
desconectar; (HUIZINGA, 2004), fazendo do lúdico uma via de escape, um mundo em
que só os brincantes o compreendem.
Pelo exposto até aqui, adotamos a noção de infância na perspectiva de uma
educação que atualiza as possibilidades de ser criança também pela experiência lúdica.
A criança nasce lúdica, sem noção do que seja trabalho, toda sua atmosfera é de
ludicidade (BROUGÉRE, 1998), na qual o prazer acompanha suas atividades
espontâneas, fazendo parte da etologia humana. O brincar é a expressão desse
arrebatamento lúdico na infância e por ele, e por meio dele, as potencialidades
acontecem.
Logo, uma pedagogia da infância sugere o reconhecimento de que as atividades
lúdicas envolvem aprendizagens especiais como o desenvolvimento de autonomia,
confiança, cooperação, curiosidade, capacidade de elaborar questionamentos e críticas,
criatividade, formas de socialização e interações e o enriquecimento de múltiplas
linguagens. Nessa perspectiva, o cuidar e o educar se imbricam e se banham pela
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ludicidade no contexto escolar, posto ser a criança um homo ludens (HUIZINGA,
2004).
Mas na escola há o brincar livre e o brincar dirigido, e nesse a intencionalidade
pedagógica não pode fazer do brincar mera ferramenta de ensino (BROUGÉRE,1998).
O brincar, por si só, educa, é meio de aprendizagens significativas e tem um fim em si
mesmo. No entanto, os jogos e as brincadeiras na escola ainda ocupam um lugar
relegado, mesmo no contexto da Educação Infantil, e muitas vezes o jogo está a serviço
de alguma competência específica, algum conteúdo do programa. As narrativas das
memórias brincantes dos graduandos reverberam essa ideia. Passemos a alguns
fragmentos dessas memórias que expressam como alguns deles vivenciaram algumas
atividades brincantes na escola.
-“Ah! Que saudades daqueles tempos de infância, de
acordar cedo, ir para o colégio e entre uma lição e outra
brincar muito” (H.)
“A gente sempre dava um jeito de se divertir nas aulas
chatas. Jogava bolinha de papel molhado no teto, trocava
figurinha e a professora nem via” (C.).
-―Na escola eu brincava com as crianças que estudavam
comigo, sempre antes da aula nós brincávamos de pular
elástico‖ (R.).
-―Eu brincava muito na hora do recreio e quando acabava
a aula ainda íamos para a pracinha que tinha enfrente”
(L.).
-―minha mãe reclamava que eu voltava muito suja da
escola, dizia que estava pagando pra eu estudar e não
para brincar‖ (S.)
Se considerarmos que as atividades lúdicas envolvem novas aprendizagens,
promovem a autonomia, a curiosidade, a capacidade inventiva, a socialização e
potencialidades corporais, afetivas e emocionais, podemos concluir que é parte do
próprio processo educativo do indivíduo. Assim, cuidar e educar na perspectiva lúdica
nos parece possível, para tal necessitamos compreender e refletir sobre o tema, assumir
uma postura dialógica e ter alma brincante.
Confabulações
A Educação Infantil, em textos e contextos, ainda carece de muita atenção.
Reconhecemos que vivemos em tempos de muitos avanços nessa área, mas condições
estruturais, políticas e pedagógicas ainda estão presas a um ideário que dissocia o cuidar
do educar e que desconsidera o brincar como algo educativo por si só. Muitos desafios,
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muitos percalços no caminho, mas a certeza de que a ressurgência da infância deva
trazer consigo o entendimento da especificidade dessa fase da vida, do lugar social que
as crianças ocupam, da compreensão do cotidiano híbrido e multifacetado em que se
inserem os pequenos, das aprendizagens significativas que podem e merecem
vivenciar, e quando, nas entrelinhas, podemos problematizar, refletir e sugerir novos
caminhos, encontramos uma terceira criança, qual seja: aquela que nos habita. Sendo
assim, havemos de considerar a cultura lúdica como construto de um processo
significativo de aprendizagens, pois ao descobrir essa criança que ainda somos damos
novos sentidos as nossas ações.
