Cultura dos povos tradicionais de
terreiros: percurso de vivncias na Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Aderbal Ashogun Moreira*
Clarisse Mantuano**Marta Simes Peres ***
* Ogan, Sacerdote Ashogun do candom-bl, filho de Me Beata de Yemonj, mestre popular, percussionista, gestor ambiental e articulador cultural.
** Graduada em Comunicao (PUC/RJ), jor-nalista, cineasta, trabalhou na pesquisa do longa Marighella - retrato falado do guerrilheiro, de Silvio Tendler, diretora de Um companheiro, documentrio premiado no Festival Santiago Alvarez/Cuba, do documentrio Encruzilhada das guas, sobre Me Beata de Yemonj e Iyawo de Xang.
*** Professora adjunta da UFRJ, (Departa-mento de Arte Corporal, Escola de Edu-cao Fsica e Desportos). Doutora em Sociologia (UnB), Ps-Doutora em Antro-pologia (IFCS/UFRJ). Bailarina, coregrafa e fisioterapeuta. Participa atualmente de Ps-Doutorado no Ncleo Diversitas/USP
Introduo
Relatamos uma expe-
rincia de colabora-
o entre Aderbal
Ashogun Moreira,
mestre da cultura
tradicional de matriz africana e
o Departamento de Arte Corporal
(Dana) da Escola de Educao F-
sica e Desportos da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
O texto relata uma experincia de colaborao entre Aderbal Ashogun Moreira, mestre da cultura tradicional de matriz africana (Candombl), o Departamento de Arte Corporal (Dana) da Escola de Educao Fsica e Desportos da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, em novembro de 2012. O mestre ensinou canto, dana, toque, mitologia, lnguas, medicina, fitoterapia, cromoterapia, comida sagrada, arte sacra e prticas tradicionais sustentveis. O principal ob-jetivo foi diminuir a distncia entre saberes tradicionais e convencionais, valorizando e difundindo a cultura afro-brasileira como fonte de um conhecimento ainda hoje invisibilizado por sculos de opresso pelos colonizadores europeus. Por conta desta confluncia de saberes e prti-cas, estabelecemos um dilogo o conceito de Polifonia, de Bakhtin e a Pedagogia Gri (Pacheco/Caires).Palavras-chave: Povos de Terreiro; Religies de Matrizes Africanas; Dana.
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A inteno ao registr-la nasce do desejo de que ela venha
a proporcionar novas aes na UFRJ, na Universidade de So
Paulo e em inmeros outros estabelecimentos, pontos de
cultura e espaos de ensino do Brasil.
A opo por um texto econmico em termos de cita-
es e referncias bibliogrficas, deve-se valorizao
que Aderbal dedica ao conhecimento produzido in loco,
a partir das conversas nos encontros. Baseados no con-
ceito de Produo Partilhada de Conhecimento (Bairon,
2012), solicitamos dos participantes depoimentos acerca
da vivncia, o que os torna coautores desta escrita, pois,
mais que um grupo estudado, foram eles que tornaram o
acontecimento possvel. Assim, vislumbramos a constru-
o de um pensamento polifnico, aberto a outros sa-
beres, enraizados em culturas tradicionais historicamente
excludas da academia.
Em seu passado de colnia de explorao, a formao
da sociedade brasileira foi marcada pelo estabelecimento
de um muro separando o portugus colonizador dos ind-
genas e dos africanos trazidos como escravos. A distino
entre aqueles que sabiam ou no ler e escrever determi-
nante numa estrutura do poder escrita, a comear pelas
leis vigentes, sendo que o analfabetismo ainda constitui
um grave problema social.
Nas artes, tanto na pintura quanto na literatura, supos-
tamente eruditas, enalteciam-se os brancos, portugueses
e seus descendentes, os ndios pacficos e aliados, a be-
leza natural, escondendo ou marginalizando os negros e
ndios rebeldes (Barros, 2006, p.7-8). A nao brasileira,
construda a partir da ideia de identidade nacional, ao
contrrio de buscar abranger a multiplicidade tnica de
nossa sociedade, teve como base a identidade das elites,
dos brancos, ou brancos relativamente mestiados (Negri
e Cocco, 2005, p.77). Nosso rico patrimnio imaterial foi
deixado historicamente margem da cultura dita oficial
ou erudita, de maneira que implantar polticas pblicas
no sentido de valoriz-lo consiste num grande desafio.
Ao longo de um processo lento de lutas, passa a ser
exigido o reconhecimento das etnias historicamente co-
locadas margem dos contedos oficiais. Podemos citar,
como exemplos, a atual LDB Lei de Diretrizes e Bases (n
9394/96, art. 26-A) que obriga os estabelecimentos de
ensino fundamental e mdio, pblicos e privados, a incluir
no currculo o estudo da histria e cultura afro-brasileira
e indgena as leis 10639, 11645 e a Ao Gri Nacional1
com a Lei Gri.
1 PACHECO, Lllian. CAIRES, Mrcio (org.). Nao Gri: o parto mtico da identidade do povo brasileiro. Gros de Luz e Gri: Lenis/BA, 2009. A Ao Nacional Gri visa o reconhecimento do lugar social, poltico e eco-nmico dos Gris e Mestres na educao mediados pela atuao de Gris aprendizes, considerando que muitos povos tm na oralidade sua nica fonte histricas. Trata-se de uma ao criada e proposta pelo Gros de Luz e Gri em gesto compartilhada com o Ministrio da Cultura.
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Ao abordar a cultura dos povos tradicionais de terreiro,
Aderbal chama a ateno para a luta e a cultura negra, a
presena do negro na formao da sociedade, assim como
o resgate de suas contribuies sociais, econmica e pol-
tica histria do Brasil. Ele considera que estes devem ser
ministrados no mbito de todo o currculo escolar, com
nfase especial nas disciplinas de artes, literatura e hist-
ria. Por arte, entendemos no somente as artes plsticas,
frequentemente sinnimo de arte para o senso-comum,
mas tambm a msica, a literatura, o teatro, o cinema e
a dana. Uma das dificuldades com que se esbarra ao se
buscar cumprir essa obrigao legal, consiste na falta de
professores capacitados para o conhecimento do com-
plexo cultural dos povos tradicionais, problema que pode
ser superado pelo contato direto com pessoas que hoje
mantm viva a cultura afro-brasileira, tal como se prope
no percurso.
Cada um sua maneira, o mestre Aderbal e os artistas/
pesquisadores de dana, partilham um universo que
da ordem da experincia, do movimento, da expresso,
do corpo, de maneira que este texto resultado de um
esforo peculiar de colocar em palavras algo indizvel,
acerca do qual as palavras jamais daro conta. Isso no
impede a busca do dilogo com a academia, pois esta
produo terica um desdobramento da prpria ao e
tambm uma importante forma de resistncia aos poderes
hegemnicos, enfim, consiste na ocupao, com nossos
pontos de vista, de territrios historicamente dominados
por vises de mundo excludentes. Desse modo, apesar
das dificuldades impostas, faz-se extremamente necessrio
coloc-la no papel, a fim de que possa se difundir entre par-
ceiros de dentro e de fora da universidade. Considerando
que experincias oriundas das reas das artes da univer-
sidade podem oferecer canais de troca com os saberes
tradicionais, apresentamos uma sucinta contextualizao
da Dana na UFRJ, onde o percurso foi oferecido.
A ideia de realizar o percurso ocorreu aps o encontro
entre o mestre Aderbal e a professora Marta Peres, em
outubro de 2012, por ocasio do lanamento do Labo-
ratrio de Polticas Culturais/Universidade Gri, na Sala
Vianinha, Escola de Comunicao da UFRJ. Ivana Bentes,
poca diretora da ECO, uma importante parceira na
luta pela instaurao de novos paradigmas na relao
universidade-sociedade.
