UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JULIANO SAMWAYS …
Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JULIANO SAMWAYS …
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANAacute
JULIANO SAMWAYS PETROSKI
RETOMADAS CRIATIVAS DE KLEacuteOS NO INIacuteCIO DA FILOSOFIA GREGA
XENOacuteFANES E HERAacuteCLITO NA CRIacuteTICA A HESIacuteODO
CURITIBA2018
RETOMADAS CRIATIVAS DE KLEacuteOS NO INIacuteCIO DA FILOSOFIA GREGA XENOacuteFANES E HERAacuteCLITO NA CRIacuteTICA A HESIacuteODO
Tese apresentada ao curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Setor de HumanasUniversidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em LetrasOrientador Prof Dr Alessandro Rolim de MouraCoorientador(a) Prof(a) Dr(a) Maria Cristina Figueiredo Silva
CURITIBA2018
JULIANO SAMWAYS PETROSKI
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo Fernanda Emanoeacutela Nogueira ndash CRB 91607
Biblioteca de Ciecircncias Humanas e Educaccedilatildeo - UFPR
Petroski Juliano Samways Retomadas criativas de Kleacuteos no inicio da filosofia grega Xenoacutefanes
e Heraacuteclito na criacutetica a Hesiacuteodo Juliano Samways Petroski ndash Curitiba 2018
270 f Orientador Prof Dr Alessandro Rolim de Moura Tese (Doutorado em Letras) ndash Setor de Ciecircncias Humanas e Letras
da Universidade Federal do Paranaacute 1 Poesia eacutepica grega 2 Xenoacutefanes 3 Hesiacuteodo 4 Heraacuteclito 5
Filoacutesofos preacute-socraacuteticos I Titulo CDD ndash 883
Essa tese eacute dedicada agrave minha esposa Bruna Martin Fernandes Moreira Petroski que compartilhou sua compreensatildeo afeto e amor a cada paacutegina escrita
Tambeacutem dedicada a meus filhos Catarina Roncalio Petroski e Samuel Martin Petroski
AGRADECIMENTOS
Novamente agradeccedilo o suporte dado por minha famiacutelia nessa jornada Sem eles natildeo teria
conseguido
Agradeccedilo tambeacutem ao Professor Dr Alessandro Rolim de Moura pela orientaccedilatildeo Natildeo
foi uma orientaccedilatildeo qualquer Junto ao Professor Alessandro pude vivenciar o real significado
de um orientador que busca o rigor a seriedade a profundidade em cada palavra sem ele
tambeacutem natildeo teria sido possiacutevel escrever essa Tese
Agradeccedilo aos Professores Dr Teodoro Rennoacute Assunccedilatildeo e Dr Bernardo Guadalupe Lins
Brandatildeo que trouxeram criacuteticas e apontamentos na Qualificaccedilatildeo que garantiram a continuaccedilatildeo
da minha Tese
Agradeccedilo ao Professor Selvino Joseacute Assmann (in memoriam) por ter me incentivado na
pesquisa acadecircmica no iniacutecio da minha vida universitaacuteria Igualmente ao Professor Dr Deacutecio
Krause por ter me incentivado a trilhar a pesquisa inclusive me apoiando nas primeiras
Monitorias de disciplinas que assumi na Graduaccedilatildeo Ali comeccedilou minha docecircncia
Agradeccedilo de igual forma agrave Professora Dra Isabel Cristina Jasinski por ter me aberto
a possibilidade de mudanccedila de aacuterea me acolhendo como orientadora de Mestrado em Letras na
UFPR
Agradeccedilo ao meu colega Vinicius Ferreira Barth incansaacutevel batalhador pelas Artes
amigo que muito contribuiu para minha jornada no mundo ldquodas claacutessicasrdquo
Agradeccedilo ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras da UFPR e agrave CAPES pelo suporte
financeiro ao longo do mestrado e do doutorado
ldquoO primeiro eacute o paradoxo de Zenatildeo contra o movimento Um moacutevel
que estaacute em A (afirma Aristoacuteteles) natildeo poderaacute alcanccedilar o ponto B
porque antes deveraacute percorrer a metade do caminho entre os dois e
antes a metade da metade e antes a metade da metade da metade e
assim ateacute o infinito a forma desse ilustre problema eacute exatamente a de
O castelo e o moacutevel e a flecha e Aquiles satildeo os primeiros personagens
kafkianos da literatura() No vocabulaacuterio criacutetico a palavra precursor eacute
indispensaacutevel mas seria preciso purificaacute-la de toda conotaccedilatildeo de
polecircmica ou rivalidade O fato eacute que cada escritor cria seus precursores
Seu trabalho modifica nossa concepccedilatildeo do passado assim como haacute de
modificar o futuro rdquo
Jorge Luis Borges Kafka e seus precursores
RESUMO
O principal objetivo desta tese eacute demonstrar um espaccedilo de contato ainda pouco estudado na
transiccedilatildeo da poesia eacutepica para os argumentos dos primeiros filoacutesofos entre diferentes
concepccedilotildees do κλέος (gloacuteria-fama-renome) Tanto alguns poetas quanto alguns pensadores
buscaram essa fama que primeiramente parece ter eclodido na cultura grega atraveacutes dos
personagens homeacutericos mas que se propagou como objeto conceitual de alguns autores antigos
Nesta demonstraccedilatildeo que a tese procura desvendar Hesiacuteodo eacute um componente crucial pois este
poeta eacute colocado como uma voz autoral a ser teoricamente superada por Xenoacutefanes e Heraacuteclito
estes que tambeacutem utilizaratildeo essa criacutetica a Hesiacuteodo para construir seu proacuteprio κλέος Para
demonstrar tais aspectos esta tese iniciaraacute o estudo do κλέος presente na poesia homeacuterica
demonstraraacute a necessidade do poeta de buscar a fama e a necessidade de Hesiacuteodo tambeacutem fazecirc-
lo Finalmente na repeticcedilatildeo e criacutetica teoacuterica de Hesiacuteodo por Xenoacutefanes e Heraacuteclito de
observarmos duas retomadas criativas do κλέος feitas por esses filoacutesofos
Palavras-Chave κλέος Hesiacuteodo Heraacuteclito Xenoacutefanes preacute-socraacuteticos repeticcedilatildeo
ABSTRACT
The main objective of this thesis is to demonstrate a space of contact still barely studied in the
transition from epic poetry to the arguments of the first philosophers between different
conceptions of κλέος (glory-fame-renown) Both some poets and some thinkers sought this
fame that seems to have hatched first in Greek culture through the Homeric characters but
which also spread as a conceptual object of some ancient authors In this demonstration that the
thesis undertakes to unveil Hesiod is a crucial component for this poet is placed as an voice to
be theoretically surpassed by Xenophanes and Heraclitus who will also use this criticism of
authorial Hesiod to construct their own κλέος To demonstrate such aspects this thesis will
begin the study of κλέος present in Homeric poetry demonstrate the poets need to seek fame
and the need for Hesiod to do so too Finally in the repetition and theoretical criticism of Hesiod
by Xenophanes and Heraclitus we will observe two creative revivals of κλέος on the part of
these philosophers
Keyword κλέος Hesiacuteod Heraclitus Xenophanes presocratic repetition
Acerca das abreviaturas ediccedilotildees e traduccedilotildees utilizadas
Usaremos as abreviaturas abaixo para as seguintes obras de referecircncia
H G Liddell R Scott e H S Jones Greek-English Lexicon LSJ
P Chantraine Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque DELG
P G W Glare Oxford Latin Dictionary OLD
D Malhadas M C C Dezotti e M H de M Neves Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs
MDN
Para as obras de Hesiacuteodo usaremos tambeacutem abreviaturas tradicionais Op para Os
trabalhos e os dias e Th para Teogonia Para os demais autores e obras antigas usaremos as
abreviaturas do LSJ e do OLD
Para os fragmentos preacute-socraacuteticos usaremos a forma de citaccedilatildeo e a ediccedilatildeo de H Diels
W Kranz Die Fragmente der Vorsokratiker cada fragmento eacute mencionado com as letras DK
seguidas do nuacutemero do pensador em questatildeo (eg 22 para Heraacuteclito) de uma letra que indica o
tipo de texto (A para testemunhos B para fragmentos) e finalmente do nuacutemero do fragmento
Tambeacutem quando necessaacuterio usaremos a ediccedilatildeo de D W Graham The Texts of Early Greek
Philosophy The Complete Fragments and Selected Testimonies of the Major Presocratics
(Graham 2010) com sua forma de citaccedilatildeo indicada sempre que diferente da DK
Para as citaccedilotildees e traduccedilotildees de Hesiacuteodo usaremos Torrano (2007) para a Teogonia e
Rolim de Moura (2012) para Os trabalhos e os dias (eventuais exceccedilotildees seratildeo indicadas) Para
Homero usaremos a traduccedilatildeo da Iliacuteada de Lourenccedilo (2005) e a Odisseia de Werner (2014)
Para as citaccedilotildees e traduccedilotildees de Xenoacutefanes usaremos a ediccedilatildeo biliacutengue Filoacutesofos eacutepicos
Parmecircnides e Xenoacutefanes ndash Fragmentos de Fernando Santoro bem como em alguns momentos
indicados utilizaremos como ponto de partida a traduccedilatildeo DK feita por Gian Gianantonni
Para as citaccedilotildees e traduccedilotildees de Heraacuteclito usaremos a ediccedilatildeo da coleccedilatildeo Os Pensadores
bem como tambeacutem em alguns momentos indicados usaremos a traduccedilatildeo baseada naquela feita
por Gian Gianantonni
Os demais textos antigos teratildeo seus editores indicados na bibliografia e tradutores
indicados a cada oportunidade em que aparecer um texto traduzido Natildeo havendo indicaccedilatildeo do
tradutor trata-se de traduccedilatildeo de minha autoria
Sobre os autores
Hesiacuteodoviveu entre 750 e 650 aC
Xenoacutefanes de Colofatildeoviveu entre 570 aC mdash 475
aCConhecia a obra de HesiacuteodoEra conhecido por HeraacuteclitoCitou o κλέος textualmente
Heraacuteclito de Eacutefesoviveu entre 535 aC - 475 aC
Conhecia e cita HesiacuteodoConhecia Xenoacutefanes
Citou o κλέος textualmente
SUMAacuteRIO
APRESENTANDO A TESE A) INSPIRACcedilAtildeO TEOacuteRICA O ΚΛΕΟΣ COMO UMA
CATEGORIA DE ANAacuteLISE (B) A QUESTAtildeO DO ΚΛΕΟΣ (C) A REPETICcedilAtildeO DO
ΚΛΕΟΣ EacutePICO E A AFIRMACcedilAtildeO DA FAMA 01
10 HESIacuteODO NA TRADICcedilAtildeO DO EacutePOS18
11 OS POEMAS TEOGONIA E OS TRABALHOS E OS DIAS UMA BREVE
INTRODUCcedilAtildeO (A) EacutePOS E REPETICcedilAtildeO DE ELEMENTOS POEacuteTICOS (B) TRADICcedilAtildeO
MORAL PEDAGOacuteGICA E TEOGOcircNICA22
12 (A) ELEMENTO POEacuteTICO NO AcircMBITO DA REPETICcedilAtildeO E SUAS
DIFERENCcedilAS25
13 (B) O NUacuteCLEO MORAL PEDAGOacuteGICO E TEOGOcircNICO A CRIacuteTICA QUE ESTARIA
POR VIR POR PARTE DE ALGUNS PENSADORES35
14 A POESIA MORAL-PEDAGOacuteGICA-TEOGOcircNICA DE HESIacuteODO NA
MEMORIZACcedilAtildeO E NA LINGUAGEM DO EacutePOS39
20 O ΚΛΕΟΣ HOMEacuteRICO ALGUMAS PRIMEIRAS QUESTOtildeES41
21 O ΚΛΕΟΣ DA ILIacuteADA COMO EXPRESSAtildeO FORMULAR45
22 O ΚΛΕΟΣ DA ODISSEIA COMO EXPRESSAtildeO FORMULAR52
23 O ΚΛΕΟΣ HOMEacuteRICO EM SIacuteNTESE57
30 O ΚΛΟΣ EM HESIacuteODO O POETA Eacute NOMEADO61
31 O ΚΛΕΟΣ NO LEacuteXICO DE HESIacuteODO SUA RELACcedilAtildeO COM AS MUSAS64
32 O ΚΛΕΟΣ EM ALGUMAS PASSAGENS DO TEXTO HESIOacuteDICO69
40 A VOZ AUTORAL VERSIFICADA HESIacuteODO DENTRO DO HEXAcircMETRO E
PRESSUPOSTOS DE SEU O ΚΛΕΟΣ75
41 BIOGRAFIA E FAMIacuteLIA VERSIFICADAS OUTROS EXEMPLOS DE ΚΛΕΟΣ COMO
FAMA DO POETA HESIacuteODO81
42 A RECEPCcedilAtildeO DE HESIacuteODO SEU TESTIMONIA E A PRODUCcedilAtildeO DE UM ΚΛΕΟΣ
COMO FAMA 86
43 O ΚΛΕΟΣ PROacutePRIO DE HESIacuteODO EM SIacuteNTESE93
44 QUADRO ESQUEMAacuteTICO O ΚΛΕΟΣ NA OBRA DE HESIacuteODO E O ΚΛΕΟΣ DA VOZ
AUTORAL DO POETA98
50 O ΚΛΕΟΣ DOS POETAS101
51 O ΚΛΕΟΣ DOS POETAS EM OUTROS CONTEXTOS104
52 A RELACcedilAtildeO PROacuteXIMA ENTRE ΚΛΕΟΣ E O POETA108
60 A DESIGNACcedilAtildeO DOS PREacute-SOCRAacuteTICOS E AS DOXOGRAFIAS112
61 OS PREacute-SOCRAacuteTICOS CITAM HESIacuteODO EM SUAS DOXOGRAFIAS A
MATERIALIDADE DO ΚΛΕΟΣ DO POETA BEOacuteCIO116
70 PRESSUPOSTOS DO ΚΛΕΟΣ - OS PREacute-SOCRAacuteTICOS EM RELACcedilAtildeO Agrave POESIA
EacutePICA119
71 XENOacuteFANES DE COLOFAtildeO A POESIA E FILOSOFIA JOcircNICA119
72 XENOacuteFANES CRITICA OS POETAS A PARTIR DA POESIA125
80 OS PRESSUPOSTOS DO ΚΛΕΟΣ DE HERAacuteCLITO DE EacuteFESO OBRA E
APARATO CONCEITUAL CONTRA A POESIA EacutePICA133
81 O CONCEITO DE LOacuteGOS O FLUXO DA REALIDADE E OUTROS CONCEITOS DE
HERAacuteCLITO143
82 HERAacuteCLITO CRIacuteTICO AGRESSIVO DA POESIA153
83 XENOacuteFANES E HERAacuteCLITO E A RELACcedilAtildeO COM PARMEcircNIDES DE ELEacuteIA A
EacutePICA DO SER155
84 O POEMA DE PARMEcircNIDES E SUA RELACcedilAtildeO COM A EacutePICA HOMEacuteRICA UM
CONTRAPONTO A XENOacuteFANES E PRINCIPALMENTE A HERAacuteCLITO164
85 CRIacuteTICOS OU DEFENSORES DA POESIA EacutePICA A CRIACcedilAtildeO CONCEITUAL DOS
PREacute-SOCRAacuteTICOS170
90 PRESSUPOSTOS DO ΚΛΕΟΣ - HESIacuteODO NOS FRAGMENTOS PREacute-
SOCRAacuteTICOS173
91 HESIacuteODO TEOacuteLOGO CENSURAacuteVEL ARGUMENTO MORAL E ARGUMENTO
TEOLOacuteGICO173
92 XENOacuteFANES CONTRA HESIacuteODO POR UMA NOVA FORMA DE POESIA E
CONHECIMENTO179
93 O POEMA DE PARMEcircNIDES E SUA ESTRUTURA EacutePICA HESIOacuteDICA CRIacuteTICA A
HERAacuteCLITO 182
94 A RECEPCcedilAtildeO DE PARMEcircNIDES E HESIacuteODO CONJUNTA ENTRE O KHAacuteOS E O
EacuteROS187
95 EMPEacuteDOCLES ANAXIMANDRO E MELISSO ALGUMAS OUTRAS
REFEREcircNCIAS A HESIacuteODO192
96 HERAacuteCLITO E O EMBATE CONCEITUAL CONTRA HESIacuteODO197
97 HESIacuteODO POLIacuteMATA E MESTRE DE MUITOS202
98 SISTEMATIZACcedilAtildeO DA RELACcedilAtildeO ENTRE HESIacuteODO E OS PREacute-SOCRAacuteTICOS209
100 O ΚΛΕΟΣ NOS FRAGMENTOS PREacute-SOCRAacuteTICOS212
101 XENOacuteFANES EM SIacuteNTESE SOBRE HESIacuteODO E O ΚΛΕΟΣ213
102 O ΚΛΕΟΣ DE HERAacuteCLITO219
103 DE QUE PODEMOS FALAR DE UM ΚΛΈΟΣ DE XENOacuteFANES E HERAacuteCLITO E
ASSIM DE UM ΚΛΕΟΣ PREacute-SOCRAacuteTICO229
110 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DUAS RETOMADAS CRIATIVAS DE ΚΛΕΟΣ NO
INIacuteCIO DA FILOSOFIA GREGA XENOacuteFANES E HERAacuteCLITO NA CRIacuteTICA A
HESIacuteODO232
REFEREcircNCIAS235
1
APRESENTANDO A TESE A) INSPIRACcedilAtildeO TEOacuteRICA O ΚΛΕΟΣ COMO UMA
CATEGORIA DE ANAacuteLISE (B) A QUESTAtildeO DO ΚΛΕΟΣ (C) A REPETICcedilAtildeO DO
ΚΛΈΟΣ EacutePICO E A AFIRMACcedilAtildeO DA FAMA
a) Inspiraccedilatildeo teoacuterica o κλέος como uma categoria de anaacutelise
Existe um conceito1 que muito mais aproxima do que distancia a poesia arcaica do
pensamento dos primeiros filoacutesofos e ele se chama κλέος2 Consideremos o κλέος um elo entre
o ἔπος (eacutepos) dos poetas arcaicos e a filosofia dos primeiros pensadores preacute-socraacuteticos3 Eacute nosso
maior objetivo explicitar esse elo atraveacutes da demonstraccedilatildeo de um κλέος tanto em Hesiacuteodo como
em Xenoacutefanes de Colofatildeo e Heraacuteclito de Eacutefeso bem como demonstrar que Xenoacutefanes e
Heraacuteclito utilizam sua criaccedilatildeo conceitual contra Hesiacuteodo para marcar ainda mais seu κλέος
Por isso propomos nesta tese aquilo que chamamos ldquoRetomadas criativas de kleacuteos no
iniacutecio da filosofia grega Xenoacutefanes e Heraacuteclito na criacutetica a Hesiacuteodordquo Pretendemos utilizar
κλέος como uma categoria de anaacutelise conceitual como uma metaacutefora para uma aproximaccediltemas
da poesia eacutepica do ambiente de Xenoacutefanes e Heraacuteclito Isto eacute a palavra κλέος com sua ampla
gama de significados em grego passa a ser uma maneira diferente de recortar fenocircmenos
estudados em campos como o da influecircncia da memoacuteria cultural e da recepccedilatildeo Partiremos do
vocaacutebulo κλέος tal como ele aparece na eacutepica arcaica e mostraremos um pouco dos contextos
em que ele aparece depois culminando com sua apariccedilatildeo nos fragmentos dos dois pensadores
que aparecem no tiacutetulo da tese (Xenoacutefanes e Heraacuteclito) Observe-se no entanto que a tese natildeo
pretende ser uma anaacutelise filoloacutegica exaustiva das ocorrecircncias de κλέος na literatura e na
filosofia gregas As ocorrecircncias mais relevantes para o corpus textual aqui proposto seratildeo eacute
claro analisadas mas como ponto de partida para uma ampliaccedilatildeo conceitual que abrange
1 Os termos conceito conceitual criaccedilatildeo conceitual e similares empregados aqui tecircm tambeacutem uma inspiraccedilatildeo como veremos mais agrave frente na obra de Deleuze e Guattari Ou seja o conceito como uma potecircncia criativa uma potecircncia de criaccedilatildeo de dados autores Portanto quando falamos da criaccedilatildeo conceitual dos preacute-socraacuteticos da produccedilatildeo conceitual de Hesiacuteodo estamos resgatando como inspiraccedilatildeo essa potecircncia artiacutestica autoral que Deleuze e Guattari tanto defendem 2 Apresentaremos uma anaacutelise do κλέος na sequecircncia deste trabalho Por ora podemos indicar os sentidos elementares de κλέος como fama gloacuteria renome rumor Manteremos quase sempre a grafia em grego para destacar a palavra 3 Sabemos da problemaacutetica acerca da utilizaccedilatildeo de uma denominaccedilatildeo geneacuterica como ldquopreacute-socraacuteticosrdquo num conjunto de pensadores muacuteltiplos e plurais que dificilmente caberiam numa classificaccedilatildeo geneacuterica como essa Traremos desse debate mais agrave frente poreacutem para facilitar a leitura por ora utilizaremos essa designaccedilatildeo para tratar dos primeiros filoacutesofos
2
significados que natildeo necessariamente estavam presentes no uso antigo dessa palavra Aleacutem de
uma categoria de anaacutelise que aproxima autores da filosofia de um solo poeacutetico pretendemos
utilizar essa categoria como uma possibilidade de estudo de como Heraacuteclito e Xenoacutefanes
acabam por criticar a obra de Hesiacuteodo Defenderemos a ideia de que esses filoacutesofos retomaram
criativamente (ou seja repetiram e modificaram) o campo semacircntico de κλέος ao criticar
Hesiacuteodo fazendo intervenccedilotildees no campo da ldquofamardquo Neste sentido esta tese passa por questotildees
complexas e de debates milenares ao trilhar um caminho que se localiza numa suposta transiccedilatildeo
entre o discurso poeacutetico e o argumento filosoacutefico
Um grande debate jaacute se coloca acerca dessa transiccedilatildeo da poesia arcaica para o ambiente
dos preacute-socraacuteticos como veremos no desenvolvimento do trabalho se a transiccedilatildeo houve ou natildeo
e se houve como se deu e se natildeo houve quais satildeo os argumentos para negar esse salto Seria
assim um caminho que teria sido trilhado com certa dose de inovaccedilotildees conceituais e que
possibilitou a passagem de uma fronteira um limite saiacutemos do solo do mito para o novo espaccedilo
filosoacutefico4 mas estaria o κλέος como uma espeacutecie de elemento que ainda se manteria nessa
suposta cisatildeo
Satildeo afirmaccedilotildees como ldquodo mito ao pensamento filosoacuteficordquo5 encontradas em grandes obras
da Histoacuteria da Filosofia que tentam representar o movimento de uma identidade mitoloacutegica
poeacutetica religiosa para outra racional cientiacutefica e teoacuterica Essa hipoacutetese da passagem do mito
agrave razatildeo foi amplamente refutada tambeacutem na proacutepria Histoacuteria da Filosofia por autores antigos
modernos e contemporacircneos Talvez esteja em Nietzsche na sua visatildeo da fundaccedilatildeo traacutegica da
filosofia uma das maiores refutaccedilotildees disso como nas obras O Nascimento da Trageacutedia no
Espiacuterito da Muacutesica (1872) e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos (1873) Satildeo obras que
4 A obra de Kathryn A Morgan Myth and Philosophy from the Presocratics to Plato apresenta o debate da utilizaccedilatildeo dos mitos exatamente pela geraccedilatildeo posterior agrave dos poetas arcaicos estudando o uso dos mitos dentro da filosofia preacute-socraacutetica e platocircnica A introduccedilatildeo dessa obra jaacute adverte acerca das possiacuteveis interpretaccedilotildees desse encontro entre mito e filosofia sendo os mitos por um lado cumpridores de uma nova estrutura retoacuterica e argumentativa de alguns pensadores por outro lado sendo alvo de criacutetica por outros ldquoWe must remember that the incompatibility of myth and philosophy is a reflection of the polemic self-representation of some early philosophers There is every reason not to think in such stark oppositions especially when one notes that there is a discontinuity between polemic rhetoric and less explicitly theorised literary practicerdquo (MORGAN 2004 p 4) 5 O argumento baacutesico pode ser exemplificado por exemplo em Marcondes (2018 p 14) ldquoQuando dizemos que o pensamento filosoacutefico-cientiacutefico surge na Greacutecia no seacutec VI aC caracterizando-o como uma forma especiacutefica de o homem tentar entender o mundo que o cerca isto natildeo quer dizer que anteriormente natildeo houvesse tambeacutem outras formas de se entender essa realidade Eacute precisamente a especificidade do pensamento filosoacutefico-cientiacutefico que tentaremos explicitar aqui contrastando-o com o pensamento miacutetico que lhe antecede na cultura gregardquo Pensamos em afirmaccedilotildees como por exemplo a de REALE e ANTISERI 2007 p 6 ldquoAs fontes das quais derivou a filosofia helecircnica foram 1) a poesia 2) a religiatildeo 3) as condiccedilotildees sociopoliacuteticas adequadas rdquo
3
evidenciam a gecircnese da Filosofia numa perspectiva traacutegica dos proacuteprios pensadores preacute-
socraacuteticos pensadores que vivenciaram essa tragicidade como a manifestaccedilatildeo da natureza das
coisas
Colocaremos assim algumas outras questotildees que revelam a proximidade ou o
distanciamento do mundo eacutepico com o preacute-socraacutetico Neste sentido examinaremos se existe
alguma heranccedila da oralidade poeacutetica das expressotildees mnemocircnicas (resquiacutecios de um ambiente
puacuteblico performaacutetico) no discurso dos primeiros filoacutesofos discurso que teria como principal
objetivo a recordaccedilatildeo e rememoraccedilatildeo futura de certas obras de certos conceitos filosoacuteficos
Essas questotildees paralelas mas natildeo menos relevantes nos ajudariam a comprovar a heranccedila
daquilo que a poesia eacutepica definiu como κλέος exatamente atraveacutes desse coacutedigo geneacutetico da
oralidade e expressotildees formulares que a tradiccedilatildeo de Homero e Hesiacuteodo propagou Tentaremos
aqui comprovar que esse tambeacutem foi um componente amplamente almejado nas obras de
Xenoacutefanes de Colofatildeo e Heraacuteclito de Eacutefeso que do mesmo modo teriam escrito para se
tornarem renomados (mais especificamente ao repetir e criticar o poeta Hesiacuteodo) assim como
os poetas e os personagens da poesia o foram Xenoacutefanes e Heraacuteclito estariam assim
assumindo nas suas respectivas obras como filoacutesofos caracteriacutesticas que pertenceriam agrave poesia
eacutepica A nossa chave de interpretaccedilatildeo nessa transiccedilatildeo da poesia para a filosofia se daacute numa
espeacutecie de atributo conceitual algo que se perpetuou tanto na poesia como na filosofia
exatamente o que descreveremos como os atributos do κλέος Eacute uma transiccedilatildeo que apresenta
repeticcedilotildees e suas diferenccedilas
Para isso propomos outro questionamento importante natildeo estariam Xenoacutefanes e
Heraacuteclito utilizando em seus textos estrateacutegias poeacuteticas amplamente exploradas no mundo
eacutepico Natildeo estariam Xenoacutefanes e Heraacuteclito dentro da criacutetica que faziam agrave poesia e aos poetas
arcaicos retomando a proacutepria estrateacutegia desta ao afirmar um κλέος
Xenoacutefanes e Heraacuteclito recepcionam repetem e criticam Hesiacuteodo Eacute um movimento de
repeticcedilatildeo na busca do κλέος Partimos do pressuposto de que nenhuma repeticcedilatildeo eacute uma simples
reproduccedilatildeo exata do que foi repetido6 Ao repetir a busca pelo κλέος Xenoacutefanes e Heraacuteclito
estariam produzindo uma diferenccedila conceitual do ldquomesmordquo eles produzem um ldquooutrordquo
6 Ainda que natildeo seja a tese central deste trabalho veremos que essa concepccedilatildeo eacute coerente com um possiacutevel entendimento dos Estudos da Recepccedilatildeo A Repeticcedilatildeo eacute um conceito caro dentro da Literatura e Filosofia Contemporacircneas Em minha dissertaccedilatildeo de Mestrado (PETROSKI 2013) tratei exatamente das noccedilotildees de Repeticcedilatildeo e Diferenccedila no encontro das obras de Gilles Deleuze e Jorge Luis Borges O debate acerca da Repeticcedilatildeo no seu valor epistemoloacutegico e esteacutetico possui grande relevacircncia a partir do seacuteculo XIX com a obra de Nietzsche
4
A inspiraccedilatildeo teoacuterica7 na obra de Gilles Deleuze e Felix Guattari nesta tese natildeo pode ser
omitida Ela se daacute como uma inspiraccedilatildeo geral na obra de Deleuze que trata da repeticcedilatildeo como
uma afirmaccedilatildeo da diferenccedila na medida em que a Filosofia para este pensador francecircs opera
nessa dinacircmica de repetir e diferenciar8 Natildeo somente na funccedilatildeo da repeticcedilatildeo para ser criada a
diferenccedila no processo poeacutetico e filosoacutefico mas tambeacutem ao definirem esses autores a filosofia
como uma faacutebrica feacutertil de produccedilatildeo conceitual9 Ao serem filosoacuteficos Deleuze e Guattari se
apropriam do literaacuterio Descrevem em sua teoria que cada grande filoacutesofo cria e escreve a sua
ldquopersonagem conceitualrdquo10 como tambeacutem os grandes poetas criam suas potecircncias artiacutesticas e
escrevem assim seus nomes na histoacuteria do pensamento
Nossa referecircncia em Deleuze e Guattari estaria assim na ideia da criaccedilatildeo de um κλέος
natildeo somente pela biografia de Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito mas por aquilo que esses
constituiacuteram como poesiafilosofia Ou seja o κλέος desses autores estaria diretamente
conectado com sua produccedilatildeo artiacutestica e filosoacutefica numa espeacutecie de agoacuten do pensamento11 eacute a
principalmente na criaccedilatildeo e reconfiguraccedilatildeo dos conceitos de Eterno Retorno (dentro do ambiente cosmoloacutegico) e Vontade de Potecircncia (no ambiente moral e eacutetico) Desses conceitos apresentados por Nietzsche surge toda uma gama de autores que iratildeo repensar o papel da Repeticcedilatildeo como um movimento de diferenciaccedilatildeo entre eles Gilles Deleuze Jacques Derrida e Michel Foucault 7 Optamos por denominar a referecircncia teoacuterica a Deleuze e Guattari como ldquoinspiraccedilatildeo teoacutericardquo pois esses autores natildeo tratam exatamente do universo da poesia arcaica nem dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Mas natildeo poderiacuteamos omitir aqui o devido creacutedito a esses autores para a concepccedilatildeo teoacuterica desta tese 8 ldquoA base da ontologia de Deleuze e da sua hipoacutetese sobre o tempo estaacute nos conceitos de diferenccedila e repeticcedilatildeo Eacute a dinacircmica de repetir e diferenciar que forccedila a existecircncia do pensamento e eacute na operaccedilatildeo dessa repeticcedilatildeo e diferenccedila que se desenvolve o tempo Segundo Deleuze o pensamento na Histoacuteria da Filosofia (salvo em dois momentos distintos encabeccedilados por Baruch de Espinosa e Nietzsche) ficou condicionado a uma Teoria da Representaccedilatildeo que aponta uma loacutegica de existecircncia desse pensamento (intelecto consciecircncia alma espiacuterito etc) atraveacutes da equaccedilatildeo lsquoArsquo eacute diferente de lsquoBrsquo pois lsquoBrsquo eacute um lsquonatildeo-Arsquo Dessa forma a negaccedilatildeo torna-se uma ferramenta de diferenciar torna-se crivo de um princiacutepio de identidade pelo idecircntico e o que natildeo eacute idecircntico deve ser negado Contraacuterio a uma operaccedilatildeo de simples negaccedilatildeo Deleuze apresenta a diferenccedila e a repeticcedilatildeo como uma afirmaccedilatildeo do outro Essa eacute a hipoacutetese ontoloacutegica que determina a diferenccedila natildeo mais como uma simples negaccedilatildeo determinando tambeacutem a repeticcedilatildeo como natildeo restrita ao redito A diferenccedila eacute uma afirmaccedilatildeo de gecircnese criativa ou criadora e a repeticcedilatildeo o meacutetodo pelo qual diferenciamos A motivaccedilatildeo desse pensamento sobre o funcionamento da realidade como diferenccedila e repeticcedilatildeo possui como uma inspiraccedilatildeo a obra de Nietzsche Pelo menos duas proposiccedilotildees que se atribuem a Nietzsche importantes para a fundamentaccedilatildeo da diferenccedila e repeticcedilatildeo circundam seus escritos o conceito de lsquoeterno retornorsquo e lsquovontade de potecircnciarsquordquo (PETROSKI 2013 p 23) 9 Eacute a tese principal em O que eacute a Filosofia (DELEUZE GUATTARI 2007) 10 Trata-se de personagens criados pelos filoacutesofos para representar o desenvolver de sua obra como por exemplo o Soacutecrates platocircnico o idiota cartesiano o Zaratustra de Nietzsche entre outros presentes na obra O que eacute a Filosofia 11 Em Deleuze e Guattari (2007 p 12) observamos ldquoEacute sob este primeiro traccedilo que a filosofia parece uma coisa grega e coincide com a contribuiccedilatildeo das cidades ter formado sociedades de amigos ou de iguais mas tambeacutem ter promovido entre elas e em cada uma relaccedilotildees de rivalidade opondo pretendentes em todos os domiacutenios no amor nos jogos nos tribunais nas magistraturas na poliacutetica e ateacute no pensamento que natildeo encontraria sua condiccedilatildeo somente no amigo mas no pretendente e no rival (a dialeacutetica que Platatildeo define pela amphisbeacutetesis) A rivalidade dos homens livres um atletismo generalizado o agocircnrdquo Ou ainda Nietzsche (1995 p 12) ao falar da relaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Heraacuteclito ldquoSoacute um Grego era capaz de fazer desta representaccedilatildeo o fundamento de uma
5
criaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo de uma visatildeo de mundo de uma moralidade uma nova sintaxe da realidade
um traccedilo novo de cada autor que cria seu renome nesse agoacuten de ideias
Xenoacutefanes e Heraacuteclito ao desenvolverem seus conceitos atraveacutes de uma superaccedilatildeo do
κλέος de Hesiacuteodo escreveriam o seu κλέος atraveacutes tambeacutem da proacutepria natureza agoniacutestica
presente em sua sociedade e mais do que isso talvez tenham colocado Hesiacuteodo como seu
personagem conceitual12 Por mais que Deleuze e Guattari (2007) natildeo tenham tratado
especificamente dos preacute-socraacuteticos13 nem da poesia eacutepica deixaram uma obra significativa
trazendo vaacuterios pontos de contato entre filosofia e literatura (ou utilizando a terminologia dos
autores Deleuze e Guattari) um rizoma que se estabelece entre ambas Pensamos tambeacutem
assim uma espeacutecie de rizoma entre Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Sabemos da dificuldade em se dissertar acerca das individualidades no Mundo Antigo
principalmente em obras milenares e veneraacuteveis como satildeo as da tradiccedilatildeo homeacuterica e hesioacutedica
que muitas vezes mais se aproximam do que se diferenciam Outra dificuldade eacute falar de
pensadores preacute-socraacuteticos como Xenoacutefanes e Heraacuteclito que poucas linhas e fragmentos nos
deixaram Os proacuteprios conceitos se revelam complexos e satildeo assinaturas especiacuteficas de cada
autor Esperamos superar algumas dessas dificuldades ao estabelecer essa interlocuccedilatildeo entre
filosofia e literatura atraveacutes da ideia de κλέος
Consideramos impossiacutevel falar de Hesiacuteodo sem falar da importacircncia dos seus poemas
teogocircnico-moral-pedagoacutegicos muito menos de Xenoacutefanes em tocar em sua criacutetica agrave moralidade
hesioacutedica Da mesma forma eacute difiacutecil falar de Heraacuteclito sem citar a importacircncia das suas criaccedilotildees
conceituais como o loacutegos e a sua dinacircmica na mudanccedila A tese filosoacutefica de Deleuze e Guattari
cosmodiceia eacute a boa Eacuteris de Hesiacuteodo transfigurada em princiacutepio coacutesmico eacute a ideia de competiccedilatildeo dos Gregos singulares e da cidade grega transferida dos ginaacutesios e das palestras dos agocircns artiacutesticos da luta dos partidos poliacuteticos e das cidades entre si para o mais universal de maneira que agora a engrenagem do koacutesmos nela gira Assim como cada Grego luta como se apenas ele tivesse razatildeo e como se um criteacuterio infinitamente seguro da decisatildeo judiciaacuteria definisse em cada instante para que lado tende a vitoacuteria assim tambeacutem lutam entre si as qualidades segundo regras e leis inviolaacuteveis imanentes ao combaterdquo 12 Eacute o que detalharemos no capiacutetulo O κλέος de Heraacuteclito 13 Natildeo tratam diretamente mas na amplitude geral da obra destes dois pensadores observamos a relevacircncia do pensamento preacute-socraacutetico como por exemplo em Deleuze e Guatarri (2007 p 43) ldquoEacute neste sentido que se diz que pensar e ser satildeo uma soacute e mesma coisa Ou antes o movimento natildeo eacute imagem do pensamento sem ser tambeacutem mateacuteria do ser Quando salta o pensamento de Tales eacute como aacutegua que o pensamento retorna Quando o pensamento de Heraacuteclito se faz poacutelemos eacute o fogo que retorna sobre elerdquo Ou ainda (Ibid p 62) ldquoNuma palavra os primeiros filoacutesofos satildeo aqueles que instauram um plano de imanecircncia como um crivo estendido sobre o caos Eles se opotildeem neste sentido aos Saacutebios que satildeo personagens da religiatildeo sacerdotes porque concebem a instauraccedilatildeo de uma ordem sempre transcendente imposta de fora por um grande deacutespota ou por um deus superior aos outros inspirado por Eacuteris na sequecircncia de guerras que ultrapassam todo agocircn e de oacutedios que recusam desde o iniacutecio as provas da rivalidaderdquo
6
nos inspirou a explorar essa relaccedilatildeo instigante entre a poesia arcaica e o pensamento dos
primeiros filoacutesofos
A arte e a filosofia recortam o caos e o enfrentam mas natildeo eacute o mesmo plano de corte natildeo eacute a mesma maneira de povoaacute-lo aqui constelaccedilatildeo de universo ou afetos e perceptos laacute complexotildees de imanecircncia ou conceitos A arte natildeo pensa menos que a filosofia mas pensa por afetos e perceptos Isto natildeo impede que as duas entidades passem frequentemente uma pela outra num devir que as leva a ambas numa intensidade que as codetermina A figura teatral e musical de Don Juan se torna personagem conceitual com Kierkegaard e o personagem de Zaratustra em Nietzsche jaacute eacute uma grande figura de muacutesica e de teatro Eacute como se de uns aos outros natildeo somente alianccedilas mas bifurcaccedilotildees e substituiccedilotildees se produzissem [] O plano de composiccedilatildeo da arte e o plano de imanecircncia da filosofia podem deslizar um no outro a tal ponto que certas extensotildees de um sejam ocupadas por entidades do outro (DELEUZE GUATTARI 2007 p 88-9)
Natildeo se trata aqui de utilizar Deleuze e Guattari como meacutetodo uacutenico para lidarmos com as
questotildees que se entrelaccedilam na poesia eacutepica e nos primeiros filoacutesofos mas de utilizaacute-los para
pensar em que medida Xenoacutefanes e Heraacuteclito operam uma diferenccedila ao repetir Hesiacuteodo e em
que medida Xenoacutefanes e Heraacuteclito desenvolvem seu proacuteprio κλέος ao de certa forma invocar
o κλέος de Hesiacuteodo e construir assim seus conceitos como criaccedilatildeo filosoacutefica14
Um primeiro ponto de contato entre esses dois mundos (o do eacutepos hesioacutedico e o da
filosofia preacute-socraacutetica) estaacute na repeticcedilatildeo do κλέος eacutepico dentro do universo de Hesiacuteodo e desses
pensadores15 Traduzindo o κλέος eacutepico como ldquogloacuteriafamarenomerdquo tendo como paradigma
primeiramente sua presenccedila dentro da tradiccedilatildeo homeacuterica (com o protagonismo de Aquiles na
Iliacuteada e de Odisseu na Odisseia)16 observaremos que esse κλέος foi de certa forma adequado
por Hesiacuteodo a um novo contexto bem como readaptado por Xenoacutefanes e Heraacuteclito Hesiacuteodo
teria tornado o κλέος algo aleacutem da fama dos heroacuteis das epopeias passando a envolver tambeacutem
14 Eacute aquilo sobre o que versaremos no capiacutetulo O κλέος de Xenoacutefanes e de Heraacuteclito 15 Poderia tambeacutem ser abordado o κλέος de outros pensadores preacute-socraacuteticos como Parmecircnides de Eleia Empeacutedocles de Agrigento entre outros e natildeo somente o de Xenoacutefanes e Heraacuteclito Poreacutem ampliaria por demais o tempo de pesquisa e escrita de uma tese dentro do tempo concedido nos dias de hoje para tal tarefa dada a quantidade expressiva de bibliografia de que este trabalho teria que dar conta De qualquer forma faremos algumas referecircncias a estes pensadores que talvez possam indicar mesmo que introdutoriamente onde estariam os seus κλέα Optamos em confrontar o κλέος de Homero Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito por uma questatildeo metodoloacutegica e estrutural natildeo desmerecendo assim o estudo do κλέος em outros representantes do universo preacute-socraacutetico 16 Eacute o que analisaremos no capiacutetulo O κλέος homeacuterico algumas primeiras questotildees
7
sua proacutepria conquista particular isto eacute a fama de um personagem Hesiacuteodo17 Essa postura os
preacute-socraacuteticos tambeacutem adotaram entre eles Xenoacutefanes e Heraacuteclito Tanto Hesiacuteodo como
Xenoacutefanes e Heraacuteclito queriam18 de um modo ou outro ser lembrados pela memoacuteria futura
pelas geraccedilotildees que estariam por vir
Heraacuteclito que rompe com o verso eacutepico tradicional descreve Hesiacuteodo como educador
erudito poreacutem detentor de um falso saber que natildeo daacute conta das mudanccedilas presentes no mundo
ou na unidade uacuteltima da realidade que Heraacuteclito descreve Por isso faremos tambeacutem uma anaacutelise
mais aprofundada de como Heraacuteclito por um lado ataca Hesiacuteodo mas por outro abarca em sua
obra algumas caracteriacutesticas do mundo eacutepico por mais que como jaacute dissemos rompa com o
preceito da forma do eacutepos19
Xenoacutefanes de Colofatildeo primeiramente vecirc Hesiacuteodo como um teoacutelogo censuraacutevel e um
falso moralista Para ele Hesiacuteodo natildeo eacute um bom educador mas sim um peacutessimo exemplo de
mestre pois este descreve uma maacute moral fundamentada em uma teologia decadente que
aproxima de forma descabida homens e deuses Por outro lado Xenoacutefanes escreve em versos
assim como Hesiacuteodo escreveu (cantou) Mais do que escrever em versos ao usar o verso do
eacutepos Xenoacutefanes ainda enaltece sua forma mesmo que criticando seu conteuacutedo Por isso nos
cabe lanccedilar um olhar mais aprofundado para aquilo que Xenoacutefanes tem a dizer acerca de
Hesiacuteodo e da poesia
17 Eacute o que analisaremos no capiacutetulo O κλέος de Hesiacuteodo o poeta eacute nomeado 18 Observamos nas doxografias dos preacute-socraacuteticos e dos poetas antigos algumas anedotas que retratam exatamente essa possiacutevel vontade de ser lembrado no futuro Em especial DL 96 que descreve Heraacuteclito depositando sua obra no templo de Aacutertemis criando assim conforme o trecho de Dioacutegenes uma famosa escola de filosofia Daiacute surgem questotildees por que Heraacuteclito teria escrito senatildeo para ter sua obra estudada pelos contemporacircneos ou postumamente Seria uma ironia de Heraacuteclito escrever para talvez natildeo ser lido Descreveremos melhor esse detalhe ao falar do aspecto ldquoobscurordquo de Heraacuteclito 19 Ainda cabe ressaltar outros pensadores preacute-socraacuteticos que citaram Hesiacuteodo diretamente e indiretamente como apontaremos tambeacutem no transcorrer desta tese Empeacutedocles de Agrigento que preserva tambeacutem a forma do eacutepos e possui em sua obra assim como Hesiacuteodo uma invocaccedilatildeo agraves Musas eacute citado junto a Hesiacuteodo numa passagem de Galeno que trata das disputas entre escolas meacutedicas rivais O texto acaba sugerindo uma relaccedilatildeo entre os conceitos de eacuteris e neicirckos importantes para o poeta de Ascra e para o filoacutesofo agrigentino respectivamente Por essa afinidade tanto de conteuacutedo como de forma devemos tambeacutem analisar de forma mais pormenorizada aquilo que Empeacutedocles teria a dizer acerca da fama e da poesia eacutepica Anaximandro de Mileto eacute citado junto a um possiacutevel fragmento de Hesiacuteodo fora da Teogonia e de Os trabalhos e os dias em um contexto interessante para nossa hipoacutetese pois apresenta um Hesiacuteodo mais ldquomaterialistardquo (com o perdatildeo do uso anacrocircnico desse termo) um Hesiacuteodo ldquofisioacutelogordquo que nos faz tambeacutem atentar para a necessidade de um estudo detalhado daquilo que Anaximandro legou ao pensamento grego Parmecircnides de Eleia que tambeacutem escreve em versos invocando poderes divinos principalmente a deusa Justiccedila coloca a questatildeo do eacuteros e do khaacuteos como possiacuteveis origens de todas as coisas o que o liga agrave cosmogonia da Teogonia Pela forma e pelo conteuacutedo trataremos tambeacutem desse pensador E finalmente Melisso de Samos que parece ter colocado Hesiacuteodo como debatedor em questotildees acerca do khaacuteos e da sua causalidade
8
Este eacute o nosso recorte (esperamos quase exaustivo) das relaccedilotildees entre o que seria o κλέος
de Hesiacuteodo o κλέος de Xenoacutefanes e o de Heraacuteclito descrevendo assim a recepccedilatildeo da obra de
Hesiacuteodo por parte de Xenoacutefanes e Heraacuteclito para a criaccedilatildeo de seu proacuteprio κλέος Daiacute tambeacutem a
necessidade de analisar a partir dos fragmentos preacute-socraacuteticos o que ressoa da poeacutetica
hesioacutedica em um conteuacutedo que seria o alvorecer da filosofia Isto eacute seraacute necessaacuterio fazer
incursotildees em textos da tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica que natildeo mencionam explicitamente Hesiacuteodo mas
que amplificam essa condiccedilatildeo do κλέος no mundo preacute-socraacutetico Apoacutes aprofundarmos o que os
registros de Heraacuteclito teriam a dizer acerca de Hesiacuteodo e da poesia eacutepica faremos uma retomada
da anaacutelise verificando novamente na doxografia e nos fragmentos desses preacute-socraacuteticos como
o discurso da memoacuteria e como a meta de ldquofama gloacuteria renomerdquo eacutepicos podem ser verificados
nas linhas de seus textos no conteuacutedo e muitas vezes na sua forma Da mesma maneira ao
retomarmos Xenoacutefanes e sua criacutetica moral e teoloacutegica a Hesiacuteodo
Por encararmos estas hipoacuteteses como questotildees que ainda natildeo foram completamente
esgotadas pela tradiccedilatildeo acreditamos ser de suma importacircncia retomarmos a partir dos textos
que nos chegaram pela tradiccedilatildeo doxograacutefica as possibilidades do κλέος eacutepico no mundo dos
primeiros filoacutesofos principalmente na intenccedilatildeo latente que estes tiveram de permanecer na
posteridade assim como permaneceram os poetas assim como permaneceu Hesiacuteodo
Em resumo esta tese se propotildee a descrever 1) uma espeacutecie de caminhada do κλέος que
perpassa Homero e Hesiacuteodo para ser observado tambeacutem nas obras de Xenoacutefanes e Heraacuteclito
2) a criacutetica que Xenoacutefanes e Heraacuteclito fizeram a Hesiacuteodo para construir esse κλέος
b) A questatildeo do κλέος
Como jaacute dissemos acreditamos que o conceito de κλέος eacute um importante traccedilo que
compotildee a ideia de repeticcedilatildeo pelo eacutepos grego O κλέος estaacute diretamente relacionado com a
perpetuaccedilatildeo da memoacuteria grega atraveacutes da poesia como veremos em capiacutetulos agrave frente Cabe
entatildeo aqui uma apresentaccedilatildeo etimoloacutegica da palavra κλέος para explicitarmos a relaccedilatildeo dela
com a poesia e filosofia Observaremos agora um pouco da forma nominal κλέος bem como a
forma verbal correspondente κλείω Vejamos primeiramente o que se refere agrave forma nominal
Os dicionaacuterios e leacutexicos de grego antigo trazem um bom acervo acerca do sentido de
κλέος LSJ elenca uma diversidade de significados e apresenta um primeiro sentido de κλέος
em Homero como rumor e notiacutecia Como por exemplo em Od 16461 ἦλθες δῖ᾽ Εὔμαιε τί
9
δὴ κλέος20 ἔστ᾽ ἀνὰ ἄστυ (Tens vindo bom Eumeu Que notiacutecias haacute na cidade21) Eacute um
ldquoprimeirordquo significado de κλέος exposto por LSJ numa apresentaccedilatildeo natildeo necessariamente
cronoloacutegica sendo esse κλέος um correlato do termo fama em latim22 segundo o proacuteprio
dicionaacuterio Essa passagem eacute aquela em que Telecircmaco logo que descobre Odisseu vivo
pergunta a Eumeu sobre as notiacutecias da cidade mais especificamente da emboscada que os
pretendentes ao trono de Odisseu estariam tramando Ou seja o κλέος aqui natildeo eacute apenas uma
simples notiacutecia mas tambeacutem um fato crucial para o desenvolvimento da histoacuteria
O segundo exemplo elencado por LSJ ainda como rumor ou notiacutecia estaacute em Od 1282-
3 ἢ ὄσσαν ἀκούσῃς ἐκ Διός ἥ τε μάλιστα φέρει κλέος ἀνθρώποισι (Ou podes ouvir uma voz
de Zeus que muitas vezes traz notiacutecias aos homens) Trata-se da fala de Atena a Telecircmaco
defendendo a importacircncia de se saber acerca de Odisseu pois segundo ela ao falar com as
pessoas poderaacute Telecircmaco ouvir a voz de Zeus e assim escutar algo sobre seu pai Neste caso
tambeacutem eacute um κλέος de importante relevacircncia para a continuaccedilatildeo da histoacuteria pois faz referecircncia
a notiacutecias sobre Odisseu
LSJ traz esse trecho como mais um exemplo de rumor ou notiacutecia mas observamos outras
traduccedilotildees da passagem nas quais como uma opccedilatildeo do tradutor o κλέος pode ser traduzido
como gloacuteria (eg Falando com pessoas poderaacutes ouvir a voz de Zeus que divulga longe feitos
gloriosos23) Todavia ressalta-se claramente a possibilidade de o trecho ser traduzido como
rumor ou notiacutecia como coloca LSJ Ainda com sentido de rumor LSJ apresenta a passagem
de Piacutendaro (Pi P4125) ἤλυθον κείνου γε κατὰ κλέος (Vieram quando ouviram acerca do
rumor) Nesse caso o rumor trata da identidade do centauro Jasatildeo que ao anunciar seu nome
reencontra seus familiares Natildeo se trata de quaisquer rumores ou notiacutecias mas sim fatos de
importante peso para essas narrativas
20 O negrito eacute nosso 21 Para uma melhor leitura destas passagens optamos por deixar a traduccedilatildeo no texto principal em itaacutelico logo apoacutes a citaccedilatildeo em grego Os tradutores de cada texto seguem o esquema colocado em ldquoAcerca das abreviaturas ediccedilotildees e traduccedilotildees utilizadasrdquo 22 O Oxford Latin Dictionary descreve fama como news rumour tradition story public opinion report reputation bem como fame glory renown Inclusive observamos em OLD a possibilidade de se traduzir fama como a malicius report o que denota tambeacutem as possibilidades de uso negativo da palavra Podemos ver essa utilizaccedilatildeo de fama como a malicius report em Naev Trag 7 bem como em Pl Per 384 Jaacute o Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs de Saraiva aleacutem dos sentidos acima descritos descreve fama como boato voz puacuteblica corrente nomeada fama nova e notiacutecia Satildeo sentidos que como veremos manteacutem uma relaccedilatildeo com as possibilidades de traduccedilatildeo do κλέος Nota-se na palavra fama assim uma referecircncia direta ao κλέος grego bem como uma referecircncia agravequilo que eacute famoso como algo que se repete 23 Traduccedilatildeo de Donaldo Schuumller
10
Ainda em LSJ o significado de boa notiacutecia ou fama frequente em Homero segundo o
proacuteprio dicionaacuterio pode ser notado em Il 52-3 ἵν᾽ ἔκδηλος μετὰ πᾶσιν Ἀργείοισι γένοιτο ἰδὲ
κλέος ἐσθλὸν ἄροιτο (para que se tornasse presente em meio a todos os Argivos e ganhar
fama gloriosa) Trata-se do sentimento incutido por Atena em Diomedes para que ele se
sobressaia entre todos os Aqueus e colha assim a gloacuteria Eacute um exemplo do κλέος24 no campo
de batalha Como fama tambeacutem observamos o termo no Banquete de Platatildeo (208c) καὶ κλέος
ἐς τὸν ἀεὶ χρόνον ἀθάνατον καταθέσθαι (para sempre uma fama imortal se preservarem25)
Refere-se a uma passagem do discurso de Diotima na qual a personagem utiliza-se de uma
construccedilatildeo em hexacircmetro26 para ilustrar sua argumentaccedilatildeo Observamos aqui sentidos distintos
sendo uma fama advinda do campo de batalha e outra utilizada para ressaltar um poder de
argumentaccedilatildeo inclusive retomando a autoridade poeacutetica do hexacircmetro
Exemplo de κλέος como gloacuteria segundo LSJ pode ser identificado em Pi P166 ὧν
κλέος ἄνθησεν αἰχμᾶς (a gloacuteria da sua lanccedila explodiu em flor) que versa sobre uma ode ao rei
de Siracusa cuja heranccedila genealoacutegica remonta aos povos que miticamente descenderiam de
Heacuteracles27 mais especificamente aqui de Amiclas de Esparta dono da arma citada no trecho
Outra passagem com sentido de gloacuteria seria Hdt 7220 καὶ βουλόμενον κλέος καταθέσθαι
μούνων Σπαρτιητέων (E querendo estabelecer a gloacuteria como somente dos Espartanos)
Considera-se esse uacuteltimo um importante excerto da narrativa de Heroacutedoto pois diz
respeito agrave gloacuteria adquirida na batalha dos 300 de Esparta que de certa forma imortalizou os
espartanos Por outro lado o que LSJ natildeo apresenta como exemplo de gloacuteria eacute o κλέος como
referecircncia agrave imortalidade de Leocircnidas (αὐτοῦ) que estaacute poucas linhas antes deste trecho
tambeacutem em Hdt 7220 μένοντι δὲ αὐτοῦ κλέος μέγα ἐλείπετο καὶ ἡ Σπάρτης εὐδαιμονίη οὐκ
ἐξηλείφετο (adquiriria para si uma gloacuteria imortal e para Esparta uma felicidade perene)28
Satildeo dois exemplos que remontam a um κλέος que de certa maneira remete a fatos histoacutericos a
personalidades histoacutericas
24 Veremos mais agrave frente ao falarmos do κλέος homeacuterico a importacircncia de kŷdos como uma palavra que pode quase equivaler a κλέος nesse caso 25 Trad adaptada de Joseacute Cavalcante de Souza 26 Segundo Tsagalis (2008 p 160) trata-se de um verso hexacircmetro narrado por Diotima um verso de fonte desconhecida 27 Ao tratatarmos de passagens do texto hesioacutedico veremos que a proacutepria etimologia de Heacuteracles pode remontar a um kleacuteos de Hera 28 Traduccedilatildeo adaptada de Pierre Henri Larcher
11
Na grande maioria dos casos segundo LSJ κλέος possui um sentido positivo de uma
fama gloacuteria ou rumor que afirmam boas qualidades Contudo LSJ ressalta raramente em um
mau sentido ou seja raramente κλέος indica uma maacute reputaccedilatildeo Podemos encontrar esse
sentido de maacute reputaccedilatildeo por exemplo em Pi N 836 θανὼν ὡς παισὶ κλέος μὴ τὸ δύσφαμον
προσάψω (De modo que quando eu morrer natildeo coloque uma maacute reputaccedilatildeo para meus filhos)
Palavras que no contexto da Ode de Piacutendaro traccedilam os desejos de um homem que natildeo almeja
grandes riquezas mas sim manter seu bom nome Deve ser ressaltado poreacutem o fato de que a
conotaccedilatildeo negativa desse κλέος se daacute muito mais pelo adjetivo δύσφαμον (vergonhoso) no
caso aqui uma reputaccedilatildeo vergonhosa e natildeo pelo sentido em si de κλέος isolado do adjetivo
Esses foram alguns exemplos de sentidos de κλέος como rumor boa notiacutecia fama
gloacuteria e maacute reputaccedilatildeo segundo LSJ DELG acompanha LSJ nos sentidos acima descritos e
traz ainda os sentidos de rumor que corre reputaccedilatildeo renome agraves vezes accedilotildees brilhantes dando
algumas outras derivaccedilotildees de mesma raiz κλεινός κλεεννός em eoacutelio No Lexikon des
Fruumlhgriechischen Eacutepos editado por Bruno Snell (1991) observamos a tese em consonacircncia
com Nagy (2013) de que κλέος deriva do verbo kluacuteein que pode ser traduzido como ldquoescutarrdquo
ldquoouvirrdquo Acrescenta ainda o sentido de louvor (Lob) ou seja aquilo que tivesse o κλέος seria
algo a se exaltar a se honrar
DELG aponta alguns temas verbais parentes de κλέος observamos o verbo κλέω κλείω
κλέομαι ἔκλε com significado de glorificar celebrar O verbo κλείω somente pode ser
encontrado na poesia hexameacutetrica segundo DELG Para esse fenocircmeno o leacutexico apresenta trecircs
possibilidades 1 κλείω como um denominal de κλέος resultado de uma hifeacuterese (o que seria
incomum) 2 κλείω como resultado de um alongamento meacutetrico 3 no caso de κλέω ser mais
antigo (se o verbo eacute realmente um tema kleF) como uma derivaccedilatildeo inversa de κλέος (fenocircmeno
que observamos por exemplo em ψεῦδος ψεύδω)
Ainda DELG exemplifica algumas outras passagens em que ocorrem formas de κλείω
como em Od 1338 ἔργ᾽ ἀνδρῶν τε θεῶν τε τά τε κλείουσιν ἀοιδοί (accedilotildees de varotildees e deuses
que cantores tornam famosas) Trata-se do pedido de Peneacutelope a Fecircmio para cantar as accedilotildees
dos heroacuteis que ganham atraveacutes dos cantos fama29 Outra passagem importante escolhida por
DELG eacute Op 1 μοῦσαι Πιερίηθεν ἀοιδῇσιν κλείουσαι (Musas da Pieacuteria que dais gloacuteria com
29 Aprofundaremos esse verso e outros similares ao falarmos do κλέος na Odisseia
12
canccedilotildees) Trata-se de um exemplo tirado do proecircmio de os Trabalhos e os dias30 onde o poeta
Hesiacuteodo conclama as Musas e seus poderes de trazerem κλέος
DELG ainda apresenta e exemplifica outras formas verbais como ἔκλε᾽ em Il 24202
ἔκλε᾽ ἐπ᾽ ἀνθρώπους ξείνους ἠδ᾽ οἷσιν ἀνάσσεις (te fez famoso entre homens estrangeiros e o
povo a quem regias) Trata-se da fala de Heacutecuba que questiona o κλέος de seu marido Priacuteamo
Ele na visatildeo da personagem faria algo estuacutepido ao tentar resgatar sozinho o corpo de Heitor
junto aos Aqueus por comando de Iacuteris enviada de Zeus Tambeacutem em Od13299 haacute a forma
meacutedio-passiva de κλείω μήτι τε κλέομαι καὶ κέρδεσιν οὐδὲ σύ γ᾽ ἔγνως (na astuacutecia famosa e
nos maneios e natildeo reconheceste) Eacute uma referecircncia ao κλέος de Atena famosa por sua
articulaccedilatildeo discursiva pela persuasatildeo entre os deuses assim como era Odisseu entre os homens
Finalmente tambeacutem MDN acompanha de forma reduzida os mesmos campos
semacircnticos dos outros dicionaacuterios ao tratar da forma nominal de κλέος rumor notiacutecia boato
sem fundamento (um alarido de batalha) renome e gloacuteria accedilotildees gloriosas maacute reputaccedilatildeo Em
resumo segundo LSJ ldquorumour report news the report rumour good report fame a glory
renown repute talkrdquo Conforme DELG ldquoreacuteputation renom gloire bruit qui courtrdquo
Aleacutem das formas nominais e verbais interessa-nos apresentar a Musa Κλειώ que
segundo DELG deriva do verbo κλείω celebrar dar a conhecer sendo do mesmo campo
semacircntico de κλέος e que teraacute relevacircncia especial ao falarmos do κλέος em Hesiacuteodo A Musa
simboliza portanto aquela que daacute gloacuteria E por ora nessa apresentaccedilatildeo podemos de forma
hipoteacutetica supor tambeacutem que as Musas exercem essa forccedila primitiva e miacutetica da repeticcedilatildeo ao
inspirarem a memoacuteria e voz dos poetas
As palavras variam mas em todas as suas variaccedilotildees natildeo podemos submeter κλέος agrave
ideia de esquecimento de reclusatildeo segregaccedilatildeo insulaccedilatildeo pelo menos o κλέος em sua forma
nominal Pelo contraacuterio eacute um campo semacircntico que indica em seu fundamento mais elementar
a dinacircmica baacutesica daquilo que eacute redito repassado cantado ouvido repetido
O κλέος pode ser considerado como o resultado de uma narrativa que o estabelece (no
sentido de uma histoacuteria que se torna famosa) como parte de um processo de algo que se torna
notoacuterio famoso como permanecircncia de algo que natildeo se dissipa algo que fica por geraccedilotildees e
geraccedilotildees eacute uma consequecircncia de uma forccedila de repeticcedilatildeo Nem todo κλέος possui ecircnfase
positiva no sentido de que nem toda fama rumor reputaccedilatildeo podem ser considerados positivos
30 Falaremos tambeacutem desse trecho com maior profundidade ao tratar do κλέος na obra de Hesiacuteodo
13
dado que uma reputaccedilatildeo pode ser maacute Poreacutem todo κλέος provem de uma forccedila de repeticcedilatildeo da
narrativa eacute o κλέος aquilo que se repete e o que tambeacutem faraacute ser repetido numa dinacircmica tanto
conceitual como mecacircnica como veremos mais agrave frente ao tratar de textos especiacuteficos onde o
κλέος eacute parte fundamental
Existem dentro do leacutexico grego outras palavras que possuem significado parecido com
κλέος Termos como kŷdos31 (espeacutecie de gloacuteria momentacircnea que ajuda o guerreiro) e eucirckhos
(uma espeacutecie de triunfo do guerreiro) podem ser traduzidos como gloacuteria mas natildeo trariam a
fama na mesma amplitude trazida pelo κλέος Marcel Detienne apresenta uma relaccedilatildeo
importante entre o κλέος e o kŷdos palavra que se assemelha a κλέος
Em uma civilizaccedilatildeo de caraacuteter agoniacutestico pode parecer paradoxal que o homem natildeo se reconheccedila diretamente em seus atos Poreacutem na esfera do combate o guerreiro aristocraacutetico parece obcecado por dois valores essenciais κλέος e kŷdos dois aspectos da gloacuteria Kŷdos eacute a gloacuteria que ilumina o vencedor eacute uma espeacutecie de graccedila divina instantacircnea Os deuses concedem-na a alguns e negam-na a outros Ao contraacuterio κλέος eacute a gloacuteria que passa de boca em boca de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo Se o kŷdos descende dos deuses o κλέος ascende ateacute eles (DETIENNE 2013 p 19)
Os aspectos e valores essenciais dos guerreiros mencionados por Detienne parecem ser
o de kŷdos32 como um substantivo que designa algo passageiro ligado a algum momento da
batalha uma espeacutecie de benccedilatildeo divina que ajuda o guerreiro na sua luta ou em algum outro
momento heroico O kŷdos se prende por assim dizer agrave praacutetica da guerra numa gloacuteria
imediata mas que pode se tornar duradora pode se tornar κλέος Temos por exemplo um
epiacuteteto repetido de forma convencional no campo de batalha kydiaacuteneira ldquogeradora de gloacuteriardquo33
Eacutemile Benveniste (1974 p 64) apresenta kŷdos como uma espeacutecie de ldquopoder maacutegicordquo
ou um tipo ldquograccedilardquo que eacute conferido por divindades a heroacuteis Seria uma graccedila raacutepida e pontual
que ajudaria o heroacutei o guerreiro dentro do campo de batalha Eacute algo concedido
momentaneamente como uma graccedila divina algo como um ldquotalismatilde irresistiacutevel de supremaciardquo
31 Veremos quem nem sempre kŷdos eacute associado a uma gloacuteria de batalha como por exemplo no testemunho de Pausacircnias acerca de Hesiacuteodo (Paus 9383-4) Ἄσκρη μὲν πατρὶς πολυλήιος ἀλλὰ θανόντος ὀστέα πληξίππων γῆ Μινυῶν κατέχει Ἡσιόδου τοῦ πλεῖστον ἐν Ἑλλάδι κῦδος ὀρεῖται ἀνδρῶν κρινομένων ἐν βασάνῳ σοφίης (Ascra com seus muitos campos de milho (era) minha terra natal mas agora que eu morri A terra dos Miacutenios domadores de cavalos tecircm os ossos de Hesiacuteodo cuja gloacuteria entre os seres humanos eacute a maior Quando os homens satildeo julgados nas provaccedilotildees da sabedoria) Trad adaptada de Maria Cruz Herrero Ingelmo 32 Segundo LSJ ldquoglory renown to win gloryrsquo 33 Como apresenta Maria de Faacutetima Silva (SILVA 2005 p 25)
14
Difere entatildeo de κλέος por ser em essecircncia temporaacuterio algo que natildeo se pode controlar ou
prever
Benveniste (1974 p 58) acompanha Detienne apresentando a etimologia de κλέος
poreacutem associando esse conceito agrave funccedilatildeo do poeta arcaico que proporcionava esta fama
Segundo Benveniste κλέος se conectava a priacutencipes e reis numa espeacutecie de exaltaccedilatildeo poeacutetica
e celebraccedilatildeo dos nobres e das faccedilanhas heroicas dos reis e seus ancestrais Funccedilatildeo poeacutetica que
segundo Benveniste (1974 p 59) possui origem indo-europeia pois tanto o grego quanto o
veacutedico bem como o micecircnico entre outras vertentes do indo-europeu preservaram a expressatildeo
kleacuteos aacutephthiton (fama impereciacutevel) Eacute um sentimento de conquista que ascende aos ideais
divinos pois se torna a gloacuteria objeto da canccedilatildeo Eacute o paradigma de uma sociedade guerreira Eacute
um paradigma desenvolvido talvez de forma mais contundente num primeiro momento pelo
personagem Aquiles como veremos em capiacutetulo especiacutefico
c) A repeticcedilatildeo do κλέος eacutepico e a afirmaccedilatildeo da fama
A repeticcedilatildeo como meacutetodo eacute uma ferramenta utilizada tanto na filosofia (como em
Deleuze que jaacute fizemos menccedilatildeo anteriormente) quanto na literatura como uma teacutecnica
recorrente Podemos observar esse meacutetodo tambeacutem na Antiguidade O verbo ἀνακυκλέω34
retoma essa ideia baacutesica de repeticcedilatildeo com grafia semelhante a κλέος mas com formaccedilatildeo na
preposiccedilatildeo ἀνά somada ao termo κύκλος (ciclo) Segundo LSJ ἀνακυκλέω significa turn round
again revolve in ones mind repeat to be renewed come round in a circle
Observamos esse verbo sendo utilizado tanto na filosofia quanto em expressotildees de
gramaacuteticos antigos como uma ldquorepeticcedilatildeo de palavrasrdquo ldquorepeticcedilatildeo de argumentosrdquo Segundo
LSJ com o sentido baacutesico de retornar observamos a palavra por exemplo em Plutarco
(Dem294) τοὺς αὐτοὺς ἀνακυκλῶν λόγους αὖθις ἐπηγγέλλετο διαλλαγὰς (e repetindo as
mesmas falas como antes prometeu-lhe a reconciliaccedilatildeo)35 Trata-se da afirmaccedilatildeo feita por
Aacuterquias acerca da reconciliaccedilatildeo do personagem que daacute nome ao texto Demoacutestenes com
Antiacutepatro
34 Poderiacuteamos ainda fazer referecircncia ao verbo ταυτολογέω ou ao nome ἐπιστροφή como termos que indicam o ato ou objeto da repeticcedilatildeo 35 Traduccedilatildeo adaptada de Bernadotte Perrin
15
Outra construccedilatildeo semelhante pode ser encontrada num fragmento de Proacutedico de Ceos
e aqui jaacute observamos o que seria a prosa dos primeiros filoacutesofos Em Herm 267b p 2511ndash3
ἔλεγεν οὖν ὁ Πρόδικος ὅτι διὰ τῶν τοιούτων ὀνομάτων δεῖ καταποικίλλειν τὸν λόγον καὶ μὴ
διὰ μακρῶν λόγων τὰ αὐτὰ ἀνακυκλεῖν ἀλλὰ συμμετρίᾳ χρῆσθαι (Entatildeo Proacutedico disse que se
deve diversificar o discurso por meio de palavras como estas e natildeo repetir as mesmas coisas
em longos discursos mas usar a proporccedilatildeo certa) 36 Na Metereologia de Aristoacuteteles
encontramos novamente o termo dentro da prosa filosoacutefica (Mete 339b29) τὰς αὐτὰς δόξας
ἀνακυκλεῖν γιγνομένας ἐν τοῖς ἀνθρώποις (que as mesmas opiniotildees se repitam em rotaccedilatildeo entre
os homens)37 E ainda nas Meditaccedilotildees de Marco Aureacutelio (MAnt 214) Πάντα ἐξ ἀιδίου
ὁμοειδῆ καὶ ἀνακυκλούμενα (tudo desde sempre se apresenta de forma igual e descreve os
mesmos ciacuterculos)38
Esses satildeo exemplos especiacuteficos de como a repeticcedilatildeo se insere no discurso de persuasatildeo
A repeticcedilatildeo pode ser observada de maneiras diversas construindo um panorama teoacuterico
robusto tanto no que diz respeito agraves teacutecnicas de escrita quanto na necessidade dos autores em
constituir assim um renome Trata-se de construir tambeacutem um debate de ideias que se utiliza
da repeticcedilatildeo de argumentos e textos passados
Acreditamos que o sentido da repeticcedilatildeo em si (ou seja o porquecirc de algo que se repete
por seacuteculos e seacuteculos como obra poeacutetica ou filosoacutefica junto ao primado do κλέος) possui trecircs
forccedilas primordiais que seratildeo desenvolvidas atraveacutes das proacuteximas paacuteginas a repeticcedilatildeo advinda
de algo que se torna famoso isto eacute adquire um κλέος e assim se propaga por sua relevacircncia a
repeticcedilatildeo pelas mais variadas teacutecnicas de domiacutenio e propagaccedilatildeo de uma narrativa existentes na
tradiccedilatildeo oral39 e a repeticcedilatildeo que tomamos como inspiraccedilatildeo de Deleuze uma espeacutecie de forccedila
criativa que afirma uma nova diferenccedila
A repeticcedilatildeo pelo κλέος como observaremos em vaacuterias passagens aparece no horizonte
de expectativas da poesia como algo desejado e almejado pelo poeta algo que garante a forccedila
de dada narrativa pois a faz conhecida propagada Jaacute a repeticcedilatildeo que se daacute pelos mais variados
atributos existentes na tradiccedilatildeo oral tais como estrateacutegias mnemocircnicas estruturas circulares
36 Traduccedilatildeo adaptada de Andreacute Laks e Glenn Most 37 Traduccedilatildeo de adapteda de H D P Lee 38 Traduccedilatildeo de Thainara Castro 39 Como veremos no capiacutetulo sobre a tradiccedilatildeo eacutepica nas forccedilas mnemocircnicas da oralidade
16
composiccedilotildees em anel apontam para a estrutura oral da poesia e sua necessidade de colocar-se
como uma memoacuteria coletiva por assim dizer
Veremos que o κλέος tambeacutem se adapta como uma expressatildeo formular pelo menos
dentro da tradiccedilatildeo homeacuterica Sob outro vieacutes no estudo do κλέος em Xenoacutefanes e Heraacuteclito
veremos como a forccedila criativa da criacutetica de ambos os autores agrave obra de Hesiacuteodo produziraacute aleacutem
do κλέος textual uma diferenccedila pela repeticcedilatildeo agocircnica uma diferenccedila na repeticcedilatildeo de Hesiacuteodo
visto agora como uma personagem conceitual de Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Mais do que uma palavra que compotildee a ideia de repeticcedilatildeo o κλέος da maneira que o
concebemos seraacute tambeacutem um componente importante na interpretaccedilatildeo da poesia eacutepica e da
filosofia preacute-socraacutetica Caberaacute a este trabalho avaliar essa forccedila de repeticcedilatildeo do κλέος dentro de
duas perspectivas da tradiccedilatildeo eacutepica Homero e Hesiacuteodo bem como examinar a perspectiva preacute-
socraacutetica deste κλέος na voz de Xenoacutefanes e Heraacuteclito e analisar ao final se o mundo dos
primeiros filoacutesofos manteacutem ou natildeo essa dinacircmica da repeticcedilatildeo pelo κλέος e mais do que isso
se constroacutei uma diferenccedila na identidade textual num estilo antagonista ao que vislumbramos
na eacutepica
A estrutura geral que iraacute conduzir nosso texto se daraacute entatildeo desta forma a) uma breve
apresentaccedilatildeo da tradiccedilatildeo eacutepica agrave qual pertence Hesiacuteodo b) o κλέος dentro da obra homeacuterica
c) o κλέος hesioacutedico d) o κλέος em Xenoacutefanes e a afirmaccedilatildeo da sua diferenccedila e) o κλέος em
Heraacuteclito e a afirmaccedilatildeo da sua diferenccedila
No capiacutetulo Hesiacuteodo na tradiccedilatildeo do eacutepos contextualizamos o autor no universo da eacutepica
apresentando um olhar geral sobre sua obra introduzindo as questotildees pertinentes aos seus dois
grandes poemas Tambeacutem iremos apresentar Hesiacuteodo dentro do universo das expressotildees
formulares utilizadas pela tradiccedilatildeo homeacuterica e como alguns comentadores localizam e
classificam essas questotildees
Apoacutes isso em O κλέος homeacuterico trataremos da questatildeo do κλέος no texto eacutepico pela
repeticcedilatildeo da tradiccedilatildeo e pelas teacutecnicas mnemocircnicas e as composiccedilotildees em anel dentro agora das
obras Iliacuteada e Odisseia Traremos exemplos de como o κλέος se compotildee muitas vezes como
expressatildeo formular nessas obras Argumentaremos acerca do κλέος ἄφθιτον (gloacuteria imortal) e
dos κλέα ἀνδρῶν (gloacuterias dos homens gregos) discutiremos o paradigma de Aquiles e outras
exemplificaccedilotildees
Tendo apresentado o que chamamos de paradigmas do κλέος homeacuterico em O κλέος de
Hesiacuteodo argumentaremos acerca desta concepccedilatildeo em Hesiacuteodo da sua relaccedilatildeo com as Musas
17
com os processos de rememoraccedilatildeo e repeticcedilatildeo Na sequecircncia do texto falaremos sobre a
recepccedilatildeo em Hesiacuteodo conectando a fama deste poeta com o capiacutetulo acerca de O κλέος dos
poetas que apresenta exemplos de como κλέος era algo almejado e buscado por alguns poetas
em vaacuterios momentos em diferentes contextos do mundo grego antigo Finalmente entraremos
na questatildeo final desta tese a saber aquilo que conecta a poesia eacutepica com o mundo dos
primeiros filoacutesofos em o κλέος de Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Em uacuteltima instacircncia o que estaacute em jogo eacute se o κλέος se constitui somente como uma
palavra sem maior relevacircncia ou se efetivamente se trata de uma potecircncia criativa dentro da
poesia e filosofia antigas Ao defendermos que o κλέος perpassa esses quatro momentos
(Homero Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito) mantendo certos criteacuterios e caracteriacutesticas
esperamos acrescentar valor teoacuterico a essa concepccedilatildeo de que κλέος eacute sim uma forccedila que conecta
autores personagens e obras que consolidaram nossa forma de compreender a literatura e
filosofia Acrescentar valor teoacuterico no sentido de que este trabalho faraacute uma anaacutelise de usos do
vocaacutebulo κλέος em certos textos gregos e tambeacutem no sentido de utilizar o κλέος como uma
categoria de anaacutelise que aproximaraacute a poesia e a filosofia antigas Propomos em uacuteltima
instacircncia apresentar o κλέος como uma metaacutefora para o processo de recepccedilatildeo e recriaccedilatildeo numa
tradiccedilatildeo filosoacutefico-literaacuteria
Mais especificamente tratando-se do κλέος homeacuterico observamos jaacute uma vasta
bibliografia que orienta e dirige parte deste trabalho Tratando-se do κλέος em Hesiacuteodo jaacute natildeo
verificamos uma tatildeo vasta bibliografia como a do κλέος em Homero mas mesmo assim
acreditamos ser suficiente para nos oferecer uma base teoacuterica O maior desafio reside entatildeo
exatamente em falar de um κλέος preacute-socraacutetico em Xenoacutefanes e Heraacuteclito Nessa etapa
acreditamos estar contribuindo para uma discussatildeo que ainda eacute modesta no ambiente dos
Estudos Antigos
18
10 HESIacuteODO NA TRADICcedilAtildeO DO EacutePOS
Acreditamos que Hesiacuteodo pode ser considerado uma forccedila criativa poeacutetica que traccedila
um elo entre a tradiccedilatildeo homeacuterica e o mundo dos preacute-socraacuteticos no que diz respeito ao conceito
de κλέος Essa crenccedila se daacute como veremos mais detalhadamente agrave frente pelo fato de que
Hesiacuteodo eacute considerado um autor qualificado e repetido no debate de ideias entre os preacute-
socraacuteticos Ele eacute assim um autor a ser superado em conjunto algumas vezes com a tradiccedilatildeo
homeacuterica Essa interlocuccedilatildeo com Hesiacuteodo como um representante qualificado da tradiccedilatildeo a ser
refutado ou aperfeiccediloado seraacute bem evidente tanto nos fragmentos de Xenoacutefanes e Heraacuteclito
como de forma velada em outros pensadores (como em Parmecircnides e Empeacutedocles) Para
fundamentarmos esse embate conceitual entre Hesiacuteodo e os preacute-socraacuteticos tendo sempre
presente o horizonte do κλέος trataremos agora de uma breve apresentaccedilatildeo de Hesiacuteodo como
um representante da tradiccedilatildeo eacutepica arcaica
Sabemos que a obra de Hesiacuteodo ocupa um lugar central no mundo da Antiguidade grega
Principalmente entre muitas outras coisas por ela se apresentar dentro de uma vasta estrutura
de elementos que representam o periacuteodo que de forma simplificada poderiacuteamos chamar de
arcaico eacutepoca fundamental para a formaccedilatildeo de uma identidade pan-helecircnica Periacuteodo este que
tem uma organizaccedilatildeo espacial religiosa e histoacuterica especiacuteficas algo entre os seacuteculos VIII e V
antes da era cristatilde e nesse periacuteodo dentro da cultura oral e preacute-letrada40 encontra expressatildeo
relevante no que usualmente chamamos de poesia eacutepica Eacute a poesia da oralidade das
performances puacuteblicas do culto agrave memoacuteria culto aos imortais aos heroacuteis das cosmogonias
mas eacute tambeacutem dentro da proacutepria oralidade um culto a valores cotidianos ao homem simples
ao campesino
O caraacuteter oral da poesia eacutepica foi de uma realidade complexa intrigando os estudos
helecircnicos ainda em nossos dias na tentativa de explicar esse processo que conectava poesia
ritmo palavra elementos que constituiacuteam uma unidade na cultura grega Hesiacuteodo participou
dessa conexatildeo foi parte dessa tradiccedilatildeo
40 A cultura oral amplamente utilizada no periacuteodo soma-se a um ambiente preacute-letrado Falamos em preacute-letramento porque por mais que a existecircncia do alfabeto jaacute pudesse ser verificada a linguagem escrita natildeo era ainda aquela mais usual sendo utilizada principalmente em tarefas burocraacuteticas no controle de dadas atividades dessa sociedade arcaica como aponta HAVELOCK (1996 p 233) Sabemos que as teses de Havelock foram amplamente criticadas durante os uacuteltimos anos por sustentar o Homero e Hesiacuteodo que conhecemos como obras poacutes-alfabeacuteticas O citamos aqui por se tratar de um autor que levantou argumentos de extrema relevacircncia acerca da oralidade poeacutetica arcaica como uma rede de propagaccedilatildeo de narrativas
19
Em Hesiacuteodo observamos uma literatura conectada com a cadecircncia do eacutepos ancorada
tambeacutem na expressatildeo dos mitos A relaccedilatildeo do eacutepos (aqui inicialmente tomando eacutepos como
palavra oral ou escrita) com a narrativa miacutetica eacute abrangente e de variada interpretaccedilatildeo Martin
(1989)41 acredita que apalavra myacutethos eacute no mundo homeacuterico uma fala que indica autoridade
jaacute o eacutepos uma fala mais direta e curta Mesmo assim um myacutethos seria composto de vaacuterios eacutepea
Podemos dizer que nas suas mais variadas aplicaccedilotildees a poesia eacutepica oral possui por assim
dizer a complexidade semacircntica inscrita na heranccedila geneacutetica do termo eacutepos Segundo LSJ sv
ἔπος eacutepos pode ser traduzido como ldquopalavrardquo tomado no sentido mais geral significa aquilo
que eacute dito pronunciado em palavras um discurso ou um relato Os sentidos mais especiacuteficos
incluem tambeacutem ldquocanccedilatildeo poema acompanhado de muacutesicardquo No plural significa poesia em
verso heroico poesia eacutepica bem como versos em geral ou poesia em geral (mesmo a liacuterica LSJ
sv IVb) sendo que o singular pode tambeacutem designar um verso de qualquer tipo ou um grupo
de versos (LSJ sv IVc)
Essas satildeo tambeacutem aproximadamente as definiccedilotildees encontradas em DELG sv bem
como em MDN sv que oferece como sugestotildees de traduccedilatildeo para o portuguecircs entre outras
ldquopalavra formuladardquo ldquonotiacuteciardquo ldquotema de um discursordquo Eacute comum nas liacutenguas modernas o
emprego de eacutepos no singular para designar poesia eacutepica um poema eacutepico (acepccedilotildees que seguem
a utilizaccedilatildeo da palavra em latim segundo o que se constata em Saraiva (1993) sv epos) ou o
tipo de poesia que se caracteriza pelo emprego do hexacircmetro datiacutelico uso que tambeacutem
seguiremos neste trabalho Portanto de muacuteltipla traduccedilatildeo e compreensatildeo ateacute mesmo na
Antiguidade o eacutepos pode significar simplesmente uma palavra ou um canto acompanhado de
ritmo e melodia um conselho (LSJ sv 13 MDN sv 5) a palavra de uma divindade ou um
oraacuteculo (LSJ sv I4 MDN sv 6) um proveacuterbio (LSJ sv 15) acepccedilotildees que poderiacuteamos
associar ao campo semacircntico de ensinamento de transmissatildeo de ideias e valores Eacute o eacutepos um
nuacutecleo primordial da comunicaccedilatildeo grega e dentro desse universo primordial eacute que se
desenvolve a cultura nesse mundo arcaico Educa-se pela repeticcedilatildeo de um eacutepos