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BRINCADEIRAS NA INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO — OLHARES E
INTERVENÇÃO DOS ADULTOS
Sonia Cristina de Oliveira – SEJUDH/MT
Resumo
Este trabalho se propôs a fazer uma etnografia das brincadeiras numa instituição para
investigar o brincar. A questão principal que norteia a investigação é, se toda criança
tem que brincar e quando brinca traz conteúdos relacionados a sua experiência, como
essa criança institucionalizada organiza e vivencia essa experiência lúdica? Se as
brincadeiras têm determinações de aspectos sociais e culturais, com quais referências
usam o imaginário nas brincadeiras, uma vez que são marcadas pelo abandono,
negligência e violência? A pesquisa é um estudo de caso, do gênero etnográfico e se
arrima no solo paradigmático da Sociologia da Infância e de teóricos que discutem a
brincadeira numa perspectiva sociocultural. O terreno da pesquisa é uma instituição de
acolhimento em Cuiabá/MT, que abriga e protege crianças de até 12 anos, vítimas de
algum tipo de negligência ou violência familiar. A amostra envolveu crianças de 2 a 6
no ano em 2012/2013. Os episódios colhidos com observação em situações de
brincadeiras, com apontamentos no diário de campo, registro em vídeo e áudio. A
análise e compreensão dos dados o foco recai sobre as brincadeiras e as significações no
cotidiano da instituição e na experiência das crianças. Apresento um recorte do
resultado com foco na entrevista com as cuidadoras, entre muitas questões reveladas,
fica evidente que as crianças brincam coladas com seu contexto social, afetivo e
cultural, e nisso não existe apenas uma repetição, elas criam e combinam conhecimento
novo e antigo, mas a base da criação é a realidade social da qual retiram elementos, por
outro lado, para as cuidadoras parece que as brincadeiras sempre devem atender a uma
necessidade, neste caso, obedecer às regras da instituição.
Palavras-chave: Crianças abrigadas. Brincadeiras/brinquedo. Intervenção/acolhimento.
Introdução
O aporte teórico sobre as brincadeiras, são os estudos realizados no âmbito das
teorias que investigam o jogo numa perspectiva histórica e cultural. Com base em
autores tais como, Huizinga, Benjamin, Château, Brougère, Caillois e Vigotsky, elege-
se como explicação a importância de se compreender o jogo, a brincadeira como uma
ação que necessita de aprendizagem, dotada de significações, a partir da vivência na
cultura, isto é, analisam o jogo com determinações de aspectos sociais, simbólicos e,
portanto, culturais.
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A abordagem cultural analisa o jogo como uma expressão da cultura, uma ação
que possui influências do mundo e que cada cultura em particular dá um sentido para o
jogo, e esse se inscreve num sistema de significação pessoal dada pelos sujeitos em
função de suas percepções e da imagem que possuem da atividade. A discussão teórica
sobre infância foca seus princípios na Sociologia da Infância – SI, com leituras em
aportes teoricos dos autores Sarmento, Corsaro, Prout, Qvortrup, Montandon, Sirota e
outros.
A Sociologia da Infância tem grifado nos últimos tempos, que as crianças são
atores sociais porque interagem com as pessoas, com as instituições, e reagem frente aos
adultos quando desenvolvem estratégias de luta para participar no mundo social.
Para dar crédito a esse novo olhar, a respeito da infância é preciso desconstruir
ideias cristalizadas há séculos de tabula rasa, pecaminosa, receptáculo da educação dos
adultos e tantas outras conotações que nos fizeram ter uma imagem negativa, e assim
para assumir o modelo de cidadania e direitos.