No encontro, foi apresentado ao MinC, UFRJ e Rede
Ao Gri, o projeto Universidade Gri2, tendo como cen-
2 O projeto Universidade Gri foi elaborado por Lllian Pacheco e Mrcio Cai-res, criadores do Ponto de Cultura Gros de Luz e Gri, primeiro premiado no prmio Ita-Unicef 2003, destaque no Prmio Cultura Viva. Pacheco e Caires tambm so criadores da Ao Gri Nacional, ao gerida de forma compartilhada com o MinC desde 2006 e h 4 anos com os pontes de cultura regionais: Nina Gri - SP, Ceaca SP, Escola Viva Olho do Tempo - PB e a comisso nacional de Gris e mestres, parceiros na implementao e coordenao do projeto Universidade Gri com Sergio Bairon da USP e Ivana
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tro de referncia o Ponto de Cultura Gros de Luz e Gri
(Lenis - Bahia), o projeto prope uma gesto comparti-
lhada em rede. Em sua primeira etapa de implementao,
objetivou a articulao de convnios, projetos e cursos
com cinco universidades pblicas diferentes campus
da Universidade Gri para realizao de cursos de ex-
tenso e ps-graduao e elaborao de projetos em par-
ceria com as universidades envolvendo os Mestres Gris.
Foram criadas, assim, aes de mediao da tradio oral
com o meio acadmico no Projeto Laboratrio de Polticas
Culturais entre Nina Gri e UFRJ e uma proposta concreta
de parcerias entre Mestres Gris e professores da UFRJ.
Ampliaram-se, ento, as parcerias entre o ponto de Cultura
Gros de Luz e Gri, a USP e o CEACA, por meio do ncleo
Diversitas, com os Professores Sergio Bairon e Zilda Iokoi.
Logo na primeira rodada de apresentaes, esclareci
que havia tomado contato com a Ao Gri por acaso,
em festas de aniversrio da professora Ivana Bentes no
nibus Caravana Carbono Neutro, dos artistas paraenses
Andr Lobato e lida Braz, e na casa de Alexandre Santini.
Mestre Doci, contadora de histrias, da Escola Viva Olho
do Tempo, Paraba, Representante Nacional dos Mestres
e Mestras Gris do Brasil, me fez essa observao: mas
Bentes da UFRJ.
isto no por acaso, pois nas festas transmitimos nossos
saberes. Elas fazem parte de nosso processo.
O evento esteve entre os cinco assuntos mais comentados
nas redes do Brasil e foi marcado por rodas, canes, bnos
aos antepassados e mestres presentes, reuniu mestres de
tradio oral e povos tradicionais, Gris, parlamentares, re-
presentantes do Ministrio da Cultura e de pontos de cultura,
polticos, artistas, educadores e militantes de todo o Brasil. O
encontro com figuras expressivas, tais como Lia de Itama-
rac, Chico Csar, Bida Nascimento, Mestre Doci, Mestre
Alcides, Mestre Aderbal, dentre outros, contrastou com
paradigmas sobre os quais a universidade se constituiu
historicamente impedindo a chegada destas manifesta-
es em seu territrio e aproximou-se de muitos anseios
de quem atua no campo da dana no espao acadmico.
Estas personalidades da cultura brasileira constituem
um referencial importante que aponta para dilogos com
projetos e pesquisas da dana e demais setores da UFRJ
professores, grupos, estudantes no campo da religio-
sidade de matriz africana, danas brasileiras, tambores,
festividades religiosas do interior e com a trajetria da
professora Marta, ligada articulao entre dana e sade.
Por ocasio do evento de lanamento na UFRJ, a ocupa-
o da universidade por uma viso de mundo diversa da
convencionalmente estabelecida no meio acadmico, foi
possvel identificar, na proposta da Pedagogia Gri, uma
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grande afinidade e a realizao viva de conceitos que vinha
pesquisando, voltados para a criao cnica, tais como po-
lifonia e carnavalizao (Bakhtin, 2010)3 . Assim, a atuao
poltica daqueles grupos apontou para a possibilidade de
realizao de antigos anseios.
Aps termos participado da concepo e da apresen-
tao da aula-espetculo4 que homenageou Abdias Nas-
cimento5, na qual tambm atuou/tocou seu filho, Bida
Nascimento, surgiu a ideia da parceria. Elegemos, a partir
da, as disciplinas da graduao em dana em que Ader-
bal, ministraria o percurso que atraram grande interesse
e uma demanda para que se repita em oportunidades
futuras6. Este percurso trouxe UFRJ a oportunidade de
receber em sala de aula coincidentemente, na prpria
3 Polifonia foi o termo utilizado por Bakhtin para se referir obra literria de Dostoivski, em que os personagens possuem voz e posio prprias, ao invs de serem meros porta-vozes do pensamento do autor. A representa-o dos personagens a de conscincias plurais que dialogam, interagem, entram em conflito. A carnavalizao refere-se miscelnea dos corpos destas festividades que embaralham relaes de poder trazendo consigo o corpo grotesco da multido (BAKHTIN,2010).
4 A aula espetculo uma prtica reelaborada pela Pedagogia Gri para trans-mitir pela oralidade saberes, histrias, cantos, danas e fazeres tradicionais. PACHECO, Lllian. Pedagogia Gri: A reinveno da Roda da Vida. Gros de Luz e Gri: Lenis/BA, 2006, p.156.
5 Intelectual, poeta, escultor, ator e diretor teatral, grande nome ligado reflexo e ao sobre a questo do negro na sociedade brasileira. Criador do TEN, Teatro Experimental do Negro, em 1944.
6 J no ms seguinte, alm da parceria com o percurso de Aderbal, na UFRJ, participei do curso de Pedagogia Gri e Produo Partilhada do Conhecimen-to, na USP, que contou com a presena de Gris, estudantes e professores.
sala Vianinha da ECO uma das figuras mais respeitadas
do Candombl no Brasil, Me Beata de Iemanj.
Me Beata de Iemanj
Eixo temtico desta revista, o(a) Gri um(a) guardi(o )
da histria oral de um povo, reconhecido(a) por sua co-
munidade, que tem a misso transmitir ensinamentos
de gerao em gerao. Sagrado e ritualstico, oriundo
da lngua bamanan, antigo imprio Mali, griot em francs,
traduzido para Gri pelo Ponto de Cultura Gros de Luz
e Gri (Lenis - Bahia), significa o sangue que circula
saberes, histrias, mitos, lutas e glrias do povo. Por meio
de uma pedagogia que valoriza o poder da oralidade, da
vivncia e da corporeidade, o Gri uma biblioteca viva
de memria, fortalecendo a ancestralidade e a identidade
da comunidade (site do Ponto de Cultura Gros de Luz
e Gri).
A famlia de Aderbal conhece sua genealogia desde os
antepassados de Benin/Ketu, na frica do sculo XVII. No
contexto do complexo cultural dos povos de terreiro, cam-
po abordado no percurso conduzido por Aderbal, sua me
biolgica7, Me Beata de Iemanj a principal referncia
na transmisso de conhecimento ancestral.
7 Utilizamos esta expresso pois, no candombl, alm dos biolgicos, pa-
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Beatriz Moreira Costa, desde pequena chamada de Bea-
ta, nasceu em Santiago do Iguape (Recncavo Baiano), onde
j frequentava terreiros e se identificava com Iemanj. Na
dcada de 1950, aps uma infncia atribulada, foi morar
em Salvador, com sua tia Feliciana, casada com o baba-
lorix Ansio Agra Pereira. Ialorix do Il Omi Oju Ar,
Me Beata foi iniciada pela ialorix Olga do Alaketu, Olga
Francisa Rgis, princesa do Benin/Ketu.