41 ldquoI find Muellners method useful for analyzing the two terms that demand attention when we turn to words for speech in Homer-namely myacutethos and eacutepos In hopes of recapturing the intricacies of the oral poetic world behind Homeric verse I have investigated these two words in their context and can now redefine the words as follows myacutethos is in Homer a speech-act indicating authority performed at length usually in public with a focus on full attention to every detail I redefine eacutepos on the other hand as an utterance ideally short accompanying a physical act and focusing on message as perceived by the addressee rather than on performance as enacted by the speakerrdquo (MARTIN 1989 p 12)
20
Na educaccedilatildeo arcaica o eacutepos tomado aqui como poesia eacutepica em sentido amplo sem
nos restringirmos agrave eacutepica heroica constitui parte fundamental das performances puacuteblicas e
privadas A poesia oral era sempre retomada como um conjunto metrificado de conhecimentos
para rememorar aquilo que fundou a cultura grega nas suas guerras e batalhas ao cantar a
gloacuteria de outrora ao exaltar os costumes da comunidade a religiatildeo e o culto aos deuses bem
como transmitir ensinamentos em diversas aacutereas como agricultura navegaccedilatildeo relaccedilotildees
familiares e sociais entre outros (tal como podemos constatar em Os trabalhos e os dias)
As histoacuterias se propagavam na forma de poesia Por isso a poesia eacutepica na linguagem
do eacutepos eacute considerada por algumas correntes de estudo um aspecto civilizatoacuterio do mundo
grego Dentre essas correntes podemos citar as obras de Werner Jaeger e Bruno Snell42 Bruno
Snell (1953) por exemplo credita agrave poesia grega a criaccedilatildeo de uma nova ideia de homem nascida
em Homero o nascimento do individual dentro da liacuterica a ideia de uma nova visada sobre o
conhecimento nascida com os preacute-socraacuteticos Werner Jaeger outro importante estudioso da
civilizaccedilatildeo grega logo no proacutelogo de seu tatildeo prestigiado Paideia diz
Os antigos estavam convencidos de que a educaccedilatildeo e a cultura natildeo constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata distintas da estrutura histoacuterica objetiva da vida espiritual de uma naccedilatildeo para eles tais valores concretizam-se na literatura que eacute a expressatildeo real de toda cultura superior (JAEGER 1995 p 1)
Ao dizer ldquoliteraturardquo aqui Jaeger estaacute pensando como a continuaccedilatildeo do seu livro torna
oacutebvio tambeacutem na ldquoliteratura oralrdquo (ainda que isso seja quase uma contradiccedilatildeo em termos) E o
eacutepos era importante natildeo somente como progresso civilizatoacuterio mas tambeacutem como o grande
agente de civilidade cidadania identidade pertencimento por mais que essas palavras possam
soar como anacrocircnicas em relaccedilatildeo ao mundo arcaico
Esses pequenos aacutetomos de sentido os eacutepea isto eacute os versos eacutepicos arranjam-se de
forma tradicional na poesia que constituem Repetem-se em determinada cadecircncia Pois eacute ainda
42 Sabemos das possiacuteveis criacuteticas tanto ao evolucionismo de Snell que sugere uma certa ideia de Eurocentrismo e Helenocetrismo na consolidaccedilatildeo do sentido de ldquoespiacuteritordquo no Ocidente quanto ao modelo de cultura superior e de milagre grego apontado por Jaeger Mesmo sendo autores jaacute muito debatidos observamos a importacircncia da obra de Snell em observar a poesia como matriz importante na afirmaccedilatildeo da cultura helecircnica bem como de Jaeger que aponta tambeacutem a importacircncia da literatura grega na fundaccedilatildeo da educaccedilatildeo ocidental Opiniotildees diferentes por exemplo de BEARD e HENDERSON (1998) questionam ateacute que ponto nosso saber sobre a Antiguidade Claacutessica pode ser conclusivo ou natildeo e discutem os significados poliacuteticos diversos que os estudos claacutessicos podem assumir segundo os contextos histoacutericos em que esses estudos tecircm se realizado
21
a poesia eacutepica mais do que os nuacutecleos de sentido supracitados a arte do hexacircmetro dactiacutelico43
Arte dos versos que datildeo um ritmo proacuteprio ao andamento das palavras metrificam essa oralidade
ao se propagar uma histoacuteria uma narrativa um mito bem como muitas vezes um discurso que
se apresenta fundado em aspectos racionais talvez ateacute protocientiacuteficos por mais que se
reconheccedila a complexidade desses termos Histoacuterias compartilhadas de forma oral satildeo histoacuterias
compartilhadas atraveacutes da memoacuteria particular e coletiva na cadecircncia do eacutepos
Portanto talvez esteja na poesia eacutepica um dos principais compostos do processo
civilizatoacuterio grego Processo que se deu tambeacutem atraveacutes da educaccedilatildeo dada por seus poetas ao
propagar esse mesmo eacutepos Eacute o que pensa Werner Jaeger44 entre outros autores que conectam
a poesia eacutepica ao nascimento do espiacuterito ocidental Bruno Snell eacute categoacuterico em suas palavras
ldquoEuropean thinking begins with the Greeks They have made it what it is our only way of
thinking its authority in the Western world is undisputedrdquo (SNELL 1953 p v) Natildeo eacute agrave toa
que o capiacutetulo 11 do livro de Snell estuda o siacutemile homeacuterico como origem remota do
pensamento loacutegico mas como jaacute ressaltamos a opiniatildeo de Snell natildeo eacute consensual Todavia se
o consenso existisse ele talvez estaria no papel que a poesia cumpriu ao educar o homem grego
A educaccedilatildeo contida na poesia oral disseminava entre muitos outros aspectos a virtude
moral do guerreiro o perigo da coacutelera e a indulgecircncia dos deuses e tambeacutem o caraacuteter prosaico
de homens comuns Eacute nesse contexto que se encaixa o poeta Hesiacuteodo com sua poesia eacutepica que
pode ser observada principalmente nas obras Teogonia e Os trabalhos e os dias Outras obras
algumas conservadas apenas em pequenos fragmentos tambeacutem satildeo atribuiacutedas a Hesiacuteodo
Falaremos sobre elas no percurso deste trabalho45
Hesiacuteodo se insere assim no universo amplo do eacutepos como forma e veiacuteculo de
transmissatildeo de saber insere-se na educaccedilatildeo poeacutetica da tradiccedilatildeo oral ao reproduzir agrave sua maneira
esse extenso universo poeacutetico Observaremos essa inserccedilatildeo de Hesiacuteodo na tradiccedilatildeo eacutepica
primeiramente em quatro elementos poeacutetico moral pedagoacutegico e teogocircnico
43 Eacute o hexacircmetro dactiacutelico a forma meacutetrica baacutesica de arranjo do metro eacutepico encontrada na poesia eacutepica configurando essas ceacutelulas baacutesicas do sentido do eacutepos tradicionalmente numa sequecircncia caracteriacutestica de uma siacutelaba longa seguida de duas breves com algumas variaccedilotildees Falaremos na sequecircncia da relaccedilatildeo de Hesiacuteodo com esse metro de forma mais abrangente 44 ldquoA concepccedilatildeo do poeta como educador do seu povo no sentido mais amplo e profundo da palavra foi familiar aos Gregos desde a sua origem e manteve sempre a sua importacircncia Homero foi apenas o exemplo mais notaacutevel desta concepccedilatildeo geralrdquo (JAEGER 1995 p 43) 45 Sobre as fontes das obras de Hesiacuteodo podemos dizer o corpus hesioacutedico abrange aleacutem de Os trabalhos e os dias e da Teogonia diversos outros textos sobre cuja autoria ainda paira alguma duacutevida Entre eles estatildeo o Escudo de Heacuteracles e o Cataacutelogo das mulheres Sobre o corpus hesioacutedico ver CINGANO 2009
22
Eacute atraveacutes desses elementos separados aqui para uma melhor apresentaccedilatildeo do contexto
da obra de Hesiacuteodo que o poeta beoacutecio iraacute se inserir na repeticcedilatildeo do eacutepos grego
11 OS POEMAS TEOGONIA E OS TRABALHOS E OS DIAS UMA BREVE
INTRODUCcedilAtildeO A) EacutePOS E REPETICcedilAtildeO DE ELEMENTOS POEacuteTICOS B) TRADICcedilAtildeO
MORAL PEDAGOacuteGICA e TEOGOcircNICA
Teogonia e Os trabalhos e os dias satildeo os dois principais poemas hesioacutedicos que nos
chegaram Possuem pontos convergentes e divergentes em suas temaacuteticas Ambos os poemas
se enquadram numa tradiccedilatildeo eacutepica (poeacutetica meacutetrica e formular) bem como numa tradiccedilatildeo
moral pedagoacutegica e teogocircnica por mais que se diferenciem em vaacuterios aspectos Natildeo eacute um
desafio faacutecil tentar classificaacute-los Tal desafio complexo esbarra em questotildees que a tradiccedilatildeo de
estudos hesioacutedicos coloca como essenciais para compreendermos seus contextos a saber quem
foi Hesiacuteodo Foi um poeta uma corrente de poetas ou um personagem ficcional Qual a
dimensatildeo exata da sua obra e de seus versos Teve influecircncia de outras obras do Oriente Qual
o papel que a obra desempenhou na tradiccedilatildeo a que pertence Pertence realmente a essa tradiccedilatildeo
A Teogonia e os Eacuterga satildeo complementares ou somente em parte opostos46 Satildeo questotildees que
natildeo conseguiremos responder aqui mas que enfrentaremos no decorrer desse trabalho Trata-
se de questotildees fundamentais para avaliarmos mais agrave frente a existecircncia e o caraacuteter do κλέος em
Hesiacuteodo Na sua introduccedilatildeo teoacuterica acerca da Teogonia JAA Torrano apresenta a complexidade
do texto hesioacutedico que nos diz sobre ldquoaquilo que natildeo pode ser ditordquo
O que se leraacute neste livro eacute um discurso sobre o nefando e sobre o inefaacutevel ie um discurso sobre a experiecircncia do Sagrado um discurso sobre o que natildeo deve e natildeo pode ser dito quer por ser motivo do mais desgraccediloso horror (o Nefando) quer por ser motivo e objeto da mais sublime vivecircncia (o Inefaacutevel) (TORRANO 2007 p 13)
Para Torrano a Teogonia versa sobre o sagrado e tem como ponto nevraacutelgico a
inspiraccedilatildeo das Musas Por isso esse jogo entre o que se pode dizer e natildeo se pode dizer (jaacute que
as Musas inspiravam os versos poeacuteticos) Se pensarmos na afirmaccedilatildeo de Torrano de que a
46 Acerca dessas questotildees que rondam a obra de Hesiacuteodo observamos algumas teses que se sobressaem no estudo criacutetico dos poemas hesioacutedicos West (1966) trata por exemplo da influecircncia dos mitos teogocircnicos orientais na obra de Hesiacuteodo Fala ainda West da tese de que somente os 900 primeiros versos da Teogonia podem ser considerados autecircnticos NAGY (2009) argumenta na defesa de uma tradiccedilatildeo hesioacutedica e natildeo talvez um indiviacuteduo Hesiacuteodo que tenha criado a Teogonia e os Eacuterga
23
Teogonia trata tambeacutem do que natildeo pode ser dito podemos observar a partir dos versos dos Eacuterga
uma tese contraacuteria ou seja aquilo que deveria necessariamente ser dito por exemplo ser dito
a Perses Op v10 ἐγὼ δέ κε Πέρσῃ ἐτήτυμα μυθησαίμην (Quanto a mim gostaria de dizer a
Perses verdades)
Para West (1966) aleacutem das Musas como inspiradoras os mitos e genealogias cumprem
papel fundamental na obra Teogonia ldquoIf the succession Myth is the backbone of the Theogony
the genealogies are its flesh and bloodrdquo (WEST 1966 p 31) Mas cabe lembrar aqui a
associaccedilatildeo que West faz dos mitos teogocircnicos dentro da Teogonia com seus correlatos orientais
em especial os de origem babilocircnica
Teogonia e Eacuterga podem ser tratados natildeo somente como obras mutuamente excludentes
mas como poemas complementares Jenny S Clay47 situa a Teogonia e os Eacuterga como obras
que se mesclam e de certa forma se completam produzindo um mesmo koacutesmos do autor ldquoTo
grasp the whole in other words the cosmos of Hesiod we must explore the relations between
the two poems their differences as well as the similarities and the complementarities that link
them togetherrdquo (CLAY 2003 p 8)
Pensamos da mesma maneira que Clay pois Hesiacuteodo oferece aleacutem da descriccedilatildeo poeacutetica
de um mundo de imortais e mortais (Teogonia) uma visatildeo do que se pode supor ser sua proacutepria
vida ou da vida de um personagem tambeacutem de nome Hesiacuteodo (Teogonia e Eacuterga) em versos
que denotariam aspectos reais ou ficcionais de sua famiacutelia e de sua histoacuteria pessoal Ao
apresentar nuances de sua suposta biografia e sua relaccedilatildeo e contato com as Musas Hesiacuteodo o
faz a partir de alguns aspectos que merecem ser comentados com mais vagar Satildeo eles espeacutecies
de nuacutecleos baacutesicos para a compreensatildeo de sua obra
Por mais que se possam admitir inuacutemeras possibilidades na anaacutelise da poesia hesioacutedica
optamos em dividi-la em alguns campos temaacuteticos para uma melhor organizaccedilatildeo e
apresentaccedilatildeo geral de sua obra e das questotildees que concernem a este trabalho Natildeo dividindo a
obra de Hesiacuteodo na anaacutelise diferenciada dos dois poemas mas apresentando-a atraveacutes de
nuacutecleos temaacuteticos Ressaltamos novamente que sabemos da complexidade e problematicidade
47 Ainda segundo a autora ldquoThe Theogony offers an account of the genesis of the koacutesmos and the gods and culminates in Zeusrsquos final and permanent ordering of that koacutesmos in the Works and Days Hesiod advises his wayward brother Perses how best to live in the world as it is constituted under Zeusrsquos rule These two compositions are clearly interrelated and in a sense complementary the one offering a divine and the other a human perspective on the universe Taken together the Theogony and the Works and Days offer perhaps the earliest sustained and systematic reflections in the Greek sphere on the perennial and fundamental issues which haunt us still what is the relationship between human beings and those powerful beings called gods (CLAY 2003 p 2)
24
em se propor uma classificaccedilatildeo temaacutetica como essa mas afirmamos ser um caminho para
entendermos como esses temas ressurgiratildeo no ambiente criacutetico de Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Chamaremos o primeiro desses nuacutecleos (a) nuacutecleo poeacutetico que se enquadra na tradiccedilatildeo
do eacutepos mas que a partir de Hesiacuteodo eacute somado a componentes que poderiacuteamos chamar a
princiacutepio de ldquonomeaccedilatildeo do poeta Hesiacuteodo48rdquo
Acerca dessa nomeaccedilatildeo do poeta Hesiacuteodo observamos em Nagy (2009)49 bem como
em outros textos acerca de Hesiacuteodo o autor norte-americano lanccedilar uma tese importante ao natildeo
acreditar num Hesiacuteodo histoacuterico individualmente falando mas sim numa tradiccedilatildeo hesioacutedica que
se propagou oralmente assim como a de Homero dentro de um ambiente de pan-helenizaccedilatildeo
Falaremos tambeacutem um pouco mais desse assunto ao descrever aspectos da recepccedilatildeo de
Hesiacuteodo e seu aspecto legendaacuterio mas cabe no contexto de agora citar o autor
As we see then from the internal evidence of Hesiodic poetry the episode about the initiation of Hesiod by the Heliconian Muses is far more than a story about a poetrsquos personal experience It is a story that universalizes the figure of Hesiod as poet making him a generic representative of a pan-Hellenic form of poetry In this light the episode about Hesiodrsquos initiation by the Muses seems more programmatic than lsquobiographicalrsquo (NAGY 2009 p 7)
O texto atribuiacutedo a Hesiacuteodo segundo Nagy produz esse movimento de universalizaccedilatildeo
da figura de Hesiacuteodo e a nosso ver tambeacutem da voz autoral que fala de si Pois quando o poeta
fala de si (o si real ou o si ficcional) ele de certa forma se insere nos processos de repeticcedilatildeo do
hexacircmetro cantando a si mesmo na medida em que eacute cantada a canccedilatildeo Como um contraponto
a Nagy podemos citar West (1966) que acredita sim num Hesiacuteodo histoacuterico (por mais que seja
uma tese enunciada mais de trecircs deacutecadas antes de Nagy) Ainda West postula um Hesiacuteodo mais
antigo que Homero West nos traz inclusive a noccedilatildeo de ldquoby Hesiod himselfrdquo
I have argued that the Theogony and Work and days were written down by Hesiod himself or at his dictation His original manuscripts probably wooden tablets or animal skins are the ultimate ancestors of the medieval and renaissance manuscripts we have (WEST 1966 p 48)
48 Optamos por usar esse termo ldquonomeaccedilatildeo do poeta Hesiacuteodordquo por sabermos que os termos ldquoidentidaderdquo de Hesiacuteodo ou ldquosubjetividaderdquo do poeta Hesiacuteodo trazem anacronismos que a princiacutepio natildeo poderiacuteamos relacionar agrave obra de Hesiacuteodo Enfrentaremos essa questatildeo de forma mais analiacutetica ao falarmos sobre a fama desse poeta que foi nomeado como Hesiacuteodo ou melhor de seu κλέος 49 Trataremos disso em capiacutetulo especiacutefico
25
Natildeo sabemos com certeza absoluta se Hesiacuteodo existiu ou natildeo de forma real mas
sabemos que a voz autoral que fala no texto hesioacutedico nos apresenta ainda outros elementos
que correspondem a uma incipiente sabedoria moral tambeacutem pedagoacutegico-cotidiana e ao
mesmo tempo uma visatildeo complexa dos deuses Chamaremos esses aspectos de elementos
moral pedagoacutegico e teogocircnico Veremos que os proacuteprios comentadores gregos classificaram a
obra de Hesiacuteodo como didaacutetica de caraacuteter eacutetico pois na medida em que o poeta tenta ensinar
seu irmatildeo Perses Hesiacuteodo adota um juiacutezo de valor relevante em seu entorno social e inspirado
ainda nas genealogias que descrevem o nascimento dos deuses
12 (A) ELEMENTO POEacuteTICO NO AcircMBITO DAS REPETICcedilOtildeES E SUAS
DIFERENCcedilAS
Denominamos poeacuteticos primeiramente aqueles aspectos da obra de Hesiacuteodo que
vinculamos agraves formas de composiccedilatildeo proacuteprias da tradiccedilatildeo oral Esta vasta tradiccedilatildeo que eacute muito
maior do que Hesiacuteodo e Homero comunica-se por uma meacutetrica especiacutefica que eacute a do
hexacircmetro datiacutelico Tambeacutem se utiliza de forma recorrente da invocaccedilatildeo agraves Musas como uma
estrateacutegia de rememoraccedilatildeo que daacute garantia agrave narrativa no sentido de que eram as Musas as
deusas responsaacuteveis pela rememoraccedilatildeo e inspiraccedilatildeo dos versos que seriam entoados Aleacutem
disso a invocaccedilatildeo criava a imagem de um momento de performance presentificava uma voz
poeacutetica evidenciava que o aedo estava cantando sob inspiraccedilatildeo das Musas
O nuacutecleo poeacutetico perpassa pela forma da composiccedilatildeo e transmissatildeo oral do poema
utilizando-se aleacutem da meacutetrica de um conjunto de outras ferramentas de origem oral Satildeo
ferramentas da versificaccedilatildeo tradicional tambeacutem encontradas em Homero e outros poetas
arcaicos Uma possiacutevel apresentaccedilatildeo da poeacutetica de Hesiacuteodo passaria entatildeo por um estudo de
como o poeta utilizaria essa arte dos hexacircmetros para produzir sua oralidade Para tanto
devemos observar como se daacute de forma geral esse metro essa medida de oralidade dentro dessa
tradiccedilatildeo
A partir da segunda deacutecada do seacuteculo XX com as pesquisas de Milman Parry que
estudou a estrutura da poesia oral servo-croata na antiga Iugoslaacutevia e que se dedicou tambeacutem
agrave poesia de Homero foi repensado aquilo que acreditaacutevamos ser a tradiccedilatildeo homeacuterica e arcaica
M Parry reestruturou todo o histoacuterico daquilo que ficou conhecido como ldquoa questatildeo homeacutericardquo
a saber atraveacutes do estudo de repeticcedilotildees e composiccedilotildees formulares Parry fundamentou a
26
essecircncia oral e tradicional dos versos homeacutericos M Parry o fez sistematizando a obra homeacuterica
atraveacutes de um conjunto de conceitos que se explicam com o pressuposto de que a poesia
homeacuterica foi composta no seio da oralidade como mostra o comentaacuterio de Adam Parry
In Homer Parry demonstrates whole systems of conjunction-verb phrases used over and again in the same way in the same part of the line to express a like idea systems which in their length and in their thrift have no counterpart in any literary verse (hellip) Analogy the formation of new formulary expressions on the model of particular words and of the sound-pattern of old formulary expressions is Parry argued the creative force in the formation of the epic style (A PARRY 1971 p xxvii-xxviii)
Milman Parry fundamentou portanto uma espeacutecie de reviravolta nos estudos
homeacutericos Estabeleceu seu status original de composiccedilatildeo oral formular dentro de uma dada
tradiccedilatildeo que seguia estas regras formulares como artifiacutecio de memoacuteria e composiccedilatildeo Essas
foacutermulas nada mais satildeo que ldquoa group of words which is regularly employed under the same
metrical conditions to express a given essential ideardquo (A PARRY 1971 p xxix)
M Parry (1928) ainda em um texto importante acerca do estilo homeacuterico nos fala
acerca da importacircncia do hexacircmetro dactiacutelico na preservaccedilatildeo e modificaccedilatildeo (em nossa visatildeo
repeticcedilatildeo e diferenccedila) do texto homeacuterico (M PARRY 1928 p 5) M Parry nos diz ainda sobre
as variadas possibilidades de expressotildees dada aos poetas orais pelos hexacircmetros dactiacutelicos
A consideration of the number of expressions which form the complete predicate of a sentence and whose metrical value is macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ ending in a short vowel and of the number of other expressions which can stand as subject and whose metrical value is ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ macr macr beginning with a single consonant will give a notion of the enormous resources at the disposal of the epic poet When the context required it and when the sense allowed it he could make any combination of these expressions having thus at the same time a correct line and a complete sentence (M PARRY 1928 p 12)
Em outras palavras50 considerando-se que o verso hexacircmetro datiacutelico eacute composto de
uma sucessatildeo ordenada de siacutelabas longas (sendo cada siacutelaba longa representada pelo sinal macr
chamado maacutecron) e siacutelabas breves (sendo que estas satildeo representadas por ˘ sinal chamado
braquia) e que teoricamente uma longa equivale a duas breves conclui-se que um daacutectilo macr ˘
50 A explicaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo das foacutermulas homeacutericas que apresento em seguida devo agrave adaptaccedilatildeo de um material didaacutetico (natildeo publicado) do Prof Alessandro Rolim de Moura que por sua vez baseia-se em Parry (1928)
27
˘ pode ser substituiacutedo por um espondeu macr macr Assim sendo a estrutura abstrata de um hexacircmetro
a seguinte
macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr
macr macr macr macr macr macr macr macr macr macr os iniacutecios de verso τὸν δ ἠμείβετ ἔπειτα macr macr macr ˘ ˘ macr ˘ e τὸν δ αὖτε προσέειπε macr macr macr ˘ ˘ macr ˘ encaixam-se por exemplo com
πολύτλας δῖος Ὀδυσσεύς ˘ macr macr macr ˘ ˘ macr macr ποδάρκης δῖος Ἀχιλλεύς ˘ macr macr macr ˘ ˘ macr macr
ἄναξ ἀνδρῶν Ἀγαμέμνων ˘ macr macr macr ˘ ˘ macr macr
θεὰ γλαυκῶπις Ἀθήνη macr macr macr ˘ ˘ macr macr
Θέτις κατὰ δάκρυ χέουσα ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr
Por sua vez o seguinte iniacutecio de verso τὸν δ ἀπαμειβόμενος προσέφη macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr teraacute de se encaixar com outras sequecircncias nome + epiacuteteto
κρείων Ἀγαμέμνων macr macr ˘ ˘ macr macr
πόδας ὠκὺς Ἀχιλλεύς ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr νεφεληγερέτα Ζεύς ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr κρατερὸς Διομήδης ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr πολύμητις Ὀδυσσεύς ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr
28
Comparem-se as foacutermulas de iniacutecio de verso acima com estas outras expressando
outras accedilotildees essenciais da narrativa αὐτὰρ ὁ μερμήριξε macr ˘ ˘ macr macr macr ˘ ὣς φάτο ῥίγησεν δὲ macr ˘ ˘ macr macr macr ˘ τὴν μὲν ἰδὼν γήθησε macr ˘ ˘ macr macr macr ˘ ἦ τοι ὁ πῖνε καὶ ἦσθε macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ αὐτὰρ ὁ πῖνε καὶ ἦσθε macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ αὐτὰρ ἐπεὶ τό γ ἄκουσε macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr ˘ τὸν δ αὖτε προσέειπε macr macr macr ˘ ˘ macr ˘
Elas se encaixam com eg πολύτλας δῖος Ὀδυσσεύς ˘ macr macr macr ˘ ˘ macr macr
Mapeando essas foacutermulas na poesia homeacuterica M Parry constroacutei os alicerces desta
revoluccedilatildeo que levou a ver a poesia homeacuterica como parte de uma tradiccedilatildeo oral Ele demonstra
que as foacutermulas como por exemplo aquelas compostas de nome proacuteprio e epiacuteteto obedecem
a um princiacutepio de economia na criaccedilatildeo dos versos Ou seja dentre uma multiplicidade de opccedilotildees
estiliacutesticas imaginaacuteveis para se transmitir um determinado conteuacutedo para cada sentido e cada
sede meacutetrica a poesia homeacuterica tinha praticamente apenas uma foacutermula
Havia assim um repertoacuterio fechado de foacutermulas para resolver um verso ou mesmo
uma sequecircncia de versos foacutermulas que se encaixavam em um esquema riacutetmico preacute-moldado e
preacute-concebido no qual por exemplo ao iniciar um verso com uma determinada expressatildeo
significando basicamente ldquorespondeurdquo que ocupava a parte do hexacircmetro ateacute o final de
hemistiacutequio definido pela cesura feminina (macr macr macr ˘ ˘ ) Homero possuiacutea uma foacutermula pronta
para cada personagem importante encaixando-se tal foacutermula no que faltava em termos de
unidades riacutetmicas para completar um hexacircmetro perfeito (por exemplo ποδάρκης δῖος
Ἀχιλλεύς ˘ macr macr macr ˘ ˘ macr macr) com o sujeito gramatical de ldquorespondeurdquo
No instante em que o aedo procedia agrave sua composiccedilatildeo oral a saber uma composiccedilatildeo
que requeria certa rapidez e imediatez durante a performance o mesmo natildeo ocuparia um vasto
tempo escolhendo aquilo que seria recitado (ao contraacuterio por exemplo de um poeta que diante
da sua folha em branco possui um tempo bem maior de escrita e depuraccedilatildeo daquilo que estaacute
sendo escrito) pois seu material poeacutetico jaacute estava previamente moldado e articulado para ser
montado no momento da apresentaccedilatildeo
29
A tradiccedilatildeo da qual Homero fazia parte carregava numa espeacutecie de arquivo mental de
memoacuteria cultural um repertoacuterio de foacutermulas repassadas oralmente Esse repertoacuterio de foacutermulas
inclusive teraacute muito a contribuir com a ideia de κλέος como veremos mais agrave frente Mas jaacute
podemos adiantar que aquilo que se repete (e ao se repetir muitas vezes se torna famoso) eacute
exatamente um dos atributos do κλέος Ou seja o κλέος aleacutem de ser resultado de vaacuterias
repeticcedilotildees eacute tambeacutem parte estruturante da repeticcedilatildeo pois pode ser encarado como elemento
constituinte de uma expressatildeo versificada que rememora algo pode ser encarado como uma
das peccedilas que moldam a edificaccedilatildeo dos versos uma parte do encaixe que constroacutei as
composiccedilotildees orais
Albert Lord (que foi disciacutepulo de M Parry e continuou suas pesquisas) inclusive
salienta que esses poetas carregavam na memoacuteria esquemas maiores chamados de ldquotemasrdquo (ver
LORD 2000 p 68-98) que satildeo agrupamentos de expressotildees que se repetem Como argumenta
Jones (2013 p 29) haacute ldquopadrotildees de accedilatildeordquo em Homero ldquotijolos de construccedilatildeo de cenasrdquo como
por exemplo as cenas de chegada de um personagem que se constroem assim (sendo A e B
personagens) ldquoA parte A chega A encontra B B estaacute fazendo algo outros tambeacutem estatildeo
ocupados A falardquo
A teoria de Milman Parry se completa entatildeo atraveacutes das pesquisas de seu disciacutepulo
Albert Lord Este aplicou a teoria das composiccedilotildees formulares principalmente aos cantores
boacutesnios descritos em The singer of tales (LORD 2000) ajudando assim a criar uma teoria mais
ampla e aprofundada dos nuacutecleos baacutesicos do eacutepos bem como de sua inserccedilatildeo na tradiccedilatildeo grega
Esta teoria mais ampla se daacute por duas comprovaccedilotildees chamadas de provas positivas e negativas
da composiccedilatildeo tradicional homeacuterica A prova positiva se daacute exatamente por achar-se no Leste
Europeu contemporacircneo um fenocircmeno comparaacutevel agrave tradiccedilatildeo oral antiga que eacute a capacidade
de memorizaccedilatildeo e criaccedilatildeo da diferenccedila poeacutetica atraveacutes de sutis alteraccedilotildees de canccedilotildees que
comportam por vezes ateacute quase trinta mil versos com esquemas formulares parecidos com os
da tradiccedilatildeo homeacuterica O bardo desta regiatildeo oferece uma prova positiva quanto agrave composiccedilatildeo e
performance do aedo antigo atraveacutes de esquemas similares
Jaacute a prova negativa dada por Lord eacute a de apontar que a eacutepica posterior a Homero ainda
dentro do mundo antigo mas jaacute num ambiente letrado abdicou desses esquemas formulares
pela valorizaccedilatildeo da escrita em detrimento do oral Autores como Apolocircnio de Rodes e Virgiacutelio
por mais que utilizem hexacircmetros dactiacutelicos abdicaram desse princiacutepio da economia possuindo
diversas expressotildees diferentes para sentidos idecircnticos ou proacuteximos que se encaixam no mesmo
30
lugar do metro Entretanto natildeo devemos acreditar que o processo de composiccedilatildeo oral eacute algo
mecacircnico uma mera montagem impensada de blocos textuais prontos Comentando sobre a
tradiccedilatildeo oral por ele estudada afirma Lord (2000 p 36)
The formulas are the phrases and clauses and sentences of this specialized poetic grammar The speaker of this language once he has mastered it does not move any more mechanically within it than we do in ordinary speech (hellip) the particular formula itself is important to the singer only up to the time when it has planted in his mind its basic mold When this point is reached the singer depends less and less on learning formulas and more and more on the process of substituting other words in the formula patterns
Hesiacuteodo tambeacutem se enquadra nesse esquema eacutepico formular oral pois tambeacutem se utiliza
dos mesmos princiacutepios de economia Utiliza ateacute mesmo exatos compostos formulares presentes
tambeacutem em Homero construindo assim seu proacuteprio nuacutecleo poeacutetico como seu eacutepos Hesiacuteodo
edifica assim como Homero essas estruturas modulares mas as direciona para um discurso
moral pedagoacutegico e teogocircnico proacuteprio
G P Edwards em sua obra The language of Hesiod in its tradicional context (1971)
apresenta o poeta Hesiacuteodo como pertencente a essa mesma tradiccedilatildeo oral e formular agrave qual
Homero pertencia e que segundo esses autores (M Parry Lord e Edwards) era mais ampla
que Homero e Hesiacuteodo51 Edwards argumenta que a linguagem de Hesiacuteodo eacute similar agrave de
Homero numa mistura artificial de dialetos que se serve de foacutermulas Inclusive Edwards
apresenta todo um esquema comparativo de foacutermulas que se repetem tanto em Hesiacuteodo como
em Homero De muitas sistematizaccedilotildees que Edwards propotildee duas nos interessam mais e as
citamos aqui
Tabela 1 (Expressotildees encontradas na Teogonia e na Iliacuteada)
51 O que fica evidente pelo estudo de Janko (1982) que faz uma comparaccedilatildeo linguiacutestica e estiliacutestica sistemaacutetica entre Homero Hesiacuteodo e os hinos homeacutericos incluindo tambeacutem observaccedilotildees sobre a eacutepica arcaica mais escassamente atestada como os Cantos ciacuteprios
31
A cada 50 versos da Teogonia
comeccedilando em52
Nuacutemero total de Formas
linguiacutesticas ocorrendo
Formas Linguiacutesticas encontradas na
Iliacuteada (estas como percentagem do
total)
Formas Linguiacutesticas natildeo encontradas na
Iliacuteada (meacutedia por linha)
1 330 245 (74) 85 (17) 51 335 254 (76) 81 (16)
101 363 293 (81) 70 (14) 151 344 274 (80) 70 (14) 201 353 278 (78) 75 (15) 251 331 242 (73) 89 (18) 301 336 248 (74) 88 (18) 351 352 262 (74) 90 (18) 401 357 301 (84) 56 (11) 451 348 290 (83) 58 (12) 501 325 248 (76) 77 (15) 551 335 270 (81) 65 (13) 601 349 301 (86) 48 (10) 651 347 283 (82) 64 (13) 701 343 278 (81) 65 (13) 751 339 282 (83) 57 (11) 801 349 279 (80) 70 (14) 851 333 265 (80) 68 (14) 901 322 245 (76) 77 (15) 951 303 244 (74) 79 (16)
1001 -1022 128 97 (76) 31 (14) Total 6922 5459 (789) 1463 (14)
Conforme o trabalho de Cassio (2009) a linguagem empregada por Hesiacuteodo apresenta
por exemplo os eolismos que encontramos em Homero como os infinitivos atemaacuteticos com a
com a terminaccedilatildeo ndashμεναι e por vezes ateacute tem formas jocircnicas natildeo atestadas em Homero como
Op 68 Ἑρμείην vs a forma homeacuterica Ἑρμείας -αν (CASSIO 2009 p 183) Cassio ainda
admite existir pouca ou nenhuma evidecircncia para a tese de que Hesiacuteodo teria versificado numa
suposta tradiccedilatildeo continental beoacutecia de eacutepica oral em oposiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo jocircnica homeacuterica Uma
52 Adaptado de Edwards (1971)
32
das evidecircncias que reforccedilam a posiccedilatildeo de Cassio eacute o fato de que genitivos em -ᾱο (para palavras
como Τειρεσίαο Βορέαο νεφεληγερέταο) que satildeo caracteriacutesticos do dialeto beoacutecio e que
seriam supostamente o falar nativo de Hesiacuteodo encontram-se em maior proporccedilatildeo em Homero
do que no corpus hesioacutedico (CASSIO 2009 p 195)
Observamos que a tabela 1 nos oferece uma visatildeo clara de que a grande maioria das
formas presentes na Teogonia satildeo encontradas na Iliacuteada (das 6922 formas hesioacutedicas 5459
estariam na Iliacuteada) o que reflete objetivamente que a tradiccedilatildeo na qual Homero estava inserido
tambeacutem era a de Hesiacuteodo Ainda conforme Cassio observamos a tese de que a tradiccedilatildeo
hesioacutedica quis parecer ldquomais homeacuterica que Homerordquo Talvez se explique entatildeo do ponto de
vista linguiacutestico a necessidade de a tradiccedilatildeo hesioacutedica falar para o mesmo puacuteblico que Homero
possuiacutea falar assim para um puacuteblico pan-helecircnico Vejamos agora outra forma de
quantificaccedilatildeo53
Tabela 2 (Repeticcedilotildees na obra de Hesiacuteodo)
Repeticcedilotildees do grupo de versos
Repeticcedilotildees de versos
Repeticcedilotildees de expressotildees antes da cesura
Repeticcedilotildees de expressotildees depois da cesura
Repeticcedilotildees de expressotildees no meio do verso
Repeticcedilotildees ocorrendo total ou parcialmente em diferentes posiccedilotildees
Total
Th (1022 versos) 5 38 74 206 7 8 338
Op (828 versos) 1 9 32 64 1 3 110 Sc (480 versos) 1 10 22 40 3 3 79 Total (2330 versos) 7 57 128 310 11 14 527
A Tabela 2 indica o componente de repeticcedilotildees dos versos hesioacutedicos Satildeo repeticcedilotildees de
grupo de versos versos individuais hemistiacutequios outras expressotildees dentro das proacuteprias obras
hesioacutedicas descrevendo seu estilo formular Podemos exemplificar com Op 149 = Th 673 ἐξ
53 Adaptado de Edwards (1971)
33
ὤμων ἐπέφυκον ἐπὶ στιβαροῖσι μέλεσσιν Tradutores mais recentes influenciados pelas teorias
oralistas preocupam-se inclusive em reproduzir em portuguecircs as repeticcedilotildees existentes no
original de modo a evidenciar o estilo formular do grego (eacute o caso de Rolim de Moura 2012)
de forma que mesmo o leitor sem formaccedilatildeo em claacutessicas pode observar o fenocircmeno
Eacute de se notar que algumas repeticcedilotildees aparentam ser foacutermulas exclusivamente de
Hesiacuteodo como ἀνδράσιν ἀλφήστηισιν54 que ocorre na Teogonia e em Os trabalhos e os dias
e outras que aparecem em Hesiacuteodo e em outros espeacutecimes de eacutepica arcaica como διάκτορος
Ἀργειφόντης que ocorre em Os trabalhos e os dias e tambeacutem na Iliacuteada na Odisseia e no Hino
homeacuterico 5 a Afrodite A flexibilidade do sistema pode ser observada em ἀληθέα γηρύσασθαι
(Teogonia) ἀληθέα μυθήσασθαι (Iliacuteada Odisseia Hino homeacuterico a Demeacuteter) e ἐτήτυμα
μυθήσασθαι (Hino homeacuterico a Demeacuteter Os trabalhos e os dias)55 Tambeacutem o famoso paralelo
entre Th 27 ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα e Hom Od 19203 ἴσκε ψεύδεα
πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα que testemunha em favor de uma concepccedilatildeo do estilo oral como
aberto a reconstruccedilotildees de foacutermulas aplicaacuteveis a contextos variados
Tambeacutem as cenas tiacutepicas ou ldquotemasrdquo podem ser atestadas em Hesiacuteodo Notam-se na
Teogonia por exemplo na narrativa da titanomaquia alguns elementos atestados como blocos
narrativos tiacutepicos das narrativas de batalha homeacutericas e das aristias dos heroacuteis da Iliacuteada Temos
o armamento particular do ldquoheroacuteirdquo (Th 501-506) os conselhos de guerra e banquetes que vecircm
antes da batalha (Th 639-664) a intervenccedilatildeo decisiva de Zeus como aristia depois que os Cem-
Braccedilos equilibraram a batalha (Th 687-704)56
Poderiacuteamos ainda apontar uma outra caracteriacutestica que insere Hesiacuteodo dentro da
tradiccedilatildeo oral a qual Homero tambeacutem representa que seria a chamada composiccedilatildeo em anel
Trata-se de um recurso atraveacutes do qual uma determinada parte do texto eacute delimitada pela
repeticcedilatildeo de um certo elemento temaacutetico que muitas vezes cria um anel de repeticcedilotildees que pode
ser representado no seguinte ordenamento digamos A-B-C-D-C-B-A Um esquema assim
pode ser observado em accedilatildeo ateacute na estruturaccedilatildeo da Iliacuteada como um todo que se inicia e termina
com um resgate nos cantos 1 e 24 (de Criseide e do cadaacutever de Heitor respectivamente)
54 A explicaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo das foacutermulas homeacutericas e hesioacutedicas que apresento em seguida devo agrave adaptaccedilatildeo de um material didaacutetico (natildeo publicado) do Prof Alessandro Rolim de Moura que por sua vez baseia-se em Edwards (1971) e Janko (1982) 55 Janko (1982 p 26) 56 BLAISE ROUSSEAU 1996 p 218 222
34
Numa camada interior continuando a simetria temos importantes cenas de sonhos
desencadeadores de accedilatildeo (o sonho de Agamecircmnon no canto 2 e o de Aquiles no 23) A
composiccedilatildeo em anel eacute um indicador e componente da tradiccedilatildeo pois eacute uma teacutecnica que
possibilita ao aedo o controle sobre grandes passagens criando assim a consciecircncia da
necessidade de retorno a um tema jaacute mencionado anteriormente Eacute uma forma de se criar via
memoacuterias temaacuteticas a coesatildeo do texto oral Nota-se tambeacutem que a eacutekphrasis do escudo de
Aquiles no canto 18 tem estrutura em anel comeccedilando e terminando com a descriccedilatildeo de
elementos basilares da natureza (no iniacutecio por exemplo todas as constelaccedilotildees no final o
Oceano ele proacuteprio um anel que rodeia o escudo tal como o faz com o mundo)
Jaacute em Hesiacuteodo usemos como exemplo o sistema mostrado por Nicolai (1964 p 208)
para Os trabalhos e os dias 564-617 Esse trecho delimitado por referecircncias agrave passagem do ano
e agrave viticultura constroacutei-se segundo aneacuteis concecircntricos no esquema A-B-C-B-A indicados por
Nicolai pelas palavras-chave ldquovinho-cereais-descanso-cereais-vinhordquo O trecho tem no
segmento ldquovinhordquo inicial (vv 564-570) referecircncia ao astro Arcturo (566) que eacute mencionado
novamente no trecho ldquovinhordquo final (vv 609-617) desta vez no v 610 O esquema eacute fortemente
marcado pela referecircncia agrave observaccedilatildeo dos astros (aleacutem de Arcturo tambeacutem as Plecirciades e Oacuterion
sendo estes astros que tendem a se concentrar nos extremos do passo) ocupando Siacuterius a
posiccedilatildeo central no segmento medial ldquodescansordquo (582-596)57
Como jaacute citamos na apresentaccedilatildeo desse trabalho a obra de Deleuze e Guattari acerca da
diferenccedila e repeticcedilatildeo como meacutetodo ontoloacutegico de explicaccedilatildeo da realidade aqui nos faz enxergar
algo importante Ela nos faz observar o papel das repeticcedilotildees dentro da tradiccedilatildeo homeacuterica e
hesioacutedica natildeo no sentindo de pecarmos pelo anacronismo ao enxergar o mundo da Antiguidade
por meio de um olhar poacutes-estruturalista mas simplesmente por observar que as repeticcedilotildees de
foacutermulas de temas de expressotildees formulares acabaram por estabelecer a diferenccedila criativa
atraveacutes dessa proacutepria tradiccedilatildeo Ao se repetir Homero pequenas diferenccedilas textuais surgiram e
essas diferenccedilas acabaram por inspirar novas repeticcedilotildees e novas diferenccedilas e assim tambeacutem
em Hesiacuteodo
Guardaremos esse movimento de repeticcedilatildeo e diferenciaccedilatildeo para uma parte posterior do
nosso trabalho Por hora gostariacuteamos de ressaltar que esses foram alguns dos elementos que
57 Veremos mais agrave frente ao falar do κλέος no texto hesioacutedico que o esquema de repeticcedilotildees em anel tambeacutem pode ser observado na descriccedilatildeo das Musas feita por Hesiacuteodo na Teogonia
35
inserem Hesiacuteodo numa tradiccedilatildeo poeacutetica que remete agrave mesma tradiccedilatildeo de Homero e que tambeacutem
estabelecem aquilo que chamamos de nuacutecleo poeacutetico na obra de Hesiacuteodo Vejamos agora os
nuacutecleos moral pedagoacutegico e teogocircnico 13 (B) O NUacuteCLEO MORAL PEDAGOacuteGICO E TEOGOcircNICO A CRIacuteTICA QUE ESTARIA
POR VIR POR PARTE DE ALGUNS PENSADORES
Os aspectos moral pedagoacutegico e teogocircnico satildeo trecircs elementos quase que inseparaacuteveis
no texto Hesioacutedico Haacute um nuacutecleo de sabedoria moral-pedagoacutegica-teogocircnica que Hesiacuteodo traz
para a educaccedilatildeo do grego comum ao poetizar aspectos da vida cotidiana aspectos de uma
educaccedilatildeo pelos costumes Parece ser de Hesiacuteodo a voz autoral de um tipo de homem de parte
de uma sociedade que graccedilas ao comeacutercio e agrave agricultura pocircde almejar a uma vida que se
constroacutei atraveacutes do trabalho e do acuacutemulo de produccedilatildeo agriacutecola Podemos conjecturar essa
hipoacutetese biograacutefica pelos proacuteprios relatos de Hesiacuteodo como jaacute dito e tambeacutem por uma fortuna
criacutetica que coloca as temaacuteticas do trabalho da economia domeacutestica da justiccedila como assuntos
do cotidiano essenciais agrave poesia de Hesiacuteodo Mas por outro lado devemos lembrar que talvez
esses aspectos sejam tambeacutem criaccedilatildeo ficcional Aleacutem disso podemos verificar uma fortuna
criacutetica que tomou Hesiacuteodo como um interlocutor de certa moralidade (algo que ficaraacute evidente
ao falarmos da relaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Xenoacutefanes)
Natildeo eacute somente a obra de Hesiacuteodo como poeta mas tambeacutem como voz de um cidadatildeo
comum uma condiccedilatildeo prosaica dessa voz autoral do poema hesioacutedico por ele mesmo
identificada O caraacuteter autobiograacutefico do discurso hesioacutedico pode ser uma estrateacutegia narrativa
da tradiccedilatildeo poeacutetica hesioacutedica isto eacute de um tipo de discurso elaborado por diversos aedos no
decorrer de uma longa tradiccedilatildeo oral a qual constroacutei uma figura lendaacuteria como a autoridade de
que proviria esse discurso
Esse Hesiacuteodo entatildeo seria antes o nome de uma tradiccedilatildeo de um tipo de discurso ou
melhor a personificaccedilatildeo por meio de uma voz poeacutetica desse discurso Tal tese pode ser
encontrada em Nagy (2009 p 272-273) como jaacute lembramos anteriormente Mas cabe ressaltar
sendo Hesiacuteodo o autor ou Hesiacuteodo um representante da tradiccedilatildeo mesmo assim seu discurso
moral torna-se um discurso consolidado no solo da Antiguidade
Em Os trabalhos e os dias observamos o poeta apresentar a tarefa do crescimento social
atraveacutes do trabalho como uma escalada aacuterdua natildeo somente no que diz respeito ao trabalho
36
exercido e suas teacutecnicas mas tambeacutem pelos inevitaacuteveis embates com uma aristocracia que surge
como principal forccedila de estruturaccedilatildeo social Frente a esse poder muitas vezes injusto de uma
aristocracia desmedida eclode nos versos deste poeta o poder de Zeus como encarnaccedilatildeo de
justiccedila A justiccedila mortal tem sua voz e ampla ressonacircncia na poesia de Hesiacuteodo bem como a
justiccedila dos imortais A justiccedila associada a Zeus na voz do poeta pode ser uma das chaves de
leitura da sua obra conectando inclusive em seus aspectos morais Os trabalhos e os dias com
a Teogonia Cada um agrave sua maneira transcreve a justiccedila dos homens e a justiccedila divina dentro de
um programa moral com seus aspectos cotidianos e coacutesmicos
Aliaacutes um dos artifiacutecios utilizados por Hesiacuteodo para tratar da moralidade eacute a faacutebula
Hesiacuteodo eacute considerado por Werner Jaeger no universo da literatura grega aquele que insere
tambeacutem a primeira faacutebula (aicircnos) no sentido de exemplificar as questotildees que para ele satildeo
capitais justiccedila (diacuteke) e trabalho (eacutergon) Sobre essas intervenccedilotildees em primeira pessoa e a
importacircncia da justiccedila como embasamento moral comenta Werner Jaeger
Em Hesiacuteodo introduz-se pela primeira vez o ideal que serve como ponto de cristalizaccedilatildeo de todos estes elementos e adquire uma elaboraccedilatildeo poeacutetica em forma de epopeia a ideia do direito A propoacutesito da luta pelos proacuteprios direitos contra as usurpaccedilotildees do seu irmatildeo e a venalidade dos nobres expande-se no mais pessoal de seus poemas os Eacuterga uma feacute apaixonada no direito A grande novidade desta obra estaacute em o poeta falar na primeira pessoa Abandona a tradicional objetividade da epopeia e torna-se porta voz de uma doutrina que maldiz a injusticcedila e bendiz o direito (JAEGER 1995 p 63)
Jaeger apresenta Hesiacuteodo como um racionalizador do direito atraveacutes da linguagem do
eacutepos Essa ideia de racionalizaccedilatildeo do discurso poeacutetico pode ser definida em Hesiacuteodo como uma
possiacutevel articulaccedilatildeo preacute-filosoacutefica da literatura na transiccedilatildeo da cultura iletrada agrave cultura poacutes-
alfabeacutetica58 principalmente uma articulaccedilatildeo preacute-filosoacutefica de conteuacutedo moral
A estrutura moral da Teogonia bem como de Os trabalhos e os dias falando de uma
forma extremamente condensada denota um complexo recorte de mitos genealogias
conselhos valores morais mas principalmente uma ampla estrutura e visatildeo de mundo
58 Essa eacute uma opiniatildeo descrita tambeacutem por Eric Havelock que trata de Hesiacuteodo ao falar da tradiccedilatildeo poacutes-letrada ldquoA fala iletrada favorecera o discurso descritivo da accedilatildeo a poacutes-letrada alterou o equiliacutebrio em favor da reflexatildeo A sintaxe do grego comeccedilou a adaptar-se a uma possibilidade crescente de enunciar proposiccedilotildees em lugar de descrever eventos Esse foi o traccedilo fundamental do legado do alfabeto agrave cultura poacutes-alfabeacuteticardquo (HAVELOCK 1996 p 16)
37
orquestrada pelo canto das Musas e seu apelo para o valor da memoacuteria no ofiacutecio de poeta que
canta as linhagens teogocircnicas e o mundo humano
O poeta Hesiacuteodo se coloca como inserido na vida e existecircncia dos deuses assim como
em uma trajetoacuteria comum mundana Ao cantar de forma especiacutefica a gloacuteria de Zeus e das
Musas articula nos versos uma justiccedila que amplamente falaraacute por meio da apresentaccedilatildeo de
outros personagens uma justiccedila que se daacute natildeo somente no panteatildeo divino mas tambeacutem nos
espaccedilos puacuteblicos e ciacutevicos Acerca da suposta moral presente no texto hesioacutedico nos apresenta
Dickie (1978 p 91)59
ldquoMuch has been written about the meaning of the word dike in early Greek poetry but there is no agreement about its meaning One feature common to a number of very different accounts of the meaning of the term however is the belief that diacuteke and adikiacutea and their cognates are devoid of moral significancerdquo
Apesar de termos que levar em conta a cautela sugerida por Dickie a estrutura moral
dos Eacuterga que inicia tambeacutem com um proecircmio invocando as Musas e a Zeus retrata uma seacuterie
de mitos que expressam o que seria uma espeacutecie de norte moral Um desses nortes pode ser
por exemplo o tratamento e relaccedilatildeo que o poeta faz acerca duas lutas (eacuteris60) narradas por
Hesiacuteodo Essas lutas sinalizam um caminho para a justiccedila tambeacutem sob a inspiraccedilatildeo das Musas
e de Zeus As lutas ainda reaparecem apoacutes o mito de Prometeu e o mito das cinco raccedilas As
duas lutas apresentam duas saiacutedas morais para a resoluccedilatildeo dos problemas humanos e divinos
como observamos em Op 11-16
Οὐκ ἄρα μοῦνον ἔην ᾿Ερίδων γένος ἀλλ ἐπὶ γαῖαν εἰσὶ δύωmiddot τὴν μέν κεν ἐπαινήσειε νοήσας
59 O autor ainda faz um breve resumo de como a moral se relaciona com a diacuteke em alguns autores que estudam o texto hesioacutedico ldquoThus Kurt Latte says that the term is not employed for moral evaluation in Homer Lionel Pearson in his Popular Ethics in Ancient Greece says of the words themis and diacuteke in Homer lsquoThe language of the Homeric poems definitely forbids the conclusion that the words mean anything like natural law or self-evident justice In due time as later literature shows these concrete words become abstract and acquire ethical implicationsrsquo E A Havelock in a paper whose thesis is that the term dikaiosune was introduced into Greek in the mid-fifth century writes that the appearance of the word lsquomarks the beginning of the internalization of a moral conception hitherto viewed from a purely social and external point of viewrsquo On this thesis dike is not a moral term In two articles tracing the history of the word dike from Homer to the early fifth century Michael Gagarin has argued that in Homer and Hesiod dike can mean lsquocharacteristicrsquo or lsquocharacteristic behaviorrsquo or lsquosettlementrsquo or lsquolegal processrsquo and that the word remains primarily a legal term without general moral application at least until 480 BCrdquo 60 Discutiremos de forma mais ampla ao falarmos das eacuterides de Hesiacuteodo e Heraacuteclito
38
ἡ δ ἐπιμωμητήmiddot διὰ δ ἄνδιχα θυμὸν ἔχουσιν ἡ μὲν γὰρ πόλεμόν τε κακὸν καὶ δῆριν ὀφέλλει σχετλίηmiddot οὔ τις τήν γε φιλεῖ βροτός ἀλλ ὑπ ἀνάγκης ἀθανάτων βουλῇσιν ῎Εριν τιμῶσι βαρεῖαν (Ora natildeo houve apenas um nascimento de Lutas mas sobre a terra existem duas Quando algueacutem observa uma delas considera louvaacutevel a outra eacute digna de censura elas tecircm acircnimos diversos Pois uma promove a guerra maacute e a disputa eacute a cruel Nenhum mortal a ama mas por necessidade pela vontade dos deuses tecircm de honrar a Luta pesada)
As soluccedilotildees morais para aquilo que o poeta iraacute fundamentar como as relaccedilotildees cotidianas
iratildeo se mostrar pelas eacuterides a primeira (louvaacutevel) a segunda (digna de censura promove guerra
maacute e disputa eacute cruel nenhum mortal a ama mas eacute honrada atraveacutes da vontade dos deuses) As
duas lutas estabelecem os pressupostos para uma moral do trabalho das relaccedilotildees familiares do
trabalho da terra conselhos praacuteticos no dia-a-dia das relaccedilotildees sociais e religiosas dos dias que
se passam na vida humana no horizonte do trabalho bem como no enfrentamento dos
problemas de Hesiacuteodo com seu irmatildeo Perses Hesiacuteodo tenta educar e estabelecer um norte moral
para Perses Mas devemos observar satildeo pressupostos divinos atuando em situaccedilotildees mundanas
Se a Teogonia eacute a apresentaccedilatildeo de uma cosmogonia em Os trabalhos e os dias podemos
tambeacutem verificar um eacutethos haacutebitos e costumes descritos por Hesiacuteodo regidos por Zeus Na
parte desse poema conhecida como ldquoCalendaacuterio agriacutecolardquo (vv 383-617) por exemplo satildeo
expostas as rotinas esperadas no trabalho do agricultor durante as quatro estaccedilotildees para se obter
o maacuteximo da terra
Ainda como informaccedilatildeo da vida praacutetica logo depois Hesiacuteodo estabelece um possiacutevel
calendaacuterio para navegaccedilatildeo bem como conselhos administrativos relativos agrave famiacutelia e agrave religiatildeo
Eacute uma espeacutecie de retrato poeacutetico da vida praacutetica afirmaccedilatildeo de virtudes necessaacuterias ao bom
agricultor Essa eacute a razatildeo de ser do trabalho meio de superaccedilatildeo das dificuldades da vida pela
gloacuteria de Zeus que garante e eacute mantenedor da justiccedila
No conjunto da obra de Hesiacuteodo podemos observar uma espeacutecie de crenccedila na virtude
humana e principalmente a ideia de que esta virtude pode ser ensinada transmitida tendo a
mediaccedilatildeo de Zeus e a justiccedila deste como espelho a virtude que estaacute delineada tanto no dia-a-
dia dos mortais como na teogonia dos deuses que culmina na ordenaccedilatildeo racional do mundo
comandada por Zeus
39
Na conexatildeo com essa moral e pedagogia se insere a cada linha de Hesiacuteodo o papel
fundamental dos deuses em suas linhagens principalmente a figura central de Zeus
Eacute exatamente contra esses aspectos morais pedagoacutegicos e teogocircnicos que surgiratildeo as
criacuteticas mais contundentes de Xenoacutefanes e Heraacuteclito como pensadores que estatildeo de certa
maneira tentando destronar Hesiacuteodo como um dos grandes educadores (e aqui educaccedilatildeo de
forma ampla) da Greacutecia Satildeo discussotildees que surgiratildeo em capiacutetulo especiacutefico mas que aqui
podemos adiantar como criacuteticas que seratildeo feitas por Xenoacutefanes especificamente no acircmbito
moral (por mais que ressoe em outras partes do texto hesioacutedico) e que Heraacuteclito faraacute no
ambiente cosmoloacutegico (de certa forma teogocircnico) De certa maneira satildeo mais dois marcadores
da grande presenccedila da obra hesioacutedica no mundo antigo e marcadores que criaratildeo uma repeticcedilatildeo
dos argumentos hesioacutedicos por parte dos preacute-socraacuteticos bem como uma diferenccedila atraveacutes de
seus proacuteprios posicionamentos teoacutericos
As concepccedilotildees morais-pedagoacutegicas-teogocircnicas permeiam assim o texto hesioacutedico
marcando de forma clara a presenccedila de Hesiacuteodo na tradiccedilatildeo do eacutepos
14 A POESIA MORAL-PEDAGOacuteGICA-TEOGOcircNICA DE HESIacuteODO NA
MEMORIZACcedilAtildeO E NA LINGUAGEM DO EacutePOS
As estrateacutegias de memorizaccedilatildeo pela repeticcedilatildeo de foacutermulas dentro do eacutepos da
Antiguidade revelam a capacidade que os antigos poetas tinham de tornar histoacuterias conhecidas
reconhecidas contadas e recontadas A memorizaccedilatildeo atraveacutes da cadecircncia dos versos comprova
essa necessidade de se colocar para a posteridade Falar na linguagem do eacutepos era de certa
maneira utilizar todo um repertoacuterio de memorizaccedilatildeo para o poeta e para o puacuteblico
Hesiacuteodo utilizou esse eacutepos para narrar um tipo de poesia que ficou para a posteridade a
nosso ver exaltando uma educaccedilatildeo para o homem comum descrevendo uma linhagem
teogocircnica como o eixo dessa educaccedilatildeo descrevendo assim uma moralidade especiacutefica Hesiacuteodo
traccedilou esses temas dentro da eacutepica utilizando-se tambeacutem das estrateacutegias de memorizaccedilatildeo
daquelas que jaacute compunham o arquivo puacuteblico oral presente em Homero e outros poetas da
mesma tradiccedilatildeo
Essa eacute a mecacircnica que gostariacuteamos de utilizar daqui por diante a saber como o eacutepos se
torna κλέος como dentro do espaccedilo caracteriacutestico da poesia eacutepica repetimos e construiacutemos a
fama e o renome e estruturamos o κλέος Esse eacutepos na memoacuteria e canto dos poetas passaraacute
40
primeiramente na Iliacuteada e Odisseia e depois na obra de Hesiacuteodo por uma espeacutecie de
desenvolvimento poeacutetico que assimila uma voz autoral que fala no texto
Caberaacute tambeacutem julgarmos como o κλέος do poeta em geral se apresentou na
Antiguidade na necessidade de demonstrarmos que o κλέος era algo almejado
Seratildeo entatildeo quatro momentos distintos κλέος na Iliacuteada na Odisseia em Hesiacuteodo e
nos poetas antigos Observemos como se daacute a maturaccedilatildeo da essecircncia desse κλέος nesses
respectivos momentos Comecemos com o κλέος eacutepico no texto homeacuterico
41
20 O ΚΛΕΟΣ HOMEacuteRICO ALGUMAS PRIMEIRAS QUESTOtildeES
Muitas anaacutelises e pesquisas jaacute se ocuparam do κλέος homeacuterico Satildeo anaacutelises variadas a
partir de diferentes propostas teoacutericas Passaremos por algumas delas no decorrer das proacuteximas
paacuteginas tentando demonstrar como o eacutepos se torna κλέος em Homero Jaacute antecipamos algumas
questotildees ao apresentarmos no iniacutecio do trabalho aquilo que os principais leacutexicos definem acerca
do κλέος os leacutexicos passam inevitavelmente pelos sentidos de κλέος dentro de Homero
Se um dos objetivos dessa tese eacute demonstrar as nuances do κλέος que perpassa Homero
Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito devemos enfatizar que dentro da obra homeacuterica o κλέος jaacute
apresenta um roteiro variado de sentidos que cobre um tambeacutem variado leque de personagens
As estruturas diferentes dos dois poemas Iliacuteada e Odisseia jaacute apresentam por si soacute essas
diferenccedilas de sentido Se na Iliacuteada o κλέος se estrutura principalmente na trajetoacuteria do heroacutei
Aquiles e seu embate com Heitor na Odisseia uma gama ainda mais variada de κλέα se
estrutura em torno do regresso de Odisseu Mas a nosso ver ao final dessas obras algo se repete
nessa variaccedilatildeo de sentidos algo que poderemos sintetizar como uma espeacutecie de κλέος
homeacuterico Iremos entatildeo a partir dessas paacuteginas apresentar um pouco da estrutura dos dois
poemas homeacutericos e relacionaacute-los com o κλέος mesmo sabendo que satildeo dois poemas que
apresentam distintos modelos heroicos e morais
Vejamos de forma mais especiacutefica como as primeiras poesias da tradiccedilatildeo oral homeacuterica
inserem na narrativa a ideia de κλέος e como isso impacta na histoacuteria do proacuteprio texto Um dos
principais aspectos que marcam a narrativa dos personagens homeacutericos eacute a necessidade que os
personagens tecircm de alcanccedilar as futuras geraccedilotildees e tornar-se imortais atraveacutes do canto em
conjunccedilatildeo com as Musas nas vozes dos aedos que ainda estatildeo por vir
A busca da repeticcedilatildeo futura nos versos que seratildeo novamente entoados e cantados pode
ser observada principalmente nos exemplos paradigmaacuteticos dos heroacuteis Aquiles e Odisseu Os
heroacuteis nos registros homeacutericos principalmente Aquiles e Odisseu possuem papel crucial como
centralizadores da articulaccedilatildeo desse κλέος No universo das performances eacutepicas observamos a
exaltaccedilatildeo de seus atos Eacute acerca de Aquiles e Odisseu aquilo que se ouve e repete em toda a
tradiccedilatildeo do texto homeacuterico da Iliacuteada e Odisseia e isso que se canta e escuta eacute a base de uma
cultura e educaccedilatildeo grega milenar Eacute o κλέος de ambos os heroacuteis que impulsiona a
42
macronarrativa (como diz Nagy 2006) dos poemas e eacute atraveacutes dessa macronarrativa de Aquiles
e Ulisses que o eacutepos se torna κλέος
Como jaacute abordamos aqui desde o iniacutecio do seacuteculo XX em muito se tecircm transformado
os criteacuterios para o estudo da forma poeacutetica eacutepica Em nossa perspectiva observamos o registro
eacutepico em sua junccedilatildeo com a oralidade como ferramenta de repeticcedilatildeo Para se tornar famosa para
atingir a gloacuteria junto agrave audiecircncia a poesia eacutepica era condicionada a uma seacuterie de procedimentos
uma seacuterie de teacutecnicas que faziam esse texto permanecer na memoacuteria tanto na memoacuteria do
poeta-aedo como na memoacuteria da audiecircncia
As pesquisas de Milman Parry em conjunto com seu disciacutepulo Albert Lord chegaram
a conclusotildees impressionantes no que diz respeito agrave funccedilatildeo da poesia eacutepica dentro do mundo
antigo principalmente no sentido de tentar dar explicaccedilotildees a problemas de interesse linguiacutestico
e filoloacutegico como explicar as variaccedilotildees textuais (supressotildees expansotildees acreacutescimos) quando
se estudam os vaacuterios registros existentes dos poemas homeacutericos ou o porquecirc das repeticcedilotildees de
expressotildees no estilo desses textos como jaacute exposto na primeira parte dessa tese Segundo esses
autores as diferenccedilas encontradas nas repeticcedilotildees homeacutericas se davam exatamente na interaccedilatildeo
do performer com a audiecircncia
Sendo assim o registro textual do poema homeacuterico eacute fruto de um processo criativo que
resulta da interaccedilatildeo do rapsodo com sua audiecircncia O que se canta e se narra natildeo seria apenas a
histoacuteria em si mas tambeacutem o processo de criaccedilatildeo e repeticcedilatildeo do performer Conforme a
audiecircncia que poderia variar por regiatildeo cidade e dialeto entre outros fatores externos ao texto
agregavam-se novos elementos ao texto As performances puacuteblicas seriam eventos singulares
em que o poeta-rapsodo criava algo novo com sua audiecircncia A cultura grega arcaica
desenvolvia sua memoacuteria conjunta ou memoacuteria cultural atraveacutes de uma memoacuteria artificial se
assim podemos definir que se desenvolvia e se articulava atraveacutes de teacutecnicas mnemocircnicas
materializadas de forma oral e textual Atraveacutes de foacutermulas orais preacute-concebidas repetiam-se
feitos e narrativas que permaneciam como uma espeacutecie de memoacuteria viva grega
Ao analisarmos os poemas homeacutericos dentro da sua oralidade e de seu caraacuteter literaacuterio
cabe uma certa concepccedilatildeo inicial da histoacuteria desses textos Uma cronologia eacute sugerida por Nagy
(1996) Ele formula uma espeacutecie de movimento teoacuterico na progressatildeo do texto homeacuterico que
conectando-se ainda com o sentido de κλέος vai da sua total oralidade agrave total rigidez escrita
ressaltando o estatuto de suas repeticcedilotildees compilaccedilotildees reescritas
43
(1) a relatively most fluid period with no written texts extending from the early second millennium into the middle of the eighth century in the first millennium (2) a more formative or ldquopan-Hellenicrdquo period still with no written texts from the middle of the eighth century to the middle of the sixth [hellip] (3) a definitive period centralized in Athens with potential texts in the sense of transcripts at any or several points from the middle of the sixth century to the later part of the fourth this period starts with the reform of Homeric performance traditions in Athens during the reacutegime of the Peisistratidai (4) a standardizing period with texts in the sense of transcripts or even scripts from the later part of the fourth century to the middle of the second this period starts with the reform of Homeric performance traditions in Athens during the reacutegime of Demetrius of Phaleron which lasted from 317 to 307 BCE (5) a relatively most rigid period with texts as scripture from the middle of the second century onward this period starts with the completion of Aristarchusrsquo editorial work on the Homeric texts not long after 150 BCE or so which is a date that also marks the general disappearance of the so-called ldquoeccentricrdquo papyri to be defined later on in the discussion (NAGY 1996 p109-110)
Nessa escala proposta por Nagy observamos um fluxo da grande flexibilidade poeacutetica
para a consolidaccedilatildeo de uma maior rigidez da poesia Vai da fluidez da oralidade para a
substancializaccedilatildeo do texto em um periacuteodo milenar das repeticcedilotildees da Iliacuteada e Odisseia nos seus
registros puacuteblicos e privados61 Das vaacuterias diferenccedilas entre o oral e o escrito que poderiacuteamos
listar contudo natildeo colocariacuteamos o movimento de repeticcedilatildeo que habita tanto a literatura escrita
como a tradiccedilatildeo oral Ou seja a narrativa se repete oralmente ou de forma escrita e a repeticcedilatildeo
se daacute para aleacutem da materialidade falada ou escrita do texto ela consolida um κλέος na trajetoacuteria
61 Cabe aqui uma breve justificativa dos termos privado e puacuteblico que satildeo palavras de origem latina tendo uma utilizaccedilatildeo filosoacutefica importante principalmente na Filosofia Moderna o que poderia nos levar a uma espeacutecie de anacronismo O Dicionaacuterio de Filosofia de N Abbagnano nos diz no seu verbete sobre puacuteblico ldquoEsse adjetivo foi usado em sentido filosoacutefico (especialmente por escritores anglo-saxotildees) para designar os conhecimentos ou os dados ou elementos de conhecimento disponiacuteveis a qualquer pessoa em condiccedilotildees apropriadas e natildeo pertencentes agrave esfera pessoal e natildeo verificaacutevel da consciecircncia Neste sentido eacute P o que Kant denominava objetivo (v) aquilo de que todos podem participar igualmente podendo portanto tambeacutem ser expresso ou comunicado pela linguagemrdquo Sobre a etimologia da palavra privado Saraiva descreve o sentido dessa palavra no verbete privatus como pertencente a cada individuo proacuteprio individual Utilizamos aqui privado e puacuteblico com a intenccedilatildeo de descrever a dinacircmica da repeticcedilatildeo motivada por algo carregar ou natildeo certo κλέος algo que se propaga assim de um fato narrado por poucos para um fato narrado por muitos Por mais que pensemos que determinados atos jaacute nascem puacuteblicos como por exemplo determinados feitos guerreiros dos personagens Aquiles e Heitor eles tornam-se kleacuteos pela intervenccedilatildeo de algum poeta de algueacutem que hipoteticamente narrou a histoacuteria pela primeira vez e portanto transportou o evento de uma esfera mais particular (ldquoprivadardquo) para uma esfera mais ampla e aberta agrave percepccedilatildeo de uma coletividade (esfera ldquopuacuteblicardquo) Cabe ressaltar tambeacutem que a palavra grega ἴδιος talvez cumpra esse papel de descrever algo que eacute proacuteprio particular LSJ descreve ἴδιος resumidamente assim ldquoI ones own pertaining to oneself hence 1 private personal 2 ones own 3 private interests 4 of persons personally attached to one 5 ones place of origin II separate distinct 2 strange unusual 3 peculiar appropriate ordinary private conversationrdquo Satildeo sentidos que se aproximam dessa ideia de contraposiccedilatildeo entre o acircmbito particular e o acircmbito publicamente conhecido
44
dos heroacuteis trazendo suas gloacuterias famas renomes dentro de uma escala de tempo extensa
enraizada em quase todo periacuteodo da cultura grega Em qualquer periacuteodo dessas chamadas
ldquocinco idades de Homerordquo seja em performances orais e puacuteblicas seja em transcriccedilotildees textuais
escritas e privadas repetiu-se a narrativa dos heroacuteis
No sentido de explorarmos a relevacircncia do conceito de κλέος no mundo eacutepico cabe
aqui uma exposiccedilatildeo mais analiacutetica e etimoloacutegica acerca do κλέος homeacuterico termo que indica
talvez o principal atributo do heroacutei eacutepico pois eacute a razatildeo da sua sobrevida razatildeo da sua
imortalidade poeacutetica Vejamos mais algumas palavras do helenista Gregory Nagy que associa
de forma objetiva o κλέος agrave figura do heroacutei homeacuterico
In general the word κλέος applies to epic narrative as performed by the master Narrator of Homeric poetry Etymologically κλέος is a noun derived from the verb klueacutein lsquohearrsquo and it means lsquothat which is heardrsquo In the Iliad the master Narrator declares that the epic he narrates is something he lsquohearsrsquo from goddesses of poetic memory called the Muses who know everything because they were present when everything was done and when everything was said Here is the passage where the master Narrator makes his declaration [segue-se a citaccedilatildeo da Iliacuteada 2484-487] (NAGY 2006 p 51)
Ἔσπετε νῦν μοι Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματrsquo ἔχουσαι ὑμεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμενmiddot οἵ τινες ἡγεμόνες Δαναῶν καὶ κοίρανοι ἦσαν (Dizei-me agora oacute Musas que no Olimpo tendes vossas moradas pois sois deusas estais presentes e todas as coisas sabeis ao passo que a noacutes chega apenas a fama e nada sabemos quem foram os comandantes dos Dacircnaos e seus reis)
Nagy ressalta o papel daquilo que ldquose escutardquo como a origem geneacutetica de κλέος
enfatizando o papel das Musas em determinarem a veracidade daquilo que o poeta ldquoouverdquo e
repassa assim para sua audiecircncia Quando o narrador homeacuterico invoca as Musas ele o faz pela
garantia da verdade do discurso garantia de que suas palavras refletem a realidade dos fatos
Isso se daacute porque satildeo as Musas as detentoras da verdade presencial das coisas (πάρεστέ) elas
estavam laacute Satildeo detentoras tambeacutem da sabedoria (ἴστέ τε πάντα) dos fatos pois sabem de tudo
Dentro dessa onisciecircncia e onipresenccedila satildeo elas que fazem que se repita o κλέος o qual aparece
aqui no comentaacuterio de Nagy como aquilo que se ouve Antes de estabelecermos qualquer juiacutezo
de valor acerca ldquodaquilo que se ouverdquo que poder ser tanto bom como ruim devemos entatildeo
nos atentar agrave autoridade das Musas (ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν) neste processo
de repeticcedilatildeo e articulaccedilatildeo da memoacuteria pelo κλέος
45
Outros autores relacionam o papel do κλέος em consonacircncia com a existecircncia divina
das Musas Ao analisar os versos 485-486 do Canto 2 da Iliacuteada Brandatildeo (2005 p 44) ressalta
o diaacutelogo entre o ldquonoacutesrdquo e o ldquovoacutesrdquo dos aedos frente agraves Musas Ressalta o estabelecimento de uma
confrontaccedilatildeo entre aqueles que narram (voacutes as Musas) e aqueles que escutam (noacutes os aedos)
Eacute a partir desta confrontaccedilatildeo da memoacuteria acuacutestica que podemos compreender aquilo que
ouvimos Ainda segundo Brandatildeo (2005 p 45) ldquonoacutes ouvimos soacute o κλέος dependemos do
κλέος somos soacute κλέος porque temos nada vistordquo ratificando ainda aquilo que os dacircnaos os
heroacuteis ali envolvidos podem almejar saber ldquoOs maiores dentre noacutes os chefes condutores dos
dacircnaos - os heroacuteis objeto do canto - nada satildeo sem o κλέος rdquo (Ibid)
A memoacuteria acuacutestica nesse caso representada pelos versos Il 2 484-487 se coloca
como aquilo que era lembrado e repetido nas apresentaccedilotildees puacuteblicas nas canccedilotildees que se
rememoravam Se κλέος eacute o que se ouve ele inclui tanto a fama dos personagens como o
atributo de se entrar na memoacuteria e tradiccedilatildeo de quem ouve E neste sentido o κλέος eacute o proacuteprio
combustiacutevel do que se canta e se escuta e desta forma eacute um dos processos pelos quais se
conhece Eacute aquilo que seraacute repetido no canto por vir eacute o que se estabeleceraacute como memoacuteria
acuacutestica
Por mais que o κλέος eacutepico fosse cantado apenas por alguns ele era escutado por muitos
Daiacute talvez a conexatildeo direta entre κλέος e κλύω como observado na etimologia da palavra
κλέος podemos compreender sua possibilidade de leitura dentro do campo semacircntico que
tambeacutem habita o verbo κλύω e sendo assim a fama eacute aquilo que se escuta de geraccedilatildeo em
geraccedilatildeo eacute o que seraacute escutado por muito tempo porque quem narra o faz por inspiraccedilatildeo das
Musas elas que sabem de tudo e de todos Aquilo que possui κλέος eacute aquilo que se ouve como
κλύω o ato de se escutar novamente Vejamos agora como o κλέος aparece na Iliacuteada e Odisseia
ligado a vaacuterios personagens e como podemos classificaacute-lo dentro da obra homeacuterica
21 O ΚΛΕΟΣ DA ILIacuteADA COMO EXPRESSAtildeO FORMULAR
O personagem Aquiles nos parece paradigmaacutetico nesta explanaccedilatildeo sobre o κλέος da
eacutepica homeacuterica pois eacute ele que dentro da Iliacuteada aleacutem de exercer grande protagonismo cantou
narrou e foi narrado se colocando lado a lado com o κλέος em momentos distintos Aquiles eacute
o personagem que escolhe entre o κλέος da batalha em detrimento de um retorno seguro ao lar
sem ecos na memoacuteria futura do povo grego Retorno seguro que se pensado como uma
46
possibilidade do poema adicionaria agrave narrativa uma volta ao lar sem determinar as accedilotildees que
tanto importam na consumaccedilatildeo da Iliacuteada como a vinganccedila de Paacutetroclo a morte de Heitor
aquilo que sabemos ser a conclusatildeo do poema Outro momento de extrema relevacircncia para
pensarmos essa tradiccedilatildeo do κλέος se daacute por Aquiles ser o personagem que canta esse mesmo
κλέος como uma espeacutecie de aedo-heroacutei
Duas passagens entatildeo se fazem necessaacuterias para a nossa argumentaccedilatildeo Primeiramente
a passagem em que Aquiles canta os κλέα ἀνδρῶν (famas dos homens) e a segunda aquela em
que Aquiles opta pelo κλέος ἄφθιτον (fama imortal fama impereciacutevel reputaccedilatildeo indestrutiacutevel)
em detrimento do νόστος (retorno seguro) poreacutem imemoriaacutevel ao lar Primeiramente em Il 9
189 τῇ ὅ γε θυμὸν ἔτερπεν ἄειδε δ ἄρα κλέα ἀνδρῶν (Com ela deleitava o seu coraccedilatildeo
cantando os feitos gloriosos dos homens) E a outra que traccedila a escolha de Aquiles Il 9 410-
416
μήτηρ γάρ τέ μέ φησι θεὰ Θέτις ἀργυρόπεζα διχθαδίας κῆρας φερέμεν θανάτοιο τέλος δέ εἰ μέν κrsquo αὖθι μένων Τρώων πόλιν ἀμφιμάχωμαι ὤλετο μέν μοι νόστος ἀτὰρ κλέος ἄφθιτον ἔσταιmiddot εἰ δέ κεν οἴκαδrsquo ἵκωμι φίλην ἐς πατρίδα γαῖαν ὤλετό μοι κλέος ἐσθλόν ἐπὶ δηρὸν δέ μοι αἰὼν ἔσσεται οὐδέ κέ μrsquo ὦκα τέλος θανάτοιο κιχείη (Na verdade me disse minha matildee Teacutetis dos peacutes prateados que um dual destino me leva ateacute ao termo da morte se eu aqui ficar a combater em torno da cidade de Troia perece o meu regresso mas terei um renome imorredouro poreacutem se eu regressar para casa para a amada terra paacutetria perece o meu renome glorioso mas terei uma vida longa e o termo da morte natildeo viraacute depressa ao meu encontro)
Primeiramente algumas observaccedilotildees acerca das ldquofamas dos homensrdquo Ao cantar os κλέα
ἀνδρῶν Aquiles eacute inserido nos versos natildeo mais somente como personagem mas tambeacutem como
aedo declamando um canto dentro do canto Natildeo sabemos exatamente o teor do canto de
Aquiles mas sabemos que ele canta essas famas dos homens aquilo que faz permanecer aquilo
que imortaliza Eacute uma narrativa do proacuteprio personagem acerca da importacircncia da fama para os
homens guerreiros bem como para a cultura aristocraacutetica dos heroacuteis arcaicos Aliaacutes ao
analisarmos de perto o iniacutecio dos versos 413-415 observamos Aquiles narrar em ambos os
versos a possibilidade do perecimento (ὤλετό) junto ao pronome possessivo μοι variando
exatamente a decisatildeo entre o νόστος e o κλέος
47
Se natildeo sabemos na Iliacuteada o que cantou exatamente Aquiles ao falar das famas dos
homens podemos especular sobre seu teor atraveacutes de uma passagem da Odisseia A mesma
expressatildeo podemos encontrar em Od 8 73 μοῦσ᾽ ἄρ᾽ ἀοιδὸν ἀνῆκεν ἀειδέμεναι κλέα ἀνδρῶν
(a Musa aticcedilou o cantor a cantar famosos feitos de varotildees) onde o aedo no palaacutecio de Alcino
canta tambeacutem as famas dos homens inspirado pela Musa O aedo natildeo canta as famas de