Crianças que participam coletivamente na sociedade e são construtoras,
investigadas pelos seus próprios méritos, e não indiretamente por meio de outras
categorias da sociedade, isso rompe com a relação de poder do adulto sobre elas, e as
inserem num contexto social, cultural e relacional, igualmente, produtora de cultura.
Os participantes desta pesquisa, são crianças institucionalizadas, exigentes de
uma urgência para que seus direitos sejam cumpridos e sua permanência na instuição
seja compreendida como um direito adquirido, uma vez que não podem contar como um
privilégio. No entantro, a discussão e modelo de infância prevista na SI ainda não
encontraram vez e voz nas instituições. Estas com o intento de cuidar, proteger e
socializar em pleno século XXI aprisionou a criança em casa, na escola e nas
instituições jurídicas.
As escolas possuem muros cada vez mais altos para segurança, em detrimento de
parques, brinquedos e espaços para brincadeiras, a justiça aprisiona para proteger, desta
ultima institucionalização que trata este trabalho com foco nas brincadeiras. O modelo
de prioridade absoluta, proteção e sujeito de direito previsto no ECA, implica superar o
discurso construído em especial no Direito, da visão menorista e da situação irregular,
que imprime uma prática opressiva que afetou em especial a infância pobre, filho das
classes populares; que merecia ser disciplinado e controlado. Superar esse olhar
opressivo, disciplinador e controlador ainda está longe da realidade das instituições de
acolhimento.
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A visão atual de cidadania sobre a infância requer respeito à identidade,
atendimento personalizado, olhar atento as suas necessidades e particularidades, isso
implica escuta e ações singulares com respeito às diferenças.
Mediante estas considerações teóricas, a pesquisa tem por finalidade investigar o
brincar no contexto de abrigo, e saber como as brincadeiras, se ajustam ou integram
como um instrumento de acolhimento, desenvolvimento e de aprendizagens para a vida
social das crianças. A ideia central, perseguida na investigação, incide em questões de
pesquisa com as seguintes proposituras: 1) se toda criança tem que brincar e quando
brinca traz conteúdos relacionados a sua experiência? 2) Como essa criança
―aprisionada‖ organiza e vivencia essa experiência lúdica? 3) Se as brincadeiras têm
determinações de aspectos sociais e culturais e com quais referências usam o imaginário
nas brincadeiras, uma vez que são marcadas pelo abandono, negligência e violência?
Questões metodológicas
A pesquisa é um estudo de caso do tipo etnográfico. O local é uma instituição de
acolhimento em Cuiabá/MT que abriga e protege crianças de até 12 anos, vítimas de
algum tipo de negligência/violência familiar encaminhadas pela justiça por serem
abandonadas ou sofreram maus tratos. Algumas permanecem até serem reintegradas à
família, outras, sem essa possibilidade, são entregues para a adoção.
Para a coleta dos dados, foi usada observação em situações de brincadeiras livres
e sugeridas pela recreadora com um grupo de crianças de 2 a 6 anos de meninas e
meninos, os nomes foram omitidos nos episódios, mesmo sendo uma pesquisa que
procura dar visibilidade e voz às crianças, neste caso foi acordado que não seriam
identificadas porque estão sob a custódia do Estado. As crianças foram observadas em
grupos, apenas pela pesquisadora, que, mantendo uma ―proximidade etnográfica‖ —
que tomamos aqui como a expressão pensada por nós: aquela do tamanho exato que não
se imiscui na ação, mas que assegura o registro dos dados ou ―sinais‖ propostos pelo
―paradigma indiciário‖, tão usual às pesquisas deste gênero, a exemplo dos filmes e dos
registros em diário de campo para as brincadeiras. Existem vários episódios registrados
das brincadeiras e entrevistas com as cuidadoras. Neste trabalho trago algumas
categorias investigadas com as cuidadoras, das quais são:
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A importância da brincadeira para as crianças na visão das cuidadoras
Elas consideram a brincadeira uma forma de a criança elaborar conflitos, liberta-
se dos horrores da ―prisão‖ institucional e de serem mais felizes.