Tendo sofrido preconceito na prpria famlia por ter se
separado, em 1968, trazendo consigo seus filhos consan-
guneos Ivete, Maria das Dores, Adailton e Aderbal, veio
para o Rio de Janeiro, onde fundou seu terreiro. Ela afirma
que sempre foi uma rebelde, tendo militado intensamen-
te nas causas ligadas cultura, religio, direito e cidadania
de populaes afro-brasileiras e das mulheres, atuando
contra o preconceito, em projetos sociais e campanhas
de solidariedade.
Em 1991, Me Beata recebeu o Diploma de Personali-
dade de Destaque da Comunidade Negra da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro; foi homenagada, em 2005,
pela Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares com
a Medalha de Mrito Cvico Afro-brasileiro, em 2007; re-
cebeu o diploma Mulher-Cidad Bertha Lutz do Senado
rentescos espirituais tornam a pessoa filho, me, irmo/irm de santo, tema que originou perguntas dos participantes e esclarecimentos por parte do mestre.
Federal. Alm disso, ela a presidente de honra do grupo
de mulheres negras Criola.
Em Caroo de Dend, livro de 1997, a ancestralida-
de de Me Beata faz-se presente atravs de histrias do
cotidiando que trazem, em linguagem singela e direta,
lies, conselhos para a vida e o ax dos orixs. Em 2005,
ela publicou As histrias que minha av contava. Entre
a militncia na manuteno do conhecimento e cultura
tradicional e movimento negro, a dedicao ao candom-
bl e o trabalho na televiso, aos 54 anos, aps 21 anos
de prticas e obrigaes como se fazia tradicionalmente,
ela recebeu a outorga de Me de Santo. Hoje, Me Beata
aposentada da Rede Globo como costureira. Sua biografia
confunde-se com as bandeiras em prol de melhorias para
as comunidades negras.
Aderbal Ashogun Moreira, seu filho biolgico, ressalta a
urgncia de reconhecimento e valorizao desses mestres
mantenedores das culturas tradicionais africanas enquanto
fontes de saberes fundamentais no processo de constru-
o histrico, poltico e cultural brasileiro. Sua proposta
de percurso visa suprir a necessidade de formao de
docentes para o cumprimento da obrigao prevista na
LDB (Lei de Diretrizes e Bases (n 9394/96, art. 26-A), nas
leis 10639 e 11645.
Contextualizando a Dana na UFRJ
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Embora j tenha se passado mais de meio sculo da
fundao do primeiro curso superior de Dana do Brasil,
na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 1956, e vin-
te anos da implementao deste curso de graduao na
UFRJ (1993/1994), a Dana na academia vive um perma-
nente processo de construo de metodologias e busca
de canais de dilogo com demais reas de conhecimento
e criao artstica.
A dana possui uma indiscutvel afinidade com os sa-
beres tradicionais, medida que tem no corpo sua principal
fonte de criao, realizao, suporte e obra, o que gera
tambm dificuldades e conflitos especficos no contexto
acadmico. No por acaso, o curso de Aderbal encontrou
imediata procura entre estudantes da Dana, assim como
participantes de extenso.
A Dana da UFRJ tem suas razes no trabalho da Pro-
fessora Emrita Helenita S Earp, que inseriu a dana nos
currculos universitrios brasileiros quando lecionava as
disciplinas dana e ginstica rtmica para a Educao
Fsica desde a dcada de 1939. Ao longo destes anos, ao
contrrio de se restringir a uma nica linha de pensamen-
to, a Dana/UFRJ abriu-se para inmeros mtodos, prticas
e referncias tericas e conta hoje com trs cursos de
graduao, o Bacharelado, a Licenciatura e o Bacharelado
em Teoria da Dana. De modo bastante sinttico, pode-
mos dizer que neles se formam, respectivamente, artistas/
bailarinos/coregrafos, professores de dana e tericos
deste campo das artes.
A Companhia Folclrica da UFRJ8, fundada pela pro-
fessora Sonia Chemale em 1971 (sob o nome Grupo de
Danas Folclricas da UFRJ), e dirigida pela professora
Eleonora Gabriel desde 1987, apresenta-se ininterrup-
tamente no Rio de Janeiro, Brasil e exterior. Este grupo
realiza anualmente o Encontro com Mestres Populares, no
qual comparecem figuras importantes do jongo, capoeira,
maracatu, dentre outras danas, msica e festas do Brasil.
A Professora Katya Gualter realiza pesquisas em dana
e cinema que tm como eixo construes poticas inspi-
radas na religiosidade de matrizes africanas. A Professora
Tatiana Damasceno tem nestas manifestaes o tema de
suas pesquisas tericas e coreogrficas, assim como os
professores Las Bernardes, Alexandre Carvalho, Frank
Wilson Roberto e Renato Barreto.
Alm das vertentes culturais propriamente ditas da
Dana, o Projeto Paratodos, coordenado pela Professora
Marta Peres, insere-se numa linha de pesquisa ensino
-extenso no campo da dana e sade, em dilogo com
a rea biomdica, estudos da deficincia, sade mental,
dentre outros campos de pesquisa. Colocando em ques-
8 O uso do termo folclore amplamente questionado, mas esta discusso foge ao escopo deste texto.
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to o virtuosismo e padres corporais impostos por uma
viso da arte circunscrita ao sculo XIX, as aulas do pro-
jeto renem pessoas com deficincias fsicas e sensoriais,
transtornos mentais, idosos e quaisquer participantes de
extenso interessados.
Enquanto abordagem teraputica, em especial na sade
mental, a experincia da coletividade proporcionada pela
dana consiste num recurso para a percepo da singu-
laridade, individualidade, permitindo a mistura, envolvi-
mento, acolhimento pelo grupo, ao mesmo tempo em que
tambm auxilia a fornecer as bases para a diferenciao,
a autopercepo, a conscincia de si, de seus contornos,
espao, tempo.
Mencionamos o projeto pois a oficina do mestre Ader-
bal inseriu-se como uma atividade parceira do mesmo,
tendo recebido seus participantes, inclusive pessoas com
deficincia visual, o que relataremos adiante. Deste modo,
sua proposta que alternava momentos de propostas mais
propriamente "expositivas" com vivncias de msica e
dana, afinou-se tanto com as linhas de pesquisa ligadas
s comunidades tradicionais quanto com as interfaces
entre dana e sade do Departamento de Arte Corporal/
EEFD/UFRJ.
Questionamentos e dilemas ligados construo do
conhecimento, pesquisa e criao artstica no espao
da universidade possuem afinidade com aes voltadas
para a insero e dilogo com contedos das culturas de
transmisso oral, da a importncia crucial do papel dos
cursos na rea das artes neste movimento de mudana
de paradigma.
Cultura dos povos de terreiro nos currculos das escolas e universidades
Com a inteno de iniciar um processo de abertura
da universidade a conhecimentos milenares transmitidos
pela tradio oral, em novembro do ano passado, em co-
laborao com o Departamento de Arte Corporal (EEFD) e
o curso de Direo Teatral da (ECO) da UFRJ, onde lecio-
na a Professora Marta Peres, o mestre Aderbal ministrou
para estudantes, professores, funcionrios e participantes
externos oficinas que fizeram parte dos contedos das
disciplinas Etnopesquisa em Dana e Estgio Curricular
Obrigatrio, em seu plo de vertentes culturais.
A participao de pessoas no matriculadas nas respec-
tivas disciplinas ou na UFRJ foi estimulada, enfatizando-se
o carter extensionista da Universidade e do Paratodos
ensino pesquisa-extenso, o que estreitou ainda mais os
laos entre a Dana/UFRJ e o curso do mestre Aderbal. Por
conta disso, participaram dos encontros reabilitantes do
Instituto Benjamin Constant, com deficincia visual parcial
e completa. Ante sua chegada, o mestre teceu relevantes
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consideraes acerca da maneira como sua cultura lida
e respeita as pessoas com deficincia, apresentando-nos
uma explicao que envolvia a mitologia dos orixs, prin-
cipalmente quando nos falou de Oxal.