quaisquer homens mas sim de Aquiles e Odisseu Od 8 75 νεῖκος Ὀδυσσῆος καὶ Πηλεΐδεω
Ἀχιλῆος (a disputa entre Odisseu e Aquiles filho de Peleu) Os κλέα ἀνδρῶν se apresentam
entatildeo com essa peculiaridade utiliza-se no canto narrado por Aquiles a mesma expressatildeo que
seraacute utilizada na Odisseia para narrar a fama de Aquiles pelo aedo no palaacutecio de Alcino Saberia
Aquiles de seu proacuteprio κλέος62
Eacute de se pensar que nos κλέα ἀνδρῶν na canccedilatildeo que Aquiles pode estar narrando jaacute
demonstrasse conhecimento da sua escolha futura pelo κλέος ἄφθιτον As marcaccedilotildees pessoais
μοι [] κλέος ἄφθιτον ἔσται μοι κλέος ἐσθλόν μοι αἰὼν nos habilitam a pensar que Aquiles jaacute
saberia pelo menos um pouco do seu destino Talvez possamos pensar que o personagem jaacute
estaria comprometido com o κλέος da imortalidade que transforma homens em heroacuteis Eacute essa
fama que se coloca como o teacutelos da vontade de Aquiles pois eacute ela que o tornaraacute imortal atraveacutes
da repeticcedilatildeo do canto
Como jaacute salientamos natildeo especularemos sobre isso mas sim a partir da perspectiva
teoacuterica jaacute abordada em nossas primeiras paacuteginas podemos pensar essas mesmas passagens da
Iliacuteada e Odisseia que tratam das famas dos homens como expressotildees formulares foacutermulas de
repeticcedilotildees incorporadas pelos aedos em suas performances Podemos inclusive encontrar um
correlato em Hesiacuteodo do qual falaremos de forma detalhada mais agrave frente Mas a tiacutetulo de
elucidaccedilatildeo de nossa perspectiva podemos apresentar os trecircs trechos seguintes
62 Natildeo entraremos de forma profunda na questatildeo de se Aquiles sabia ou natildeo do seu destino Um bom estudo acerca do tema pode ser encontrado no comentaacuterio agrave Iliacuteada de Bryan Hainsworth editado por Kirk ldquoAkhilleus knows that his life will be short (and this knowledge of course redoubles the force of the heroic imperatives upon him) as is affirmed at 1352 1417 1505 1895 18458 and 21277 But this is the only point where Akhilleus is said to have a choice of destinies (The closest parallel is that of Eukhenor 13663-70 see 13658-9) The choice may have been part of the tradition of Akhilleus birth but it seems more likely that it was invented here for its effectiveness as an argument as Willcock HSCP 81 (1977) 48-9 and Commentary ad loc suggests [] The usual point made is that Akhilleus is short-lived therefore he has a claim to fame But it is easy for him (or the poet) to reverse this argument and imply that renouncing fame even at this late date would entail long liferdquo (HAINSWORTH 1993 p 116)
48
Th100 Μουσάων θεράπων κλέεα προτέρων ἀνθρώπων63 (servo das Musas
[hineia] a gloacuteria dos antigos)
Il 9 189 τῇ ὅ γε θυμὸν ἔτερπεν ἄειδε δ ἄρα κλέα ἀνδρῶν (Com ela
deleitava o seu coraccedilatildeo cantando os feitos gloriosos dos homens)
Od 8 73 μοῦσ᾽ ἄρ᾽ ἀοιδὸν ἀνῆκεν ἀειδέμεναι κλέα ἀνδρῶν (a Musa aticcedilou
o cantor a cantar famosos feitos de varotildees)
Ressalta-se em negrito os correlatos nas trecircs obras apresentando-se como trecircs
possibilidades formulares para indicar tambeacutem trecircs componentes baacutesicos de sentido
(cantarhinear famosos homens) Seriam entatildeo os κλέα ἀνδρῶν uma expressatildeo formular O
mesmo poderiacuteamos pensar do κλέος ἄφθιτον que aleacutem da escolha de Aquiles seria tambeacutem
um componente de repeticcedilatildeo formular Uma expressatildeo que em si carrega um componente oral
de repeticcedilatildeo (ser foacutermula) bem como o κλέος como atributo de algo que se repete porque eacute relevante
para a narrativa
Para Edwind Floyd em seu artigo sobre o κλέος ἄφθιτον devemos atentar exatamente
para esse papel do poeta que canta a fama imortal bem como para o papel de Aquiles como
aedo ao cantar essa mesma fama Trata-se da poesia como agente de preservaccedilatildeo do κλέος
κλέος ἄφθιτον as used in Il 9413 clearly alludes to the posthumous preservation of a warriors fame The means by which such fame is to be preserved is presumably by bards such as Homer although this is not actually specified in the immediate context of Il 9413 Earlier in Book 9 however we see Achilles himself singing of the deeds of heroes (ἄειδε δ᾽ ἄρα κλέα ἀνδρῶν) and in any event it seems natural to regard poetry as the means by which fame is preserved (FLOYD 1980 p 134)
Em um artigo publicado por Finkelberg (1986) essa autora jaacute apontava o κλέος ἄφθιτον
como herdeiro formular do indo-europeu cujo correlato em veacutedico seria sravas aksitam O
componente formular completo por mais que apareccedila somente uma vez no texto homeacuterico a
que possuiacutemos acesso seria κλέος ἄφθιτον ἔσται Segundo Finkelberg κλέος ἄφθιτον eacute
tambeacutem uma expressatildeo formular Existiriam ainda outros correlatos formulares para tal
expressatildeo ou seja natildeo seriam expressotildees formulares idecircnticas mas caberiam na mesma
meacutetrica cumprindo a funccedilatildeo mnemocircnica Estabeleceu-se acerca desse assunto um debate
63 O negrito eacute nosso
49
criacutetico proposto por Volk (2002) que coloca sob suspeita essa suposiccedilatildeo de Finkelberg de que
tal expressatildeo eacute uma foacutermula
Tal debate eacute de extrema relevacircncia e por mais que natildeo possamos falar de um vencedor
salientamos que o mais importante aqui eacute a observacircncia da repeticcedilatildeo das foacutermulas que carregam
κλέος em sua composiccedilatildeo Pois torna-se o κλέος aleacutem da proacutepria fama em si um agente de
propagaccedilatildeo da memoacuteria do compartilhamento das narrativas da Iliacuteada Mas natildeo quaisquer
passagens e sim eventos de extrema importacircncia para a obra
Para uma melhor visualizaccedilatildeo geral do κλέος como expressatildeo formular apresentamos
na sequecircncia um breve resumo Compilamos as repeticcedilotildees de κλέος que podem ser consideradas
componentes formulares Primeiramente as da Iliacuteada (em negrito nosso aquelas que se
repetem tanto na Iliacuteada como Odisseia e que poderiam ser consideradas foacutermulas) com sua
respectiva traduccedilatildeo (em itaacutelico) e breve comentaacuterio com o contexto da citaccedilatildeo (dentro dos
colchetes)
Il4197 Τρώων ἢ Λυκίων τῷ μὲν κλέος ἄμμι δὲ πένθος ldquoTroiano ou Liacutecio ficando ele com a gloacuteria e noacutes com o sofrimentordquo [Atena persuade o filho de Licaacuteon Pacircndaro a atirar uma flecha contra Menelau a fim de galgar a fama entre todos os troianos Pacircndaro atirou a flecha mas a proacutepria Atena protegeu Menelu a fim de que a flecha natildeo o matasse apenas o ferisse Ao comentar seu ferimento (sofrimento) Agamecircmnon atribui o κλέος (gloacuteria) agravequele que teria disparado a flecha sendo ele troiano ou liacutecio ] Il4207 = Il4197 Il 53 Ἀργείοισι γένοιτο ἰδὲ κλέος ἐσθλὸν ἄροιτο ldquoentre todos os Argivos e obtivesse uma fama gloriosardquo [Refere-se agrave fama atribuiacuteda a Diomedes depois que Atena o presenteou com forccedila e coragem fazendo arder em seu elmo e escudo uma chama indestrutiacutevel que o tornou famoso entre todos os Argivos ] Il5 273 εἰ τούτω κε λάβοιμεν ἀροίμεθά κε κλέος ἐσθλόν ldquoSe apanhaacutessemos estes cavalos ficariacuteamos com fama excelente rdquo [Refere-se aos cavalos que estavam com Eneias e o proacuteprio Pacircndaro que jaacute possuiacutea fama Quem diz isso eacute Diomedes (que tambeacutem jaacute possui fama) ao visualizar a chegada dos dois cavalos dentro da linha inimiga ] Il5532 = Il15 564 φευγόντων δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ κλέος ὄρνυται οὔτε τις ἀλκή ldquoporeacutem dos que fogem natildeo vem renome nem vantagemrdquo [Agamecircmnon ao referir-se aos homens que fogem da batalha dizendo que esses natildeo levam vantagem alguma ao fugir muito menos uma fama Trata-se de um discurso de incentivo aos guerreiros]
50
Il6446 ἀρνύμενος πατρός τε μέγα κλέος ἠδ᾽ ἐμὸν αὐτοῦ ldquoesforccedilando-me pelo grande renome de meu pai e pelo meurdquo [Refere-se a Heitor que responde a Androcircmaca justificando sua participaccedilatildeo na guerra refutando os covardes que se abstecircm enaltecendo os feitos dos troianos e troianas que aceitam o combate como forma de honrar os antepassados] Il7451 = Il7 458 τοῦ δ᾽ ἤτοι κλέος ἔσται ὅσον τ᾽ ἐπικίδναται ἠώς ldquoNatildeo duvides que se espalha a tua fama ateacute onde chega a aurora rdquo [O trecho refere-se aos esforccedilados Aqueus em construir valas e muralhas para a defesa antes do sol nascer Os deuses reunidos exaltam o trabalho deles Posecircidon diz acerca da fama que as edificaccedilotildees geraratildeo mas lamenta a falta da hecatombe aos deuses ] Il8192 ἀσπίδα Νεστορέην τῆς νῦν κλέος οὐρανὸν ἵκει ldquoo escudo [de] Nestor cuja fama chega ao ceacuteurdquo [Heitor ao conclamar seus cavalos para a batalha incita agrave tropa a conquistar o escudo de Nestor Este objeto feito de ouro possui a fama que chega ao ceacuteu ] Il10212 ἀσκηθής μέγα κέν οἱ ὑπουράνιον κλέος εἴη ldquoincoacutelume Grande seria sob o ceacuteu o seu renome rdquo [Fala de Nestor instigando dentro do conciacutelio entre os reis dos Argivos aquele homem que se infiltrasse entre os troianos para escutar os seus planos futuros Nestor demarca esse ato de coragem com um renome que chegaria ao ceacuteu ] Il1121 πεύθετο γὰρ Κύπρον δὲ μέγα κλέος ldquoPois ouvira em Chipre um grande rumorrdquo [Ao se armar para a batalha Agamecircmnon veste a couraccedila no peito presente de Ciacuteniras que teria ouvido o grande rumor de que o Atrida estava navegando para Troia Assim Ciacuteniras o presenteou demonstrando hospitalidade] Il11 227 γήμας δ᾽ ἐκ θαλάμοιο μετὰ κλέος ἵκετ᾽ Ἀχαιῶν ldquoMal casara saiu do taacutelamo atraacutes do rumor dos Aqueusrdquo [Agamecircmnon invoca as Musas para saber quem seraacute o primeiro a guerrear com ele Trata-se de Ifidamante jovem que foi agrave guerra pelo rumor dos Aqueus Foi morto por Agamecircmnon em poucos golpes] Il13 364 ὅς ῥα νέον πολέμοιο μετὰ κλέος εἰληλούθει ldquoque chegara recentemente devido ao rumor da guerrardquo [Diz respeito ao rumor da guerra entre os troianos que trouxe de longe Otrioneu esse que teria pedido a filha mais bela de Priacuteamo Cassandra em casamento] Il17 16 τώ με ἔα κλέος ἐσθλὸν ἐνὶ Τρώεσσιν ἀρέσθαι ldquopor isso deixa-me ganhar uma nobre fama entre os Troianosrdquo [Refere-se ao filho de Pacircntoo que ao observar a morte de Paacutetroclo e seu corpo estirado tenta convencer Menelau a ceder a abandonar o cadaacutever que o
51
mesmo protegera para assim se poupar de lutar contra Menelau e ganhar a fama entre os Troianos] Il17 131 Τρωσὶ φέρειν προτὶ ἄστυ μέγα κλέος ἔμμεναι αὐτῷ ldquopara as levarem para a cidadela para serem sua grande gloacuteriardquo [Heitor havia despido Paacutetroclo de sua armadura gloriosa para cortar-lhe a cabeccedila e jogar seu cadaacutever aos catildees Aacutejax salva o cadaacutever de Paacutetroclo com seu escudo Mesmo assim a armadura de Paacutetroclo permanece com os troianos que a levam para a cidadela e fazem assim fama ] Il17 143 ἦ σ᾽ αὔτως κλέος ἐσθλὸν ἔχει φύξηλιν ἐόντα ldquoEm vatildeo te abrange uma nobre fama quando natildeo passas de desertor rdquo [Refere-se a fala de Glauco a Heitor que o chama de desertor por ainda tentar tomar o cadaacutever de Paacutetroclo defendido por Aacutejax Questiona Glauco a fama de Heitor por tal atitude] Il18 121 κείσομ᾽ ἐπεί κε θάνω νῦν δὲ κλέος ἐσθλὸν ἀροίμην ldquohaverei de jazer quando morrer Agora escolho o glorioso renomerdquo [Trata-se de um momento de grande importacircncia para a narrativa Momento em que a ira de Aquiles reaparece ao natildeo mais ter Paacutetroclo ao seu lado bem como se lembra Aquiles da ira que sentiu por Agamecircmnon Aquiles decide ir ao encontro de Heitor e mataacute-lo Aquiles escolhe o glorioso renome ] Il23 280 τοίου γὰρ κλέος ἐσθλὸν ἀπώλεσαν ἡνιόχοιο ldquoPois eles perderam a gloacuteria valente do seu cocheirordquo [Aquiles estaacute distribuindo espoacutelios de guerra diz que ali naquele espaccedilo seria ele o primeiro merecedor dos precircmios Poreacutem se justifica perante os guerreiros dizendo que seus cavalos [dele Aquiles] natildeo mais possuiacuteam a gloacuteria valente e coloca os animais de fora da premiaccedilatildeo Trata-se de um momento em que o heroacutei se coloca humildemente perante seus compatriotas]
Observamos nesses trechos uma multiplicidade de personagens que se dizem buscando
perdendo encontrando valorizando a fama o renome a gloacuteria e tambeacutem o rumor Desde
repeticcedilotildees inteiras de versos ἤτοι κλέος ἔσται ὅσον τ᾽ ἐπικίδναται ἠώς passando por
expressotildees que inserem um caraacuteter qualitativo e heroico κλέος ἐσθλόν que aproximam mortais
aos deuses κλέος οὐρανὸν ἵκει ateacute possiacuteveis expressotildees formulares que ocorrem em
praticamente todas as posiccedilotildees do verso
Poreacutem mais importante que isso parece ser κλέος um componente textual que dava
indicaccedilotildees e caminhos para repeticcedilotildees do texto sendo ele mesmo o κλέος parte fundamental
da repeticcedilatildeo se repete aquilo que de certa forma alcanccedilou o κλέος Em especial dentro da
Iliacuteada observamos uma maior incidecircncia do κλέος em contexto marcial Por mais que
observemos algumas dessas mesmas repeticcedilotildees tambeacutem na Odisseia veremos que natildeo eacute o
52
mesmo contexto de guerra presente em boa parte dos κλέa na Iliacuteada Eacute o que faremos a partir
de agora
22 O ΚΛΕΟΣ DA ODISSEIA COMO EXPRESSAtildeO FORMULAR
Certas expressotildees com κλέος se repetem tambeacutem na Odisseia inclusive algumas natildeo
encontradas na Iliacuteada Vejamos
Od1 95 ἠδ᾽ ἵνα μιν κλέος ἐσθλὸν ἐν ἀνθρώποισιν ἔχῃσιν ldquoe que pertenccedila-lhe distinta fama entre os homensrdquo [O trecho se refere ao discurso de Atena que planeja animar Telecircmaco para buscar informaccedilotildees notiacutecias sobre seu pai Para tanto Atena o enviaraacute ateacute Esparta e Pilos para que o jovem atraveacutes da fama do pai acabe o achando]
Od1240 igual a Od14 370 ἠδέ κε καὶ ᾧ παιδὶ μέγα κλέος ἤρατ᾽ ὀπίσσω ldquoe a seu filho teria granjeado grande fama para o futurordquo [Fala de Telecircmaco que deixa evidente sua agonia em natildeo encontrar o pai Se soubesse que estivesse morto ao menos poderia ter um funeral adequado e Telecircmaco receberia um pouco da fama de seu pai]
Od1 283 = Od2 217 ἐκ Διός ἥ τε μάλιστα φέρει κλέος ἀνθρώποισι ldquo(voz de) de Zeus que mais que tudo traz fama aos homensrdquo [O trecho faz referecircncia a fala de Atena que tenta convencer Telecircmaco a sair em busca de seu pai Segundo a deusa bastaria Telecircmaco ouvir a gloacuteria espalhada pelo mundo grego pois a fala de Zeus seria uma espeacutecie de propagaccedilatildeo da fama dos grandes heroacuteis Eacute o caso de Odisseu]
Od378 ἠδ᾽ ἵνα μιν κλέος ἐσθλὸν ἐν ἀνθρώποισιν ἔχῃσιν ldquoe para que lhe pertencesse distinta fama entre os homensrdquo [O trecho se refere agrave fama de Odisseu que eacute buscada por Telecircmaco dentro do palaacutecio de Nestor] Od3 83 πατρὸς ἐμοῦ κλέος εὐρὺ μετέρχομαι ἤν που ἀκούσω ldquoA vasta fama de meu pai persigo esperando algo ouvirrdquo [Trecho subsequente a Od 3 78 jaacute na voz de Telecircmaco Eacute ressaltada novamente a busca por Odisseu atraveacutes da sua fama] Od3 20464 οἴσουσι κλέος εὐρὺ καὶ ἐσσομένοισι πυθέσθαι ldquolevaratildeo sua extensa fama um canto aos vindourosrdquo [O trecho faz referecircncia a fala de Telecircmaco reconhece a fama de Nestor que eacute associada a canccedilotildees futuras uma fama que seraacute cantada] Od3 380 ἀλλὰ ἄνασσ᾽ ἵληθι δίδωθι δέ μοι κλέος ἐσθλόν ldquoMas senhora secirc propiacutecia daacute-me distinta famardquo
64 Ressalta-se que em Od 3 202 fala-se em kŷdos e logo em Od 3 204 observamos o κλέος
53
[O trecho apresenta a oraccedilatildeo de Telecircmaco a Atena Ele roga por fama descrevendo assim a necessidade que Telecircmaco possui em se tornar reconhecido em se tornar o filho de quem ele eacute] Od4 584 χεῦ᾽ Ἀγαμέμνονι τύμβον ἵν᾽ ἄσβεστον κλέος εἴη ldquoergui cenotaacutefio a Agamecircmnon para inextinguiacutevel ser sua famardquo [O trecho faz referecircncia a fala de Menelau a Telecircmaco que buscou em Esparta informaccedilotildees sobre seu pai Menelau descreve o monumento que ergueu para Agamecircmnon praacutetica que demonstra tambeacutem a preservaccedilatildeo de um κλέος] Od4 726 ἐσθλόν τοῦ κλέος εὐρὺ καθ᾽ Ἑλλάδα καὶ μέσον Ἄργος ldquonobre cuja fama eacute ampla na Heacutelade ateacute o meio de Argosrdquo [Trata-se da fala de Peneacutelope ao se ressentir dos infortuacutenios que o Olimpo trouxe a sua vida Para ressaltar seu marido invoca sua vasta fama] Od7 333 ἄσβεστον κλέος εἴη ἐγὼ δέ κε πατρίδ᾽ ἱκοίμην ldquoa fama seria inextinguiacutevel e eu chegaria agrave paacutetriardquo [Trata-se da fala de Odisseu que roga acerca do que disse o rei Alcino Odisseu diz que se de fato acontecer o que Alcino previu ele chegaraacute agrave sua terra Por isso Odisseu enaltece a fama de Alcino ] Od8 74 οἴμης τῆς τότ᾽ ἄρα κλέος οὐρανὸν εὐρὺν ἵκανε ldquoporccedilotildees do enredo cuja fama entatildeo ao largo paacuteramo chegavardquo [Trata-se das Musas que aticcedilaram o cantor a cantar famosos feitos de varotildees Eacute o trecho jaacute ressaltado anteriormente que faz alusatildeo tambeacutem a Aquiles cuja expressatildeo formular tambeacutem encontramos na Iliacuteada Os famas dos homens se repetem aqui] Od9 20 ἀνθρώποισι μέλω καί μευ κλέος οὐρανὸν ἵκει ldquodos homens sou conhecido minha fama o paacuteramo atingerdquo [Trata-se da fala de Odisseu que se revela para Alcino dizendo sua origem descrevendo suas aventuras Odisseu mesmo se define como portador de uma fama que chega aos ceacuteus] Od13 422 αὐτή μιν πόμπευον ἵνα κλέος ἐσθλὸν ἄροιτο ldquoEu mesma o conduzi para conquistar distinta famardquo [O trecho faz referecircncia a fala de Atena que conduziu Telecircmaco para que ele conquistasse sua fama Atena relata a Odisseu como conduziu Telecircmaco em suas viagens procurando por ele Odisseu]
Assim como na Iliacuteada as expressotildees formulares presentes na Odisseia tambeacutem possuem
muacuteltiplas atribuiccedilotildees Uma delas que logo salta aos olhos eacute κλέος ἐσθλὸν (distinta fama) Ela
eacute atribuiacuteda a Odisseu a Atena como tambeacutem foi atribuiacuteda a Aquiles e aos homens em geral
dentro da Iliacuteada Parece se tratar mais de uma expressatildeo formular de repeticcedilatildeo do que um
atributo especiacutefico de dado personagem
Werner (2001 p 102) tambeacutem fala da multiplicidade do κλέος na Odisseia Em alguns
trechos podemos ler a suposta ldquoenorme gloacuteriardquo μέγα κλέος que poderia vir a ter Telecircmaco e
54
da mesma forma um κλέος comum de uma simples notiacutecia A tese principal do texto de Werner
eacute demonstrar que o κλέος de Odisseu jaacute estava estabelecido no transcorrer dos cantos
independente das atribuiccedilotildees pois ele jaacute havia se imortalizado na guerra de Troia O autor
tambeacutem chama atenccedilatildeo para a expressatildeo que aproxima os homens aos deuses κλέος οὐρανὸν
ἵκει
Na obra Blood amp Iron Douglas Olson escreve um capiacutetulo somente tratando do κλέος
homeacuterico A tese que surge das pesquisas do autor eacute de que o κλέος eacute um mecanismo social de
propagar uma rede de boatos fofocas falatoacuterios (gossip) e que a fama surgida deste falatoacuterio
pode ser boa ou ruim e mais do que isso ldquolsquoto be snatched awayrsquo (akleioacutes whithout κλέος) is
thus disappear utterly from common knowledge and reportrdquo (OLSON 1995 p 2-3)65
Essa tese de Olson se encaixa na interpretaccedilatildeo dos exemplos de κλέος nas passagens de
Telecircmaco (que sempre busca informaccedilotildees sobre seu pai bem como busca ele mesmo ser
portador de uma fama futura) se encaixa no desespero de Peneacutelope em tentar manter o κλέος
de Odisseu vivo se encaixa tambeacutem nas passagens da Iliacuteada que fazem surgir o κλέος dos
grandes personagens do falatoacuterio localizado das batalhas para na Greacutecia inteira se instalar uma
fama Olson em especial nos lembra acerca de Euricleia nome que em traduccedilatildeo livre
poderiacuteamos denominar como ldquoque possui vasta famardquo Devemos notar que Euricleia eacute aquela
que dentro do palaacutecio de Odisseu o reconhece pela cicatriz e ao querer gritar para todos a
novidade (transmitir para todos a informaccedilatildeo) eacute repreendida por Ulisses O autor ainda
apresenta uma escala crescente do κλέος que vai de uma simples notiacutecia ateacute os κλέα ἀνδρῶν
Daiacute o papel da poesia eacutepica que segundo Olson ldquoSong is not the most basic source of κλέος in
Achaian society therefore but is the highest and in some ways most sophisticated formrdquo
(OLSON 1995 p 16) O autor ainda ressalta a relevacircncia moral do κλέος para o homem
guerreiro e conselheiro manter sua boa fama eacute de extrema importacircncia assim como no caso
das mulheres manter sua pureza sexual e fidelidade
Teodoro Rennoacute Assunccedilatildeo (2012 p 187) ao escrever tambeacutem sobre o κλέος da
Odisseia sustenta que a fama que chega aos ceacuteus κλέος οὐρανὸν ἵκει faz na verdade alusatildeo
ao status dos heroacuteis em frequentar divinamente as vozes da Musas Os heroacuteis encontram-se
eternizados na canccedilatildeo das Musas que lhes concedem o κλέος no vasto ceacuteu Assunccedilatildeo ao usar
como fundamentaccedilatildeo o texto de Olson apresenta como esquema geral um κλέος que nasce de
65 Teodoro Rennoacute Assunccedilatildeo (2012 p 187) tambeacutem traraacute tese similar como veremos
55
um falatoacuterio local seja de rumor ou reputaccedilatildeo se propaga atraveacutes da canccedilatildeo bem como atraveacutes
de um movimento de ser esse κλέος escutado por estrangeiros que propagam assim tambeacutem o
κλέος em outras localidades A depender desse falatoacuterio inicial podemos classificar e traduzir
o κλέος tanto como maacute ou boa fama
Argumento semelhante encontramos em Jones (1988) que analisa o κλέος de Telecircmaco
Para Jones o axioma do κλέος buscado por Telecircmaco reside em Od 195 ἠδ᾽ ἵνα μιν κλέος
ἐσθλὸν ἐν ἀνθρώποισιν ἔχῃσιν (e que pertenccedila-lhe distinta fama entre os homens) Segundo
Jones a relaccedilatildeo de κλέος com reputaccedilatildeo eacute inegaacutevel e por isso salienta da maneira que Ulisses
desapareceu Telecircmaco natildeo herdaria seu κλέος O κλέος eacute o que dizem sobre vocecirc segundo o
autor por isso tambeacutem a jornada de Telecircmaco Esse κλέος somente surge quando Telecircmaco eacute
finalmente reconhecido como filho de Odisseu por Helena e Nestor em Od 4207 e 4611
Nagy fala acerca de um κλέος uacutenico do personagem e o coloca no contexto geral da
narrativa A condiccedilatildeo de Odisseu segundo Nagy (2006) eacute a mesma que se propotildee acerca de
Aquiles como daqueles que exercendo o seu κλέος seratildeo macrorrepetidos e dentro de sua
repeticcedilatildeo haveraacute microgloacuterias pequenas outras famas que preenchem a narrativa Assim como
os outros autores acima citados eacute um κλέος da repeticcedilatildeo Mas a fama de Aquiles por si soacute
talvez natildeo garantisse a imortalidade da histoacuteria Ela precisaria de um elemento formal
Elemento este que como demonstramos aqui foi proposto principalmente por Milman Parry
que como tambeacutem jaacute observamos estabeleceu uma espeacutecie de manual da formulaccedilatildeo oral da
poesia ou melhor as regras da criaccedilatildeo e da repeticcedilatildeo puacuteblica feitas pelos aedos
Conectam-se entatildeo os ideais de se permanecer atemporalmente como histoacuteria cantada
tendo como motor a fama dos feitos Constitui-se tambeacutem uma tradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com a
audiecircncia A maior fama eacute a eternidade da histoacuteria construiacuteda junto ao puacuteblico eacute tambeacutem o
puacuteblico que manteraacute ou natildeo a eternidade do κλέος Ao invocarem-se as Musas invoca-se
tambeacutem a repeticcedilatildeo da histoacuteria a repeticcedilatildeo dos feitos gloriosos e essas repeticcedilotildees se datildeo por
foacutermulas de caraacuteter mnemoteacutecnico assim como satildeo as canccedilotildees orais pois elas tecircm como uma
de suas principais funccedilotildees rememorar
Se as pesquisas do seacuteculo XX demonstram a oralidade e natureza performaacutetica da Iliacuteada
e Odisseia podemos observar dentro de ambas as narrativas uma ideia fundamental que a nosso
ver estaacute atrelada agrave forccedila do personagem Aquiles bem como agrave forccedila do personagem Odisseu
Natildeo qualquer forccedila mas sim a potecircncia da repeticcedilatildeo de suas histoacuterias e feitos a individualidade
destes personagens como um κλέος que busca a imortalidade da poesia uma criaccedilatildeo artiacutestica
56
que se repete nos mais diversos dialetos porque representa o κλέος que inspirava e comovia os
gregos Aquiles e Odisseu permanecem por essa repeticcedilatildeo do seu κλέος Κλέος eacute a fama que
alcanccedila a grande multidatildeo atraveacutes de sua potecircncia baacutesica de se repetir como arte
Cabe ressaltar que existe outro momento dentro da poesia de Homero em que Aquiles
tende natildeo para a gloacuteria eterna mas sim para algo que lembraria o noacutestos o retorno seguro
negado na Iliacuteada Trata-se do canto 11 versos 488-491 da Odisseia Aquiles ao conversar com
Odisseu no reino dos mortos lamenta estar governando entre os que jaacute foram e relata sua
preferecircncia de estar entre os vivos mesmo que fosse dentro de uma vida simples sem recursos
Teodoro R Assunccedilatildeo (2003) lembra que essa inversatildeo entre o noacutestos e o κλέος proposta
primeiramente por Klaus Rutter (1969) possibilita tambeacutem uma leitura inversa daquilo que se
observa como o paradigma66 de Aquiles ele que buscou o κλέος valoriza agora o noacutestos
Assunccedilatildeo tambeacutem nos lembra poreacutem que essa inversatildeo em tese natildeo poderia se aplicar a
Odisseu pois natildeo podemos afirmar que Odisseu teve a mesma opccedilatildeo de escolha que teve
Aquiles segundo o que jaacute escreveu Edwards (1985) Eacute de fato o episoacutedio de Aquiles no Hades
uma espeacutecie de negaccedilatildeo narrativa do Aquiles da Iliacuteada mas a nosso ver tambeacutem segundo o
que aponta Nagy (2006) uma micronarrativa dentro da maior que eacute o retorno de Odisseu a
Iacutetaca
Desta forma podemos propor que existe o κλέος formular (atribuiacutedo a vaacuterios
personagens) que completa o verso e ajuda a narrativa do aedo e um κλέος uacutenico do
personagem que ficaraacute como principal traccedilo da sua fama que pode tambeacutem se expressar de
maneira formular mas que aponta para uma macronarrativa que eacute a fama dos personagens que
guiam a histoacuteria O κλέος em seu conteuacutedo expressa aquilo que se repetiraacute em seu significado
mais elementar indica a fama o renome a gloacuteria de algo jaacute o κλέος formular se apresenta
como mais uma maneira de conectar o texto e rememorar suas partes ao unir estes dois κλέα
de conteuacutedo e formularidade observamos um κλέος maior que eacute a proacutepria narrativa de Aquiles
e Odisseu
Devemos ressaltar que natildeo parece ser o κλέος algo que somente se daacute nas narrativas
poeacuteticas Parece ser o κλέος um retrato de certos comportamentos sociais e reais do mundo
66 ldquoComo bem observou Anthony T Edwards a hipoacutetese de uma inversatildeo de posiccedilotildees dificilmente se aplicaria a Ulisses pois ele jamais eacute confrontado a uma escolha excludente entre um kleacuteos sem noacutestos (isto eacute a gloacuteria mas morrendo jovem) ou um noacutestos sem kleacuteos (isto eacute vida longa mas sem gloacuteria) De fato esta incompatibilidade entre ldquoa gloacuteriardquo e ldquoo retornordquo diz respeito apenas ao modelo heroacuteico radical (e traacutegico) de Aquiles mdash que estaacute longe de ser o uacutenico mesmo na Iliacuteada rdquo (ASSUNCcedilAtildeO 2003 p 102)
57
arcaico Eacute o que diz James Redfield (1994) ao pensar o texto homeacuterico como um compecircndio
moral do homem arcaico este que se preocupava com seu renome com o renome de seus
antepassados e descendentes Diz Redfield
A man has a κλέος which is his lsquoreputationrsquo either in general or for some particular quality Thus a man may have the κλέος of a warrior (Il 17143) a bowman (Il 5172) a spearman and couselor (Il 16241-42 one may have κλέος for good sense (Il 24201-202) or for lsquocraft and advantage-takingrsquo (Il 13299) Κλέος can be earned on the battlefield especially by some grat act such as seizing famous horses (Il 5 273) or recovering the body of someone important (Il 1816) [] for the sack of a city [] can also be earned in the games [] Κλέος is thus a specific type of social identity A man has a history and for better or worse he must live with it His story is in a certain sense himself- or one version of himself- and since his story can survive his personal existence and survive his enactment of social role his story is from one point of view the most real version of himself (REDFIELD 1994 p 32-34)
Satildeo variados os momentos em que um homem poderia criar seu κλέος e talvez ateacute
possamos pensar no contexto cotidiano do que seria o κλέος para uma sociedade real de
guerreiros e homens Sendo bom ou ruim o κλέος do homem arcaico falava muito acerca do
seu contexto social e construiacutea assim seu renome Talvez esse modelo tenha vindo das proacuteprias
narrativas eacutepicas como um ideal a ser seguido ou talvez a proacutepria histoacuteria dos gregos seja o
fomento para produzir esse olhar social em torno do κλέος67
23 O ΚΛΕΟΣ HOMEacuteRICO EM SIacuteNTESE
O κλέος homeacuterico gira em torno das histoacuterias de Aquiles e Odisseu Caberia ao poeta
aedo construir um mecanismo que fizesse essa memoacuteria ser repetida para a perpetuaccedilatildeo desse
κλέος Somente o famoso eacute que se repete Sendo assim eacute impossiacutevel se dissociar o κλέος da
memoacuteria e da repeticcedilatildeo Nessa circularidade das performances e composiccedilotildees e nesses aneacuteis
narrativos da poesia eacute que se guardava uma memoacuteria cultural coletiva eacute onde a histoacuteria desses
heroacuteis e personagens criou seu κλέος
Ao analisar as composiccedilotildees formulares ao analisar a oralidade eacutepica ao observar sua
forma ciacuteclica de composiccedilatildeo e performance ao analisar ainda as pequenas diferenccedilas textuais
67 Retomaremos o assunto ao falar do κλέος dos poetas em si bem como ao falar do κλέος nos preacute-socraacuteticos
58
que atestam sua repeticcedilatildeo em vaacuterias ocasiotildees podemos de fato presumir que κλέος possui um
modus operandi de se perpetuar na poesia Se pensarmos num mundo cuja oralidade eacute a rede
mais dinacircmica e mais viva das informaccedilotildees a fama pertence a quem se repete
O κλέος inscreve assim sua funccedilatildeo no eacutepos e essa funccedilatildeo eacute o que observamos ao
analisarmos o κλέος dos heroacuteis homeacutericos pois eacute atraveacutes de suas histoacuterias que o texto oral e
escrito se manteve e consolidou uma tradiccedilatildeo Apoacutes essas leituras sobre as teses acerca do κλέος
homeacuterico concluiacutemos que haacute algo muito mais elementar do que o κλέος como uma fama (boa
ou ruim) que nasce de boatos e falatoacuterios que acabam povoando todo o mundo grego atraveacutes
das narrativas eacutepicas o κλέος eacute uma passagem do acircmbito privado para o puacuteblico atraveacutes da
repeticcedilatildeo
Essa passagem do privado para o puacuteblico jaacute estava dentro dos poemas homeacutericos O
κλέος laacute eacute muitas vezes descrito e reverberado como um acontecimento que pode se dar com
um personagem em privado mas atraveacutes de vaacuterios mecanismos de propagaccedilatildeo (que vatildeo do
simples falatoacuterio a canccedilotildees que rodam toda a Heacutelade) cria seu κλέος No caso da Iliacuteada esse
movimento do privado para o puacuteblico tem como unidade a trajetoacuteria de Aquiles e os desiacutegnios
de sua ira jaacute na Odisseia o movimento do privado para o puacuteblico garante o retorno de Odisseu
Vejamos um quadro explicativo acerca das expressotildees que contecircm o κλέος dentro do
universo Homeacuterico associado a essa passagem pela repeticcedilatildeo do privado para o puacuteblico
Tabela 3- Quadro explicativo sobre o κλέος em Homero
Expressatildeo Uma anaacutelise atraveacutes do movimento
ldquoprivado para o puacuteblicordquo
Abaixo elencamos exemplos que descrevem
o κλέος como uma atividade de repeticcedilatildeo de
fatos que criam e repercutem uma fama (seja
boa ou ruim) e que qualificam e mensuram a
accedilatildeo dos personagens
O κλέος de forma geral Como fundamentam alguns autores jaacute aqui
expostos o κλέος se apresenta desde um
pequeno falatoacuterio e pequenos rumores para
59
um grande renome e reconhecimento
abrangente inclusive que permeia o meio
divino Essa flexibilidade do uso de κλέος a
nosso ver acompanha sempre um
movimento de repeticcedilatildeo de algo privado que
se torna puacuteblico seguindo o sentido e
abrangecircncia que o poeta deu agrave passagem
κλέος ἐσθλὸν Utilizado em diversas passagens com
diversos personagens possui o caraacuteter
essencial de um renome a ser resguardado ou
conquistado o privado que se torna puacuteblico
fomentado principalmente pelo atributo da
honra
κλέος εὐρὺ Eacute um κλέος que representa que dado sujeito
jaacute eacute conhecido e repetido em boa parte do
mundo grego eacute um κλέος que quase chegou
aos ceacuteus
κλέος οὐρανὸν (com um verbo de
movimento)
Utilizado tambeacutem com variados
personagens expotildee o sentido de uma fama
que chega ateacute o ceacuteu uma fama repetida e
escutada pelos deuses O privado se torna
puacuteblico e eacute inclusive escutado pelos deuses
κλέος ἄφθιτον Um κλέος tambeacutem inextinguiacutevel como
κλέος εἴη mas que eacute associado agrave figura de
Aquiles Seus feitos privados tornam-se
eternamente puacuteblicos Tambeacutem porque satildeo
accedilotildees que influenciam a coletividade
κλέα ἀνδρῶν Nas duas ocorrecircncias na Iliacuteada e Odisseia eacute
associado a Aquiles e a Odisseu Mais do que
isso eacute tambeacutem cantado por Aquiles Trata-se
de um tipo muito peculiar de κλέος talvez ateacute
60
seu niacutevel mais elevado em Homero seria a
fama das famas
O que propomos esquematicamente aqui eacute uma visatildeo do κλέος como uma ferramenta
textual que destaca a relevacircncia de tal dado se tornar conhecido ou natildeo Se tal dado eacute importante
ou natildeo para se movimentar de uma simples fala privada para correr toda a Greacutecia como algo de
extrema importacircncia Essa nossa escala do κλέος se daacute exatamente para exemplificarmos
posteriormente o quanto Hesiacuteodo utilizaraacute tais atributos bem como de qual maneira os preacute-
socraacuteticos almejariam que algo se tornasse eminentemente puacuteblico como algo deveria ser
compartilhado de tal forma a chegar ao maacuteximo nuacutemero de ouvintes assim como as epopeias
de Aquiles e Odisseu chegaram A repeticcedilatildeo pelo κλέος atesta principalmente nos registros
homeacutericos o potencial que algo possui em propagar-se pelo eacutepos
Apoacutes analisarmos esse recorte do que seria a fama o κλέος homeacuterico veremos agora se
a anaacutelise pode se dar da mesma forma ao descrevermos o κλέος de Hesiacuteodo Estando Homero
e Hesiacuteodo dentro de uma mesma tradiccedilatildeo estando ambos utilizando esta rede de comunicaccedilatildeo
e educaccedilatildeo eacutepica estatildeo tambeacutem ambos participando deste processo de repeticcedilatildeo pelo κλέος
eacutepico A poesia de Hesiacuteodo tambeacutem desenvolve sua maneira de criar e repetir um κλέος da
mesma maneira que tambeacutem boa parte da obra desse poeta se enraiacuteza na mesma tradiccedilatildeo de
Homero Vejamos como isso se daacute
61
30 O ΚΛΕΟΣ EM HESIacuteODO O POETA Eacute NOMEADO
Hesiacuteodo pertence agrave tradiccedilatildeo homeacuterica que versificou o κλέος de diversas maneiras Jaacute
observamos por exemplo na Teogonia v100 Μουσάων θεράπων κλέεα προτέρων ἀνθρώπων
(servo das Musas [hineia] a gloacuteria dos antigos) cujos termos correlatos se encontram em Il 9
189 τῇ ὅ γε θυμὸν ἔτερπεν ἄειδε δ ἄρα κλέα ἀνδρῶν (Com ela deleitava o seu coraccedilatildeo
cantando os feitos gloriosos dos homens) bem como em Od 8 73 μοῦσ᾽ ἄρ᾽ ἀοιδὸν ἀνῆκεν
ἀειδέμεναι κλέα ἀνδρῶν (a Musa aticcedilou o cantor a cantar famosos feitos de varotildees) Satildeo
trechos que apresentam uma grande similaridade meacutetrica e de conteuacutedo trata-se de uma mesma
tradiccedilatildeo poeacutetica ou ao menos de grande aproximaccedilatildeo
Mas natildeo somente repetir os mesmos trechos ou similares Hesiacuteodo repete na mesma
medida em que difere O κλέος imortal de Aquiles o κλέος de Odisseu repetidos nas poesias
em hexacircmetros nos guiam como um processo paradigmaacutetico para observarmos que esse
conceito toma algumas novas perspectivas em Hesiacuteodo Aquiles e Odisseu mais do que
personagens da eacutepica homeacuterica trazem no seu DNA a heranccedila de uma tradiccedilatildeo que os cantou
e os repetiu por anos e anos
Hesiacuteodo ou a voz autoral que fala no texto de Hesiacuteodo tambeacutem usou esta tradiccedilatildeo mas
parece inserir um componente singular em sua obra um componente que o fez dividir junto a
Homero a titulaccedilatildeo de educador da Greacutecia arcaica Ao analisarmos a recepccedilatildeo de Hesiacuteodo
podemos verificar que aleacutem de o proacuteprio Hesiacuteodo ter se inserido na poesia68 teria inserido
tambeacutem sua vida privada (seja real ou ficcional) nos versos a qual a tradiccedilatildeo posterior tambeacutem
repetiu e reverberou na fama e lenda desse poeta
Podemos registrar aqui aquilo que a proacutepria tradiccedilatildeo posterior disse acerca de Hesiacuteodo
Que se podia falar de um κλέος de Hesiacuteodo observamos concretamente nas linhas 219-221
Allen do Certame entre Hesiacuteodo e Homero
ὄλβιος οὗτος ἀνὴρ ὃς ἐμὸν δόμον ἀμφιπολεύει Ἡσίοδος Μούσῃσι τετιμένος ἀθανάτῃσιν τοῦ δ ἦ τοι κλέος ἔσται ὅσην τ ἐπικίδναται ἠώς (Feliz este homem que visita minha morada Hesiacuteodo honrado pelas Musas imortais
68 Estamos nos referindo ao v22 da Teogonia αἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν (E a Hesiacuteodo ensinaram belo canto)
62
a fama do qual seraacute tatildeo vasta quanto o espaccedilo por onde se espalha a aurora)69
Fictiacutecio ou natildeo o Certame eacute um bom exemplo de como Hesiacuteodo foi apreendido e
compreendido na Antiguidade Principalmente no atributo que eacute o fundamento deste trabalho
o κλέος O Hesiacuteodo que eacute honrado pelas Musas imortais tambeacutem se imortalizou no verso e
recebeu assim a fama como resultado dessa perspectiva pessoal cotidiana didaacutetica assim como
observamos no Certame novamente ressaltamos informaccedilotildees que podem ser sim de uma
pessoa chamada Hesiacuteodo ou de um Hesiacuteodo ficcional mas que ficou assim conhecido como
um real autor Poderiacuteamos tambeacutem resgatar o testemunho de Pausacircnias acerca do poeta de
Ascra (Paus 9383-4)
τάφοι δὲ Μινύου τε καὶ Ἡσιόδου καταδέξασθαι δέ φασιν οὕτω τοῦ Ἡσιόδου τὰ ὀστᾶ Νόσου καταλαμβανούσης λοιμώδους καὶ ἀνθρώπους καὶ τὰ βοσκήματα ἀποστέλλουσι θεωροὺς παρὰ τὸν θεόν τούτοις δὲ ἀποκρίνασθαι λέγουσι τὴν Πυθίαν Ἡσιόδου τὰ ὀστᾶ ἐκ τῆς Ναυπακτίας ἀγαγοῦσιν ἐς τὴν Ὀρχομενίαν ἄλλο δὲ εἶναί σφισιν οὐδὲν ἴαμα τότε δὲ ἐπερέσθαι δεύτερα ὅπου τῆς Ναυπακτίας αὐτὰ ἐξευρήσουσι καὶ αὖθις τὴν Πυθίαν εἰπεῖν ὡς μηνύσοι κορώνη σφίσιν οὕτω τοῖς θεοπρόποις ἀποβᾶσιν ἐς τὴν γῆν πέτραν τε οὐ πόρρω τῆς ὁδοῦ καὶ τὴν ὄρνιθα ἐπὶ τῇ πέτρᾳ φασὶν ὀφθῆναι καὶ τοῦ Ἡσιόδου δὲ τὰ ὀστᾶ εὗρον ἐν χηραμῷ τῆς πέτρας καὶ ἐλεγεῖα ἐπὶ τῷ μνήματι ἐπεγέγραπτο lsquoἌσκρη μὲν πατρὶς πολυλήιος ἀλλὰ θανόντος ὀστέα πληξίππων γῆ Μινυῶν κατέχει Ἡσιόδου τοῦ πλεῖστον ἐν Ἑλλάδι κῦδος ὀρεῖται ἀνδρῶν κρινομένων ἐν βασάνῳ σοφίηςrsquo (E existem tuacutemulos de Miacutenias e de Hesiacuteodo (isto eacute em Orcocircmeno) Dizem que os ossos de Hesiacuteodo foram trazidos ateacute laacute da seguinte maneira Porque uma doenccedila pestilencial tinha se dado tanto com os homens como com o gado enviaram mensageiros ao deus eles disseram que a Piacutetia lhes respondeu que deviam trazer os ossos de Hesiacuteodo da regiatildeo de Naupacto para a de Orcocircmeno e que natildeo havia outro remeacutedio para eles Entatildeo perguntaram uma segunda vez onde na regiatildeo de Naupacto os encontrariam e a Piacutetia disse que um corvo lhes mostraria E assim dizem eles quando os emissaacuterios estavam partindo eles viram uma pedra natildeo longe da estrada e o paacutessaro sobre a pedra e eles encontraram os ossos de Hesiacuteodo em um buraco na rocha E uma elegia estava gravada no memorial ldquoAscra com seus muitos campos de milho (era) minha terra natal mas agora que eu morri A terra dos Miacutenios domadores de cavalos tecircm os ossos de Hesiacuteodo cuja gloacuteria entre os seres humanos eacute a maior Quando os homens satildeo julgados nas provaccedilotildees da sabedoria)70
69 Trad de JAA Torrano 70 Trad adaptada de Maria Cruz Herrero Ingelmo
63
Trechos como esse como jaacute foi dito satildeo exemplos do legado lendaacuterio que Hesiacuteodo teria
deixado Mas fora de sua recepccedilatildeo na sua poesia em si podemos observar outros tipos de
κλέος Na obra de Hesiacuteodo o κλέος natildeo mais se apresenta apenas como o de um heroacutei e seus
feitos memoraacuteveis mas tambeacutem na figura de um poeta que eacute tocado pelas Musas que atraveacutes
das Musas alcanccedila a memoacuteria por vir alcanccedila a repeticcedilatildeo pelos feitos divinos Alcanccedila tambeacutem
o κλέος na sua voz autoral que fala de si mesma como sujeito de fatos comuns e de uma
moralidade prosaica
Quando nos referimos ao termo ldquovoz autoralrdquo deve ficar claro que nos referimos 1) agrave
voz que estaacute narrando os versos constantes na Teogonia e nos Eacuterga 2) que essa voz autoral se
chama por Hesiacuteodo 3) Que essa voz autoral eacute chamada por noacutes tambeacutem de poeta aquele que
narra a poesia E aqui surge um problema com que devemos lidar como chamar dentro da
poesia eacutepica de Hesiacuteodo essa voz autoral que fala de si mesma Jaacute que denominar esse
fenocircmeno de ldquofalar de si mesmordquo como individualidade ou subjetividade pecaria por
anacronismo
Segundo o Dicionaacuterio de Filosofia de Nicolas Abbagnano bem como o Historical
Dictionary of Ancient Greek Philosophy a palavra grega que mais se aproximaria de ldquosujeitordquo
eacute hypokeiacutemenon como nos diz o Dictionary of Ancient Greek Philosophy ldquoLiterally
lsquounderlyingrsquo typically translated lsquosubstratumrsquordquo (2007 p 142) Mas trata-se de uma palavra
utilizada principalmente em Aristoacuteteles para tratar de conceitos loacutegicos e gramaticais Mais
difiacutecil ainda eacute falar em ldquoindividualidaderdquo no mundo arcaico Segundo Abbagnano (1998)
ldquoTermo de origem medieval o modo de ser do indiviacuteduordquo O Vocabulaire Technique et Critique
de la Philosophie (1997 p 501) confirma essas informaccedilotildees destacando que se trata de um
termo originaacuterio do latim individualitas introduzido na linguagem filosoacutefica possivelmente por
Avicena Por isso ao utilizarmos termos como ldquoindiviacuteduordquo ldquovida do poetardquo estaremos nos
referindo agrave voz autoral que fala de si mesma nos versos Hesioacutedicos bem como agravequilo que ficou
na tradiccedilatildeo que recepcionou Hesiacuteodo e natildeo nos referiremos a esses conceitos de subjetividade
que soariam anacrocircnicos
Cabe agora registrarmos de forma mais analiacutetica como o κλέος se apresenta no texto de
Hesiacuteodo e como esse conceito se arranja em seus versos dentro dessa voz autoral Para
iniciarmos essa discussatildeo primeiramente apresentaremos informaccedilotildees sobre o leacutexico hesioacutedico
atestando a ocorrecircncia e relevacircncia da palavra κλέος e seus correlatos neste poeta
64
31 O ΚΛΕΟΣ NO LEacuteXICO DE HESIacuteODO SUA RELACcedilAtildeO COM AS MUSAS
Na obra Lexicon Hesiodeum de Hofinger (1975) eacute descrita a ocorrecircncia das seguintes
palavras no texto hesioacutedico κλέος κλειτός κλείω κλέα e κλυτός palavras que estatildeo no mesmo
campo leacutexico Dois satildeo os sentidos principais de κλέος segundo Hofinger (1975 p 352)
renome e gloacuteria como em Th 530 os grandes feitos ou accedilotildees de brilho como em Th 100
(como κλέα no nominativo plural) Jaacute κλειτός encontramos com o sentido de ilustre ou
renomado em Th04 E κλείω em diversas formas verbais das quais falaremos com mais
detalhes agrave frente mas a tiacutetulo de exemplo podemos encontrar κλείουσιν no presente do
indicativo em Th 44 e 67 e no optativo κλείοιμι em Th 32 Finalmente κλυτός com sentido
de renomado divino glorioso geralmente para qualificar os feitos divinos
No Concordance to the hesiodic corpus de Minton (1976) observamos aleacutem daquilo
jaacute exposto por Hofinger alguns casos interessantes registrados em alguns fragmentos
hesioacutedicos Por exemplo no Fr 2912 observamos o registro de Κλέεια (uma das filhas de
Atlas) Φαισύλη ἠδέ Κορωνίς ἐυστέφανός τε Κλέεια Trata-se do fragmento presente em DK
como DK 4 B 5 (SCHOL ARAT 172) νύμφαι Χαρίτεσσιν ὁμοῖαι Φαισύλη ἠδὲ Κορωνὶς
ἐυστέφανός τε Κλέεια Φαιώ θ ἱμερόεσσα καὶ Εὐδώρη τανύπεπλος ἃς Ὑάδας καλέουσιν ἐπὶ
χθονὶ φῦλ ἀνθρώπων (ninfas semelhantes aacutes Caacuterites Fesile e Coronis e Cleia com uma bela
coroa Faio amaacutevel e Eudora com um veacuteu longo que as linhagens de homens na terra chamam
Iacuteades) Observamos tambeacutem a ocorrecircncia de κλυτά nos escoacutelios Sc67 123 297 sempre
associados aos deuses o que reforccedila o exposto por Hofinger
Jaacute o Lexikon des fruhgriechischen Eacutepos de Bruno Snell (1991) apresenta um grande
apanhado de κλέος em todo o universo eacutepico Aleacutem das formas e significados apontados aqui
Snell faz uma exposiccedilatildeo abrangente dos metros em que se insere o κλέος em alguns versos
encontrando exemplos em todas as posiccedilotildees do hexacircmetro Tendo em matildeos os guias leacutexicos
citados quando nos atemos ao texto hesioacutedico em si percebemos a relaccedilatildeo que se constroacutei entre
as Musas a voz autoral de Hesiacuteodo e os sentidos de κλέος que se estruturam em seu poema
Se faz necessaacuterio entatildeo neste momento abordarmos o papel das Musas nos versos de
Hesiacuteodo e sua relaccedilatildeo com o κλέος pois satildeo elas que datildeo autoridade a essa voz autoral
encontrada no texto A voz de Hesiacuteodo e sua moralidade cotidiana se conectam nessa memoacuteria
coletiva da performance da invocaccedilatildeo agraves Musas na repeticcedilatildeo dos versos Em Hesiacuteodo esta
relaccedilatildeo com as Musas se daacute em parte na mesma forma que se deu na Iliacuteada Diz o narrador
65
principal da Iliacuteada as Musas tudo saberem como diz tambeacutem Hesiacuteodo ressaltando a
importacircncia que elas possuem no papel das repeticcedilotildees da memoacuteria bem como na relaccedilatildeo do
poeta com seu puacuteblico As Musas satildeo as autoridades nesses quesitos satildeo a garantia da
veracidade da performance Elas tudo sabem pois genealogicamente descendem de Zeus e da
deusa Memoacuteria Tiveram assim as Musas sua gecircnese conforme versos da Teogonia 53-68
τὰς ἐν Πιερίῃ Κρονίδῃ τέκε πατρὶ μιγεῖσα Μνημοσύνη γουνοῖσιν Ἐλευθῆρος μεδέουσα λησμοσύνην τε κακῶν ἄμπαυμά τε μερμηράων ἐννέα γάρ οἱ νυκτὸς ἐμίσγετο μητίετα Ζεὺς νόσφιν ἀπ᾽ ἀθανάτων ἱερὸν λέχος εἰσαναβαίνων ἀλλ᾽ ὅτε δή ῥ᾽ ἐνιαυτὸς ἔην περὶ δ᾽ ἔτραπον ὧραι μηνῶν φθινόντων περὶ δ᾽ ἤματα πόλλ᾽ ἐτελέσθη ἣ δ᾽ ἔτεκ᾽ ἐννέα κούρας ὁμόφρονας ᾗσιν ἀοιδὴ μέμβλεται ἐν στήθεσσιν ἀκηδέα θυμὸν ἐχούσαις τυτθὸν ἀπ᾽ ἀκροτάτης κορυφῆς νιφόεντος Ὀλύμπου ἔνθα σφιν λιπαροί τε χοροὶ καὶ δώματα καλά πὰρ δ᾽ αὐτῇς Χάριτές τε καὶ Ἵμερος οἰκί᾽ ἔχουσιν ἐν θαλίῃς ἐρατὴν δὲ διὰ στόμα ὄσσαν ἱεῖσαι μέλπονται πάντων τε νόμους καὶ ἤθεα κεδνὰ ἀθανάτων κλείουσιν ἐπήρατον ὄσσαν ἱεῖσαι αἳ τότ᾽ ἴσαν πρὸς Ὄλυμπον ἀγαλλόμεναι ὀπὶ καλῇ ἀμβροσίῃ μολπῇ [] (Na Pieacuteria gerou-as da uniatildeo do Pai Cronida Memoacuteria rainha nas colinas de Eleutera para obliacutevio de males e pausa de afliccedilotildees Nove noites teve uniotildees com ela o saacutebio Zeus longe dos imortais subindo ao sagrado leito Quando girou o ano e retornaram as estaccedilotildees com as miacutenguas das luas e muitos dias findaram ela pariu nove moccedilas concordes que dos cantares tecircm o desvelo no peito e natildeo-triste acircnimo perto do aacutepice altiacutessimo do nevoso Olimpo aiacute os seus coros luzentes e belo palaacutecio Junto a elas as Graccedilas e o Desejo tecircm morada nas festas pelas bocas amaacutevel voz lanccedilando danccedilam e gloriam a partilha e haacutebitos nobres de todos os imortais voz bem amaacutevel lanccedilando Elas iam ao Olimpo exultantes com a bela voz impereciacutevel danccedila [])
Nove foram as noites de nuacutepcias entre Zeus e Memoacuteria nove foram as Musas que
descendem desta alianccedila Suas denominaccedilotildees vecircm a seguir na Teogonia versos 77-80 ἐννέα
θυγατέρες μεγάλου Διὸς ἐκγεγαυῖαι Κλειώ τ᾽ Εὐτέρπη τε Θάλειά τε Μελπομέενη τε
Τερψιχόρη τ᾽ Ἐρατώ τε Πολύμνιά τ᾽ Οὐρανίη τε Καλλιόπη θ᾽ ἣ δὲ προφερεστάτη ἐστὶν
66
ἁπασέων (Nove filhas nascidas do grande Zeus Gloacuteria Alegria Festa Danccedilarina Alegra-
coro Amorosa Hinaacuteria Celeste e Belavoz que dentre todas vem agrave frente) Aleacutem das Musas
representarem a descendecircncia da Memoacuteria original em sua uniatildeo com Zeus cada uma delas
parece trazer uma caracteriacutestica notaacutevel desta representaccedilatildeo da memoacuteria e sua funccedilatildeo na poesia
Κλειώ (Kleioacute) eacute a primeira Musa enunciada por Hesiacuteodo Nome que (segundo LSJ)
deriva do verbo κλέω ou κλείω que significa ldquocelebrarrdquo Poreacutem eacute inegaacutevel sua proximidade
do proacuteprio campo semacircntico de κλέος Deriva tambeacutem do mesmo campo semacircntico de κλείω o
verbo κλῄζω que eacute ldquotornar famosordquo ldquocelebrar na canccedilatildeordquo tambeacutem segundo LSJ Jaa Torrano
adapta ao portuguecircs como a Musa Gloacuteria mantendo as similaridades entre κλείω e κλέος Pietro
Pucci (PUCCI 1977 p 12) diz que os nomes das Musas derivam do particular artiacutestico que eacute
atribuiacutedo a elas mas mesmo assim traduz como Clio Hofinger (1975 p 352) nos lembra que
os primeiros escoliastas e comentadores de Hesiacuteodo atribuem agrave Musa Clio tambeacutem a invenccedilatildeo
da Retoacuterica
Registramos poreacutem que essa Musa jaacute havia aparecido na Teogonia de forma indireta
no verso 32 em ἵνα κλείοιμι (para que eu cante) que eacute uma forma verbal de κλείω Deve-se
ressaltar a importacircncia de Clio ser a primeira Musa a ser enunciada por Hesiacuteodo como se o
processo de invocaccedilatildeo agraves Musas se relacionasse diretamente com sua genealogia Para anunciar
as oito Musas subsequentes Clio eacute nominada reafirmando sua relaccedilatildeo etimoloacutegica com o verbo
κλείω bem como sua inegaacutevel relaccedilatildeo com κλέος
A segunda Musa enunciada por Hesiacuteodo Εὐτέρπη (Alegria) jaacute havia sido tambeacutem
prenunciada no verso 37 τέρπουσι (agradam) A terceira Θάλεια (Festa) no verso 65 θαλίῃς
(festividades) Em quarto lugar aparece Μελπομέενη (Celebraccedilatildeo ou Danccedilarina segundo
Torrano) anunciada nos versos 66 μέλπονται e 69 μολπῇ (canccedilatildeo) Em quinto Τερψιχόρη
(Alegra-coro) prenunciada no verso 37 τέρπουσι (deleita) Em sexto Ἐρατώ (Amorosa)
tambeacutem prenunciada no verso 65 ἐρατὴν (amaacutevel) Em seacutetimo Πολύμνια (poli-cantora ou
Hinaacuteria segundo Torrano) antecedida no verso 70 por ὑμνεύσαις (ao hinearem) Em oitavo
Οὐρανίη (Celeste) prenunciada no verso 71 οὐρανῷ (ceacuteu) E finalmente Καλλιόπη (Belavoz)
citada anteriormente no verso 68 ὀπὶ καλῇ (bela voz) E note-se que a presenccedila nos versos de
Hesiacuteodo dos eacutetimos dos nomes das Musas natildeo se limita a esses exemplos
Os nomes que correspondem a essas Musas repetem-se na cadecircncia das palavras de
forma indireta aparecem como substantivos comuns adjetivos ou verbos em versos anteriores
Repetem-se mesmo antes de suas denominaccedilotildees como nomes proacuteprios um fato que por si soacute
67
reforccedila a ideia de repeticcedilatildeo pelo canto e pela mnemoteacutecnica Hesiacuteodo estaria cantando a partir
de pequenas caracteriacutesticas que resultariam na proacutepria denominaccedilatildeo de cada Musa tatildeo
importantes no processo da poesia gloacuteria alegria festa celebraccedilatildeo alegre coro amorosidade
multi-canccedilatildeo caraacuteter celestial bela voz apontando aqui as significaccedilotildees da Musas de forma
extremamente econocircmica Satildeo essas qualidades as forccedilas divinas que pela voz do poeta visam
perpetuar a memoacuteria de algo
Podemos imaginar todavia uma ordem contraacuteria agrave que Hesiacuteodo propotildee na sua poesia
comeccedilando pela uacuteltima Musa ou aquela que o poeta parece salientar mais que ele traria como
a ldquoque dentre todas vecircm agrave frenterdquo Belavoz E aqui podemos descrever nossa interpretaccedilatildeo
apontando Belavoz como aquela que vecircm agrave frente depois de Clio ser a a primeira denominada
Clio se relaciona diretamente com Belavoz no processo poeacutetico e natildeo sabemos ao certo qual eacute
a mais importante para a poesia Clio estaria numa espeacutecie de motivaccedilatildeo (gloacuteria) da poesia e
Belavoz estaria numa espeacutecie de forma como o aedo deveria recitar
Talvez por retratar a funccedilatildeo da memoacuteria acuacutestica seja a Belavoz a Musa que lidera a
experiecircncia poeacutetica no sentido de que o poeta deve ter algo em sua voz em sua performance
que cative sua audiecircncia que seduza a atenccedilatildeo de seu puacuteblico A partir disso pretende alcanccedilar
os ceacuteus do Olimpo (Celeste) pela diversidade dos cantos (multi-canccedilatildeo) atingindo as Musas
os atributos comemorativos e resultados praacuteticos das performances (amorosidade alegre coro
celebraccedilatildeo festa e alegria) para finalmente alcanccedilar a fama Eacute uma espeacutecie de receita que
cultiva a memoacuteria e a fama atraveacutes da repeticcedilatildeo dos cantos
Eacute aquilo que como jaacute retratamos Peabody (1975) chamou de construccedilatildeo em anel do
primeiro tipo com elementos secundaacuterios que geram uma espeacutecie de elemento temaacutetico ou
seja esse tema eacute a finalidade pela qual estes temas secundaacuterios se repetem Essas satildeo as Musas
que a Hesiacuteodo ensinaram um belo canto satildeo as nove forccedilas presentes na poesia memoacuteria e
arte Quando Hesiacuteodo inicia a Teogonia no v 22 e diz que as Musas lhe ensinaram um belo
canto ele acaba por fazer uma representaccedilatildeo das Musas e de si proacuteprio ao assinar a sua produccedilatildeo
poeacutetica Hesiacuteodo insere-se no nuacutecleo do κλέος das Musas pois eacute a partir delas e agora junto a
elas que o poeta inicia sua cadeia de genealogias e repeticcedilotildees atraveacutes de uma narrativa em que
se insere como personagem Se insere tambeacutem atraveacutes das teacutecnicas mnemocircnicas e estruturas
circulares que compotildeem seu discurso Bruno Snell ressalta a importacircncia da genealogia das
Musas dentro da Teogonia de Hesiacuteodo
68
As Musas diz Hesiacuteodo satildeo filhas de Zeus e de Mnemoacutesine a deusa da Memoacuteria Traduzindo em linguagem profana isso significa mais ou menos o seguinte que a poesia derivando da suma divindade goza de uma particular dignidade e importacircncia e que sua funccedilatildeo principal eacute a de conservar o objeto de representaccedilatildeo da memoacuteria dos homens e de fato na idade arcaica toda tradiccedilatildeo repousa na poesia (SNELL 2003 p 42)
Podemos entatildeo resgatar a explicaccedilatildeo de Bruno Snell que retrata a poesia como gozando
de particularidades divinas sendo essas particularidades exatamente a sua grande autoridade de
Zeus e sua conservaccedilatildeo da memoacuteria dos homens (Mnemosine) pois esse eacute um dos objetos da
poesia relembrar e educar Neste instrumento particular de guardar um discurso depositar uma
histoacuteria resguardar uma memoacuteria a poesia atua como um verdadeiro receptaacuteculo de narrativas
perenes um arquivo vivo de rememoraccedilotildees abenccediloadas pelas Musas em comunhatildeo com a voz
autoral que fala na poesia hesioacutedica
A poesia arcaica de Hesiacuteodo eacute o que poderiacuteamos chamar hoje de um verdadeiro hard
disk coletivo de memoacuterias conduzidas primeiramente pelas Musas Elas conduzem pois satildeo
conclamadas para que a memoacuteria natildeo abandone o poeta que seguiraacute a partir deste lugar-comum
inicial o percurso da narrativa Esse percurso essas histoacuterias se materializam em uma memoacuteria
acuacutestica fomentada por ciacuterculos de repeticcedilotildees por artifiacutecios mnemocircnicos e criam essa tradiccedilatildeo
arcaica da poesia como realidade da cultura e da educaccedilatildeo se materializam no κλέος Marcel
Detienne tambeacutem ressalta esse valor das Musas
As Musas satildeo potecircncias religiosas que ultrapassam o homem no momento que se sente interiormente a sua presenccedila () Canta-se um velho relato imaginado pelos saacutebios e transmitido de memoacuteria como tantos outros de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo (DETIENNE 2013 p 53)
As Musas satildeo assim as grandes potecircncias de sobrevivecircncia do texto pois canalizam os
atributos que sustentam a poesia oral como grande catalizador da cultura arcaica Assim como
as Musas garantiam a veracidade do texto homeacuterico garantem tambeacutem a veracidade do texto
hesioacutedico co-irmatildeos nessa mesma tradiccedilatildeo
Mas retornemos agrave relaccedilatildeo do poeta Hesiacuteodo com as Musas Satildeo elas que possibilitam
que Hesiacuteodo glorie o futuro e o passado sendo κλείοιμι como jaacute dissemos a forma verbal que
se constroacutei a partir da heranccedila de κλέος Vejamos melhor esta passagem retornando aos versos
Th 31-34 ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ᾽ ἐσσόμενα πρό τ᾽ ἐόντα καί
μ᾽ ἐκέλονθ᾽ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων σφᾶς δ᾽ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν
69
ἀείδειν (e inspiraram-me um cantodivino para que eu glorie o futuro e o passado impeliram-
me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar)
Observamos elementos essenciais na composiccedilatildeo desta funccedilatildeo arcaica das Musas
Segundo West (1966 p 165) a faculdade expressa em αὐδὴν θέσπιν (canto divino) se encaixa
com a finalidade proposta ἵνα κλείοιμι (para que glorie) de forma perfeita enquanto αὐδή eacute
apenas uma atividade normal Jaacute a expressatildeo τά τ᾽ ἐσσόμενα tambeacutem segundo West expressa
a conexatildeo proacutexima entre poesia e profecia que eacute generalizada na poesia arcaica Na ausecircncia
de registros escritos quanto agrave referecircncia ao passado a habilidade de ver atraveacutes do passado
distante tambeacutem eacute algo considerado maravilhoso Pucci (2007 p 75) concorda com West ao
afirmar ldquoun nesso stratto fra poesia e profezia frequente nella letteratura arcaicardquo A passagem
demonstra uma vontade de verdade ao se saber do que jaacute se passou e do que ainda viraacute Ela
demonstra a autoridade de Hesiacuteodo para tornar famoso o que jaacute se passou e o que estaacute por vir
As Musas natildeo possuem somente uma conexatildeo etimoloacutegica com κλέος no sentido de que
seus nove nomes estatildeo associados agrave praacutetica poeacutetica cada uma a sua maneira Elas participam
tambeacutem do sentido profeacutetico e religioso do texto sendo compreensiacutevel a necessidade de
Hesiacuteodo se associar ou ser associado ao rito de passagem junto agraves Musas Ele preenche assim
seus versos com a verdade do passado e do futuro Satildeo as Musas que habilitam Hesiacuteodo a
glorificar tornar famoso o futuro e passado satildeo as Musas que credenciam o poeta a cantar o
κλέος
32 O ΚΛΕΟΣ EM ALGUMAS PASSAGENS DO TEXTO HESIOacuteDICO Observamos nos versos Th 31-34 que ao se apresentar como escolhido pelas Musas
Hesiacuteodo jaacute se colocava individualmente (μοι) inspirado pelo canto divino antes mesmo de
apresentar a genealogia das Musas para glorificar (κλείοιμι) o futuro e o passado O futuro
talvez no sentido de ser uma repeticcedilatildeo do passado dada a forccedila do verbo κλείω e sua relaccedilatildeo
com a memoacuteria jaacute tanto enunciada aqui Por isso hinear o ser (ἐόντων) sempre iniciado e
finalizado neste κλέος das Musas
O κλέος do texto e sua repeticcedilatildeo tem seu criteacuterio de veracidade atestado pelas Musas
dentro da tradiccedilatildeo homeacuterica (soacute se fala e se repete aquilo que passa do privado para o puacuteblico)
como jaacute dissemos e eacute tambeacutem dentro da tradiccedilatildeo de Hesiacuteodo pois eacute no ambiente puacuteblico que
se canta agraves Musas Sendo assim se as Musas satildeo garantia de veracidade em Homero e Hesiacuteodo
tambeacutem satildeo garantia do κλέος
70
Em ambos os poetas satildeo as Musas talvez a maior potecircncia de veracidade da poesia71
sendo essa veracidade amplificada e transmitida atraveacutes do κλέος da repeticcedilatildeo Em Homero
existe o paradigma de κλέος dentro das repeticcedilotildees de Aquiles e Odisseu (e ainda nas suas
variadas passagens que conduzem do privado para o puacutebico) jaacute em Hesiacuteodo existe a repeticcedilatildeo
e paradigma da voz proacutepria do poeta como escolhido pelas Musas que ao peacute do monte Heacutelicon
legitimaram suas habilidades
Aleacutem dessa relaccedilatildeo das Musas com o κλέος se faz importante uma anaacutelise de outras
ocorrecircncias de κλέος dentro dos versos hesioacutedicos Natildeo eacute somente na composiccedilatildeo e na gecircnese
das Musas bem como na etimologia de seus nomes e na relaccedilatildeo com o ofiacutecio do canto e da
memoacuteria que observamos algumas passagens relevantes de κλέος na obra de Hesiacuteodo Existem
outros trechos cruciais Comecemos pela Teogonia v 94-104 onde uma importante passagem
ressalta a funccedilatildeo de κλέος
ἐκ γάρ τοι Μουσέων καὶ ἑκηβόλου Ἀπόλλωνος ἄνδρες ἀοιδοὶ ἔασιν ἐπὶ χθόνα καὶ κιθαρισταί ἐκ δὲ Διὸς βασιλῆες ὁ δ ὄλβιος ὅντινα Μοῦσαι φίλωνται γλυκερή οἱ ἀπὸ στόματος ῥέει αὐδή εἰ γάρ τις καὶ πένθος ἔχων νεοκηδέι θυμῷ ἄζηται κραδίην ἀκαχήμενος αὐτὰρ ἀοιδὸς Μουσάων θεράπων κλεῖα προτέρων ἀνθρώπων72 ὑμνήσει μάκαράς τε θεοὺς οἳ Ὄλυμπον ἔχουσιν αἶψ ὅ γε δυσφροσυνέων ἐπιλήθεται οὐδέ τι κηδέων μέμνηται ταχέως δὲ παρέτραπε δῶρα θεάων (Pelas Musas e pelo golpeante Apolo haacute cantores e citaristas sobre a terra e por Zeus reis Feliz eacute quem as Musas amam doce de sua boca flui a voz Se com anguacutestia no acircnimo receacutem-ferido algueacutem aflito mirra o coraccedilatildeo e se o cantor servo das Musas hineia a gloacuteria dos antigos e os venturosos Deuses que tecircm o Olimpo logo esquece os pesares e de nenhuma afliccedilatildeo se lembra jaacute os desviaram os dons das Deusas)
71 Variadas satildeo as questotildees interpretativas que cercam as passagens que relacionam as Musas com a verdade em Hesiacuteodo e Homero Mas indicamos aqui uma possiacutevel interpretaccedilatildeo que eacute a relaccedilatildeo proacutexima das Musas com a verdade tanto em Homero como em Hesiacuteodo Podemos observar isso por exemplo na Od 9 203 ἴσκε ψεύδεα πολλὰ λέγων ἐτύμοισιν ὁμοῖα τῆς δ᾽ ἄρ᾽ ἀκουούσης ῥέε δάκρυα (representava muitas mentiras dizendo coisas semelhantes a fatos E da que ouvia corriam laacutegrimas) tanto como na Teogonia versos 27-28 ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα ἴδμεν δ᾽ εὖτ᾽ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι (ldquosabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildeesrdquo) Para as relaccedilotildees entre estes dois trechos especiacuteficos ver BRANDAtildeO (2005 p 25) 72 Devemos relembrar tambeacutem a relaccedilatildeo do v 100 da Teogonia com outras passagens homeacutericas jaacute descritas nas paacuteginas anteriores
71
Essa passagem remete agrave praacutetica da poesia como funccedilatildeo mestra e terapecircutica do poeta
pois eacute ao cantar a gloacuteria que se observa o esquecimento das dores Muito comentadores lembram
tambeacutem que as linhas 94-97 da Teogonia satildeo correlatas agraves linhas 2-5 do Hino Homeacuterico 25
Trata-se exatamente do hino agraves Musas e a Apolo Eacute um trecho que considerando as devidas
controveacutersias sobre quem teria escrito antes (Hesiacuteodo ou o compilador dos hinos) ressalta a
nosso ver a tese de uma tradiccedilatildeo oral anterior a ambos versos que muitos compartilhavam
Segundo Pucci (2007 p 22) os κλεῖα satildeo produzidos pelo poeta em seu canto de
celebraccedilatildeo para glorificar exatamente os heroacuteis estabelecendo essa triacuteplice relaccedilatildeo entre os
poetas as Musas e os heroacuteis No sentido de que as Musas satildeo a garantia da verdade dos fatos
os poetas aqueles que invocando as Musas tornam-se portadores do cetro e da palavra
conectando o puacuteblico com a verdade das Musas e os heroacuteis aqueles dos quais se relata o κλέος
De fato se tomarmos outra ocorrecircncia de κλέος na Teogonia esta perspectiva parece
ser confirmada vejamos Th 530-31 ὄφρ Ἡρακλῆος Θηβαγενέος κλέος εἴη πλεῖον ἔτ ἢ τὸ
πάροιθεν ἐπὶ χθόνα πουλυβότειραν (para que de Heacuteracles Tebano fosse a gloacuteria maior que
antes sobre a terra multinutriz) O κλέος coloca-se aqui como resultado do ato heroico de
Heacuteracles que matou a ave que torturava Prometeu Conforme afirma West (1966 p 313)
ldquoZeus allows Heracles to shoot the bird because he wants his son to win glory Killing a
pestilential monster is a heroic deed and it is by this that Heraclersquos glory is increasedrdquo Eacute mais
uma relaccedilatildeo em que pode ser observado com o κλέος no texto homeacuterico
Melissa Mueller (2016) associa a passagem de Heacuteracles em Th 530-532 com a
ldquodoenccedilardquo da mortalidade (ou seja a espeacutecie de castigo que foi a degeneraccedilatildeo da raccedila de ouro
ateacute o mito de Prometeu) dentro da Teogonia Ela faz essa associaccedilatildeo ao observar que mesmo
sabendo da condiccedilatildeo de Prometeu (que havia sido punido por Zeus) e mesmo jaacute sabendo do
κλέος que Heacuteracles jaacute gozava por ser um heroacutei Zeus confere novamente κλέος a Heacuteracles
Mueller (2016 p 11) ainda explica o nome Heacuteracles como κλέος derivado de Hera (Ἡρα +
κλῆος)
Natildeo podemos deixar de notar entretanto κλέος εἴη tambeacutem como uma expressatildeo
formular que jaacute fora utilizada na obra homeacuterica Aqui observamos Hesiacuteodo utilizar essa
expressatildeo para tratar de Heacuteracles Segundo West (1966 p 313) eacute um feito heroico matar um
monstro pestilento e cruel (como eacute de fato o paacutessaro que atormenta Prometeu) Por isso o κλέος
de Heacuteracles eacute aumentado (ldquoincreasedrdquo) O que denotaria o fato de que o κλέος pode ser
72
aumentado por algum personagem que jaacute o possua eacute o caso de Heacuteracles Isso explicaria tambeacutem
os vaacuterios personagens e vaacuterios κλέα presentes na poesia oral arcaica em seus mais variados
graus de κλέος numa espeacutecie de escala crecente ou decrescente de κλέος Isso pode ser
observado na relaccedilatildeo entre as expressotildees formulares homeacutericas e o κλέος como jaacute aqui
apresentado
Algumas formas verbais de κλέος reafirmam o papel de ldquotornar ceacutelebrerdquo com renome e
fama ainda dentro da Teogonia Em Th 31-32 como jaacute citado anteriormente em parte
observamos o verbo κλείοιμι (ldquocelebrasse glorierdquo) ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν θέσπιν ἵνα
κλείοιμι τά τ᾽ ἐσσόμενα πρό τ᾽ ἐόντα (e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o
futuro e o passado) Se por um lado na forma nominal κλέος pode ser relacionada com heroacuteis
na forma verbal observamos o proacuteprio Hesiacuteodo tendo a capacidade de glorificar e celebrar os
fatos por mais que ainda esteja no momento de inspiraccedilatildeo das Musas
O mesmo argumento pode ser levantado em Th 44-45 com o verbo κλείουσιν
(ldquocelebram glorificamrdquo) que segundo Pucci (2007 p 82) consolida a tarefa das Musas que eacute
dar o κλέος desde o iniacutecio (ἐξ ἀρχῆς) θεῶν γένος αἰδοῖον πρῶτον κλείουσιν ἀοιδῇ ἐξ ἀρχῆς
οὓς Γαῖα καὶ Οὐρανὸς εὐρὺς ἔτικτεν (o ser venerando dos Deuses primeiro gloriam no canto
decircs o comeccedilo os que a Terra e o Ceacuteu amplo geraram)
A mesma forma verbal reaparece no verso 67 (κλείουσιν) que observamos em Th 64-
67 πὰρ δ᾽ αὐτῇς Χάριτές τε καὶ Ἵμερος οἰκί᾽ ἔχουσιν ἐν θαλίῃς ἐρατὴν δὲ διὰ στόμα ὄσσαν
ἱεῖσαι μέλπονται πάντων τε νόμους καὶ ἤθεα κεδνὰ ἀθανάτων κλείουσιν ἐπήρατον ὄσσαν
ἱεῖσαι (Junto a elas as Graccedilas e o Desejo tecircm morada nas festas pelas bocas amaacutevel voz
lanccedilando danccedilam e gloriam a partilha e haacutebitos nobres de todos os imortais voz bem amaacutevel
lanccedilando)
As que agora celebram as partilhas (νόμους) e haacutebitos nobres (ἤθεα κεδνὰ) tecircm a
companhia das Graccedilas (Χάριτές) e do Desejo (Ἵμερος) em uma clara atmosfera de festividade
que como tambeacutem jaacute expusemos antecipa a gecircnese das nove Musas que ocorreraacute poucas linhas
agrave frente Segundo Pucci (2007 p 94) Graccedilas e Desejo satildeo divindades que durante toda a
tradiccedilatildeo arcaica acompanham Afrodite mas tambeacutem as Musas ldquoCheios de desejordquo eacute inclusive
um epiacuteteto dos coros das Musas em Th 8 (ἱμερόεντας)
Outra forma verbal importante ligada ao κλέος estaacute em Th105 eacute κλείετε (tornai
famoso) verbo na primeira posiccedilatildeo do verso na forma imperativa acompanhando o verso
anterior na mesma disposiccedilatildeo χαίρετε τέκνα Διός δότε δ ἱμερόεσσαν ἀοιδήν κλείετε δ
73
ἀθανάτων ἱερὸν γένος αἰὲν ἐόντων (Alegrai filhas de Zeus dai ardente canto gloriai o
sagrado ser dos imortais sempre vivos) Dois versos que tecircm como referecircncia as Musas e que
datildeo o tom de mandamento no poema
Κλέος ainda aparece na Teogonia em algumas formas adjetivas Nos versos Th 288 e
Th 294 (κλυτοῦ Ὠκεανοῖο) observamos o adjetivo κλυτoacuteς (glorioso) Em ambos os versos o
observamos como um epiacuteteto de Oceano Natildeo somente na forma masculina κλυτοῦ mas
tambeacutem sua forma neutra como em Th 304 κλυτὰ (gloriosas) referindo-se a famosas moradas
(δώματα) Interessante notar que os trecircs adjetivos aparecem num intervalo breve de versos (288
294 e 304)
Mas os adjetivos de κλέος ainda se repetem mais ao final da Teogonia Em Th 815
observamos κλειτοὶ (famosos) fazendo referecircncia aos famosos aliados (ἐπίκουροι) de Zeus
Segundo West (1966 p 379) trata-se de um epiacuteteto recorrente em Homero Finalmente em Th
1016 observamos o adjetivo superlativo ἀγακλειτοῖσιν (ldquorenomadiacutessimosrdquo) acerca dos
Τυρσηνοῖσιν (Tirrenos possivelmente os Etruscos)
Deve-se notar que grande parte das formas de κλέος principalmente as verbais povoam
de forma mais intensa o iniacutecio da Teogonia em seu chamado Proecircmio que eacute exatamente a parte
da poesia dedicada a louvar as Musas Em Os Trabalhos e os Dias podemos observar este
detalhe se repetindo pois encontramos logo no primeiro verso a forma de κλείω no particiacutepio
como κλείουσαι (ldquocelebrandordquo) Op 1 μοῦσαι Πιερίηθεν ἀοιδῇσιν κλείουσαι (Musas da
Pieacuteria que dais gloacuteria com canccedilotildees) Comprova-se assim atraveacutes de ambos os iniacutecios (tanto
da Teogonia como nos Eacuterga) a relaccedilatildeo intriacutenseca entre o κλέος e as Musas no ambiente poeacutetico
hesioacutedico
Encontramos ainda algumas passagens em fragmentos73 de Hesiacuteodo que fazem alusatildeo
ao κλέος que aparentemente em seus contextos fazem alusatildeo a alguma fama renome ou
gloacuteria Por exemplo na obra Escudo de Heacuteracles observamos em Sc107 σὰς ἐς χεῖρας
ἄγουσιν ἵνα κλέος ἐσθλὸν ἄρηαι (conduzem nas tuas matildeos para que obtenhas nobre fama)74
Essa obra que supostamente seria de Hesiacuteodo eacute datada geralmente como nos diz Torrano
(2010) da metade do seacutec VI aC e sua importacircncia eacute registrada tambeacutem em pinturas de vasos
datados da mesma eacutepoca O texto trata de forma geral acerca da gecircnese de Heacuteracles e seus
73 Utilizamos aqui a ediccedilatildeo R Merkelbach e ML West 1967 74 Trata-se da linha 107 do chamado Escudo de Heacuteracles poema que alguns comentadores classificam como de Hesiacuteodo como Paul Mazon M Van der Valk e Jaa Torrano A traduccedilatildeo eacute nossa
74
principais combates No trecho acerca do κλέος acima mencionado podemos observar a fala de
Iolau sobrinho de Heacuteracles que enaltece a relaccedilatildeo de Heacuteracles com Zeus e o caminho do heroacutei
para adquirir κλέος Novamente assim como em Teogonia 530-32 estabelece-se triacuteplice
relaccedilatildeo entre κλέος Heacuteracles e Zeus Aleacutem disso como jaacute observamos anteriormente κλέος
ἐσθλὸν eacute uma expressatildeo de grande recorrecircncia em Homero
Outro fragmento de Hesiacuteodo frag 37 (na notaccedilatildeo de Most 2007 trata-se do frag 35)
linha 1 tambeacutem retrata o κλέος [] νου οὗ κλέος ες [ἀργαλέα [ς] (cuja famadifiacuteceis) Seria
um fragmento que compotildee o Catalogo das Mulheres mas cujo κλέος natildeo sabemos a quem
realmente se remete
Ainda no frag 70 verso 5 ἵνα οἱ κλέος ἄφθιτ [ ον εἴη (para que tivesse fama imortal)
Natildeo sabemos para quem se remete o κλέος por mais que seja um trecho que tambeacutem pertenccedila
ao Cataacutelogo das Mulheres Observamos tambeacutem ἄφθιτ [ ον εἴη que possivelmente completam
a expressatildeo adjetivos que jaacute observamos nas linhas (oficiais) de Homero e Hesiacuteodo
No frag 199 possivelmente pertencente tambeacutem ao Cataacutelogo das Mulheres linha 9
πολλὰ δ ἔεδν[α δίδον] μέγα γὰρ κλέος [ἔσκε (deram muitos presentes de bodas pois possuiu
grande renome) Natildeo sabemos ao certo tambeacutem a quem se refere o κλέος
Existe assim na obra de Hesiacuteodo tanto o κλέος da tradiccedilatildeo que o conecta com Homero
(vide a utilizaccedilatildeo da palavra κλέος com os mesmos sentidos de κλέος que laacute observamos
possivelmente ateacute com a praacutetica formular de κλέος) quanto um novo κλέος compartilhado entre
o poeta e as Musas que acabou tambeacutem sendo replicado e ldquore-compartilhadordquo entre o poeta e
seu puacuteblico Fato que eacute observado na tradiccedilatildeo da recepccedilatildeo de Hesiacuteodo que descreve assim o
κλέος do poeta
Ao se repetir o κλέος de forma consideraacutevel no texto hesioacutedico tanto nas formas
nominais como verbais observamos que Hesiacuteodo apresenta novas nuances do sentido de κλέος
principalmente ao se associar com o κλέος atestato pelas Musas
Antes de adentrarmos na criacutetica feita pelos preacute-socraacuteticos a Hesiacuteodo ampliaremos a
fundamentaccedilatildeo da voz autoral deste autor bem como ampliaremos a anaacutelise de como se deu a
recepccedilatildeo da obra deste poeta ainda no Mundo Antigo Faremos esse percurso para demonstrar
mais um pouco o κλέος de Hesiacuteodo
75
40 A VOZ AUTORAL VERSIFICADA HESIacuteODO DENTRO DO HEXAcircMETRO E PRESSUPOSTOS DO SEU ΚΛΕΟΣ
Nem todos os versos de Homero e Hesiacuteodo surgiram de foacutermulas preacute-concebidas
Existia espaccedilo para a voz autoral que compunha a poesia bem como uma capacidade de
variaccedilatildeo dos seus repetidores aedos Este eacute um hiato de criaccedilatildeo e criatividade que ficaria entre
o repertoacuterio de foacutermulas e temas e o produto poeacutetico final Muitos trechos ou expressotildees tanto
de Homero quanto de Hesiacuteodo passaram a ser repetidos talvez natildeo porque eram de origem
formular mas porque se tornaram relevantes para tradiccedilotildees diferentes das dos aedos se
tornaram interessantes para quem os repetia por exemplo numa discussatildeo filosoacutefica ou num
outro gecircnero poeacutetico Passaram de um ambiente privado (composiccedilatildeo de uma voz autoral) para