Com certeza!! [...] é saudável, ajuda eles a distanciar a saudade da mãe.
(cuidadora 4)
Com certeza! Já vem de uma família desestruturada, fica aqui praticamente
preso o tempo todo, parecendo um robô, não pode isso, não pode aquilo, por
isso precisa brincar, eu mesma me sinto presa de ficar só nesse pedaço, por
isso, eu acho que as brincadeiras são muito importantes para as crianças.
(cuidadora 1)
Importante sim, uma maneira de ficar sem stresse, a gente tenta deixar eles
mais livres, pelo fato de estar aqui já é tão difícil sem pai, mãe, sem a
família, se você deixar a criança na rédea, como vai crescer essa criança, na
minha maneira de pensar? A liberdade para eles é melhor, mas por outro
lado, eles ficam um pouco desobedientes, por isso, tem que manter um pouco
de limites e liberdade[...] a brincadeira é importante. (cuidadora 2)
Conforme Caillois (1990), a brincadeira se constitui princípio de prazer. E, nesse
processo, envolvem espontaneidade e liberdade concomitantes, pode ser tão absorvente
e cansativo que abarca a criança por inteiro, na atividade brincante. As crianças passam
muitas horas envoltas sem demonstrarem cansaço numa brincadeira, parecem esquecer
de tudo a sua volta, talvez seja por isso que as orientadoras consideram tão importante
as crianças brincarem.
Tanto as brincadeiras para as crianças como os jogos para os adultos são
atividades lúdicas concernentes à formação e acompanham a humanidade em toda a sua
trajetória existencial. Eles fazem parte da vida infantil e do mundo adulto, pois qualquer
situação pode resultar numa brincadeira. É fato que, independentemente da idade, nos
realizamos plenamente, entregando-nos por inteiro ao jogo (CHÂTEAU, 1987).
De acordo com o autor, a brincadeira é uma atividade séria, a criança brinca
porque faz parte de sua natureza, ela se realiza no seu mundo lúdico desenvolve seu
jeito de ser e se envolve como um todo, implica distanciamento do ambiente real, logo,
uma forma de evasão com a possibilidade de ser o que não é, quem sabe, ser feliz de
posse da família que brinca na sua atividade de casinha com pai cuidadoso e uma mãe
amorosa, na maior parte dos episódios deste estudo.
Brincadeiras livres ou as dirigidas pelos recreadores?
Historicamente, estamos impregnados da visão de criança que não é competente
até mesmo para brincar, como o exemplo deste depoimento:
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Olha, as livres não têm muito significado, tem que ser dirigida mesmo
porque aí você chama: vamos fazer isso, e eles vão procurar obedecer ao
que a gente está falando, espontânea eles não têm uma direção, a dirigida é
bem melhor do que a espontânea, se deixar à vontade não vira nada.
(Cuidadora 2)
Esta cuidadora pensa que as brincadeiras livres não têm significado, não têm
direção e não viram nada. Afinal, brincar precisa virar o quê? De acordo com (REDIN,
2009, p. 118):
Ainda é corrente essa postura nas intervenções dos adultos durante as
brincadeiras e nos momentos de interação das crianças. Educadores querem
que elas se socializem, e muitas vezes socializar-se significa evitar conflitos,
sentimentos ambíguos e comportamentos que possam sair da ordem.