De fato, identificamos na militncia poltica, artstica e
ecolgica do mestre Aderbal uma estreita afinidade com
as lutas das pessoas com deficincia. Um lema que capta
de maneira contundente a motivao do programa de ao
do movimento das pessoas com deficincia Nada sobre
ns sem ns, ou seja, em ingls, Nothing about us, without
us, e no latim, Nihil de nobis, sine nobis. Isto quer dizer que
nenhuma das polticas pblicas voltadas para seus direitos
devem ser decididas sem a participao direta dos mem-
bros afetados por elas. Em latim, o lema tem suas origens
nas relaes internacionais da Europa Central, e pode ser
encontrado em leis hngaras, nas polticas de imigrao,
em especial da Polnia. Em ingls, foi adotado pelos ati-
vismo dos movimentos das pessoas com deficincia nos
anos 1990, na frica do Sul, na Europa Oriental e ttulo
de um livro de James Charlton. Deste campo, esta bandei-
ra passou a ser usada por outros movimentos, servindo
para se pensar questes nacionais, tnicas e de inmeros
grupos marginalizados de oportunidades polticas, sociais
ou econmicas.
A condio ativa de personalidades como Aderbal est
em sintonia com estas ideias e lema, ao recusarem o papel
de objeto de pesquisa do saber acadmico etnolgico.
Para ele, evidente o protagonismo das pessoas envolvi-
das na produo desta peculiar forma de conhecimento
de carter predominantemente oral, artstico e corporal.
Oku Ab, que quer dizer bem vindo em iorub, foi
o ttulo do percurso. Referimo-nos a um percurso e no
a um curso, pois esta vivncia escapa das metodologias
convencionais de sala de aula, criticadas por Paulo Freire
sob a expresso educao bancria. Na metodologia de
Aderbal, o encontro, a troca, a experincia possuem um
protagonismo em relao palavra escrita. Alm da co-
notao espiritual, ancestral e mtica da palavra, o mestre
ressalta que, em contraposio s formas de comunicao
escrita, a expresso culturas de transmisso oral no se-
ria propriamente a mais precisa, pois a cultura de que ele
fala no est limitada voz, mas tem suas razes no corpo
inteiro, em todo o ser, que canta, toca, dana, se move,
sente, interage, se relaciona, comunga consigo, com os
outros, com o mundo.
Sem gua, sem folha, no tem santo: o ditado iorub
sintetiza o compromisso com a ecologia e a educao
ambiental enquanto um dos eixos centrais do trabalho
do mestre, que abordou aspectos da mitologia, medicina,
culinria, vestimentas, rituais, msica e dana dos povos
de terreiro.
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tambm denominado Oku Ab um projeto mais
amplo de Aderbal voltado para a educao ambiental e
combate ao preconceito contra religies afro-brasileiras.
Este surgiu da necessidade de preservao, recuperao
e conservao dos recursos hdricos impactados pelas
prticas, envolvendo o monitoramento e manejo das reas
utilizadas, limpeza peridica de rios, cachoeiras e flores-
tas, reciclagem dos materiais das oferendas, plantao
e recuperao da mata nativa degradada. Trabalhando,
basicamente, sob a forma de mutires, eles j chegaram
a retirar, de apenas uma rea escolhida para tal, cerca de
cinco toneladas de resduos. Estas aes educativas fazem
parte, j fora da sala de aula, de um segundo momento
do percurso, assim como se deu a visita ao terreiro de
candombl da Me Beata de Iemanj.
O ciclo de vivncias comunitrias, proposto pelo Mestre
Aderbal Ashogun, teve como objetivo ensinar prticas e
costumes tradicionais de herana africana, formadores do
Complexo Cultural dos Povos Tradicionais de Terreiros. Um
dos mais expressivos complexos culturais de manuteno
das razes africanas, fundamental na formao da identi-
dade brasileira, resulta da miscigenao entre os grupos
africanos Fon, Banto e Yorub, oriundos da regio corres-
pondente hoje Nigria, Benin, Angola e arredores. Entre
estes grupos, membros da famlia real, artistas e sacerdotes
religiosos reorganizaram sua cultura e espaos geogrficos
de origem no Novo Mundo. Dessa reorganizao, surgiram
os candombls, comunidades onde a cultura africana
vivida intensamente por seus membros at os dias de hoje.
Uma das maiores responsveis por essa manuteno
na Bahia foi a Ialorix Olga do Alaketu, descendente da
famlia real de Ketu, antigo reino do atual Benin. Me
Beata de Iemanj, sua filha de santo mais velha, que vive
em Nova Iguau, estado do Rio, e sua famlia so hoje um
arquivo vivo da cultura afrodescendente. Preservando a
mitologia, a filosofia, as terapias, a msica, as artes, a ln-
gua e todas as demais formas de organizao cultural de
matriz africana, que encontra um veculo de comunicao
e transmisso pela dana e a msica sagrada, vitais para
os povos de terreiros, cantando, danando e tocando
que eles encontram com seus deuses.
Aderbal Ashogun Moreira um ogan, que em iorub
quer dizer mestre de um saber especfico. Esta palavra
rene diversas funes masculinas dentro de uma casa
de Candombl. Embora possua intuio espiritual, este
sacerdote eleito pelo orix no entra em transe. Ele afirma
que no s nos bancos escolares que se educao. As
atividades fora da sala de aula so fundamentais para o
melhor desenvolvimento da capacidade de compreenso
do aprendizado. Os povos de terreiro apostam no poder
do carter ldico desta cultura como um poderoso m-
todo educativo, o que os aproxima dos artistas da dana.
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Ao abordar diversos aspectos ligados da cultura dos
povos de terreiro, ao contrrio de uma vivncia religiosa,
o percurso teve uma proposta didtica. A professora Mar-
ta, de formao familiar catlica, teve na experincia seu
primeiro contato com o candombl, assim como demais
participantes, dentre eles, outros catlicos, um judeu e
at evanglicos. O mestre enfatizou as especificidades do
espao da sala de aula, educativo, e o do terreiro, propria-
mente religioso e ritualstico, e que sua inteno no era
converter ningum, mas sim, difundir saberes que no
fazem parte dos currculos tradicionais e trazer esclareci-
mentos, que se fazem necessrios por conta de sculos de
preconceitos e atos de violncia fsica e simblica contra
seu povo.
No percurso, foram ensinados canto, dana, toques,
mitologia, lngua, medicina, incluindo fitoterapia, cromo-
terapia, comidas sagradas, arte sacra, prticas tradicionais
sustentveis, histrias e causos de personagens emble-
mticos desta cultura. Sua proposta foi organizar refern-
cias culturais afro-brasileiras que contribuem para que
educao e cultura no Brasil, a fim de caminharem em
coerncia com sua riqueza, valorizando a definio de sua
identidade. O principal objetivo foi diminuir a distncia
entre saberes tradicionais e convencionais, valorizando
e difundindo a cultura afro-brasileira como fonte de um
conhecimento ainda hoje invisibilizado por sculos de
opresso pelos colonizadores europeus. Dentre os ob-
jetivos especficos podemos citar: aproximar pesquisa e
extenso; instrumentalizar educadores para a aplicao
das leis 10.639/03 e 11.645.09; promover qualidade de vida
atravs da dana; estimular prticas saudveis; ampliar o
nvel de conhecimento dos educadores e sociedade sobre
as tradies culturais e religiosas afro-brasileiras, dimi-
nuindo preconceitos e harmonizando prticas; articular
Mestres Gris; difundir o Programa Cultura Viva9; moti-
var um olhar cultural quebrando paradigmas e mudando
comportamentos em relao a cultura e meio ambiente;
promover experincias relevantes para a integrao social
9 O Programa Cultura Viva foi criado e regulamentado por meio das Portarias n 156, de 06 de julho de 2004 e n 82, de 18 de maio de 2005 do Ministrio da Cultura. Ele executado pela Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC/MinC) e surgiu para fortalecer o protagonismo cultural na sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais de grupos e comunidades, ampliando o acesso aos meios de produo, circulao e fruio de bens e servios culturais, tendo como base os Pontos e Pontes de Cultura. De 2004 a 2012, foram fomentados 3662 Pontos de Cultura em todo o pas, dos quais 3034 j foram conveniados. financiado por recur-sos do Governo Federal e dos parceiros pblicos e privados, por meio de convnios, bolsas ou prmios concedidos atravs de chamamento pblico e tem como objetivos: reconhecer iniciativas e entidades culturais; fortalecer processos sociais e econmicos da cultura; ampliar a produo, fruio e difuso culturais; promover a autonomia da produo e circulao cultu-ral; promover intercmbios estticos e interculturais; ampliar o nmero de espaos para atividades culturais; estimular e fortalecer redes estticas e sociais; qualificar agentes de cultura como elementos estruturantes de uma poltica de base comunitria do Sistema Nacional de Cultura.