o puacuteblico (as performances em si)
Podemos pensar assim no porquecirc de certos trechos hesioacutedicos que satildeo objeto de nosso
trabalho serem citados no mundo dos primeiros filoacutesofos ou mesmo na obra platocircnica ou na
criacutetica aristoteacutelica distanciando-se da mera repeticcedilatildeo formular Existem versos e passagens
relevantes de Hesiacuteodo que parecem natildeo se dar no contexto tradicional e formular Ou seja havia
componentes formulares de uma tradiccedilatildeo e existia tambeacutem o texto natildeo somente como foacutermula
que se repete numa composiccedilatildeo oral durante a performance de um aedo mas como produto
linguiacutestico-poeacutetico de estatuto mais fixo e utilizado posteriormente por outros autores que natildeo
mais pertencem ao ambiente cultural da oralidade da eacutepica arcaica Essas novas repeticcedilotildees seratildeo
tambeacutem temas de uma criacutetica por parte dos primeiros filoacutesofos
Alguns desses trechos natildeo formulares satildeo notavelmente ldquopessoaisrdquo e apontam para
traccedilos do autor da voz do poema e ateacute mesmo para aspectos corriqueiros Natildeo importando tanto
se eram ou natildeo foacutermulas em seu contexto original cabe avaliarmos o potencial biograacutefico de
uma voz que narra eventos sobre si mesmo em tais trechos que satildeo repetidos fora do contexto
da poesia dos aedos arcaicos natildeo em razatildeo de seu uso como foacutermulas para a composiccedilatildeo oral
de novos eacutepea mas por apontarem para a individualidade do poeta Hesiacuteodo
Sobre a biografia dos poetas mais especificamente de Hesiacuteodo obra fundamental eacute a
The life of Greek poets de Mary R Lefkowitz que valoriza notavelmente as informaccedilotildees
biograacuteficas presentes nos proacuteprios comentaacuterios e testimonia antigos Mais particularmente
Lefkowitz (1981 p 2) comenta que os bioacutegrafos antigos salientavam a superioridade dos poetas
sobre as pessoas comuns e a partir disto afirma que os poetas eram vistos como figuras
76
heroicas Satildeo atribuiacutedas a eles inclusive caracteriacutesticas como uma vida em isolamento dos
cidadatildeos comuns e muitas vezes mortes de forma violenta ou extraordinaacuteria75 Mas daiacute surge
uma grande questatildeo sobre a voz autoral que fala nos poemas hesioacutedicos eacute um poeta inspirado
pelas Musas e tambeacutem uma pessoa comum
Lefkowitz (1981 p 6) nos lembra que em seus poemas Hesiacuteodo nos fala sobre seu pai
seu irmatildeo e suas proacuteprias credenciais como poeta A informaccedilatildeo surge no contexto dos versos
natildeo como autobiografia (no sentido contemporacircneo) mas como documentaccedilatildeo dos principais
temas de sua poemas como uma descriccedilatildeo normal da poesia de Hesiacuteodo
A voz autoral que narra atraveacutes de expressotildees formulares como jaacute dissemos narra
tambeacutem falando de si O trecho que consideramos o mais paradigmaacutetico no que concerne a essa
questatildeo estaacute na Teogonia e o inserimos aqui como base da nossa discussatildeo acerca da voz
autoral que fala de si Trata-se do verso 22 da Teogonia76 do qual partiraacute o ponto nevraacutelgico
dessa repeticcedilatildeo natildeo formular Eis o trecho que nos interessa αἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν
ἐδίδαξαν ἀοιδήν (E a Hesiacuteodo ensinaram belo canto) Como seria de se esperar sua
metrificaccedilatildeo se daacute da seguinte forma
αἵ - νύ - πο θ᾽Ἡ - σί - ο δον - κα - λὴν -ἐ δί- δα - ξαν ἀ οι - δήν
L - B - B L - B - B L - L L - B B - L - B - B L - L
A estrutura dos versos jaacute demonstra por si soacute que Hesiacuteodo eacute um poeta que segue uma
tradiccedilatildeo que vocaliza certa cadecircncia e ritmo que eacute a tradiccedilatildeo do hexacircmetro datiacutelico que
esboccedilamos acima Utiliza uma metrificaccedilatildeo com a autoridade de uma tradiccedilatildeo jaacute que eacute no
hexacircmetro datiacutelico que o mundo eacutepico se desenvolveu em sua oralidade Narrando a partir desse
ritmo Hesiacuteodo segue o mesmo caminho que a eacutepica jaacute trazia mas agora fala de si mesmo Fala
de si e das Musas pois satildeo elas que lhe ensinam o canto como o proacuteprio verso descreve Mas
fala ao menos neste verso sem recorrer a um repertoacuterio formular preacute-existente pelo menos
naquele repertoacuterio a que possuiacutemos acesso
75 Deve-se notar que no ambiente dos preacute-socraacuteticos essas informaccedilotildees acerca da vida ldquoincomumrdquo e ldquoexcecircntricardquo dos pensadores tambeacutem seratildeo ressaltadas exemplos satildeo Heraacuteclito e Empeacutedocles 76 Nos versos 22-34 observamos a chamada consagraccedilatildeo do poeta (Dichterweihe) ou seja eacute o momento em que Hesiacuteodo eacute consagrado pelas Musas
77
Eacute entatildeo a poesia encontrada na Teogonia e em Os trabalhos e os dias aquela em que o
proacuteprio poeta Hesiacuteodo se coloca como agente Eacute um agente no sentido de que trata de si no
decorrer da poesia e fixa assim uma interlocuccedilatildeo entre aquele que supostamente narra a poesia
e aquilo que eacute narrado Sujeito se coloca como objeto e vice-versa Voltemos aos versos iniciais
da Teogonia Encontramos esse traccedilo como jaacute dito nos versos 22-23
O nome Hesiacuteodo eacute um ldquoobjeto diretordquo (gramaticalmente falando um dos acusativos de
uma construccedilatildeo de duplo acusativo) da sua proacutepria poesia que neste trecho especiacutefico foi
ensinado pelas Musas a cantar Ao ser entoado no verso no caso acusativo Hesiacuteodo torna-se
aquele pelo qual o verbo ἐδίδαξαν cujo sujeito eacute ldquoas Musasrdquo encontra uma complementaccedilatildeo
gramatical Significativamente Hesiacuteodo eacute o educando das Musas e ele proacuteprio ensinaraacute o
ouvinte leitor de sua poesia
Pietro Pucci (PUCCI 2007 p 54) argumenta que eacute no verso 22 que se passa do universo
espacial e temporal do divino agrave temporalidade e espaccedilo humano O poeta conecta-se com a sua
audiecircncia Remete Pucci agrave estrateacutegia do poeta de associar seu proacuteprio nome ao texto para dar
uma conotaccedilatildeo de realidade ao evento para se colocar como o verdadeiro mensageiro das
Musas num ritual de investidura uma espeacutecie de epifania divina ldquoIl nome proprio del narratore
rissuona sulle sue labbra e guadagna umrsquoenorme enfasi dallrsquousi dela terza persona non la prima
crea il κλέοςrdquo (IDEM) Mesmo que Pucci insira essa questatildeo do movimento do divino ao
humano a tese principal do autor passa por uma anaacutelise da Teogonia atraveacutes da ideia de
imitaccedilatildeo tendo como indicador principal a presenccedila do lexema homoacuteia
Martin West apresenta a visatildeo de que Hesiacuteodo nomeia a si mesmo em terceira pessoa
natildeo somente para colocar sua assinatura no poema mas por simples orgulho (WEST 1966 p
161) como teria feito o personagem Aquiles que tambeacutem se refere a si mesmo numa fala dentro
da poesia homeacuterica
The poet names himself speaking in third person not to set his signature upon the poem (this cannot have been thought necessary at a time when there was no general circulation of written books) but rather out of simple pride as when Achiles says ἦ ποτ᾽ Ἀχιλλῆος ποθὴ ἵξεται υἷας Ἀχαιῶν(WEST 1966 p 161)
Vale lembrar que West parte da tese de que somente os 900 primeiros versos da
Teogonia podem ser considerados autecircnticos entatildeo estaria nesse orgulho de Hesiacuteodo uma
marca da voz autoral do poeta Contraacuterio a West Nagy (2009) argumenta na defesa de uma
78
tradiccedilatildeo hesioacutedica e natildeo talvez um indiviacuteduo Hesiacuteodo que tenha criado a Teogonia e os Eacuterga
como jaacute apresentamos Mas Nagy tambeacutem oferece um porquecirc de o proacuteprio Hesiacuteodo evocar seu
nome na Teogonia
The name of Hesiod is announced in the Hesiodic Theogony (22) it is Hesiodos (Ἠσίοδος) I interpret the etymology of this name as hesi- wodos meaning lsquohe who emits the voicersquo The first part of this compound formation hesi-wodos comes from the root of the verb hienai (ἱέναι) lsquoemitrsquo while the second part comes from the root of the noun aude (αὐδή) lsquovoicersquo (NAGY 2009 p 287-288)
Pucci West e Nagy trecircs comentadores que apresentam fundamentaccedilotildees teoacutericas
distintas acerca de Hesiacuteodo como observado acima de alguma maneira investem na ideia de
Hesiacuteodo colocar seu nome em razatildeo da conexatildeo com seu puacuteblico Pucci associa Hesiacuteodo ao
puacuteblico por conta de sua necessidade de imitaccedilatildeo West vecirc uma razatildeo num gesto de orgulho
que descreveria a voz autoral de Hesiacuteodo e Nagy resgata a etimologia ldquoaquele que emite a vozrdquo
ressaltando portanto tambeacutem o aspecto da audiecircncia que recebe esta voz Poreacutem esses versos
natildeo descrevem somente Hesiacuteodo mas tambeacutem sua relaccedilatildeo com as Musas Elas as Musas
ensinaram Hesiacuteodo nessa didaacutetica do eacutepos ao peacute do monte Heacutelicon Ensinaram o belo canto
quando o proacuteprio poeta pastoreava em seu cotidiano comum Essa voz autoral que se conecta
com o puacuteblico nomeando-se escreve tambeacutem seu proacuteprio κλέος tornado veriacutedico pela
inspiraccedilatildeo das Musas
Hesiacuteodo se coloca como parte da poesia parte do eacutepos sendo as Musas suas fiadoras
Um outro indicativo desta inserccedilatildeo da voz autoral na obra concentra-se no pronome με
versificado duas linhas apoacutes a ocorrecircncia do nome proacuteprio O pronome que se traduz como
ldquomerdquo ldquopara mimrdquo um pronome em primeira pessoa Se por um lado Hesiacuteodo se coloca na
terceira pessoa tambeacutem se referecircncia agora na primeira Mais uma vez transita do mundo da
narrativa (um Hesiacuteodo personagem) para um mundo mais proacuteprio daquele que emite a voz do
poema e talvez real do eu que fala
O Hesiacuteodo-objeto se conecta com o Hesiacuteodo-pronome e o poeta conta a si mesmo
Inserindo seu canto numa cadeia de repeticcedilotildees o poeta se coloca como uma espeacutecie de
testemunha poeacutetica das histoacuterias proacuteprias e divinas eacute sobre ele e os deuses que se versa Por
esses motivos Hesiacuteodo eacute um poeta eacutepico que afirma sua voz autoral (ou do Hesiacuteodo
personagem) atraveacutes dos hexacircmetros datiacutelicos que versam sobre as gloacuterias dos deuses e dos
79
homens bem como sobre o trabalho aacuterduo de ambos na composiccedilatildeo do mundo e da cidade
versando sobre vida morte imortalidade atraveacutes primeiramente da poesia oral Versam
tambeacutem sobre uma realidade divina sendo inserida na moralidade humana com o contraacuterio
tambeacutem vaacutelido ie uma projeccedilatildeo de valores humanos na esfera divina em versos que
proporcionam uma visatildeo panoracircmica da cultura arcaica Insere-se na cadecircncia do κλέος arcaico
Muito deste acesso ao mundo arcaico diz respeito a informaccedilotildees pessoais do autor que
em outros trechos de sua obra satildeo colocadas novamente como parte dessa poesia Dessa forma
partimos do pressuposto de que Hesiacuteodo existe em suas proacuteprias linhas poeacuteticas bem como na
tradiccedilatildeo por vir que se apropria destas linhas citando-o Continuaremos aqui nas nuances do
seu proacuteprio texto pois existem outros traccedilos que a voz autoral do poeta descreve em sua obra
por mais que seja difiacutecil falar em autobiografia como salienta Gregory Nagy ao tratar tambeacutem
da marca da primeira pessoa na obra do poeta
This term [sc ldquobiographyrdquo] suits the argument that we need not ldquodisbelieverdquo Hesiod in his role as the first-person narrator of episodes in the Theogony and the Works and Days In terms of such argumentation these episodes are ldquobiographicalrdquo in the sense that they are ldquoautobiographicalrdquo And as ldquoautobiographicalrdquo episodes they are supposed to be at least potentially believable Even in the case of episodes that seem unbelievable they are supposedly still believable on the grounds that they are ldquoautobiographicalrdquo (NAGY 2009 p 272)
As experiecircncias pessoais transmitidas por Hesiacuteodo satildeo autobiograacuteficas na medida em
que satildeo ditos na primeira pessoa do poeta segundo Nagy por mais que esse autor duvide de
um Hesiacuteodo histoacuterico Hugo Koning ao tentar desvincular a tradiccedilatildeo de Hesiacuteodo do poeta
Homero apresenta-o primeiro como pessoa ldquonormalrdquo provida de certas particularidades
histoacutericas ldquoHesiod tells us where he was born where he lived where he traveled mdash but we
know nothing like that of Homerrdquo (KONING 2010 p 131)
Outras passagens apontariam para sua autobiografia Hesiacuteodo diz por exemplo em Op
639-640 ser filho de um comerciante advindo da regiatildeo de Cime que se estabeleceu em Ascra
ao peacute do monte Heacutelicon versificando assim um pouco da sua proacutepria vida e de seus familiares
Hesiacuteodo fala de si mesmo de seus antepassados com aproximadamente a mesma linguagem
com que retrata as peripeacutecias divinas dividindo os versos entre a moral privada-familiar e a
80
esfera divina Uma primeira referecircncia a si mesmo que Hesiacuteodo traccedila jaacute no iniacutecio da Teogonia
nos versos 22-33 continua a passagem que jaacute haviacuteamos apresentado
αἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν ἄρνας ποιμαίνονθ᾽ Ἑλικῶνος ὕπο ζαθέοιο τόνδε δέ με πρώτιστα θεαὶ πρὸς μῦθον ἔειπον Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο ldquoποιμένες ἄγραυλοι κάκ᾽ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα ἴδμεν δ᾽ εὖτ᾽ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ᾽ ἐσσόμενα πρό τ᾽ ἐόντα καί μ᾽ ἐκέλονθ᾽ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων (Elas um dia a Hesiacuteodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao peacute do Heacutelicon divino Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide lsquoPastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildeesrsquo Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto divino para que eu glorie o futuro e o passado impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos)
A primeira referecircncia autobiograacutefica eacute didaacutetica e denota as praacuteticas do poeta Hesiacuteodo
καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν a atividade de cantar uma bela poesia Eacute uma das passagens que
integram o proecircmio da Teogonia e que mesclam o processo educacional com a suposta biografia
de Hesiacuteodo colocando assim o poeta na cadeia de repeticcedilotildees puacuteblicas associada agraves Musas e a
seu ensino da bela poesia o ensino do cantar Por sua necessidade de beleza eacute tambeacutem uma
educaccedilatildeo esteacutetica colocada na propedecircutica de Hesiacuteodo se considerarmos o iniacutecio da Teogonia
como uma representaccedilatildeo da formaccedilatildeo do poeta As Musas e Zeus satildeo a seguranccedila desta
formaccedilatildeo pelo ἐδίδαξαν pois satildeo as vozes da tradiccedilatildeo da memoacuteria da poesia
Talvez seja esse trecho da passagem da ignoracircncia ao conhecimento que tenha
reforccedilado tanto a imagem da poesia hesioacutedica como um dos fundamentos de uma educaccedilatildeo
grega mesmo a do homem simples Um simples pastor que eacute treinado pelas Musas Eacute uma
passagem sacramentada pelas vozes das Musas que se declaram acerca de quem deteacutem o
conhecimento sobre as mentiras e verdades Existe uma autoridade nos versos hesioacutedicos que
81
eacute ditada pela sabedoria das Musas e de Zeus que reforccedilam este apelo didaacutetico da passagem em
questatildeo
Essas linhas ainda apontam algo relevante na relaccedilatildeo entre as vozes que traccedilam essa
passagem Satildeo linhas importantes na descriccedilatildeo da obra de Hesiacuteodo pois demonstram uma
multiplicidade de pessoas verbais Quando observamos tambeacutem o verso 31 verificamos a
inserccedilatildeo do pronome possessivo μοι Quando retomamos o verso 22 observamos que Hesiacuteodo
fala de si na terceira pessoa Ἡσίοδον fala (ou daacute voz) atraveacutes dos dizeres das Musas ἴδμεν
primeira pessoa do plural que por sua vez falam agrave segunda pessoa dos pastores ποιμένες e
finalmente Hesiacuteodo fala atraveacutes dos pronomes pessoais de primeira pessoa με e μοι
O resultado da junccedilatildeo dessas vozes se materializa na passagem do cetro ao poeta que
vecirc concluiacutedo seu processo educacional patrocinado pelo encontro com as Musas Em Ἡσίοδον
ἴδμεν ποιμένες μοι observamos as quatro vozes que segundo Jacyntho Lins Brandatildeo
(BRANDAtildeO 2005 p 74) constroem o apelo dramaacutetico da narrativa Se o poeta inicia a
Teogonia com esse apelo didaacutetico segue a poesia com certo apelo agrave justificativa da verdade na
canccedilatildeo (ldquosabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildeesrdquo) atraveacutes da passagem para Hesiacuteodo
daquilo que parece ser o siacutembolo da veracidade ou pelo menos da autoridade do texto (ldquopor
cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um
cantordquo)
Essa junccedilatildeo da voz autoral do texto e seu contexto familiar junto a essa iniciaccedilatildeo divina
com as Musas integram um conjunto de dados que traratildeo o reconhecimento e fama do poeta
Hesiacuteodo como jaacute ressaltamos algumas vezes principalmente ao observarmos as linhas do
Certame satildeo trechos que constroem seu κλέος poacutestumo Essa linha de narrativa que descreve
o ambiente ldquoparticularrdquo da voz autoral que narra o poema inclusive ressoa nas biografias
escritas sobre Hesiacuteodo na proacutepria Antiguidade como bem descreveu Lefkowitz (1981)
Vejamos um pouco mais dessas informaccedilotildees no proacuteprio texto hesioacutedico
41 BIOGRAFIA E FAMIacuteLIA VERSIFICADAS OUTROS EXEMPLOS DE ΚΛΕΟΣ COMO
FAMA DO POETA HESIacuteODO
O nome do poeta eacute citado junto a linhas que trazem agrave tona o problema cognitivo da
identificaccedilatildeo de verdades e mentiras Esses versos garantem tambeacutem a fonte poeacutetica da qual
Hesiacuteodo bebe e que o habilita a tratar das temporalidades da poesia do passado presente e
82
futuro Essa iniciaccedilatildeo poeacutetica de Hesiacuteodo trata da construccedilatildeo de uma voz autoral do poeta que
pode ser verificada ainda em outras passagens importantes de sua obra Hesiacuteodo aleacutem da
referecircncia a sua formaccedilatildeo como indiviacuteduo tambeacutem faz referecircncia a sua origem familiar Eacute o
que podemos compreender em algumas linhas dos Erga primeiramente em 633-640
ὥς περ ἐμός τε πατὴρ καὶ σός μέγα νήπιε Πέρσῃ πλωίζεσκ᾽ ἐν νηυσί βίου κεχρημένος ἐσθλοῦ ὅς ποτε καὶ τῇδ᾽ ἦλθε πολὺν διὰ πόντον ἀνύσσας Κύμην Αἰολίδα προλιπών ἐν νηὶ μελαίνῃ οὐκ ἄφενος φεύγων οὐδὲ πλοῦτόν τε καὶ ὄλβον ἀλλὰ κακὴν πενίην τὴν Ζεὺς ἄνδρεσσι δίδωσιν νάσσατο δ᾽ ἄγχ᾽ Ἑλικῶνος ὀιζυρῇ ἐνὶ κώμῃ Ἄσκρῃ χεῖμα κακῇ θέρει ἀργαλέῃ οὐδέ ποτ᾽ ἐσθλῇ (Assim meu e teu pai oacute Perses seu grande tolo necessitando de um bom sustento costumava navegar em barcos Um dia aqui chegou depois de cruzar muito mar deixando a eoacutelia Cime numa nau negra natildeo para fugir agrave abundacircncia agrave riqueza agrave prosperidade mas sim agrave pobreza maacute que Zeus daacute aos homens Veio morar perto do Heacutelicon num vilarejo miseraacutevel Ascra ruim no inverno difiacutecil no veratildeo nunca boa)
O poeta coloca mais dois sinais de pessoalidade e familiaridade com o irmatildeo Perses
Quando coloca aquilo que gramaticalmente chamamos pronomes possessivos ἐμός e σός ldquomeu
e teu pai oacute Persesrdquo assinala mais dois componentes da sua voz autoral que eacute irmatildeo que eacute
filho Eacute de fato um componente de proximidade pessoal que deve ser ressaltado no sentido de
se imaginar que o poema tenha tomado proporccedilotildees dignas de repeticcedilotildees puacuteblicas e que por
muitas vezes foi cantada essa voz autoral em espaccedilo puacuteblico Sendo assim aleacutem de se cantarem
os cataacutelogos dos deuses os conselhos morais cantou-se por muitas vezes Hesiacuteodo (a voz autoral
do poema)
Outros aspectos nesta passagem devem ser ressaltados alguns de conteuacutedo geograacutefico
Satildeo citados locais que fornecem uma espeacutecie de relato de migraccedilatildeo da famiacutelia do poeta
migraccedilatildeo com caracteriacutesticas natildeo muito agradaacuteveis ao se ressaltarem problemas no clima
(ldquoAscra ruim no invernordquo etc) e nas condiccedilotildees sociais (ldquodeixando a eoacutelia Cime numa nau
negra natildeo para fugir agrave abundacircncia agrave riqueza agrave prosperidade mas sim agrave pobreza maacuterdquo) Mais
do que isso ressaltar-se o conselho moral a algueacutem que por sua tolice dele necessita
sobremaneira (ldquoassim meu e teu pai oacute Perses seu grande tolordquo)
83
Segundo West (1988 p 317) Hesiacuteodo parece absolver seu pai pela migraccedilatildeo
colocando Zeus como causa primeira do drama familiar ldquomas sim agrave pobreza maacute que Zeus daacute
aos homensrdquo bem como denota uma percepccedilatildeo negativa da terra de seus ancestrais Cime e da
terra atual Ascra Sugere ainda mais um conselho praacutetico ao irmatildeo mas que tambeacutem acaba
sendo um relato do proacuteprio Hesiacuteodo acerca do navegar Eacute um ensejo para tratar da uacutenica viagem
de barco que teria feito Trata-se de um suposto concurso de que teria participado os chamados
jogos de Anfidamante Essa passagem versificada pelo poeta eacute uma das situaccedilotildees narradas
tambeacutem no Certamen Homeri et Hesiodi jaacute evocado aqui algumas vezes77 Realmente eacute o que
observamos logo no iniacutecio do texto linhas 1-7 Allen
Ὅμηρον καὶ Ἡσίοδον τοὺς θειοτάτους ποιητὰς πάντες ἄνθρωποι πολίτας ἰδίους εὔχονται λέγεσθαι ἀλλrsquo Ἡσίοδος μὲν τὴν ἰδίαν ὀνομάσας πατρίδα πάντας τῆς φιλονεικίας ἀπήλλαξεν εἰπὼν ὡς ὁ πατὴρ αὐτοῦmiddot εἵσατο δrsquo ἄγχrsquo Ἑλικῶνος ὀιζυρῇ ἐνὶ κώμῃ Ἄσκρῃ χεῖμα κακῇ θέρει ἀργαλέῃ οὐδέ ποτrsquo ἐσθλῇ (Homero e Hesiacuteodo os mais divinos poetas todos os homens se ufanam de declaraacute-los seus concidadatildeos Mas Hesiacuteodo ao nomear sua paacutetria evitou de todo a rivalidade ao dizer que seu pai lsquofixou-se perto do Heacutelicon na miacutesera aldeia de Ascra maacute no inverno ruim no veratildeo nunca boarsquo [Op 639-640])
O Certamen Homeri et Hesiodi repete a notiacutecia de nascimento de Hesiacuteodo aleacutem das
caracteriacutesticas da cidade de Ascra West (1988 p 319) afirma que realmente o episoacutedio do
certame descrito por Hesiacuteodo em Os trabalhos e os dias surgiu como inspiraccedilatildeo para o sofista
Alcidamas que tomou a passagem como base para sua histoacuteria Mais uma evidecircncia de que a
individualidade do poeta se repetiu em representaccedilotildees poeacutetico-literaacuterias posteriores
Voltando agrave vida de Hesiacuteodo em Op 646-662 o poeta fala mais de si proacuteprio junto a
uma espeacutecie de discurso moralizante Moralizante como vimos no sentido de tentar educar seu
irmatildeo acerca da busca pelo comeacutercio mariacutetimo em tempos de escassez de recursos quando por
77 Algumas informaccedilotildees natildeo citadas a respeito do Certame agora precisam ser ressaltadas O chamado Certamen Homeri et Hesiodi foi encontrado em um manuscrito anocircnimo de Florenccedila Supotildee-se que sua redaccedilatildeo final tenha se dado no seacutec II dC mas se crecirc que sua primeira versatildeo date dos seacutecs V-IV aC sendo comum atribuiacute-la ao sofista Alcidamas Segundo Jimeacutenez e Diacuteez (2001 p 383) o certame eacute basicamente uma narrativa acerca de uma competiccedilatildeo de poesia em homenagem a Anfidamante em que atraveacutes da recitaccedilatildeo de alguns versos da Iliacuteada por parte de Homero e dos Eacuterga por parte de Hesiacuteodo este teria ganho o precircmio que descreve em Op 657
84
desespero se busca essa atividade Esse conselho une-se agrave sua produccedilatildeo poeacutetica premiada num
concurso que geraraacute um precircmio dedicado agraves Musas
εὖτ᾽ ἂν ἐπ᾽ ἐμπορίην τρέψας ἀεσίφρονα θυμὸν βούληαι χρέα τε προφυγεῖν καὶ λιμὸν ἀτερπέα δείξω δή τοι μέτρα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης οὔτε τι ναυτιλίης σεσοφισμένος οὔτε τι νηῶν οὐ γάρ πώ ποτε νηί γ᾽ ἐπέπλων εὐρέα πόντον εἰ μὴ ἐς Εὔβοιαν ἐξ Αὐλίδος ᾗ ποτ᾽ Ἀχαιοὶ μείναντες χειμῶνα πολὺν σὺν λαὸν ἄγειραν Ἑλλάδος ἐξ ἱερῆς Τροίην ἐς καλλιγύναικα ἔνθα δ᾽ ἐγὼν ἐπ᾽ ἄεθλα δαΐφρονος Ἀμφιδάμαντος Χαλκίδα τ᾽ εἲς ἐπέρησαmiddot τὰ δὲ προπεφραδμένα πολλὰ ἄεθλ᾽ ἔθεσαν παῖδες μεγαλήτοροςmiddot ἔνθα μέ φημι ὕμνῳ νικήσαντα φέρειν τρίποδ᾽ ὠτώεντα τὸν μὲν ἐγὼ Μούσῃς Ἑλικωνιάδεσσ᾽ ἀνέθηκα ἔνθα με τὸ πρῶτον λιγυρῆς ἐπέβησαν ἀοιδῆς τόσσον τοι νηῶν γε πεπείρημαι πολυγόμφωνmiddot ἀλλὰ καὶ ὣς ἐρέω Ζηνὸς νόον αἰγιόχοιοmiddot Μοῦσαι γάρ μ᾽ ἐδίδαξαν ἀθέσφατον ὕμνον ἀείδειν (Quando quiseres fugir agrave necessidade e agrave fome triste voltando o louco espiacuterito para o mercado mostrarei a ti as medidas do mar de altos bramidos eu que nem sou instruiacutedo em navegaccedilatildeo ou em navios Na verdade eu nunca naveguei sobre o largo mar a natildeo ser para Eubeia partindo de Aacuteulis onde uma vez os Aqueus esperando o fim do inverno reuniram um grande exeacutercito da Heacutelade sagrada para ir a Troia de belas mulheres De laacute para os jogos do valoroso Anfidamante eu fiz a travessia a Caacutelcis muitos precircmios anunciados os filhos do heroacutei magnacircnimo colocaram em jogo E me orgulho de ali vencendo com um hino ter levado uma triacutepode com asas que eu dediquei agraves Musas do Heacutelicon onde elas primeiro me puseram no caminho do canto claro Tal foi de fato minha uacutenica experiecircncia com naus bem pregadas mas mesmo assim direi o desiacutegnio de Zeus porta-eacutegide pois as Musas me ensinaram a cantar um hino extraordinaacuterio)
Eacute um discurso aconselhando seu irmatildeo acerca dos perigos associados ao comeacutercio
mariacutetimo e mais do que isso eacute um relato pessoal de Hesiacuteodo na medida em que versa sobre
sua uacutenica viagem mariacutetima em busca do precircmio nos jogos de Anfidamante Se no iniacutecio da
Teogonia as Musas presenteiam Hesiacuteodo com o cetro aqui o poeta retribui com sua conquista
a qual a elas dedica enaltecendo novamente aquilo que recebeu no proecircmio da Teogonia ldquoas
Musas me ensinaram a cantar um hino extraordinaacuteriordquo Segundo West (1988 p 377) a partir
85
do verso 646 Hesiacuteodo parece assinar uma espeacutecie de ldquoseccedilatildeo de navegaccedilatildeordquo mas o que nos
importa aqui eacute o relato de sua voz autoral
Parece que o conselho de Hesiacuteodo eacute para que o irmatildeo se saia melhor do que o pai caso
seja preciso navegar ldquoQuando quiseres fugir agrave necessidade e agrave fome () mostrarei a ti as
medidas do mar de altos bramidosrdquo Hesiacuteodo teria atravessado de Eubeia para Caacutelcis segundo
West uma travessia pequena de 65 metros denotando que natildeo se trata aqui de um heroacutei de
grandes feitos mas sim de um grego comum com seus medos e suas afliccedilotildees representado
mais uma vez na fala ao irmatildeo
Esse recorte que apresentamos aqui sugere o norte que gostariacuteamos de tomar a saber
ressaltar a voz autoral de Hesiacuteodo a partir do que o proacuteprio poeta coloca em sua poesia oral
Natildeo por afirmar a tese de que ele teria sido o desbravador deste campo da autoria na histoacuteria da
ldquodescoberta do espiacuteritordquo mas sim para alertar para o fato de que a tradiccedilatildeo o conheceu de
alguma forma como sujeito poeacutetico e personagem poetizado
Suas histoacuterias particulares suas indicaccedilotildees familiares e a forma como relacionou uma
educaccedilatildeo pelas Musas a uma certa autoridade moral a partir da qual o poeta aconselha o irmatildeo
traccedilam esse caminho da voz autoral investida de um discurso especial de origem divina
Portanto nesse breve apanhado introdutoacuterio acerca de Hesiacuteodo dentro do ambiente da poesia
eacutepica oral podemos ressaltar que a interpretaccedilatildeo que nos interessa eacute a do Hesiacuteodo poeta
contador da proacutepria histoacuteria educando e educado em conjunto com as Musas Conta educa e
repete atraveacutes de um κλέος
A obra de Hesiacuteodo se insere dentro de uma tradiccedilatildeo poeacutetica delimitada pela forma de
seus versos e por procedimentos formulares que indicam o contexto oral e performaacutetico dentro
tambeacutem de uma estrutura social e histoacuterica Mas ela natildeo eacute apenas isso Com a produccedilatildeo de uma
narrativa que natildeo eacute somente formular ele catalisa a junccedilatildeo da uma voz autoral com a referecircncia
agraves Musas personificaccedilotildees de uma tradiccedilatildeo poeacutetica e acaba por assim dizer se inserindo como
personagem e marca de seu proacuteprio texto
Natildeo somente a si mesmo mas tambeacutem sua famiacutelia sua histoacuteria suas viagens seus
ensinamentos morais tornam-se tambeacutem enredo destas histoacuterias que seriam por muitos
repetidas no futuro Essa repeticcedilatildeo essas narrativas de Hesiacuteodo seratildeo recepcionadas por um
puacuteblico que teraacute diversas reaccedilotildees diante de tudo isso Falaremos a partir de agora sobre como a
tradiccedilatildeo repercutiu essas informaccedilotildees da voz autoral que narra feitos proacuteprios atraveacutes da
recepccedilatildeo de Hesiacuteodo identificaacutevel nos testimonia reunidos por Most (2006)
86
42 A RECEPCcedilAtildeO DE HESIacuteODO SEUS TESTIMONIA E A PRODUCcedilAtildeO DE UM ΚΛΕΟΣ
COMO FAMA
Exploraremos a recepccedilatildeo da obra de Hesiacuteodo no sentido de estabelecer um recorte de
como alguns autores antigos encararam sua existecircncia como pessoa e em consequecircncia disso
um pouco de sua obra Esta recepccedilatildeo ajudaraacute a capturar um retrato de Hesiacuteodo no que tange a
sua fama como poeta e pessoa
Natildeo nos cabe aqui fazer uma exegese detalhada da teoria da recepccedilatildeo que possui ampla
abordagem bem como muitas variaccedilotildees metodoloacutegicas Mas sim tentar perceber atraveacutes da
influecircncia de Hesiacuteodo em alguns interlocutores posteriores os relatos que o construiacuteram e o
consolidaram como um poeta educador-moralizante na Antiguidade principalmente como
veremos depois na eacutepoca dos chamados ldquopreacute-socraacuteticosrdquo
Mas neste momento nos concentraremos na recepccedilatildeo de sua ldquovidardquo Hans Robert Jauss
(1921-1997) foi talvez o principal teoacuterico da Esteacutetica da Recepccedilatildeo formulada no seacuteculo XX de
nossa era Em um artigo intitulado Poiesis na publicaccedilatildeo norte-americana Critical Inquiry
Jauss (1982) argumenta contra aquilo que podemos chamar de tradiccedilatildeo da Esteacutetica da
Representaccedilatildeo Seu objetivo era demonstrar que a Esteacutetica da Recepccedilatildeo contraacuteria agrave da
Representaccedilatildeo pode levar o espectador a deixar de lado a mera atitude de contemplaccedilatildeo passiva
e participar ativamente da experiecircncia de criaccedilatildeo da obra de arte Argumenta Jauss
This development of the modern arts cannot be adequately understood by the traditional aesthetics of representation Their comprehension demands the elaboration of an aesthetics of reception which goes beyond the traditional definitions of the contemplative attitude and which can formulate the aesthetic activity demanded of the viewer through new definitions of the poiesis of the receiving subject (JAUSS 1982 p 604 citado por FIGURELLI 1988 p 265-267)
A base da argumentaccedilatildeo de Jauss estaacute na ideia de que o texto natildeo promove uma
percepccedilatildeo fechada e de que ele precisa do interlocutor para fazer sentido Eacute o que diz Charles
Martindale na introduccedilatildeo de um recente e importante livro sobre a teoria da recepccedilatildeo nos
claacutessicos
87
A ldquotextrdquo ndash and here I am using the word in the extended poststructuralist sense that could mean a painting or a marriage ceremony or a person or a historical event ndash is never just ldquoitselfrdquo appeals to that reified entity being mere rhetorical flag-waving rather it is something that a reader reads differently Most versions of reception theory stress the mediated situated contingent (which of course does not mean the same as arbitrary) character of readings and that includes our own readings quite as much as those of past centuries (MARTINDALE 2006 p 3)
Pensamos assim a recepccedilatildeo de Hesiacuteodo de duas maneiras 1) aquilo que a criacutetica
claacutessica (historiadores sofistas gramaacuteticos escoacutelios bioacutegrafos antigos) apresenta acerca do
ldquoindiviacuteduordquo Hesiacuteodo e sua obra 2) aquilo que o puacuteblico receptor da obra poderia perceber da
poesia em uma performance puacuteblica do poema hesioacutedico Acreditamos que estas duas maneiras
natildeo se excluem e ateacute mesmo se completam pois essa criacutetica (1) eacute de certa forma tambeacutem um
puacuteblico se pensarmos nas caracteriacutesticas orais da poesia e numa leitura mais descompromissada
que um criacutetico poderia fazer
Saber aquilo que o puacuteblico arcaico achava dos versos da Teogonia e dos Eacuterga (ou
mesmo de suas diversas apresentaccedilotildees puacuteblicas) eacute uma tarefa muito difiacutecil quase que
impossiacutevel Por outro lado tratar da recepccedilatildeo moderna foge ao escopo de nosso trabalho Por
isso trataremos agora de algumas informaccedilotildees que unem a obra de Hesiacuteodo com sua vida
atraveacutes dos testemunhos sobre sua biografia e sua produccedilatildeo escritos por autores antigos Esses
textos fragmentos e escoacutelios apresentam uma imagem rica do poeta
Apesar de natildeo existir na Antiguidade uma obra extensa acerca da biografia de Hesiacuteodo
pelo menos nenhuma que nos chegasse existem alguns relatos que tradicionalmente satildeo usados
nas pesquisas sobre esse poeta Estes relatos satildeo organizados sob o tiacutetulo de testimonia e satildeo
de certa forma uma compilaccedilatildeo da ldquodoxografiardquo hesioacutedica relatos acerca de Hesiacuteodo e sua obra
e portanto satildeo um canal de recepccedilatildeo da sua poesia Nos Testimonia de Hesiacuteodo organizados
por Glenn W Most78 podemos colher alguns relatos que traccedilam uma pequena biografia de
Hesiacuteodo visotildees complementares daquilo que o proacuteprio poeta nos diz A enciclopeacutedia Suda
(T1)79 aponta a procedecircncia da famiacutelia de Hesiacuteodo seus poemas e a forma da sua morte
ἐτελεύτησε δὲ ἐπιξενωθεὶς παρ Ἀντίφῳ καὶ Κτιμένῳ οἳ νύκτωρ δόξαντες ἀναιρεῖν φθορέα ἀδελφῆς αὐτῶν ἀνεῖλον τὸν Ἡσίοδον ἄκοντες ἦν δὲ
78 MOST (2006) obra que utilizaremos nesta parte do trabalho como ediccedilatildeo-padratildeo para o estudo dos Testimonia de Hesiacuteodo 79 T1 significa Testimonium 1 segundo ediccedilatildeo de Most e assim sucessivamente
88
Ὁμήρου κατά τινας πρεσβύτερος κατὰ δὲ ἄλλους σύγχρονος Πορφύριος καὶ ἄλλοι πλεῖστοι νεώτερον ἑκατὸν ἐνιαυτοῖς ὁρίζουσιν ὡς γβʹ μόνους ἐνιαυτοὺς συμπροτερεῖν τῆς πρώτης Ὀλυμπιάδος (Ele morreu durante a sua estada como convidado junto a Antifo e Ctiacutemeno agrave noite eles acharam que estavam matando o sedutor de sua irmatilde natildeo intencionalmente mataram Hesiacuteodo De acordo com alguns ele era mais velho que Homero de acordo com outros contemporacircneo a ele Porfiacuterio e a maioria dos outros o definem como mais jovem por uma centena de anos e se for assim ele seria mais antigo do que a primeira Olimpiacuteada em apenas 32 anos (ou seja cerca de 8076 aC)80
Devemos notar que esse discurso acerca do nascimento de Hesiacuteodo comparado ao de
Homero seraacute um lugar comum nesses testemunhos refletindo a importacircncia desta informaccedilatildeo
na Antiguidade Muitas vezes Hesiacuteodo e Homero satildeo figuras que se opotildeem Em muitas
situaccedilotildees encontramos este debate sobre quem teria vivido antes o que nos remete a uma
indagaccedilatildeo sobre quem representava melhor a tradiccedilatildeo do eacutepos ou nos termos antigos quem
representaria o protos heuretes ou primus inuentor do gecircnero Talvez essa fosse uma pergunta
recorrente desses criacuteticos gramaacuteticos e pensadores Tzetzes (T2)81 aponta tambeacutem assim como
a Suda algumas informaccedilotildees natildeo encontradas no proacuteprio texto de Hesiacuteodo
Parece existir entre os vaacuterios relatos biograacuteficos e ldquodoxograacuteficosrdquo uma necessidade de
certos autores antigos colocarem uma rivalidade entre Homero e Hesiacuteodo o que jaacute se deduz de
polemizarem sobre quem escreveu antes de quem como jaacute dissemos Podemos verificar esta
rivalidade nos testemunhos T4 T5 T8 T10 T12 T13 T14 T15 T16 T17 respectivamente
de Pausacircnias Posidocircnio Plutarco Heroacutedoto Clemente de Alexandria Filoacutestrato Sincelo de
uma inscriccedilatildeo do maacutermore de Paros da Coleccedilatildeo do Vaticano de ditos gregos e de Hiacutepias de
Heacutelis ou seja parecia ser um assunto de extrema relevacircncia a ser debatido
Koning (2010) apresenta uma seacuterie variada de argumentos que ditam o porquecirc de
Hesiacuteodo estar em vaacuterios relatos associado a Homero Um deles eacute essa ideia de um certame entre
os dois ancorada no proacuteprio relato hesioacutedico como aqui jaacute mencionamos No primeiro capiacutetulo
80 Trad Adapatada de G Most 81 T2 (Tzetzes Schol Hes Op p 87ndash92 Colonna) ldquoHesiacuteodo junto com seu irmatildeo Perses nasceu como filho de Dio e Picimede que eram de Cime eoacutelica pessoas pobres que por causa da falta de recursos e das suas diacutevidas abandonaram sua Cime nativa e emigraram para Ascra na pequena cidade na Beoacutecia ruim no inverno e maacute no veratildeo situada no sopeacute do Monte Heacutelicon e se estabeleceram laacute Enquanto os seres humanos eram atingidos por tal pobreza aconteceu que Hesiacuteodo estava pastoreando seus rebanhos no Heacutelicon Dizem que algumas mulheres nove delas vieram e arrancaram galhos do loureiro do Heacutelicon e o alimentaram com eles e desta forma ele se preencheu de sabedoria e poesia () alguns dizem que ele floresceu ao mesmo tempo em que Homero outros afirmam que ele era ainda mais antigo do que Homero E aqueles que sustentam que ele era mais velho do que Homero dizem que ele viveu no iniacutecio do reinado de Arquipo e Homero em seu final este Arquipo era filho de Acasto e governou sobre os atenienses por 35 anosrdquo Trad Adaptada de G Most
89
de seu livro acerca da recepccedilatildeo de Hesiacuteodo Koning analisa de forma ampla a combinaccedilatildeo entre
Hesiacuteodo e Homero no que diz respeito a suas recepccedilotildees na Antiguidade Ambos aparecem
como autoridades religiosas antigos legisladores guardiotildees seguros do conhecimento
Ainda Koning (2010 p 162) afirma que Hesiacuteodo quando referenciado no mundo antigo
sem Homero tende a ser repetido em questotildees eacuteticas e morais exacerbando esta caracteriacutestica
moralizadora do poeta Aleacutem da visatildeo eacutetica e moral Hesiacuteodo eacute repetido muito por sua reputaccedilatildeo
de homem saacutebio ldquoNaturally Hesiodrsquos status as a wiseman derives for a considerable part from
the pose he assumes in the Works and Daysrdquo Koning atribui a Hesiacuteodo uma reputaccedilatildeo e
sabedoria reconhecidas pelo seu puacuteblico como um saacutebio conhecedor da demonologia justiccedila
na cidade de questotildees de interaccedilatildeo social e moderaccedilatildeo (p 165) Esses atributos hesioacutedicos
podem muitas vezes estar em sintonia com Homero mas como tambeacutem aponta Koning podem
criar uma dicotomia Eacute o que Koning aponta ao trazer uma citaccedilatildeo de Simocircnides que teria dito
que Hesiacuteodo foi um jardineiro (ao comparar a profissatildeo com o conteuacutedo dos Eacuterga) e Homero
um tecelatildeo refinado de tramas
On the one hand there is the farmer-like Hesiod on his knees with his hands in the dirt providing the raw and unworked material of myth a remarkable blend of the Works and Days (the poem of lsquoplantingrsquo so to speak) and the Theogony Homer on the other hand has the genius and sophistication to transform these materials into pleasurable end products which are finished and thus named Iliad and Odyssey (KONING 2010 p 289)
Koning apresenta na sua argumentaccedilatildeo uma espeacutecie de esquema binaacuterio em que se
contrapotildeem as figuras de Homero e Hesiacuteodo durante a Antiguidade Essas dicotomias
concentram-se muitas vezes na caricatura de uma postura aristocraacutetica homeacuterica contraposta agrave
do agricultor hesioacutedico Koning conclui
As we have seen there is much evidence besides the Certamen that shows that the two poets were in certain contexts imagined as binary opposites in this respect In fact the contrasting values attributed to Hesiod and Homer coincide neatly with those of certain well-known social and political conceptual dichotomies ie that of war versus peace and king versus people (IDEM p 294)
90
De fato as trecircs principais dicotomias apontadas por Koning estatildeo 1ordm no conteuacutedo dos
poemas (guerreiro versus fazendeiro) 2ordm na orientaccedilatildeo poliacutetica (rei versus povo) 3ordm no efeito
na audiecircncia (emoccedilatildeo versus razatildeo) Essas antinomias percorrem os vaacuterios discursos da
recepccedilatildeo de Hesiacuteodo tornando difiacutecil qualquer abordagem simplista da relaccedilatildeo entre Hesiacuteodo
e Homero
Voltando agrave biografia de Hesiacuteodo a enciclopeacutedia Suda traz ainda a sua morte de forma
natildeo natural atraveacutes de um assassinato sendo assim uma espeacutecie de traacutegica coincidecircncia com a
suposta biografia de seu pai que teria fugido de Cime por causa de um homiciacutedio (de um
parente) conforme relata T25 Aleacutem de informaccedilotildees acerca do nascimento e ancestralidade de
Hesiacuteodo os testimonia nos datildeo variadas outras informaccedilotildees
Acerca da etimologia do nome do poeta T27 diz que Hesiacuteodo em eoacutelico significa
ldquoaquele que viaja em conformidade com um auspiacuteciordquo (aisiacutea + hocircdos) Em T28 outra
composiccedilatildeo etimoloacutegica do futuro de hiacuteemi heacuteso (ldquotransmitiraacuterdquo ou intransitivo ldquovai se lanccedilar
em direccedilatildeo ardquo) + hocircdos (ldquoestradardquo) e em T29 um escoacutelio aos Eacuterga sugere-se um composto de
heacutesis (ldquofestividaderdquo) e eeacutedo (ldquodigordquo) Satildeo etimologias que remetem ao ofiacutecio poeacutetico de
Hesiacuteodo sua condiccedilatildeo de emissor itinerante de poesias quase que o ofiacutecio de um aedo viajante
e ao caminho a ser percorrido em vaacuterias recitaccedilotildees puacuteblicas82
Ainda acerca da sua morte observamos nos testimonia algumas visotildees bem distintas
T31 jaacute na Antiguidade apresenta os conflitos de versotildees registrados no relato de Pausacircnias83
Por sua vez um testemunho de Plutarco (T33a b) estabelece uma morte fantaacutestica na regiatildeo de
Nemeia onde apoacutes ο assassinato de Hesiacuteodo seu cadaacutever teria sido resgatado por golfinhos e
trazido ateacute a praia Em T34 no leacutexico de Poacutelux temos o relato de um catildeo que permaneceu ao
lado de Hesiacuteodo mesmo apoacutes a morte do poeta Esses aspectos que apelam a um certo tom
fantaacutestico remetem a lendas e agrave proacutepria fama que o poeta tinha na Antiguidade ou melhor agrave
82 Trataremos desse assunto de forma mais elaborada ao apresentar a relaccedilatildeo de Hesiacuteodo com Parmecircnides Xenoacutefanes e Empeacutedocles 83 Paus 9316 ἐναντία δὲ καὶ ἐς τοῦ Ἡσιόδου τὴν τελευτήν ἐστιν εἰρημένα ὅτι μὲν γὰρ οἱ παῖδες τοῦ Γανύκτορος Κτίμενος καὶ Ἄντιφος ἔφυγον ἐς Μολυκρίαν ἐκ Ναυπάκτου διὰ τοῦ Ἡσιόδου τὸν φόνον καὶ αὐτόθι ἀσεβήσασιν ἐς Ποσειδῶνα ἐγένετο τῇ Μολυκρίᾳ σφίσιν ἡ δίκη τάδε μὲν καὶ οἱ πάντες κατὰ ταὐτὰ εἰρήκασι τὴν δὲ ἀδελφὴν τῶν νεανίσκων οἱ μὲν ἄλλου τού φασιν αἰσχύναντος Ἡσίοδον λαβεῖν οὐκ ἀληθῆ τὴν τοῦ ἀδικήματος δόξαν οἱ δὲ ἐκείνου γενέσθαι τὸ ἔργον ldquoHaacute versotildees conflitantes sobre a morte de Hesiacuteodo Que os filhos de Ganictor Ctiacutemeno e Antifo fugiram para Moliacutecria de Naupacto por causa do assassinato de Hesiacuteodo e foram punidos laacute por seus sacrileacutegios contra Posecircidon isto eacute dito por todos da mesma forma Mas alguns dizem que foi outra pessoa quem seduziu a irmatilde dos rapazes e que Hesiacuteodo tem imerecidamente obtido uma maacute reputaccedilatildeo por esse crime enquanto outros dizem que o ato foi feito por elerdquo Trad adaptada de Maria Cruz Herrero Ingelmo
91
importacircncia que se atribuiacutea ao poeta a ponto de ateacute animais selvagens se solidarizarem com a
personagem
Assim atraveacutes dos testimonia podemos ter um pouco desta prova material da recepccedilatildeo
da criacutetica antiga acerca da vida e da obra de Hesiacuteodo Na maioria das vezes como vimos essa
recepccedilatildeo vem junto com a de Homero Observemos por exemplo uma passagem do Iacuteon (531a
= T83) que eacute paradigmaacutetica nos estudos da funccedilatildeo da poesia na obra de Platatildeo Trata-se de
passagem logo no iniacutecio do diaacutelogo na qual Soacutecrates pergunta ao rapsodo Iacuteon (como se a fazer
uma pergunta fundamental sobre a abrangecircncia do saber do rapsodo no que concerne agrave obra dos
principais poetas) νῦν δέ μοι τοσόνδε ἀπόκριναι πότερον περὶ Ὁμήρου μόνον δεινὸς εἶ ἢ καὶ
περὶ Ἡσιόδου καὶ Ἀρχιλόχου (Agora me responda isto vocecirc eacute terriacutevelmente inteligente acerca
de Homero ou tambeacutem sobre Hesiacuteodo e Arquiacuteloco)84 e o interlocutor responde οὐδαμῶς
ἀλλὰ περὶ Ὁμήρου μόνον ἱκανὸν γάρ μοι δοκεῖ εἶναι (Nem um pouco mas apenas acerca de
Homero que me parece ser o suficiente)85
Existem outras perspectivas O testimonium T84 de Dioacutegenes Babilocircnico enaltece a
qualidade de um Hesiacuteodo como autoridade moral ou poeacutetica86 Jaacute T86 de Plutarco relaciona a
qualidade da poesia de Hesiacuteodo com sua passagem da Teogonia sobre o nascimento das
Musas87 Interessante neste sentido o comentaacuterio de Jacircmblico (T114) agrave obra de Hesiacuteodo e
Homero dentro do universo pitagoacuterico χρῆσθαι δὲ καὶ Ὁμήρου καὶ Ἡσιόδου λέξεσιν
ἐξειλεγμέναις πρὸς ἐπανόρθωσιν ψυχῆς (Eles [os pitagoacutericos] empregavam expressotildees de
ambos Homero e Hesiacuteodo a fim de corrigir almas)88 Eacute uma importante citaccedilatildeo pois mais uma
vez se sugere dentro da recepccedilatildeo (agora por parte dos pitagoacutericos) Hesiacuteodo junto a Homero e
como exerciacutecio de correccedilatildeo das almas o que explicita a funccedilatildeo eacutetica que se atribuiacutea agrave poesia
hesioacutedica bem como se sugere um exerciacutecio de performance jaacute que era uma retomada da
expressatildeo de ambos Interessa-nos de forma especial o escoacutelio de T127 (schol Hes Op
84 Trad adaptada de RG Bury 85 Trad adaptada de RG Bury 86 Diogenes Babyl fr 80 SVF 32318ndash13 apud Philodem De musica 49 (172ndash13) p 60ndash61 Neubecker ldquoA seguinte declaraccedilatildeo tambeacutem eacute bastante correta as pessoas comuns tambeacutem ficam contentes com a conveniecircncia [ie da muacutesica em simpoacutesios] e trazem consigo para os simpoacutesios o que ouviram mas eles erram por natildeo trazer com eles Homero Hesiacuteodo e o outros criadores de versos e melodias que os melhores simpoacutesios sejam aqueles que fazem uso desses poetasrdquo Trad adptada de G Most 87 Plu Quaest conv 9141 743c ldquoApoacutes isso fizemos libaccedilotildees agraves Musas cantamos um hino a Apolo o liacuteder das musas e entatildeo noacutes cantamos agrave lira juntamente com Eraton dentre os versos de Hesiacuteodo aqueles sobre o nascimento das Musas [ie Th 53 ss]rdquo Trad adaptada de G Most 88 Trad adaptada de G Most
92
Prolegomena p 1 Pertusi) acerca dos Eacuterga o qual reproduzimos com o acreacutescimo de uma
parte omitida por Most (2006) para que fique mais patente o casamento entre forma poeacutetica e
intento pedagoacutegico que subjaz agrave visatildeo do escoliasta
Ὁ μὲν οὖν σκοπὸς τοῦ βιβλίου παιδευτικός τὸ δὲ μέτρον ὥσπερ ἥδυσμά τι τῷ σκοπῷ τούτῳ τῆς ἑρμηνείας ἐπιβέβληται θέλγον τὰς ψυχὰς καὶ κατέχον εἰς τὴν πρὸς αὐτὸ φιλίαν Διὸ καὶ ἀρχαιότροπός ἐστιν ἡ ἐν αὐτῷ τῆς ποιητικῆς ἰδέα τῶν γὰρ καλλωπισμῶν καὶ τῶν ἐπιθέτων κόσμων καὶ μεταφορῶν ὡς τὰ πολλὰ καθαρεύει τὸ γὰρ ἁπλοῦν καὶ τὸ αὐτοφυὲς πρέπει τοῖς ἠθικοῖς λόγοις (O propoacutesito do livro eacute educativo E o metro envolve esse propoacutesito de interpretaccedilatildeo [ie do mundo e do humano] como um aroma que fascina as almas e as manteacutem encantadas no amor pelo livro Por isso o estilo poeacutetico nele eacute arcaico pois eacute na sua maior parte livre de adornos e ornamentaccedilotildees adicionadas e metaacuteforas Porque simplicidade e naturalidade satildeo apropriadas para discursos eacuteticos)89
O escoacutelio portanto tambeacutem retrata a validade moral e educacional da obra de Hesiacuteodo
e demonstra como a recepccedilatildeo antiga podia relacionar esses valores inclusive ao estilo do poeta
As palavras de Jacircmblico tanto como o trecho do escoacutelio acima indicam uma recepccedilatildeo formal
da obra de Hesiacuteodo e mais do que isso a recepccedilatildeo moral da sua obra A verdade que
chamariacuteamos de biograacutefica fica em segundo plano ao tomarmos a repercussatildeo do Hesiacuteodo
textual Este sim existe de maneira mais independente de Homero e em muitas ocasiotildees como
seu oposto teoacuterico (ver KONING 2010 p 297-368)
A veracidade ou natildeo dos dados biograacuteficos natildeo afeta nosso argumento pois o que nos
interessa eacute como Hesiacuteodo era visto ou seja essas imagens de Hesiacuteodo satildeo realidades histoacutericas
da mentalidade grega por mais que eventualmente natildeo correspondam a eventos histoacutericos da
vida de um indiviacuteduo chamado Hesiacuteodo Como ocorre com outros autores antigos a tradiccedilatildeo
biograacutefica se confunde com a exegese antiga do texto e reflete tendecircncias da interpretaccedilatildeo dos
textos em questatildeo
O maior indicativo da recepccedilatildeo de Hesiacuteodo na Antiguidade portanto estaacute nesses autores
que de uma forma ou outra o citaram escreveram sua histoacuteria replicaram seus versos Satildeo
indicadores da audiecircncia de Hesiacuteodo O solo mais seguro em que pisamos ao percorrer esses
relatos eacute o fato de as citaccedilotildees de episoacutedios da vida Hesiacuteodo em sua ampla maioria se apoiarem
naquilo que o mesmo Hesiacuteodo jaacute indicava em seu texto com algumas variaccedilotildees amplificaccedilotildees
reduccedilotildees
89 Trad adaptada de G Most
93
Esse fato por si soacute jaacute eacute um indicador da recepccedilatildeo de sua obra que foi tomada como
verdadeira pelo menos para aqueles autores mais proacuteximos de seu tempo histoacuterico Estamos
diante da garantia textual da influecircncia e impacto de Hesiacuteodo e sua vida no mundo antigo sua
individualidade e biografia perseveraram e o poeta se estabeleceu como pessoa histoacuterica Muito
se falou de Hesiacuteodo o que acabou por criar uma espeacutecie de fama uma sobrevivecircncia na cultura
e histoacuteria Seus testimonia satildeo uma prova clara da sobrevivecircncia de Hesiacuteodo como autor satildeo
provas claras do κλέος de Hesiacuteodo como fama satildeo provas da sua inserccedilatildeo do acircmbito privado
para um grande puacuteblico
43 O ΚΛΕΟΣ PROacutePRIO DE HESIacuteODO EM SIacuteNTESE
O κλέος de Hesiacuteodo estaacute entatildeo diretamente ligado ao caraacuteter legendaacuterio deste poeta na
recepccedilatildeo antiga e alguns de seus comentadores modernos Acerca da sua recepccedilatildeo na
Antiguidade dos eventos biograacuteficos de Hesiacuteodo Gregory Nagy afirma serem essas histoacuterias
espeacutecies de lendas que ajudam a construir uma recepccedilatildeo de Hesiacuteodo no mundo antigo
[hellip] the ldquolegendsrdquo represented by these external stories provide no evidence about the ldquobiographyrdquo of Hesiod They provide evidence only about the ldquoreceptionrdquo of Hesiodic poetry As we will see however there is evidence for such ldquoreceptionrdquo even in the internal stories that is in the so-called ldquobiographyrdquo of Hesiod that is internal to Hesiodic poetry And as we will also see in general there is no justification for making a distinction between a ldquobiographyrdquo of Hesiod that was internal to Hesiodic poetry and the ldquolegendsrdquo about Hesiod that were external to it (NAGY 2009 p304)
Nagy associa a recepccedilatildeo de Hesiacuteodo a seu caraacuteter biograacutefico pois o autor como jaacute
observamos natildeo aceita a hipoacutetese de um Hesiacuteodo histoacuterico Hesiacuteodo existe na medida em que
sua recepccedilatildeo existe Segundo Nagy ldquoessas histoacuterias externas natildeo fornecem evidecircncias sobre a
ldquobiografia objetiva de Hesiacuteodordquo mas criam uma recepccedilatildeo de Hesiacuteodo vinculada a elementos
lendaacuterios e isso poderiacuteamos dizer constroacutei e propaga sua fama
E esta recepccedilatildeo a princiacutepio remonta exatamente ao caraacuteter oral de transmissatildeo e
retransmissatildeo das performances puacuteblicas que repetiram no mundo grego tanto a trajetoacuteria das
genealogias divinas quanto os conselhos morais do homem do campo e mais importante para
nosso argumento repetiram a voz autoral de Hesiacuteodo (ficcional ou natildeo) Eacute o que tambeacutem Nagy
(2009 p 304-308) descreve no contexto de suas consideraccedilotildees sobre o culto a Hesiacuteodo como
94
heroacutei na Antiguidade grega Um Hesiacuteodo que se repetiu pela histoacuteria como os heroacuteis homeacutericos
que tambeacutem recebiam culto na Greacutecia antiga
O fato de Hesiacuteodo ter permanecido no imaginaacuterio grego como uma espeacutecie de lenda de
heroacutei reforccedila a qualidade e forccedila de sua obra Hesiacuteodo ao falar sobre si mesmo insere uma
voz autoral na poesia que marcou a proacutepria anaacutelise da sua obra no mundo antigo Hesiacuteodo
inseriu a si mesmo na praacutetica oral e esse ldquosi mesmordquo continuou a repercutir como tradiccedilatildeo
como κλέος
Observe-se que Nagy natildeo diferencia em termos de grau de veracidade as histoacuterias
biograacuteficas internas daquelas externas agrave poesia de Hesiacuteodo Na verdade pode-se supor como
jaacute indicamos que estas se baseiam em grande parte naquelas Daiacute entendermos a recepccedilatildeo dos
testimonia como uma continuaccedilatildeo da cadeia de repeticcedilotildees de que temos falado Se as biografias
de Homero90 tambeacutem existem e satildeo tambeacutem numerosas e ricas em detalhes a diferenccedila estaacute em
que natildeo tecircm nos proacuteprios textos homeacutericos elementos biograacuteficos expliacutecitos em que se possam
basear com tanta facilidade quanto no caso de Hesiacuteodo
Podemos assim apresentar um certo movimento ao falar da vida e obra de Hesiacuteodo
Partindo de trechos que atestam informaccedilotildees pessoais da voz autoral que eacute repetida nas
performances orais observamos que a tradiccedilatildeo posterior de Hesiacuteodo criou uma espeacutecie de
versatildeo biograacutefica fundamentada exatamente na recepccedilatildeo que este poeta teve cujo nuacutecleo a
nosso ver estaacute exatamente na voz autoral (real ou ficcional) presente na obra de Hesiacuteodo Ele
se lanccedilou em seu verso e seu verso eacute o que ficou para a posteridade A voz pessoal do autor
permaneceu junto com sua obra Esse eacute o atributo essencial na recepccedilatildeo de Hesiacuteodo Pois eacute
Hesiacuteodo aquele que pessoalmente estaacute conectado com a educaccedilatildeo dada pelas Musas pois seu
nome eacute versificado junto a elas As Musas endossam sua educaccedilatildeo fazem parte da sua
formaccedilatildeo garantindo a imagem de Hesiacuteodo tambeacutem como um educador e principalmente
dando κλέος ao poeta
90 Conforme nos diz Lefkowitz (1981 p 14-15) ldquoThe various versions of his life served many purposes they related his origins and his connections to different cities they explained why he wrote nothing down and why he went by a name that seems literally to have meant ldquohostagerdquo Legends about him were circulating well before the fifth century but much of our information about Homer comes from late Hellenistic biographers who made use of earlier materials [hellip] Biographers started with the meager information that they could glean from the two great epics Unlike Hesiod who in the Theogony states his name (22) and in the Works and Days tells us about his brother and his father and boasts that he won a contest (656ndash57) the poet of the Iliad provides no personal in- formation about himself or his Familyrdquo
95
Natildeo se esgotam aqui os autores que teriam feito uma recepccedilatildeo relevante da obra de
Hesiacuteodo bem como natildeo eacute nosso objetivo esgotaacute-los Mas eacute nosso objetivo retratar como essa
voz autoral em Hesiacuteodo tornou-se parte da proacutepria obra do poeta Hesiacuteodo se coloca como uma
espeacutecie de diferenccedila daquilo que jaacute havia sido consolidado pela tradiccedilatildeo Jaacute tratamos por
exemplo da emblemaacutetica cena da Iliacuteada 9186-191 em que Aquiles canta as famas dos homens
cantando assim indiretamente sua proacutepria gloacuteria sua fama Hesiacuteodo faz isso tambeacutem de
alguma maneira ao contar o que seriam fatos de sua proacutepria vida soacute que de modo muito mais
direto
Natildeo podemos afirmar categoricamente que a voz autoral que fala no texto de Hesiacuteodo
foi algo revolucionaacuterio na poesia eacutepica dadas as relevantes pesquisas de como a liacuterica antiga jaacute
vinha desenvolvendo este modelo de subjetividade do ldquoeurdquo principalmente com a obra de
Bruno Snell (1953) Natildeo obstante observamos que a voz autoral de Hesiacuteodo construiu uma
ressonacircncia na criacutetica literaacuteria posterior pois esta mesma ressaltou seu caraacuteter biograacutefico Numa
adequaccedilatildeo dos seus conteuacutedos especiacuteficos agrave linguagem da tradiccedilatildeo oral a poesia hesioacutedica
construiu uma recepccedilatildeo de Hesiacuteodo como educador como pessoa real como um poeta que
cumpriu seu ofiacutecio Mais do que tudo sua inserccedilatildeo junto ao universo divino das Musas contribui
para isso
Lembramos aqui os testimonia que fazem referecircncia a esse aspecto T101 (Plu Numa
49) comenta que por causa de suas Musas a divindade concedeu uma certa honra a Arquiacuteloco
e Hesiacuteodo depois de terem morrido T104 (Inscriptiones Graecae VII 1785) uma inscriccedilatildeo
num marco de pedra datada por motivos epigraacuteficos no final do seacuteculo III aC diz na linha 24
ldquoLimite da terra santa daqueles que sacrificam em conjunto para as Musas de Hesiacuteodordquo T105
(Inscriptiones Graecae VII 4240c) menciona Hesiacuteodo filho de Dio junto com as Musas e o
Heacutelicon divino
Finalmente citemos T109 em que Pausacircnias (9303) menciona ter visto no Heacutelicon
uma estaacutetua de Hesiacuteodo sentado segurando uma lira sobre os joelhos o que diz Pausacircnias natildeo
eacute em todo caso um ornamento apropriado para Hesiacuteodo jaacute que em seus proacuteprios poemas eacutepicos
(ie Teogonia 30-31) vecirc-se que ele cantou segurando um ramo de louro Assim as Musas se juntaram a Hesiacuteodo nessa recepccedilatildeo antiga pois ficam evidentes as
associaccedilotildees entre o poeta e as deusas sendo o poeta uma espeacutecie de interlocutor dessas forccedilas
divinas como a sua proacutepria poesia parece representar Essa associaccedilatildeo tangencia o limite entre
a poesia e o cultopraacutetica religiosa como alguns testimonia parecem descrever (esp T104)
96
Hesiacuteodo natildeo foi o uacutenico poeta a criar seu κλέος pois seria esse κλέος algo muito
desejaacutevel no mundo dos poetas Hesiacuteodo e outros poetas seriam assim repetidos em puacuteblico
quiccedilaacute tambeacutem no mundo da aurora dos primeiros filoacutesofos como debateremos nos proacuteximos
capiacutetulos Mas antes disso gostariacuteamos de enfatizar que a amplitude do κλέος de Hesiacuteodo foi
algo compatiacutevel com o que ele proacuteprio nos legou e eacute observaacutevel na heranccedila criacutetica e na recepccedilatildeo
relevante dentro da proacutepria Antiguidade em diversas aacutereas do saber e tipos de texto
A tradiccedilatildeo eacutepica grega a partir do seu menor aacutetomo de sentido que eacute o eacutepos foi capaz
de conceber grandes criaccedilotildees poeacuteticas que culminaram em Homero e Hesiacuteodo entre muitos
outros A obra de Hesiacuteodo particularmente pode ser pensada como uma forccedila criativa da
repeticcedilatildeo da tradiccedilatildeo mas tambeacutem por sua forccedila de diferenciaccedilatildeo frente agrave obra homeacuterica Nesse
processo de repeticcedilatildeo e diferenciaccedilatildeo Hesiacuteodo fez surgir em torno de si uma espeacutecie de aura
proacutepria que foi tambeacutem repetida e diferenciada criando assim uma fama junto a um puacuteblico
atento a sua obra
Essa dinacircmica nos leva a presumir a relevacircncia especial que o processo mecacircnico (mas
tambeacutem criativo) da repeticcedilatildeo possui na eacutepoca arcaica Seja na forma da menor partiacutecula do
eacutepos seja nas foacutermulas temas e expressotildees formulares seja nas composiccedilotildees em anel a
repeticcedilatildeo era o mecanismo que a tradiccedilatildeo eacutepica instaurou como forma de preservaccedilatildeo da
memoacuteria
Lembrar atraveacutes das repeticcedilotildees utilizando-se de todas essas estrateacutegias praacuteticas de se
repetir uma poesia fez com que o eacutepos de Hesiacuteodo se consolidasse na memoacuteria cultural grega
Mas natildeo a repeticcedilatildeo como somente uma ferramenta de lembranccedila A repeticcedilatildeo da obra
hesioacutedica assim tambeacutem como a de outros aedos criava novas formas de se lembrar um verso
novas formas de se narrar uma batalha novas adaptaccedilotildees dialetais E junto a tudo isso a
repeticcedilatildeo possibilitou se pensar o κλέος dos poetas assim como pensamos o κλέος dos heroacuteis
Clay (2003 p178-180) antecipa algumas questotildees que traremos a seguir ao tratarmos
do κλέος dos poetas em geral A autora observa que Hesiacuteodo dentro de seu texto quando narra
a ida pelo mar ao certame de Aacuteulis onde ganhou a premiaccedilatildeo e dedicou agraves Musas narra jaacute uma
espeacutecie de busca pelo κλέος
Now according to Hesiod the invention of seafaring is coeval with the heroic age But whereas the goal of heroic sailing was κλέος in Hesiodrsquos age of iron it is kerdos gain Unlike that mega nepios Perses however Hesiod is impervious to the seduction of mere material profits much like the heroes of
97
old he too undertakes a voyage by sea for victory and κλέος Hesiodrsquos expedition to Aulis was motivated by poetic κλέος for it was there that he won the tripod that he dedicated to the Muses of Helicon who had first initiated him in their art [hellip]The κλέος Hesiod won with his song can thus be equated with the immortal κλέος of the Trojan expedition But the confrontation between two kinds of poetry Hesiodrsquos own and martial epic goes beyond simple polemics Hesiodrsquos challenge I suggest arises not from his conviction that Homer lies or from some putative ambivalence toward the heroes and heroic epic His assertion of superiority is both more profound and more comprehensive
Retornamos assim as linhas 221 do Allen do Certame entre Hesiacuteodo e Homero
Ἡσίοδος Μούσῃσι τετιμένος ἀθανάτῃσιν τοῦ δ ἦ τοι κλέος ἔσται ὅσην τ ἐπικίδναται ἠώς
(Hesiacuteodo honrado pelas Musas imortais a fama do qual seraacute tatildeo vasta quanto o espaccedilo por
onde se espalha a aurora)91 A obra de Hesiacuteodo marcou o imaginaacuterio grego por meio de um
κλέος particular que se associa notadamente com as Musas
Se pensarmos novamente nos exemplos e ocorrecircncias de κλέος dentro do universo
homeacuterico talvez natildeo consigamos observar algo parecido O que mais se aproximaria desta
concepccedilatildeo ao nosso ver eacute Od8 74 οἴμης τῆς τότ᾽ ἄρα κλέος οὐρανὸν εὐρὺν ἵκανε (porccedilotildees
do enredo cuja fama entatildeo ao largo paacuteramo chegava) Como jaacute ressaltamos anteriormente
trata-se da passagem em que as Musas aticcedilaram o cantor a cantar famosos feitos de varotildees
Como tambeacutem jaacute lembramos eacute um trecho que faz alusatildeo tambeacutem a Aquiles cuja expressatildeo
formular tambeacutem encontramos na Iliacuteada Mas diferente de Hesiacuteodo Homero natildeo se coloca
como voz autoral no trecho
Essa voz autoral de Hesiacuteodo entatildeo eacute um dado de extrema relevacircncia para se pensar o
κλέος e a recepccedilatildeo de Hesiacuteodo no mundo antigo principalmente para colocaacute-lo tambeacutem como
uma voz autoral que debate teoricamente com os primeiros filoacutesofos Observaremos mais agrave
frente a possiacutevel criacutetica que os filoacutesofos preacute-socraacuteticos teriam acerca dessa obra de Hesiacuteodo
bem como tambeacutem uma necessidade destes pensadores em conquistar tambeacutem uma nova
espeacutecie de κλέος pela fama permanecircncia e relevacircncia filosoacutefica de suas obras Nosso
pensamento eacute de que essa voz autoral de Hesiacuteodo junto a seu κλέος tambeacutem motivou a criacutetica
que lhe dirigiam esses pensadores
91 Trad De JAA Torrano
98
Hesiacuteodo conseguiu ultrapassar a barreira do privado para o puacuteblico conseguiu alcanccedilar
a repeticcedilatildeo do κλέος produzindo uma diferenccedila frente a Homero Vejamos isso de forma
sinteacutetica atraveacutes do quadro esquemaacutetico que segue
44 QUADRO ESQUEMAacuteTICO ΚΛΕΟΣ NA OBRA DE HESIacuteODO E O ΚΛΕΟΣ DA
VOZ AUTORAL DO POETA
Da mesma forma que procedemos no κλέος homeacuterico vejamos as principais ocorrecircncias
do κλέος na obra de Hesiacuteodo bem como o κλέος que teria conquistado o poeta que eacute a voz
autoral dos poemas
Tabela 4 - O κλέος na obra de Hesiacuteodo
O κλέος na obra de Hesiacuteodo
Na Teogonia v100 Μουσάων θεράπων
κλέεα προτέρων ἀνθρώπων
O κλέος aparece relacionado agraves Musas que
cantam essas famas dos antigos Como jaacute
ressaltamos eacute similar a passagens de
extrema relevacircncia da eacutepica homeacuterica As
Musas atuam tambeacutem nesse processo de
tornar um feito privado em puacuteblico e assim
definir uma cadeia de repeticcedilotildees
A Musa Κλειώ A Musa possui papel fundamental na
genealogia proposta por Hesiacuteodo ela daacute
fama Daiacute sua importacircncia no ofiacutecio do
poeta na atividade de repetir e publicizar
algo Deve-se lembrar a associaccedilatildeo das
Musas agrave memoacuteria e daiacute a rememoraccedilatildeo de
fatos que devem ser compartilhados Κλειώ
possui funccedilatildeo primordial nesses processos
As formas verbais de κλέος como κλείοιμι
Vaacuterias satildeo as formas verbais de κλέος
como aqui jaacute analisamos Esses verbos satildeo
99
importantes principalmente para articular
o proecircmio hesioacutedico Satildeo verbos que
prenunciam Κλειώ
Th 530-31 ὄφρ Ἡρακλῆος Θηβαγενέος κλέος εἴη
A expressatildeo κλέος εἴη utilizada tambeacutem
em Homero aparece aqui relacionada agrave
fama adicional (jaacute que como heroacutei Heacuteracles
jaacute eacute portador de κλέος) de Heacuteracles dada
por Zeus Lembra-nos tambeacutem a
etimologia de Heacuteracles (Hera + κλέος)
Os outros exemplos em fragmentos Por mais que natildeo saibamos com total
certeza que os fragmentos pertenccedilam
realmente a Hesiacuteodo observamos
similaridades com expressotildees homeacutericas e
expressotildees hesioacutedicas no que diz respeito a
κλέος
O κλέος de Hesiacuteodo
O verso 22 da Teogonia αἵ νύ ποθ᾽ Ἡσίοδον καλὴν ἐδίδαξαν ἀοιδήν
Esse verso insere a voz autoral que narra no
proacuteprio texto Hesiacuteodo insere sua vida
privada no ambiente de publicizaccedilatildeo da
poesia atraveacutes de sua relaccedilatildeo com as
Musas
Nas linhas 220-221 Allen do Certame entre
Hesiacuteodo e Homero Ἡσίοδος Μούσῃσι
τετιμένος ἀθανάτῃσιν τοῦ δ ἦ τοι κλέος
ἔσται ὅσην τ ἐπικίδναται ἠώς
Satildeo versos que descrevem o κλέος de
Hesiacuteodo no ambiente da poesia antiga e
alcanccedilando um caraacuteter global
A fama e aspecto lendaacuterio que conquistaraacute Hesiacuteodo
Satildeo outros exemplos sem citar a palavra
κλέος mas que demonstram a inserccedilatildeo de
Hesiacuteodo na galeria de poetas lendaacuterios
principalmente em sua recepccedilatildeo associado
agraves Musas
100
Acreditamos entatildeo que Hesiacuteodo pode ser considerado uma forccedila criativa poeacutetica que
traccedila um elo entre a tradiccedilatildeo homeacuterica e o mundo dos preacute-socraacuteticos no que diz respeito ao
κλέος
101
50 O ΚΛΕΟΣ DOS POETAS
A proposta da existecircncia do κλέος dos heroacuteis homeacutericos bem como da voz autoral de
Hesiacuteodo nos faz avanccedilar para outro axioma baacutesico deste trabalho que eacute demonstrar que os
poetas em si buscavam tambeacutem um κλέος tal como os textos homeacutericos acabam sutilmente
insinuando o κλέος do proacuteprio aedo fundamentando a proacutepria poesia como mecanismo de
produccedilatildeo de κλέος Eacute o que analisaremos agora
A recepccedilatildeo de Hesiacuteodo como foi apresentada eacute muacuteltipla e diversa Mas pode ser
traccedilada como ressaltado aqui atraveacutes da obra de um poeta que se auto-versificava dentro do
eacutepos ou que era versificado por outros atraveacutes do nome Hesiacuteodo Esse poeta se estabeleceu
dentro da tradiccedilatildeo do eacutepos inserindo componentes de seu contexto particular (sua famiacutelia sua
cidade suas experiecircncias) e a narrativa de si (Hesiacuteodo fala de si mesmo) Foi um nome Hesiacuteodo
que criou um κλέος e foi repetido
Cantava a si mesmo e a sua famiacutelia criando para si segundo sua recepccedilatildeo no mundo
antigo um tipo de fama se tornando uma espeacutecie de lenda Seguindo aquilo que apresentamos
acerca da recepccedilatildeo de Hesiacuteodo podemos aceitar a ideia de que Hesiacuteodo escreveu para ser
repetido para ser cantado para ser objeto de uma memoacuteria futura Inseriu a si mesmo nessa
memoacuteria como personagem e como voz poeacutetica Inseriu-se junto ao canto das Musas e da
memoacuteria atraveacutes da narrativa de uma experiecircncia pessoal
Hesiacuteodo aleacutem dessas particularidades utilizou tambeacutem de uma tradiccedilatildeo pois era parte
de uma tradiccedilatildeo Utilizou uma teacutecnica poeacutetica usada tambeacutem nas obras homeacutericas e em tantas
outras performances que detinham um puacuteblico como parceiro de interlocuccedilatildeo Natildeo somente a
poesia homeacuterica operava em tal contexto mas muitos outros gecircneros da oralidade como os
discursos poliacuteticos cantos religiosos aleacutem de outros gecircneros poeacuteticos como jaacute abordado
anteriormente
A poesia arcaica repetiu e propagou uma tradiccedilatildeo eacutepica do κλέος com o sentido baacutesico
de fama gloacuteria rumor renome como jaacute descrevemos anteriormente Isso se deu dentro do
universo de vaacuterios personagens e como apresentamos mais de perto nas macronarrativas de
Aquiles e Odisseu A poesia vista dessa forma foi um meio e natildeo um fim para a concretizaccedilatildeo
do κλέος dos personagens ou seja a poesia foi o meio oral e depois escrito em que o κλέος dos
heroacuteis era repetido Mas podemos observar uma forma diferente de conquistar o κλέος natildeo
somente pelos atos dos heroacuteis e pela construccedilatildeo da sua histoacuteria como personagens dos poemas
102
mas tambeacutem pela proacutepria condiccedilatildeo do poeta O poeta como criador de κλέος colocando desta
forma a poesia como finalidade de um κλέος e natildeo somente como um meio de propagaccedilatildeo Se
Hesiacuteodo fez isso de forma incipiente outros poetas posteriores deixaram clara essa relaccedilatildeo entre
o κλέος e o autor da poesia
Algumas passagens que ocorrem num periacuteodo extenso da cultura grega podem auxiliar-
nos nesse sentido a saber trechos que sejam a comprovaccedilatildeo de que se pode falar em um κλέος
do poeta Observaremos que alguns textos antigos permitem essa interpretaccedilatildeo Trataremos
entatildeo de algumas passagens da Odisseia dos Hinos Homeacutericos e das obras de Aristoacutefanes e
Platatildeo entre outros autores que relacionam o κλέος com a figura do poeta de alguma maneira
Comecemos com trechos ainda dentro da tradiccedilatildeo homeacuterica que nos datildeo essa direccedilatildeo
e podem nos auxiliar a compreender melhor a existecircncia do κλέος do poeta Satildeo
especificamente dois trechos da Odisseia Primeiramente em Od 1351-352 τὴν γὰρ ἀοιδὴν
μᾶλλον ἐπικλείουσ᾽ ἄνθρωποι ἥ τις ἀκουόντεσσι νεωτάτη ἀμφιπέληται (os homens com
efeito tornam mais famoso o canto que for o mais recente a circundar os ouvintes) E tambeacutem
Od 873-74 μοῦσ᾽ ἄρ᾽ ἀοιδὸν ἀνῆκεν ἀειδέμεναι κλέα ἀνδρῶν οἴμης τῆς τότ᾽ ἄρα κλέος
οὐρανὸν εὐρὺν ἵκανε (a Musa aticcedilou o cantor a cantar famosos feitos de varotildees porccedilotildees do
enredo cuja fama entatildeo ao largo paacuteramo chegava)
Acerca primeiramente de Od 1351-352 observamos os homens (ἄνθρωποι) e sua
relaccedilatildeo com o canto entrarem no foco principal da argumentaccedilatildeo do verso Observamos tambeacutem
a descriccedilatildeo do fasciacutenio por novas canccedilotildees (ἀοιδὴν) de parte do puacuteblico principalmente pelo
fato de que satildeo os proacuteprios homens que tornam os cantos famosos (ἐπικλείουσ᾽ ἄνθρωποι) e
fascinantes atraveacutes da sua audiecircncia De Jong (2004 p 38) argumenta que a afirmaccedilatildeo de
Telecircmaco nessa passagem denota o interesse da audiecircncia pelas novas canccedilotildees o ldquoque for o
mais recente a circundar os ouvintesrdquo talvez como uma metanarrativa de uma histoacuteria ainda
por vir podendo ser um prenuacutencio indireto do que viraacute a acontecer dentro da proacutepria Odisseia
Mais do que isso trata-se de exaltar a glorificaccedilatildeo (ἐπικλείουσι) das histoacuterias pelos
homens principalmente aqui as novas poesias (νεωτάτη) talvez ateacute canccedilotildees que estariam
ainda por ser compostas Da mesma forma nota-se em Od 873-74 a importacircncia da fama
atribuiacuteda agraves canccedilotildees porccedilotildees da narrativa que se tornam famosas ascendem aos ceacuteus (κλέος
οὐρανὸν εὐρὺν ἵκανε) Os famosos feitos dos homens produzem um enredo que por si soacute se
torna famoso
103
Se conectarmos Od 1 351-352 com Od 873-74 o resultado poderia ser representado
em homens que tornam os cantos mais famosos homens que a partir do seu κλέος criam novos
κλέα Satildeo dois trechos que valorizam o κλέος da proacutepria poesia e do poeta pois tratam dos
aedos dentro da proacutepria poesia ldquoaticcedilou o cantor a cantar famosos feitos de varotildeesrdquo O que nos
ajuda a compreender que desde laacute no universo homeacuterico jaacute se prenunciava a valorizaccedilatildeo do
κλέος da proacutepria canccedilatildeo e daquele que canta
Outra passagem da Odisseia sugere a capacidade e a necessidade que o poeta teria de
disseminar sua fama por meio da narrativa Trata-se de um trecho especiacutefico acerca do
personagem Odisseu que narra seu proacuteprio κλέος Odisseu se apresenta nomeando a si mesmo
como Odisseu pela primeira vez Eacute o que se observa em Od 919-20 εἴμ᾽ Ὀδυσεὺς Λαερτιάδης
ὃς πᾶσι δόλοισιν ἀνθρώποισι μέλω καί μευ κλέος οὐρανὸν ἵκει (Sou Odisseu filho de Laerte
que por ardis por todos os homens sou conhecido minha fama o paacuteramo atinge)
Conforme De Jong (2004 p 226-27) observamos nesse trecho um momento importante
para a narrativa quando Odisseu finalmente revela seu nome marcado exatamente pela posiccedilatildeo
inicial incomum de εἴμι Natildeo somente Odisseu fala em primeira pessoa mas fala de seu κλέος
que ascende aos ceacuteus Eacute um trecho em que Odisseu se define pela sua proacutepria fama ao se
declamar em primeira pessoa Segundo Segal (1996 p 203) ldquoIn using the verb in the first
person here in book 9 Odysseus calls attention to the fact that he is in a sense singing a κλέος