Os profissionais querem evitar os conflitos e conduzirem brincadeiras
―corretas‖, com ―direção‖, por isso, segundo a autora acima, seja qual for a forma de
envolvimento do adulto, nas brincadeiras infantis ―não deixa de ser marcada pela
pedagogização‖, parece que as brincadeiras sempre devem atender a uma necessidade,
neste caso, obedecer às regras da instituição. Este outro depoimento fala de organização,
participação de todos, objetivo, desenvolvimento das crianças, mas deve existir certa
flexibilidade. Na sequência, o outro acredita que deve existir um equilíbrio, entre
ambos:
As brincadeiras livres, muitas vezes não fica bem organizada, logo vira
bagunça, às vezes, só um quer brincar e como fica o restante? As dirigidas
são bem melhores, porque têm mesmo um objetivo, o desenvolvimento, eu
acho as dirigidas mais interessantes, mas desde que se tenha flexibilidade
para mudar, quando a criança pedir para brincar de outra coisa, vamos
brincar de outra coisa. As dirigidas pelo orientador, ela é bem melhor, ela é
organizada, mas deve fazer o gosto deles também, por exemplo: tia vamos
brincar de corre cotia, vamos brincar de corre cotia [...] assim brincamos ao
mesmo tempo as dirigidas e as escolhidas por eles. (cuidadora 3)
Acho que um pouco dos dois, acho que tem que dosar, não deixar totalmente
à vontade, é bom a gente dar aquela orientação para que todo mundo
participe e não ficar sempre aquela mesmice. (cuidadora 1)
Huizinga (2012) enfatiza a função e características do jogo. Em sua pesquisa
sobre a essência do jogo, deixa claro a sua intensidade, fascinação e capacidade de
excitar, expressando-se através do ritmo e harmonia. No dizer deste autor, a vivacidade
e a graça estão originalmente ligadas às formas mais primitivas do jogo. Assim sendo,
pela pena deste autor, o jogo enquanto atividade sugerida, mais do que pela sua pulsão
inata é um ato voluntário, que se concretiza como evasão da vida real, com orientação
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própria, ocorrendo dentro de limites de tempo e de espaço, criando a ordem através de
uma perfeição temporária e limitada. Isso nos faz pensar que tal atividade não precisa de
tanta vigilância e correção de ações.
Liberdade é uma das características das brincadeiras discutidas por Huizinga e
Caillois, em que os autores consideram que uma delas é o fato de ser livre. Huizinga
enfatiza que o jogador participa somente quando quer, porque se for à força e obrigado,
perde a natureza do jogo de diversão, fascínio e alegria, tão própria dessa atividade.
Caillois ressalta que a brincadeira é uma ação livre, e que o sujeito é quem
decide sua adesão ou não. Conforme este depoimento, pressupõe-se que as brincadeiras
livres são mais importantes para a criatividade, liberdade e para aprender habilidades
interpessoais:
Livres!!! Porque têm mais liberdade aí eles podem ter a criatividade deles
mesmo [...] eles ali convivendo juntos surgem mais ideias, a criança fica
mais tranquila do que ficar naquela assim: você tem que fazer isso e isso.
Sozinhos têm mais liberdade de brincar, fazer o que eles querem, assim pode
até surgir brincadeiras saudáveis, sem brigas. (cuidadora 4)
Uma questão considerada importante para as cuidadoras é o fato de o brincar
dirigido ser mais relevante como diz este relato: ―As dirigidas são bem melhores,
porque têm mesmo um objetivo, o desenvolvimento, eu acho as dirigidas mais
interessantes‖. Pressupõe-se que as pessoas estão inclinadas a concordar que toda
criança possui o direito de brincar, entretanto, o que parece motivar acirradas discussões
é se elas têm esse direito, se podem brincar em contextos institucionais de forma livre,
espontânea e criativa.
Conforme nos ensina Redin (2009), estamos sempre esperando um resultado, o
desenvolvimento de alguma habilidade ou competência das crianças, um benefício que
possa favorecer a cultura da escolarização com uso das brincadeiras, neste caso, da
institucionalização. Existe predominância pela brincadeira dirigida, inclusive, com
ênfase à obediência: tem que ser dirigida mesmo porque aí você chama: vamos fazer
isso, e eles vão procurar obedecer.