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com outros atores; discutir os valores culturais brasileiros
atravs da apreciao esttica.
A metodologia baseou-se em aulas-ensaio, divididas
em mdulos, organizados a partir dos orixs da cultura
afro-brasileira Egun, Exu, Ogun, Oxosse, Ossain, Omolu,
Iroco, Oxumar, Xang, Oxum, Ew e Oba, Yans, Yemanj,
Nan, Oxal. Diferentes dinmicas de aprendizagem al-
ternavam-se entre momentos de aula expositiva com
rodas de conversa e apresentao dos contedos e
prticas de canto, toque e dana, dentre cantigas sagradas
de candombl, samba de roda, festa de caboclo, exibio
de vdeos, dana. Seguindo a mitologia dos orixs, os prin-
cipais temas abordados foram a ecologia e cultura dos
Povos Tradicionais de Terreiro, as Folhas Sagradas, o uso de
defumadores, rezas, banhos, xaropes e Sassanha (cnticos
sagrados das folhas), elementos da Lngua Iorub/Banto;
Comidas sagradas afro-brasileira; Orculo/Me Beata; Arte
sacra yorub/fon/banto (adereos, mscaras, vestimentas
e adornos; a dana e demais manifestaes tradicionais
dos terreiros, canto, ritmos; finalmente, a apresentao da
aula espetculo do Treme Terra Esculturas sonoras, grupo
musical de Aderbal Ashogun, ocorrido na Sala Vianinha da
ECO, com a ilustre presena de Me Beata.
A ecologia uma preocupao central desses povos e
o principal material pedaggico consiste na Cartilha Oku
Ab, criada por Aderbal. Um aspecto curioso que no
discurso do preconceito, as religies de matriz africana so
repudiadas por realizarem sacrifcios animais. No entanto,
nem todos os que repetem este jargo so vegetarianos,
muito pelo contrrio. A venda e consumo de carne de toda
espcie consistem num aspecto importante de diversas
sociedades ocidentais, a ponto da palavra churrasco ser
praticamente sinnimo de festa. No se come carne de
animal que no tenha sido sacralizada". Para se matar um
cabrito, tem que haver um ritual especfico. Imagina se a
Sadia tivesse que ter todo este tato para matar uma gali-
nha... Certamente, a quantidade de animais abatidos seria
muito menor, afirmou Aderbal. Ele enfatizou a preocupa-
o de seu povo com a ecologia e com a fome, ressaltando
que no costume jogar comida fora mas sim, comer suas
oferendas. Segundo ele, a humanidade vive o problema da
fome e da misria e seu povo se preocupa com isso. Ainda
acerca da gastronomia, o mestre nos contou que a dieta
de seu povo rica em gros, azeite de dend, que possui
muita vitamina A. Ele abordou tambm a aromaterapia e
a cromoterapia. A primeira, realizada por meio de banho
de cheiro, quando dizemos dar um cheiro como cumpri-
mento carinhoso, nas prticas de infuso. A segunda, ligada
ao uso da cor mais adequada, para os dias da semana, em
sua relao com os orixs.
Os elementos da natureza trouxeram a discusses so-
bre as bases da cultura dos povos de terreiro e os pri-
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meiros pensadores gregos, os chamados filsofos pr-
socrticos. O sistema Laban de anlise do movimento,
importante referncia da dana, tambm relaciona ele-
mentos, qualidades de movimento e sistemas do cor-
po. Vislumbramos a um eixo de dilogo entre as noes
apresentadas por Aderbal e questes essenciais com que
lidam os bailarinos, atores, artistas.
Bonita de ser ver, a dana no tem o carter de espe-
tculo, mas utilitria, carregada de smbolos; xir quer
dizer brincadeira, ritual que conta as histria dos orixs,
cantadas, danadas e tocadas. A roda era uma formao
constante e a coletividade um valor com uma relevn-
cia totalmente prpria, que contrasta com os valores
das sociedades modernas, baseadas no individualismo.
Referindo-se roda e repetio dos mitos nos ritos,
Clarisse Mantuano, esposa de Aderbal, formada em Jor-
nalismo (PUC/RJ), recordou o conceito de eterno retorno
do filsofo alemo Nietzsche. No sexto ms de gravidez,
Clarisse nos ensinou as danas de alguns destes orixs,
detalhes acerca dos passos. Andr, filho deles, participou
intensamente.
Aderbal comparou a relao entre orixs e as pessoas
com os signos do zodaco. Sagrada, a gua apresenta-se
de diversas maneiras no mundo doce, salgada, para-
da, nos mangues, acumulada nas nuvens, caindo com a
chuva, dentro dos seres vivos... Ele chamou ateno para
nosso hbito de jogar gua, despachar a porta, usar a
gua como purificadora. O primeiro orix sobre o qual
nos contou foi o da gua doce, Oxum. Cachoeira que
simboliza a gestao, a bolsa dgua que envolve o feto no
tero da mulher at o nascimento. o orix do amor, da
fertilidade, da beleza. Segunto Aderbal, estas so caracte-
rsticas presentes nas pessoas filhas deste orix, bonitas,
faceiras, vaidosas. No extremo, os aspectos negativos po-
dem resultar em coqueteria. Evitavam cham-la quando
iam para a guerra, um orix que definitvamente no
gosta de guerra e violncia. Sua ferramenta o espelho,
abeb, em iorub. Quando pegou seu espelho e o voltou
na direo dos olhos do cu, Oxum fez com que a noite
voltasse para seu reino.
Temos muito mais acesso, na escola, mitologia grega e
Revoluo Francesa do que s atrocidades da escravido
e cultura dos povos de origem africana. Semelhanas
entre Oxum e a deusa grega Afrodite foram comentadas
por alguns participantes. Aderbal recordou-nos que a hu-
manidade o homo sapiens nasceu na frica, de onde
caminhou. Mais que pela presena num inconsciente cole-
tivo que nunca as teria ouvido, as histrias circulam. E os
nomes e idiomas falados vo se modificando, adquirindo
outras roupas, sotaques, temperos.
Xang o orix dos raios, troves, grandes cargas eltri-
cas e do fogo. Viril e atrevido, violento e justiceiro, castiga
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os mentirosos, ladres e malfeitores com o raio, morte
considerada infamante, assim como uma casa atingida por
um raio marca da clera de Xang. Orix do Poder, ele
a representao mxima do poder de Olorum. Suas cores
so terracota e branco e Amal sua comida.
Ians a orix dos raios e tempestades. Ao mesmo
tempo em que guerreira, possui a leveza de uma borbo-
leta. Representa a gua que circula entre o cu e a terra.