that normally would be recited about him in the third personrdquo
Odisseu estaria nessa inversatildeo de vozes enaltecendo o potencial do κλέος como uma
espeacutecie de caracteriacutestica de si da voz de Odisseu que canta Num momento importante da
Odisseia a narrativa em primeira pessoa se associa ao κλέος demonstrando a importacircncia deste
atributo para o heroacutei que naquele momento eacute tambeacutem voz da canccedilatildeo Natildeo podemos concluir
necessariamente que Odisseu se coloca como um poeta narrando seus feitos a partir desse
trecho mas podemos concluir que Odisseu falando em primeira pessoa admite a importacircncia
do κλέος pelo qual ele eacute conhecido
Segundo ainda De Jong (2004) os personagens homeacutericos estariam de forma geral
muito preocupados com seus kleacutea na Iliacuteada os kleacutea satildeo adquiridos principalmente em feitos
de guerra enquanto que na Odisseia a faixa eacute ampliada para abranger natildeo apenas fatos marciais
mas tambeacutem aventuras Mais do que isso alude-se tambeacutem ao κλέος da canccedilatildeo do proacuteprio
Odisseu Segundo Heubeck e Hoestra (1992 p 13) Odisseu identifica-se enfaticamente (εἴμι)
como o heroacutei cujo estratagema mais bem-sucedido acaba de ser recontado por Demoacutedoco a seu
104
proacuteprio pedido Odisseu teria assim se tornado muito famoso atraveacutes de suas dores e feitos e
aleacutem disso se coloca como muito famoso atraveacutes das mesmas dores e feitos
De Jong (2004 p 188) enuncia a tese de que existem suficientes sinais impliacutecitos e
indiretos que apontam o narrador homeacuterico como aspirando o κλέος por ele mesmo narrado e
celebrado por mais que a fama objetiva do poeta seja um fenocircmeno poacutes-homeacuterico Goldhill
(1991) ao tratar das mesmas passagens ainda lembra de forma enfaacutetica que aspirar ao κλέος
como funccedilatildeo do poeta eacute um lugar comum na cultura grega antiga Ou seja poetas que ao cantar
os kleacutea dos outros trazem seu proacuteprio κλέος
Podemos observar o exemplo disso em Iacutebico de Reacutegio esse que promete em versos uma
fama que natildeo morreraacute garantindo um κλέος imortal a Poliacutecrates de Samos καὶ σύ Πολύκρατες
κλέος ἄφθιτον ἑξεῖς (E tu Poliacutecrates traraacute fama impereciacutevel) De Jong apresenta uma
importante discussatildeo conectando ainda o papel das Musas com o κλέος dos poetas
Κλέος can be spread by the heroes themselves acting as narrators (Odysseus) or amateur-singers (Achilles) but those best suited to perpetuate the κλέος of men are the professional singers because of their relationship whith the Muses Later poets will not hesitate to describe- and hence promote- this fact explicity eg Theognis (237-52) who tells the subject of this poetry Cyrnus that his name will be spread over the whole word and will not die after his death thanks to the gift of the Muses which escorts him ie thanks to his immortalization in (Theognis) poetry (DE JONG 2004 p 194)
O acontecimento do κλέος do poeta e da poesia em si mesmos extrapolam o universo
do texto homeacuterico Eacute o que observamos em Iacutebico de Reacutegio e na anaacutelise de De Jong que cita
outra passagem de Teoacutegnis de Meacutegara a exaltar Cirno nos versos 245-247 das chamadas
Theognidea οὐδέποτ οὐδὲ θανὼν ἀπολεῖς κλέος ἀλλὰ μελήσεις ἄφθιτον ἀνθρώποισ αἰὲν
ἔχων ὄνομα Κύρνε καθ Ἑλλάδα γῆν στρωφώμενος ἠδ ἀνὰ νήσους (Nem mesmo entatildeo
embora morto vocecirc perderaacute sua fama em vez disso vocecirc seraacute conhecido pelas pessoas de
todos os tempos seu nome seraacute impereciacutevel Cirno propagando-se atraveacutes da terra helecircnica e
ateacute nas ilhas) Existem aind outras passagens da literatura antiga que comprovam essa aspiraccedilatildeo
do poeta ao κλέος
51 O ΚΛΕΟΣ DOS POETAS EM OUTROS CONTEXTOS
Podemos elencar outro registro do κλέος como renome de um poeta ou da proacutepria
poesia ainda dentro do universo arcaico Observamos mais um exemplo dentro dos Hinos
105
Homeacutericos que fazem referecircncia agrave fama e gloacuteria de um suposto poeta cego No hino 3 a Apolo
versos 166-176 encontramos
χαίρετε δ᾽ ὑμεῖς πᾶσαι ἐμεῖο δὲ καὶ μετόπισθεν μνήσασθ᾽ ὁππότε κέν τις ἐπιχθονίων ἀνθρώπων ἐθάδ᾽ ἀνείρηται ξεῖνος ταλαπείριος ἐλθών ὦ κοῦραι τίς δ᾽ ὔμμιν ἀνὴρ ἥδιστος ἀοιδῶν ἐνθάδε πωλεῖται καὶ τέῳ τέρπεσθε μάλιστα ὑμεῖς δ᾽ εὖ μάλα πᾶσαι ὑποκρίνασθαι ἀμφ᾽ ἡμέων τυφλὸς ἀνήρ οἰκεῖ δὲ Χίῳ ἔνι παιπαλοέσσῃ τοῦ πᾶσαι μετόπισθεν ἀριστεύσουσιν ἀοιδαί ἡμεῖς δ᾽ ὑμέτερον κλέος οἴσομεν ὅσσον ἐπ᾽ αἶαν ἀνθρώπων στρεφόμεσθα πόλεις εὖ ναιεταώσας οἳ δ᾽ ἐπὶ δὴ πείσονται ἐπεὶ καὶ ἐτήτυμόν ἐστιν (Como vos sauacutedo moccedilas Voacutes tambeacutem de mim mais tarde Lembrai-vos quando um nativo ou cansado peregrino Aqui chegado de longe vos fizer esta pergunta ldquoQuem eacute para voacutes oacute moccedilas o homem que excele em cantos Dentre os poetas daqui Qual o que mais vos agrada rdquo Todas voacutes lhe contestai sem falta de noacutes falando ldquoEacute um homem cego que mora na ilha escarpada de Quios Todos os seus cantares sempre seratildeo os melhores rdquo E noacutes tambeacutem vossa fama espalharemos enquanto Volvermos os nossos passos a bem povoadas urbes Todos hatildeo de crer em noacutes pois isso eacute bem verdadeiro)92
No trecho que descreve uma festa jocircnica em homenagem a Apolo o poeta-narrador fala
diretamente ao coro de donzelas Ele pede que se algueacutem no futuro perguntar quem eacute o melhor
poeta que teria visitado o lugar as donzelas identifiquem-no como esse homem Elas
responderiam que este poeta ldquoEacute um homem cego que mora na ilha escarpada de Quiosrdquo
Segundo alguns autores entre eles Andrew Faulkner (2011 p 13) a passagem supracitada
retrata o poeta Homero como um cego rapsodo viajante de festivais
Segundo Mike Chappell (2011 p 158) ao final de muitos hinos homeacutericos o poeta
promete lembrar-se do deus que estaacute sendo cantado mas observamos aqui aleacutem de uma mera
lembranccedila a exaltaccedilatildeo da importacircncia do κλέος dentro do hino natildeo conectado ao deus Apolo
muito menos a algum heroacutei ou personagem O κλέος estaacute conectado ao suposto poeta cego
Ressalta-se ainda a variante ὑμέτερον κλέος ldquonosso renomerdquo Sendo assim o ato de
espalhar o κλέος pelas ldquopovoadas urbesrdquo ficaraacute a cargo do poeta cego que se coloca junto com
as donzelas no trecho citado (muito provavelmente sacerdotisas de Apolo)
92 Traduccedilatildeo de Ordep Joseacute Trindade Serra
106
Outros exemplos de κλέος da poesia ou do poeta nos interessam Numa passagem das
Ratildes de Aristoacutefanes podemos observar os kleacutea dos poetas novamente sendo exaltados Satildeo os
versos 1030-1036
ταῦτα γὰρ ἄνδρας χρὴ ποιητὰς ἀσκεῖν σκέψαι γὰρ ἀπ᾽ ἀρχῆς ὡς ὠφέλιμοι τῶν ποιητῶν οἱ γενναῖοι γεγένηνται Ὀρφεὺς μὲν γὰρ τελετάς θ᾽ ἡμῖν κατέδειξε φόνων τ᾽ ἀπέχεσθαι Μουσαῖος δ᾽ ἐξακέσεις τε νόσων καὶ χρησμούς Ἡσίοδος δὲ γῆς ἐργασίας καρπῶν ὥρας ἀρότους ὁ δὲ θεῖος Ὅμηρος ἀπὸ τοῦ τιμὴν καὶ κλέος ἔσχεν πλὴν τοῦδ᾽ ὅτι χρήστ᾽ ἐδίδαξεν τάξεις ἀρετὰς ὁπλίσεις ἀνδρῶν (Isso aiacute eacute o que os homens os poetas deviam exercitar Pois imagine soacute como se tornaram uacuteteis desde o iniacutecio esses nobres dos poetas Pois Orfeu nos ensinou os ritos e como se abster das matanccedilas Museu a cura das doenccedilas e os oraacuteculos Hesiacuteodo os trabalhos da terra as frutas da estaccedilatildeo a agricultura e de onde Homero divino recebe a honra e o renome senatildeo das coisas boas que ensina sobre taacuteticas virtudes e o armamento dos homens)93
Segundo Kenneth Dover (1993 p 332) era convencional adotar Homero como um
paradigma de taacutetica militar e de sabedoria mesmo na obra de Aristoacutefanes que jaacute ultrapassa os
limites do mundo arcaico pertencendo ao periacuteodo claacutessico De qualquer forma o comediante
atribui um κλέος a Homero bem como faz elogio dos conselhos agriacutecolas de Hesiacuteodo Os poetas
ali elencados por Aristoacutefanes possuem todos algum tipo de utilidade e valor histoacuterico cabendo
especial atenccedilatildeo a Homero que recebe o κλέος designado ao poeta Por sua utilidade os poetas
satildeo agraciados pelo κλέος
Outra passagem de exaltaccedilatildeo do κλέος do poeta que aqui nos interessa estaacute dentro da
obra platocircnica Observamos no diaacutelogo platocircnico que trata do conceito de amor mais
especificamente no trecho aqui elencado acerca da imortalidade da alma e que acaba por tratar
tambeacutem da imortalidade atraveacutes do κλέος Trata-se da obra Banquete 208c-209c 209d-209e
quando a personagem Diotima fala acerca da poesia e imortalidade
καὶ ἥ ὥσπερ οἱ τέλεοι σοφισταί εὖ ἴσθι ἔφη ὦ Σώκρατες ἐπεί γε καὶ τῶν ἀνθρώπων εἰ ἐθέλεις εἰς τὴν φιλοτιμίαν βλέψαι θαυμάζοις ἂν τῆς ἀλογίας περὶ ἃ ἐγὼ εἴρηκα εἰ μὴ ἐννοεῖς ἐνθυμηθεὶς ὡς δεινῶς διάκεινται ἔρωτι τοῦ ὀνομαστοὶ γενέσθαι ldquoκαὶ κλέος ἐς τὸν ἀεὶ χρόνον ἀθάνατον καταθέσθαιrdquo καὶ ὑπὲρ τούτου κινδύνους τε κινδυνεύειν ἕτοιμοί εἰσι πάντας ἔτι μᾶλλον ἢ ὑπὲρ
93 Traduccedilatildeo de Marina Peixoto Soares
107
τῶν παίδων καὶ χρήματα ἀναλίσκειν καὶ πόνους πονεῖν οὑστινασοῦν καὶ ὑπεραποθνῄσκειν ἐπεὶ οἴει σύ ἔφη Ἄλκηστιν ὑπὲρ Ἀδμήτου ἀποθανεῖν ἄν ἢ Ἀχιλλέα Πατρόκλῳ ἐπαποθανεῖν ἢ προαποθανεῖν τὸν ὑμέτερον Κόδρον ὑπὲρ τῆς βασιλείας τῶν παίδων μὴ οἰομένους ἀθάνατον μνήμην ἀρετῆς πέρι ἑαυτῶν ἔσεσθαι ἣν νῦν ἡμεῖς ἔχομεν πολλοῦ γε δεῖ ἔφη ἀλλ᾽ οἶμαι ὑπὲρ ἀρετῆς ἀθανάτου καὶ τοιαύτης δόξης εὐκλεοῦς πάντες πάντα ποιοῦσιν ὅσῳ ἂν ἀμείνους ὦσι τοσούτῳ μᾶλλον τοῦ γὰρ ἀθανάτου ἐρῶσιν [] καὶ πᾶς ἂν δέξαιτο ἑαυτῷ τοιούτους παῖδας μᾶλλον γεγονέναι ἢ τοὺς ἀνθρωπίνους καὶ εἰς Ὅμηρον ἀποβλέψας καὶ Ἡσίοδον καὶ τοὺς ἄλλους ποιητὰς τοὺς ἀγαθοὺς ζηλῶν οἷα ἔκγονα ἑαυτῶν καταλείπουσιν ἃ ἐκείνοις ἀθάνατον κλέος καὶ μνήμην παρέχεται αὐτὰ τοιαῦτα ὄντα εἰ δὲ βούλει ἔφη οἵους Λυκοῦργος παῖδας κατελίπετο ἐν Λακεδαίμονι σωτῆρας τῆς Λακεδαίμονος καὶ ὡς ἔπος εἰπεῖν τῆς Ἑλλάδος (E ela como sofistas consumados tornou-me - podes estar certo oacute Soacutecrates o caso eacute que mesmo entre os homens se queres atentar agrave sua ambiccedilatildeo admirar-te-ias do seu desarrazoamento a menos que a respeito do que te falei natildeo reflitas depois de considerares quatildeo estranhamente eles se comportam com o amor de se tornarem renomados e de ldquopara sempre uma gloacuteria imortal se preservaremrdquo e como por isso estatildeo prontos a arrostar todos os perigos ainda mais do que pelos filhos a gastar fortuna a sofrer privaccedilotildees quaisquer que elas sejam e ateacute a sacrificar-se Pois pensas tu continuou ela que Alceste morreria por Admeto que Aquiles morreria depois de Paacutetroclo ou o vosso Codro morreria antes em favor da realeza dos filhos senatildeo imaginassem que eterna seria a memoacuteria de sua proacutepria virtude que agora noacutes conservamos Longe disso disse ela ao contraacuterio eacute segundo penso por uma virtude imortal e por tal renome e gloacuteria que todos tudo fazem e quanto melhores tanto mais pois eacute o imortal que eles amam[] e qualquer um aceitaria obter tais filhos mais que os humanos depois de considerar Homero e Hesiacuteodo e admirando com inveja os demais bons poetas pelo tipo de descendentes que deixam de si e que uma imortal gloacuteria e memoacuteria lhes garantem sendo eles mesmos o que satildeo ou se preferes continuou ela pelos filhos que Licurgo deixou na Lacedemocircnia e por assim dizer salvadores da Greacutecia)94
Diotima apresenta o desejo de imortalidade advindo dos homens incluindo os poetas
Eacute uma prova de peso acerca do valor que o κλέος possuiacutea para consumar a fama de um poeta e
sua relaccedilatildeo com a imortalidade O discurso de Diotima trata exatamente de κλέος ἐς τὸν ἀεὶ
χρόνον ἀθάνατον καταθέσθαι ou seja da preservaccedilatildeo de uma gloacuteria imortal pela virtude do
renome que tais accedilotildees trazem para o poeta que sendo assim se imortaliza O desejo dos poetas
pelo renome se daacute por um amor e os homens comuns parecem copiar essa busca dos poetas O
amor do poeta pelo κλέος indica sua necessidade de proximidade com o renome com a ideia
de se perpetuar na memoacuteria e na histoacuteria
94 Trad Joseacute Cavalcante de Souza
108
52 A RELACcedilAtildeO PROacuteXIMA ENTRE ΚΛΕΟΣ E O POETA
Observamos atraveacutes dessas vaacuterias passagens em periacuteodos distintos da Antiguidade a
relaccedilatildeo proacutexima que os poetas desenvolveram com o κλέος Goldhill (1991 p 70) estabelece
um axioma que resume bem essa hipoacutetese da relaccedilatildeo iacutentima do poeta com o κλέος ldquopoetry
confers gloryrdquo Goldhill estabelece esse axioma ao tratar do caraacuteter agoniacutestico da sociedade
grega que segundo ele firma criteacuterios para se determinar quem eacute superior a quem numa
sociedade guerreira e aristocraacutetica de extrema competitividade Os poetas tambeacutem participam
desta competiccedilatildeo batalhando por versos que permaneccedilam na histoacuteria criando seu κλέος O
κλέος se consolida assim como a perpetuaccedilatildeo do nome do poeta atraveacutes da troca e embate social
da poesia ldquoThe hellenic poet is the master of κλέοςrdquo (1991 p 71)
Goldhill (1991) ainda estabelece uma longa meditaccedilatildeo sobre a relaccedilatildeo entre o poeta e o
κλέος dentro da obra de Piacutendaro Simocircnides e Timocreon Com maior detalhamento na obra de
Piacutendaro este autor relaciona diretamente o uso da primeira pessoa com a busca do κλέος ldquoTo
what degree is Pindarrsquos use of ἐγὼ ldquoIrdquo to be taken as a marker of a personal statement Or a
sign of a general (choric) statement Can Pindaracutes poetic voice be distinguished from Pindar as
(auto) biographical subjectivityrdquo (1991 p 129)
Ainda em Piacutendaro podemos observar o papel do vencedor na sua poesia como aquele
que merece o precircmio do κλέος Observamos em seus epiniacutecios essa exaltaccedilatildeo dos melhores
dentro da poacutelis Goldhill (1991 p 109) tambeacutem nos diz ldquoFor unlike Homer when Pindar writes
his epinikia he celebrates (in the main) a contemporary victor who has hired him to sing his
praises a victor whats more whose polis is a fundamental element in the possibilities of praise
and successrdquo Piacutendaro nos traz o atributo do κλέος ligado entatildeo aos cidadatildeos vencedores numa
forte conexatildeo com o entorno social daqueles que participavam dos jogos Parece que Piacutendaro
conectou seu ldquoeurdquo poeacutetico com o ldquoeurdquo daqueles que eram louvados como heroacuteis oliacutempicos ou
mesmo por alguns feitos histoacutericos Fez isso tambeacutem atraveacutes de menccedilotildees expliacutecitas a κλέος
Retomamos por exemplo uma passagem jaacute comentada P 166 ὧν κλέος ἄνθησεν αἰχμᾶς (a
gloacuteria da sua lanccedila explodiu em flor) Mas em especial uma passagem das Oliacutempicas (9101)
nos traz algo importante ἀνθρώπων ἀρεταῖς κλέος ὤρουσαν ἀρέσθαι (Os homens se esforccedilam
para conquistar a gloacuteria com excelecircncia95) Trata-se de uma passagem importante pois associa
95 Trad adaptada de Diane Arnson Svarlien
109
o κλέος com os homens virtuosos Associa tambeacutem a ideia de que com treinamento se chega agrave
excelecircncia e com ela o κλέος
O elogio ao vencedor de Piacutendaro daacute ecircnfase a um κλέος que destoa da tradiccedilatildeo homeacuterica
no sentido de que descola esse κλέος de um atributo especiacutefico dos heroacuteis deuses dos
personagens lendaacuterios Exemplo desta argumentaccedilatildeo podem ser encontrado em P 3 196
ἐλπίδ᾽ ἔχω κλέος εὑρέσθαι κεν ὑψηλὸν πρόσω (Espero que nos dias futuros consiga alta
fama) Isso pode ser observado tambeacutem em P 3 201-202 ἁ δ᾽ ἀρετὰ κλειναῖς ἀοιδαῖς χρονία
τελέθει παύροις δὲ πράξασθ᾽ εὐμαρές (A virtude ganha uma vida longa por meio de canccedilotildees
gloriosas Mas para poucos isso se faz facilmente)
Observamos tambeacutem outro atributo na obra de Piacutendaro que estabelece uma importante
relaccedilatildeo com o κλέος Eacute aquilo que Piacutendaro traz em sua obra como uma concepccedilatildeo da poesia
como espeacutecie de ldquomonumento eternordquo uma poesia que eterniza Esse atributo pode ser
observado em P 6 8-9 ὕμνων θησαυρὸς ἐν πολυχρύσῳ Ἀπολλωνίᾳ τετείχισται νάπᾳ (Laacute foi
construiacutedο no vale de ouro de Apolo um tesouro de hinos) Tambeacutem em P 7 4-7 encontramos
a ideia de um monumento construiacutedo pela poesia κάλλιστον αἱ μεγαλοπόλιες Ἀθᾶναι
προοίμιον Ἀλκμανιδᾶν εὐρυσθενεῖ γενεᾷ κρηπῖδ᾽ ἀοιδᾶν ἵπποισι βαλέσθαι (A poderosa
cidade de Atenas eacute o mais belo preluacutedio a uma canccedilatildeo em honra da raccedila amplamente
poderosa dos Alcmeocircnidas colocada como uma fundaccedilatildeo de odes em honra de seus corceacuteis)
Natildeo somente nos epiniacutecios de Piacutendaro encontramos o κλέος mas tambeacutem em antigos
encocircmios ou mesmo em discursos de natureza contraacuteria aos encocircmios de cunho difamatoacuterio
Encontramos por exemplo em Timocreon citado por Plutarco (Them 2162) ao escrever a
biografia de Temiacutestocles na obra Vidas Paralelas Μοῦσα τοῦδε τοῦ μέλεος κλέος ἀν
Ἕλλανας τίθει ὡς ἐοικὸς καὶ δίκαιον (Musa coloque a fama nesta canccedilatildeo em toda a Greacutecia
como eacute devido e justo)96 Timocreon utiliza-se de versos para tentar colar uma maacute reputaccedilatildeo em
Temiacutestocles e para isso conta tambeacutem com o apoio das Musas Para o bem ou para o mal
observa-se a intensa relaccedilatildeo que os poetas tinham em criar manipular estabelecer um κλέος
Ao analisarmos algumas dessas passagens que percorrem diversos periacuteodos da histoacuteria
literaacuteria grega podemos reafirmar a existecircncia de trechos que exaltam a condiccedilatildeo do poeta e da
poesia como possuidores de κλέος Satildeo indicaccedilotildees encontradas dentro do universo homeacuterico
96 Trad adaptada de Antonio Ranz Romanillos
110
homens que tornam mais famosos os cantos enredos cujo κλέος ascende ao ceacuteu Odisseu que
admite em primeira pessoa ser portador do κλέος Se pensarmos em passagens textuais que
ainda se encontram num periacuteodo proacuteximo a Homero observamos tambeacutem nos Hinos
Homeacutericos o κλέος como renome de um poeta o κλέος de um aedo cego exaltado por sua
audiecircncia
No trecho que selecionamos de Aristoacutefanes o κλέος tambeacutem eacute exaltado como se fosse
consequecircncia e resultado da utilidade e valor de cada poeta Aleacutem de observarmos poetas
recebendo as honras do κλέος observamos poetas como Iacutebico de Reacutegio e Teoacutegnis de Meacutegara
prometendo κλέος em seus versos para personalidades que deviam gozar de certa fama ou
rumor descritos e versificados novamente por poetas como Iacutebico e Teoacutegnis Encontramos essa
espeacutecie de imortalidade pelos versos tambeacutem na obra de Piacutendaro Simocircnides e Timocreon cada
um descrevendo esse κλέος agrave sua maneira Sem esquecer da passagem platocircnica em que κλέος
eacute apresentado como uns dos caminhos para a imortalidade sendo os poetas o veiacuteculo desse
κλέος
Acreditamos que esses argumentos comprovam que podemos tratar de uma conexatildeo real
entre o poeta e o κλέος97 (ou mesmo de um desejo por κλέος por parte do poeta) O κλέος pode
ser objeto de uma poesia e o poeta aquele sujeito que fornece o κλέος ou dependendo da
audiecircncia e disseminaccedilatildeo de sua obra o poeta pode receber os louros e o κλέος pela concepccedilatildeo
da obra Essa relaccedilatildeo entre o poeta e o κλέος evidencia mais do que tudo a necessidade de um
poeta publicizar a si mesmo e sua obra tornar puacuteblica sua criaccedilatildeo nessa mecacircnica da repeticcedilatildeo
e renome movidos pelo κλέος Quanto mais um poeta eacute repetido mais ele adquire κλέος O
κλέος se torna assim uma unidade de repeticcedilatildeo poeacutetica
Se esse movimento de repeticcedilatildeo provido pelo κλέος parece evidente na poesia
colocamos nesse trabalho a questatildeo seguinte questatildeo ele se daria tambeacutem no ambiente
filosoacutefico Eacute possiacutevel falar do κλέος dos filoacutesofos Eacute possiacutevel falar em um κλέος textual e um
κλέος proacuteprio dos filoacutesofos assim como falamos dos poetas
Eacute o que nos propomos a analisar nas proacuteximas paacuteginas ao observar mais de perto a
produccedilatildeo filosoacutefica de Xenoacutefanes e Heraacuteclito Antes disso poreacutem traremos alguns
97 A questatildeo foi debatida tambeacutem de nossa parte com o Prof Richard Hunter da Universidade de Cambridge no dia 18 de setembro de 2017 ao final de sua conferecircncia The Measure of Homer aspects of the reception of Homer in antiquity (Edifiacutecio D Pedro I Rua General Carneiro 460 10ordm andar Curitiba-PR) Segundo o Prof Hunter eacute inteiramente possiacutevel e provaacutevel pensarmos o κλέος como algo almejado e buscado pelos poetas em geral na Antiguidade
111
pressupostos baacutesicos para se falar do mundo dos preacute-socraacuteticos conectados a conceitos baacutesicos
que jaacute trouxemos aqui para falar do ambiente eacutepico Vejamos como se daacute o iniacutecio do estudo
acerca dos primeiros filoacutesofos e sua doxografia
112
60 A DESIGNACcedilAtildeO DOS PREacute-SOCRAacuteTICOS E AS DOXOGRAFIAS
Antes de adentrarmos na anaacutelise preacute-socraacutetica acerca das ideias e dos textos de Hesiacuteodo
cabe aqui uma breve apresentaccedilatildeo de como a tradiccedilatildeo da filosofia e da literatura se apropriou
criticou e agrupou a obra dos preacute-socraacuteticos Essa apresentaccedilatildeo se faz necessaacuteria na medida em
que esses pensadores satildeo tambeacutem parte da recepccedilatildeo da obra de Hesiacuteodo Faz-se necessaacuteria
tambeacutem para observarmos e analisarmos como o κλέος de Hesiacuteodo transitou nas ideias desses
pensadores preacute-socraacuteticos e num segundo momento analisar como esses preacute-socraacuteticos
desenvolveram seu κλέος mais especificamente como objeto desta tese o κλέος de Xenoacutefanes
e Heraacuteclito
O termo ldquopreacute-socraacuteticordquo natildeo era usado na antiguidade Ele se consagrou com a
publicaccedilatildeo da obra Die Fragmente der Vorsokratiker concebida por Hermann Diels em 1903
e posteriormente revisada e ampliada por Walther Kranz no transcorrer das primeiras deacutecadas
do seacuteculo XX Esta obra traz a compilaccedilatildeo dos vaacuterios fragmentos dos primeiros filoacutesofos
teoacutelogos cosmoacutelogos ateacute mesmo sofistas e poetas (no que estes uacuteltimos trazem de filosoacutefico
segundo a concepccedilatildeo de Diels e Kranz) Trata-se de fragmentos encontrados e catalogados ateacute
o periacuteodo em que viveram Diels e Kranz trazendo nessa obra que abreviamos por DK a
doxografia destes pensadores
Uma definiccedilatildeo do que eacute a doxografia termo cunhado por Diels pode ser a proposta por
Baltussen (2002 p 1) ldquothe study of the nature transmission and interrelations of sources for
ancient Greek philosophyrdquo Eacute um estudo da natureza transmissatildeo e inter-relaccedilatildeo porque a
doxografia estaacute sempre em algum contexto que precisa ser exemplificado Esse contexto
geralmente se daacute em obras que faziam uma espeacutecie de cataacutelogo ou mosaico do mundo antigo
quer no gecircnero biograacutefico dos filoacutesofos quer nas obras que listavam as doacutexai (opiniotildees ou
preceitos) de cada filoacutesofo quer na literatura que organizava a histoacuteria da filosofia segundo
sucessotildees de mestres e disciacutepulos (as diadokhaigrave tocircn philosoacutephon) Essas doacutexai eram ligadas agraves
obras sobre escolas ou seitas filosoacuteficas ou mesmo apareciam em obras variadas que em certo
momento citavam alguma passagem desses pensadores Dentro da obra desses autores
catalograacuteficos eacute que se estabelecem as informaccedilotildees dos preacute-socraacuteticos como algo relevante para
a argumentaccedilatildeo de quem os cita ou em outros casos especiacuteficos como compilaccedilotildees de ideias
e escolas presentes na Antiguidade Nesse sentido podemos falar em doxografias (assim no
plural) obras antigas de caraacuteter doxograacutefico
113
As doxografias98 satildeo indiacutecios de como dadas correntes ou autores produziram uma
recepccedilatildeo dos preacute-socraacuteticos e na medida em que percorremos a hipoacutetese desta tese a recepccedilatildeo
de Hesiacuteodo dentro dessa doxografia dos preacute-socraacuteticos Por isso devemos ressaltar a
importacircncia das doxografias para este trabalho elas satildeo a ligaccedilatildeo contextualizada com o
universo dos preacute-socraacuteticos elas satildeo a mateacuteria-prima textual que nos aproxima dos primeiros
pensadores inclusive no que diz respeito agraves suas criacuteticas e posicionamentos frente a Hesiacuteodo e
agrave poesia em geral
Ao nos reportarmos aos fragmentos doxograacuteficos que foram ldquoencontrados e
catalogadosrdquo por DK ateacute a metade do seacuteculo XX o dizemos pelo fato de que muita coisa nova
surgiu na virada do seacuteculo XXI em termos de novos manuscritos descobertas arqueoloacutegicas
produccedilatildeo de novas ediccedilotildees que complementaram a visatildeo e acervo escrito que possuiacutemos acerca
dos preacute-socraacuteticos99
Mesmo com os achados mais recentes poucas obras completas dos primeiros
pensadores nos sobraram e quase que a totalidade do acesso aos primeiros filoacutesofos se daacute por
essas doxografias e por citaccedilotildees de terceiros Por isso todas as informaccedilotildees coletadas nessas
doxografias satildeo de extrema relevacircncia Isto eacute estudar a questatildeo preacute-socraacutetica suas obras e suas
vidas se daacute na grande maioria das vezes por opiniotildees e cataacutelogos de outros autores que
pertenceram ao mundo antigo Conhece-se pelo conhecimento de outros e por comparaccedilotildees e
composiccedilotildees de vaacuterias doxografias se tenta construir um apanhado geral de cada pensador
A tradiccedilatildeo das doxografias tambeacutem eacute vasta Podemos dizer que elas se iniciam com as
obras dos sofistas Hiacutepias e Goacutergias (MANSFELD 1999 p 26-28) apoacutes isso com a produccedilatildeo
de Platatildeo e Aristoacuteteles Os seguidores das escolas platocircnicas e aristoteacutelicas continuam com a
tradiccedilatildeo doxograacutefica As doxografias recebem um aprimoramento textual e formal com
Teofrasto que se tornou mestre neste estilo (teria escrito a compilaccedilatildeo Physikaigrave doacutexai fonte de
diversos textos doxograacuteficos posteriores como os Placita de Aeacutecio do seacutec I dC reconstruiacutedos
por Diels e a obra do mesmo nome falsamente atribuiacuteda a Plutarco) e seguem ateacute o seacuteculo VI
98 Assim como a terminologia de ldquopreacute-socraacuteticosrdquo foi consolidada por Diels-Kranz tambeacutem a terminologia ldquodoxografiasrdquo se consolidou com essa dupla de pesquisadores tornando-se passagem obrigatoacuteria para a pesquisa dos primeiros filoacutesofos Muitas referecircncias no acircmbito dessas doxografias tambeacutem mudaram nas uacuteltimas deacutecadas Para bibliografia sobre o assunto ver Mansfeld (1999) e Baltussen (2005) 99 Cabe aqui uma breve menccedilatildeo a LrsquoEmpeacutedocle de Strasbourg (MARTIN PRIMAVESI 1999) obra que analisa os 54 novos versos de Empeacutedocles achados num manuscrito na regiatildeo egiacutepcia de Panoacutepolis Utilizaremos tambeacutem a ediccedilatildeo de Graham (2008) dos fragmentos e testemunhos dos preacute-socraacuteticos que jaacute edita as descobertas mais recentes
114
de nossa era com Simpliacutecio Boeacutecio Proclo entre outros Eacute atraveacutes do estudo destes fragmentos
que construiacutemos parte do que foi o mundo dos primeiros filoacutesofos
Por mais que as doxografias e fragmentos dos preacute-socraacuteticos sejam aberturas pequenas
para o universo desses autores elas possibilitaram a construccedilatildeo de um nuacutecleo de interpretaccedilotildees
das escolas filosoacuteficas da Antiguidade colocando alguns pensadores em correntes de
pensamento que tinham uma espeacutecie de linha mestra uma espeacutecie de temaacutetica em comum
Essas categorias de pensadores comeccedilaram a ser catalogadas novamente de forma mais
consistente a partir dos seacuteculos XVII-XVIII Consolida-se laacute o termo preacute-socraacutetico
Empregado dentro do romantismo alematildeo o termo Vorsokratiker aponta para os
filoacutesofos que antecederam Soacutecrates por mais que cronologicamente falando alguns sejam
posteriores Possivelmente essa expressatildeo surgiu com Johann Augustus Eberhard (1739ndash1809)
pensador contemporacircneo a Immanuel Kant que em 1788 publicou um manual de filosofia
chamado Vorsokratische Philosophie Posteriormente Eduard Zeller (1814-1908) disciacutepulo do
hegelianismo utiliza o termo Vorsokratiker na obra Die Philosophie der Griechen (1844-52)
consolidando o termo na filosofia germacircnica Essa heranccedila terminoloacutegica eacute adotada por Diels
e Kranz consagrando o termo
Vorsokratiker eacute entatildeo um princiacutepio terminoloacutegico para classificar uma gama de
pensadores numa multiplicidade de obras Existe algo que conecta todos esses pensadores
Existe alguma coisa que os diferencie da tradiccedilatildeo ateacute entatildeo colocada no mundo arcaico que eacute
fortemente marcada pela poesia oral hexameacutetrica Bruno Snell (1924 p 8) em uma obra
dedicada ao vocabulaacuterio preacute-socraacutetico observa que a escrita de alguns dos primeiros filoacutesofos
era em hexacircmetros mesmo sabendo Snell que essa forma de escrita jaacute havia sido de certa
maneira deixada para traacutes Segundo Snell eles procederam assim a despeito do fato de que jaacute
ia longe o tempo no qual fora necessaacuterio usar a forma do verso para transmitir uma ideia de
importacircncia literaacuteria Ou seja queriam versificar um conceito para talvez o melhor apresentar
Bruno Snell100 coloca essa contraposiccedilatildeo entre a prosa utilizada a partir do seacuteculo V aC
e o hexacircmetro forma tradicionalmente eacutepica para pensar exatamente se existe um sentido nessa
diferenciaccedilatildeo de estilos Trouxemos esses argumentos de Snell101 simplesmente para ressaltar
100 Sabemos que as teorias de Snell foram amplamente criticadas no decorre do seacuteculo XX principalmente pelas suas teses demasiadas eurocentristas e helenocentristas acerca da criaccedilatildeo da subjetividade Mas cabe aqui a referecircncia a esse pensador por analisar a prosa e verso nos preacute-socraacuteticos 101 Retomaremos essa questatildeo entre forma prosaica e forma poeacutetica ao problematizarmos como alguns pensadores preacute-socraacuteticos tratam da obra de Hesiacuteodo
115
a ideia de que natildeo se podem separar os primeiros filoacutesofos dos primeiros poetas usando
simplesmente o detalhe da forma Essa natildeo-diferenciaccedilatildeo jaacute era lembrada por Aristoacuteteles em
sua Poeacutetica 1447b 13-25
πλὴν οἱ ἄνθρωποί γε συνάπτοντες τῷ μέτρῳ τὸ ποιεῖν ἐλεγειοποιοὺς τοὺς δὲ ἐποποιοὺς ὀνομάζουσιν οὐχ ὡς κατὰ τὴν μίμησιν ποιητὰς ἀλλὰ κοινῇ κατὰ τὸ μέτρον προσαγορεύοντες καὶ γὰρ ἂν ἰατρικὸν ἢ φυσικόν τι διὰ τῶν μέτρων ἐκφέρωσιν οὕτω καλεῖν εἰώθασιν οὐδὲν δὲ κοινόν ἐστιν Ὁμήρῳ καὶ Ἐμπεδοκλεῖ πλὴν τὸ μέτρον διὸ τὸν μὲν ποιητὴν δίκαιον καλεῖν τὸν δὲ φυσιολόγον μᾶλλον ἢ ποιητήν ὁμοίως δὲ κἂν εἴ τις ἅπαντα τὰ μέτρα μιγνύων ποιοῖτο τὴν μίμησιν καθάπερ Χαιρήμων ἐποίησε Κένταυρον μικτὴν ῥαψῳδίαν ἐξ ἁπάντων τῶν μέτρων καὶ ποιητὴν προσαγορευτέον (Com efeito as pessoas juntando ao nome do metro a palavra poeta chamam a uns poetas elegiacuteacos e a outros poetas eacutepicos natildeo os designando poetas pela imitaccedilatildeo mas pela semelhanccedila do metro E se escrevem alguma obra em verso sobre Medicina ou sobre Fiacutesica costumam designaacute-los igualmente por poetas Ora nada haacute de comum entre Homero e Empeacutedocles a natildeo ser o metro por isso seraacute justo chamar a um poeta e a outro naturalista em vez de poeta Do mesmo modo se algueacutem imitar juntando todos os metros como Quereacutemon fez ao compor o Centauro mdash uma rapsoacutedia com mistura de todos os metros mdash deve ser ainda considerado poeta)102
Se natildeo eacute a forma que classifica certos autores como preacute-socraacuteticos tradicionalmente se
utilizou o aspecto do conteuacutedo Esse eacute o criteacuterio utilizado por Diels e Kranz que inclusive
incluem em sua ediccedilatildeo alguns poetas que tratariam de aspectos cosmoloacutegicos em sua poesia
entre eles Hesiacuteodo Como se a poesia cosmoloacutegica trouxesse algo que lembraria em seu
conteuacutedo a filosofia propriamente dita Giovanni Casertano atesta esse fato em seu trabalho
sobre os preacute-socraacuteticos
A ediccedilatildeo de Diels e Kranz engloba autores que vatildeo da mais antiga poesia cosmoloacutegica dos seacuteculos VII-VI aC (como Orfeu Museu Epimecircnides Hesiacuteodo Ferecides Arcesilau) ateacute autores que viveram entre o seacuteculo V e o seacuteculo IV (como Demoacutecrito de Abdera e os sofistas) A rigor portanto ela natildeo trata soacute de autores ldquopreacute-socraacuteticosrdquo mas engloba tambeacutem autores que foram contemporacircneos de Soacutecrates e ateacute Platatildeo (CASERTANO 2011 p 23)
Longe de ser homogecircneo o pensamento preacute-socraacutetico eacute de vasta amplitude classificado
por Diels e Kranz a partir do criteacuterio de conteuacutedo e do estudo doxograacutefico das citaccedilotildees Um
102 Trad Ana Maria Valente
116
nuacutecleo de interpretaccedilatildeo amplamente utilizado entre muitos outros eacute o de Dioacutegenes Laeacutercio
(cerca de 225-300 dC) Dioacutegenes foi um doxoacutegrafo importante por compor Vidas e Doutrinas
dos Filoacutesofos Ilustres em que nos deparamos com a seguinte classificaccedilatildeo dos filoacutesofos ateacute
entatildeo 1 Sete saacutebios 2 Os primeiros filoacutesofos Soacutecrates e seus disciacutepulos 3 Platatildeo 4
Academia 5 Aristoacuteteles e seus disciacutepulos 6 Ciacutenicos 7 Estoicos 8 Pitaacutegoras e sua escola 9
Heraacuteclito Xenoacutefanes os eleatas Leucipo e Demoacutecrito Protaacutegoras Dioacutegenes de Apolocircnia
Anaxarco os ceacuteticos 10 Epicuro e os epicuristas
Eacute de se notar a complexidade de criar grupos fechados e categorias de pensamento
dentro dessa multiplicidade da filosofia antiga mas Dioacutegenes Laeacutercio nos apresenta tal
classificaccedilatildeo Continua sendo a obra de Dioacutegenes um vasto guia de inserccedilatildeo no pensamento
antigo Outros doxoacutegrafos possuem grande relevacircncia no estudo dos fragmentos preacute-socraacuteticos
como Sexto Empiacuterico Galeno o jaacute citado Aeacutecio aleacutem do proacuteprio Teofrasto bem como as
informaccedilotildees de extrema relevacircncia dadas por Aristoacuteteles dentro da sua obra
61 OS PREacute-SOCRAacuteTICOS CITAM HESIacuteODO EM SUAS DOXOGRAFIAS A
MATERIALIDADE DO ΚΛΕΟΣ DO POETA BEOacuteCIO
Tendo em vista o que a tradiccedilatildeo preservou de alguns pensadores preacute-socraacuteticos criamos
neste estudo uma hipoacutetese de interpretaccedilatildeo que iremos aprofundar a repeticcedilatildeo do κλέος de
Hesiacuteodo dentro do universo dos primeiros filoacutesofos nos traz a materialidade do renome e
reconhecimento desse poeta Inseridas nessa tradiccedilatildeo doxograacutefica inclusive nos fragmentos
verbatim dos preacute-socraacuteticos existem as citaccedilotildees de alguns preacute-socraacuteticos acerca da figura de
Hesiacuteodo sendo essas citaccedilotildees provas textuais do κλέος do poeta no debate dos primeiros
filoacutesofos Ou seja dentro dos fragmentos possuiacutemos citaccedilotildees que fazem referecircncia a um autor
da poesia eacutepica cuja obra foi consolidada atraveacutes de toda a histoacuteria antiga e que se tornou
famoso e conhecido por conta disso
Esse seraacute nosso interesse a partir de agora saber qual eacute o teor das citaccedilotildees de Hesiacuteodo
dentro da doxografia preacute-socraacutetica especialmente com referecircncia a passagens que tratam desse
κλέος de Hesiacuteodo E mais do que isso demonstrar que alguns destes filoacutesofos tambeacutem
apresentam uma construccedilatildeo de seu proacuteprio κλέος tentando de certa maneira superar o κλέος de
Hesiacuteodo e da poesia
117
Sendo assim algo deve ficar claro na relaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e os preacute-socraacuteticos Quando
falamos de referecircncias e citaccedilotildees preacute-socraacuteticas a Hesiacuteodo no mundo antigo existem aquelas
em que alguns dos primeiros filoacutesofos remetem seus argumentos diretamente agrave obra de Hesiacuteodo
(tipo 1 ldquoHesiacuteodo criticou a natureza do dia e da noiterdquo)103 Satildeo citaccedilotildees que como veremos
possuem um tom de criacutetica individualizada ao nome Hesiacuteodo principalmente nos pensadores
que mais nos interessam aqui Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Ainda acerca das referecircncias a Hesiacuteodo existem aquelas que apresentam a obra do
poeta junto a outro indiviacuteduo mantendo assim uma criacutetica a dois ou mais autores (tipo 2
ldquoHesiacuteodo e Homero deveriam ser expulsos da praccedila puacuteblicardquo)
Tambeacutem existem outras que atraveacutes da doxografia de alguns preacute-socraacuteticos relacionam
temas ao poeta Hesiacuteodo (tipo 3 ldquoO Eros eacute a causa primeira das coisasrdquo) Satildeo citaccedilotildees que natildeo
mencionam o nome Hesiacuteodo mas que mencionam uma argumentaccedilatildeo tradicionalmente
relacionada ao poeta Tais citaccedilotildees de temaacuteticas hesioacutedicas satildeo frequentes em Parmecircnides
Empeacutedocles e Melisso
Trataremos desta forma de trecircs tipos baacutesicos (1 2 e 3) de fragmentos ou testimonia dos
preacute-socraacuteticos relacionados a Hesiacuteodo aquele em que o pensador preacute-socraacutetico cita
nominalmente Hesiacuteodo aquele em que um outro pensador eacute citado junto a Hesiacuteodo e aquele
em que Hesiacuteodo natildeo eacute citado nominalmente mas cuja temaacutetica inevitavelmente gira dentro do
universo poeacutetico do autor como por exemplo em temas teogocircnicos ou em referecircncia agrave
educaccedilatildeo proposta por Hesiacuteodo em Os trabalhos e os dias
Por isso dentro dos registros histoacutericos atualmente disponiacuteveis e dentro de um complexo
conjunto de fragmentos e testemunhos mostraremos como essa tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica lecirc
interpreta critica e traduz Hesiacuteodo Mais do que isso tentaremos demonstrar natildeo somente como
os preacute-socraacuteticos leram Hesiacuteodo mas tambeacutem como os autores posteriores a este periacuteodo mas
ainda dentro do mundo antigo na qualidade de doxoacutegrafos leram Hesiacuteodo junto aos preacute-
socraacuteticos Propomos o movimento da leitura de alguns fragmentos em que Hesiacuteodo eacute citado
e a partir dessas informaccedilotildees tentarmos demonstrar outro Hesiacuteodo reafirmado fora de sua obra
na leitura que estes filoacutesofos parecem ter feito do poeta Essa eacute a materialidade do κλέος de
Hesiacuteodo nos preacute-socraacuteticos
103 Exemplos meramente ilustrativos
118
Fragmentos da obra de Hesiacuteodo criacuteticas ao seu modelo de mundo e de educaccedilatildeo
comparaccedilotildees e categorizaccedilotildees da sua poesia referecircncias ao seu modelo teoloacutegico criacuteticas ao
seu didatismo satildeo faces da multiplicidade de interpretaccedilotildees acerca do universo hesioacutedico nos
materiais preacute-socraacuteticos Dizemos multiplicidade pois desde jaacute adiantamos a diversidade em
que esse poeta eacute abordado inviabilizando qualquer categorizaccedilatildeo cientiacutefica objetiva
classificatoacuteria de uma ciecircncia absolutamente rigorosa Tal inviabilidade se daacute sem duacutevida
como jaacute dissemos pela proacutepria impossibilidade de se falar em uma corrente una do pensamento
preacute-socraacutetico A recepccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute tambeacutem construiacuteda nessa rede de comentaacuterios e citaccedilotildees
que compotildeem o universo das doxografias e nos lega assim uma rica visatildeo que estes preacute-
socraacuteticos teriam da obra do poeta
Poreacutem para apresentarmos a recepccedilatildeo de Hesiacuteodo e consequentemente seu κλέος no
mundo preacute-socraacutetico traremos primeiramente uma contextualizaccedilatildeo inicial de cada preacute-
socraacutetico e sua relaccedilatildeo com o mundo poeacutetico antes de ressaltar suas consideraccedilotildees sobre
Hesiacuteodo de forma concreta
Tal apresentaccedilatildeo se faz necessaacuteria pois eacute atraveacutes da obra de cada pensador e de sua visatildeo
particular acerca do mundo eacutepico que podemos criar uma chave de leitura de Hesiacuteodo mesmo
porque essa leitura passa muitas vezes por uma visatildeo cosmoloacutegica teoloacutegica e ateacute fiacutesica da
realidade Falaremos agora sobre a relaccedilatildeo de alguns preacute-socraacuteticos com o mundo eacutepico e apoacutes
isso mediremos o κλέος de Hesiacuteodo no contexto dos primeiros filoacutesofos
119
70 PRESSUPOSTOS DO ΚΛΕΟΣ - OS PREacute-SOCRAacuteTICOS EM RELACcedilAtildeO Agrave POESIA
EacutePICA
Antes de falarmos da relaccedilatildeo entre os preacute-socraacuteticos e Hesiacuteodo diretamente cabe uma
reflexatildeo acerca de como alguns filoacutesofos preacute-socraacuteticos se relacionaram com a poesia eacutepica
nos seus mais variados movimentos de criacutetica assimilaccedilatildeo repeticcedilatildeo e diferenciaccedilatildeo Trecircs
pensadores principalmente exemplificam essa relaccedilatildeo do filosoacutefico com o poeacutetico a nosso
ver Xenoacutefanes Parmecircnides e Heraacuteclito
Poderiacuteamos citar outros mas esses trecircs demonstram bem os movimentos supracitados
Essa reflexatildeo entre o filosoacutefico e o poeacutetico por mais que natildeo se esgote em nosso trabalho se
faz necessaacuteria pois o eacutepos da poesia arcaica possui uma importante relevacircncia como tema de
debate entre esses pensadores Eacute uma primeira anaacutelise de como o universo dos preacute-socraacuteticos
se colocou perante essa temaacutetica da poesia e seus autores principalmente num primeiro
momento se colocou frente agrave tradiccedilatildeo homeacuterica Comeccedilaremos pela relaccedilatildeo de Xenoacutefanes de
Colofatildeo com a poesia eacutepica
71 XENOacuteFANES DE COLOFAtildeO A POESIA E FILOSOFIA JOcircNICA
Da vida de Xenoacutefanes104 tomamos como fonte seus proacuteprios fragmentos Em DK 21 B
22 observamos a descriccedilatildeo da chegada dos Medos em 546-5 aC no entorno natal de Xenoacutefanes
e tambeacutem a sua vida longeva Segundo outras fontes entre elas DK 21 B 8 morreu velhiacutessimo
possivelmente exercendo grande influecircncia cultural e filosoacutefica na cidade de Eleia como nos
diz Platatildeo em Soph 242d [] τὸ δὲ παρ᾿ ἡμῶν ᾿Ελεατικὸν ἔθνος ἀπὸ Ξενοφάνους τε καὶ ἔτι
πρόσθεν ἀρξάμενον ὡς ἑνὸς ὄντος τῶν πάντων καλουμένων οὕτω διεξέρχεται τοῖς μύθοις
([] mas a nossa tribo eleaacutetica iniciada a partir de Xenoacutefanes e mesmo ainda antes transmitia
com tais histoacuterias que o que chamamos de todo eacute um uacutenico)
Apesar de existirem muitas controveacutersias acerca da relaccedilatildeo de Xenoacutefanes com a escola
eleata bem como acerca da sua posiccedilatildeo teoacuterica de defensor de um monoteiacutesmo filosoacutefico satildeo
104 Cabe aqui uma referecircncia agrave obra Sobre Xenoacutefanes Melisso e Goacutergias que por muito tempo se atribuiu a Aristoacuteteles mas que nos dias de hoje se coloca como de autoria anocircnima e que possivelmente foi compilada por algum aluno de Aristoacuteteles Independentemente da autoria do texto eacute sem sombra de duacutevida um dos registros materiais da recepccedilatildeo de Xenoacutefanes
120
registros que ficaram na sua doxografia e devem ser levados em conta ao montarmos sua
possiacutevel biografia
Segundo Casertano (2011 p 79) Xenoacutefanes teria absorvido dos jocircnios a tradiccedilatildeo da
prosa filosoacutefica e cientiacutefica Dentro dessa aquisiccedilatildeo de pensar e escrever teria Xenoacutefanes
adequado uma escrita que ldquoembora conserve a meacutetrica e os modos da poesia tradicional se
enche de conteuacutedos novos (da eacutetica agrave teologia da poliacutetica agraves ciecircncias naturais) e eacute perpassada
por um espiacuterito originalrdquo (2011 p 79) Xenoacutefanes estaria abrindo o caminho para os chamados
poemas acerca da natureza que estariam por vir no seacuteculo V aC tendo bebido de alguma forma
na fonte jocircnica de pensamento teria sido influenciado por aquilo que alguns autores chamam
de ldquoiluminismo jocircnicordquo Eacute o caso de Stokes (1971 p 78) que utiliza essa terminologia
Da Colofatildeo de ascendecircncia jocircnica ateacute Eleia na Magna Greacutecia Xenoacutefanes estabeleceu
grande influecircncia como poeta e pensador Alguns de seus fragmentos denotam um
conhecimento variado de outros pensadores do seu tempo bem como do passado arcaico o que
ressalta a inserccedilatildeo de Xenoacutefanes nas questotildees importantes daquele periacuteodo Ele cita por
exemplo Pitaacutegoras em DK 21 B 7 Tales de Mileto em DK 21 B 19 Epimecircnides em DK 21
B 20 Simocircnides em DK 21 B 21 Conhecia natildeo somente a obra como aspectos da vida dos
poetas Em DK 21 B 13 por exemplo observamos que o fragmento deixa isso evidente alii
Homerum quam Hesiodum maiorem natu fuisse scripserunt in quibus Philochorus et
Xenophanes alii minorem (Alguns escreveram que Homero era mais velho que Hesiacuteodo entre
os quais Filocoro e Xenoacutefanes outros que era mais novo)
Xenoacutefanes escreveu sua obra em versos e quando verificamos suas metrificaccedilotildees
constatamos uma diversidade de formas e estilos Essa tese de um Xenoacutefanes muacuteltiplo filoacutesofo
e poeta pode ser observada em vaacuterias fontes da antiguidade como por exemplo na doxografia
e histoacuteria dos filoacutesofos de Dioacutegenes Laeacutercio Teria Xenoacutefanes escrito vaacuterias obras poeacuteticas
tradicionais chamadas de Elegias entre outros poemas isolados bem como teria tambeacutem
escrito uma suposta obra de saacutetiras chamada de Siacutelloi (poemas curtos compostos de hexacircmetros
datiacutelicos e iambos)105 cuja prova material estaacute em pequenos fragmentos
105 A palavra siacutellos eacute utilizada para designar uma composiccedilatildeo de caraacuteter satiacuterico em hexacircmetros tais como aqueles que escreveu Tiacutemon de Flio que inclusive louva Xenoacutefanes como se este fosse seu antecessor no gecircnero (DK 21 A 1 35) como veremos abaixo
121
Ainda supostamente teria escrito um tratado acerca da natureza chamado Περὶ
Φύσεως106 (ldquoSobre a Naturezardquo) Satildeo obras que a criacutetica supotildee terem sido escritas dadas as
informaccedilotildees doxograacuteficas acerca de Xenoacutefanes mas que natildeo sabemos exatamente que formato
e extensatildeo tinham Atraveacutes desses supostos gecircneros textuais se agrupam os escritos de
Xenoacutefanes Seus fragmentos satildeo organizados em DK da seguinte maneira DK 21 B 1-9
Elegias DK 21 B 10-21 Siacutelloi DK 21 B 22 Paroacutedias ou Siacutelloi DK 21 B 23-41 Sobre a
Natureza DK 21 B 42-43 fragmentos duacutebios Podemos observar pela diversidade de formas
textuais seu apreccedilo pela atividade poeacutetica
Na verdade Xenoacutefanes representa a proacutepria contradiccedilatildeo que poderiacuteamos apontar entre
o poeta e o filoacutesofo na tendecircncia que possuiacutemos em separar estas duas aacutereas da criatividade
humana Ao analisar sua obra mais de perto observamos que o limite entre filosofia e poesia eacute
tecircnue e muitas vezes praticamente impossiacutevel de ser delimitado Guthrie (1980 p 361) eacute
enfaacutetico ao apontar essa possiacutevel contradiccedilatildeo entre poesia e filosofia dentro da obra de
Xenoacutefanes ldquoHe is a poet the only whose genuine writings find a place both among the
Presocratic Philosophers of Diels and the lyric anthology of Diehl and like every Greek poet
he was a teacher with a message to convey Poetic form is no bar to philosophyrdquo
A questatildeo de se dar o limite entre filosofia e poesia eacute de fato muito polecircmica Muitas
dessas polecircmicas nascem com Xenoacutefanes dentro do seu proacuteprio ambiente biograacutefico e
doxograacutefico Satildeo informaccedilotildees (verdadeiras ou natildeo) que partem de Dioacutegenes Laeacutercio Laacute
encontramos tambeacutem dados importantes acerca da vida de rapsodo e criacutetico da tradiccedilatildeo arcaica
que Xenoacutefanes teria levado principalmente em DL 9218 que na notaccedilatildeo de Diels e Kranz eacute
DK 21 A 1
Ξενοφάνης Δεξίου ἤ ὡς Ἀπολλόδωρος Ὀρθομένους Κολοφώνιος ἐπαινεῖται πρὸς τοῦ Τίμωνοςmiddot φησὶ γοῦν lsquoΞεινοφάνην θ᾽ ὑπάτυφον Ὁμηραπάτην ἐπικόπτηνrsquo οὗτος ἐκπεσὼν τῆς πατρίδος ἐν Ζάγκλῃ τῆς Σικελίας διέτριβε δὲ καὶ ἐν Κατάνῃ διήκουσε δὲ κατ᾽ ἐνίους μὲν οὐδενός κατ᾽ ἐνίους δὲ Βότωνος Ἀθηναίου ἤ ὥς τινες Ἀρχελάου καί ὡς Σωτίων φησί κατ᾽ Ἀναξίμανδρον
106 Segundo Santoro (2011 p 2) ldquoAristoacuteteles no primeiro livro da Metafiacutesica (982a) nomeia os seus predecessores estes que trataram dos primeiros princiacutepios e causas simplesmente de ldquosophoacuteirdquo ou ldquophilosoacutephoirdquo diferenciando-os dos poetas que ele chama tambeacutem de lsquotheoacutelogoirsquo No primeiro livro de sua Fiacutesica Aristoacuteteles ocupa-se de discutir as principais teses ontoloacutegicas dos eleatas para estabelecer o seu proacuteprio conceito de phyacutesis (natureza) como princiacutepio de movimento Assim o Estagirita estabelece a perspectiva para abordar Xenoacutefanes e Parmecircnides como filoacutesofos que tratam da natureza O tiacutetulo que seus tratados iratildeo (posteriormente) receber lsquoAcerca da Naturezarsquo (Perigrave Phyacuteseos) deve-se a esta perspectiva a qual tambeacutem vai dirigir a obra que por muito tempo foi o lugar de divulgaccedilatildeo destes tratados a compilaccedilatildeo empreendida por Teofrasto das opiniotildees dos filoacutesofos da natureza lsquoPhysikocircn Doacutexairsquordquo
122
ἦν γέγραφε δὲ καὶ ἐν ἔπεσι καὶ ἐλεγείας καὶ ἰάμβους καθ᾽ Ἡσιόδου καὶ Ὁμήρου ἐπικόπτων αὐτῶν τὰ περὶ θεῶν εἰρημένα ἀλλὰ καὶ αὐτὸς ἐρραψῴδει τὰ ἑαυτοῦ ἀντιδοξάσαι τε λέγεται Θαλῇ καὶ Πυθαγόρᾳ καθάψασθαι δὲ καὶ Ἐπιμενίδου μακροβιώτατός τε γέγονεν ὥς που καὶ αὐτός φησινmiddot (Xenoacutefanes filho de Decircxios ou segundo Apolocircdoros de Ortomenes nasceu em Colofatildeo Mereceu elogios de Tiacutemon que de qualquer modo diz lsquoXenoacutefanes imune ao orgulho ironizador de Homero accediloitersquo Banido de sua cidade natal passou a viver em Zancle na Siciacutelia e ainda em Catana De acordo com alguns autores natildeo foi disciacutepulo de ningueacutem segundo outros foi disciacutepulo do ateniense Bocircton ou como dizem alguns de Arquecirclaos A crer no testemunho de Sotiacuteon foi contemporacircneo de Anaxiacutemandros Aleacutem de poemas em verso heroico escreveu elegias e iambos contra Hesiacuteodo e Homero cujas afirmaccedilotildees a respeito dos deuses criticou severamente Aleacutem disso costumava recitar suas poesias agrave maneira dos rapsodos Dizem que Xenoacutefanes combateu as doutrinas de Tales e de Pitaacutegoras e que atacou Epimecircnides Viveu ateacute uma idade muito avanccedilada como ele mesmo afirma)107
Primeiramente devemos registrar o trecho Ξεινοφάνην θ᾽ ὑπάτυφον Ὁμηραπάτην
ἐπικόπτην (lsquoXenoacutefanes imune ao orgulho ironizador de Homero accediloitersquo) que resgata uma
impressatildeo descrita por Tiacutemon de Flio (320 - 230 aC) como se fosse uma caracteriacutestica
presente na proacutepria obra de Xenoacutefanes Ou seja ele se tornou conhecido por tais criacuteticas a
Homero criou fama De fato ao pesquisarmos essa expressatildeo no banco de dados digital TLG
observamos sua uacutenica ocorrecircncia no epiacuteteto usado por Dioacutegenes (Ὁμηραπάτην ἐπικόπτην)
adjetivando a criacutetica aacutecida de Xenoacutefanes O termo ἐπικόπτων aqui no particiacutepio presente repete
a ideia linhas abaixo para tambeacutem tratar de Hesiacuteodo Eacute uma forte criacutetica agrave visatildeo deturpada que
os poetas arcaicos teriam acerca das divindades como veremos melhor logo agrave frente
O trecho γέγραφε δὲ καὶ ἐν ἔπεσι καὶ ἐλεγείας καὶ ἰάμβους καθ᾽ Ἡσιόδου καὶ Ὁμήρου
ἐπικόπτων αὐτῶν τὰ περὶ θεῶν εἰρημένα ἀλλὰ καὶ αὐτὸς ἐρραψῴδει τὰ ἑαυτοῦ resume bem o
legado de Xenoacutefanes no que diz respeito agrave sua relaccedilatildeo com a poesia bem como com a tradiccedilatildeo
representada por Homero e Hesiacuteodo listando os estilos meacutetricos empregados por Xenoacutefanes
Segundo Untersteiner (2008 p ccxxxvii) a expressatildeo ἐν ἔπεσι refere-se a um poema didaacutetico
em hexacircmetro juntando-se agraves outras informaccedilotildees de DK 21 A 1 ἐποίησε δὲ καὶ Κολοφῶνος
κτίσιν καὶ τὸν εἰς Ἐλέαν τῆς Ἰταλίας ἀποικισμὸν ἔπη δισχίλια (ele compocircs poemas sobre a
fundaccedilatildeo de Colofatildeo e a colonizaccedilatildeo de Eleia na Itaacutelia em dois mil versos)108 passagem que
Untersteiner sustenta fazer referecircncia agrave obra Περὶ Φύσεως
107 Trad Maacuterio da Gama Kury 108 Trad Maacuterio da Gama Kury
123
Untersteiner ainda ressalta sobre a expressatildeo ἰάμβους καθ᾽ Ἡσιόδου καὶ Ὁμήρου que
o significado de jacircmbico (ἰάμβους) pode natildeo se dar a partir da meacutetrica utilizada por ele mas
sim fazer alusatildeo agrave ironia e censura sobre Homero e Hesiacuteodo dentro das suas meacutetricas
tradicionais ldquoQuestrsquoultima ipotesi di um significato generico dela parola puoacute venir accettata
come del tutto verosimile soprattutto se si tiene presente la dizione de Diogene (ἰάμβους καθ᾽
Ἡσιόδου καὶ Ὁμήρου) rdquo (2008 p ccxxxvii)
Na verdade possuiacutemos registros do uso de pelo menos trecircs formas meacutetricas dentro dos
fragmentos de Xenoacutefanes conforme Kirk Raven e Schofield ldquoAlguns de seus fragmentos
transmitidos satildeo escritos em metro elegiacuteaco e outros em hexacircmetros a citaccedilatildeo DK21 B 14
consiste em um trimetro iacircmbico seguido por um hexacircmetrordquo (2010 p 170) Tais formas
encontradas na obra de Xenoacutefanes indicam sua habilidade como poeta que dominava certo
repertoacuterio de recursos Segundo Santoro o estilo variado de Xenoacutefanes representa tambeacutem o
variado conteuacutedo de sua escrita
As questotildees filosoacuteficas que Xenoacutefanes aborda variam e se acomodam confortavelmente nos modelos poeacuteticos em que ele exerce sua verve Para a descriccedilatildeo coacutesmica proacutepria de um discurso sobre a natureza o filoacutesofo toma a altivez do hexacircmetro eacutepico Para a criacutetica agraves opiniotildees de autores tradicionais ou agraves do senso comum usa a invectiva satiacuterica Para os preparativos rituais de uma festa declama uma elegia (SANTORO 2011 p 12)
Aleacutem do estilo o testemunho DK 21 A 1 ainda condensa talvez a principal criacutetica que
Xenoacutefanes deixou para a posteridade Trata-se da criacutetica a autores importantes para a educaccedilatildeo
da Greacutecia argumento que detalharemos mais agrave frente ao retomar aquelas que seriam as proacuteprias
palavras de Xenoacutefanes contra estes autores
Ao estudarmos a doxografia de Xenoacutefanes podemos levantar a hipoacutetese de uma latente
contradiccedilatildeo no sentido de que este pensador utiliza a forma poeacutetica para criticar os proacuteprios
poetas Veremos mais agrave frente que esta criacutetica se daraacute no conteuacutedo da poesia e natildeo em sua
forma Podemos identificar essa contradiccedilatildeo segundo o proacuteprio texto de Dioacutegenes ἀλλὰ καὶ
αὐτὸς ἐρραψώιδει τὰ ἑαυτοῦ (mas ele mesmo recitava seus proacuteprios poemas) ou seja
Xenoacutefanes era na praacutetica uma espeacutecie de rapsodo itinerante (ἐρραψώιδει) com atributos
proacuteprios a essa classe de indiviacuteduo
A conexatildeo entre Xenoacutefanes e as praacuteticas dos rapsodos atestada pelo verbo ῥαψῳδέω
tambeacutem foi lembrada por Long (2008 p 246) ao afirmar que a relaccedilatildeo de Xenoacutefanes com a
praacutetica do rapsodo natildeo se dava ao recitar Homero mas sim a sua proacutepria poesia ldquoa comment
124
by Diogenes Laertius (918) has sometimes been wrongly interpreted to mean that Xenophanes
was a rhapsode who gave public recitations of Homerrdquo Trata-se da mesma passagem de
Dioacutegenes Laeacutercio que haacute pouco comentamos Eacute mais um comentaacuterio acerca de Xenoacutefanes ser
a voz de sua proacutepia poesia
Contraacuterio a essa ideia Jaeger (1995 p 215) traz uma suposta percepccedilatildeo que se tinha de
Xenoacutefanes na antiguidade ldquoXenoacutefanes foi considerado como um rapsodo que na praccedila puacuteblica
recitava Homero e em ciacuterculos reduzidos dirigia suas saacutetiras contra Homero e Hesiacuteodordquo Trata-
se de uma tese aceitaacutevel que de fato indicaria o retrato da personalidade de Xenoacutefanes com sua
devida ironia uma duplicidade que estaria na vida puacuteblica (recitando Homero na aacutegora) outra
privada (criticando Homero nos banquetes) Jaeger tambeacutem ressalta a personalidade irocircnica que
as doxografias nos trazem de Xenoacutefanes O que sabemos de fato eacute que a relaccedilatildeo entre
Xenoacutefanes e o verbo ῥαψῳδέω gera certa controveacutersia entre os criacuteticos
Koning (2010 p 47) por exemplo referindo-se a obra de Barbara Graziosi109 diz ldquoof
all Greek poets only Hesiod and Homer are said to stitch or rhapsodizerdquo Ou seja o verbo
ῥαψῳδέω faria referecircncia exclusivamente agrave atividade de Hesiacuteodo e Homero a uma forma
especial de poesia a dos rapsodos natildeo relacionada agrave poesia dos poetas mais tardios Podemos
observar que a proposiccedilatildeo elaborada por Koning eacute inexata refutada pelo testemunho DK 21 A
1 mesmo que ela se fundamente no fato de que o uso do verbo ῥαψῳδέω por outros poetas eacute
raro o que joga certa luz na apariccedilatildeo dessa palavra para fazer referecircncia a Xenoacutefanes Ou seja
podemos supor que segundo a classificaccedilatildeo de Dioacutegenes Laeacutercio Xenoacutefanes natildeo produzia
qualquer tipo de poesia mas uma que se ligava a Homero e Hesiacuteodo de forma especial
Talvez a conclusatildeo que Jaeger traz seja um pouco exagerada pois o texto grego tem
claramente um objeto τὰ ἑαυτοῦ sendo assim indica que Xenoacutefanes recitava ldquosuas proacuteprias
coisasrdquo ou seja suas proacuteprias obras e natildeo as de outros poetas muito menos Homero ou
Hesiacuteodo pois como veremos a criacutetica moral e teoloacutegica agrave poesia de ambos os poetas feita por
Xenoacutefanes o impossibilitaria de antematildeo de recitar essas obras de forma puacuteblica a natildeo ser para
criticaacute-las Natildeo obstante ainda na sequecircncia da descriccedilatildeo de Dioacutegenes observamos que
Xenoacutefanes natildeo era um criacutetico somente dos poetas tendo rebatido teorias e ideias daqueles que
podemos classificar como filoacutesofos ou pensadores como Tales Pitaacutegoras e Epimecircnides
109 Graziosi (2002)
125
Xenoacutefanes pode ainda ter sido um poeta-pensador que tentou ser uma espeacutecie de iacutecone
cultural de seu povo Os autores Kirk Raven e Schofield (2010 p 215) apontam que
ldquoDioacutegenes Laeacutercio [] diz que na verdade escreveu 2000 versos sobre a fundaccedilatildeo de Colofatildeo
e colonizaccedilatildeo de Eleia Esta declaraccedilatildeo vem provavelmente do esticometrista e falsificador
Loboacuten de Argos e natildeo merece nenhuma confianccedilardquo Por mais que seja de fonte duvidosa eacute
possiacutevel imaginar Xenoacutefanes como um poeta que tentou dar sentido eacutepico agrave sua cidade de
origem aos seus antepassados tentou ser uma espeacutecie de voz poeacutetica da sua heranccedila cultural e
histoacuterica
Por isso eacute interessante ressaltar que Xenoacutefanes teria supostamente uma vasta obra em
forma versificada na forma do eacutepos justamente para atacar as epopeias mais tradicionais e
mais enraizadas no imaginaacuterio grego como as obras de Homero e Hesiacuteodo mas natildeo somente
por serem eles quem foram mas tambeacutem para atacar um modo de ver e pensar o mundo
Xenoacutefanes quis poetizar e versificar uma criacutetica dura e consistente agrave obra de Homero e Hesiacuteodo
talvez mais do que isso desejou usar o campo poeacutetico para a criaccedilatildeo de conceitos que o
colocariam como personagem central no agoacuten grego em torno da fundamentaccedilatildeo do que seria
o divino
Ao recitar seus proacuteprios poemas Xenoacutefanes se insere dentro da tradiccedilatildeo oral mas
quanto ao conteuacutedo eacute tradicionalmente inserido como um dos primeiros a levantar uma
estrutura teoacuterica acerca do todo divino Como veremos Xenoacutefanes iraacute manter certa
preocupaccedilatildeo (ainda que impliacutecita) com a sua heranccedila poeacutetica com o proacuteprio κλέος que tambeacutem
aproxima Xenoacutefanes de seus antecessores poeacuteticos especialmente de Hesiacuteodo
72 XENOacuteFANES CRITICA OS POETAS A PARTIR DA POESIA
Eric Havelock110 (1996 p 234) diz ser o uso da meacutetrica eacutepica bem como algumas
formas orais utilizadas por Xenoacutefanes aquilo que o faz transitar pelo limite pensador-poeta e
tornar-se um preacute-socraacutetico tatildeo rico de interpretaccedilotildees Xenoacutefanes cria uma paisagem poeacutetica sui
generis ao construir sua argumentaccedilatildeo dentro de um ambiente tradicional (se pensarmos na
110 Sabemos das teses polecircmicas de Havelock no sentido de que os preacute-socraacuteticos surgem como uma forccedila jaacute impulsionada pela criaccedilatildeo da escrita alfabeacutetica Inovaccedilatildeo tecnoloacutegica que teria tambeacutem impulsionado com maior forccedila a criaccedilatildeo e rigor conceitual destes pensadores Trazemos aqui sua opiniatildeo acerca da caracterizaccedilatildeo de Xenoacutefanes como um autor que viveu essa transiccedilatildeo ficando assim no limite entre o poeta e o pensador sistemaacutetico poacutes-alfabeacutetico
126
estrutura e performance da poesia) mas cujo pano de fundo gira em torno da implosatildeo da
tradiccedilatildeo Mais do que criticar a tradiccedilatildeo ele cria em suas linhas uma descriccedilatildeo visual do
ambiente poeacutetico Eacute o que podemos observar em alguns de seus versos que viratildeo na sequecircncia
que denotam o ambiente da oralidade poeacutetica
Xenoacutefanes narra espaccedilos fiacutesicos em que a poesia daacute a dinacircmica e ritmo da argumentaccedilatildeo
e ilustra um espaccedilo da exposiccedilatildeo de ideias Tomemos como exemplo o seguinte trecho no
comeccedilo das suas chamadas Elegias DK 21 B 11-14111 e observemos a construccedilatildeo das imagens
ligadas agrave poesia
νῦν γὰρ δὴ ζάπεδον καθαρὸν καὶ χεῖρες ἁπάντων καὶ κύλικες πλεκτοὺς δ᾿ ἀμφιτιθεῖ στεφάνους ἄλλος δ᾿ εὐῶδες μύρον ἐν φιάληι παρατείνει κρατὴρ δ᾿ ἕστηκεν μεστὸς ἐυφροσύνης ἄλλος δ᾿ οἶνος ἕτοιμος ὃς οὔποτέ φησι προδώσειν μείλιχος ἐν κεράμοισ᾿ ἄνθεος ὀζόμενος ἐν δὲ μέσοισ᾿ ἁγνὴν ὀδμὴν λιβανωτὸς ἵησι ψυχρὸν δ᾿ ἔστιν ὕδωρ καὶ γλυκὺ καὶ καθαρόν πάρκεινται δ᾿ ἄρτοι ξανθοὶ γεραρή τε τράπεζα τυροῦ καὶ μέλιτος πίονος ἀχθομένη βωμὸς δ᾿ ἄνθεσιν ἀν τὸ μέσον πάντηι πεπύκασται μολπὴ δ᾿ ἀμφὶς ἔχει δώματα καὶ θαλίη χρὴ δὲ πρῶτον μὲν θεὸν ὑμνεῖν εὔφρονας ἄνδρας εὐφήμοις μύθοις καὶ καθαροῖσι λόγοις (Agora sim o chatildeo estaacute limpo e as matildeos de todos e os caacutelices Um cinge de coroas tranccediladas outro verte mirra perfumada no vaso um ergue uma taccedila cheia de alegria outro diz que o vinho preparado nunca vai faltar suave mel nas jarras de aroma floral Em meio exala odor sagrado de incenso a aacutegua estaacute fresca suave e pura ao lado haacute patildees dourados sobre a mesa farta carregada de queijo e espesso mel com todas as flores ao centro haacute um altar recoberto Muacutesica domina a casa inteira e Festa Eacute preciso primeiro que homens alegres cantem ao deus com benditas histoacuterias e palavras puras)
Trata-se efetivamente de um ambiente festivo preparado para a consolidaccedilatildeo da arte
poeacutetica ou seja trata-se da descriccedilatildeo de um simpoacutesio agrave maneira tradicional Os indicadores satildeo
111 Trata-se de Ateneu Deipnosofistas 97 Falaremos mais analiticamente dessa obra no capiacutetulo sobre o κλέος de Xenoacutefanes
127
o chatildeo limpo denotando tambeacutem um respeito religioso ao evento as matildeos e os caacutelices limpos
a apresentaccedilatildeo para o evento com coroas tranccediladas a mirra perfumada no vaso tambeacutem de
cunho religioso representaccedilotildees das atitudes dos convidados (ldquoum ergue uma taccedila cheia de
alegriardquo e ldquooutro diz que o vinho preparado nunca vai faltarrdquo) indicaccedilotildees da comida farta no
banquete (ldquosuave mel nas jarrasrdquo ldquoaacutegua frescardquo ldquopatildees douradosrdquo ldquoqueijo e espesso melrdquo)
apresentam-se ainda mais indicadores de respeito religioso (ldquohaacute uma altar recobertordquo ldquoodor
sagrado de incensordquo) Satildeo caracteriacutesticas sumaacuterias de que Xenoacutefanes descreve um simpoacutesio que
estaacute pronto para a praacutetica poeacutetica e religiosa
As trecircs linhas finais (12-14) representam a praacutetica poeacutetica em si Primeiramente duas
palavras que datildeo o tom do banquete e que indicam que o ambiente inteiro estaacute tomado pela
muacutesica (μολπὴ) e pela festa (θαλίη) Ressalta-se que μολπὴ eacute uma palavra que significa tanto
canto como danccedila significados encontrados jaacute em Homero por exemplo em Od 1152
Segundo LSJ μολπή significa ldquodance or rhythmic movement with songrdquo Como o leacutexico LSJ
afirma eacute uma palavra que traz a tradiccedilatildeo jocircnica observaacutevel tanto em Homero quanto em
Xenoacutefanes algo importante de se ressaltar que situa ambos no universo jocircnico Satildeo versos que
datildeo um tom tradicional na descriccedilatildeo do evento indicando que a festa deve ser executada com
canto e danccedila com poesia
Observamos nas duas uacuteltimas linhas um primeiro exemplo da criaccedilatildeo conceitual de
Xenoacutefanes Para o banquete ter seu desenvolvimento correto Xenoacutefanes daacute a devida instruccedilatildeo
ldquoEacute preciso primeiro que homens alegres cantem ao deus com benditas histoacuterias e palavras
purasrdquo Satildeo trecircs marcaccedilotildees de extrema relevacircncia cantem ao deus (θεὸν ὑμνεῖν) com benditas
histoacuterias (εὐφήμοις μύθοις) e palavras puras (καθαροῖσι λόγοις)
Untersteiner (2008 p 101) argumenta que por si soacute a palavra λόγοις natildeo mereceria uma
atenccedilatildeo maior mas deve ser observada aqui em sua relaccedilatildeo com μύθοις ou seja natildeo podem
ser tomadas como sinocircnimas (como poderiam ser se tomarmos λόγοι como ldquodizeresrdquo assim
como tambeacutem poderiam ser os μῦθοι) mas sim com seus sentidos somados dando a ecircnfase
necessaacuteria ao acontecimento Os sentidos somados seriam os de μῦθοι com ecircnfase dada ainda
na rede tradicional da poesia como discurso de autoridade junto ao sentido de λόγοι como uma
palavra jaacute de uma certa especulaccedilatildeo filosoacutefica
Outro estudo e comentaacuterio dos fragmentos dado por Lesher (2001 p 57) aponta que a
interpretaccedilatildeo de μύθοις em Xenoacutefanes como narrativa ficcional natildeo eacute obrigatoacuteria pois seria
uma interpretaccedilatildeo tardia posterior a Xenoacutefanes optando-se pela traduccedilatildeo de ldquopalavra faladardquo
128
somente Ainda se ressalta em Lesher que uma oacutebvia contraposiccedilatildeo entre λόγοις e μύθοις como
uma oposiccedilatildeo entre ldquopalavra escritardquo (λόγοις) e ldquopalavra faladardquo (μύθοις) natildeo eacute evidente
Em nossa interpretaccedilatildeo revelam-se trecircs nuacutecleos de ecircnfase positiva que retratam a
sacralidade do ato poeacutetico bem como a proposta conceitual de Xenoacutefanes θεὸν ὑμνεῖν (cantem
ao deus) com benditas histoacuterias (εὐφήμοις μύθοις) e palavras puras (καθαροῖσι λόγοις) Satildeo
trecircs expressotildees que avanccedilam do campo poeacutetico para um campo mais conceitual e propositivo
principalmente indicado pela expressatildeo καθαροῖσι λόγοις
Saiacutemos do ambiente meramente festivo para uma espeacutecie de debate de ideias Mais do
que isso podemos conjecturar esta estrutura inicial do fragmento como uma espeacutecie de
proecircmio uma espeacutecie de preparaccedilatildeo para um ambiente de inspiraccedilatildeo por mais que natildeo se faccedila
uma invocaccedilatildeo aos deuses e agraves Musas propriamente ditas fato que talvez contrariasse o
monoteiacutesmo112 que Xenoacutefanes estaacute por propor
As palavras e as histoacuterias devem ser cantadas ao deus da mesma forma que por
exemplo poderiacuteamos encontrar num verso homeacuterico Observamos expressotildees correlatas no
Hino homeacuterico a Heacutelio v 1 Ἥλιον ὑμνεῖν ou o hesioacutedico πατέρ ὑμνείουσαι em Os trabalhos
e os dias113 Deve-se ressaltar poreacutem que nesses dois exemplos observamos divindades plurais
(no primeiro caso os objetos de ὑμνεῖν satildeo Heacutelio e Faetonte no segundo o objeto do hinear eacute
Zeus que eacute celebrado pelas Musas)
Xenoacutefanes retrata aqui um deus singular O verso cantado por Xenoacutefanes pode ser
considerado muito similar agravequilo que jaacute se cantava no mundo eacutepico arcaico como uma
descriccedilatildeo entre muitas do que seria a atividade poeacutetica mas que marcou aqui uma diferenccedila
que acaba por ser uma de suas assinaturas conceituais absorvidas pela tradiccedilatildeo posterior na
Antiguidade um soacute deus
Outro exemplo de atividade poeacutetica como tambeacutem lembra Eric Havelock (1996 p
247) pode ser a troca de oferendas poeacuteticas em DK 21 B 6114 em que supostamente Xenoacutefanes
estaria presenteando e sendo presenteado com poesia Segundo seus doxoacutegrafos trata-se
realmente de versos perdidos da mesma obra Elegias que acabamos de analisar
112 Falaremos mais agrave frente sobre a polecircmica acerca do suposto monoteiacutesmo de Xenoacutefanes que agraves vezes fala em ldquoum soacute deusrdquo agraves vezes em ldquoos deusesrdquo Mas de fato a ideia de um Xenoacutefanes proto-monoteiacutesta foi propagada na proacutepria antiguidade 113 Op 1-2 Μοῦσαι Πιερίηθεν ἀοιδῇσι κλείουσαι δεῦτε Δί ἐννέπετε σφέτερον πατέρ ὑμνείουσαι (Musas da Pieacuteria que dais gloacuteria com canccedilotildees vinde em hinos cantai Zeus vosso pai) 114 Trata-se de Ateneu Deipnosofiacutestas 9 620
129
πέμψας γὰρ κωλῆν ἐρίφου σκέλος ἤραο πῖον ταύρου λαρινοῦ τίμιον ἀνδρὶ λαχεῖν τοῦ κλέος115 Ἑλλάδα πᾶσαν ἀφίξεται οὐδ ἀπολήξει ἔστ ἂν ἀοιδάων ἦι γένος Ἑλλαδικόν (Tendo enviado coxa de cabrito ganhaste uma perna gorda de touro pingue uma honra para o homem obter cuja gloacuteria toda Heacutelade alcanccedilaraacute e natildeo se extinguiraacute enquanto houver a estirpe dos aedos helenos)
Havelock (1996 p 247) afirma ldquoOs primeiros dois versos deixaram perplexos os
inteacuterpretes Por minha parte sugiro que a troca de daacutedivas alimentares porccedilotildees de carne eacute uma
elegante metaacutefora para a troca de oferendas poeacuteticasrdquo116 Observamos versos que
metaforicamente parecem indicar a troca de palavras travestidas de pedaccedilos de carne A troca
entre ldquocoxa de cabritordquo e ldquouma perna gorda de touro pinguerdquo ilustra na verdade uma espeacutecie de
pacto e descriccedilatildeo do ofiacutecio do poeta a ldquohonra para o homem obter cuja gloacuteria toda Heacutelade
alcanccedilaraacute e natildeo se extinguiraacute enquanto houver a estirpe dos aedos helenosrdquo
Satildeo versos de tanta relevacircncia para esta tese que os retomaremos de forma mais analiacutetica
agrave frente Mas a princiacutepio podemos descrever algumas ideias importantes nessa passagem
Primeiramente a honra (literalmente o adjetivo τίμιον ldquohonradordquo) Trata-se de um precircmio
espiritual recebido junto com a troca material do alimento Segundo Untersteiner (2008 p 122)
parece ser uma ocasiatildeo que natildeo combina muito com o temperamento aacutecido e criacutetico de
Xenoacutefanes ldquoUm traccedilo caracteriacutestico de Xenoacutefanes eacute a exaltaccedilatildeo de si mesmo e a desvalorizaccedilatildeo
do outrordquo Xenoacutefanes mais do que enaltecer o oponente o dignifica apontando o caminho de
um κλέος de reciprocidade pela categoria dos aedos que se espalharaacute por todo lugar
Outro conceito chave nessa passagem eacute entatildeo o κλέος aquilo que alcanccedilaraacute toda a
Heacutelade e mais do que isso natildeo pereceraacute tudo graccedilas agrave raccedila dos cantos helecircnicos (ἀοιδάων ἦι
γένος Ἑλλαδικόν) responsaacuteveis por essa rede de comunicaccedilatildeo que propagava o κλέος Daiacute a
importacircncia destes versos para nossa hipoacutetese pois Xenoacutefanes conecta κλέος com a funccedilatildeo dos
aedos jaacute no ambiente preacute-socraacutetico bem como resgata sua funccedilatildeo honrada de propagar o canto
por toda a Greacutecia
115 A palavra κλέος que aqui aparece seraacute analisada de forma mais aprofundada no capiacutetulo especiacutefico que iraacute tratar do κλέος de Xenoacutefanes 116 Havelock ainda faz referecircncia a uma expressatildeo ldquobocados dos banquetes homeacutericosrdquo constante em Ath 8 347e
130
Estaria nestes versos uma prova material de que o preacute-socraacutetico Xenoacutefanes pensava e
visava o κλέος tanto quanto seus predecessores poetas principalmente Hesiacuteodo Por isso dada
a importacircncia dessa passagem novamente ressaltamos que retornaremos a ela mais agrave frente
Mas voltemos agora aos primeiros versos das Elegias de Xenoacutefanes que por mais que
mantenham sua meacutetrica tradicional contrariam os tradicionais conteuacutedos que poderiacuteamos
encontrar por exemplo em Hesiacuteodo O trecho a seguir demonstra bem este argumento Trata-
se de DK 21 B 119-24117
ἀνδρῶν δ αἰνεῖν τοῦτον ὃς ἐσθλὰ πιὼν ἀναφαίνει ὡς ἦι μνημοσύνη καὶ τόνος ἀμφ ἀρετῆς οὔ τι μάχας διέπειν Τιτήνων οὐδὲ Γιγάντων οὐδὲ lt gt Κενταύρων πλάσμαltταgt τῶν προτέρων ἢ στάσιας σφεδανάς τοῖς οὐδὲν χρηστὸν ἔνεστιν θltεῶgtν ltδὲgt προμηθείην αἰὲν ἔχειν ἀγαθήν (Eacute de se louvar o homem que tendo bebido coisas nobres nos revela como sua memoacuteria e seu empenho pela excelecircncia e natildeo os relatos das batalhas dos Titatildes nem dos Gigantes nem dos Centauros invenccedilotildees dos ancestrais ou as rixas violentas neles nenhum ganho haacute mas ter sempre veneraccedilatildeo aos deuses eacute um bem)
Se no iniacutecio do fragmento estava sendo descrita a preparaccedilatildeo para o banquete nos versos
19-24 observamos o resultado praacutetico deste banquete o homem (ἀνδρῶν [hellip] τοῦτον) tendo
bebido (πιὼν) revela coisas nobres (ἐσθλὰ) como sua memoacuteria (μνημοσύνη) e a busca pela
excelecircncia (ἀρετῆς) Satildeo palavras que ilustram o papel social do banquete e seu resultado que
de certa forma educa a audiecircncia com as coisas nobres entre elas a memoacuteria que deve ser
louvada mas principalmente a busca pela virtude
Xenoacutefanes enaltece assim atributos tradicionalmente repetidos pela poesia arcaica em
suas performances e relaccedilatildeo com a audiecircncia Xenoacutefanes elenca atributos eacutepicos por natureza
qualidades que simulam um texto que poderia fazer alusatildeo ao periacuteodo arcaico mas que na
verdade constroem seu argumento conceitual para criticar os poetas tradicionais
Se nos versos 19-20 observamos traccedilos que elogiam o caraacuteter nobre dos elementos da
poesia nos versos 21-24 observamos uma forte criacutetica ao conteuacutedo de algumas poesias eacutepicas
Segundo Havelock (1996 p 234) como em outras passagens que aqui analisaremos Xenoacutefanes
117 Trata-se de Ateneu Deipnosofiacutestas 9 7
131
critica severamente o mundo eacutepico fantasioso essas invenccedilotildees dos ancestrais que datildeo uma
inversatildeo completa dos padrotildees corretos de moralidade satildeo invenccedilotildees (πλάσμαltταgt) em que a
excelecircncia estava exatamente nessas batalhas na veneraccedilatildeo destas rixas violentas Xenoacutefanes
condena estas representaccedilotildees Em resumo Xenoacutefanes enaltece as virtudes mas critica a forma