A brincadeira é uma atividade que traduz diversão/prazer e alegria/divertimento,
talvez o fato de optar mais por brincadeiras dirigidas está de acordo com as restrições
em ambientes institucionais em que as crianças precisam brincar sempre ―vigiadas‖ e
com brincadeiras que possam ter algum benefício. Retoma-se aqui a ideia construída ao
longo dos tempos da infância, relacionada à falta, à incompletude e com a necessidade
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de corrigir e modelar. Essas impregnações obscurecem a ideia de que o brincar é, em si,
um ato de criação.
A ideia de a brincadeira ser livre, sendo uma de suas características a liberdade,
vai de encontro ao ambiente de regras previstas na instituição, talvez daí decorra a
preferência por jogos dirigidos, alegando ser o conceito de brincadeira livre parecer
como algo perigoso, em contexto institucional. Existe apenas um depoimento que
concorda plenamente com as brincadeiras livres.
Conhecer as crianças pelas brincadeiras
Nesta categoria, indaguei se era possível saber e conhecer uma criança
observando as brincadeiras. Château (1987) explica que o jogo é atividade que oferece
prazer, que está relacionada com a cultura e que ajuda a conhecer as tendências da
criança, bem como a revelar sua estrutura mental; possui como característica o caráter
de seriedade e abarca o ser humano em sua totalidade e sendo, por isso, expressão da
personalidade do sujeito, é no jogo, e pelo jogo que a criança cresce e se desenvolve.
Então, conhecer o desenvolvimento da criança à luz dessa atividade é um ato educativo.
Têm crianças que dá sim, porque começa a brincar depois já para, já chora,
por qualquer coisa, brinca um pouco depois parece que lembra de algo, aí já
não queria mais brincar, parece que lembra de algo. (cuidadora 1)
Não dá para perceber assim não (início) quando chegam, elas ficam um
pouco arredia, quando chegam à casa, mas depois que ela vai tomando esse
contato uma com a outra , ela passa para dois tipos de relacionamento: uma
que pode ser agressiva, porque se ela bate para se defender ela também tem
que fazer a mesma coisa , ela bate, ela morde e xinga, alguns xingam porque
recebem também influência de outra criança, o Alan, agora ele aprendeu
apontar o dedo, ele nem entende , mas ele sabe que aquele gesto está dizendo
alguma coisa entendeu? Quando ela chega na casa fica assim um pouco
arredia, ela também se afasta um pouquinho. O Lincon quando chegou aqui
na casa era muito quietinho, mas ele já começou a reagir, ele já começou a
bater começou também a se defender, o comportamento dele era excelente,
dizia: que menino bom, mas agora está mudando, é a convivência.
(cuidadora 2)
Sim, a partir das brincadeiras, você vai observando de longe, começa a
conhecer as crianças. Lembro-me de uma história da Bia com Ariele, elas
estavam brincando de boneca, aí veio a outra irmã dela, e começaram a
chorar lembrando da mãe, aí todo mundo ficou emocionado. (cuidadora 3)
Os dois primeiros depoimentos deixam claro que as brincadeiras denunciam
conteúdos internos sobre a família ou sobre qualquer lembrança desagradável de sua
história pessoal e o último foca nas questões de convivência na instituição de que nas
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brincadeiras aprendem com os outros a serem mais ou menos atuantes nos conflitos
gerados entre eles, na instituição.
As crianças brincam coladas com seu contexto social, afetivo e cultural, e nisso
não existe apenas uma repetição, elas criam e combinam conhecimento novo e antigo,
mas a base da criação é a realidade social da qual retiram elementos.
Considerações finais
Caillois (1990), enfatiza que a liberdade é um requisito essencial da brincadeira,
e que jogo combina em si, as ideias de limites, liberdade e invenção, para ele o jogo
(brincadeira para nós) é uma atividade que significa liberdade, logo, uma das qualidades
do jogo é ser livre. É talvez por isso que quando há a interferência do adulto querendo
mudar as regras da atividade, as crianças perdem o interesse. Há por eleição, um
afastamento das crianças, da presença dos adultos quando estão a brincar.