Tem um jeito de ser briguento e fogoso. Nan a orix
das lagoas e mangues. Os filhos de Nan so pessoas
observadoras. Como as corujas, no so de falar muito,
mas prestam ateno em tudo. So as guas paradas, ela
uma anci, uma matriarca. A biologia comprova que
os manguezais consistem num ecossistema de enorme
biodiversidade. Nan o bero das criaturas marinhas,
ovas e peixinhos, pulula vida ancestral. chamada de a
Soturna, a Feiticeira, a Velha.
Iemanj o princpio da vida na Terra, a dona das ca-
beas, palavra originria do iorub Y amon ej. a me e
madrinha de todos os peixinhos do mar, esposa de Oxal,
povoou o Sul. Oxal o deus da acessibilidade, tem res-
ponsabilidade pelas pessoas especiais. Ele diz: Sou eu o
responsvel por fazer uma pessoa com um olho s, com
uma perna s. Ns somos todos feitos assim. Ogum o
deus da tecnologia. O primeiro ferreiro, forjou a espada.
tambm o deus da ira, do vcio, do pecado. Mas o que
seria de um general sem a ira? Nas aulas, teceram-se co-
mentrios a respeito de suas afinidades com Hermes ou
Mercrio, da mitologia greco-romana.Oxssi caador.
Com astcia, monta a armadilha e fica trs dias esperando,
com uma flecha s, mira e acerta! Aderbal nos falou tam-
bm de Exu, a que se referiu como imagem e semelhana
do homem, e Ol-Orum, o senhor dos astros.
Embora seja difcil eleger algum, pois todo o percurso
foi um acontecimento inesquecvel, os pontos altos de
nossos encontros foram a visita de Me Beata sala Viani-
nha, da ECO/UFRJ, contando as histrias de seus bisavs,
separados quando desembarcaram no navio negreiro e
posteriormente reunidos, numa teia pica merecedora de
um filme, e nossa ida ao Terreiro de Me Beata, em Miguel
Couto, Nova Iguau, estado do Rio.
Deste modo, a proposta oferece diretrizes potentes para
integrar uma ps-graduao transdisciplinar que conte
com estes imprescindveis mestres, abarcando uma poli-
fonia de saberes e aes.
Polifonia e Carnavalizao
Aderbal tinha a inteno de trazer convidados da Capoei-
ra, do Jongo, do Samba de roda, erveiros, samba de raiz
e mestres da cultura tradicional, indgenas, ciganos, qui-
lombolas e outros mestres, mas infelizmente isso no
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foi possvel no primeiro percurso, devido s dificuldades
impostas pela sua realizao em pouco tempo, no final do
ano e sem qualquer apoio financeiro. Todavia, a proposta
de ps-graduao em Pedagogia Gri, a ser realizada ini-
cialmente na USP, com a perspectiva de se expandir para
demais campi universitrios do Brasil, engloba a participa-
o de mestres oriundos de diferentes tradies culturais.
Os povos de terreiro sofreram e sofrem at hoje perse-
guies, so alvo de acusaes equivocadas e preconceitos
histricos. No entanto, contrastando com o tratamento
recebido, sua atitude de acolhimento, no s dos seus,
mas dos outros, em respeito s diferenas. Tanto no evento
de lanamento na ECO/UFRJ quanto no curso de Pedagogia
Gri na USP, Gris procedentes de tradies africanas e
indgenas, sem cair numa homegeneizao, estabeleceram
um dilogo enriquecido por suas diferenas, demons-
trando que no faz sentido uma cultura afirmar-se como
melhor ou mais forte que a outra, mas sim apontando
para a possibilidade de troca.
Durante o curso de Introduo Pedagogia Gri do qual
a professora Marta teve a oportunidade de participar, em
Lenis, em setembro de 2013, um dos pontos altos foi o
encontro de uma participante vinda da aldeia indgena Tu-
cum, de Olivena, regio prxima de Ilhus - Bahia, Ndia
Tupinamb, com Dona Judite, erveira da comunidade do
Remanso, em visita sua casa, em que ambas trocaram
conhecimentos a respeito de ervas e fitoterapia tradicional.
O movimento de buscar trazer para a escola a diver-
sidade cultural, historicamente excluda de um discurso
cientfico hegemnico, remete "teoria da polifonia", do
crtico literrio russo Mikhail Bakhtin. Segundo ele, ao
contrrio de um mero reflexo da personalidade do autor,
as personagens dos romances de Dostoivski apresen-
tam-se como senhoras de seus discursos, numa multi-
plicidade de vozes e conscincias independentes. Bakhtin
contrape, assim, a polifonia10 dostoievskiana ao romance
monofnico, em que as personagens so simplesmente
porta-vozes do pensamento do autor. No romance plu-
rivocal de Dostoivski, cada personagem possui viso,
posio no mundo prprias e suas vozes apresentam uma
excepcional independncia da estrutura da obra como um
todo, pois se tratam de conscincias mltiplas, imiscveis
e equipolentes que no se subordinam, mas soam lado a
lado com a palavra do autor. Tanto que Bakhtin chegaria
a afirmar que o autor-artista no inventa a personagem,
mas a pr-encontra j dada, independentemente de seu
10 O termo polifonia tem origem num estilo musical que se desenvolveu na Idade Mdia e, posteriormente, no perodo gtico, na chamada Escola Notre Dame de Paris, contrastando-se com a homofonia, propagada durante a Contra-Reforma, em que um mesmo texto cantado simultaneamente por todas as vozes, faciliando-se a compreenso das palavras e consequente-mente, a f. (ROMAN, 2003).
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ato puramente artstico, pois se as gerasse de si mesmo,
no seriam convincentes. Como diria o Belmiro de Cyro
dos Anjos, no romance, como na vida, os personagens
que se nos impem, ou Gide, eles nascem e crescem
por si, procuram o autor, insinuam-se-lhes no esprito
(BEZERRA, in BAKHTIN, IX).
Em Dostoivski, a representao das personagens a
representao de conscincias plurais, nunca da conscin-
cia de um eu nico e indiviso, mas da interao de muitas
conscincias, de conscincias unas, dotadas de valores
prprios, que dialogam entre si, interagem, preenchem
com sua vozes as lacunas evasivas dos interlocutores, no
se tornam objeto dos discursos de outros falantes nem do
autor, produzindo o grande dilogo do romance. O autor,
conscincia das conscincias, participa e o organizador
deste dilogo, o regente do coro de vozes. Dostoivski no
cria, assim, escravos mudos como faz Zeus, mas pessoas
livres, capazes, at mesmo, de se rebelar contra seu criador.
A comear pela trama e pela composio de persona-
gens extremamente humanas, contraditrias, repletos de
nuances, inacabados, como todos ns, o tema fascinan-
te, de modo que pode se desdobrar em outros campos,
tais como o prprio percurso com Aderbal, a criao c-
nica e propostas de aes futuras. Embora parea simples
primeira vista, a ideia de polifonia muito complexa,
de maneira que coloc-la em prtica exige um rigoroso
exerccio metodolgico.
A noo de carnavalizao, tambm desenvolvida por
Bakhtin no campo da teoria literria, consiste num rele-
vante referencial terico para os processos criativos de
nossas aulas de dana, que por sua vez possuem afinida-
de com o percurso apresentado pelo mestre. Ao trazer a
reflexo de que somos todos diferentes em nossa singu-
laridade, e que a homogeneizao em indivduos-padro
a desempenhar corretamente seus papis sociais uma
falcia facilmente desnaturalizada ante olhos mais atentos,
nas festividades carnavalescas, a miscelnea dos corpos
embaralha relaes de poder e derrete as fronteiras entre a
pessoa, seu semelhante e o mundo. Ao colocar em cheque
o corpo oficial moderno, a festa traz consigo o "corpo
grotesco" da multido. Nesta espcie de intervallum mundi,
entramos em contato com um estado que se perdeu com
o advento do indivduo moderno, mas que ainda se faz
presente nas sociedades tradicionais. Recorda-se aqui a
afirmao da Mestre Doci, no incio deste texto, a respei-
to da importncia da "festa" e do encontro, mais que um
acaso, momento relevante para as culturas tradicionais.