como elas satildeo representadas
Xenoacutefanes critica exatamente a educaccedilatildeo pela fantasia eacutepica dos Titatildes Centauros
Gigantes fantasias que afastam do verdadeiro conhecimento divino que eacute o que deve ser
buscado e ldquonatildeo os relatos das batalhas dos Titatildesrdquo (Τιτήνων) ldquonem dos Gigantesrdquo (Γιγάντων)
ldquonem dos Centaurosrdquo (Κενταύρων) Xenoacutefanes poderia estar criticando por exemplo a
passagem de Od 7206 que relaciona os Ciclopes (Κύκλωπες) aos Gigantes (Γιγάντων) ou
mesmo criticando Il 11819 ὃν Χείρων ἐδίδαξε δικαιότατος Κενταύρων (a quem (Aquiles)
ensinou Quiacuteron o mais justo dos Centauros) que versa sobre o centauro Quiacuteron que teria
ensinado Aquiles
Essas satildeo invenccedilotildees equivocadas dos ancestrais pois como Xenoacutefanes afirma ldquoter
sempre veneraccedilatildeo aos deuses eacute um bemrdquo e natildeo eacute bom venerar falsas crenccedilas e falsos modelos
de moralidade As batalhas dos Titatildes encontram seu maior exemplo evidentemente na
Teogonia de Hesiacuteodo Veramos mais agrave frente tambeacutem que Parmecircnides jaacute conhecedor da obra
de Xenoacutefanes iraacute insistir nessas figuras fantasiosos Talvez no sentido de exatamente retomar
a forccedila poeacutetica de Hesiacuteodo
Como observa Santoro (2011 p 15) ldquoA criacutetica dirige-se contra as monstruosas ficccedilotildees
(plaacutesmata) de titatildes gigantes e centaurosrdquo e mais ainda ldquoao modo violento como na visatildeo dos
antigos tais deuses se comportam Tais antigos [] natildeo [satildeo] citados aqui mas claramente
insinuados sobretudo Hesiacuteodo e Homerordquo Ou seja se por um lado Xenoacutefanes critica a poesia
eacutepica por outro lado continua a glorificar a memoacuteria glorificar os deuses a excelecircncia
operando mais uma vez no limite entre a poesia e filosofia Nesta inversatildeo de moralidade
Xenoacutefanes desenha sua teologia
Xenoacutefanes eacute pontual em suas criacuteticas elas apontam para os nomes de Hesiacuteodo e
Homero O pensador de Colofatildeo nos faz pensar que em sua obra por mais que soe anacrocircnico
falar de um indiviacuteduo Hesiacuteodo de um indiviacuteduo Homero satildeo visados ali os dois poetas
Xenoacutefanes mergulha assim num universo de criacutetica moral e ao conteuacutedo da poesia como
veremos mais agrave frente mesmo que ainda utilize o verso poeacutetico Ele natildeo nega essa forma como
um meio de divulgaccedilatildeo de suas ideias de criaccedilatildeo de seus conceitos
132
Contraacuterio a Xenoacutefanes que preserva a forma eacutepica preserva a funccedilatildeo do poeta e a
funccedilatildeo da poesia surge a forccedila criacutetica de Heraacuteclito contra o eacutepos tradicional Vejamos como
isso se coloca
133
80 OS PRESSUPOSTOS DO ΚΛΕΟΣ DE HERAacuteCLITO DE EacuteFESO OBRA E
APARATO CONCEITUAL CONTRA A POESIA EacutePICA
Heraacuteclito de Eacutefeso considerado por muitos comentadores o pensador do fluxo e da
transformaccedilatildeo pensador do loacutegos eacuteris e diacuteke da disputa entre os contraacuterios tambeacutem cita e
critica a poesia eacutepica em alguns de seus poucos fragmentos que nos chegam atraveacutes da histoacuteria
Heraacuteclito marcou suas posiccedilotildees filosoacuteficas sendo um criacutetico feroz da poesia arcaica no seu
conteuacutedo com certeza e muito provavelmente na sua forma mais tradicional ou seja em versos
hexameacutetricos Falamos no acircmbito da possibilidade admitindo que o estilo breve poreacutem
contundente de suas palavras eacute sim um antagonista da poesia hexameacutetrica numa disputa de
estilos colocada pelo pensador de Eacutefeso como iremos perceber Assim como Xenoacutefanes
Heraacuteclito coloca Hesiacuteodo como um estaacutegio de explicaccedilatildeo da realidade a ser vencido e superado
citando e refutando inclusive visotildees de mundo que Hesiacuteodo consolidou em sua obra Cita e
criacutetica natildeo somente Hesiacuteodo mas tambeacutem outros poetas variando na intensidade dessas criacuteticas
atraveacutes de seus fragmentos Mas vejamos primeiramente a relaccedilatildeo de Heraacuteclito com a poesia
eacutepica atraveacutes de uma breve anaacutelise de sua doxografia
Pouco nos diz Heraacuteclito acerca da sua proacutepria vida nos fragmentos que nos chegaram
As poucas fontes que fazem referecircncia acerca da vida de Heraacuteclito estatildeo basicamente em seus
testemunhos ou seja satildeo descriccedilotildees da vida do filoacutesofo de Eacutefeso que natildeo partem de suas
proacuteprias palavras mas sim de uma criacutetica historiograacutefica que se apoderou de sua figura e o
recepcionou de dada maneira Dioacutegenes Laeacutercio por exemplo nos diz acerca da filiaccedilatildeo idade
e temperamento de Heraacuteclito em DK 22 A 1
Ἡράκλειτος Βλόσωνος ἤ ὥς τινες Ἡράκωντος Ἐφέσιος οὗτος ἤκμαζε (FGrH 244 F 340a) μὲν κατὰ τὴν ἐνάτην καὶ ἑξηκοστὴν Ὀλυμπιάδα μεγαλόφρων δὲ γέγονε παρ ὁντιναοῦν καὶ ὑπερόπτης ὡς καὶ ἐκ τοῦ συγγράμματος αὐτοῦ δῆλον ἐν ᾧ φησι (DK 22 B 40) ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκει Ἡσίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ Ἑκαταῖονrdquo εἶναι γὰρ (DK 22 B 41) ldquoἓν τὸ σοφόν ἐπίστασθαι γνώμην ὁτέη ἐκυβέρνησε πάντα διὰ πάντωνrdquo τόν τε Ὅμηρον ἔφασκεν (DK 22 B 42) ἄξιον ἐκ τῶν ἀγώνων ἐκβάλλεσθαι καὶ ῥαπίζεσθαι καὶ Ἀρχίλοχον ὁμοίως Ἔλεγε (DK 22 B 43) δὲ καὶ ldquoὕβριν χρὴ σβεννύναι μᾶλλον ἢ πυρκαϊήνrdquo καὶ (DK 22 B 44) ldquoμάχεσθαι χρὴ τὸν δῆμον ὑπὲρ τοῦ νόμου [ὑπὲρ τοῦ γινομένου] ὅκως ὑπὲρ τείχεοςrdquo118
118 Trata-se de Dioacutegenes Laeacutercio 91-3 Trad adaptada de Wilson Regis
134
(Heraacuteclito filho de Bloacuteson ou segundo outra tradiccedilatildeo de Heronte era natural de Eacutefeso Tinha uns quarenta anos por ocasiatildeo da 69ordf Olimpiacuteada (504-501 aC) Era homem de sentimentos elevados orgulhoso e cheio de desprezo pelos outros como transparece tambeacutem em seu livro onde diz lsquoMuita instruccedilatildeo natildeo ensina a ter inteligecircncia pois teria ensinado Hesiacuteodo e Pitaacutegoras Xenoacutefanes e Hecateursquo pois uma soacute lsquoeacute a (coisa) saacutebia possuir o conhecimento que tudo dirige atraveacutes de tudorsquo Disse que lsquoHomero merecia ser expulso dos certames e accediloitado e Arquiacuteloco igualmentersquo E dizia tambeacutem lsquoA insolecircncia eacute preciso extinguir mais que o incecircndiordquo e lsquoEacute preciso que lute o povo pela lei tal como pelas muralhasrsquo)
Dioacutegenes utiliza-se de duas caracteriacutesticas para definir Heraacuteclito ldquohomem de
sentimentos elevadosrdquo ou ldquoorgulhosordquo (μεγαλόφρων) significados que satildeo encontrados em
LSJ e ldquocheio de desprezo pelos outrosrdquo (ὑπερόπτης) sentido tambeacutem verificaacutevel em LSJ Satildeo
descriccedilotildees justificadas por Dioacutegenes como interpretaccedilotildees dos dizeres de Heraacuteclito organizados
na obra do doxoacutegrafo
Segundo Khan (1979 p 1) mais do que interpretar os fragmentos de Heraacuteclito
Dioacutegenes consolida uma opccedilatildeo pela variante anedoacutetica da vida do filoacutesofo efeacutesio Anedotas que
viajaram o mundo antigo retratando Heraacuteclito como um pensador obscuro anti-social e de
temperamento forte ldquoThe life of Heraclitus by Diogenes Laertius is a tissue of Hellenistic
anecdotes most of them obviously fabricated on the basis of statements in the preserved
fragmentsrdquo Outra informaccedilatildeo relevante no que diz respeito agrave biografia de Heraacuteclito gira em
torno das notiacutecias que possuiacutemos acerca da fundaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do ambiente cultural na
cidade de Eacutefeso Os testemunhos indicam uma relaccedilatildeo intensa de Heraacuteclito com seu entorno
citadino seja para ilustrar relaccedilotildees com a aristocracia de Eacutefeso seja para criticar seu povo
justificando muitas vezes seu possiacutevel isolacionismo e elitismo
O testemunho de DL deixa claro tambeacutem sua impressatildeo anedoacutetica de Heraacuteclito nesse
comportamente isolacionista e elitista Poreacutem podemos observar que essa dimensatildeo isolacionis
e elitista foi tambeacutem dada por Xenoacutefanes Como jaacute observamos em outras passagens de
Xenoacutefanes em que esse autor louvava sua proacutepria inteligecircncia em contraste com a ignoracircncia
de outrem como no trecho de DK 21 B 2 v 13-14 Assim como em Heraacuteclito e Xenoacutefanes
tambeacutem Hesiacuteodo se coloca como moralmente e intelectualmente superior principalmente em
momentos que Hesiacuteodo critica a ignoracircncia de Perses ou dos reis como em Op 27 202 274
286 Observamos aiacute uma negaccedilatildeo agrave ignoracircncia dos reis e Perses poreacutem na Th 80-92
observamos um elogio aos reis Ainda em outro momento Op 174-176 passagem que Hesiacuteodo
se coloca moralmente acima dos homens da raccedila de ferro Talvez seja entatildeo essa ideia elitista e
135
isolacionista que se construiacutea acerca dos poetas e filoacutesofos antigos uma anedota recorrente e
caracteriacutestica normal daqueles que teriam tentado fundamentar e modificar seu meio social
Como Eacutefeso faz parte do territoacuterio de influecircncia jocircnica podemos classificar Heraacuteclito
como participante ativo dos fenocircmenos culturais surgidos nessa regiatildeo A influecircncia jocircnica
talvez conecte Heraacuteclito a Xenoacutefanes no que diz respeito a uma criacutetica ao modelo poeacutetico
arcaico de explicar a realidade porque como jaacute vimos Heraacuteclito sabia da vida e obra de
Xenoacutefanes (vide DK 22 B 40)
Mas ainda em DK 22 A 1 observamos mais algumas informaccedilotildees antigas sobre a
relaccedilatildeo de Xenoacutefanes com Heraacuteclito Σωτίων δέ φησιν εἰρηκέναι τινὰς Ξενοφάνους αὐτὸν
ἀκηκοέναι˙ (Sotiatildeo relata que alguns disseram que ele tinha ouvido Xenoacutefanes)119 Tambeacutem
acerca de sua filiaccedilatildeo jocircnica observemos as informaccedilotildees constantes em DK 22 A 2 e DK 22 A
3a120 que tentam relacionar Heraacuteclito com a alta corte de Eacutefeso Esses testemunhos da vida de
Heraacuteclito dados por Estrabatildeo (63-24 aC) tentam nos repassar uma espeacutecie de convivecircncia
aristocraacutetica que Heraacuteclito teria inclusive seu conhecimento acerca dos antepassados de Eacutefeso
As passagens ainda nos remetem agraves repeticcedilotildees anedoacuteticas acerca do pensador em que o epiacuteteto
ὁ Σκοτεινός121 eacute colocado
119 Trad baseada em G Giannantoni 120 DK 22 A 2 trata acerca da aristocracia de Eacutefeso e logo apoacutes em DK 22 A 3 trata da relaccedilatildeo dessa aristocracia com Heraacuteclito Primeiramente DK 22 A 2 ἄρξαι δέ φησιν (Pherekydes FGrHist 3 F 155 I 99) Ἄνδροκλον τῆς τῶν Ἰώνων ἀποικίας ὕστερον τῆς Αἰολικῆς υἱὸν γνήσιον Κόδρου τοῦ Ἀθηνῶν βασιλέως γενέσθαι δὲ τοῦτον Ἐφέσου κτίστην διόπερ τὸ βασίλειον τῶν Ἰώνων ἐκεῖ συστῆναί φασι καὶ ἔτι νῦν οἱ ἐκ τοῦ γένους ὀνομάζονται [I 143 25 App] βασιλεῖς ἔχοντές τινας τιμάς προεδρίαν τε ἐν ἀγῶσι καὶ πορφύραν ἐπίσημον τοῦ βασιλικοῦ γένους σκίπωνα ἀντὶ σκήπτρου καὶ τὰ ἱερὰ τῆς Ἐλευσινίας Δήμητρος (Diz [Ferecides FGrHist 3 F 155 I 99] que Androclo liderou a colonizaccedilatildeo dos Jocircnios que ocorreu depois da eoacutelica sendo ele filho legiacutetimo de Codro rei dos atenienses e que ele foi o fundador de Eacutefeso Por isso foi erguido ali o palaacutecio real dos Jocircnios e ateacute agora os descendentes dessa raccedila satildeo chamados reis e possuem certas honras a proedria [primeiros assentos] nos jogos a puacuterpura o sinal da linhagem real um bastatildeo em vez do cetro a oportunidade de participar dos ritos sagrado de Demeacuteter Eleusina) Trad baseada na de G Giannantoni DK 22 A 3 ἄνδρες δ ἀξιόλογοι γεγόνασιν ἐν αὐτῆι [Ephesos] τῶν μὲν παλαιῶν Ἡ τε ὁ Σκοτεινὸς καλούμενος καὶ Ἑρμόδωρος περὶ οὗ ὁ αὐτός φησιν ἄξιον ἄλλων [B 121] δοκεῖ δ οὗτος ὁ ἀνὴρ νόμους τινὰς Ῥωμαίοις συγγράψαι PLIN N H n XXXIV 21 fuit et Hermodori Ephesii [naumlml statua] [I 143 35] in comitio legum quas decemviri scribebant interpretis publice dicata (Nasceram em Eacutefeso homens de dignos de menccedilatildeo entre os antigos Heraacuteclito chamado de obscuro e Hermodoro do qual o proacuteprio Heraacuteclito diz rsquo[B 121] Este Hermodoro parece ter dado algumas leis para os romanos PLIN nat hist XXXIV 21 Houve tambeacutem uma [estaacutetua] de Hermodoro de Eacutefeso no local dos comiacutecios a ele dedicada com recursos puacuteblicos como inteacuterprete das leis escritas pelos dececircnviros) Trad baseada em G Giannantoni 121 O termo σκοτεινός segundo LSJ pode significar basicamente as ideias de negro escuro que vive isoladamente Essa espeacutecie de epiacuteteto acerca de Heraacuteclito aparece em DK 22 A 1 e DK 22 A 3
136
Um dado importante acerca da fama de ldquoobscurordquo de Heraacuteclito eacute encontrado na obra de
Lucreacutecio Observe-se como Lucreacutecio se refere a Heraacuteclito em De rerum natura 1639 clarus
ob obscuram linguam (famoso por causa de sua linguagem obscura) E continua (639-644)
ldquo[famoso] mais entre as pessoas sem consistecircncia do que entre os gregos seacuterios que buscam a verdade Pois os tolos admiram e amam mais tudo o que entreveem dissimulado sob termos ambiacuteguos e estabelecem como verdadeiro o que pode tocar belamente o ouvido e foi pintado com uma sonoridade graciosardquo122
Sendo assim podemos imaginar que Heraacuteclito utiliza deliberadamente uma linguagem
ambiacutegua e obscura pois a ambiguidade se torna uma figura atraente do ponto de vista estiliacutestico
e amplamente usada na poesia Um exemplo importante presente ainda na seccedilatildeo em que
Lucreacutecio fala de Heraacuteclito eacute a liccedilatildeo muse de um manuscrito de Lucreacutecio (DRN 1 647 passagem
que ainda discute Heraacuteclito) uma grafia um tanto distorcida para MUSAE Isto eacute mais uma
vez Lucreacutecio estaria reconhecendo alguma conexatildeo com a poesia em Heraacuteclito eou fornecendo
mais um testemunho para a informaccedilatildeo que encontramos em Dioacutegenes Laeacutercio 9112 (=DK 22
A 112) ldquoAlguns datildeo a ele [ao livro de Heraacuteclito] o tiacutetulo Musas outros Sobre a Natureza
Em DK 22 A 1a retirado do verbete sobre Heraacuteclito constante na Suda observamos as
mesmas informaccedilotildees da filiaccedilatildeo de Heraacuteclito sua descriccedilatildeo anedoacutetica usual possivelmente
uma repeticcedilatildeo da recepccedilatildeo de Dioacutegenes Laeacutercio inclusive seu epiacuteteto de obscuro mas em sua
uacuteltima linha uma informaccedilatildeo natildeo constante em Dioacutegenes ἦν δὲ ἐπὶ τῆς ξθ ὀλυμπιάδος ἐπὶ Δαρείου
τοῦ Ὑστάσπου καὶ ἔγραψε πολλὰ ποιητικῶς (Ele viveu no tempo da 69ordf Olimpiacuteada na eacutepoca de
Dario filho de Istaspe e escreveu muito em estilo poeacutetico)123
A expressatildeo ldquoe escreveu muito em estilo poeacuteticordquo (καὶ ἔγραψε πολλὰ ποιητικῶς)
descreve um pouco do que seria o traccedilo de Heraacuteclito e coloca uma interrogaccedilatildeo no significado
do que seria escrever num estilo poeacutetico jaacute que natildeo possuiacutemos nenhum registro da obra de
Heraacuteclito em hexacircmetros dactiacutelicos ou em outro metro mesmo sabendo que ποιητικός pode
significar uma variedade de coisas e natildeo somente a atividade de escrita do eacutepos Sabemos por
exemplo que LSJ aponta um campo semacircntico variado para ποιητικός e que converge nesse
sentido com outros leacutexicos e dicionaacuterios Mas podemos direcionar segundo LSJ ποιητικός
122 Trad natildeo publicada de Alessandro Rolim de Moura 123 Trad adaptada de G Giannantoni
137
para atividades mais especiacuteficas tais como a capacidade de produzir a capacidade criativa a
inventividade e tambeacutem outros atributos e adjetivos que estatildeo relacionados com a arte do poeta
Possivelmente entatildeo a Suda refere-se ao estilo metafoacuterico e enigmaacutetico e tambeacutem
criativo nos traccedilos de Heraacuteclito tal como anedoticamente sua fama foi sendo repercutida
Existem algumas passagens em outros testemunhos da obra de Heraacuteclito que podem nos ajudar
a compreender essa espeacutecie de tendecircncia criacutetica de classificar o pensador como obscuro mais
ainda assim praticante da forma poeacutetica E sendo assim conectado com a criacutetica ou aceitaccedilatildeo
dos poetas eacutepicos Um primeiro argumento estaacute em Pseudo-Demeacutetrio em DK 22 A 4
τὸ δὲ σαφὲς ἐν πλείοσιν Πρῶτα μὲν ἐν τοῖς κυρίοις ἔπειτα ἐν τοῖς συνδεδεμένοις τὸ δὲ ἀσύνδετον καὶ διαλελυμένον ὅλον ἀσαφὲς πᾶν ἄδηλος γὰρ ἡ ἑκάστου κώλου ἀρχὴ διὰ τὴν λύσιν ὥσπερ τὰ Ἡρακλείτου καὶ γὰρ ταῦτα σκοτεινὰ ποιεῖ τὸ πλεῖστον ἡ λύσις124 (A clareza resulta de muitas palavras primeiro a partir de termos de referecircncia depois de conjunccedilotildees O texto sem conjunccedilotildees e completamente desconectado eacute totalmente sem clareza Pois o iniacutecio de cada frase eacute sem clareza devido agrave falta de conexatildeo como na escrita de Heraacuteclito Pois de fato a falta de conexatildeo o torna sem clareza em sua maior parte)
Essa eacute a exemplificaccedilatildeo da escrita de Heraacuteclito sem clareza e obscura um texto sem
conjunccedilotildees (συνδεδεμένοις)125 que torna difiacutecil sua compreensatildeo pois natildeo conecta as partes
do texto com outras frases que facilitariam seu entendimento A dificuldade de interpretaccedilatildeo do
texto de Heraacuteclito tambeacutem foi ressaltada por Aristoacuteteles (em DK 22 A 4)
ὅλως δὲ δεῖ εὐανάγνωστον εἶναι τὸ γεγραμμένον καὶ εὔφραστονmiddot ἔστιν δὲ τὸ αὐτόmiddot ὅπερ οἱ πολλοὶ σύνδεσμοι lt ἔχουσιν οἱ δ ὀλίγοι gt οὐκ ἔχουσιν οὐδrsquo ἃ μὴ ῥᾴδιον διαστίξαι ὥσπερ τὰ Ἡρακλείτου τὰ γὰρ Ἡρακλείτου διαστίξαι ἔργον διὰ τὸ ἄδηλον εἶναι ποτέρῳ πρόσκειται τῷ ὕστερον ἢ τῷ πρότερον οἷον ἐν τῇ ἀρχῇ αὐτῇ τοῦ συγγράμματοςmiddot φησὶ γὰρ ldquoτοῦ λόγου τοῦδrsquo ἐόντος ἀεὶ ἀξύνετοι ἄνθρωποι γίγνονταιrdquo middot ἄδηλον γὰρ τὸ ἀεί πρὸς ποτέρῳ ltδεῖgt διαστίξαι
(Conveacutem absolutamente que o que se escreve seja faacutecil de ler e compreender o que eacute a mesma coisa E o que se daacute quando haacute muitas conjunccedilotildees e natildeo se daacute quando haacute poucas ou quando natildeo eacute faacutecil pontuar como nos escritos de Heraacuteclito Pois pontuar os escritos de Heraacuteclito eacute um trabalho por ser incerto
124 Trad adaptada de Daniel W Graham 125 O termo utilizado para conjunccedilotildees eacute particiacutepio do verbo συνδέω e nesse sentido natildeo necessariamente representa apenas as conjunccedilotildees gramaticais da liacutengua grega como καί μή ὅτι jaacute que essas podem ser encontradas em fragmentos de Heraacuteclito embora talvez natildeo em quantidade suficiente para propiciar a clareza a que almeja Pseudo-Demeacutetrio mas tambeacutem as proacuteprias conexotildees entre ideias dentro de um texto a propriedade de uma frase se conectar com outra por assim dizer
138
se tal pontuaccedilatildeo se liga a uma palavra anterior ou posterior como no comeccedilo do seu escrito Deste loacutegos sendo sempre os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir quer tatildeo logo tenham ouvido Pois eacute incerto saber pela pontuaccedilatildeo a que se liga o lsquosemprersquo)126
Os elementos conectivos (aqui σύνδεσμοι) que ligam uma ideia a outra satildeo escassos
ou de difiacutecil interpretaccedilatildeo na escrita de Heraacuteclito conforme o que dizem Aristoacuteteles e Pseudo-
Demeacutetrio em obras que tratam exatamente das questotildees de retoacuterica e estilo Tal como explica
Aristoacuteteles eacute de difiacutecil compreensatildeo o sentido de ἀεί (sempre) que em nossa visatildeo pode fazer
referecircncia ao loacutegos o que eacute o mais provaacutevel (deste loacutegos sendo sempre) ou mesmo pode fazer
referecircncia aos homens em geral (sempre os homens se tornam descompassados) Se
caminharmos nesse sentido destoa Heraacuteclito da tradiccedilatildeo poeacutetica que se utiliza de ideias
epiacutetetos foacutermulas que se conectam muitas vezes no transcorrer de vaacuterios versos ou mesmo ateacute
nas grandes estruturas de memoacuteria para as performances puacuteblicas na construccedilatildeo de um sentido
apoacutes vaacuterias repeticcedilotildees circulares Natildeo que a linguagem poeacutetica eacutepica seja mais objetiva mas
porque atraveacutes das suas repeticcedilotildees e retornos acaba por se fazer compreender
O estilo de Heraacuteclito parece ir contra esse sistema poeacutetico de escrita extensa Sendo
assim quando encontramos na Suda a expressatildeo ldquoescreveu muito em estilo poeacuteticordquo (καὶ
ἔγραψε πολλὰ ποιητικῶς) talvez natildeo se refira somente ao estilo sem clareza Talvez Heraacuteclito
tenha escolhido o estilo enigmaacutetico para tratar de coisas que satildeo por natureza questionaacuteveis
problemaacuteticas e contraditoacuterias Por isso indicamos logo no iniacutecio que Heraacuteclito parece ser um
grande criacutetico dos versos hexacircmetros Um criacutetico de longas escritas de extensas narrativas A
escrita para Heraacuteclito natildeo seria um instrumento de classificaccedilatildeo da realidade mas sim um
traccedilo paradoxal da proacutepria natureza das coisas
Isso se daria porque Heraacuteclito parece enxergar uma uniatildeo das esferas
ontoloacutegicasloacutegicas e linguiacutesticas de tal maneira que as contradiccedilotildees e ambiguidades da
realidade se expressam necessariamente na escrita a exemplos dos fragmentos DK 22 B 32 e
48 (MONDOLFO 1971 p 83)
Daiacute talvez ter se consolidado na tradiccedilatildeo dos estudos acerca de Heraacuteclito chamaacute-lo de
um pensador que se expressa atraveacutes de aforismos mesmo natildeo se encontrando essa palavra
ἀφορισμός127 dentro dos seus testemunhos Pessanha (1996 p 23) observa que aforismo eacute uma
126 Trata-se de Aristoacuteteles Retoacuterica 111 5 1407 b 11 (DK 22 A 4) Trad Wilson Regis (adaptada) 127 LSJ acerca de ἀφορισμός ldquoἀφορισμός ὁ delimitation assignment of boundaries separation distinction determination attainment of definiteness distinctive character or feature pithy sentence aphorism fixed rulerdquo A
139
palavra que provavelmente a criacutetica moderna adotou acerca de Heraacuteclito Segundo Kahn ao
comentar o pensamento de Heraacuteclito Diels teria absorvido a influecircncia da produccedilatildeo criacutetica e
filosoacutefica de Nietzsche Diels teria apresentado a escrita de Heraacuteclito como ldquoem aforismosrdquo
numa referecircncia agrave hipoacutetese de o filoacutesofo de Eacutefeso ter absorvido a forma escrita dos chamados
Setes Saacutebios
For Diels was motivated not only by the impossibility of reconstructing the original sequence of the fragments He also called attention to their aphoristic style their resemblance to the sayings of the Seven Sages and (with Nietzsches Zarathustra in mind) he suggested that these sentences had originally been set down in a kind of notebook or philosophical journal with no literary form or unity linking them to one another (KAHN 1979 p 6)
Realmente se formos comparar a escrita de Heraacuteclito com a dos chamados Sete Saacutebios
encontraremos muitas semelhanccedilas Aquilo que poderiacuteamos chamar de aforismos Dioacutegenes
Laeacutercio descreve como maacuteximas (ἀποφθέγματα) ao fazer referecircncia ao texto dos Sete Saacutebios
Esta descriccedilatildeo estaacute de forma bem colocada por exemplo na passagem acerca de Tales de
Mileto que segundo Dioacutegenes Laeacutercio foi um dos Sete Saacutebios da Greacutecia em DL 1356-12
Φέρεται δὲ καὶ ἀποφθέγματα αὐτοῦ τάδε πρεσβύτατον τῶν ὄντων θεός ἀγένητον γάρ κάλλιστον κόσμος ποίημα γὰρ θεοῦ μέγιστον τόπος ἅπαντα γὰρ χωρεῖ τάχιστον νοῦς διὰ παντὸς γὰρ τρέχει ἰσχυρότατον ἀνάγκη κρατεῖ γὰρ πάντων σοφώτατον χρόνος ἀνευρίσκει γὰρ πάντα128 (Conservaram-se tambeacutem as seguintes maacuteximas (de Tales) Deus eacute o mais antigo dos seres pois eacute incriado O mais belo eacute o universo pois eacute obra de deus A maior coisa eacute o espaccedilo pois conteacutem todas as coisas O mais veloz eacute o espiacuterito pois corre para tudo A mais forte eacute a necessidade pois domina tudo O mais saacutebio eacute o tempo que revela tudo)
Se encararmos Heraacuteclito como um pensador que se enquadra no estilo gnocircmico como
gecircnero textual haacute um dado importante na relaccedilatildeo entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo que aqui devemos
mesma raiz em sua forma verbal ldquoἀφορίζω mark off by boundaries mark off for oneself appropriate to oneself border on determine define (a determinate time definite cases) separate distinguish exclude distinct species set apart for rejection cast out excommunicate set apart for some office appoint ordainrdquo 128 Trad adaptada de Mario da Gama Cury
140
ressaltar Hesiacuteodo tambeacutem insere dentro da sua poesia a escrita de maacuteximas (eg Op 40 105
210 217-218 etc cf Th 96-97 613) Na verdade em termos de teacutecnica narrativa Hesiacuteodo
diferencia-se de Homero por ser bem mais conciso Estaria aiacute um importante traccedilo de
continuidade entre Hesiacuteodo e Heraacuteclito ou mesmo um traccedilo de tentativa de superaccedilatildeo de
Hesiacuteodo por Heraacuteclito em se tratando do estilo Ficamos com a segunda opccedilatildeo pois como
veremos Heraacuteclito critica o conteuacutedo versificado por Hesiacuteodo de forma dura
Kahn atenta tambeacutem para a influecircncia da escrita atraveacutes de maacuteximas que editadas por
Diels estariam unificadas em uma espeacutecie de compilaccedilatildeo de maacuteximas de Heraacuteclito Diels
(1951) argumentou que Heraacuteclito natildeo escreveu um livro propriamente dito mas apenas deu
expressatildeo a uma seacuterie de opiniotildees cuidadosamente formuladas semelhantes agraves que Dioacutegenes
Laeacutercio chamou de maacuteximas ao tratar dos Sete Saacutebios e que Diels poreacutem chama de gnomai
A obra de Kahn (1979) acerca de Heraacuteclito contudo caminha na direccedilatildeo de argumentar que
este filoacutesofo utiliza ferramentas literaacuterias como essas maacuteximas ou aforismos para produzir um
sentido filosoacutefico Segundo Khan (1979 p 4-7) Heraacuteclito teria escrito uma obra em prosa que
repercutiu muito ainda no mundo antigo acompanhando uma corrente de comentadores que
apontam Heraacuteclito como tendo escrito um livro completo
The stylistic impact of Heraclitus book is well documented in fifth-century literature notably in the fragments of Democritus several of which seem to be composed as a direct response to statements by Heraclitus The Hippocratic treatise On Regimen probably from the same period shows a more systematic attempt to imitate the enigmatic antithetical style of Heraclitus prose [hellip] Heraclitus is not merely a philosopher but a poet and one who chose to speak in tones of prophecy The literary effect he aimed at may be compared to that of Aeschylus Oresteia the solemn and dramatic unfolding of a great truth step by step where the sense of what has gone before is continually enriched by its echo in what follows
Kahn classifica Heraacuteclito como um poeta dada a conotaccedilatildeo literaacuteria de suas maacuteximas
que estariam compiladas em uma obra fiacutesica em um livro De acordo com Kirk Raven e
Schofield (2010 p 190) o livro atribuiacutedo a Heraacuteclito se chamaria Sobre a Natureza e com
base em seu conteuacutedo principal dividira-se em trecircs discursos do Universo da Poliacutetica e da
Teologia O testemunho DK 22 A 1 indica que Heraacuteclito teria dedicado e colocado esta obra no
templo de Aacutertemis
Ao tratar do estilo de Heraacuteclito Kirk Raven e Schofield afirmam (2010 p192) que os
fragmentos que nos chegaram relembram o aspecto de afirmaccedilotildees orais que estariam expostas
141
de forma concisa e atraente e colocam ainda no estilo de Heraacuteclito uma motivaccedilatildeo a mais que
seria a facilidade de memorizaccedilatildeo das maacuteximas Afirmam ainda esses autores que os
fragmentos de Heraacuteclito natildeo se assemelham a excertos de uma obra redigida de forma contiacutenua
mas sugerem uma espeacutecie de coletacircnea de maacuteximas Jaacute ficou claro que essa tese natildeo eacute
consensual Pode ser combatida (segundo os proacuteprios autores) o que reflete a dificuldade jaacute
descrita aqui de caracterizar a obra e estilo de Heraacuteclito ldquoContra esta opiniatildeo se levanta o fr 1
(DK 22 B 1) uma frase estruturalmente complicada que muito se assemelha a uma introduccedilatildeo
escrita de um livro rdquo (KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 p 194) Dizem ainda ldquoEacute possiacutevel
que quando Heraacuteclito alcanccedilou fama de saacutebio se tenha feito uma coleccedilatildeo das suas sentenccedilas
mais famosas para a qual foi composto um proacutelogo especialrdquo (KIRK RAVEN SCHOFIELD
2010 p 195)
Os autores finalizam dizendo que satildeo os fragmentos de Heraacuteclito estruturados na forma
de apotegmas orais e natildeo partes de um suposto tratado discursivo fato que parece se
harmonizar com as supostas intenccedilotildees oraculares de Heraacuteclito ou mesmo com o status de uma
espeacutecie de continuador do estilo dos Sete Saacutebios como por exemplo o estilo que seria de Tales
de Mileto jaacute mencionado acima Esse estilo de faacutecil memorizaccedilatildeo de caraacuteter oracular e
profeacutetico seria mais uma evidecircncia de que Heraacuteclito adequou um estilo proacuteprio de escrita a um
conteuacutedo renovador dos temas filosoacuteficos principalmente pela funccedilatildeo de loacutegos eacuteris e diacuteke
Heraacuteclito queria talvez demarcar no imaginaacuterio e memoacuteria grega esses conceitos
Segundo Havelock (1996 p 252) a obra de Heraacuteclito possui um estilo condensador
uma brevidade que em poucas palavras detona uma profunda meditaccedilatildeo acerca da realidade
fato que combina com a capacidade de memorizaccedilatildeo do texto jaacute possibilitada ali pela tecnologia
alfabeacutetica Poreacutem mesmo assim manteacutem um caraacuteter poeacutetico que natildeo se expressa na meacutetrica
eacutepica mas sim na escolha das palavras nos termos que o mantiveram presente na tradiccedilatildeo
filosoacutefica Por isso Havelock o coloca como um reformador da poeacutetica para aleacutem da
versificaccedilatildeo tradicional preservando as caracteriacutesticas cosmoloacutegicas e naturalistas que
perfazem os primeiros filoacutesofos
Na pluralidade de autores acima indicados observamos que se torna difiacutecil classificar a
obra de Heraacuteclito dentro de um dado estilo ou escola de escrita O epiacuteteto de obscuro retrata a
proacutepria perplexidade do pensamento de Heraacuteclito pois num primeiro momento eacute difiacutecil
aceitarmos que a realidade se constroacutei num jogo de oposiccedilotildees Se levarmos em consideraccedilatildeo a
passagem que selecionamos da Suda essa obscuridade de Heraacuteclito pode ser retratada
142
exatamente como seu recurso poeacutetico um estilo de pensamento que se materializa num estilo
de escrita Esse estilo descrito tanto por Pseudo-Demeacutetrio como por Aristoacuteteles abre exatamente
essa janela de interpretaccedilatildeo acerca de Heraacuteclito como um autor de difiacutecil compreensatildeo pois eacute
tambeacutem a realidade de difiacutecil compreensatildeo sem sabermos com certeza qual o significado
objetivo de suas maacuteximas Esse estilo com maacuteximas de impacto poreacutem poeacuteticas exemplificam
o caraacuteter contraditoacuterio das palavras exatamente como Heraacuteclito definiu o caraacuteter contraditoacuterio
da natureza
Aleacutem de descrevermos o estilo de Heraacuteclito atraveacutes de seu estilo aforiacutestico e de expressa
contradiccedilatildeo em termos principalmente por seu estilo assindeacutetico cabe aqui constribuirmos com
outras observaccedilotildees acerca de seu estilo Descreveremos algumas breves consideraccedilotildees de sua
estiliacutestica atraveacutes de alguns dos seus fragmentos mostrando como satildeo trabalhados
formalmente129 Lucreacutecio nos lembrou acerca da ldquosonoridade graciosa de Heraacuteclitordquo (DRN 1
639-644)
Tomemos o fragmento DK 22 B 52 αἰὼν παῖς ἐστι παίζων πεττεύων παιδὸς ἡ βασιληίη
(Tempo eacute crianccedila brincando jogando de crianccedila o reinado) 130 Observamos primeiramente o
uso da aliteraccedilatildeo de π o homoteleuto (-ων) uma espeacutecie de figura etimoloacutegica com
paronomaacutesia (παῖςπαίζων) e tambeacutem o poliptoto (παῖςπαιδὸς) Observamos ainda em DK
22 B 90 πυρός τε ἀνταμοιβὴ τὰ πάντα καὶ πῦρ ἁπάντων ὅκωσπερ χρυσοῦ χρήματα καὶ
χρημάτων χρυσός (Por fogo se trocam todas (as coisas) e fogo por todas tal como por ouro
mercadorias e por mercadorias ouro) o poliptoto associado a uma habilidosa ordenaccedilatildeo das
palavras na primeira parte as palavras para ldquofogordquo e ldquotudordquo se sucedem num esquema A B
AB depois de ὅκωσπερ as palavras para ldquoourordquo e ldquodinheirordquo produzem uma variaccedilatildeo desse
esquema numa ordem quiaacutestica CD DC de forma que a troca (ἀνταμοιβὴ) glosada no fragmento
eacute mimetizada pelas alteraccedilotildees morfoloacutegicas caracteriacutesticas do poliptoto e pelo jogo de
alteraccedilotildees na sintaxe de colocaccedilatildeo Ainda na mesma perspectiva poderiacuteamos apontar algumas
construccedilotildees textuais por polaridade como os oxiacutemoros em DK 84 a e 101 sentenccedilas
129 Tomamos como base o estudo de Silva (2013) que se baseia na obra de Mouraviev (2002) O trabalho colossal de Mouraviev principalmente os tomos Le langage de lrsquoobscur e Les Muses ou De la nature produz uma tentiva de reconstruccedilatildeo poeacutetica da obra de Heraacuteclito aprofundando inclusive as anaacutelises das possiacuteveis figuras poeacuteticas encontradas em seus fragmentos A obra de Mouraviev opera uma tentativa de recriar os fragmentos de Heraacuteclito como poemas aprofundando assim a relaccedilatildeo entre aquilo que seria a criaccedilatildeo ldquoobscurardquo poreacutem de extrema criatividade do pensador de Eacutefeso 130 Trad de Joseacute Cavalcante de Souza
143
condicionais em B 16 e B 18 oximoro polaridade e antiacutetese aleacutem de quiasmos e consonacircncias
em B 62 Metaacuteforas e comparaccedilotildees em B 43 e 44
Esses outros exemplos mostram um Heraacuteclito que eacute haacutebil orador Obviamente a
poeticidade de um texto vai muito aleacutem do mero emprego ou natildeo de um metro A preferecircncia
por uma espeacutecie de prosa poeacutetica eacute uma tomada de posiccedilatildeo importante e desconcertante e por
isso mais atraente sem contudo usar o mesmo estilo dos poetas ou dos poetas-filoacutesofos que
empregaram o eacutepos a radical mudanccedila do pensamento de Heraacuteclito vem acompanhada de uma
outra linguagem que compete em elegacircncia com o eacutepos mas marca sua diferenccedila
Alguns autores apresentados aqui relacionam esse estilo aforiacutestico de Heraacuteclito agrave
tradiccedilatildeo filosoacutefica dos Sete Saacutebios o que pode ser lido tambeacutem como uma tentativa desse
pensador de se tornar conhecido e memorizado por um puacuteblico pois escrevia Heraacuteclito
segundo essa criacutetica de forma concisa e atraente favorecendo a memorizaccedilatildeo daqueles que
pela sua obra se interessassem Os vaacuterios testemunhos de que Heraacuteclito teria escrito um livro
ou mesmo uma coletacircnea de suas maacuteximas indicam essa vontade de ser lido e descoberto uma
vontade de ser conhecido e perpetuado como autor estabelecendo assim sua fama e renome
81 O CONCEITO DE LOacuteGOS O FLUXO DA REALIDADE E OUTROS
CONCEITOS DE HERAacuteCLITO
Para demonstrar melhor a origem desse estilo poeacutetico enigmaacutetico e obscuro se faz
necessaacuterio apresentar alguns fragmentos e conceitos cruciais da obra de Heraacuteclito
principalmente o conceito de loacutegos131 (ao tratarmos da relaccedilatildeo entre Heraacuteclito e Hesiacuteodo
falaremos tambeacutem da eacuteris diacuteke e poacutelemos) No contexto da poesia de Hesiacuteodo o loacutegos jaacute comeccedila
a se tornar um termo que surge para significar o proacuteprio discurso a palavra Veremos que
Heraacuteclito constroacutei uma verdadeira polissemia acerca do loacutegos mas que ao final traduz um
princiacutepio que talvez seja o mais caro a ele Esses conceitos principalmente o loacutegos satildeo
primordiais para mais a frente falarmos do κλέος de Heraacuteclito e sua relaccedilatildeo com sua produccedilatildeo
conceitual e junto a isso tratarmos agora da relaccedilatildeo entre Heraacuteclito e a poesia arcaica O loacutegos
como veremos eacute um conceito que sugere esse proacuteprio fluxo das palavras e da realidade Aleacutem
de ampliarmos nossa anaacutelise acerca do loacutegos de Heraacuteclito conheceremos um pouco dos
131 Um estudo de referecircncia acerca do loacutegos de Heraacuteclito e sua relaccedilatildeo com o eacutepos eacute o de Berge (1969)
144
contextos em que esses fragmentos foram citados recuperando uma pouco da voz de cada autor
que citou Heraacuteclito a tratar destes referidos conceitos
Acerca do λόγος (loacutegos) seguem alguns fragmentos de Heraacuteclito
DK 22 B 1132 τοῦ δὲ λόγου133 τοῦδ ἐόντος ἀεὶ ἀξύνετοι γίνονται ἄνθρωποι καὶ πρόσθεν ἢ ἀκοῦσαι καὶ ἀκούσαντες τὸ πρῶτον γινομένων γὰρ πάντων κατὰ τὸν λόγον τόνδε ἀπείροισιν ἐοίκασι πειρώμενοι καὶ ἐπέων καὶ ἔργων τοιούτων ὁκοίων ἐγὼ διηγεῦμαι κατὰ φύσιν διαιρέων ἕκαστον καὶ φράζων ὅκως ἔχει τοὺς δὲ ἄλλους ἀνθρώπους λανθάνει ὁκόσα ἐγερθέντες ποιοῦσιν ὅκωσπερ ὁκόσα εὕδοντες ἐπιλανθάνονται (Este loacutegos sendo sempre os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir quer tatildeo logo tenham ouvido pois tornando-se todas as coisas segundo esse loacutegos a inexperientes se assemelham embora experimentando palavras e accedilotildees tais quais eu expresso segundo a natureza distinguindo cada coisa e explicando como se comporta Aos outros homens escapa quanto fazem despertos tal como esquecem quanto fazem dormindo) DK 22 B 2134 διὸ δεῖ ἕπεσθαι τῶι ltξυνῶι τουτέστι τῶιgt κοινῶι ξυνὸς γὰρ ὁ κοινός τοῦ λόγου δ ἐόντος ξυνοῦ ζώουσιν οἱ πολλοὶ ὡς ἰδίαν ἔχοντες φρόνησιν (Por isso eacute preciso seguir o-que-eacute-com isto eacute o comum pois o comum eacute o-que-eacute-com Mas o loacutegos sendo o-que-eacute-com vivem os homens como se tivessem uma inteligecircncia particular)
Um primeiro conceito de grande relevacircncia em Heraacuteclito eacute entatildeo o loacutegos135 cujas
passagens apresentamos numa coletacircnea de fragmentos acima B 1 e 2 e mais abaixo 31 39
45 50 72 e 115 Vejamos algumas expressotildees retiradas desses fragmentos e como o loacutegos pode
ser interpretado Nas passagens que enumeramos acima observamos o loacutegos de Heraacuteclito sendo
repetido num primeiro momento (B 1 e B 2) na obra de Sexto Empiacuterico O contexto seria a
proposta teoacuterica deste autor dentro do ceticismo antigo tardio e nesse sentido uma espeacutecie
pensamento antimetafiacutesico que tambeacutem critica a suposta falta de clareza e rigor da linguagem
132 Trata-se de Sexto Empiacuterico Contra os Matemaacuteticos 7 132 Trad de Joseacute Cavalcante de Souza 133 O negrito eacute por nossa conta 134 Trata-se de Sexto Empiacuterico Contra os Matemaacuteticos 7 133 135 Os sentidos da palavra loacutegos satildeo muacuteltiplos e variados Provavelmente trata-se da raiz λoγ- λεγ- do verbo λέγω que segundo LSJ pode ter dois sentidos elementares 1 pick up com variaccedilotildees como count tell recount tell over 2 say speak com variaccedilotildees como say on say declare indicate call by name tell command use the term Nesses dois sentidos formam-se as ideias baacutesicas de ldquocontarrdquo no sentido aritmeacutetico do termo se assim podemos dizer e de ldquocontarrdquo uma histoacuteria narrar uma situaccedilatildeo
145
em Heraacuteclito B 1 parece se conectar com B 2 possivelmente complementando a exposiccedilatildeo do
loacutegos de Heraacuteclito
Vejamos o iniacutecio de DK 22 B 1 τοῦ δὲ λόγου τοῦδ ἐόντος ἀεὶ ἀξύνετοι γίνονται
ἄνθρωποι e γινομένων γὰρ πάντων κατὰ τὸν λόγον τόνδε ἀπείροισιν ἐοίκασι Como jaacute
observamos na anaacutelise de Aristoacuteteles eacute difiacutecil compreender se ἀεὶ (sempre) estaacute ligado ao loacutegos
atraveacutes do particiacutepio ἐόντος ou aos ἄνθρωποι Ou seja um loacutegos sempre sendo ou os homens
sempre sendo Independentemente disso estaacute posto o adjetivo ἀξύνετοι ldquodescompassadosrdquo no
processo de se escutar o loacutegos Esse ldquodescompassadordquo do que se escuta ou de quem escuta
reflete exatamente o aspecto conflitante do sentido dentro deste processo (escutar e
compreender) de linguagem Pois nos ldquoescapardquo o real sentido que se sustenta atraveacutes deste
loacutegos O termo para ldquodescompassadordquo ἀξύνετοι em LSJ pode ser traduzido ainda como
ldquoininteligiacutevelrdquo ldquovazio de entendimentordquo ldquoincompreensiacutevelrdquo traduccedilotildees que enfatizam ainda
mais nossa carecircncia de sentido ao nos confrontarmos com o loacutegos Eacute algo que escapa aos
homens mesmo na condiccedilatildeo de vigiacutelia eacute algo que lhes escapa como se estivessem dormindo
O loacutegos se apresenta entatildeo como um conceito que aos homens escapa Veremos mais agrave
frente que Heraacuteclito trata esses homens aqui como os homens comuns os homens em geral
Mas de qualquer forma alguns comentadores tomaram posiccedilatildeo frente agrave definiccedilatildeo do loacutegos de
Heraacuteclito utilizando-se primeiramente de B 1 lembrando que Aristoacuteteles jaacute apontava a
impossibilidade da compreensatildeo objetiva e necessaacuteria desse fragmento
Segundo Marcovich (1978 p 3) pela anaacutelise de B 1 podemos concluir que o loacutegos ou
eacute uma verdade objetiva ou uma lei universal operante e perceptiacutevel no mundo da experiecircncia
cotidiana Poderiacuteamos questionar as definiccedilotildees de Marcovich acerca dos termos ldquoverdade
objetivardquo e ldquolei universalrdquo mas percebemos que o autor utiliza exatamente o contexto da obra
de Sexto Empiacuterico Kirk (1954 p 32) resume que o loacutegos eacute o vir a ser das coisas ldquoaccording to
which all things come to berdquo (utilizando-se de B 1 B 2 e B 114) em dois sentidos como
universal e como igualmente apreendido por todos Mas se tomarmos somente B 1 (1954 p
37) possivelmente quer dizer ldquopalavrardquo Por isso tanto Kirk como Marcovich utilizam-se
tambeacutem de uma espeacutecie de complementaccedilatildeo com o fragmento B 2
Vejamos o que B 2 nos traz Ele aponta supostamente pistas para compreendermos B1
ξυνὸς γὰρ ὁ κοινός τοῦ λόγου δ ἐόντος ξυνοῦ ζώουσιν οἱ πολλοὶ ὡς ἰδίαν ἔχοντες φρόνησιν
A complementaccedilatildeo estaria no fato de que o loacutegos seria de fato κοινός (comum) a todas as coisas
e os homens em sua inteligecircncia particular natildeo o compreenderiam em sua totalidade Jaacute ξυνὸς
146
(o que eacute com) se trata todavia daquilo que eacute comum a todas as coisas um sentido de unidade que
reforccedila a ideia de κοινός que tambeacutem representa o que eacute o geral o comum Loacutegos se lanccedila entatildeo nessa
dicotomia entre o que eacute comum a todos com aquilo que eacute incompreensiacutevel Jaacute se revela em B 1 e B 2 a
obscuridade estiliacutestica de Heraacuteclito agora na descriccedilatildeo do loacutegos De qualquer forma o loacutegos eacute
colocodo em B1 e B2 como variaccedilotildees de foacutermulas e outras expressotildees diferente de outros
fragmentos Natildeo eacute essa mesma interpretaccedilatildeo que encontramos em B 31 39 45 50 e 115
DK 22 B 31136 πυρὸς τροπαὶ πρῶτον θάλασσα θαλάσσης δὲ τὸ μὲν ἥμισυ γῆ τὸ δὲ ἥμισυ πρηστήρ [] γῆ θάλασσα διαχέεται καὶ μετρέεται εἰς τὸν αὐτὸν λόγον ὁκοῖος πρόσθεν ἦν ἢ γενέσθαι γῆ (Direccedilotildees do fogo primeiro mar e do mar metade terra metade incandescecircncia Terra dilui-se em mar e se mede no mesmo loacutegos tal qual era antes de se tornar terra) DK 22 B 39137 ἐν Πριήνηι Βίας ἐγένετο ὁ Τευτάμεω οὗ πλείων λόγος ἢ τῶν ἄλλων (Em Priene nasceu Bias filho de Teutames cujo loacutegos eacute maior que o dos outros) DK 22 B 45138 ψυχῆς πείρατα ἰὼν οὐκ ἂν ἐξεύροιο πᾶσαν ἐπιπορευόμενος ὁδόν˙ οὕτω βαθὺν λόγον ἔχει (Limites de alma natildeo os encontrarias todo caminho percorrendo tatildeo profundo loacutegos ela tem) DK 22 B 50139 οὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναι (Natildeo de mim mas do loacutegos tendo ouvido eacute saacutebio homologar tudo eacute um) DK 22 B 72140 ᾧ μάλιστα δινηεκῶς ὁμιλοῦσι λόγῳ τῷ τὰ ὅλα διοικοῦντι τούτῳ διαφέρονται καὶ οἵς καθ ἡμέραν ἐγκυροῦσι ταῦτα αὐτοῖς ξένα φαίνεται (Do loacutegos com que mais constantemente convivem e que habitam o todo deste divergem e as coisas que encontram cada dia estas lhe parecem estranhas) DK 22 B 115141 ψυχῆς ἐστι λόγος ἑαυτὸν αὔξων (De alma eacute (um) loacutegos que a si proacuteprio se aumenta)
136 Trata-se de Clemente de Alexandria Stromata 5 105 137 Trata-se de Dioacutegenes Laeacutercio 1 88 138 Trata-se de Dioacutegenes Laeacutercio 9 7 139 Trata-se de Hipoacutelito Refutaccedilatildeo 9 9 140 Trata-se de Marco Aureacutelio 4 46 141 Trata-se de Estobeu Florileacutegio 1180 a
147
Vejamos o trecho de B 31 que eacute repetido natildeo no contexto do ceticismo de Sexto
Empiacuterico mas sim na Teologia da aurora do cristianismo em Clemente de Alexandria Em DK
22 B 31 observamos γῆ θάλασσα διαχέεται καὶ μετρέεται εἰς τὸν αὐτὸν λόγον O loacutegos aqui
retrata uma espeacutecie de forccedila da natureza ou uma espeacutecie de forccedila que organiza a natureza bem
diferente do loacutegos de Sexto Empiacuterico que se coloca aparentemente no acircmbito da linguagem O
loacutegos eacute aqui mais especificamente uma unidade de medida da natureza uma espeacutecie de
proporccedilatildeo ou ateacute mesmo uma unidade de medida pela oposiccedilatildeo entre fogo aacutegua e terra (πυρὸς
θάλασσα γῆ) contraacuterios que se tornam os mesmos nesse fluxo de um mesmo loacutegos
Em DK 22 B 39 οὗ πλείων λόγος ἢ τῶν ἄλλων observamos o loacutegos de um indiviacuteduo
chamado Bias e este loacutegos eacute maior do que os demais Segundo Marcovich (1978 p 361) a
palavra loacutegos desse fragmento poderia parecer que estaacute longe de ter um significado filosoacutefico
mas sim somente a palavra de Bias jaacute que ldquoπλείων λόγοςrdquo eacute uma expressatildeo iocircnica comum Mas
ao relacionarmos o loacutegos deste fragmento com outras possibilidades de sentidos observamos as
vaacuterias conexotildees que podem ser feitas entre o loacutegos presente no fragmento de Heraacuteclito e uma
das atribuiccedilotildees do κλέος142
LSJ que traz uma contribuiccedilatildeo importante acerca desse fragmento B 39 bem como da
discussatildeo desta tese Dentro dos possiacuteveis sentidos de λόγος apontados por esse dicionaacuterio
encontramos os sentidos de ldquoVII 2 common talk report tradition b rumour c mention
notice description d the talk one occasions repute mostly in good sense good report praise
honour ethe story goesrdquo Nota-se de forma mais detalhada em DK 22 B 87 o exemplo de loacutegos
como rumor ldquob rumour ldquoἐπὶ παντὶ λ ἐπτοῆσθαιrdquo Heraclit 87rdquo Ainda em I 4 ldquoesteem
consideration value put on a person or thing (cf infr VI 2 d) οὗ πλείων λ ἢ τῶν ἄλλων who
is of more worth than all the rest Heraclit39 βροτῶν λ οὐκ ἔσχεν οὐδένrdquo Obseva-se
novamente um fragmento de Heraacuteclito como exemplo Essa acepccedilatildeo de um loacutegos com rumor
ou notiacutecia se torna um objeto importante para nossa investigaccedilatildeo pois coloca de certa maneira
o loacutegos e κλέος como sinocircnimos
Mais algumas passagens que tratam do loacutegos nos interessam Em DK 22 B 45
observamos ψυχῆς πείρατα ἰὼν οὐκ ἂν ἐξεύροιο πᾶσαν ἐπιπορευόμενος ὁδόν˙ οὕτω βαθὺν
142 Veremos essa relaccedilatildeo entre loacutegos e kleacuteos de maneira mais aprofundada em capiacutetulo sub-sequente Por enquanto vejamos essa possiblidade de interpretaccedilatildeo do loacutegos como rumor fama e histoacuterias compartilhadas dentro dos significados propostos por LSJ
148
λόγον ἔχει A passagem faz referecircncia ao loacutegos pertencente agrave ψυχῇ (alma)143 Esse fragmento
estabelece como paracircmetro de comparaccedilatildeo entre a alma e o loacutegos as ideias de dimensatildeo (βαθὺν)
e referecircncias espaciais (πείρατα e ὁδόν) Natildeo trata a alma assim como algo exclusivamente
interior
Jaacute em B 50 observamos o trecho que coloca de lado a ldquopessoardquo de Heraacuteclito e enaltece
o loacutegos que trata de todas as coisas (ἓν πάντα εἶναι) dentro de um sentido que poderiacuteamos
chamar de universalista cosmoloacutegico O fragmento aponta um jogo de oposiccedilatildeo entre ἐμοῦ e
loacutegos Eacute atraveacutes do loacutegos que devemos escutar essa universalidade que trata de todas as coisas
O contexto se daacute na obra Refutaccedilotildees de Hipoacutelito poreacutem o mesmo argumento pode ser
observado em Fiacutelon de Alexandria na obra Legum Allegoriaelig (Philo leg Alleg 3 7) Satildeo
contextos que tratam da concepccedilatildeo do Universo contrapondo o vieacutes religioso ao filosoacutefico Isso
natildeo diminue o sentido que tende a universalizaccedilatildeo do loacutegos em detrimento da personificaccedilatildeo
de Heraacuteclito (ἐμοῦ) Ainda em B 50 devemos notar essa universalizaccedilatildeo e tese de que o loacutegos
torna todas as coisas um soacute Eacute uma afirmaccedilatildeo que destoa das possiacuteveis anaacutelises pluralistas de
Heraacuteclito ao afirmar uma espeacutecie de monismo (πάντα εἶναι) que estabelece inclusive uma
interlocuccedilatildeo com a obra de Parmecircnides
Em DK 22 B 72 observamos o loacutegos mais uma vez ser relacionado a coisas comuns (ᾧ
μάλιστα δινηεκῶς ὁμιλοῦσι λόγῳ τῷ τὰ ὅλα διοικοῦντι) e cotidianas (καὶ οἵς καθ ἡμέραν
ἐγκυροῦσι) no sentido de que nos deparamos no dia a dia com esse loacutegos e mesmo assim
demonstramos estranhamento Segundo Marcovitch (1978 p 15) eacute mais um fragmento que
aborda o comportamento paradoxal do loacutegos frente aos seres humanos Adicionamos a essa
interpretaccedilatildeo de Marcovitch a sequecircncia verbal de ldquoconviverrdquo com o loacutegos ldquodivergirrdquo
ldquoencontrarrdquo ldquoestranharrdquo (ldquoDo loacutegos com que mais constantemente convivem deste divergem
e as coisas que encontram cada dia estas lhe parecem estranhasrdquo)
Em B 115 assim como em B 45 observamos um loacutegos que trata da alma Mais do que
isso eacute um loacutegos que demonstra a capacidade de aumentar (αὔξων) ou melhor que a si proacuteprio
se aumenta Mas o fragmento B 115 tem sido tratado como espuacuterio tendo inclusive sido
143 Bruno Snell (2003) sustenta que Heraacuteclito foge aqui da tradiccedilatildeo homeacuterica ao nomear a alma como ψυχή atrelada ao conceito de loacutegos Mais do que isso segundo Snell Heraacuteclito refuta em seus fragmentos as concepccedilotildees homeacutericas que relacionavam a alma em trecircs domiacutenios distinto psykheacute thymoacutes e noacuteos Tratando-se especialmente de noacuteos veremos que tradutores optaram por manter o sentido de ldquointeligecircnciardquo e natildeo de alma Poreacutem sabemos das complexidades destes termos e traduccedilotildees
149
desconsiderado em ediccedilotildees mais recentes da obra de Heraacuteclito Mas cabe aqui o registro desse
loacutegos
Observamos entatildeo no transcorrer desses fragmentos o loacutegos sendo tratado em
acepccedilotildees distintas como as possibilidades do discurso advindo daquilo que se escuta como
uma forccedila de transformaccedilatildeo e proporccedilatildeo da natureza como caracteriacutesticas da alma como
explicaccedilatildeo totalizante Natildeo existe uma unidade ou consenso irrefutaacutevel para falar de loacutegos na
obra de Heraacuteclito pelo menos natildeo com os fragmentos que nos chegaram Poreacutem em nossa
visatildeo algo pode ser observado como recorrente na maioria dos fragmentos
Esse algo eacute a ideia de ldquoum se tornando outro em movimentordquo seja se experimentando
em palavra ou praacutetica seja o fogo se tornando terra ou mar seja ao percorrer (movimento) os
limites profundos da alma (ψυχῆς ἐστι λόγος) Essa seraacute entatildeo a acepccedilatildeo que traremos do loacutegos
como uma das criaccedilotildees conceituais estabelecidas por Heraacuteclito a saber o loacutegos como um
movimento de transformaccedilatildeo a descriccedilatildeo de um ldquosempre-fluirrdquo presente em todas as coisas
O loacutegos seria uma forccedila unificadora (ἓν πάντα εἶναι) que explicaria esse movimento pois pratica
essa unidade entre opostos
Concordamos em parte com a acepccedilatildeo de loacutegos dada por West (1971 p 111-136) que
repassa tambeacutem todos os fragmentos De acordo com West a suposta insuficiecircncia dos sentidos
usuais de loacutegos para a compreensatildeo do seu uso em Heraacuteclito se deve a algumas caracteriacutesticas
que lhe satildeo atribuiacutedas nos fragmentos B 1 B 2 B 50 e B 72 e incorretamente interpretadas pela
tradiccedilatildeo filosoacutefica Em B 1 o loacutegos seria dito eterno e todas as coisas surgiriam segundo o loacutegos
como se ele fosse o princiacutepio racional subjacente agrave natureza
West diverge completamente dessa leitura pensando que loacutegos em B 1 indica somente
o discurso de Heraacuteclito e negando o sentido de ldquoeternordquo a aeiacute) Em B 2 ele seria comum e por
isso deveria ser seguido Em B 50 o loacutegos seria separado de Heraacuteclito e ainda comprovaria
tudo ser um Mas West argumenta que o fato de Heraacuteclito falar do loacutegos como uma entidade
separada do autor-Heraacuteclito seria uma maneira usual na prosa jocircnica Nesse tipo de prosa os
autores se referirem dessa maneira a sua obra procedimento estiliacutestico empregado por
Heroacutedoto por exemplo E em B 72 finalmente o loacutegos seria aquilo com o que mais os humanos
se relacionam e mais divergem
Qualquer definiccedilatildeo de loacutegos em Heraacuteclito deveria segundo West contemplar estas
caracteriacutesticas de modo que suas implicaccedilotildees gerem uma noccedilatildeo coerente mas West natildeo vecirc
como tais caracteriacutesticas poderiam dar a entender a ideia estoica de loacutegos que eacute uma
150
inteligecircncia divina que perpassa todo o koacutesmos West defende que os sentidos de loacutegos em
Heraacuteclito restringem-se a acepccedilotildees da palavra vigentes na eacutepoca de Heraacuteclito como ldquodiscursordquo
ldquomediccedilatildeordquo ldquocontagemrdquo Em estudo recente e coletacircnea da obra de Heraacuteclito Huumllsz (2015)
sintetiza acerca do loacutegos
Logos must include the generic notion of language and specifically Heraclitusrsquo own discoursive account as part of its surface meaning but it also must refer as its proper object and the solid ground for true knowledge to the nature of things themselves to ldquobeingrdquo or ldquorealityrdquo (as the text also suggests cf the parallel (kataacute ton loacutegon kataacute phyacutesin B1) (HUumlLSZ 2015 p288)
Nossa concepccedilatildeo em comunhatildeo com a de Huumllsz admite as expressotildees do loacutegos na
linguagem e realidade admitindo principalmente a ideia de movimento fluxo de um se
tornando outro o loacutegos como unidade desse movimento Para demonstrar isso cabe agora uma
breve sistematizaccedilatildeo do loacutegos de Heraacuteclito
Tabela 5- Sistematizaccedilatildeo do loacutegos de Heraacuteclito
Fragmento Loacutegos descrito como Cria unidade na mudanccedila
DK 22 B 31 Uma forccedila da natureza uma
forccedila cosmoloacutegica uma
forccedila de proporccedilatildeo
Sim na medida em que
unifica a transformaccedilatildeo entre
fogo aacutegua e terra
DK 22 B 45 Limites de expansatildeo da alma Sim na medida em que
expande as dimensotildees da
alma
DK 22 B 50 Conceito universalizante Sim na medida em que o
loacutegos deve ser ouvido por
todos e eacute o loacutegos totalizante
de todas as coisas que
mudam e ao mesmo tempo
satildeo ldquoumrdquo
151
Em DK 22 B 72 Divergecircncia e convergecircncia Sim na sequecircncia verbal de
ldquoconviverrdquo com o loacutegos
ldquodivergirrdquo ldquoencontrarrdquo
ldquoestranharrdquo
DK 22 B 115 Mais uma vez qualidade da
alma que apresenta a
faculdade de a si mesma
aumentar
Sim na medida em que
indica expansatildeo
Para sustentarmos ainda nossa concepccedilatildeo do loacutegos de Heraacuteclito como conceito
unificador da sua teoria de fluxo das coisas de transformaccedilatildeo e mudanccedila devemos ainda
recorrer a outros fragmentos que natildeo conteacutem o conceito de loacutegos mas que revelam essa
dinacircmica fluida da realidade atraveacutes de uma seacuterie de verbos Satildeo os fragmentos B 76 84 e 100
com os seguintes verbos em destaque
DK 22 B 76144 ὅτι γῆς θάνατος ὕδωρ γενέσθαι145 καὶ ὕδατος θάνατος ἀέρα γενέσθαι καὶ ἀέρος πῦρ καὶ ἔμπαλιν ([Lembrar-se sempre do dito de Heraacuteclito ] que morte de terra eacute tornar-se aacutegua morte de aacutegua eacute tornar-se ar de ar fogo e vice-versa) DK 22 B 84146 ltμεταβάλλον147 ἀναπαύεται (Transmudando repousa [o fogo eteacutereo no corpo humano]) DK 22 B 100148 περιόδους ὧν ὁ ἥλιος ἐπιστάτης ὢν καὶ σκοπὸς ὁρίζειν καὶ βραβεύειν καὶ ἀναδεικνύναι καὶ ἀναφαίνειν μεταβολὰς καὶ ltὥρας αἳ πάντα φέρουσιgt καθ Ἡράκλειτον κτλ (Destes (os periacuteodos anuais) o sol sendo preacuteposto e vigia define dirige revela e expotildee agrave luz as transmutaccedilotildees e horas as quais trazem em todas as coisas segundo Heraacuteclito)
Os verbos γενέσθαι μεταβάλλον e μεταβολὰς criam nos fragmentos o sentido de
transformaccedilatildeo de fluxo reafirmando a criaccedilatildeo conceitual de Heraacuteclito que trata de uma
144 Trata-se de Marco Aureacutelio 4 46 145 Segundo LSJ ldquofolld by a Predicate come into a certain state become and (in past tenses) to berdquo 146 Trata-se de Plotino Eneacuteadas 4 8 1Plotino estaacute falando acerca do fogo eteacutereo no corpo humano 147 Segundo LSJ ldquothrow into a different position turn quickly or suddenly turn about change alter change ones way of life change and adopt other waysrdquo 148 Trata-se de Plutarco Questotildees Platocircnicas 8 4 p 1007 D
152
natureza em movimento das palavras em movimento somamdo-seao conceito de loacutegos para
descrever este processo de ldquoum tornando-se outrordquo
Somam-se tambeacutem aos sentidos de loacutegos expostos nos fragmentos jaacute citados bem como
aos verbos acima descritos os seguintes fragmentos que expotildeem essa loacutegica e dinacircmica da
mudanccedila DK 22 B 48 49 e 67
DK 22 B 48 Βίος˙ τῶι οὖν τόξωι ὄνομα βίος ἔργον δὲ θάνατος149 (O arco tem por nome a vida e por obra a morte) DK 22 B 49 ποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμεν150 (Entramos e natildeo entramos nos mesmos rios somos e natildeo somos) DK 22 B 67 ὁ θεὸς ἡμέρη εὐφρόνη χειμὼν θέρος πόλεμος εἰρήνη κόρος λιμός (τἀναντία ἅπαντα˙ οὗτος ὁ νοῦς) ἀλλοιοῦται δὲ ὅκωσπερ πῦρ ὁπόταν συμμιγῆι θυώμασιν ὀνομάζεται καθ ἡδονὴν ἑκάστου151 (Deus eacute dia e noite inverno e veratildeo guerra e paz abundacircncia e fome Mas toma formas variadas assim como o fogo quando misturado com essecircncias toma o nome segundo o perfume de cada uma delas)
Satildeo fragmentos que demonstram o movimento fluido da realidade a dinacircmica fluida da
linguagem especialmente DK 22 B 48 que ao utilizar a ambiguidade da palavra βίος βιoacuteς
ora como arco ora como vida retrata a mobilidade de sentido nas proacuteprias palavras Os
fragmentos acima demonstram esse movimento dos contraditoacuterios presente no pensamento de
Heraacuteclito que iraacute se consolidar como sua assinatura filosoacutefica
Essa concepccedilatildeo que sustentamos do loacutegos de Heraacuteclito como um conceito que denota
o fluxo da realidade obviamente natildeo eacute uma novidade Jaacute foi apresentado e tornou-se claacutessico
na voz de Platatildeo152 λέγει που Ἡράκλειτος ὅτι lsquoπάντα χωρεῖ καὶ οὐδὲν μένειrsquo καὶ ποταμοῦ ῥοῇ
ἀπεικάζων τὰ ὄντα λέγει ὡς lsquoδὶς ἐς τὸν αὐτὸν ποταμὸν οὐκ ἂν ἐμβαίηςrsquo (Heraacuteclito disse que
ldquotudo flui e nada permanecerdquo e comparando as coisas existentes com a correnteza de um rio
disse que ldquonatildeo poderias entrar duas vezes no mesmo riordquo) A descriccedilatildeo de Platatildeo acerca das
coisas existentes τὰ ὄντα aponta a possibilidade de tomarmos a explicaccedilatildeo do loacutegos de Heraacuteclito
149 Trata-se de Etymologicum Genuinum sv 150 Trata-se de Galeno De Dignoscendis Pulsibus 8 733 151 Trata-se de Hipoacutelito Refutaccedilatildeo 9 10 152 Trata-se da obra Craacutetilo 402 a
153
como uma criaccedilatildeo conceitual que descreve sua assinatura filosoacutefica Criaccedilatildeo que apresenta a
unificaccedilatildeo da perplexidade do fluxo da realidade
82 HERAacuteCLITO CRIacuteTICO AGRESSIVO DA POESIA
Esse ldquoem movimentordquo teoacuterico apresentada por Heraacuteclito no decorrer de seus
fragmentos aleacutem de fundamentar sua visatildeo da realidade cria um aparato conceitual que serve
tambeacutem para fundamentar suas criacuteticas agrave poesia arcaica Se por um lado Heraacuteclito decide
argumentar de forma qualificada com Hesiacuteodo (veremos isso mais agrave frente) natildeo eacute assim que se
daacute com outros poetas principalmente Homero Outras citaccedilotildees de Heraacuteclito que revelam uma
postura contra a poesia tradicional parecem apontar para uma criacutetica mais radical e ateacute mesmo
mais desrespeitosa para os poetas153 Heraacuteclito parece deixar de lado certa cordialidade e se
torna mais aacutecido para criticar Homero e a funccedilatildeo dos aedos Quando se trata de Homero
observamos em DK 22 B 56 por exemplo o poeta perdendo sua funccedilatildeo de grande educador da
Greacutecia
ἐξηπάτηνταιgt φησίν οἱ ltἄνθρωποι πρὸς τὴν γνῶσιν τῶν φανερῶν παραπλησίως Ὁμήρωι ὃς ἐγένετο τῶν Ἑλλήνων σοφώτερος πάντων ἐκεῖνόν τε γὰρ παῖδες φθεῖρας κατακτείνοντες ἐξηπάτησαν εἰπόντες ὅσα εἴδομεν καὶ ἐλάβομεν ταῦτα ἀπολείπομεν ὅσα δὲ οὔτε εἴδομεν οὔτ ἐλάβομεν ταῦτα φέρομεν154 (Estatildeo iludidos os homens quanto ao conhecimento das coisas visiacuteveis mais ou menos como Homero que foi mais saacutebio que todos os helenos Pois enganaram-no meninos que matando piolhos lhe disseram o que vimos e pegamos eacute o que largamos e o que natildeo vimos nem pegamos eacute o que trazemos conosco)
O fragmento acima faz referecircncia a uma anedota que circulava na Antiguidade
conforme o que analisa Kahn (1979 p 111) ldquoIn the Lives of Homer that circulated in late
antiquity the riddle of the lice is regularly cited in connection with Homers death the poet is
usually said to have died of grief at not being able to guess the answerrdquo Heraacuteclito estaacute
retomando essa anedota para simplesmente mostrar o papel tolo e ingecircnuo que Homero estaacute
desempenhando por mais que outrora ocupasse o papel de mais saacutebios dos helenos Homero155
153 Aleacutem de criticar Homero e Arquiacuteloco podemos observar em DK 22 B 81 uma criacutetica natildeo direta a Pitaacutegoras mas sim a seus seguidores ldquoAncestral dos charlatatildees (Pitaacutegoras) rdquo 154 Trata-se de Hipoacutelito Refutaccedilatildeo 9 9 155 A primeira distinccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero dada pelo fragmento de Heraacuteclito (como veremos mais a
154
eacute comparado aos homens comuns mistificados pela ilusatildeo do visiacutevel assim como crianccedilas
iludem-no na brincadeira com os piolhos Eles se iludem porque a realidade eacute paradoxal no seu
aspecto visiacutevel
Conche (1998 p 114) e Marcovitch (1978 p 55) apontam para uma possiacutevel
manifestaccedilatildeo do loacutegos como paradoxo da linguagem na parte final do fragmento (o que vimos
e pegamos eacute o que largamos e o que natildeo vimos nem pegamos eacute o que trazemos conosco) O
loacutegos seria isso que ldquovimosrdquo ldquopegamosrdquo e poreacutem ldquolargamosrdquo O loacutegos seria um pegar-largar
em fluxo Homero tambeacutem se iludiu com as coisas visiacuteveis natildeo soube carregar o loacutegos consigo
mesmo assim como a brincadeira das crianccedilas
Heraacuteclito atua ainda de forma mais aacutecida frente a Homero Por exemplo em DK 22 B
42 Heraacuteclito critica severamente Homero dentro das disputas na assembleia τόν τε Ὅμηρονgt
ἔφασκεν ltἄξιον ἐκ τῶν ἀγώνων ἐκβάλλεσθαι καὶ ῥαπίζεσθαιgt καὶ ltἈρχίλοχονgt ὁμοίως
(Homero merecia ser expulso dos certames e accediloitado e Arquiacuteloco igualmente) A criacutetica que
Heraacuteclito coloca motivado por sua criaccedilatildeo filosoacutefica torna obsoleto o pensamento arcaico de
Homero e possivelmente a partir dessa passagem podemos derivar sua vontade argumentativa
de tomar os espaccedilos puacuteblicos (ἐκ τῶν ἀγώνων) colocando em cheque a funccedilatildeo dos aedos
Mais uma vez observamos a criacutetica de Heraacuteclito aos aedos tradicionais em DK 22 B
104 τίς γὰρ αὐτῶν νόος ἢ φρήν δήμων ἀοιδοῖσι πείθονται καὶ διδασκάλωι χρείωνται ὁμίλωι
οὐκ εἰδότες ὅτι οἱ πολλοὶ κακοί ὀλίγοι δὲ ἀγαθοί (pois que inteligecircncia ou compreensatildeo eacute a
deles Em cantores de rua acreditam e por mestre tecircm a massa natildeo sabendo que lsquoa maioria eacute
ruim e poucos satildeo bonsrsquo)156
Essa eacute mais uma passagem em que Heraacuteclito apresenta sua doutrina diminuindo o papel
dos poetas de educar e traduzir a realidade Eles (talvez os poetas ou mesmo a massa popular
jaacute que natildeo fica claro a que se refere τίς γὰρ αὐτῶν) natildeo possuem νόος ἢ φρήν ou seja natildeo
possuem inteligecircncia157 ou compreensatildeo Heraacuteclito demonstra aqui uma visatildeo aristocraacutetica e
frente de forma aprofundada) reside no fato de que Homero eacute tratado como σοφώτερος πάντων ldquomais saacutebio do que todosrdquo Jaacute Hesiacuteodo como observaremos seraacute associado duas vezes agrave ideia de διδάσκαλος (ldquomestrerdquo) O significado na diferenccedila desse tratamento pode se dar nas funccedilotildees que Hesiacuteodo e Homero exercem no imaginaacuterio de Heraacuteclito a saber aquele traria uma representaccedilatildeo mais formal de um conhecimento mais associado aos locais objetivos de ensino jaacute este uma sabedoria mais prosaica e popular e sendo assim desinteressante para Heraacuteclito 156 Veremos tambeacutem mais agrave frente que estas contraposiccedilotildees entre ldquoos melhoresrdquo frente ldquoaos muitosrdquo eacute algo recorrente em Heraacuteclito 157 Mantivemos o sentido de νόος como ldquointeligecircnciardquo como indica a traduccedilatildeo mesmo sabendo da complexidade de se traduzir o termo assim como loacutegos tambeacutem demonstra sua complexidade
155
elitista condenando a populaccedilatildeo comum que se deixa acreditar em cantores de rua (ἀοιδοῖσι)
sem saber que a maioria eacute ruim e poucos satildeo bonsrdquo
Aqueles que Heraacuteclito chama de maioria podem ser a maioria dos cantores ou a maioria
das pessoas Satildeo aqui colocados em uma posiccedilatildeo negativa pois natildeo conseguem transmitir o
verdadeiro pensamento nem a verdadeira compreensatildeo das coisas Havelock (1996) resume
bem a criacutetica de Heraacuteclito a Homero traccedilando de forma conjunta a criacutetica conceitual de
Heraacuteclito (Homero era incapaz de descrever a natureza das coisas) e a criacutetica agrave forma de escrita
arcaica do poeta
Mas o que eacute esse loacutegos senatildeo um novo princiacutepio de linguagem e seu uso Ele representa uma maneira de falar uma foacutermula verbal ou por fim o princiacutepio encarnado nessa foacutermula Eacute um segredo verbal difiacutecil de conceber difuso em sua aplicaccedilatildeo que vem compreender estados e condiccedilotildees ou situaccedilotildees superficialmente antiteacuteticas Ao chamar nossa atenccedilatildeo para este siacutembolo verbal Heraacuteclito eu suspeito coloca em foco sua oposiccedilatildeo agrave linguagem e agrave narrativa homeacuterica e propotildee que nossos enunciados sejam intemporais natildeo-particulares e abrangentes Seu inimigo natildeo eacute o fluir do universo mas o fluxo da fala homeacuterica (HAVELOCK 1996 p 258)
Havelock marca bem a contraposiccedilatildeo do conceito de loacutegos para com o fluxo da fala
homeacuterica sendo o loacutegos um novo princiacutepio da linguagem ou mesmo poderiacuteamos acrescentar
um princiacutepio que tenta explicar a linguagem Heraacuteclito parece tentar definir um novo campo de
embate conceitual com a poesia tradicional fundamentado no seu loacutegos Propotildee assim um estilo
contraacuterio a essa poesia e alcanccedila nessa postura antiteacutetica o efeito antiteacutetico da sua voz de suas
maacuteximas do seu conceito de loacutegos
O estilo de Heraacuteclito fundamentado no loacutegos aponta para um traccedilo que pode indicar uma
escrita atraveacutes de maacuteximas talvez afirmaccedilotildees orais talvez para mais facilmente se inserir na
memoacuteria de seu puacuteblico e interlocutores Mas natildeo somente isso bastou para Heraacuteclito no sentido
de tentar se colocar como um novo educador ele teve de criticar severamente a funccedilatildeo dos
aedos e de alguns poetas como Homero e Arquiacuteloco teve que superar a educaccedilatildeo proposta por
essa tradiccedilatildeo
83 XENOacuteFANES E HERAacuteCLITO E A RELACcedilAtildeO COM PARMEcircNIDES DE ELEacuteIA A
EacutePICA DO SER 158 A EacutePICA DO SER
158 Dos fragmentos que nos chegaram de Parmecircnides nenhum deles cita diretamente o nome de Hesiacuteodo
156
Para ampliarmos o debate da triacuteade composta entre Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito
optamos por incluir algumas consideraccedilotildees acerca de como Parmecircnides tambeacutem entra nessa
espeacutecie de debate preacute-socraacutetico acerca da poesia e natildeo menos importante debate conceitual
acerca de Hesiacuteodo debate determinante para defendermos a existecircncia de um κλέος preacute-
socraacutetico Se pensarmos de forma contraacuteria ao que se pensa em termos de cronologia dos
pensadores preacute-socraacuteticos ou seja numa linha Xenoacutefanes gt Heraacuteclito gt Parmecircnides tendo a
obra de Heraacuteclito como posterior agrave de Parmecircnides podemos imaginar uma oposiccedilatildeo de ideias
frente agrave natureza da realidade bem como agrave natureza da realidade poeacutetica Essa suposiccedilatildeo de um
Parmecircnides anterior a Heraacuteclito foi uma tese contruiacuteda por Karl Reinhardt em 1916 no
Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie159
O filoacutesofo de Eleia que viveu e produziu na virada do seacuteculo VI para o V aC pode
contribuir muito com a visatildeo de que os pensadores preacute-socraacuteticos jaacute manifestavam uma
necessidade de se colocar como interlocutores qualificados da poesia eacutepica Cada pensador
vendo o outro (seja o outro poeta seja pensador ou orador) como um desafio teoacuterico a ser
debatido e superado Desse debate puacuteblico a nosso ver surge tambeacutem um questionamento
acerca do que seria o poeacutetico do que seria exatamente o eacutepos a saber uma possiacutevel resposta
Somente seus testemunhos e recepccedilatildeo criacutetica nos descrevem algumas informaccedilotildees e argumentos que conectam ambos 159 Mondolfo (1975 p 57) sintetiza a tese de Reinhardt ldquoEn el moderno esfuerzo de reconstruccioacuten histoacuterica de la filosofiacutea presocraacutetica merece destacarse el libro de Karl Reinhardt Parmenides und die Geschichte der griechischen Philosophie publicado en Bonn en el antildeo 1916 A pesar de haber sido rechazadas por la investigacioacuten criacutetica posterior sus tesis relativas a un trastrocamiento de la tradicional relacioacuten cronoloacutegica y doctrinal entre Jenoacutefanes y Parmenides por un lado y entre Heraacuteclito y Parmenides por el otro la obra de Reinhardt con su amplio dominio de las fuentes incluso de fuentes descuidadas por otros autores y con su independencia criacutetica de las tradiciones interpretativas ha contribuido a una importante renovacioacuten de muchos puntos de vista tradicionales[] De la precedente discusioacuten Reinhardt deduce la conclusioacuten de una separacioacuten completa de Heraacuteclito con respecto a la cosmogoniacutea milesia Las raiacuteces de su pensamiento dice estaacuten en el problema loacutegico de Parmeacutenides y no en el fiacutesico de los milesios La fiacutesica soacutelo le interesa para resolver el problema loacutegico de los contrarios que habiacutea llevado a los eleatas al repudio del mundo sensible En cambio Heraacuteclito quiere mostrar que la unidad existe soacutelo en las oposiciones y que el contraste no es una manifestacioacuten exterior sino la esencia iacutentima de la unidad Empleando la fiacutesica como solucioacuten del problema de los contrarios no se preocupa ya por el problema cosmogoacutenico y el fuego no es para eacutel el principio sino una forma de manifestacioacuten de la inteligencia universal que lo gobierna todo siendo unidad de todos los contrarios De esta manera la doctrina heracliacutetea no es doctrina del flujo sino por el contrario de la permanencia en el cambio de la unidad en la discordia de la eternidad en la caducidad Reinhardt por consiguiente sostiene que Heraacuteclito supone a los eleatas porque la solucioacuten del problema de los opuestos exige su planteamiento previo y eacuteste seguacuten Reinhardt (que en este punto parece olvidar a Anaximandro y a los pitagoacutericos) se habriacutea alcanzado uacutenicamente con Parmeacutenides Los eleatas dicen los opuestos se excluyen mutuamente y por lo tanto el mundo sensible (mundo de contrarios) es falso y la uacutenica verdad es la unidad inmutable del ser conce-bida por la razoacuten que rechaza el no-ser Heraacuteclito contesta los opuestos se exigen mutuamente por lo tanto el mundo de los contrarios es el uacutenico mundo verdadero la oposicioacuten es unidad y armoniacutea el flujo (unidad de ser y no-ser) es la verdadera permanenciardquo
157
de Parmecircnides agrave criacutetica contundente daqueles contraacuterios agrave poesia bem como um ldquosalvaguargarrdquo
da estrutura poeacutetica de Hesiacuteodo Na apresentaccedilatildeo dada a Parmecircnides por Dioacutegenes Laeacutercio
observamos um pouco da sua vida e tambeacutem algumas linhas que apresentam o fato de
Parmecircnides escrever e formular suas ideias na forma do eacutepos Trata-se de DK 28 A 1
Ξενοφάνους δὲ διήκουσε Παρμενίδης Πύρητος Ἐλεάτης (τοῦτον Θεόφραστος ἐν τῆι Ἐπιτομῆι Ἀναξιμάνδρου φησὶν ἀκοῦσαι) ὅμως δ οὖν ἀκούσας καὶ Ξενοφάνους οὐκ ἠκολούθησεν αὐτῶι ἐκοινώνησε δὲ καὶ Ἀμεινίαι Διοχαίτα τῶι Πυθαγορικῶι ὡς ἔφη Σωτίων ἀνδρὶ πένητι μέν καλῶι δὲ καὶ ἀγαθῶι [] καὶ αὐτὸς δὲ διὰ ποιημάτων φιλοσοφεῖ καθάπερ Ἡσίοδός τε καὶ Ξενοφάνης καὶ Ἐμπεδοκλῆς (Parmecircnide de Eleias filho de Pires foi aluno de Xenoacutefanes (Teofrasto na Epiacutetome diz que ele foi aluno de Anaximandro) Mas ainda que tenha sido aluno de Xenoacutefanes ele natildeo o seguiu Ele eacute associado tambeacutem com Amiacutenias o pitagoacuterico filho de Diocetas um homem pobre poreacutem nobre como Sotiatildeo disse [] E ele proacuteprio filosofou em versos como fizeram Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Empeacutedocles)160
Dioacutegenes Laeacutercio afirma que o estilo de Parmecircnides se daacute atraveacutes de um filosofar
poeacutetico (διὰ ποιημάτων φιλοσοφεῖ) descrevendo esse estilo atraveacutes mundo antigo Dioacutegenes
nos conta um pouco mais da vida de Parmecircnides As possiacuteveis filiaccedilotildees filosoacuteficas reveladas
nas primeiras linhas da breve biografia retratam um pensador que talvez tivesse bebido em
vaacuterias fontes tanto na doutrina de Xenoacutefanes quanto na de Anaximandro Poreacutem nos
interessam aqui de forma mais imediata as informaccedilotildees que continuam o texto ldquoE ele proacuteprio
filosofou em versos como fizeram Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Empeacutedoclesrdquo A nomeaccedilatildeo dos
autores ligados a Parmecircnides pode natildeo ser apenas na forma ldquoeacuteposrdquo mas sim tambeacutem numa
espeacutecie de heranccedila geneacutetica conceitual que une os autores
A expressatildeo ldquofilosofou em versosrdquo (διὰ ποιημάτων φιλοσοφεῖ) nos interessa aqui por