Percebi que um relato diz ―as brincadeiras livres não têm significado, não têm
direção e não viram nada”, talvez esse entendimento seja porque as crianças estão
institucionalizadas e as regras e normas de controle são rígidas, logo as livres podem
representar momentos de ausência de controle das normas estabelecidas. Há na
Brincadeira, segundo Brougère (2004) funções sociais, podendo ser suporte de relações
afetivas, de brincadeiras e de aprendizagem e é, também, uma fonte de apropriação de
imagens e de representação.
Château (1987) nos lembra que faz parte da natureza humana o ato de brincar,
com a vantagem de favorecer o desenvolvimento. Assim como o adulto elege, às vezes,
no jogo o esquecimento de seus problemas e, da mesma forma, o jogo pode ser
instrumento de transmutação da realidade, algo que a transpõe a um mundo particular,
enquanto que as crianças se realizam plenamente, entregando-se por inteiro ao jogo.
Na visão das cuidadoras ―consideram a brincadeira uma forma de a criança
elaborar conflitos, liberta-se dos horrores da “prisão” institucional e de serem mais
felizes”, isso denota que elas apreciam as brincadeiras como uma atividade que pode
propiciar momento de refúgio e elaboração para as crianças.
Por isso não seria demasiado dizer que neste contexto em particular, quanto mais
as crianças brincam, mais se evidencia a alegria em sua vida social.
As crianças que vivem nos abrigos de acolhimento, são sempre vítimas de
abandono, negligência, violência física e psicológica. Elas não cometeram violência –
foram violentadas. Os abrigos de regime de trabalho de plantão passam o dia com uma
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equipe de profissionais e cuidadores e amanhecem com outros cuidadores. São crianças
que vão para a escola e ao final do dia não possui um vínculo afetivo para receber e
levar para casa. Vivem sob a tensão da possibilidade de adoção ou retorno para família.
Vivem num lar ― que na verdade é uma instituição com normas rígidas para obter o
controle num espaço físico com muitas crianças. Seus cuidadores têm vínculos
profissionais, em detrimento das crianças que têm desejos de serem amadas e acolhidas
verdadeiramente, sentir que é alguém único e importante.
O desejo das crianças pautado em sonhos, fantasia e imaginação vão de encontro
com a percepção que permeia, na instituição, de crianças rebeldes, desobedientes, que
não merecem isso e aquilo, um cotidiano pautado de muitos não e faltas. Conforme
pesquisa de Nascimento e Lacaz (2010, p.61) “construção subjetiva instituída, que
torna os abrigos locais de tristeza, de desafeto, de abandono, de vidas fracassadas
As brincadeiras refletem muito da criança, de sua história e sobre a instituição.
O brincar expressa em relação a elas. A brincadeira é uma ação da qual não controlamos
o resultado. Sobrepondo-se a esse objetivo, a natureza prazerosa da criança é o retrato
fiel de seu crescimento como sujeito no espaço em que está inserida. É importante que
se permita às crianças brincarem sempre, porque na brincadeira existe elaboração
afetiva, construção de novos vínculos. Elas se beneficiam simplesmente por estarem
juntas, pois brincando interagem, aprimoram a linguagem e se organizam afetivamente.
As brincadeiras são instrumentos importantes na expressão de experiências
subjetivas, fazendo parte da natureza humana o ato de brincar, com a vantagem de
favorecer todo o processo de desenvolvimento da criança. É possível inferir que a
instituição possui extrema dificuldade em permitir o desenvolvimento da autonomia das
crianças, sendo que as questões de controle, número de crianças e organização logística
são determinantes para o não incentivo dessa habilidade, mostrando um hiato no
mecanismo estratégico de promover a brincadeira de forma educativa e libertadora.