Corpos, mentes, comportamentos, "diversos" dos es-
perados de ns remetem ao corpo grotesco, ideia que pode
ser um caminho possvel para desnaturalizar a condio
de "indivduo", ao chamar ateno para sua historicidade,
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apontando para modos de existncia em que esta categoria
ainda no havia sido estabelecida. Tornada uma vivncia
mais intensificada, a concepo de si enquanto indivduo,
principal responsvel por seus sucessos e fracassos, trouxe
um tipo de sofrimento mais propriamente moderno, con-
trastado com o acolhimento presente na condio coletiva
das sociedades tradicionais. A atitude de acolhimento de
Me Beata foi imediata ao receber a turma da UFRJ em seu
terreiro, absolutamente sem se importar o quanto conhe-
camos ou que vnculos possuamos com o candombl.
Assim como na unio da coletividade em torno de um
anseio comum, de resistncia opresso, as festividades
do carnaval so identificadas como uma espcie de inter-
vallum mundi, marcadas por uma suspenso das relaes
de poder. Le Breton considera as civilizaes medieval e
renascentista uma mistura confusa de tradies populares
locais e referncias crists, numa espcie de "cristianismo
folclorizado" que nutre as relaes entre homem e seus
meios social e natural11. Bakhtin refere-se ao grande corpo
popular da espcie: insatisfeito com os limites que no
cessa de transgredir, ele ilustra o fim e o renascimento do
mundo, uma nova primavera da vida, indiscernvel, aberto,
ultrapassando a si mesmo, o corpo grotesco do carnaval
no demarcado do resto do cosmos, no fechado, con-
11 Le Breton, 2003, p.29.
cludo, pronto: formado por salincias, protuberncias e
transborda vitalidade. Tempo de excesso e dispndio, tais
festas tendem a experimentar esse "no diferenciar-se"
entre homem, corpo e mundo caracterstico das socie-
dades holistas, utilizando os termos do socilogo Louis
Dumont, que as ope s "individualistas"12. Naquelas, reina
uma identidade de substncia entre o homem e a multi-
do de semelhantes, de modo que ele no se distingue da
trama comunitria e csmica em que se insere, pois sua
singularidade ainda no faz dele um indivduo, no sentido
moderno do termo. A partir do advento do individualismo,
passaria a se dar a separao pela matria, pelo corpo,
que deixa de se confundir com a pessoa e passa a ser
uma "propriedade" sua13. Em outras palavras, deixamos
de dizer "eu sou meu corpo" e passamos a dizer "eu tenho
um corpo".
Na Pedagogia Gri, alm do protagonismo assumido
pelo corpo e a importncia da sensao de acolhimento e
pertencimento ao grupo, identifica-se uma maneira muito
especial e genuna de propor um equilbrio entre relaes
de poder em geral conflitantes, ao simultaneamente dar
vazo s singularidades dos participantes, embora sob uma
12 Louis Dumont chamou as sociedades modernas de individualistas em oposio s tradicionais, que denominou "holistas" (DUMONT, 1985; DUMONT, 1992).
13 Le Breton, 2003, p.29/31.
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indiscutvel e peculiar autoridade assumida por um Gri
dotado e reconhecido pelo saber tradicional. Atente-se a
para a diferena entre autoridade e autoritarismo.
A ideia de polifonia exposta acima afina-se com o con-
ceito de Produo Partilhada do Conhecimento (Bairon,
2012). Segundo Bairon e Lazaneo, referindo-se ao produto
hipermdia Bo erro Kurireu documentrio, pesquisa
e discusso de conceito , a mudana propiciada no
contexto das autorias mltiplas na produo partilhada
do conhecimento apresenta uma alternativa assime-
tria tradicional das representaes monolgicas. () Essa
forma reticular de produzir conhecimento questiona as
estruturas rgidas e formais da produo de conhecimen-
to cientfico, que elege as narrativas acadmicas como o
protagonista do saber (Bairon e Lazaneo, 2012).
A metodologia de Aderbal est em sintonia com estas
linhas de ao, medida que, antes de serem uma trans-
misso de conhecimento de quem sabe para quem no
sabe, os encontros eram vivenciados, experincias com-
partilhadas em instantes nicos e especiais na histria
de cada um.
Depoimentos
Em sua relao com as comunidades por ele pesquisa-
das, o professor Sergio Bairon14 prope realizar um outro
tipo de etnografia, em que as mesmas so empoderadas
como produtoras de mdia. Segundo esta perspectiva, o
pesquisador deixa de ser um olhar invasor, para partici-
par, ensinar e criar junto. A comunidade, seja uma tribo
indgena, seja um grupo de descendentes de africanos que
preserva a tradio da Coroao dos Reis Congo, ganha a
oportunidade de divulgar de uma outra maneira seus co-
nhecimentos, por meio de recursos de mdia e da internet.
Os encontros do percurso de Aderbal foram registrados,
por meio de uma colaborao do Ponto de Cultura da
Escola de Comunicao da UFRJ. No entanto, a produo
audiovisual no foi uma de nossas prioridades, o que pode
vir a ser aprofundado num futuro percurso. Alm disso,
no se configurou numa etnografia de uma comunidade,
mas sim na entrada de um mestre de uma cultura de tra-
dio oral para trocar saberes com estudantes e partici-
pantes de extenso no espao acadmico, o que envolveu
tambm a sada do grupo para atividades ecolgicas, na
14 O trabalho de Bairon o aproximou da Pedagogia Gri e de iniciativas como o percurso proposto por Aderbal. O professor participa da luta pela aprovao da Lei Gri e de articulaes para a criao de cursos institucionalizados com esta metodologia.
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Floresta da Tijuca e no terreiro da Me Beata, enfim, aes
relevantes voltadas para o aumento da permeabilidade
universidade e sociedade, comunidade, mundo.
Ao estabelecermos uma analogia do Aderbal e os parti-
cipantes do percurso com um autor de romance polifni-
co e suas personagens, podemos afirmar que o percurso
produziu em ns ressonncias inusitadas, que extrapola-
ram o que o mestre apresentou ou seria capaz de prever.
Adiante, apresentamos os depoimentos dos participantes,
coautores deste texto:
Fazer o curso do Aderbal Ashogun foi uma experincia fantstica,
receber os saberes ancestrais daquele que mantm viva a tradio da
cultura afro brasileira, enriquece e abre caminhos por um futuro mais
humano e com o compromisso de formar as novas geraes de bra-
sileiros com respeito e em harmonia com a natureza. (Paulo Rafael
Pizarro, malabarista, professor de futebol, pizzaiolo, bacharel em
Direito, ator, dramaturgo e diretor da Tropa de Palhaos de 5).
A minha experincia com as razes de matriz africana me aprofun-
dou a ancestralidade, me fez encontrar o Brasil. Aderbal Ashogun
meu mestre, amigo e reencontro. Fomos todos ao quilombo e taba.
(God Quincas, nome artstico de Victor Ferreira, ator e palhao).
Foi maravilhoso. Eu acho as aulas ali timas. Ele falou do iorub,
contou histrias dos ancestrais, de onde a gente veio. Porque na
realidade, todo mundo veio da frica. Alguns vo ficando mais
branquinhos, outros, no. Aquela aula foi maravilhosa porque ele
nos contou lendas, ervas, histria, alimentao. Acabava passando
uma energia maravilhosa, terminava com um alto astral, muito legal.
(Eliane Rodrigues Pereira, graduada em Administrao, deficiente
visual, reabilitante do Instituto Benjamin Constant).