dois aspectos primeiro o da filosofia se consolidar tambeacutem no eacutepos em pelo menos trecircs autores
tradicionalmente considerados filoacutesofos de grande peso teoacuterico na Antiguidade (Parmecircnides
Xenoacutefanes e Empeacutedocles) que atraveacutes da filosofia alcanccedilaram a poesia (ou vice-versa)
segundo o de Hesiacuteodo ter sido colocado como um exemplo (talvez inverso) daquele que atraveacutes
da poesia alcanccedilou a filosofia pelo menos na visatildeo de Dioacutegenes O testemunho DK 28 A 2 que
traz o verbete acerca de Parmecircnides na Suda tambeacutem nos revela importantes informaccedilotildees
acerca deste pensador e sua relaccedilatildeo com a poesia
160 Trad baseada em Daniel W Graham
158
Παρμενίδης Πύρητος Ἐλεάτης φιλόσοφος μαθητὴς γεγονὼς Ξενοφάνους τοῦ Κολοφωνίου ὡς δὲ Θεόφραστος Ἀναξιμάνδρου τοῦ Μιλησίου αὐτοῦ δὲ διάδοχοι ἐγένοντο Ἐμπεδοκλῆς τε ὁ καὶ φιλόσοφος καὶ ἰατρὸς καὶ Ζήνων ὁ Ἐλεάτης ἔγραψε δὲ φυσιολογίαν δι ἐπῶν καὶ ἄλλα τινὰ καταλογάδην ὧν μέμνηται Πλάτων (Parmecircnides filho de Pires filoacutesofo de Eleia aluno de Xenoacutefanes de Colofatildeo ou como Teofrasto diz aluno de Anaximandro de Mileto Seus sucessores foram Empeacutedocles o filoacutesofo e meacutedico e Zenatildeo de Eleia Escreveu sobre filosofia natural em versos e certos outros assuntos em prosa como Platatildeo registra) 161
Observamos na Suda a descriccedilatildeo da filosofia de Parmecircnides seus possiacuteveis mestres
teoacutericos bem como disciacutepulos Mas algumas linhas agrave frente a filosofia se coloca novamente
junto agrave poesia na biografia do eleata ldquoEscreveu sobre filosofia natural em versosrdquo na expressatildeo
ἔγραψε δὲ φυσιολογίαν δι ἐπῶν e sobre ldquocertos outros assuntos em prosardquo sendo a palavra
καταλογάδην aquela que significa o termo ldquoprosardquo ou segundo LSJ ldquoby way of conversation
in proserdquo De fato a junccedilatildeo da filosofia da natureza tatildeo tradicional na temaacutetica dos primeiros
filoacutesofos com a forma poeacutetica e a suposta escrita em prosa chamaram a atenccedilatildeo de Platatildeo que
escreve na obra Sofista um importante registro da obra de Parmecircnides (Soph 237 A)
Τετόλμηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ μὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄν Παρμενίδης δὲ ὁ μέγας ὦ παῖ παισὶν ἡμῖν οὖσιν ἀρχόμενός τε καὶ διὰ τέλους τοῦτο ἀπεμαρτύρατο πεζῇ τε ὧδε ἑκάστοτε λέγων καὶ μετὰ μέτρων ndash Οὐ γὰρ μή ποτε τοῦτο δαμῇ φησίν εἶναι μὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ ἀφ ὁδοῦ διζήμενος εἶργε νόημα (A audaacutecia de uma tal afirmaccedilatildeo eacute supor o natildeo-ser como ser e na realidade nada de falso eacute possiacutevel sem essa condiccedilatildeo Era o que meu jovem jaacute afirmava o grande Parmecircnides tanto em prosa162 quanto em verso a noacutes que eacuteramos tatildeo jovensndashJamais obrigaraacutes os natildeo-seres a ser antes afasta teu pensamento desse caminho de investigaccedilatildeo) 163
Mais do que escrever sobre o ser e natildeo ser em verso Parmecircnides apresenta um meacutetodo
de investigaccedilatildeo filosoacutefica dentro desse eacutepos e o faz em versos por algum motivo Segundo
Santoro (2011) o efeito que se buscava na metrificaccedilatildeo do conteuacutedo filosoacutefico e sua respectiva
apresentaccedilatildeo em puacuteblico era bem maior e mais amplo do que a leitura e estudo privado Eacute uma
indicaccedilatildeo concreta de que alguns filoacutesofos como Parmecircnides natildeo buscavam o solipsismo e
161 Trad baseada em Daniel W Graham 162 Graham observa de forma criacutetica a ideia de que Parmecircnides teria escrito e prosa De fato tanto καταλογάδην em DL quanto πεζῇ em Platatildeo poderiam simplesmente significar que ele teria filosofado em ldquoprosa oralrdquo por conversas sem necessariamente escrever assim 163 Trad Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa
159
confinamento das ideias mas sim a propagaccedilatildeo delas em larga escala Natildeo devemos tambeacutem
esquecer a funccedilatildeo mnemocircnica do hexacircmetro principalmente para uma audiecircncia mais ampla e
natildeo alfabetizada Era uma garantia a mais de que aquilo que se versifica poderia ser repetido e
reapresentado Se Xenoacutefanes se utilizou amplamente do verso poeacutetico exaltou sua funccedilatildeo de
poeta e se Heraacuteclito fui um forte opositor agrave eacutepica como forma Parmecircnides retoma a poesia
como grande potecircncia de expressatildeo
De fato Parmecircnides parece utilizar-se da poesia como nenhum outro havia utilizado
anteriormente e acaba por construir uma espeacutecie de eacutepica que descreve um meacutetodo de
investigaccedilatildeo da realidade Parmecircnides criou uma diferenccedila de Xenoacutefanes que natildeo criou um
meacutetodo especiacutefico de conhecimento pelo menos natildeo nos fragmentos que nos chegaram
fazendo muito mais uma espeacutecie de filosofia de criacutetica agrave poesia e agrave religiatildeo tal como os poetas
as apresentavam como foi observado aqui Diferente tambeacutem de Heraacuteclito Parmecircnides aposta
na exposiccedilatildeo mais ampla de ideias possibilitada pela cadecircncia do hexacircmetro
Vejamos como se datildeo a estrutura e os pormenores desta eacutepica chamada Da Natureza
que seria a metrificaccedilatildeo filosoacutefica de Parmecircnides bem como a sua proposta teoacuterica de
pensamento Tais aspectos satildeo necessaacuterios para melhor compreendermos a relaccedilatildeo de
Parmecircnides com a escrita poeacutetica e para termos um paracircmetro comparativo em relaccedilatildeo ao qual
situar Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Parmecircnides eacute visto numa tradiccedilatildeo milenar da filosofia como o filoacutesofo da imobilidade
do ser e da unidade principalmente pelas anaacutelises platocircnicas e aristoteacutelicas de sua obra Platatildeo
por exemplo nos fala em DK 28 A 26 sobre o imobilismo e negaccedilatildeo do movimento de
Parmecircnides164 Aristoacuteteles em DK 28 A 25165 afirma ser a tese principal de Parmecircnides a de
que o todo eacute um ilimitado Satildeo teses dadas em contextos diferentes da recepccedilatildeo de Parmecircnides
mas que datildeo a ideia geral de que este pensador trata de uma visatildeo de realidade contraacuteria agrave de
164 Trata-se de Teeteto 180 e ἐὰν δὲ οἱ τοῦ ὅλου στασιῶται ἀληθέστερα λέγειν δοκῶσι φευξόμεθα παρ αὐτοὺς ἀπ αὖ τῶν τὰ ἀκίνητα κινούντων μὴ εἶναι δὲ [sc τὴν κίνησιν] οἱ περὶ Παρμενίδην καὶ Μέλισσον ldquoMas se os partidaacuterios do imobilismo do todo nos parecem dizer mais a verdade havemos de procurar junto deles nosso refuacutegio contra os que fazem mover-se o imoacutevel (O movimento) natildeo existe segundo os filoacutesofos da escola de Parmecircnides e de Melisso rdquo Trad Remberto F Kuhnen 165 Aristoacuteteles Do Ceacuteu III 1298 b 14 οἱ μὲν γὰρ αὐτῶν ὅλως ἀνεῖλον γένεσιν καὶ φθοράν˙ οὐθὲν γὰρ οὔτε γίγνεσθαί φασιν οὔτε φθείρεσθαι τῶν ὄντων ἀλλὰ μόνον δοκεῖν ἡμῖν οἷον οἱ περὶ Μέλισσόν τε καὶ Παρμενίδην οὓς εἰ καὶ τἆλλα λέγουσι καλῶς ἀλλ οὐ φυσικῶς γε δεῖ νομίσαι ldquoUns negam absolutamente geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo pois nenhum dos seres nasce ou perece a natildeo ser em aparecircncia para noacutes Tal eacute a doutrina da escola de Melisso e de Parmecircnides doutrina que por excelente que seja natildeo pode ser tida como fundada sobre a natureza das coisasrdquo Trad Remberto F Kuhnen
160
Heraacuteclito por exemplo que retrataria a natureza como estando sujeita agrave lei da mudanccedila a todo
tempo Para Parmecircnides a realidade como ser natildeo muda nem se movimenta A questatildeo
fundamental em Parmecircnides entatildeo deve passar por uma anaacutelise rigorosa do que eacute esse ldquoserrdquo
que descreve a imobilidade e de sua necessidade em ser colocado na forma de eacutepos
Parmecircnides propotildee uma complexa sintaxe ressignificando palavras e termos jaacute usuais
na linguagem grega Vejamos um pouco desse vocabulaacuterio resignificado de Parmecircnides e sua
base conceitual
a) O ser a partir de usos abstratos do verbo εἰμί inclusive na forma do particiacutepio τὸ ἐὸν Para
ilustrarmos essas conotaccedilotildees eacute importante observarmos
DK 28 B 2 v 2-5 αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι (acerca das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar uma para o que eacute e como tal natildeo eacute para natildeo ser eacute o caminho de Persuasatildeo ndash pois Verdade o segue outra para o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo ser)166
DK 28 B 4 v2 οὐ γὰρ ἀποτμήξει τὸ ἐὸν τοῦ ἐόντος ἔχεσθαι (pois natildeo apartaraacutes o ente do manter-se ente)
Podemos observar construccedilotildees de frases que levam o leitor a uma complexa abstraccedilatildeo
Construccedilotildees como em DK 28 B 2 v 5 ἡ δ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστιμὴ εἶναι167 onde
o verbo ldquoserrdquo ocorre de trecircs maneiras diferentes num soacute verso como infinitivo presente do
indicativo indicando ldquoexistirrdquo como verbo de ligaccedilatildeo e no infinitivo Podemos observar por
exemplo em DK 28 B 4 v 2 o ldquoserrdquo em sua forma nominal οὐ γὰρ ἀποτμήξει τὸ ἐὸν τοῦ ἐόντος
ἔχεσθαι Para falar acerca do ldquoserrdquo Parmecircnides utiliza um repertoacuterio de conjugaccedilotildees variadas
com o verbo ldquoserrdquo em muacuteltiplas aplicaccedilotildees no infinitivo indicativo e particiacutepio bem como o
ser em sua forma nominal como ente Este uacuteltimo caso eacute o de τὸ ἐὸν na forma presente do
particiacutepio ativo neutro tambeacutem εἶναι eacute forma do infinitivo ativo A forma nominal ainda em τοῦ
ἐόντος presente particiacutepio ativo mascneut genitivo singular Henn (2003 p 31-32) afirma
166 Trad Fernando Santoro Utilizaremos para todos os fragmentos de Parmecircnides a partir de agora 167 Ao executarmos uma busca simples na base de dados TLG da expressatildeo ldquoἐστι μὴ εἶναιrdquo por exemplo observamos sua ocorrecircncia mais antiga nos fragmentos de Parmecircnides Tal fato pode ser um dos indiacutecios da criaccedilatildeo textual e abstrata do autor
161
que a doutrina de Parmecircnides eacute fundamentada exatamente nessa dinacircmica e variaccedilotildees do verbo
ser
(1) ἔστι as existential is expressing the fact of a things presence Eg B 23 that it is where it implies unqualified existence as conveyed in (2) ἔστι as the is expressing the possibility of a things presence Eg B 61 since it is possible to be where the phrase it is possible has the infinitive to be as subject and the ideas of possibility and existence are inseparably linked (3) ἔστι as the copula is linking predicate to subject Eg B 848 since all is inviolate (HENN 2003 p 31-32)
Essa variedade de usos do εἰμί formula um complexo sistema de abstraccedilotildees na forma do
verso eacutepico que demonstram o aspecto existencial do εἰμί bem como seu aspecto ldquocoisificadordquo
como ente e ainda seu aspecto de continuidade de existecircncia na sua forma infinitiva Satildeo
atribuiccedilotildees que para natildeo chamarmos de ineacuteditas satildeo no miacutenimo de extrema sofisticaccedilatildeo
estiliacutestica Elas datildeo o aspecto de unidade em Parmecircnides Essa unidade tambeacutem podemos
observar como sendo um desejo de Xenoacutefanes Como Xenoacutefanes nos diz em DK 21 B 23 εἷς
θεός ἔν τε θεοῖσι καὶ ἀνθρώποισι μέγιστος οὔτι δέμας θνητοῖσιν ὁμοίιος οὐδὲ νόημα (um uacutenico
deus entre deuses e homens o maior em nada semelhante aos mortais nem no corpo nem no
pensamento) Heraacuteclito ao propor o loacutegos tambeacutem busca essa unidade em alguns fragmentos
jaacute expostos aqui como tambeacutem em DK 22 B 30 53 64 80 90 113 114
b) νοεῖν o ldquopensarrdquo
Para a atividade do pensamento ou do pensar tomemos as seguintes palavras νοεῖν
presente infinitivo ativo νοῆσαι aoristo infinitivo ativo Encontramos alguns exemplos em DK
28 B 6 v 1 χρὴ τὸ λέγειν τὸ νοεῖν τ᾿ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι (Precisa tal dizer tal pensar
que o ente eacute pois haacute ser) onde observamos o ldquoserrdquo o ldquoenterdquo e o ldquopensarrdquo se conectarem em
um soacute verso Bem como em DK 28 B 2 v 2 αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι (acerca
das uacutenicas vias de questionamento que satildeo a pensar) que trata do meacutetodo como uacutenica via para
o pensamento Eacute mais um arranjo de abstraccedilotildees dentro do verso eacutepico feita por Parmecircnides em
sentido diverso ao encontrado em Xenoacutefanes e Heraacuteclito
c) ἡ ἀληθείη a ldquoverdaderdquo
162
Quando busca tratar da verdade Parmecircnides utiliza tanto aquela que parece ser a deusa
Verdade como a verdade em sua forma de substantivo ἀληθείηι substantivo feminino dativo
singular usa tambeacutem em outros trechos ἀληθῆ como adjetivo neutro plural Observamos por
exemplo em DK 28 B 2 v 4 Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) (eacute o caminho de
Persuasatildeo ndash pois Verdade o segue) Eacute a Verdade e sua apariccedilatildeo como deusa Ou mesmo por
exemplo em DK 28 B 7 v 36 ὅσσα βροτοὶ κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆ (quanto os
mortais instituiacuteram persuadidos de ser verdadeiro) Eacute a verdade e sua apariccedilatildeo como adjetivo
Parmecircnides ao enunciar suas teses iniciou um estilo proacuteprio de filosofia ao relacionar
o pensar (νοῆσαι) o ser (εἶναι) a e verdade (Ἀληθείη) e mais do que isso numa sintaxe proacutepria
esboccedilou essas ideias atraveacutes da mecacircnica do eacutepos Como observamos por exemplo nestes trecircs
versos de seu poema que seguem em DK 28 B 2 versos 2-4 em que Parmecircnides propotildee um
complexo vocabulaacuterio para expressar sua unidade filosoacutefica somada agrave meacutetrica arcaica
tradicional
αἵ περ ὁ δοὶ μοῦ ναι δι ζή σι ός εἰ σι νο ῆ σαι
macr ˘ ˘ macr macr macr macr macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr
ἡ μὲν ὅ πως ἔσ τιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔσ τι μὴ εἶ ναι
macr ˘ ˘ macr macr macr ˘ ˘ macr macr macr ˘ ˘ macr macr
Πει θοῦς ἐσ τι κέ λευ θος Ἀ λη θεί ηι γὰρ ὀ πη δεῖ)
macr macr macr ˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr macr ˘ ˘ macr macr
Segundo Mourelatos (2008 p 3) o hexacircmetro de Parmecircnides pode ser considerado
ldquofalhordquo (no sentido de apresentar imprecisotildees natildeo comuns na eacutepica tradicional) Fato que se
observa por exemplo logo no iniacutecio do poema onde possuiacutemos mais hipotaxe do que parataxe
o que eacute contraacuterio agrave tradiccedilatildeo sintaacutetica da eacutepica de Homero Isso eacute interessante pois justamente a
hipotaxe isto eacute a subordinaccedilatildeo corresponderia a uma necessidade de articulaccedilatildeo loacutegica maior
entre as oraccedilotildees devida agraves necessidades de raciociacutenio mais complexo presentes na obra de
Parmecircnides em contraste com as meras justaposiccedilotildees propiciadas pela parataxe
De qualquer forma estes trecircs versos entre outros existentes na sua obra ilustram a
opiniatildeo de John Burnet (1958) de que Parmecircnides foi o primeiro filoacutesofo a expor um sistema
filosoacutefico em linguagem meacutetrica Casertano (2011 p 86) afirma que a grande novidade de
163
Parmecircnides em relaccedilatildeo aos pensadores que o precederam foi ter inaugurado um meacutetodo de
investigaccedilatildeo e com extrema clareza ter colocado esse meacutetodo para desvendar o ser Parmecircnides
teria criado sua assinatura na filosofia atraveacutes de seus discursos acerca do ser e da verdade
enriquecendo o discurso filosoacutefico acerca da natureza principalmente em sua vertente jocircnica
Enriqueceu tambeacutem a forma eacutepica
Aleacutem de ter escrito seu nome no assunto do ser (τὸ ἐὸν) e utilizar a forma poeacutetica para
expressar suas ideias Parmecircnides fomentou um grande debate jaacute na antiguidade sobre o porquecirc
do uso de ferramentas poeacuteticas numa linguagem que deveria ser filosoacutefica como jaacute comentamos
aqui ao falar da obra de Xenoacutefanes O debate que surge do fato de a poesia ontoloacutegica criada
por Parmecircnides ter sido propagada em versos causa perplexidade para alguns comentadores da
Histoacuteria da Filosofia Casertano (2011) aponta a forma poeacutetica em Parmecircnides como somente
uma moldura para sustentar um meacutetodo novo de filosofia Jaacute Havelock (1996) insiste em um
valor funcional em si talvez como uma forma mais padratildeo para se colocar e divulgar um
pensamento Se pensarmos como Karl Reinhardt como um Heraacuteclito teoacuterico em resposta agraves
questotildees colocadas por Parmecircnides essa perplexidade ainda se torna mais importante pois se
estabelece uma sequecircncia nova de criacuteticas conceituais (Xenoacutefanes =gt Parmecircnides =gt Heraacuteclito)
e criacuteticas a poesia
Tanto no seu aparato conceitual quanto poeacutetico o poema de Parmecircnides surge como
uma unidade que se coloca nessa equaccedilatildeo entre Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito Todas as partes
do poema de Parmecircnides nos chegaram atraveacutes de citaccedilotildees (como jaacute descrito ao falarmos das
doxografias) num amplo espectro de autores e em diversos espaccedilos cronoloacutegicos Por mais que
Platatildeo e Aristoacuteteles tivessem escrito muito acerca dele os fragmentos de sua obra se
mantiveram principalmente por causa de Teofrasto Sexto Empiacuterico Clemente de Alexandria
e mais tardiamente nos seacuteculos V e VI dC graccedilas aos neoplatocircnicos Proclo e Simpliacutecio que
copiaram partes significativas do poema Podemos observar a quantidade de escolas filosoacuteficas
de autores que viviam em diversos tempos histoacutericos que acabam por ter cada um sua maneira
de citar e ateacute mesmo parafrasear Parmecircnides
As duas partes mais consideraacuteveis do poema nos chegaram atraveacutes de Simpliacutecio168 (sec
VI d C) filoacutesofo neoplatocircnico que cita Parmecircnides no seu Comentaacuterio agrave Fiacutesica de Aristoacuteteles
168 Observamos no comentaacuterio de Simpliacutecio dentro de sua Fiacutesica 14426 ldquoAs linhas de Parmecircnides acerca do uacutenico ser natildeo satildeo muitas e eu gostaria de as apensar a este comentaacuterio tanto como confirmaccedilatildeo do que digo quanto pelo fato de o livro ter se tornado raro rdquo Trad Joseacute Trindade dos Santos
164
Outra contribuiccedilatildeo importante se deu por Sexto Empiacuterico que nos legou 32 versos do poema
principalmente a parte que se convencionou chamar proecircmio exatamente por ser essa parte
uma espeacutecie de propedecircutica miacutetica que conduz o leitor agraves questotildees filosoacuteficas propriamente
ditas Natildeo sabemos ao certo poreacutem qual a percentagem do poema que temos hoje em matildeos
Mas a partir dos fragmentos que possuiacutemos podemos dividir da seguinte maneira a estrutura
geral dos fragmentos de Parmecircnides o proecircmio B 1 v 1-28 o programa B 1 v 28-32 + B 10
os caminhos (verdade e opiniatildeo) B 2 ateacute B 9 a ordenaccedilatildeo do mundo B 11 ateacute B 19
Segundo Reale (2014 p 50) a doutrina de Parmecircnides indica a possibilidade de trecircs
caminhos acerca do conhecimento 1) verdade absoluta 2) das opiniotildees falazes 3) da opiniatildeo
plausiacutevel O crivo dessa doutrina eacute aquilo que a tradiccedilatildeo chama de princiacutepio da verdade ou da
natildeo-contradiccedilatildeo como pensa Santoro (2011) ao citar DK 22 B 2 ldquoO que eacute e como tal natildeo eacute
para natildeo ser o que natildeo eacute e como tal eacute preciso natildeo serrdquo Reale tambeacutem afirma (2014 p 51)
que esta eacute a primeira formulaccedilatildeo daquilo que ficaria conhecido como ldquoo princiacutepio da natildeo-
contradiccedilatildeordquo de que algo natildeo pode ldquoser e natildeo serrdquo ao mesmo tempo em que Parmecircnides
estabelece os princiacutepios da Loacutegica e Ontologia Ocidentais Se natildeo foi o primeiro pensador a
apresentar um sistema filosoacutefico foi um dos primeiros a construir um meacutetodo de investigaccedilatildeo
atraveacutes da riqueza com que tratou as derivaccedilotildees da palavra ser Teria assim Parmecircnides dado
um grande salto metodoloacutegico em comparaccedilatildeo aos poetas arcaicos Poreacutem podemos questionar
quatildeo grande foi este salto e quatildeo grande eacute ainda a heranccedila eacutepica dentro das linhas de
Parmecircnides
Atraveacutes da ediccedilatildeo moderna de DK entre outras obras criacuteticas muito se discutiu acerca
da relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com a eacutepica homeacuterica e de Hesiacuteodo principalmente no que
concerne a DK 28 B1 Jaacute que a escrita versificada deste pensador de imediato coloca a questatildeo
de qual seria a forma textual para se apresentarem questotildees filosoacuteficas (pois como vimos
Xenoacutefanes propotildee ao menos trecircs formas e Heraacuteclito utiliza os textos curtos e aforiacutesticos)
Podemos primeiramente aproximar o texto de Parmecircnides agrave tradiccedilatildeo homeacuterica
84 O POEMA DE PARMEcircNIDES E SUA RELACcedilAtildeO COM A EacutePICA HOMEacuteRICA UM
CONTRAPONTO A XENOacuteFANES E PRINCIPALMENTE A HERAacuteCLITO
Trecircs aspectos importantes do poema de Parmecircnides na parte convencionada como DK
28 B 1 que devemos observar de forma mais atenta o tom pessoal da parte que eacute considerada
165
como proecircmio a farta referecircncia agraves divindades gregas no percurso da passagem o tom heroico
da jornada em busca da Deusa que descreve o meacutetodo de conhecimento em si Satildeo essas
caracteriacutesticas que de forma imediata aproximam a jornada descrita por Parmecircnides com a
realidade da jornada eacutepica aleacutem da utilizaccedilatildeo da metrificaccedilatildeo como jaacute foi dito Parmecircnides
resgata aquilo que Xenoacutefanes repudiou ao criticar a relaccedilatildeo entre homens e deuses no seu
aspecto moral bem como resgata a eacutepica que Heraacuteclito tanto refutou
Acerca do tom pessoal do poema observamos o narrador expor seu eacutepos de forma
pessoal logo nos dois primeiros versos DK 28 B 1 vv 1-2 ἵπποι ταί με φέρουσιν ὅσον τ᾿ ἐπὶ
θυμὸς ἱκάνοι πέμπον ἐπεί μ᾿ ἐς ὁδὸν βῆσαν πολύφημον ἄγουσαι (Eacuteguas que me levam a
quanto lhes alcanccedila o iacutempeto cavalgavam quando numes levaram-me a adentrar uma via
loquaz) A marcaccedilatildeo pessoal se daacute pelo pronome με em ambos os versos Esse tom pessoal
obviamente natildeo eacute uma grande inovaccedilatildeo textual jaacute que eacute encontrado em muitas passagens
eacutepicas tanto em Homero como principalmente em Hesiacuteodo mas eacute um recurso textual que deve
ser pontuado
Ele reaparece no encontro do personagem com a Deusa sem nome que atesta a relaccedilatildeo
de iniciaccedilatildeo agrave verdade operada pelo proecircmio em DK 28 B 1 vv 22-23 καί με θεὰ πρόφρων
ὑπεδέξατο χεῖρα δὲ χειρί δεξιτερὴν ἕλεν ὧδε δ᾿ ἔπος φάτο καί με προσηύδα (E a Deusa
com boa vontade acolheu-me e em sua matildeo minha matildeo direita tomou e assim proferiu a
palavra e me saudou) O pronome traduz a proximidade do personagem em relaccedilatildeo agrave Deusa
bem como desenha um tom de busca em primeira pessoa e singular dos ensinamentos que ela
iraacute apresentar
Outro aspecto importante do poema (pelo menos em seu proecircmio) eacute a rica inserccedilatildeo de
divindades que ilustram a jornada do personagem na busca pela verdade Cornelli e Costa
(2016 p 40) discutem a informaccedilatildeo de Parmecircnides ter conhecido Xenoacutefanes e sendo assim
perguntam-se por que teria retornado aos deuses e aos mitos Por que teria feito a escolha pelo
verso eacutepico e dialeto homeacuterico Marcelo Pimenta Marques (1990 p 62) sustenta a tese de que
o mito natildeo eacute uma mera ilusatildeo narrativa mas sim um arcabouccedilo e esquema mental dentro do
qual se articulam vaacuterios niacuteveis loacutegicos diferentes Esse esquema mental sugere tambeacutem traccedilos
de uma poeacutetica puacuteblica de performance Aparecem assim ilustrando a poesia as seguintes
divindades nos versos de Parmecircnides as Heliacuteades v 9 (ἡλιάδες) filhas de Apolo as divindades
Noite e Dia v 11 (νυκτός τε καὶ ἤματός) a deusa Justiccedila v 14 (δίκη) a Deusa v 22 (θεὰ)
166
que conduz o personagem a deusa Norma v 28 (θέμις) a deusa Destino v 26 (μοῖρα) A
multiplicidade divina aqui eacute tambeacutem uma afronta a Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Mais do que relatar a passagem de certas divindades Parmecircnides utiliza a meacutetrica em
hexacircmetros para atestar a veracidade do proacuteprio discurso da Deusa (θεὰ) cujo nome realmente
natildeo sabemos mas cujo ensinamento torna-se a proposiccedilatildeo nevraacutelgica do poema Eacute o que
observamos em DK B 1 vv 23-24 δεξιτερὴν ἕλεν ὧδε δ᾿ ἔπος φάτο καί με προσηύδα ὦ
κοῦρ᾿ ἀθανάτοισι συνάορος ἡνιόχοισιν (minha matildeo direita tomou assim proferiu a palavra e
me saudou Oacute jovem acompanhado por aurigas imortais) O verso 23 demonstra o eacutepos169 como
garantia da fala e da verdade da Deusa e na sequecircncia no v 24 temos a fala da Deusa no
vocativo demonstrando proximidade e autoridade diante do personagem A expressatildeo ἔπος
φάτο apresenta aqui tanto a garantia de verdade impliacutecita na fala divina quanto a sugestatildeo de
que o poema eacute narrado para um puacuteblico pois natildeo se trata de qualquer palavra trata-se de um
eacutepos Nota-se tambeacutem que o personagem natildeo estaacute sozinho em sua jornada mas sim com as
outras divindades que o levaram ateacute a Deusa garantindo assim o respaldo necessaacuterio para que
ele receba a iniciaccedilatildeo que logo se daraacute Junto a esse panteatildeo de deuses observa-se tambeacutem o
tom heroico da empreitada filosoacutefico-poeacutetica como por exemplo nos versos 24-28
ὦ κοῦρ᾿ ἀθανάτοισι συνάορος ἡνιόχοισιν ἵπποις ταί σε φέρουσιν ἱκάνων ἡμέτερον δῶ χαῖρ᾿ ἐπεὶ οὔτι σε μοῖρα κακὴ προὔπεμπε νέεσθαι τήνδ᾿ ὁδόν (ἦ γὰρ ἀπ᾿ ἀνθρώπων ἐκτὸς πάτου ἐστίν) ἀλλὰ θέμις τε δίκη τε (Oacute jovem acompanhado por aurigas imortais que com eacuteguas te levam ao alcance de nossa morada salve Porque nenhuma Partilha ruim te enviou a trilhar este caminho agrave medida que eacute um caminho apartado dos homens mas sim Norma e Justiccedila)
A jornada heroica do personagem exaltada no vocativo possui o respaldo natildeo de
qualquer divindade mas sim das deusas Norma e Justiccedila fazendo uma espeacutecie de transiccedilatildeo da
eacutepica convencional para uma eacutepica filosoacutefica pois seratildeo as duas deusas que daratildeo respaldo ao
discurso acerca da verdade no poema Atraveacutes da observaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas do tom
pessoal da descriccedilatildeo detalhada do panteatildeo de deuses bem como do tom heroico do poema
sem falar da meacutetrica que obviamente remete agrave veracidade da narrativa atraveacutes da tradiccedilatildeo do
169 Ressalvamos que talvez Parmecircnides possa estar utilizando o eacutepos em sua conotaccedilatildeo mais simples como palavra
167
eacutepos podemos derivar uma heranccedila eacutepica do poema Ou seja quando falamos de heranccedila eacutepica
queremos dizer que esses versos poderiam ser tanto de Homero quanto de Hesiacuteodo e a diferenccedila
para com esses poetas se daraacute no meacutetodo de investigaccedilatildeo propriamente dito Eacute atraveacutes desse
meacutetodo que Parmecircnides se insere como um pensador singular estabelecendo sua diferenccedila com
a eacutepica tradicional Parmecircnides repete e diferencia
O poema segue apoacutes o proecircmio e observamos nos fragmentos B 2 B 6 e B 7 o filoacutesofo
retratar o discurso em si da Deusa A parte final dos fragmentos de B 11 a B 19 traz
consideraccedilotildees a respeito da ordenaccedilatildeo do mundo um compecircndio de consideraccedilotildees
cosmoloacutegicas e teoloacutegicas de Parmecircnides Havelock (1996 p 259) classifica o iniacutecio do poema
como uma espeacutecie de prefaacutecio ornamental O iniacutecio segundo esse autor dramatiza a relaccedilatildeo de
Parmecircnides com seu puacuteblico indicando inclusive um recurso familiar de invocaccedilatildeo agraves Musas
no caso aqui uma invocaccedilatildeo agraves Heliacuteades e sendo assim o poema pressupotildee um puacuteblico uma
audiecircncia Outros indicadores de que o poema de Parmecircnides dialoga com um puacuteblico segundo
Havelock (1996) satildeo a fala da Deusa atraveacutes do que seriam referecircncias agrave eacutepica homeacuterica e a
ordem da deusa que convoca seu disciacutepulo a ouvir170
Alexander P D Mourelatos aprecia e analisa essas caracteriacutesticas eacutepicas no texto de
Parmecircnides de forma pormenorizada em sua obra The route of Parmenides apresentando um
vasto trabalho acerca das relaccedilotildees entre o filoacutesofo e Homero O tom homeacuterico de Parmecircnides
pode ser observado nas caracteriacutesticas que acima citamos mas tambeacutem como sistematiza
Mourelatos Parmecircnides parece articular uma seacuterie de expressotildees e foacutermulas encontradas em
Homero que junto agrave meacutetrica apresentada evocam o tom puacuteblico e mnemocircnico do poema
Indicam ainda um conhecimento auditivo que Parmecircnides detinha de Homero sugerindo que o
pensador de Eleia deveria ter em mente vaacuterios trechos decorados da Iliacuteada e a Odisseia
Mourelatos apresenta uma seacuterie de compilaccedilotildees de dados que enriquecem essa tese de um
Parmecircnides homeacuterico A tabela que segue por exemplo associa trechos do poema do preacute-
socraacutetico com a Iliacuteada e a Odisseia bem como com os Hinos Homeacutericos
170 Trata-se de DK 28 B 1 v 1-2 e B 8 v 52 respectivamente ἵπποι ταί με φέρουσιν ὅσον τ ἐπὶ θυμὸς ἱκάνοι πέμπον ἐπεί μ ἐς ὁδὸν βῆσαν πολύφημον ἄγουσαι [hellip] μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούων (ldquoAs eacuteguas que me levam onde o coraccedilatildeo pedisse conduziam-me pois agrave via multifalante me impeliram da deusa [] aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindordquo) Trad Joseacute Cavalcante de Souza
168
Tabela 4 - Paralelos exatos com Homero adaptado de Mourelatos (2008 p 8)
Apresentam-se as expressotildees em seus respectivos versos e o nuacutemero de ocorrecircncias em cada
obra
Parmecircnides Iliacuteada Odisseia Hinos Homeacutericos
ἀλλ ἔμπης 131 2 4 -
ἅρμα καὶ ἵππους 121 3 - 1
αὐγὰς ἠλίοιο 15 - 4 -
αὐτὰρ ἐπεὶ 842 91 23 14 -
αὐτὰρ ἐπεὶ δὴ πάντα 91 1 3 -
ἐγὼν ἐρέω 21 3 1 -
εἴ δrsquoἄγε 21 4 8 -
εἰσι κελεύθων 111 1 1 -
ἱκάνων ἠμέτερον δῶ
125
2 1 -
κατrsquoἀμαξιτόν 121 1 - 1
λάινος οὐδός 112 1 5 1
μοῖρrsquoἐπέδησεν 837 2 1 -
μῦθον ἀκουσάς 21 6 5 1
ὁδὸν ἡγεμόνευον 15 - 4 1
ὅτε σπερχοίατο 18 1 1 -
ὅσον τ ἐπὶ 11 3 1 -
οὕτω τοι 191 - 2 -
Πέμπε νέεσθαι 126 1 3 -
φράζεσθαι ἄνωγα 62 - 6 1
Mourelatos organiza passagens que ocorrem segundo a tabela 4 tanto em Homero
como em Parmecircnides de forma exata A expressatildeo αὐτὰρ ἐπεὶ (ldquoentatildeo depoisrdquo) eacute o paralelo
homeacuterico que mais aparece no poema de Parmecircnides 37 vezes trata-se de uma expressatildeo
comum A expressatildeo εἴ δrsquoἄγε (ldquopois bemrdquo) aparece tambeacutem em boa quantidade 12 vezes trata-
se tambeacutem de uma expressatildeo normal e corriqueira Satildeo expressotildees que indicam a passagem
temporal da narrativa presentes de forma comum em qualquer texto grego
169
Poreacutem outras expressotildees nos chamam mais a atenccedilatildeo como por exemplo μῦθον
ἀκουσάς (ouvindo a palavra) que aparece por 12 vezes um nuacutemero significativo enaltecendo
a relaccedilatildeo que o poema de Parmecircnides teria com a audiecircncia com quem escuta e ouve
atentamente a palavra Eacute uma relaccedilatildeo que podemos fazer com por exemplo Il 356 onde
Heitor alegra-se ao escutar as palavras de Paacuteris Ὣς ἔφαθ Ἕκτωρ δ αὖτ ἐχάρη μέγα μῦθον
ἀκούσας (Assim falou e Heitor sentiu grande alegria ao ouvir as palavras) verso a ser
comparado com DK 28 B 2 v 7 onde a Deusa impotildee sua palavra para o jovem personagem e
para seus ouvintes Tais evidecircncias tanto do conhecimento Homeacuterico quando da memoacuteria
acuacutestica que Parmecircnides insere em sua poesia se conectam ao fato de que ele compunha
tambeacutem formularmente em hexacircmetros dactiacutelicos Mais uma vez ressaltamos se Xenoacutefanes e
Heraacuteclito se distanciam de Homero Parmecircnides faz uma reaproximaccedilatildeo
Outra expressatildeo recorrente e que remete a essa espeacutecie de autoridade que o poema
busca eacute φράζεσθαι ἄνωγα que aparece 6 vezes na Odisseia Poderiacuteamos citar por exemplo
Od 1269 onde a deusa Atena diz a Telecircmaco οἷσιν ἐνὶ μεγάροισι σὲ δὲ φράζεσθαι ἄνωγα
(em seu palaacutecio jaacute a ti peccedilo que ponderes) tendo seu correlato observaacutevel em DK 28 B 6 v 2
Eacute o argumento da autoridade divina Mourelatos (2008 p 9) ainda apresenta em sua obra uma
segunda tabela de correlatos homeacutericos com expressotildees paralelas mas natildeo exatas Ele
argumenta expressando de forma sinteacutetica a tese aqui jaacute lembrada de que Parmecircnides possuiacutea
um ouvido muito bem treinado para as passagens homeacutericas o que indica seu status de haacutebil
estudioso e sabedor das frases orais de Homero ldquoTaken togheter these two tables show that
Parmenides had a fairly good ear for the phraseology of the early epicrdquo
De fato eacute possiacutevel ler o poema de Parmecircnides agrave luz da heranccedila homeacuterica apresentadas
as conexotildees formulares os correlatos de enredo as conexotildees com as divindades elencadas em
ambos os textos Parmecircnides repetiu expressotildees formulares alusivas agrave eacutepica homeacuterica talvez
para construir certa familiaridade para o puacuteblico que juntou a essa estrateacutegia eacutepica uma gama
de novos conceitos e ressignificaccedilotildees de termos jaacute consolidados na liacutengua grega poreacutem
construindo grande abstraccedilatildeo conceitual tratando da problemaacutetica do ser
Podemos parecer prolixos ao dedicar essas paacuteginas a Parmecircnides natildeo sendo este autor
um objeto direto de nossa tese Natildeo eacute um objeto direto mas estaacute presente em diversas conexotildees
entre a filosofia e poesia Justificamos sua inserccedilatildeo aqui e em outros momentos pela
necessidade de apontarmos o fato de que natildeo podemos ser reducionistas ao apontar uma
diferenccedila essencial entre a poesia e filosofia Parmecircnides traz luz para essa questatildeo aleacutem de
170
exemplificar tatildeo bem a fusatildeo entre filosofia e o eacutepos Principalmente ao fazer um contraponto
a Xenoacutefanes e Heraacuteclito estes que iratildeo apresentar uma busca pelo κλέος tanto textual como
conceitual algo que somente podemos supor em Parmecircnides
85 CRIacuteTICOS OU DEFENSORES DA POESIA EacutePICA A CRIACcedilAtildeO
CONCEITUAL DOS PREacute-SOCRAacuteTICOS
De trecircs maneiras distintas Xenoacutefanes Parmecircnides e Heraacuteclito se aproximam ou se
distanciam da poesia Dioacutegenes Laeacutercio atribui a Xenoacutefanes o fazer do ῥαψῳδέω de
Parmecircnides segundo tambeacutem Dioacutegenes se diz que filosofava poeticamente (διὰ ποιημάτων
φιλοσοφεῖ) ou segundo a Suda se expressava na forma eacutepica (ἔγραψε δὲ φυσιολογίαν δι
ἐπῶν) e Heraacuteclito segundo a Suda escreveu muito em estilo poeacutetico (καὶ ἔγραψε πολλὰ
ποιητικῶς) aleacutem da obscuridade como uma espeacutecie de estilo descrita por Dioacutegenes Vejamos
de forma sinteacutetica
Tabela 6 ndash as atividades criativas de Xenoacutefanes Parmecircnides e Heraacuteclito
Pensador Descriccedilatildeo da atividade
criativa relacionada agrave poesia
Fonte
Xenoacutefanes ἀλλὰ καὶ αὐτὸς ἐρραψώιδει τὰ ἑαυτοῦ (mas ele mesmo recitava seus proacuteprios poemas)
Dioacutegenes Laeacutercio
Parmecircnides καὶ αὐτὸς δὲ διὰ ποιημάτων φιλοσοφεῖ καθάπερ Ἡσίοδός τε καὶ Ξενοφάνης καὶ Ἐμπεδοκλῆς E ele proacuteprio filosofou em versos como fizeram Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Empeacutedocles ἔγραψε δὲ φυσιολογίαν δι ἐπῶν Escreveu sobre filosofia natural em versos
Dioacutegenes Laeacutercio e Suda
Heraacuteclito καὶ ἔγραψε πολλὰ ποιητικῶς (e escreveu muito em estilo poeacutetico)
Suda
171
Satildeo indiacutecios e classificaccedilotildees da Antiguidade que colocam a relaccedilatildeo desses pensadores
com a tradiccedilatildeo eacutepica mas aleacutem disso constroem uma fama e recepccedilatildeo desses autores em
conjunto com as atividades poeacuteticas seja para fixarem-se nelas seja para delas se distanciarem
Ao se aproximarem ou distanciarem os pensadores aqui analisados criaram suas estruturas
conceituais que perseveraram na histoacuteria do pensamento A produccedilatildeo conceitual destes trecircs preacute-
socraacuteticos se afirma como atividade criativa
Como apresentamos em seus respectivos textos estas atividades criativas conectam-se
aos conceitos que esses pensadores conceberam e apresentaram ao debate puacuteblico de sua eacutepoca
cada um agrave sua maneira Seja ao apresentar uma nova moralidade seja descrever a realidade
todos eles tiveram que lanccedilar suas ideias no debate puacuteblico teoacuterico (e muitas vezes poeacutetico)
Daiacute a importacircncia de enxergarmos a potecircncia da atividade criativa desses autores assim como
o proacuteprio mundo antigo enxergou
O debate preacute-socraacutetico em torno do eacutepos natildeo se esgota em Parmecircnides Xenoacutefanes e
Heraacuteclito mas aqui para nossa tese torna-se importante as relaccedilotildees que podem ser feitas nas
interlocuccedilotildees entre os pares Xenoacutefanes e Parmecircnides Heraacuteclito e Parmecircnides tendo como
norte a eacutepica de Homero e Hesiacuteodo Podemos assim resumir
Tabela 7 ndash Interlocuccedilotildees entre Xenoacutefanes e Parmecircnides Heraacuteclito e Parmecircnides
Xenoacutefanes e Parmecircnides Heraacuteclito e Parmecircnides
- Se aproximam pela questatildeo eleata da
unidade
- Se distanciam frente agrave inserccedilatildeo do papel dos
deuses dentro de seus respectivos textos
- Ambos tentam dar soluccedilotildees falando de uma
unidade da realidade
- Heraacuteclito se distancia de Parmecircnides pelo
estilo e pela criacutetica agrave eacutepica (veremos tambeacutem
que Parmecircnides parece fazer uma apologia a
Hesiacuteodo enquanto Heraacuteclito refuta o poeta
beoacutecio)
172
Essa tensatildeo de aproximaccedilatildeo e negaccedilatildeo em busca de uma produccedilatildeo conceitual se daacute
tambeacutem na interlocuccedilatildeo de alguns pensadores preacute-socraacuteticos com Hesiacuteodo Eacute o que trataremos
agora
173
90 PRESSUPOSTOS DO ΚΛΕΟΣ - HESIacuteODO NOS FRAGMENTOS PREacute-
SOCRAacuteTICOS
Como um dos objetivos dessa tese eacute associar as duas retomadas criativas do κλέος
utilizando a criacutetica que Heraacuteclito e Xenoacutefanes fazem do poeta Hesiacuteodo se faz necessaacuteria uma
anaacutelise de como Hesiacuteodo se apresenta nos fragmentos preacute-socraacuteticos A recepccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute
observada em vaacuterias passagens dos fragmentos preacute-socraacuteticos em diversos autores Isso nos
faz crer que o poeta era de fato uma voz a ser reproduzida e criticada no ambiente intelectual
desses pensadores Natildeo somente como um autor a ser citado pelos filoacutesofos preacute-socraacuteticos mas
tambeacutem como uma forccedila teoacuterica de seu tempo Eacute o que nos indicam os proacuteprios fragmentos que
seriam de Hesiacuteodo na ediccedilatildeo Diels e Kranz atraveacutes da numeraccedilatildeo DK 4 B 1 ateacute B 8 Satildeo as
chamadas poesias astroloacutegicas do seacuteculo VI aC que retomam um Hesiacuteodo cosmoloacutegico Um
exemplo disso eacute fragmento DK 4 B 8 que trata da ldquoum grande terremotordquo que fez surgir o
Estreito de Messina por mais que a explicaccedilatildeo de Hesiacuteodo se decirc muito mais por sua teologia
jaacute consolidada A teologia de Hesiacuteodo eacute reproduzida por Diodoro da Siciacutelia171
Todavia para ampliarmos nosso debate acerca do κλέος de Hesiacuteodo no mundo preacute-
socraacutetico veremos agora como alguns pensadores retrataram esse poeta dando a devida ecircnfase
a Heraacuteclito e Xenoacutefanes Comeccedilamos com Xenoacutefanes
91 HESIacuteODO TEOacuteLOGO CENSURAacuteVEL ARGUMENTO MORAL E ARGUMENTO
TEOLOacuteGICO
Como jaacute comentamos Xenoacutefanes critica a educaccedilatildeo delimitada pela fantasia eacutepica de
forma especiacutefica em trechos em que ele questiona o papel dos Titatildes Centauros Gigantes
171 B 8 183 Diodor IV 85 4 [Meerenge v Messina] [I 40 25 App] ἔνιοι δὲ λέγουσι σεισμῶν μεγάλων γενομένων διαρραγῆναι τὸν αὐχένα τῆς ἠπείρου καὶ γενέσθαι τὸν πορθμόν διειργούσης τῆς θαλάσσης τὴν ἤπειρον ἀπὸ τῆς νήσου Ἡ δὲ ὁ ποιητής φησι τοὐναντίον ἀναπεπταμένου τοῦ πελάγους Ὠρίωνα προσχῶσαι τὸ κατὰ τὴν Πελωρίδα κείμενον [I 40 30] ἀκρωτήριον καὶ τὸ τέμενος τοῦ Ποσειδῶνος κατασκευάσαι τιμώμενον ὑπὸ τῶν ἐγχωρίων διαφερόντως ταῦτα δὲ διαπραξάμενον εἰς Εὔβοιαν μεταναστῆναι κἀκεῖ κατοικῆσαι˙ διὰ δὲ τὴν δόξαν ἐν τοῖς κατ οὐρανὸν ἄστροις καταριθμηθέντα τυχεῖν ἀθανάτου μνήμης (Diodor IV 85 4 [Sobre o Estreito de Messina] Alguns dizem que tendo produzido grandes terremotos o istmo do continente quebrou e o estreito se formou enquanto o mar separava o continente da ilha Mas o poeta Hesiacuteodo diz o contraacuterio e eacute isso sendo mar aberto Orion esticou o promontoacuterio na cabeccedila Pelionus e ergueu o templo de Posidon homenageado de maneira muito especial pelos habitantes Ele tambeacutem diz que depois de completar esses feitos Orion passou para Eubeia e ficou laacute Incluiacutedo no grupo de estrelas para sua fama ele obteve a memoacuteria eterna) Trad adaptada de G Giannantoni
174
fantasias que afastam do verdadeiro conhecimento divino Ao criticar os Gigantes Titatildes e
Centauros Xenoacutefanes poderia estar se referindo a Homero como tambeacutem jaacute comentamos Mas
tambeacutem a Hesiacuteodo Principalmente por Hesiacuteodo ter dedicado parte da sua Teogonia agrave gecircnese
dessas criaturas Xenoacutefanes ao prefigurar sua teoria contraacuteria agrave multiplicidade dos deuses
discorreu tambeacutem contra agrave multiplicidade divina de Homero e Hesiacuteodo ainda que de forma
incipiente Principalmente a de Hesiacuteodo que tratou desta multiplicidade de forma sistemaacutetica
e genealoacutegica Vejamos novamente os seguintes versos das suas Elegias em DK 21 B 1 v 13
e na sequecircncia 21-24
χρὴ δὲ πρῶτον μὲν θεὸν ὑμνεῖν εὔφρονας ἄνδρας (Eacute preciso primeiro que homens alegres cantem ao deus)
οὔτι μάχας διέπων τιτήνων οὐδὲ γιγάντων οὐδὲ lt gt Κενταύρων πλάσμαltταgt τῶν προτέρων ἢ στάσιας σφεδανάς τοῖς οὐδὲν χρηστὸν ἔνεστιν θltεῶgtν ltδὲgt προμηθείην αἰὲν ἔχειν ἀγαθήν (e natildeo os relatos das batalhas dos Titatildes nem dos Gigantes nem dos Centauros invenccedilotildees dos ancestrais ou as rixas violentas neles nenhum ganho haacute mas ter sempre veneraccedilatildeo aos deuses eacute um bem)
Nos deparamos aqui simultaneamente com referecircncias a um soacute deus (θεὸν ὑμνεῖν) ou a
vaacuterios deuses (como eacute possiacutevel traduzir mesmo que o fragmento seja de leitura duvidosa
θltεῶgtν ltδὲgt προμηθείην) Mesmo que o fragmento de Xenoacutefanes descreva vaacuterios deuses esta
tese parece mudar no transcorrer da sua obra Ele parece preconizar um deus mais perfeito mais
correto tal como daacute a entender em seu fragmento DK 21 B 23 εἷς θεός ἔν τε θεοῖσι καὶ
ἀνθρώποισι μέγιστος οὔτι δέμας θνητοῖσιν ὁμοίιος οὐδὲ νόημα (Um uacutenico deus entre deuses
e homens o maior em nada no corpo semelhante aos mortais nem no pensamento) Desta
contradiccedilatildeo aparente um ou vaacuterios deuses natildeo podemos derivar um afrouxamento da criacutetica a
Hesiacuteodo ou Homero Pelo contraacuterio
Este deus teoacuterico que Xenoacutefanes propotildee serve como antiacutedoto daquilo que Homero e
Hesiacuteodo trazem em suas bagagens eacutepicas a) ldquoum uacutenico deusrdquo (εἷς θεός) estabelecendo aqui
talvez um monoteiacutesmo172 b) ldquoentre deuses e homens o maiorrdquo (ἔν τε θεοῖσι καὶ ἀνθρώποισι
172 A questatildeo acerca do monoteiacutesmo ou natildeo de Xenoacutefanes aqueceu o debate acadecircmico nas uacuteltimas deacutecadas Como aponta Lesher (2001 p 104) ldquoThe ideal commentary on fragment 23 would do three things establish whether Xenophanes here espoused monotheism explain how the lsquoone greatest godrsquo alluded to in line 1 related to the physical universe and last explain how this god was lsquonot like mortals in deacutemas or noacuteemarsquo But since the centuries have seen a plethora of stoutly argued and generally incompatible answers on each of these points the
175
μέγιστος) estabelecendo tambeacutem aqui um aspecto qualitativo entre os deuses( mesmo natildeo
contradizendo aqui Homero e Hesiacuteodo veremos que Xenoacutefanes apresenta uma visatildeo diversa
desses poetas) c) ldquoem nada no corpo semelhante aos mortaisrdquo (οὔτι δέμας θνητοῖσιν ὁμοίιος)
tese contraacuteria agrave antropomorfizaccedilatildeo grega d) ldquonem no pensamentordquo (οὐδὲ νόημα) tese que
contrapotildeem o pensamento humano a um suposto pensamento divino
Em resumo compreende-se pelo que apresentamos ateacute agora Xenoacutefanes compotildee uma
estrutura tradicional do verso poeacutetico tecendo uma criacutetica aberta agraves histoacuterias fantasiosas que
pregavam falsas moralidades construindo assim (segundo a b c e d) uma tendecircncia teoacuterica de
se pensar numa nova teologia
Xenoacutefanes natildeo para por aiacute Ele continua sua criacutetica moral e teoloacutegica individualizando
e personificando seus alvos a saber os poetas Hesiacuteodo e Homero Como nosso objetivo maior
aqui eacute o de demonstrar o Hesiacuteodo no acircmbito preacute-socraacutetico e sua relaccedilatildeo com o κλέος podemos
dizer que se observam em Xenoacutefanes duas principais linhas criacuteticas agrave memoacuteria cultural de
Hesiacuteodo uma com certo conteuacutedo moral outra com certo conteuacutedo teoloacutegico Vejamos
primeiramente a de cunho moral em DK 21 B 11 e 12173 respectivamente
πάντα θεοῖσ ἀνέθηκαν Ὅμηρός θ Ἡσίοδός τε ὅσσα παρ ἀνθρώποισιν ὀνείδεα καὶ ψόγος ἐστίν κλέπτειν μοιχεύειν τε καὶ ἀλλήλους ἀπατεύειν (Homero e Hesiacuteodo atribuiacuteram todas as coisas aos deuses Que entre os homens satildeo reprovaacuteveis e de censura Como roubar cometer adulteacuterio mutuamente se enganarem)
῞Ομηρος δὲ καὶ ῾Ησίοδος κατὰ τὸν Κολοφώνιον Ξενοφάνη ldquoὡς πλεῖστ(α) ἐφθέγξαντο θεῶν ἀθεμίστια ἔργα κλέπτειν μοιχεύειν τε καὶ ἀλλήλους ἀπατεύεινrdquo Κρόνος μὲν γὰρ ἐφ᾿ οὗ τὸν εὐδαίμονα βίον γεγονέναι λέγουσι τὸν πατέρα ἠνδροτόμησε καὶ τὰ τέκνα κατέπιεν Ζεύς τε ὁ τούτου παῖς ἀφελόμενος αὐτὸτῆς ἡγεμονίας ldquoγαίης νέρθε καθεῖσεrdquo (De acordo com Xenoacutefanes de Colofatildeo Homero e Hesiacuteodo fizeram alarde de inuacutemeros atos criminosos dos deuses roubar trair e enganar uns aos outros [Xenoacutefanes B12 DK] Com efeito Cronos (e dizem que a vida era soacute felicidade em seu tempo) castrou o pai e devorou os filhos e quando foi deposto pelo seu proacuteprio filho Zeus este pocircs [Crono] lsquoembaixo da terrarsquo [Il 14 204 trad Carlos Alberto Nunes])174
ideal commentary may be out of reachrdquo Por mais que o debate ocorra como tentamos mostrar no texto principal acreditamos que a criacutetica agrave falsa moralidade de Hesiacuteodo e Homero permanece 173 Inserimos natildeo somente o fragmento B 12 em si mas tambeacutem o comentaacuterio de Sexto Empiacuterico que constitui o seu contexto e trata possivelmente de passagens da Teogonia e Iliacuteada o que nos interessa muito na argumentaccedilatildeo 174 Trad Joseane Prezotto
176
A primeira percepccedilatildeo a se levantar eacute que ambos os fragmentos possuem uma
semelhanccedila de argumentos e dos verbos usados para as atitudes imorais dos deuses descritas
por ambos os poetas As oraccedilotildees κλέπτειν μοιχεύειν τε καὶ ἀλλήλους ἀπατεύειν (roubar
cometer adulteacuterio mutuamente se enganarem) se repete em ambas as passagens Tal
semelhanccedila se explica por virem ambos os fragmentos de um mesmo autor numa mesma obra
mas em capiacutetulos diferentes trata-se de Sexto Empiacuterico Contra os professores 1 289 e 9 193
A criacutetica levantada por Xenoacutefanes parte do pressuposto de que a antropomorfizaccedilatildeo dos deuses
eacute um processo imoral pois as accedilotildees humanas podem portar em si atos de imoralidade as dos
deuses natildeo
O contraacuterio tambeacutem eacute vaacutelido como criacutetica DK 21 B 119-24 jaacute demonstrou isso Por
isso satildeo censuraacuteveis e reprovaacuteveis ὀνείδεα καὶ ψόγος palavras que carregam no seu significado
a refutaccedilatildeo e reprovaccedilatildeo moral Ao falar de censura (ψόγος) Xenoacutefanes faz um julgamento
moral e desqualifica os outros poetas Hesiacuteodo se coaduna com essa imoralidade ao repetir em
seus versos tais atributos Por isso junto a Homero deve ser criticado
No fragmento DK 21 B 12 observamos Sexto Empiacuterico ilustrar de forma didaacutetica duas
passagens que expressam essa antropomorfizaccedilatildeo dos deuses uma hesioacutedica outra homeacuterica
Sexto Empiacuterico parece parafrasear as passagens notoacuterias da Th 180-182 e 459-460 φίλου δ
ἀπὸ μήδεα πατρὸς ἐσσυμένως ἤμησε πάλιν δ ἔρριψε φέρεσθαι ἐξοπίσω (E do pai o pecircnis
ceifou com iacutempeto e lanccedilou-o a esmo para traacutes) e καὶ τοὺς μὲν κατέπινε μέγας Κρόνος ὥς τις
ἕκαστος νηδύος ἐξ ἱερῆς μητρὸς πρὸς γούναθ᾽ ἵκοιτο (E engolia-os o grande Crono tatildeo logo
cada um do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos) que colocam Crono numa posiccedilatildeo
quase que anedoacutetica de imoralidade algo deploraacutevel para Xenoacutefanes E da mesma forma [pocircs
Crono] ldquoembaixo da terra fecundardquo na versatildeo homeacuterica eacute outra passagem que coloca os deuses
numa situaccedilatildeo vexatoacuteria e repugnante de uma celeuma familiar
Sexto Empiacuterico retoma entatildeo duas passagens conhecidas pela tradiccedilatildeo como se o autor
que repete esse fragmento quisesse apresentar as duas concepccedilotildees poeacuteticas assim como os
versos de Xenoacutefanes tambeacutem apresentam Sexto Empiacuterico manteve um paralelo entre os dois
poetas assim como o fragmento propotildee
Mais do que isso segundo Koning (2010 p 82) Xenoacutefanes foi o primeiro autor grego
a desenhar um paralelo entre Homero e Hesiacuteodo criticando severamente os dois poetas
segundo a leitura que esse autor faz do fragmento DK 21 B 11 Afirma ainda Koning que a
177
primeira linha do fragmento natildeo atesta contra Hesiacuteodo e Homero pois de fato esses autores
antigos caminham na mesma direccedilatildeo dando sentido e loacutegica ao mundo atraveacutes dos deuses
traccedilo que por exemplo jaacute foi descrito por Heroacutedoto em Hist 2532175
Mas jaacute na virada do segundo verso segundo Koning vemos que πάντα indica uma
reprimenda moral melhor elaborada com a continuaccedilatildeo da terceira linha (com roubar
adulteacuterios enganos reciacuteprocos) Tal procedimento argumentativo lembra Koning eacute
encontrado por exemplo na estrutura geral do Certame uma espeacutecie de movimento de ldquotoma-
laacute-daacute-caacuterdquo de argumentaccedilatildeo176 Koning resume seus argumentos atraveacutes da seguinte ideia a
partir de Xenoacutefanes teria a tradiccedilatildeo tratado Homero e Hesiacuteodo como competidores como poetas
que competem pela melhor descriccedilatildeo da realidade
Tal fato177 para Koning se evidencia pelo tratamento dado por Xenoacutefanes a Hesiacuteodo
Enquanto a tradiccedilatildeo muitas vezes trata Hesiacuteodo como um filoacutesofo natural ou ao menos um
pensador da ordem do mundo Xenoacutefanes tende a vecirc-lo como um mal teoacuterico a ser superado
Por isso a desqualificaccedilatildeo moral de Hesiacuteodo operada por Xenoacutefanes A desqualificaccedilatildeo eacute clara
sendo que o argumento do erro moral de Hesiacuteodo pode ser certamente colocado como uma
caracteriacutestica proacutepria da recepccedilatildeo que Xenoacutefanes faz do poeta beoacutecio Xenoacutefanes possivelmente
alterou a visatildeo antiga da relaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero e sua criacutetica continua clara Eacute o que
chamamos de argumento de desqualificaccedilatildeo moral
175 Trata-se do trecho Ἡσίοδον γὰρ καὶ Ὅμηρον ἡλικίην τετρακοσίοισι ἔτεσι δοκέω μευ πρεσβυτέρους γενέσθαι καὶ οὐ πλέοσι οὗτοι δὲ εἰσὶ οἱ ποιήσαντες θεογονίην Ἕλλησι καὶ τοῖσι θεοῖσι τὰς ἐπωνυμίας δόντες καὶ τιμάς τε καὶ τέχνας διελόντες καὶ εἴδεα αὐτῶν σημήναντες (ldquoHomero e Hesiacuteodo que viveram quatrocentos anos antes de mim foram os primeiros a descrever em versos uma teogonia a dar para os gregos os sobrenomes dos deuses definir o seu culto e funccedilotildees e a traccedilar-lhes o retratordquo) Trad Pierre Henri Larcher (adaptada) Outro fragmento ligado agrave doutrina pitagoacuterica exemplifica de forma contraacuteria essa suposta relaccedilatildeo de harmonia entre Hesiacuteodo Homero e os deuses Trata-se de DL 82 φησὶ δ᾽ Ἱερώνυμος κατελθόντα αὐτὸν εἰς ᾄδου τὴν μὲν Ἡσιόδου ψυχὴν ἰδεῖν πρὸς κίονι χαλκῷ δεδεμένην καὶ τρίζουσαν τὴν δ᾽ Ὁμήρου κρεμαμένην ἀπὸ δένδρου καὶ ὄφεις περὶ αὐτὴν ἀνθ᾽ ὧν εἶπον περὶ θεῶν (ldquoJerocircnimo diz que quando desceu ao Hades viu a alma de Hesiacuteodo presa a um pilar de bronze e gaguejando e a alma de Homero pendia de uma aacutervore com serpentes retorcendo-se sobre ela sendo esta a sua puniccedilatildeo pelo que eles haviam dito sobre os deusesrdquo) Trad adaptada de R D Hicks 176 ldquo[hellip] this strategy common in archaic poetry reminds one of the sympotic game of amphiboloi gnomai in which the first speaker composes a hexameter verse containing a problem which the next speaker has to resolve in a second verserdquo (KONING 2010 p 84) 177 ldquoMoreover that he thought of Hesiod and Homer as comparable is clearly shown by fragment 11 I suggest this lsquocouplingrsquo is caused by Xenophanesrsquo explicit refusal to turn Hesiod into a natural philosopher he shows none of the Milesian willingness to interpret at least part of the Theogony as allegorical The Hesiodic gods are not regarded as principles substances or elements for it is the anthropomorphism of the Hesiodic and Homeric gods that Xenophanes wishes to reject Xenophanes thus deliberately avoids modernizing Hesiod by means of allegory and thus presents him as a poet instead of a thinker a poet belonging to the outdated paradigm of Muses and monstersrdquo (KONING 2010 p 206)
178
Ao desqualificar o trato de Hesiacuteodo e Homero frente ao panteatildeo dos deuses Xenoacutefanes
o faz tambeacutem por uma necessidade de atribuir valor racional agrave sua tese da inviabilidade de
darmos atributos humanos aos divinos Eacute aquilo que chamariacuteamos o argumento teoloacutegico de
Xenoacutefanes Acrescenta a esse argumento teoloacutegico uma primeira racionalizaccedilatildeo do todo divino
usando a loacutegica
Xenoacutefanes usa seus versos em prol da argumentaccedilatildeo que no miacutenimo influenciaraacute a
tradiccedilatildeo eleata a respeito do ser Essa desqualificaccedilatildeo da antropomorfizaccedilatildeo dos deuses gira em
torno de um argumento baacutesico que como jaacute dissemos eacute a impossibilidade de atributos
mundanos a personagens divinos A base desta criacutetica de Xenoacutefanes eacute de que cada homem cria
deuses agrave sua imagem e semelhanccedila Por isso tanto Homero quanto Hesiacuteodo satildeo maus
educadores pois criam deuses de certa forma imorais e sendo assim natildeo ensinam e natildeo
educam mas poluem os atos humanos com imoralidade Esse proto-monoteiacutesmo indica aquilo
que seria a grande questatildeo monista dos primeiros filoacutesofos a questatildeo do uno do ser que eacute
somente um
Ao analisar as passagens de DK 21 A 281-2 trecho da obra Sobre Melisso Xenoacutefanes
e Goacutergias em que Xenoacutefanes eacute trazido com o importante teoacuterico que fala da eternidade de
Deus de como ele sempre existiu e de que natildeo poderia ter ldquovindo a serrdquo de DK 21 A 332
retirado da obra de Hipoacutelito Refutaccedilatildeo de todas as heresias em que a voz de Xenoacutefanes eacute
trazida como um defensor tambeacutem da eternidade de Deus tambeacutem em DK 21 A 34
testemunho retirado da obra Acadecircmico de Ciacutecero onde mais uma vez o conceitual de
Xenoacutefanes defende a eternidade divina Podemos observar a tese de Xenoacutefanes que defende a
ideia de um deus que natildeo pode ser apenas imortal mas sim tem de ser eterno (ἀίδιος
sempiternus) e sendo assim nunca poderia ter nascido pois derivariacuteamos daiacute o fato de que em
algum momento natildeo teria existido Em especial DK 21 A 37 nos diz ἀγένητον καὶ ἀίδιον καὶ
ἄφθαρτον τὸν κόσμον (o mundo eacute ingerado eterno e impereciacutevel)
Natildeo eacute necessaacuterio enfatizar que essa tese contradiz as bases das teogonias arcaicas Por
outro lado se partirmos do axioma de que um deus eacute o ser mais poderoso que existe (DK 21 A
283-6) concluiacutemos necessariamente pela tese de um soacute deus jaacute que do contraacuterio nenhum deles
poderia ser o mais poderoso deus ou sendo-o que os outros natildeo poderiam ser considerados
deuses Ressaltamos eacute uma argumentaccedilatildeo de caraacuteter loacutegico que procura minar os elementos
primordiais da multiplicidade dos deuses encontrados em Homero e Hesiacuteodo
179
92 XENOacuteFANES CONTRA HESIacuteODO POR UMA NOVA FORMA DE POESIA E
CONHECIMENTO
Comentamos acerca de como Xenoacutefanes criticou a poesia arcaica mas como por outro
lado utilizou-se de recursos tradicionais da eacutepica principalmente no que tange agrave funccedilatildeo do
rapsodo a missatildeo de disseminar a fama pela Greacutecia que cabe ao indiviacuteduo poeta Xenoacutefanes
individualiza o debate criticando Homero e Hesiacuteodo estabelecendo talvez uma nova
perspectiva para observarmos de forma dialoacutegica o binaacuterio Homero-Hesiacuteodo como parte de
uma tradiccedilatildeo a ser superada Mas ainda podemos inserir mais alguns argumentos frente a essa
posiccedilatildeo criacutetica de Xenoacutefanes que para sustentar sua visatildeo teoloacutegica ataca mais um dos pilares
da poesia antiga Xenoacutefanes ataca a inspiraccedilatildeo poeacutetica da qual Hesiacuteodo eacute tambeacutem grande
representante atacando tambeacutem a capacidade do poeta de revelar as mentiras e as verdades
Devemos lembrar algo que trouxemos no capiacutetulo A voz autoral versificada que eacute a
proacutepria relaccedilatildeo de Hesiacuteodo com a inspiraccedilatildeo das Musas e em consequecircncia a relaccedilatildeo das
Musas com a garantia de veracidade do discurso Xenoacutefanes parece ir totalmente contra essa
ideia da inspiraccedilatildeo pelas Musas Eacute um argumento contra a revelaccedilatildeo divina na consagraccedilatildeo do
poeta hesioacutedico conhecida como Dichterweihe no sentido de que a revelaccedilatildeo divina natildeo eacute uma
forma de conhecimento aceitaacutevel Eacute o que podemos analisar no fragmento DK 21 B 18 οὔτοι
ἀπ᾿ ἀρχῆς πάντα θεοὶ θνητοῖσ᾿ ὑπέδειξαν ἀλλὰ χρόνωι ζητοῦντες ἐφευρίσκουσιν ἄμεινον (Os
deuses de iniacutecio natildeo mostram tudo aos mortais mas os que investigam com o tempo
descobrem o melhor)
Lesher (2001 p 152) lembra que talvez seja a expressatildeo ἀλλὰ χρόνωι ζητοῦντες uma
das primeiras narrativas dos preacute-socraacuteticos a apresentar uma feacute no progresso humano pelo
menos a classe daqueles que investigam (ζητοῦντες) Outra informaccedilatildeo importante que
observamos no fragmento eacute o nuacutecleo [ἀπ᾿ ἀρχῆς =gt ἀλλὰ =gt χρόνωι ζητοῦντες] que demonstra
a relaccedilatildeo do princiacutepio de investigaccedilatildeo tatildeo debatido entre os preacute-socraacuteticos com a ideia da
passagem do tempo Segundo Koning eacute um trecho de extrema relevacircncia para explicar o
pensamento do ldquoiniacutecio das coisasrdquo Tendo em vista a relaccedilatildeo de Xenoacutefanes com a eacutepica de
Hesiacuteodo o autor recorda que a expressatildeo ἐξ ἀρχῆς ocorre pelo menos 9 vezes na Teogonia
Xenophanes is arguing against poetic inspiration here and more specifically I think that of Hesiod He does not mention him explicitly but an examination
180
of the two other oppositions in the fragment makes it likely that the Dichterweihe should be considered as the intended subtext As the first of these oppositions we see how revelation is described as taking place ἀπ᾿ ἀρχῆς lsquofrom the beginningrsquo whereas proper investigation proceeds κρόνῶι lsquoin timersquo [] The expression ἐξ ἀρχῆς occurs nine times in the Th Οf special relevance are Th 45 e 115 where the expression is used twice for the Muses singing of the origin of the gods and the universe In Homer ἐξ ἀρχῆς occurs only four times (only Od) and is never connected to the Muses (in three cases the expression indicates the old age of Χenias The expression ἀπ᾿ ἀρχῆς does not occur in either Hesiod or Homer (KONING 2010 p 203)
Presenciamos nesse fragmento um verdadeiro argumento contra a inspiraccedilatildeo poeacutetica e
mais especificamente contra a inspiraccedilatildeo poeacutetica de Hesiacuteodo Mais do que isso o fragmento
critica a inspiraccedilatildeo imediata e enaltece a investigaccedilatildeo atraveacutes do tempo A expressatildeo ἀπ᾿ ἀρχῆς
eacute de fato muito importante pois representa aquilo que daacute uma espeacutecie de unidade temaacutetica agrave
tradiccedilatildeo preacute-socraacutetica dentro do pensamento tradicional da filosofia ou seja os preacute-socraacuteticos
estariam na busca pela ἀρχή (iniacutecio princiacutepio origem) Natildeo parece ser o caso de DK 21 B 18
A frase que cria o sentido de que os deuses ldquode iniacutecio natildeo mostram tudo aos mortaisrdquo pode ser
relacionada a outro fragmento de Xenoacutefanes DK 21 B 10 ἐξ ἀρχῆς καθ᾿ Ὅμηρον ἐπεὶ
μεμαθήκασι πάντες (Desde o princiacutepio todos tecircm aprendido segundo Homero) Ou seja nem
conhecer de imediato nem conhecer atraveacutes de Homero O conceito ἀρχή parece estar
relacionado nas duas frases mais ao sentido cronoloacutegico do que ao de um iniacutecio causal de todas
as coisas (observar o uso das palavras πάντα e πάντες) Eacute interessante como Xenoacutefanes usa
palavras semelhantes agraves empregadas por Homero e Hesiacuteodo ou por seus contemporacircneos preacute-
socraacuteticos mas atribui a elas o sentido proacuteprio da sua argumentaccedilatildeo moral teoloacutegica
O que estaacute sendo investigado (ζητοῦντες) com o tempo (χρόνωι) se descobre melhor
(ἐφευρίσκουσιν ἄμεινον) pois essa eacute a sequecircncia de investigaccedilatildeo que se espera de um pensador
que estaacute transitando de um momento poeacutetico para outro momento de maior rigor teoloacutegico Para
se distanciar dos poetas arcaicos como Hesiacuteodo Xenoacutefanes estabelece um rigor maior de
conhecimento e um novo trato com a realidade
Ressalta-se tambeacutem a expressatildeo τῶν προτέρων ldquodos ancestraisrdquo em DK 21 B1 v 22
encontrada nos versos 100-101 da Teogonia Μουσάων θεράπων κλεῖα προτέρων ἀνθρώπων
ὑμνήσει μάκαράς τε θεοὺς οἳ Ὄλυμπον ἔχουσιν (servo das Musas hineia a gloacuteria dos antigos
e os venturosos Deuses que tecircm o Olimpo) Expressatildeo que como jaacute citamos qualifica as poesias
que falam de Centauros Titatildes Gigantes invenccedilotildees dos antigos Talvez Xenoacutefanes estivesse se
181
referindo ao v 100 da Teogonia tambeacutem jaacute tratado aqui ou talvez Xenoacutefanes esteja querendo
superar o κλέος de outros antigos poetas tambeacutem
Outra criacutetica a Hesiacuteodo e agraves suas explicaccedilotildees teogocircnicas que para Xenoacutefanes natildeo se
enquadram agrave realidade pode ser encontrada em DK 21 B 35 ταῦτα δεδοξάσθω μὲν ἐοικότα
τοῖς ἐτύμοισι (Que tais coisas [poeacuteticas] sejam consideradas semelhantes agraves reais) O contexto
desse fragmento se daacute num simpoacutesio onde o personagem Amocircnio dentro do diaacutelogo de Plutarco
Conversaccedilotildees de simpoacutesio (Moralia 746 B) discursa sobre quantas satildeo as Musas e o porquecirc
dessa quantidade
O personagem Amocircnio tinha acabado de defender a tese de que eram nove as Musas
sendo oito delas responsaacuteveis pelas oito esferas dos planetas que rodeiam a Terra e uma nona
que tomou lugar e domiacutenio sobre a proacutepria Terra sendo responsaacutevel pela persuasatildeo pelos ditos
graciosos dos poetas e oradores Para fechar sua hipoacutetese Amocircnio conclui com uma citaccedilatildeo de
Piacutendaro (Piacutetica 113-14) agrave qual se sucede imediatamente a de Xenoacutefanes Natildeo fica claro o que
a personagem quer sugerir com isso Se seu discurso foi apenas de uma brincadeira poeacutetica
meramente parecida com a verdade se a citaccedilatildeo eacute irocircnica se estaria ele falando da poesia Em
Plutarco o fato de Amocircnio dizer essas palavras logo apoacutes a citaccedilatildeo de Piacutendaro pode sugerir
essas coisas mas infelizmente natildeo possuiacutemos o contexto original da citaccedilatildeo de Xenoacutefanes
De qualquer maneira Xenoacutefanes busca aquilo que eacute verdadeiro e real (ἐτύμοισι)
determinando as coisas que possuem um rigor racional diferentemente de Hesiacuteodo que
buscava somente o rigor das Musas para estabelecer o que era real e verdadeiro (ἐτύμοισιν) Eacute
como jaacute observamos em Th 27 ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα verso que tambeacutem
jaacute tratamos em A voz autoral versificada Os autores Kirk Raven e Schofield (2010) apontam
nesse fragmento de Xenoacutefanes exatamente as deficiecircncias do conhecimento humano no
contraste poeacutetico entre a ignoracircncia do poeta e a onisciecircncia de deus (KIRK RAVEN
SCHOFIELD 2010 p 185) Podemos concluir ao relacionarmos esses fragmentos com as
passagens de Hesiacuteodo que Xenoacutefanes parece ser muito mais ceacutetico em relaccedilatildeo agrave realidade e agrave
verdade natildeo aceitando prontamente a inspiraccedilatildeo poeacutetica como criteacuterio de verdade
Por mais que Xenoacutefanes tentasse se desvincular e criticar severamente o pensamento de
Hesiacuteodo parte da tradiccedilatildeo tomou Xenoacutefanes natildeo como um anti-Hesiacuteodo mas sim ambos como
um par duas figuras que representariam uma mesma tradiccedilatildeo de pensamento Eacute o que tambeacutem
afirma Koning (2012 p 206) ldquoThis is confirmed by the fragments of Heraclitus who does
separate them and treats only Homer as a poet but Hesiod as a natural philosopherrdquo Koning
182
ainda continua ldquoHeraclitus mentions Homer together with Archilochus whereas he lists
Hesiod among thinkers like Pythagoras Hecataeus and Xenophanesrdquo Koning estaacute fazendo
referecircncia ao fragmento DK 22 B 40 πολυμαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει Ἡσίοδον γὰρ ἂν
ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ Ἑκαταῖον (A polimatia natildeo instrui a
inteligecircncia Natildeo fosse assim teria instruiacutedo Hesiacuteodo e Pitaacutegoras Xenoacutefanes e Hecateu)
Por mais que Hesiacuteodo representasse a falsa e muacuteltipla representaccedilatildeo dos deuses eacute
segundo Heraacuteclito como observaremos de forma detalhada mais agrave frente junto ao proacuteprio
Xenoacutefanes o portador de um grande e variado saber uma πολυμαθίη (saber muacuteltiplo variado)
Esse grande saber talvez por inspiraccedilatildeo das Musas tece em Hesiacuteodo natildeo somente maacutes virtudes
e falsas especulaccedilotildees divinas mas em Xenoacutefanes um deus que eacute corolaacuterio de premissas loacutegicas
e condiz com a representaccedilatildeo moral que norteia sua obra
Estando Hesiacuteodo associado ou natildeo a Homero podemos concluir que Xenoacutefanes
desenvolve sua criaccedilatildeo conceitual exatamente contra a falsa moralidade de ambos contra a
falsa inspiraccedilatildeo e falsa conexatildeo com a realidade Mesmo que uma geraccedilatildeo posterior no caso
Heraacuteclito DK 22 B 40 coloque Hesiacuteodo ao lado de Xenoacutefanes em alguns assuntos
93 O POEMA DE PARMEcircNIDES E SUA ESTRUTURA EacutePICA HESIOacuteDICA
CRIacuteTICA A HERAacuteCLITO
Antes de apresentarmos Heraacuteclito como um forte opositor de Hesiacuteodo assim como foi
Xenoacutefanes vejamos como Parmecircnides parece adequar elementos de Hesiacuteodo em sua obra
Como sugerimos anteriormente Parmecircnides serve para mostrar que a recepccedilatildeo de
Hesiacuteodo em Heraacuteclito e Xenoacutefanes natildeo eacute fenocircmeno isolado no contexto preacute-socraacutetico Eacute
plausiacutevel pensar tambeacutem que Xenoacutefanes tenha influenciado Parmecircnides como tambeacutem
notamos anteriormente Atribui-se a Xenoacutefanes natildeo apenas a tese de que deus eacute uno e
sempiterno mas tambeacutem a de que o cosmos eacute ingerado eterno e impereciacutevel (ἀγένητον ἀίδιον
e ἄφθαρτον) conforme DK 21 A 37 Parmecircnides poderia estar usando a influecircncia simultacircnea
de Hesiacuteodo e Xenoacutefanes
Mais uma vez se acreditarmos em Karl Reinhardt Heraacuteclito pode ser lido natildeo soacute como
uma resposta ao problema do contraste aparente entre a multiplicidade das aparecircncias e a
unidade real do todo (problema colocado pelos eleatas) mas tambeacutem como uma resposta
estiliacutestica agrave eacutepica filosoacutefica de Xenoacutefanes e de Parmecircnides
183
Como jaacute apresentamos tambeacutem eacute possiacutevel imaginar que Parmecircnides tinha certas
passagens de Homero ldquodecoradasrdquo e o mesmo podemos dizer quanto a passagens de Hesiacuteodo
Parmecircnides apresenta em vaacuterias passagens de fragmentos diferentes uma aproximaccedilatildeo muito
forte com o poeta Hesiacuteodo Tanto em suas foacutermulas o que demonstra seu conhecimento
mnemocircnico do poeta quanto em seu conteuacutedo o que demonstra que Parmecircnides queria de certa
forma tambeacutem superar o Hesiacuteodo teoacuterico que descreve o mundo agrave sua maneira Tal fato pode
ser identificado tambeacutem por Aristoacuteteles colocar ambos numa discussatildeo teoacuterica acerca da
origem de todas as coisas mais notoriamente no livro α da Metafiacutesica como iremos observar
mas natildeo somente por isso
Uma primeira comparaccedilatildeo inevitaacutevel eacute associar o proecircmio da Teogonia com o suposto
proecircmio do poema de Parmecircnides Observamos o caraacuteter pessoal e individual assim como foi
o da apariccedilatildeo de Hesiacuteodo na Teogonia pois o jovem personagem do poema de Parmecircnides
tambeacutem se utiliza do pronome de primeira pessoa Se Hesiacuteodo eacute iniciado pelas Musas e foi
conduzido pelas filhas de Zeus e da Memoacuteria o jovem descrito por Parmecircnides eacute conduzido
pelas filhas de Heacutelio se colocando assim como Hesiacuteodo numa espeacutecie de rito de passagem
narrado em primeira pessoa que no caso do poeta Hesiacuteodo buscava a arte poeacutetica enquanto na
figura do personagem de Parmecircnides a busca eacute por um meacutetodo que garanta a verdade
Poreacutem seria completamente incorreto fazer uma oposiccedilatildeo radical entre os dois nesse
campo Afinal se Parmecircnides faz a deusa dizer ao jovem que lhe eacute necessaacuterio aprender ldquoo
coraccedilatildeo inabalaacutevel da Verdade persuasivardquo (DK 28 Β 1 v 29 Ἀληθείης εὐπειθέος ἀτρεμὲς
ἦτορ) em Hesiacuteodo as Musas indicam saber dizer ficccedilotildees parecidas com fatos e quando querem
cantar coisas verdadeiras (Th 27-28) sem contar a intenccedilatildeo que o proacuteprio Hesiacuteodo revela em
Os trabalhos e os dias 10 de dizer a Perses a coisas como satildeo Edwin Dolin (1962) tambeacutem
descreve em seu artigo a relaccedilatildeo entre as filhas da Memoacuteria no texto da Teogonia e as filhas de
Heacutelio em Parmecircnides Dolin justifica essa relaccedilatildeo no uso de vocativos presentes tanto em
Teogonia vv 26-28 quanto em DK 28 B 1 vv 26-30 curiosamente em ambos os casos
ocorrendo a partir do verso 26
Mourelatos (2008) tambeacutem apresenta uma extensa lista com as comparaccedilotildees e paralelos
entre a obra de Hesiacuteodo e Parmecircnides inclusive essa conexatildeo entre as Musas e as Heliacuteades A
conexatildeo se daacute basicamente ao contrapormos dois versos de Parmecircnides e Hesiacuteodo Eacute o que
acontece no verso DK 28 B1 v 9 em que Parmecircnides descreve Ἡλιάδες κοῦραι em possiacutevel
comparaccedilatildeo a Th v 25 onde Hesiacuteodo descreve Ὀλιμπιάδες κοῦραι Vejamos em DK 28 B 1
184
v 9-10 Ἡλιάδες κοῦραι προλιποῦσαι δώματα Νυκτός (as filhas do Sol deixando as moradas
da Noite)178 E em Th v 25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο (Musas olimpiacuteades
virgens de Zeus porta-eacutegide) As Heliaacutedes conduzem o personagem aleacutem dos domiacutenios da
Noite enquanto as Musas moradoras do Olimpo fizeram o caminho inverso e vieram ateacute
Hesiacuteodo formando-o como poeta Satildeo as jovens donzelas que em ambos os casos estabelecem
um rito de passagem miacutetico tornando os personagens aptos a contemplar uma espeacutecie de
ensinamento e chegar a uma maturidade
Eacute possiacutevel que tenha sido intencional por parte de Parmecircnides uma inversatildeo querendo
sugerir uma postura mais ativa por parte de sua personagem que se movimenta em direccedilatildeo agrave
verdade enquanto Hesiacuteodo eacute abordado pelas Musas quando na atividade de pastor No primeiro
verso do proecircmio de Parmecircnides o thyacutemos pode muito bem ser o do proacuteprio jovem ansioso
por fazer sua viagem Notaacutevel tambeacutem que ele eacute bem recebido pela deusa transportado como
eacute num carro digno dos aristocraacuteticos heroacuteis homeacutericos enquanto Hesiacuteodo eacute interpelado entre
ldquoos pastores ruacutesticos vis vergonhas estocircmagos apenasrdquo Esses correlatos entre Parmecircnides e
Hesiacuteodo acabam por desafiar a criacutetica proposta por Xenoacutefanes admitindo que Parmecircnides
conhecia o texto de Xenoacutefanes admitindo que Heraacuteclito eacute posterior a Parmecircnides aquele teria
se colocada criticamente contra o pensador de Eleia
Ainda relacionando a obra de Parmecircnides agrave de Hesiacuteodo natildeo poderiacuteamos deixar de levar
em consideraccedilatildeo o protagonismo da deusa Δίκη (Justiccedila) como a juiacuteza do poacutertico que separa
os caminhos do Dia e da Noite presentes nos primeiros versos do poema de Parmecircnides Podem
ser feitas vaacuterias conexotildees com a deusa Δίκη de Hesiacuteodo e seu papel na justiccedila em Os trabalhos
e os dias Diz Parmecircnides em seu poema
Ἔνθα πύλαι Νυκτός τε καὶ Ἤματός εἰσι κελεύθων καί σφας ὑπέρθυρον ἀμφὶς ἔχει καὶ λάινος οὐδός αὐταὶ δrsquo αἰθέριαι πλῆνται μεγάλοισι θυρέτροις τῶν δὲ Δίκη πολύποινος ἔχει κληῖδας ἀμοιϐούς (Aiacute estaacute o portal que separa os caminhos da Noite e do Dia encimado por um dintel e um umbral de pedra o portal eteacutereo fechado por enormes batentes dos quais a Justiccedila vingadora deteacutem as chaves que os abrem e fecham)179
178 Trad de Joseacute Cavalcante de Souza 179 Trad Joseacute Gabriel Trindade Santos (adaptada)
185
Marcelo Pimenta Marques (1997) descreve a presenccedila da δίκη em Parmecircnides em trecircs
momentos proacuteprios O primeiro momento eacute exatamente o trecho acima quando o heroacutei chega
ateacute o portal que separa o Dia da Noite onde a Deusa claramente faz uma mediccedilatildeo acerca
daqueles que podem ou natildeo entrar O segundo momento ainda no proecircmio (v 28) apresenta a
Deusa fazendo um direcionamento do jovem acerca de qual caminho ele deve percorrer E
finalmente a terceira apariccedilatildeo de δίκη eacute exatamente na garantia de verdade do ser e suas
determinaccedilotildees necessaacuterias condensadas em DK 28 B 8 vv 3-6
[] ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν ἐστι γὰρ οὐλομελές τε καὶ ἀτρεμὲς ἠδ᾿ ἀτέλεστον οὐδέ ποτ᾿ ἦν οὐδ᾿ ἔσται ἐπεὶ νῦν ἔστιν ὁμοῦ πᾶν ἕν συνεχές τίνα γὰρ γένναν διζήσεαι αὐτοῦ (que sendo ingecircnito tambeacutem eacute impereciacutevel Pois eacute todo uacutenico como intreacutepido e sem meta nem nunca era nem seraacute pois eacute todo junto agora uno contiacutenuo pois que origem sua buscarias)