Talvez aí resida a razão das cuidadoras considerarem importante fato de o brincar
dirigido ser mais relevante como diz este relato ―tem que ser dirigida mesmo porque aí
você chama: vamos fazer isso, e eles vão procurar obedecer”.
A formação e capacitação seria uma estratégia importante para compreender o
desenvolvimento e a relação com as brincadeiras, pois o conhecimento condizente com
essa atividade no contexto de abrigo é uma ferramenta que pode evitar questões de
abuso desnecessárias, ameaças veladas e diretas com as crianças nas brincadeiras.
Muitas dessas situações ocorrem porque o cuidador não tem experiência e
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conhecimento para exercer sua atribuição, conforme fragmentos deste relato sobre
curso: não fiz para trabalhar com crianças, estou aqui, mas nunca fiz assim para
crianças, eu fiz esses cursos para subir na área, não para trabalhar especificamente
com crianças, eu não tenho perfil, eu quero sair daqui, com certeza.
O conhecimento estimula comportamentos assertivos e mais contato com o
universo infantil, pois a relação da criança com o adulto é uma questão importante na
construção de referências, relacionamentos interpessoais e reparações de questões
emocionais. É importante despertar nas práticas lúdicas e na convivência um profundo e
real envolvimento com as crianças, que buscam nos cuidadores laços emocionais e
familiares.
Neste contexto, a brincadeira dá voz à criança, enriquecendo sua vida por meio
de atividades lúdicas, além de criar e construir ações com autonomia e autoria, por isso,
é louvável permitir a imaginação da criança já que livres aprendem ressignificar o
vivido numa sequência contínua de aprendizagem e experiência significativa. É
importante a instituição, além de incentivar a brincadeira, entendê-la com lentes
teóricas, um depoimento deixa claro que as brincadeiras denunciam conteúdo internos
sobre a família ou sobre qualquer lembrança desagradável de sua história pessoal
Uma questão que pouco se leva em conta é que a brincadeira é coisa séria e
demanda esforço, precisa ter compromisso e cumprir regras, a criança que organiza,
uma brincadeira precisa pensar e estabelecer normas, enfrentar desafios e lidar com
frustrações, são muitas habilidades ao mesmo tempo.
Nas entrevistas, as cuidadoras deixam evidente que a instituição não privilegia
as crianças, conforme este fragmento: teve uma gestão que a criança não podia nem
andar no corredor era fechada aqui, quando via crianças já dava uma bronca [...] não
existe prioridade. (cuidadora 02). As instituições que atendem a um número elevado de
crianças, reproduz, na prática, um funcionamento do tipo total (GOFFMAN, 2010).
Com inflexibilidade no funcionamento e massificação do atendimento às crianças, há
pouco contato no mundo externo, o que fica claro a exclusão da criança com a
sociedade.
As crianças desta pesquisa não são diferentes, a instituição lotada tende a
efetivar práticas que muitas vezes confundem educação com punição e nas brincadeiras
elas refletem como espelho somado a sua subjetividade infantil os dilemas das punições,
que talvez, brincando, possa tornar-se menos sofrido. Na experiência lúdica, brincam
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com os castigos, revivem e compartilham a universalidade do atendimento ofertado na
instituição.
Segundo Ferreira (2012) ―o brincar é um texto em que as crianças contam sobre
elas mesmas‖. Com base nesta afirmação, os episódios das crianças que participaram
deste estudo revelam que a brincadeira, no ambiente institucional, está impregnada de
questões da rotina, do atendimento, igualmente da história de vida da criança.
As crianças brincam coladas com seu contexto social, afetivo e cultural, e nisso
não existe apenas uma repetição, elas criam e combinam conhecimento novo e antigo,
mas a base da criação é a realidade social da qual retiram elementos, fato este observado
e revelado na entrevista da cuidadora que diz: ―lembro-me de uma história [...], elas
estavam brincando de boneca, aí veio a outra irmã e começaram a chorar lembrando
da mãe, aí todo mundo ficou emocionado.
Referências
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