O curso foi ministrado pelo mestre Aderbal, onde ele constituiu
parcerias entre pontos de cultura, escolas e Universidades como a
UFRJ. Tive o privilgio de participar de encontros atravs dos quais
percebi que tinha receio do desconhecido, do que era umbanda,
candombl, por no conhecer o que significava. Hoje analiso de
outra forma, apesar de ser to complexo. Agora entendo que tudo
energia e que isso se manifesta de diversas formas e intensidades
atravs da natureza. Percebi com as aulas que cada ser humano tem
uma tendncia de movimento e que o homem utilizado como meio
para concretizar o imaterial fazendo o elo entre o homem e suas
divindades que so caracterizadas por smbolos onde realizada essa
troca de energia. As aulas faziam uma reflexo de como a sociedade
enxerga a questo da cultura africana e que por falta de conhecimento
a discriminam. Como os alunos e professores da universidade podem
est colaborando para acabar com esse mito em relao aos orixs,
por exemplo? Como o professor pode estar buscando entender esses
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aspectos para saber explicar, caso seja questionado? Como reagir
diante dessas situaes? O curso abriu um leque de oportunidades
de se trabalhar a questo da cultura africana nas aulas de dana,
comeando o mais cedo possvel desde educao infantil, a fim de
conscientiz-los da onde viemos. (Rosana Oliveira, professora de
Educao Fsica e estudante do Bacharelado em Dana (UFRJ).
Cultura de Povos de Terreiros e Paratodos: uma primeira aproximao:
Viver a sociedade contempornea, especificamente na metrpole do
Rio de Janeiro, envolve a possibilidade da (re)aproximao com uni-
versos culturais historicamente submetidos segregao, perseguio
e tentativa de aniquilamento. Ao mesmo tempo em que aumentam as
demandas pela laicizao do Estado, pela liberdade de culto religioso
e pelo dilogo intertnico, nos confrontamos com o crescimento da
intolerncia religiosa por parte de certos grupos ligados s religies
bblicas15, a proliferao de seus cultos televisivos e seu avano
sobre o sistema poltico. Neste sentido, a vida espiritual na cidade
15 Por outro lado, finalmente, podemos dizer que alteridade no significa a ausncia da possibilidade de reconhecimento da existncia social , tampouco ausncia de proximidade. Em seus versculos iniciais, o texto bblico, ao descrever o Jardim do den, conhecido tambm como paraso (dos quais seriam expulsos os primeiros seres humanos da ancestralidade judaico-crist), narra que um rio dali se convertia em quatro cabeceiras e entre elas, as guas da segunda cabeceira rodeava toda a terra de Cush (Gnesis, captulo II, versculo 10-15). Atualmente, em lngua hebraica, a expresso Cushi referncia para mulheres, homens e coletivos que trazem nos tons escuros da sua pele, a herana das origens da nossa humanidade no continente africano.
sofre processos de acelerao, inclusive comunicacional, via novas
tecnologias aplicadas informtica, a construo de imagens publi-
citrias e s operaes mercantis. Como nos instrui Milton Santos
(1994), no perodo tcnico-cientfico em que nos encontramos, cresce
a distncia do homem comum em relao a esse novo Tempo Mundo
(...) aumenta as distncias entre as instituies e as pessoas. Por
outro lado, o tempo concreto dos homens a temporalizao pr-
tica (...) a interpretao particular do tempo por cada grupo, classe
social, cada indivduo(p.82-3) e a co-presena ensina aos homens
a diferena. Assim, a possibilidade de contato com saberes da nossa
ancestralidade, reunida a partir das prticas rituais e culturais que
tem a frica como origem, atravs de projetos de extenso univer-
sitria com oficinas de dana e artes corporais favorece o resgate de
um tempo definido por uma matriz de comunho espiritual e social,
que at recentemente era marginalizada na maioria das instituies
convencionalmente relacionadas cultura. No contexto do projeto
de extenso universitria Dana Paratodos, coordenado pela profes-
sora Marta Peres, as lutas pela afirmao identitria se encontram
com a necessidade de no se restringir a dana a uma viso presa
a padres de corpo e de tcnica do sculo XIX, mas sim ampli-la
para uma multiplicidade de prticas, de maneira a no contrapor
danar e pensar16 (alm de contribuir para a renovao do nimo
em estrito senso, como forma de tratamento ou preveno, a dana
16 Peres, Marta. Festival Corpos mpares. Jornal da Dana. Rio de Janeiro, Ano 23, n 163, novembro de 2012, p.4.
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iro A. M
oreira, C. M
antuano, M. Peres
traz inumerveis benefcios motores, psicolgicos , de qualidade de
vida, de autonomia)17. Na oficina oferecida pelo mestre Aderbal
Ashogun Moreira, ligada ao projeto Dana Paratodos, nos envolve-
mos em algumas prticas e debates sobre a disposio comunitria
e familiar dos povos do terreiro e seu modo de vida, a dinmica dos
seus rituais e a cosmologia dos Orixs, o uso medicinal de plantas e
a observao de comportamentos transcendentes, por exemplo. Gestos,
ritmos e cantigas herdados pelos povos transpostos do continente
africano para o sul americano, apesar de terem sido, na maioria das
vezes, isolados da lgica formal da cultura ocidental e do conheci-
mento bblico judaico cristo, mantiveram-se sendo praticados e
transmitidos pelas mes de santo a seus filhos do terreiro. Alm de
resistir pelo esforo de reconstruo de um modo de vida em uma
dispora opressiva e de explorao das energias da sobrevivncia,
esta transmisso geracional de conhecimentos, permitiu que hoje,
junto com a luta pela afirmao identitria e liberalizao dos cos-
tumes, estes saberes se recolocassem diante de grupos reunidos por
uma instituio pblica de excelncia, como a UFRJ. Em ambiente
acadmico, experimentamos a alternncia dos batuques nos instru-
mentos de percusso, os gestos e passos de roda referidos ao culto aos
Orixs, a sabedoria sobre os tempos biolgicos dos organismos na
natureza, valores ancestrais e saberes simples entre os usos das es-
truturas metodolgicas e as linguagens digitais das novas tecnologias
17 Peres, Marta. Paratodos. Jornal da Dana Rio de Janeiro, Ano 22, n 162, outubro de 2012, p.4.
que caracterizam os processos de aquisio de conhecimento. Assim,
nos foi possvel estabelecer contato com alguns comportamentos e
saberes recuperados da cultura de matriz africana e mantidos pelos
povos do terreiro no Brasil, em um processo de resgate institucional
da alteridade religiosa e cultural em nossa contemporaneidade, e
reconhec-los em um arranjo de oficina. (Ivy Schipper, gegrafo,
mestre em urbanismo e pesquisador do IPPUR).
Com o desejo de continuar...
Nossa cultura fala de simplicidade, carinho, hospita-
lidade. De guerreiros, eguns, que so smbolos ancestrais
dos avs, bisavs. O mestre comparou seus rituais a uma
forma de meditao e encontro com a natureza: Enquan-
to no Oriente, este encontro se d com a pessoa calada,
em silncio, entre os catlicos, existe o ritual da missa, nos
povos de terreiro, este encontro acontece com as pessoas
cantando, danando, tocando, num estgio orgnico de
meditao com a natureza. Eu sou de Xang, diz Aderbal
Quando medito, me sinto um rei, o deus da justia. Foi
com este esprito que ele conduziu lindamente o percurso,
que ser reiniciado numa prxima oportunidade. H muito
mais a falar, mas podemos continuar num prximo texto.
Terminamos de escrever este texto num domingo en-
solarado, na grande festa da Caminhada pela Liberdade
Religiosa ao longo da Avenida Atlntica, Praia de Copaca-
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bana, Rio de Janeiro (08/09/2013), organizada por coletivos
de redes. Com muitos tambores, cantos e dana. Ax!
Referncias Bibliogrficas
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Conhecimento: do filme hipermdia. Intercom,
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