Claro que se trata de uma suposiccedilatildeo de Marques (1997) essa terceira apariccedilatildeo de diacuteke
jaacute que ela natildeo estaacute nomeada nos versos 3-6 mas sim subentendida Diacuteke segundo Marques
(1997) proclama um ser (ἐὸν) ingecircnito impereciacutevel todo uacutenico uno contiacutenuo Ou seja garante
o estatuto que na linguagem filosoacutefica a partir principalmente de Platatildeo e Aristoacuteteles
chamamos de ontologia A diacuteke seria a garantia ontoloacutegica da verdade E nesse ponto as δίκαι
de Hesiacuteodo e Parmecircnides divergem amplamente em sua funccedilatildeo jaacute que em Hesiacuteodo natildeo se pode
falar em uma diacuteke ontoloacutegica mas sim de cunho eacutetico-moral A diacuteke de Hesiacuteodo traccedila os
preceitos morais e preconiza o primado da diacuteke frente agrave hyacutebris na educaccedilatildeo de seu irmatildeo Perses
(Op vv 212-217) principalmente ao colocar a diacuteke diretamente sob a influecircncia e tutela de
Zeus (Op vv 255-256)
Se por um lado a diacuteke hesioacutedica ensinava sua audiecircncia como se portar de forma
moralmente correta a diacuteke de Parmecircnides proclama o universo da ontologia e ensina a verdade
mais elementar poreacutem a mais abstrata Mas natildeo param por aiacute as conexotildees entre os dois autores
Outra comparaccedilatildeo pode ser notada em DK 28 B 1 vv 29-30 em que se comenta que a obra de
Parmecircnides ensina ἠμὲν ἀληθείης εὐπειθέος ἀτρεμὲς ἦτορ ἠδὲ βροτῶν δόξας ταῖς οὐκ ἔνι
πίστις ἀληθής (tanto do intreacutepido coraccedilatildeo da Verdade persuasiva quanto das opiniotildees de
mortais em que natildeo haacute feacute verdadeira) Passagem comparaacutevel como vimos a Th 27-28 ἴδμεν
ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα ἴδμεν δ᾽ εὖτ᾽ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι (sabemos
186
muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees) Satildeo
trechos que descrevem os personagens aptos a contemplar e aprender o que eacute verdadeiro seja
pelas Musas seja pela Justiccedila ainda que em Hesiacuteodo possa haver a sugestatildeo de que o humano
soacute teraacute a capacidade de aceder agrave verdade se as Musas quiserem o que evidencia uma posiccedilatildeo
epistemoloacutegica por assim dizer mais fraacutegil
As ἀληθέα ilustram ambos os versos como aquilo que tanto as Musas quanto a epopeia
de Parmecircnides representam Trata-se em ambos os versos de discursos que tentam persuadir
e descrever a verdade na forma de versos que estabelecem uma dicotomia entre ἀληθείης e
δόξας (verdade e opiniatildeo em Parmecircnides) e entre ψεύδεα e ἀληθέα (falsidade e verdades em
Hesiacuteodo)
Satildeo dois trechos que apresentam uma diferenciaccedilatildeo baacutesica entre os polos negativo e
positivo de uma pretensatildeo de verdade Mas curiosamente ambos os textos indicam a
possibilidade de que os polos negativos estejam de alguma forma cobertos pelo recorte temaacutetico
dos poemas Pois como garantir que na Teogonia natildeo temos tambeacutem coisas que satildeo apenas
siacutemeis a fatos Por outro lado em Parmecircnides as opiniotildees dos homens devem tambeacutem ser
aprendidas e aliaacutes ocuparatildeo uma seccedilatildeo separada do poema quando Parmecircnides anuncia em
DK 28 B 8 vv 50-52 que ele estaacute deixando de lado o relato da verdade para iniciar a descriccedilatildeo
das opiniotildees atraveacutes da ldquoordem enganosa de [suas] palavrasrdquo
Outra relaccedilatildeo que se pode fazer eacute cotejar DK 28 B 1 vv 17-18 ὥς σφιν βαλανωτὸν
ὀχῆα ἀπτερέως ὤσειε πυλέων ἄπο ταὶ δὲ θυρέτρων χάσμ᾿ ἀχανὲς ποίησαν ἀναπτάμεναι
(persuadiram habilmente a que a tranca aferrolhada depressa removesse das portas e estas
dos batentes um vatildeo escancarado fizeram abrindo-se)180 com Th 740-741 χάσμα μέγ᾽ οὐδέ
κε πάντα τελεσφόρον εἰς ἐνιαυτὸν οὖδας ἵκοιτ᾽ εἰ πρῶτα πυλέων ἔντοσθε γένοιτο (Vasto
abismo nem ao termo de um ano atingiria o solo quem por suas portas entrasse) Observamos
entre os dois iniacutecios de verso a similaridade temaacutetica no ldquovasto abismordquo (χάσμ᾿ ἀχανὲς em
Parmecircnides e χάσμα μέγ᾽ em Hesiacuteodo) bem como podemos observar ldquoos portotildeesrdquo πυλέων
nas mesmas posiccedilotildees dos versos 17 e 741 Parece haver em Parmecircnides uma reminiscecircncia da
passagem sobre o submundo que conteacutem a descida da casa da Noite esta que eacute descrita em Th
736-761
180 Trad de Joseacute Cavalcante de Souza
187
Cabe aqui tambeacutem uma reminiscecircncia a semelhanccedila ainda que longiacutenqua entre Th
740-741 e um trecho de Heraacuteclito a saber o jaacute citado DK 22 B 45 Significativamente enquanto
em Hesiacuteodo temos um abismo quase infinito que faz parte de uma cosmografia de coloraccedilatildeo
mitoloacutegica em Heraacuteclito a ausecircncia de limites pertence agrave psicheacute e ao loacutegos
Existem muitas relaccedilotildees temaacuteticas entre Parmecircnides e Hesiacuteodo Existem tambeacutem
muitas aproximaccedilotildees e similaridades nas expressotildees utilizadas como por exemplo na
ressignificaccedilatildeo da diacuteke que em Parmecircnides toma novas proporccedilotildees Outros dois pontos de
contato temaacutetico conceitual se datildeo atraveacutes da concepccedilatildeo de khaacuteos e eacuteros dadas por Parmecircnides
e Hesiacuteodo
94 A RECEPCcedilAtildeO DE PARMEcircNIDES E HESIacuteODO CONJUNTA ENTRE O KHAacuteOS E O
EacuteROS
Essas relaccedilotildees temaacuteticas que observamos reforccedilam a influecircncia de Hesiacuteodo na obra de
Parmecircnides
Ao tecer um conjunto de relaccedilotildees entre esses pensadores preacute-socraacuteticos observamos que
a figura de Hesiacuteodo serve como elemento de mediaccedilatildeo Isto eacute certas distacircncias e proximidades
cruciais entre Heraacuteclito e Xenoacutefanes explicam-se tambeacutem por suas maneiras peculiares de
estabelecer uma relaccedilatildeo com Hesiacuteodo Quando trazemos Parmecircnides para esta aritmeacutetica
evidencia-se ainda mais a relevacircncia de Hesiacuteodo no contexto preacute-socraacutetico Destarte
observamos que muitas posturas de Xenoacutefanes e Heraacuteclito frente a Hesiacuteodo podem ser melhor
compreendidas quando procuramos ver as conexotildees entre de um lado os pares Hesiacuteodo-
Xenoacutefanes e Hesiacuteodo-Heraacuteclito e de outro o par Hesiacuteodo-Parmecircnides Constroacutei-se assim mais
uma via de absorccedilatildeo de Hesiacuteodo pelos primeiros pensadores
O fragmento DK 28 B 13 aproxima de forma direta e imediata a obra de Parmecircnides e
a de Hesiacuteodo Eacute de Simpliacutecio que recuperamos este fragmento πρώτιστον μὲν ῎Ερωτα θεῶν
μητίσατο πάντων [καὶ τὰ ἑξῆς] (Amor foi o primeiro de todos os deuses que [eleela] concebeu
[um atraacutes do outro ]) Aqui observamos Parmecircnides tratar de mais uma divindade que eacute Eros
que teria antecedido todos os outros deuses (excetuando-se eacute claro a divindade natildeo nomeada
que o concebeu μητίσατο) nos levando a pensar que Eros tambeacutem poderia ter gerado a Justiccedila
ou ateacute mesmo a Deusa sem nome do poema
188
Aleacutem do fragmento que segundo Simpliacutecio seria diretamente a voz de Parmecircnides
podemos observar praticamente essa mesma afirmaccedilatildeo sobre Eros em Parmecircnides na anaacutelise
de Aristoacuteteles numa passagem citada por Platatildeo e tambeacutem em Plutarco na obra Amatorius181
A expressatildeo de Parmecircnides acerca do Eros repete-se em pelos menos quatro autores antigos
Natildeo eacute uma afirmaccedilatildeo qualquer Eacute uma frase que possui importante desdobramento na
Metafiacutesica segundo anaacutelise de Richard Mckirahan (2009) Segundo Henn (2003 p 134)
ldquoClearly the poem presents its own unique mythology Parmenides instructress says that only
one pathacutes myth remainsrdquo O trecho relevante da Teogonia que versa tambeacutem sobre Eros Th
v 116-120 coloca os dois autores em posiccedilotildees aparentemente conflitantes a respeito deste deus
ἦ τοι μὲν πρώτιστα Χάος γένετ᾽ αὐτὰρ ἔπειτα Γαῖ᾽ εὐρύστερνος πάντων ἕδος ἀσφαλὲς αἰεὶ ἀθανάτων οἳ ἔχουσι κάρη νιφόεντος Ὀλύμπου Τάρταρά τ᾽ ἠερόεντα μυχῷ χθονὸς εὐρυοδείης ἠδ᾽ Ἔρος ὃς κάλλιστος ἐν ἀθανάτοισι θεοῖσι (Sim bem primeiro nasceu Caos depois tambeacutem Terra de amplo seio de todos sede irresvalaacutevel sempre dos imortais que tecircm a cabeccedila do Olimpo nevado e Taacutertaro nevoento no fundo do chatildeo de amplas vias e Eros o mais belo entre Deuses imortais)
Fica evidente que Parmecircnides coloca Eros um passo atraacutes da genealogia dos deuses se
tomarmos como base a sequecircncia genealoacutegica de Hesiacuteodo que coloca primeiramente Caos
depois Terra depois Taacutertaro e depois Eros O trecho do Banquete de Platatildeo talvez nos elucide
um pouco mais acerca dessa passagem de Parmecircnides e sua relaccedilatildeo com Hesiacuteodo Observamos
em 178 a-b
Πρῶτον μὲν γάρ ὥσπερ λέγω ἔφη Φαῖδρον ἀρξάμενον ἐνθένδε ποθὲν λέγειν ὅτι μέγας θεὸς εἴη ὁ Ἔρως καὶ θαυμαστὸς ἐν ἀνθρώποις τε καὶ θεοῖς πολλαχῇ μὲν καὶ ἄλλῃ οὐχ ἥκιστα δὲ κατὰ τὴν γένεσιν τὸ γὰρ ἐν τοῖς πρεσβύτατον εἶναι τὸν θεὸν τίμιον ἦ δ᾽ ὅς τεκμήριον δὲ τούτου γονῆς γὰρ Ἔρωτος οὔτ᾽ εἰσὶν οὔτε λέγονται ὑπ᾽ οὐδενὸς οὔτε ἰδιώτου οὔτε ποιητοῦ ἀλλ᾽ Ἡσίοδος πρῶτον μὲν Χάος φησὶ γενέσθαιmdashldquo αὐτὰρ ἔπειτα Γαῖ᾽ εὐρύστερνος πάντων ἕδος ἀσφαλὲς αἰεί ἠδ᾽ Ἔρος rdquo Ἡσιόδῳ δὲ καὶ Ἀκουσίλεως σύμφησιν μετὰ τὸ Χάος δύο τούτω γενέσθαι Γῆν τε καὶ ἔρωτα Παρμενίδης δὲ τὴν γένεσιν λέγειmdashldquoπρώτιστον μὲν ἔρωτα θεῶν μητίσατο πάντωνrdquo (Primeiramente tal como agora estou dizendo disse ele que Fedro comeccedilou a falar mais ou menos desse ponto que era um grande deus o Amor e admirado entre homens e deuses por muitos outros tiacutetulos e sobretudo por
181 Trata-se de Amatorius 756 D
189
sua origem Pois o ser entre os deuses o mais antigo eacute honroso dizia ele e a prova disso eacute que genitores do Amor natildeo os haacute tampouco registrados em prosa ou verso e Hesiacuteodo afirma que primeiro nasceu o Caos mdash lsquo e soacute depois Terra de largos seios de tudo assento sempre certo e Amorrsquo Arcesilau tambeacutem concorda com Hesiacuteodo Diz ele entatildeo que depois do Caos foram estes dois que nasceram Terra e Amor E Parmecircnides diz da sua origem lsquobem antes de todos os deuses pensou em Amorrsquo)182
O diaacutelogo platocircnico fala acerca de ser ldquohonrosordquo (τίμιον) ter maior antiguidade tendo
como criteacuterio a maior antecedecircncia genealoacutegica Pela parte de Hesiacuteodo o Caos eacute mais antigo
mas natildeo gerou Eros (Platatildeo deixa claro que ningueacutem fala dos genitores de Eros) pela parte de
Parmecircnides segundo Platatildeo eacute Eros quem tem a primazia temporal No diaacutelogo platocircnico
Hesiacuteodo estaacute conectado a Parmecircnides no acircmbito da investigaccedilatildeo agrave qual o diaacutelogo se propotildee a
saber traccedilar a origem do amor
Aristoacuteteles tambeacutem comenta as mesmas duas passagens (Th 116-120183 e DK 28 B 13)
Podemos dizer que Aristoacuteteles construiu sua recepccedilatildeo da obra dos dois autores os tornando
complementares um ao outro na Metafiacutesica mas agora natildeo exatamente na discussatildeo de quem
foi o primeiro deus mas sim na discussatildeo de qual seria a causa primeira que forma a realidade
tomando o Caos184 de Hesiacuteodo e o Eros de Parmecircnides como exemplos
Nas trecircs passagens da Metafiacutesica em que eacute retomado o texto de Hesiacuteodo a situaccedilatildeo
teoacuterica gira sempre em torno da Teogonia E eacute neste contexto que Parmecircnides eacute citado junto a
Hesiacuteodo num discurso sobre a origem e o originado As duas primeiras citaccedilotildees de Hesiacuteodo na
Metafiacutesica se datildeo no contexto do estudo apresentado por Aristoacuteteles dos vaacuterios tipos de
conhecimento Se o livro α da Metafiacutesica eacute inicialmente um perpassar das vaacuterias doutrinas sobre
o ser que antecederam Aristoacuteteles Hesiacuteodo estaacute entre esses que de alguma maneira
contribuiacuteram com essa temaacutetica no caso a temaacutetica da geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todas as coisas
junto a Parmecircnides
182 Trad Adaptada de Joseacute Cavalcante de Souza 183 Interessante ressaltar que Aristoacuteteles faz uma citaccedilatildeo natildeo textual e sendo assim inexata Indicando que Aristoacuteteles teria em mente o argumento de Hesiacuteodo mas natildeo necessariamente o trecho memorizado 184 Segundo Albin Lesky por exemplo natildeo devemos tomar a ideia de Caos como uma abstraccedilatildeo de nada ou de desordem mas sim como um hiato de abertura seguindo o mesmo sentido que damos neste trabalho ldquoQuando a seguir ao proecircmio comeccedila a narraccedilatildeo do poeta trata-se primeiramente do relato da criaccedilatildeo do mundo Ao princiacutepio desta cosmogonia encontra-se o Caos Somente numa eacutepoca posterior esta palavra adquiriu o sentido de uma mistura desordenada Devem-se evitar igualmente as especulaccedilotildees que faccedilam do Caos de Hesiacuteodo o resultado de uma surpreendente abstraccedilatildeo Isto jaacute comeccedila em Aristoacuteteles (Fiacutes 4 1 208 b) Que concebe o Caos como o espaccedilo Em Hesiacuteodo poreacutem natildeo se trata de outra coisa que natildeo seja a profundidade hiante como origem de tudo concepccedilatildeo que tambeacutem aparece nas cosmovisotildees orientais e que sem duacutevida alguma natildeo procede de Hesiacuteodo rdquo (LESKY 1995 p 67)
190
ὑποπτεύσειε δ᾽ ἄν τις Ἡσίοδον πρῶτον ζητῆσαι τὸ τοιοῦτον κἂν εἴ τις ἄλλος ἔρωτα ἢ ἐπιθυμίαν ἐν τοῖς οὖσιν ἔθηκεν ὡς ἀρχήν οἷον καὶ Παρμενίδης καὶγὰρ οὗτος κατασκευάζων τὴν τοῦ παντὸς γένεσιν ldquoπρώτιστον μέν φησιν ἔρωτα θεῶν μητίσατο πάντωνrdquo Ἡσίοδος δὲ ldquoπάντων μὲν πρώτιστα χάος γένετ᾽ αὐτὰρ ἔπειτα γαῖ᾽ εὐρύστερνος hellip ἠδ᾽ ἔρος ὃς πάντεσσι μεταπρέπει ἀθανάτοισινrdquo ὡς δέον ἐν τοῖς οὖσιν ὑπάρχειν τιν᾽ αἰτίαν ἥτις κινήσει καὶ συνάξει τὰ πράγματα (Pode-se suspeitar que Hesiacuteodo foi o primeiro a procurar tal coisa bem como outro que tiver colocado como princiacutepio entre os entes amor ou apetite como Parmecircnides de fato montando a geraccedilatildeo do todo diz formulou o amor como primeiro de todos os deuses jaacute Hesiacuteodo diz como primeiro de tudo surgiu o caos em seguida a terra de amplos seios e o amor que brilha em todos os imortaisrdquo como sendo necessaacuterio existir entre os entes uma causa que possa mover e unir as coisas) 185
Aristoacuteteles fala acerca daquilo que geraria todos os seres no sentido de uma causa
primeira Deve-se notar que segundo Hesiacuteodo antes de tudo se dava o Caos sendo essa
afirmaccedilatildeo aquilo que motiva Aristoacuteteles a dizer que poderia ter sido Hesiacuteodo o primeiro teoacuterico
de um princiacutepio que determinasse a origem de todas as coisas
Eacute importante tambeacutem observar que a questatildeo do khaacuteos surge como um tema da filosofia
natural segundo o que nos diz Koning (2010 p 194) apontando inclusive para o fato de que o
khaacuteos estaria entre os trecircs maiores temas hesioacutedicos da cosmologia dos primeiros pensadores
Os outros dois temas seriam a questatildeo do eacuteros e uma suposta teoria dos elementos tambeacutem
presente em Hesiacuteodo A origem de todos os seres apoacutes o advento do khaacuteos se dava atraveacutes do
Amor ou do Desejo os quais seriam os primeiros princiacutepios de geraccedilatildeo na narrativa hesioacutedica
Eacute o Amor tambeacutem o que possibilita a genealogia dos deuses e o que possibilita de certa
maneira a organizaccedilatildeo inicial num estaacutegio posterior ao momento do khaacuteos descrito por
Hesiacuteodo
O poeta Hesiacuteodo antecede a Parmecircnides que segundo Aristoacuteteles tambeacutem tratou do
eacuteros como geraccedilatildeo e disse que deste eacuteros tudo se inicia Ou seja para Aristoacuteteles parte da
Teogonia proposta por Hesiacuteodo eacute reafirmada no verso DK 28 B 13 de Parmecircnides Aristoacuteteles
diz ldquoPode-se suspeitar que Hesiacuteodo foi o primeiro a procurar tal coisa bem como outro que
tiver colocado como princiacutepio entre os entes amor ou apetite como Parmecircnidesrdquo A suspeita de
Aristoacuteteles recai sobre autores que jaacute tenham notoriamente abordado este tema entre eles
figura Hesiacuteodo como o primeiro mas Parmecircnides junto a ele Mais uma vez se observa um
185 Trata-se de Metafiacutesica I 4 984b 23 Trad baseada em Vincenzo Coceo
191
Parmecircnides que deixa de lado a criacutetica dada por Xenoacutefanes a Hesiacuteodo ao perfilar tantas
proximidades conceituais e formulares com Hesiacuteodo
Algo que devemos ressaltar eacute o fato de Parmecircnides ser lembrado como o filoacutesofo do
eacuteros ao lado de Hesiacuteodo e natildeo como o filoacutesofo do ser pelo menos neste trecho da Metafiacutesica
Seria talvez parte da teoria de Parmecircnides que natildeo nos chegou atraveacutes de nenhum outro
fragmento a natildeo ser o jaacute comentado DK 28 B 13 Mas o fato de pelo menos quatro autores
citarem tal teoria do eacuteros como geraccedilatildeo em Parmecircnides sugere a proporccedilatildeo que essa ideia
tomou na Antiguidade Sem duacutevida alguma eacute um eacuteros que cria perplexidade filosoacutefica pois
estaria no universo da causalidade dentro da metafiacutesica aristoteacutelica Por isso podemos afirmar
que Hesiacuteodo e Parmecircnides neste trecho especiacutefico da Metafiacutesica compactuam na mesma escala
com o centro do argumento aristoteacutelico assim como estatildeo tambeacutem no centro do debate
platocircnico no Banquete reforccedilando a ideia de uma recepccedilatildeo conjunta de Hesiacuteodo e Parmecircnides
Portanto natildeo eacute de se estranhar que uma figura como Parmecircnides apesar de ter uma
tradiccedilatildeo de prosa jocircnica atraacutes de si (Anaximandro Anaxiacutemenes) quebra com essa evoluccedilatildeo e
retoma o eacutepos hesioacutedico sinalizando claramente tecirc-lo em mente como modelo e rival num
processo de emulaccedilatildeo Talvez exatamente por querer se contrapor a Xenoacutefanes e
hipoteticamente a Heraacuteclito
Essas foram algumas aproximaccedilotildees que pudemos fazer no acircmbito das comparaccedilotildees
entre o poema de Parmecircnides e as eacutepicas de Hesiacuteodo e Homero Segundo Mourelatos (2008 p
2) there are six areas of contact with the epic tradition in which comparisons are especially
instructive metrical structure overall composition vocabulary epic phraseology epic motifs
and epic themes Todos esses preacute-requisitos parecem ter sido cumpridos por Parmecircnides
conforme apresentamos
Ao utilizar o dialeto jocircnico em versos como Hesiacuteodo e Homero usaram Parmecircnides
transitou pelo universo eacutepico familiar talvez a grande parte da populaccedilatildeo do seu entorno
social Ao recriar foacutermulas homeacutericas em meio a um novo discurso com denso conteuacutedo ele
conseguiu amenizar a abstraccedilatildeo que veste a roupagem da temaacutetica filosoacutefica do ser e suas
designaccedilotildees tornando-a acessiacutevel e didaacutetica Ao se espelhar em Hesiacuteodo como um poeta
didaacutetico acabou por criar sua proacutepria didaacutetica com estrateacutegias parecidas na individualidade do
personagem no rito de iniciaccedilatildeo junto aos deuses na autoridade da Justiccedila como divindade natildeo
somente moral mas ontoloacutegica
192
Ao colocar em praacutetica o aprendizado poeacutetico de Homero e Hesiacuteodo aliado agrave sua
filosofia Parmecircnides incorporou processos mnemocircnicos agrave sua variedade de nominar o ser
criando uma sintaxe proacutepria e tambeacutem singular Possivelmente ao recitar sua obra em praccedila
puacuteblica atuou de forma mnemocircnica assim como fizeram Homero e Hesiacuteodo por mais que em
sua eacutepica a linguagem escrita jaacute estivesse consolidada Talvez Parmecircnides quisesse falar para
uma grande audiecircncia familiarizada tambeacutem com Homero e Hesiacuteodo Eacute o que retratam as
citaccedilotildees acima descritas Se Parmecircnides se aproxima de Hesiacuteodo e Homero Xenoacutefanes e
Heraacuteclito se distanciam para talvez criar seu κλέος de forma agocircnica
Parmecircnides construiu seu renome como fiacutesico naturalista e ganhou a praccedila puacuteblica Natildeo
somente Xenoacutefanes Heraacuteclito e Parmecircnides citam Hesiacuteodo Mas tambeacutem outros pensadores na
aurora da Filosofia Vejamos alguns deles para ilustrar mais um pouco a fama de Hesiacuteodo dentro
do universo dos preacute-socraacuteticos Trata-se de Empeacutedocles de Agrigento Melisso de Samos e
Anaximandro de Mileto
95 EMPEacuteDOCLES ANAXIMANDRO E MELISSO ALGUMAS OUTRAS
REFEREcircNCIAS A HESIacuteODO
Empeacutedocles de Agrigento Melisso de Samos e Anaximandro de Mileto satildeo outros
importantes preacute-socraacuteticos cujos testemunhos e obra satildeo relacionados a Hesiacuteodo e sua poesia
Empeacutedocles teria escrito dois poemas que traccedilam etapas distintas de seu pensamento Sobre a
Natureza e Purificaccedilotildees ambos em hexacircmetros O primeiro seria um trabalho dedicado a
Pausacircnias supostamente seu disciacutepulo e trataria da doutrina cosmoloacutegica de Empeacutedocles
abarcando assim diversas aacutereas de conhecimento em um tom mais pedagoacutegico de exposiccedilatildeo
doutrinal Jaacute o segundo carrega um tom mais miacutestico de engajamento social onde Empeacutedocles
expotildee um apelo mais moral falando de certa forma para as massas
Tradicionalmente se lecirc a doutrina de Empeacutedocles atraveacutes do que ele chama de as quatro
raiacutezes da natureza e de como elas se combinariam As quatro raiacutezes satildeo definidas por ele como
os elementos fogo terra aacutegua e ar Esses elementos explicam a constante transformaccedilatildeo
material do mundo impulsionados exatamente pela discoacuterdia (neicirckos) e pela amizade (philiacutea)
que operam essas transformaccedilotildees da mateacuteria Os quatro elementos primordiais carregariam uma
essecircncia perene eterna que ganharia forma graccedilas a essa forccedila motriz da amizade e da
discoacuterdia Essa doutrina cosmoloacutegica de Empeacutedocles daria conta da pergunta baacutesica dos preacute-
193
socraacuteticos acerca da mudanccedila e sua resposta aponta para a multiplicidade dos elementos
transformada por essa bipolaridade quase que dialeacutetica do amor e da discoacuterdia
Dentro das relaccedilotildees entre Hesiacuteodo e Empeacutedocles existem vaacuterias aproximaccedilotildees que
podemos apontar Alguns estilos e similaridades verbais satildeo interessantes A forma σὺ δὲ como
introduccedilatildeo de uma nova sequecircncia de ideias eacute uma delas Esta forma estaacute presente por
exemplo nas primeiras linhas do fragmento do poema Sobre a natureza de Empeacutedocles DK
31 B 1 linha 4 Παυσανίη σὺ δὲ κλῦθι δαΐφρονος Ἀγχίτεω υἱέ (E tu Pausacircnias filho do saacutebio
Anquitas escuta)186 e em vaacuterios versos de Hesiacuteodo como por exemplo Op v 27 Ὦ Πέρση
σὺ δὲ ταῦτα τεῷ ἐνικάτθεο θυμῷ (Oacute Perses coloca essas coisas no teu espiacuterito) Pausacircnias
parece ter um mesmo tratamento de proximidade como Hesiacuteodo teria com Perses seu irmatildeo
Trata-se de um mesmo estilo de texto didaacutetico e sapiencial
Empeacutedocles apresenta uma doutrina complexa Nela estatildeo impliacutecitos o amor e a luta
como espeacutecies de causas de todas as coisas Eacute como se o amor e a luta dessem forma aos
compostos materiais Por isso atestamos essa primeira semelhanccedila entre Hesiacuteodo e Empeacutedocles
ancorados exatamente por este fluxo criativo e frutiacutefero do amor como divindade que aparece
em vaacuterios momentos da obra de Hesiacuteodo e como forccedila filosoacutefica no pensamento de
Empeacutedocles
Bem como a luta (neicirckos) que possui o peso da justiccedila divina em Hesiacuteodo ao apresentar
no poema seu aspecto educativo e que tambeacutem cumpre seu papel em Empeacutedocles Amplo
paralelo pode ser feito na relaccedilatildeo entre neicirckos de Empeacutedocles e a eacuteris hesioacutedica O fragmento
DK 31 A 4 cita Empeacutedocles e Hesiacuteodo exatamente nesse contexto ou seja uma ilustraccedilatildeo da
funccedilatildeo de disputa no caso aqui eacuteris Observemos tal fragmento que cita Empeacutedocles e Hesiacuteodo
na doxografia do filoacutesofo e meacutedico romano Claacuteudio Galeno DK 31 A 4 καὶ πρόσθεν μὲν ἔρις ἦν οὐ σμικρὰ νικῆσαι τῶι πλήθει τῶν εὑρημάτων ἀλλήλους ὀριγνωμένων τῶν ἐν Κῶι καὶ Κνίδωι διττὸν γὰρ ἔτι τοῦτο τὸ γένος ἦν τῶν ἐπὶ τῆς Ἀσίας Ἀσκληπιαδῶν ἐκλιπόντος τοῦ κατὰ Ῥόδον ἤριζον δ αὐτοῖς τὴν ἀγαθὴν ἔριν ἐκείνην ἣν Ἡσίοδος ἐπήινει (Opp 24) καὶ οἱ ἐκ τῆς Ἰταλίας ἰατροί Φιλιστίων τε καὶ Ἐμπεδοκλῆς καὶ Παυσανίας καὶ οἱ τούτων ἑταῖροι (E antes havia uma disputa natildeo pequena para vencerem uns aos outros no nuacutemero de descobertas entre os meacutedicos de Coacutes e de Cnido Pois ainda havia duas famiacutelias de Asclepiacuteades na Aacutesia tendo desaparecido aquela de Rodes
186 Trad Joseacute Cavalcante de Souza
194
lutaram com eles a boa luta que Hesiacuteodo celebra tambeacutem os meacutedicos da Itaacutelia Felistoacuten Empeacutedocles Pausacircnias e seus companheiros)187
Sabe-se que Hesiacuteodo tratou a eacuteris como uacutenica na Teogonia mas em Os trabalhos e os
dias ela retorna em uma espeacutecie de dualidade a luta boa e a luta ruim anaacutelise que aqui jaacute fizemos
Galeno observa no seu relato a existecircncia da boa eacuteris de Hesiacuteodo No trecho ldquodisputavam com
eles tambeacutem nesse tipo bom de luta que Hesiacuteodo havia elogiadordquo (τὴν ἀγαθὴν ἔριν ἐκείνην ἣν
Ἡσίοδος ἐπήινει) haacute uma clara referecircncia agrave disputa hesioacutedica
Podemos imaginar tanto a ldquoboa lutardquo presente nos Eacuterga como uma suposta luta poeacutetica
aquela do miacutetico certame entre Hesiacuteodo e Homero Isso se daacute porque Galeno faz referecircncia agrave
boa competiccedilatildeo entre meacutedicos de dadas escolas de possiacuteveis meacutedicos que vieram de uma
camada pobre (pelo menos natildeo rica) da sociedade ldquoMas nenhum havia estado junto dos portais
dos ricos tanto para cumprimentaacute-los cedo ou para jantar com eles agrave noiterdquo Pois bem Hesiacuteodo
ao tratar das disputas em Os trabalhos e os dias nos diz o seguinte nos versos 11-19
Οὐκ ἄρα μοῦνον ἔην ᾿Ερίδων γένος ἀλλ ἐπὶ γαῖαν εἰσὶ δύωmiddot τὴν μέν κεν ἐπαινήσειε νοήσας ἡ δ ἐπιμωμητήmiddot διὰ δ ἄνδιχα θυμὸν ἔχουσιν ἡ μὲν γὰρ πόλεμόν τε κακὸν καὶ δῆριν ὀφέλλει σχετλίηmiddot οὔ τις τήν γε φιλεῖ βροτός ἀλλ ὑπ ἀνάγκης ἀθανάτων βουλῇσιν ῎Εριν τιμῶσι βαρεῖαν τὴν δ ἑτέρην προτέρην μὲν ἐγείνατο Νὺξ ἐρεβεννή θῆκε δέ μιν Κρονίδης ὑψίζυγος αἰθέρι ναίων γαίης τ ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι πολλὸν ἀμείνωmiddot (Ora natildeo houve apenas um nascimento de Lutas mas sobre a terra existem duas Quando algueacutem observa uma delas considera louvaacutevel a outra eacute digna de censura elas tecircm acircnimos diversos Pois uma promove a guerra maacute e a disputa eacute a cruel Nenhum mortal a ama mas por necessidade pela vontade dos deuses tecircm de honrar a Luta pesada A outra a primeira gerou-a a Noite escura e o filho de Crono Zeus sentado em alto trono habitante do eacuteter colocou-a nas raiacutezes da terra eacute bem melhor para os homens)
Assim como Parmecircnides Empeacutedocles parece manter essa memoacuteria conceitual e acuacutestica
da obra de Hesiacuteodo Parece manter aleacutem da meacutetrica em hexacircmetro temaacuteticas conceituais que
retornam ao poeta Hesiacuteodo e sua tradiccedilatildeo Cabe ainda aqui uma breve referecircncia a Melisso de
187 Trad natildeo publicada de Alessandro Rolim de Moura
195
Samos e Anaximandro de Mileto que de certa maneira se relacionaram com e foram relacionados
a Hesiacuteodo a tiacutetulo de registro
Melisso de Samos eacute um preacute-socraacutetico que se insere tambeacutem dentro da tradiccedilatildeo eleata
como um pensador que propagava as ideias mais essenciais desta escola principalmente no que
diz respeito agrave doutrina da unidade Tambeacutem teria escrito um poema Sobre a Natureza do qual
poucos fragmentos nos restaram Por isso Melisso a partir da voz aristoteacutelica188 trava um
debate acerca de algumas passagens consolidadas na obra de Hesiacuteodo A mais notoacuteria eacute a
concepccedilatildeo de iniacutecio do universo atraveacutes de um caos primordial concepccedilatildeo presente na obra
Teogonia
Para Hesiacuteodo as coisas surgiriam a partir deste khaacuteos contrariando de fato o pensamento
da escola eleata A tese baacutesica dos eleatas era de que a unidade sempre existiu ela natildeo passou
de um estaacutegio para outro de um khaacuteos para um natildeo-khaacuteos ela sempre esteve laacute e sempre estaraacute
porque eacute eterna
Fica clara na passagem em que satildeo citados Melisso e Hesiacuteodo na obra Sobre Melisso
Xenoacutefanes e Goacutergias a reputaccedilatildeo que este poeta tinha no assunto gecircnese do universo e esta eacute
a opiniatildeo natildeo apenas de pessoas ao acaso mas sim daqueles que seriam representantes do Liceu
aristoteacutelico Como contraponto o autor deste texto ao falar de Melisso retoma uma passagem
especiacutefica da Teogonia muito comentada na Metafiacutesica os versos 116-120 Vejamos a citaccedilatildeo
completa de Melisso Xenoacutefanes e Gorgias 974a 13 a 16
μᾶλλον γὰρ ὑπολαμβάνεται εἰκὸς εἶναι γίγνεσθαι ἐκ μὴ ὄντος ἢ μὴ πολλὰ εἶναι λέγεταί τε καὶ σφόδρα ὑπὲρ αὐτῶν γίγνεσθαί τε τὰ μὴ ὄντα καὶ δὴ γεγονέναι πολλὰ ἐκ μὴ ὄντων καὶ οὐχ ὅτι οἱ τυγχάνοντες ἀλλὰ καὶ τῶν δοξάντων τινὲς εἶναι σοφῶν εἰρήκασιν αὐτίκα δ Ἡσίοδος lsquoπάντων μὲν πρῶτον φησί Χάος ἐγένετο αὐτὰρ ἔπειτα Γαῖα εὐρύστερνος πάντων ἕδος ἀσφαλὲς αἰεὶ ἠδ Ἔρος ὃς πάντεσσι μεταπρέπει ἀθανάτοισιrsquo [Theog 116 117 120] τὰ δ ἄλλα φησὶ γενέσθαι ltἐκ τούτωνgt ταῦτα δὲ ἐξ οὐδενός πολλοὶ δὲ καὶ ἕτεροι εἶναι μὲν οὐδέν φασι γίγνεσθαι δὲ πάντα λέγοντες οὐκ ἐξ ὄντων γίγνεσθαι τὰ γιγνόμενα189 (Pois pode ser considerado como mais provaacutevel que algo possa surgir do nada do que a ideia de que muitas coisas natildeo existiriam Na verdade eacute muito comum dizer que as coisas que natildeo existem passem a existir e que muitas coisas surgem a partir do que natildeo existe e esta eacute a opiniatildeo natildeo apenas de pessoas ao acaso mas de alguns homens com reputaccedilatildeo de saacutebios Entatildeo
188 Aristoacuteteles ou pseudo-Aristoacuteteles jaacute que a obra Sobre Melisso Xenoacutefanes e Gorgias teria sido escrita por um disciacutepulo de Aristoacuteteles Independente da polecircmica adotaremos essa obra como um registro vaacutelido do embate de ideias que sem sombra de duacutevidas percorreu os peripateacuteticos 189 Trad adaptada de W S Hett
196
Hesiacuteodo diz que antes de tudo nasceu Caos entatildeo a Terra de amplo seio sempre a base segura de todas as coisas e em seguida Amor que pertence a todos os Imortais Todo o resto do universo diz ele surgiu a partir dessas coisas mas elas vieram a partir do nada Muitos outros por outro lado dizem que nada existe mas tudo estaacute a tornar-se afirmando que o que estaacute se tornando natildeo surge a partir do que existe)
Configura-se mais uma constataccedilatildeo da forccedila da poesia de Hesiacuteodo como um
argumentador da origem miacutetica das coisas atraveacutes da transformaccedilatildeo do khaacuteos em um objeto de
predicaccedilatildeo Mais uma vez eacute tomada a autoridade de Hesiacuteodo como a de um homem de
sabedoria cuja tese acerca da criaccedilatildeo do mundo deve ser resgatada O κλέος de Hesiacuteodo eacute
reafirmado
Anaximandro de Mileto que a tradiccedilatildeo apresenta como disciacutepulo de Tales na escola
jocircnica tambeacutem eacute citado textualmente ao lado de Hesiacuteodo Anaximandro protagoniza com
Hesiacuteodo uma espeacutecie de histoacuteria natural acerca da cultura grega e dos peixes mais
especificamente sobre comer ou natildeo comer peixes Portanto agrave primeira vista essa passagem
natildeo faz qualquer menccedilatildeo agrave teoria que tradicionalmente conhecemos como de Anaximandro
mas sim a uma espeacutecie de elo com o pensamento de Tales190
Observamos o texto (no caso da autoria de Aeacutecio) citando Hesiacuteodo com alguns traccedilos
naturalistas e mencionando uma suposta obra deste poeta chamada O casamento de Ceyx Esta
obra relataria o comparecimento de Heraacutecles ao casamento de certo Ceyx conhecido por seus
enigmas Possivelmente uma referecircncia a Alcione esposa de Ceyx que penalizada por Zeus
torna-se uma ldquoguarda-riosrdquo ave conhecida por merlin mariacutetimo uma ave rigorosamente
190 Vejamos em DK 12 A 30 οἱ δ ἀφ Ἕλληνος τοῦ παλαιοῦ καὶ πατρογενείωι Ποσειδῶνι θύουσιν ἐκ τῆς ὑγρᾶς τὸν ἄνθρωπον οὐσίας φῦναι δόξαντες ὡς καὶ Σύροι διὸ καὶ σέβονται τὸν ἰχθῦν ὡς ὁμογενῆ καὶ σύντροφον ἐπιεικέστερον Ἀναξιμάνδρου φιλοσοφοῦντες οὐ γὰρ ἐν τοῖς αὐτοῖς ἐκεῖνος ἰχθῦς καὶ ἀνθρώπους ἀλλ ἐν ἰχθύσιν ἐγγενέσθαι τὸ πρῶτον ἀνθρώπους ἀποφαίνεται καὶ τραφέντας ὥσπερ οἱ γαλεοί καὶ γενομένους ἱκανοὺς ἑαυτοῖς βοηθεῖν ἐκβῆναι τηνικαῦτα καὶ γῆς λαβέσθαι καθάπερ οὖν τὸ πῦρ τὴν ὕλην ἐξ ἧς ἀνήφθη μητέρα καὶ πατέρα οὖσαν ἤσθιεν ὡς ὁ τὸν Κήυκος γάμον εἰς τὰ Ἡσιόδου [fr 158 Rz2] παρεμβαλὼν εἴρη παρεμβαλὼν εἴρηκεν οὕτως ὁ Ἀ τῶν ἀνθρώπων πατέρα καὶ μητέρα κοινὸν ἀποφήνας τὸν ἰχθῦν διέβαλε πρὸς τὴν βρῶσιν ldquoOs descendentes do antigo Heleno tambeacutem sacrificam para o patriarca Poseidon acreditando como os siacuterios que o homem se desenvolveu a partir do elemento uacutemido Entatildeo eles tambeacutem reverenciam o peixe como de mesma raccedila e educado em conjunto com o homem produzindo uma filosofia mais adequada que a de Anaximandro Ele argumenta natildeo que da mesma matriz satildeo derivados os peixes e os homens mas que os homens originalmente se formaram e foram alimentados no interior de peixes como tubarotildees e tornando-se capazes de cuidar de si mesmos saiacuteram dali e desembarcaram na terra Da mesma forma portanto que o fogo consome a mateacuteria pela qual foi concebido e que eacute sua matildee e seu pai como eacute dito no Casamento de Ceyx atribuiacutedo a Hesiacuteodo tambeacutem Anaximandro mostrando que o peixe eacute o pai e a matildee dos homens tornou-o repulsivo como alimento rdquo Trad adaptada de G Giannantoni
197
monogacircmica Poreacutem as fontes satildeo muito vagas Esta citaccedilatildeo de Anaximandro junto a Hesiacuteodo
denota mais a importacircncia deste como um representante da poeacutetica e da tradiccedilatildeo miacutetica do que
qualquer outra especulaccedilatildeo mais aprofundada Poreacutem isso natildeo nega a relevacircncia de o poeta
estar sendo citado numa comparaccedilatildeo com um dos seguidores da escola de Tales de Mileto
pensador quase que contemporacircneo a Hesiacuteodo Eacute tambeacutem mais um indicador do κλέος de
Hesiacuteodo
96 HERAacuteCLITO E O EMBATE CONCEITUAL CONTRA HESIacuteODO
Possivelmente Heraacuteclito era conhecedor da criacutetica que Xenoacutefanes fez a obra de Hesiacuteodo
Mais do que isso ele parece ter ampliado a criacutetica feita pelo pensador de Colofatildeo Aleacutem do
repuacutedio moral Heraacuteclito explicita seu repuacutedio acerca da poesia de Hesiacuteodo como descriccedilatildeo da
realidade contraacuterio do que teria feito Parmecircnides Vejamos
Assim como Xenoacutefanes Heraacuteclito cita e critica nominalmente Hesiacuteodo (contrariamente
a Parmecircnides Empeacutedocles Melisso e Anaximandro que satildeo citados junto a Hesiacuteodo) Aleacutem
disso repete significativamente alguns conceitos consagrados nos versos hesioacutedicos Mais do
que repetir Heraacuteclito ressignifica algumas palavras e conceitos tradicionalmente associados a
Hesiacuteodo Faz isso ao ressignificar os conceitos de ἔρις δίκη e πόλεμος (eacuteris diacuteke e poacutelemos)
para ao nosso ver potencializar ainda mais a forccedila conceitual de loacutegos
Vejamos isso nos fragmentos de Heraacuteclito Seguem os fragmentos que apresentam ἔρις
δίκη e πόλεμος importantes para nossa discussatildeo
DK 22 B 8191 τὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίαν καὶ πάντα κατ ἔριν γίνεσθαι (o contraacuterio eacute convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia e tudo segundo a discoacuterdia) DK 22 B 80192 εἰδέναι δὲ χρὴ τὸν πόλεμον ἐόντα ξυνόν καὶ δίκην ἔριν καὶ γινόμενα πάντα κατ ἔριν καὶ χρεών (Eacute preciso saber que o combate eacute o-que-eacute-com e justiccedila eacute discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a ser segundo discoacuterdia e necessidade)
191 Trata-se de Eacutetica a Nicocircmaco 8 2 1155 b 4 192 Trata-se Oriacutegenes Contra Celso 6 42
198
DK 22 B 94193 Ἥλιος γὰρ οὐχ ὑπερβήσεται μέτρα εἰ δὲ μή Ἐρινύες μιν Δίκης ἐπίκουροι ἐξευρήσουσιν (Pois Heacutelios natildeo transpassaraacute as medidas senatildeo as Eriacutenias servas da Justiccedila o descobriratildeo) DK 22 B 53 Πόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρους 194 (A guerra eacute o pai de todas as coisas e de todas o rei de uns fez deuses de outros homens de uns escravos de outros homens livres)
Observamos primeiramente que dois conceitos importantes para a obra de Heraacuteclito se
datildeo no papel da eacuteris195 e da diacuteke196 A eacuteris aparece como dinacircmica de divergecircncia e
convergecircncia resultando na harmonia entre os contraditoacuterios Natildeo somente isso mas apresenta-
se tambeacutem como relevante a associaccedilatildeo da discoacuterdia com a justiccedila Todo o fragmento DK 22
B 8 caminha nessa direccedilatildeo sendo a voz de Heraacuteclito citada aqui na Eacutetica de Aristoacuteteles Conche
(1998 p 401) ressalta que ἀντίξουν eacute uma palavra puramente jocircnica encontrada vaacuterias vezes
em Heroacutedoto com o significado de adverso ou em oposiccedilatildeo Aristoacuteteles estaacute falando exatamente
do sentido dos contraacuterios dentro da temaacutetica ldquoamizaderdquo debatendo se a amizade seria fruto de
uma afinidade ou de uma oposiccedilatildeo Aristoacuteteles justamente coloca Heraacuteclito como um dos
teoacutericos da oposiccedilatildeo como mecacircnica do daquilo que harmoniza os opostos e isso se daacute segundo
a eacuteris
Em Hesiacuteodo poderiacuteamos dizer que a eacuteris apresenta uma mecacircnica diferente
descrevendo uma dicotomia entre a luta boa e luta ruim Sendo a luta boa aquela que ao final
encaminha ao trabalho como nos diz Hesiacuteodo em Op 11-20 jaacute citado aqui
Οὐκ ἄρα μοῦνον ἔην ᾿Ερίδων γένος ἀλλ ἐπὶ γαῖαν εἰσὶ δύωmiddot τὴν μέν κεν ἐπαινήσειε νοήσας ἡ δ ἐπιμωμητήmiddot διὰ δ ἄνδιχα θυμὸν ἔχουσιν ἡ μὲν γὰρ πόλεμόν τε κακὸν καὶ δῆριν ὀφέλλει σχετλίηmiddot οὔ τις τήν γε φιλεῖ βροτός ἀλλ ὑπ ἀνάγκης ἀθανάτων βουλῇσιν ῎Εριν τιμῶσι βαρεῖαν τὴν δ ἑτέρην προτέρην μὲν ἐγείνατο Νὺξ ἐρεβεννή
193 Trata-se de Plutarco Do Exiacutelio 11 p 604 A 194 Trata-se de Hipoacutelito Refutaccedilatildeo 9 9 195 Segundo LSJ strife quarrel contention wordy wrangling disputation ou como personificaccedilatildeo de Eacuteris a goddess who excites to war as goddess of Discord 196 Segundo LSJ order right Truth judgement give judgement most righteously of proceedings instituted to determine legal rights lawsuit trial of the case court by which it was tried ou tambeacutem como personificaccedilatildeo de Diacuteke
199
θῆκε δέ μιν Κρονίδης ὑψίζυγος αἰθέρι ναίων γαίης τ ἐν ῥίζῃσι καὶ ἀνδράσι πολλὸν ἀμείνωmiddot ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ ὅμως ἐπὶ ἔργον ἔγειρεν (Ora natildeo houve apenas um nascimento de Lutas mas sobre a terra existem duas Quando algueacutem observa uma delas considera louvaacutevel a outra eacute digna de censura elas tecircm acircnimos diversos Pois uma promove a guerra maacute e a disputa eacute a cruel Nenhum mortal a ama mas por necessidade pela vontade dos deuses tecircm de honrar a Luta pesada A outra a primeira gerou-a a Noite escura e o filho de Crono Zeus sentado em alto trono habitante do eacuteter colocou-a nas raiacutezes da terra eacute bem melhor para os homens ela leva ao trabalho mesmo a pessoa sem meios)
As associaccedilotildees das lutas divinas apresentadas por Hesiacuteodo com Heraacuteclito satildeo muitas
poreacutem natildeo observamos no texto de Hesiacuteodo uma harmonia que sintetizaria as duas lutas pelo
contraacuterio a resoluccedilatildeo do embate entre ambas se daacute por intervenccedilatildeo de Zeus (que representa
aqui a diacuteke de Hesiacuteodo) Nota-se tambeacutem nos versos de Hesiacuteodo que a guerra (πόλεμος)
tambeacutem orienta o sentido das duas lutas assim como faz parte do aparato conceitual de
Heraacuteclito Sem guerra para ambos natildeo se perpetua a justiccedila (diacuteke) Hesiacuteodo tambeacutem apresenta
no decorrer de nove versos o aparato conceitual que nos traz luta-guerra-justiccedilaEssa posiccedilatildeo
fica mais clara em Hesiacuteodo se tomarmos Op 228-29 Εἰρήνη δ ἀνὰ γῆν κουροτρόφος οὐδέ
ποτ αὐτοῖς ἀργαλέον πόλεμον τεκμαίρεται εὐρύοπα Ζεύςmiddot (na terra vigora a Paz nutriz de
jovens e jamais para eles Zeus que vecirc longe reserva a penosa guerra)
A eacuteris de Heraacuteclito aparece de forma consistente em outras passagens ainda relacionada
diretamente com a diacuteke como197em B 80 Eacute o que observamos na obra do neoplatocircnico
Oriacutegenes ao citar Heraacuteclito Vejamos por partes Inicialmente Heraacuteclito separa o sentido de
πόλεμος (combate e sendo assim diferente de eacuteris mas ainda com sentido parecido como
veremos agrave frente) sendo aquilo que eacute o comum e dizendo que eacute preciso saber disso (εἰδέναι δὲ
χρὴ) Jaacute a eacuteris relaciona-se necessariamente com a diacuteke trazendo daiacute a universalidade do
fragmento estariam todas as coisas (πάντα) sujeitas a elas Marcovich (1978 p 97) apresenta
a seguinte relaccedilatildeo πόλεμος = ξυνός δίκη = ἔρις πάντα = κατ ἔριν Eacute uma forma de marcar a
importacircncia da relaccedilatildeo entre a justiccedila e a luta no sentido de que ao final completa-se um ciclo
de justiccedila poacutes-batalhas pensando aiacute batalhas que envolvem as palavras a natureza todas as
coisas (πάντα) Uma coisa devemos observar se em Parmecircnides diacuteke se apresenta como uma
197 Segundo West (1971 p 138) Eacuteris eacute uma Deusa indispensaacutevel Eacuteris e Diacuteke satildeo o mesmo porque executam as mesmas atribuiccedilotildees
200
deusa que nos mostra a verdade do ser tendo Hesiacuteodo como ponte em Heraacuteclito ela faz parte
de um processo dinacircmico que se movimenta pela luta e embate entre os contraacuterios
Em DK B 94 observamos semelhantes conceitos na voz de Plutarco ao citar Heraacuteclito
Associam-se as Ἐρινύες (as Eriacutenias) e Δίκη (Justiccedila) Segundo Kirk (1954 p 285) as palavras
ldquoἘρινύες μιν Δίκηςrdquo exatamente nessa sequecircncia provavelmente natildeo foram criadas por
Heraacuteclito mas sim citadas de alguma fonte conhecida na eacutepoca Kirk tambeacutem observa a
presenccedila do fogo como uma alusatildeo ao se observar a citaccedilatildeo de Heacutelio (Ἥλιος) como aquele que
natildeo pode ultrapassar as medidas (μέτρα) Kirk ainda lembra que μέτρα podem ser relacionadas
com a passagem dos dias daiacute importante relaccedilatildeo com Heacutelio bem como de nossa parte
observamos mais uma possiacutevel referecircncia criacutetica a Hesiacuteodo que era autoridade na descriccedilatildeo do
ciclo dos dias
Mantendo ainda essa ideia de embate temos em B 53 e o conceito de poacutelemos outra
forma de luta Segundo West (1971 p 138) poacutelemos natildeo eacute a mesma forccedila de embate que eacuteris
mas eacute tambeacutem uma forccedila de guerra e tensatildeo Da mesma forma poacutelemos nos traz a ideia de
embate de disputa entre os contraacuterios movimento de importacircncia na obra de Heraacuteclito Todas
as coisas vecircm a ser atraveacutes desse fluxo da justiccedila e da discoacuterdia exacerbando novamente o
papel dos opostos que ao final sintetizam uma bela harmonia
Os conceitos de eacuteris diacuteke ao nosso ver se conectam diretamente com loacutegos nesse
proacuteprio fluxo dos opostos assumindo a ideia de que toda transformaccedilatildeo orquestrada pelo loacutegos
esse ldquosempre-fluirrdquo se daacute por um choque de opostos Eacute o que observamos abaixo ao tratar
Heraacuteclito de ἀντίξουν συμφέρον διαφέρoν e ἁρμονίαν contraacuterio convergente divergente e
harmonia dentro do fragmento B 8 que retomamos novamente τὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ
τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίαν καὶ πάντα κατ ἔριν γίνεσθαι (o contraacuterio eacute convergente
e dos divergentes nasce a mais bela harmonia e tudo segundo a discoacuterdia) Mas do que se
conectar com loacutegos satildeo espeacutecies de etapas para observamos a dinacircmica determinada
possivelmente pelo loacutegos
Apresentam-se aqui outras ideias acerca da tensatildeo entre os contraacuterios e dinacircmica proacutepria
do pensamento de Heraacuteclito que eacute o movimento dos opostos Satildeo os termos ἀντίξουν198
συμφέρον199 e διαφέρoν que satildeo conduzidos exatamente pela eacuteris mas que se somam em nossa
198 Segundo LSJ opposed to adverse opposition in hostile spirit 199 Segundo LSJ (verbo sympheacutero) bring together gather collect confer a benefit be useful or profitable work with assist
201
interpretaccedilatildeo aos conceitos de loacutegos e diacuteke pois satildeo os proacuteprios indicativos mais baacutesicos do
movimento de transformaccedilatildeo principalmente se observarmos os prefixos que formam essas
palavras ἀντι- 200(contra) συμ-201 (com) e δια-202 (atraveacutes) prefixos que datildeo quase que um tom
dialeacutetico se eacute que eacute possiacutevel falar de dialeacutetica em Heraacuteclito sem soar anacrocircnico Um tom
dialeacutetico pois a sequecircncia do argumento aponta contraacuterios que convergem divergentes que
harmonizam segundo a eacuteris
De tantos outros conceitos importantes observados nos fragmentos de Heraacuteclito
acreditamos que esses acima a saber eacuteris diacuteke e seus fundamentos em antiacuteksoun sumpheacuteron
diapheacuteron (discoacuterdia justiccedila contraacuterio convergente e divergente) satildeo aqueles que mais se
aproximam de forma criacutetica na conexatildeo com a poesia de Hesiacuteodo Aproximam-se pela afinidade
e sentido dos termos mas se distanciam pelo modelo de realidade colocado pelos autores
Escrevem aquilo que poderiacuteamos chamar os pressupostos da obra de Heraacuteclito Eacute um
vocabulaacuterio baacutesico que retrata a perplexidade diante da natureza da linguagem da natureza
fiacutesica bem como da natureza da individualidade
Mais do que isso os conceitos acima tratados amplificam o conceito de loacutegos como o
artiacutefice da mudanccedila operador do fluxo amplificam a criaccedilatildeo conceitual de Heraacuteclito Na
descriccedilatildeo dos conceitos de Heraacuteclito pudemos observar uma menccedilatildeo taacutecita agrave tradiccedilatildeo que
Hesiacuteodo representava sem nomear o poeta Podemos por exemplo estabelecer essa disputa
teoacuterica acerca do proacuteprio conceito de eacuteris Heraacuteclito a sua maneira transforma Hesiacuteodo em
parte de uma eacuteris acerca de quem melhor educa Isso eacute o que nos diz Hesiacuteodo em Op 11-16
citado anteriormente
200 Sabemos da imensidatildeo de sentidos possiacuteveis desses trecircs prefixos Mas na medida de ilutrar os trecircs sentidos baacutesicos porpostos cabem algumas referecircncias de LSJ Segundo LSJ dentro do contexto eacutepico satildeo esses os sentidos baacutesicos de ἀντί ldquoI of Place opposite over against instead in the place ofrdquo Tendo como sentido baacutesico a ideia de oposiccedilatildeo 201 Segundo LSJ de forma geral ldquo1in company with together with 2 with collat notion of help or aid 3 furnished with endued with 4 of things that belong or are attached to a person 5 of things accompanying or of concurrent circumstances 6 of necessary connexion or consequence 7 of the instrument or means with the help of by means of 8 Including 9 excluding apart from plusrdquo Acreditamos que todas as acepccedilotildees se apresentam com o sentido baacutesico de ldquocomrdquo de ldquojuntarrdquo 202 Segundo LSJ com os sentidos baacutesicos de ldquo1 of motion in a line from one end to the other right through 2 of motion through a space but not in a line throughout ouer 4 in Prose sts of extension along 5 in Prose of Intervals of Space II of Time1 of duration from one end of a period to the other 2 of the interval which has passed between two points of Time 3 of successive Intervals III causal through byrdquo
202
Comparando os versos Op 11-16 a DK 22 B 8 temos τὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν
διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίαν καὶ πάντα κατ ἔριν γίνεσθαι (o contraacuterio eacute convergente e
dos divergentes nasce a mais bela harmonia e tudo segundo a discoacuterdia) e DK 22 B 80 εἰδέναι
δὲ χρὴ τὸν πόλεμον ἐόντα ξυνόν καὶ δίκην ἔριν καὶ γινόμενα πάντα κατ ἔριν καὶ χρεών (E
preciso saber que o combate eacute o-que-eacute-com e justiccedila eacute discoacuterdia e que todas as coisas vecircm a
ser segundo discoacuterdia e necessidade) podemos tirar algumas conclusotildees
A princiacutepio poderiacuteamos dizer que o proacuteprio Hesiacuteodo coloca as duas eacuterides numa posiccedilatildeo
antagocircnica Mas Hesiacuteodo no duelo entre as duas quando nomeia a maacute luta nos sugere sobre
ela que a devemos honrar ῎Εριν τιμῶσι Essa eacuteris natildeo admite contradiccedilatildeo pois eacute regida pela
vontade dos imortais ἀθανάτων βουλῇσιν Eacute uma soluccedilatildeo divina mas natildeo simplificada do
assunto visto que eacute tambeacutem pela necessidade que a devemos honrar mesmo que as
consequecircncias desta eacuteris passem pela maldade e crueldade
Assim Hesiacuteodo poderia ter fornecido um paradigma para a harmonia de contraacuterios
heraclitiana A eacuteris eacute dupla ou haacute duas eacuterides mas apesar de uma ser ldquoboardquo e a outra ldquomaacuterdquo
ambas satildeo realidades incontornaacuteveis da natureza das coisas A eacuteris ldquocruelrdquo e ldquopesadardquo honram-
na os mortais por forccedila da anaacutegke pelas deliberaccedilotildees dos deuses eacuteris boa por sua vez o
Crocircnida a colocou nas raiacutezes da terra (Op 18-19)
Heraacuteclito manteacutem a essecircncia da eacuteris como disputa que leva agrave mudanccedila que no entanto
reconduz agrave unidade aos contraacuterios harmocircnicos que impulsionam o real As disputas teoacutericas
acerca da essecircncia do dia e da noite como veremos tambeacutem satildeo disputas no contexto da eacuteris
entre Hesiacuteodo e Heraacuteclito Enquanto o desejo e os desiacutegnios divinos tecircm uma funccedilatildeo clara
dentro da visatildeo hesioacutedica de mundo a fundamentaccedilatildeo de Heraacuteclito para os mesmos fenocircmenos
se daacute atraveacutes do nuacutecleo fundamental da mudanccedila pelos opostos e descriccedilatildeo do fluxo da natureza
pelo loacutegos Veremos agora como Heraacuteclito entra num embate direto com Hesiacuteodo ao
finalmente nomear aquele que ele deseja confrontar
97 HESIacuteODO POLIacuteMATA E MESTRE DE MUITOS
O que nos interessa mais nesse momento eacute apresentar como Heraacuteclito fez sua recepccedilatildeo
criacutetica agrave obra de Hesiacuteodo e como tentou refutar e superar esse poeta Atraveacutes da sua escrita
aforiacutestica marcada por uma forma diferente de criar metaacuteforas e conceitos estabeleceu Hesiacuteodo
como uma espeacutecie de interlocutor qualificado de sua obra Torna-se um interlocutor qualificado
203
porque Hesiacuteodo tratou de questotildees similares agraves de Heraacuteclito dentro de sua obra principalmente
do papel da eacuteris e da diacuteke como componentes cruciais para a formulaccedilatildeo de sua teologia e moral
Interlocutor que deve poreacutem ser superado didaticamente Para tratarmos da relaccedilatildeo entre
Heraacuteclito e Hesiacuteodo retornemos a um fragmento jaacute mencionado aqui
No fragmento DK 22 B 40 observamos Heraacuteclito descrever um atributo que natildeo
pertence somente agrave obra de Hesiacuteodo mas tambeacutem de Pitaacutegoras Xenoacutefanes e Hecateu
πολυμαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει Ἡσίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε
Ξενοφάνεά τε καὶ Ἑκαταῖον (A polimatia natildeo instrui a inteligecircncia Natildeo fosse assim teria
instruiacutedo Hesiacuteodo e Pitaacutegoras Xenoacutefanes e Hecateu) Existem nesse pequeno fragmento vaacuterios
conceitos importantes para o desenvolvimento do pensamento de Heraacuteclito bem como para a
criacutetica que ele faraacute aos representantes de uma tradiccedilatildeo que parecia ser para ele vozes de um
falso saber e falsa educaccedilatildeo
Os conceitos satildeo πολυμαθία νόος203 διδάσκω204 que em traduccedilatildeo livre seriam algo
como ldquomulti-saberrdquo ldquointeligecircnciardquo e ldquoensinarrdquo A inteligecircncia (νόος) parece ser o objetivo a ser
conquistado na argumentaccedilatildeo aforiacutestica de Heraacuteclito ou seja conquistar essa inteligecircncia
atraveacutes de um procedimento de instruccedilatildeo ou ensino que natildeo pode ser regrado ou conduzido por
essa polimatia Heraacuteclito afirma que os quatro autores detinham um saber de tipo variado e
muacuteltiplo mas que natildeo conseguiram fazer aflorar com esse saber a verdadeira inteligecircncia
Marcovitch (1978 p 45) afirma que Heraacuteclito representa aqui que o verdadeiro νόος se daacute na
apreensatildeo do loacutegos Daiacute a nossa constataccedilatildeo que Hesiacuteodo segundo Heraacuteclito natildeo poderia
mesmo ter compreendido a essecircncia de eacuteris dikeacute e poacutelemos visto que a polimatia natildeo traria
tais compreensotildees a polimatia natildeo produziu νόος natildeo apreendeu o loacutegos Heraacuteclito elenca
quatro representantes dessa poli-sabedoria afirmando que os quatro natildeo conseguem
compreender a complexidade da inteligecircncia (νόον ἔχειν οὐ διδάσκει) e sendo assim natildeo
conseguiriam educar
Vieira (2013 p 286) afirma ser esse fragmento apresentado de forma bipartite
composto por duas duplas de autores pois a partiacutecula ldquoaindardquo (αὖτίς) que divide o objeto
indicaria esses dois grupos de dois nomes de um lado Hesiacuteodo e Pitaacutegoras de outro Hecateu e
203 De forma sinteacutetica segundo LSJ ldquo1 mind perception 2 to have sense be sensible b to have ones mind directed to something 3 the mind heart 4 ones mind purpose II the sense or meaning of a word or speechrdquo 204 De forma geral διιδάσκω pode ser traduzido segundo LSJ como as accedilotildees de instruct a person or teach a thing
204
Xenoacutefanes talvez em uma suposta divisatildeo cronoloacutegica que contrapotildee vozes mais antigas a
concepccedilotildees de ideias mais proacuteximas a Heraacuteclito Kahn (1979 p 108) comenta esse fragmento
de Heraacuteclito dando sua visatildeo da relaccedilatildeo da polimatia com os quatro autores citados
There is no inconsistency between this depreciation of learning many things and the claim in VIIImdashX that a great deal of knowledge and experience is required in the pursuit of wisdom Heraclitus does not say that the polymathie is a waste of time only that it is not enough that the mere accumulation of information will not yield understanding unless it is accompanied by some fundamental insight (KAHN 1979 p 108)
Todavia o que mais nos importa aqui a eacute criacutetica a Hesiacuteodo Qual seria especificamente
a polimatia de Hesiacuteodo que natildeo instrui nesse caso especiacutefico Qual seria a falha de Hesiacuteodo
em educar atraveacutes de sua poesia Koning (2010 p 209) afirma que ldquoIt is obvious that the
critique of teaching and of polymathy are two sides of the same coin two aspects of an
epistemologically faulty systemmdashand Hesiod is apparently at the heart of itrdquo Podemos observar
Heraacuteclito caminhando para uma criacutetica mais individualizada e direta a Hesiacuteodo que iraacute se repetir
em outros fragmentos jaacute que junto a Pitaacutegoras Hesiacuteodo eacute o nome de poeta que mais ocorre
nos registros doxograacuteficos que possuiacutemos acerca de Heraacuteclito ocorre por trecircs vezes Kahn
tambeacutem comenta essa relaccedilatildeo da polimatia com a figura individual de Hesiacuteodo na obra de
Heraacuteclito
Hesiod is the poet of the remote past almost two centuries earlier than Heraclitus whose didactic poems had come to enjoy the status of revered handbooks familiar to every educated Greek the Theogony as the authoritative account of origins dynasties and family connections among the gods the Works and Days as a summa of practical lore from farming and astronomy to instruction on unlucky days As an established expert on all matters human and divine Hesiod is a natural target Pythagoras may be named next to Hesiod because he alone among Heraclitus recent predecessors had achieved a kind of legendary prestige within his own lifetime Xenophanes and Hecataeus have a narrower claim to fame they represent the diffusion of Milesian history in literary form (KAHN 1979 p 108)
Realmente o saber genealoacutegico e teoloacutegico expresso na Teogonia bem como o
compecircndio de moralidade demonstrado em Os Trabalhos e os Dias tornam-se alvos
importantes para o pensamento de Heraacuteclito como uma polimatia a ser superada Mas ainda
precisamos de um componente maior de pessoalidade para analisarmos a criacutetica de Heraacuteclito
205
frente a Hesiacuteodo pois no fragmento acima citado Heraacuteclito estaacute falando tanto de Hesiacuteodo
como de Pitaacutegoras e dos outros dois
Heraacuteclito pode ter dado uma pista e indicador maior dessa pessoalidade no fragmento
DK 22 B 57 o qual tambeacutem discorre sobre Hesiacuteodo o designando novamente como um
educador διδάσκαλος δὲ πλείστων Ἡσίοδος τοῦτον ἐπίστανται πλεῖστα εἰδέναι ὅστις ἡμέρην
καὶ εὐφρόνην οὐκ ἐγίνωσκεν ἔστι γὰρ ἕν (A maioria tem por mestre Hesiacuteodo Estatildeo convictos
de ser o que mais sabe ele que nem sabia distinguir o dia da noite Pois eacute uma e a mesma
coisa)205
Aqui observamos uma conexatildeo mais consistente entre Hesiacuteodo que eacute ldquomestrerdquo da
maioria (διδάσκαλος) e o ldquoensinardquo (διδάσκει) presente no fragmento anterior Heraacuteclito nos
apresenta mais um indicador de sabedoria hesioacutedica atraveacutes do substantivo διδάσκαλος que
revela a tradiccedilatildeo de mestre e educador que ronda a imagem de Hesiacuteodo que facilmente
podemos conectar a B 40
Reside entatildeo a polimatia de Hesiacuteodo na sua educaccedilatildeo para muitos atraveacutes da alta
penetraccedilatildeo da sua poesia no mundo grego penetraccedilatildeo em um grande puacuteblico por assim dizer
pois nos dois fragmentos eacute o estatuto de Hesiacuteodo como educador que estaacute contra a parede Eacute o
que afirma Koning trazendo Hesiacuteodo como um possiacutevel componente de curriacuteculo escolar
obrigatoacuterio dentro dos locais de formaccedilatildeo e ensino dos gregos
Hesiodic poetry was certainly on the curriculum at schools and other institutions or places of education It seems that Heraclitus was hardly speaking metaphorically when he called Hesiod the διδάσκαλος δὲ πλείστων (lsquoteacher of mostrsquo) and Plato says that the stories of Hesiod and Homer were especially damaging to the young (KONING 2010 p 50)
Natildeo metaforicamente segundo Koning Heraacuteclito chama Hesiacuteodo de educador da
maioria dando a entender que Hesiacuteodo era de fato um dos conhecimentos oficiais a serem
ministrados nos ambientes de ensino O multi-saber a erudiccedilatildeo a educaccedilatildeo satildeo relacionadas
natildeo somente a Hesiacuteodo mas a toda uma tradiccedilatildeo de poetas que ensinavam e propagavam a
cultura arcaica Contudo em DK 22 A 57 a criacutetica eacute pontual e individualizada A sabedoria de
Hesiacuteodo eacute citada e contrariada pois essa sabedoria hesioacutedica possui um limite O limite estaacute
colocado e imposto na doutrina que Heraacuteclito estaacute por defender como modelo de realidade
205 Trad Gerd Bornhein
206
Segundo sua perspectiva de realidade Hesiacuteodo peca em natildeo saber diferenciar o dia da noite
que para Heraacuteclito fazem parte do mesmo contiacutenuo de mudanccedila que existe na essecircncia de todos
os seres
Podemos analisar a diferenciaccedilatildeo do dia e da noite pelo princiacutepio heraclitiano do loacutegos
na perspectiva defendida aqui do loacutegos como um conceito que daacute unidade agrave mudanccedila contraacuterio
a estaticidade e imobilidade de se catalogar algo que seriao dia ou da noite Por isso a criacutetica
ldquoele que nem sabia distinguir o dia da noite pois eacute uma e a mesma coisardquo Essa maacutexima de
Heraacuteclito ὅστις ἡμέρην καὶ εὐφρόνην οὐκ ἐγίνωσκεν ἔστι γὰρ ἕν ao tratar de Hesiacuteodo acaba
por resumir grande parte da tese de Heraacuteclito acerca da natureza da sucessatildeo temporal o dia e
a noite se apresentam como opostos que carregam na sua oposiccedilatildeo sua proacutepria unidade As
designaccedilotildees de dia e noite estatildeo subjulgados aos efeitos de loacutegos e tambeacutem agrave disputa dos
opostos e dos contraacuterios como observamos nos fragmentos anteriores de Heraacuteclito
Hesiacuteodo natildeo saberia compreender a essecircncia do dia e da noite ele como indiviacuteduo e
representante da tradiccedilatildeo da poesia que cantava um mundo natildeo mais condizente com a visatildeo
heraclitiana E sendo assim representava uma forma imperfeita e precaacuteria de conduzir a
educaccedilatildeo grega pois natildeo demonstrava a verdade dia e noite satildeo opostos que conduzem a uma
mesma unidade que eacute o loacutegos Eacute a mesma base criacutetica que estaacute presente em DK 22 B 106 (com
versotildees de Plutarco e Secircneca) uma espeacutecie de repeticcedilatildeo de DK 22 B 57 que trata tambeacutem da
natureza dos dias bons e dias ruins que na tese de Heraacuteclito satildeo os mesmos
Περὶ δ᾿ ἡμερῶν ἀποφράδων εἴτε χρὴ τίθεσθαί τινας εἴτε ὀρθῶς Ἡράκλειτος ἐπέπληξεν Ἡσιόδῳ τὰς μὲν ἀγαθὰς ποιουμένῳ τὰς δὲ φαύλας ὡς ἀγνοοῦντι φύσιν ἡμέρας ἁπάσης μίαν οὖσαν ἑτέρωθι διηπόρηται 206 unus dies par omni est207 (Em relaccedilatildeo aos dias nefastos se eacute necessaacuterio fixar algunsou se com razatildeo Heraacuteclito censurou Hesiacuteodo por fazer uns dias bons e outros ruins dizendo que ignorava como a natureza de cada dia eacute uma e a mesma esta questatildeo foi completamente discutida em outro lugar) (Um dia eacute igual a todos os outros)
O fragmento colocou mais uma fragilidade de Hesiacuteodo ao lidar com um nuacutecleo de
oposiccedilotildees (segundo vimos nos proacuteprios conceitos de Heraacuteclito acerca das oposiccedilotildees como os
ldquocontraacuterios convergentes divergentesrdquo) no caso aqui dias bons e dias ruins Coloca-se ainda a
206 Trata-se de Plutarco Cam 19 207 Trata-se de Secircneca Ep 12 7 Trad Adaptada G Giantonni
207
questatildeo de quais seriam os ciclos hesioacutedicos que Heraacuteclito tanto criacutetica que sabedoria eacute essa
que Hesiacuteodo teria e que natildeo vale para o mundo de Heraacuteclito Mais do que natildeo valer ela natildeo
apreende o νόος como observamos em ἀγνοοῦντι que a princiacutepio natildeo estabelece relaccedilatildeo
etimoloacutegica com νόος mas quer dizer em essecircncia seguindo o verbo ἀγνοέω ldquonatildeo perceberrdquo
ldquonatildeo conhecerrdquo ldquonatildeo entenderrdquo208
Hesiacuteodo natildeo soube compreender o jogo dos opostos incluso no dia e na noite nos dias
bons e dias maus mesmo sendo um representante qualificado da polimatia grega As indicaccedilotildees
para responder a essas questotildees estatildeo demonstradas no proacuteprio fragmento se tomarmos passo a
passo a argumentaccedilatildeo de Heraacuteclito pois a natureza de cada dia eacute uma e a mesma segundo o
loacutegos A tensatildeo dos opostos no pensamento de Heraacuteclito aprofunda a questatildeo do sentido da
realidade representado aqui pelos opostos dias e noites
Quando nomeamos algo estaacute latente nessa palavra a proacutepria tensatildeo destes opostos e daiacute
os vaacuterios fragmentos de Heraacuteclito que versam sobre a transformaccedilatildeo a mudanccedila impliacutecita na
proacutepria realidade Quando nomeamos ἥμέρα deveriacuteamos saber que tanto o bom quanto o ruim
se revelam no loacutegos da palavra E Hesiacuteodo natildeo sabia disso pois natildeo tinha a percepccedilatildeo das
coisas (ἀγνοοῦντι) Por isso nossa falsa impressatildeo e tambeacutem a de Hesiacuteodo sobre dias e noites
como diferentes antagocircnicos e como ciclos distintos da passagem do tempo Pelo contraacuterio
satildeo os mesmos a sempre se transformar O fragmento DK 22 B 67 eacute enfaacutetico acerca da visatildeo
de Heraacuteclito sobre a passagem dos dias e das noites ὁ θεὸς ἡμέρη εὐφρόνη χειμὼν θέρος
πόλεμος εἰρήνη κόρος λιμόςgt (τἀναντία ἅπαντα οὗτος ὁ νοῦς) ltἀλλοιοῦται δὲ ὅκωσπερ
ltπῦρgt ὁπόταν συμμιγῆι θυώμασιν ὀνομάζεται καθ ἡδονὴν ἑκάστουgt (Deus eacute dia-noite
inverno-veratildeo guerra-paz saciedade-fome mas altera-se tal como o fogo quando misturado
com especiarias eacute nomeado de acordo com o aroma de cada uma)
O deus eacute na verdade um jogo de oposiccedilotildees ldquoO deus eacute dia noite inverno veratildeo guerra
paz saciedade fomerdquo Nesse jogo de oposiccedilotildees do loacutegos o fragmento apresenta aquele que eacute
possivelmente o agente fiacutesico maior dessas oposiccedilotildees ldquomas se alterna como fogordquo Segundo
Kirk Raven e Schofield (2010 p 206) ldquoDeste modo o fogo eacute naturalmente concebido como
verdadeiro constituinte das coisas que determina ativamente a sua estrutura e comportamento
208 Segundo LSJ podemos definir o verbo ἀγνοέω assim ldquo(This Verb implies a form ἄγνοος = ἀγνώς 11) not to perceive or recognize to be ignorant of forget their former selves not to discern the temper of the city fail to understand not to be known recognized ignorantly by mistake in moral sense to be ignorant of what is right fail to recognizerdquo
208
que garante natildeo apenas a oposiccedilatildeo dos contraacuterios mas tambeacutem a sua unidade atraveacutes da
discoacuterdiardquo Observamos aqui o fogo como um mecanismo fiacutesico de atuaccedilatildeo do loacutegos
Hesiacuteodo ao apresentar a versatildeo arcaica do dia e da noite natildeo cumpre os requisitos de
Heraacuteclito que vislumbra a realidade pela junccedilatildeo das contradiccedilotildees e oposiccedilotildees que podem ser
observadas pela siacutentese material do fogo A afirmaccedilatildeo de Hesiacuteodo sobre a natureza do dia e da
noite criticada por Heraacuteclito pode ser encontrada por exemplo na Th 124-125 em sua
formulaccedilatildeo genealoacutegica Νυκτὸς δ᾽ αὖτ᾽ Αἰθήρ τε καὶ Ἡμέρη ἐξεγένοντο οὓς τέκε κυσαμένη
Ἐρέβει φιλότητι μιγεῖσα (Da Noite ainda o eacuteter e tambeacutem o dia foram gerados aos quais dela
concebeu e pariu apoacutes o amor com Eacuterebo) Outro exemplo estaacute em Op 765-769 em uma
formulaccedilatildeo teoloacutegica
῎Ηματα δ ἐκ Διόθεν πεφυλαγμένος εὖ κατὰ μοῖραν πεφραδέμεν δμώεσσιmiddot τριηκάδα μηνὸς ἀρίστην ἔργά τ ἐποπτεύειν ἠδ ἁρμαλιὴν δατέασθαι εὖτ ἂν ἀληθείην λαοὶ κρίνοντες ἄγωσιν αἵδε γὰρ ἡμέραι εἰσὶ Διὸς παρὰ μητιόεντοςmiddot (Os dias vindos de Zeus observa bem conforme o lote de cada um e mostra-os aos servos o dia trinta do mecircs eacute o melhor para supervisionar os trabalhos e distribuir o alimento quando o povo julga corretamente ao celebraacute-lo Estes dias vecircm da parte de Zeus saacutebio)
O dia hesioacutedico eacute uma criaccedilatildeo divina genealoacutegica eacute determinado por Zeus em todas
suas designaccedilotildees Natildeo somente Hesiacuteodo apresenta o dia e a noite como diferentes mas tambeacutem
os coloca em uma relaccedilatildeo antropomoacuterfica no cataacutelogo dos deuses Os dias se sucedem por um
ciclo bem definido por Zeus e natildeo ao sabor de um fluxo de pura transiccedilatildeo Assim Hesiacuteodo
trata da diferenccedila entre as coisas em opostos que se contrapotildeem na explicaccedilatildeo de seu modelo
miacutetico de mundo
Ao criticar o pensamento de Hesiacuteodo Heraacuteclito critica um pensamento comum da
tradiccedilatildeo poeacutetica dado como uma sabedoria da maioria uma sabedoria que tradicionalmente se
atribui aos aedos Mas aqui especificamente nomeia Hesiacuteodo e isso significa algo que deve ser
levado em conta Mais provavelmente como jaacute observamos Hesiacuteodo deveria personificar uma
corrente de poesia didaacutetica transmitida nos locais de conhecimento e debate de ideias
possivelmente nas praccedilas puacuteblicas de Eacutefeso Heraacuteclito tenta propagar um novo modo de vida
uma nova maneira de ver o mundo tenta propagar seu conceito de loacutegos De forma sumaacuteria e
sistemaacutetica Kahn afirma
209
It is not clear whether this is a separate criticism of Hesiod or a variant on XIX (D 57) It seems unlikely that Heraclitus would have diluted his attack on Hesiods doctrine of opposites mdash of which Night and Day are splendid examples mdash by turning to the conceptually less interesting contrast between lucky and unlucky days but the existence of this saying in two independent forms (Plutarch and Seneca) makes it difficult to reject out of hand Perhaps the reference is not to the annual course of the sun and its effect upon the balance of night and day but rather to the nature of the sun itself as a manifestation of cosmic fire or to the equivalence between one day and its successor (KAHN 1979 p 110)
Ao mirar Hesiacuteodo por duas vezes na mesma temaacutetica Heraacuteclito parece estabelecer um
antagonismo de peso em relaccedilatildeo agrave versatildeo de mundo consolidada pelo poeta mas que tambeacutem
parece refletir uma busca a seu proacuteprio renome Talvez Heraacuteclito quisesse ser ele o educador
presente nos locais de aprendizado da Greacutecia Antiga e por isso daacute a Hesiacuteodo um tratamento
diferenciado que Heraacuteclito natildeo daria a princiacutepio para outros poetas que parecem sofrer de um
desprezo e criacuteticas maiores sem a consideraccedilatildeo no tratamento que Hesiacuteodo tem Por termos um
recorte limitado da obra de Heraacuteclito natildeo podemos inferir que Hesiacuteodo foi seu principal opositor
teoacuterico Mas mesmo assim natildeo podemos desprezar a citaccedilatildeo nominal de Hesiacuteodo dentro da
obra de Heraacuteclito como numa espeacutecie de disputa uma eacuteris travada em plano teoacuterico
Heraacuteclito ao censurar Hesiacuteodo acerca da transitoriedade dos dias e das noites acerca
do aspecto qualitativo de serem bons ou ruins tenta se afirmar como um novo mensageiro da
verdade que ele chamou de loacutegos e que sustenta a realidade na proacutepria transformaccedilatildeo atraveacutes
do proacuteprio fluxo Mais do que isso sequestra da poesia a aura de educadora e mestre da maioria
pois eacute no embate dos contraacuterios no paradoxo contraditoacuterio da realidade no fluxo das
contradiccedilotildees que a natureza se resolve Essa constataccedilatildeo filosoacutefica segundo Heraacuteclito nunca
poderia ter sido encontrada na poesia eacutepica Por isso Heraacuteclito natildeo critica somente Hesiacuteodo
mas outros representantes da poesia
Por isso a escrita aforiacutestica eacute tatildeo importante para o modelo de realidade de Heraacuteclito
Ela descreve uma realidade mutaacutevel em plena transformaccedilatildeo Ao retomar a didaacutetica de Hesiacuteodo
o filoacutesofo de Eacutefeso o ressignifica para poder expor sua visatildeo da natureza principalmente para
escrever sua histoacuteria como o filoacutesofo do fluxo e transformaccedilatildeo da realidade colocando assim a
si proacuteprio e Hesiacuteodo novamente no imaginaacuterio e embate conceitual grego
98 SISTEMATIZACcedilAtildeO DA RELACcedilAtildeO ENTRE HESIacuteODO E OS PREacute-SOCRAacuteTICOS
210
Cabe uma breve sistematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e os Preacute-socraacuteticos
Tabela 7 Relaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e os preacute-socraacuteticos
Autor Temas Observaccedilotildees
Xenoacutefanes de
Colofatildeo
Hesiacuteodo como um teoacutelogo censuraacutevel e
um falso moralista
Xenoacutefanes escreve em versos
enaltece assim a forma de
Hesiacuteodo critica seu conteuacutedo
Heraacuteclito de
Eacutefeso
Hesiacuteodo como educador erudito poreacutem
detentor de um falso saber que natildeo daacute
conta das mudanccedilas presentes na
realidade
Quebra com a forma do verso
tradicional
Empeacutedocles
de Agrigento
Hesiacuteodo citado no contexto do tema da
disputa Relaccedilatildeo entre eacuteris e neicirckos
Preserva a forma verso
Invocaccedilatildeo agraves Musas
Anaximandro
de Mileto
Citado fragmento de Hesiacuteodo fora da
Teogonia e dos Eacuterga
Poucas fontes
Parmecircnides
de Eleia
A questatildeo do eacuteros e do khaacuteos como
origem de todas as coisas A deusa
Justiccedila
Escreve em versos invocaccedilatildeo
dos deuses Muitos paralelos com
o texto de Hesiacuteodo
Melisso de
Samos
Questatildeo acerca do khaacuteos e sua
causalidade
Questotildees que aparecem na
doxografia de um pseudo-
Aristoacuteteles do debate acerca da
causalidade
Mais especificamente Xenoacutefanes Parmecircnides e Heraacuteclito fazem referecircncia ou criticam
Hesiacuteodo da seguinte maneira
Tabela 8 Referecircncias ou criacuteticas a Hesiacuteodo
Pensador Como se apresenta a criacutetica ou referecircncia a
Hesiacuteodo
211
Xenoacutefanes de Colofatildeo Xenoacutefanes critica Hesiacuteodo (e Homero) atraveacutes
de uma nova moralidade e trato com a teologia
grega Critica a inspiraccedilatildeo poeacutetica mesmo
fazendo uso de estruturas tradicionalmente
eacutepicas
Heraacuteclito de Eacutefeso Heraacuteclito quebrou com a forma eacutepica
tradicional criticou Hesiacuteodo atraveacutes de citaccedilotildees
criacuteticas ao seu nome principalmente criticando
sua polimatia bem como descrevendo Hesiacuteodo
como incapaz de observar o loacutegos
Parmecircnides de Eleia Utilizou a forma eacutepica bem como uma estrutura
que poderiacuteamos chamar de homeacuterica e
hesioacutedica Apropria-se e vaacuterias figuras de escrita
utilizadas no texto Hesioacutedico Hesiacuteodo eacute tomado
como referecircncia impliacutecita
Talvez ateacute de forma exaustiva apresentamos a relaccedilatildeo de Hesiacuteodo com alguns filoacutesofos
preacute-socraacuteticos mais notadamente em Xenoacutefanes e Heraacuteclito que citam Hesiacuteodo
nominalmente e Parmecircnides que o cita implicitamente para exatamente demonstrar a
presenccedila do κλέος de Hesiacuteodo no ambiente riquiacutessimo do debate preacute-socraacutetico Acima
apresentamos a sistematizaccedilatildeo desse debate Essas sistematizaccedilotildees nos apresentam
1) a forma variada como Hesiacuteodo eacute recepcionado pelos preacute-socraacuteticos
2) a figura de Hesiacuteodo como um pensador a ser superado
3) os preacute-socraacuteticos como produtores de um embate teoacuterico que por um lado traz certo κλέος a
Hesiacuteodo mas por outro cria os seus proacuteprios κλέα
Vejamos agora de que maneira o κλέος se apresenta de forma concreta em dois desses
pensadores preacute-socraacuteticos Xenoacutefanes e Heraacuteclito
212
100 O ΚΛΕΟΣ NOS FRAGMENTOS PREacute-SOCRAacuteTICOS
Se tomarmos como referecircncia a vida de Parmecircnides podemos conceber essa forccedila de fama
e gloacuteria que certos pensadores consolidaram com sua obra num entorno social ateacute mesmo em
praccedila puacuteblica Πα[ρ]μενείδης Πύρητος Οὐλιάδης (sic) φυσικός (Parmecircnides filho de Pires
membro da associaccedilatildeo de Apolo naturalista) Trata-se de uma inscriccedilatildeo encontrada ao peacute de
uma estaacutetua dentro de uma escavaccedilatildeo em Veacutelia regiatildeo da antiga Eleia (GRAHAM 2010 p
208 texto 6) Eacute um registro puacuteblico da influecircncia e status que Parmecircnides possuiacutea em sua
comunidade bem como no mundo antigo Ou ainda obsevamos num texto de Plutarco Contra
Colotes 1126a Παρμενείδης δὲ τὴν ἑαυτοῦ πατρίδα διεκόσμησε νόμοις ἀρίστοις ὥστε τὰς
ἀρχὰς καθ ἕκαστον ἐνιαυτὸν ἐξορκοῦν τοὺς πολίτας ἐμμενεῖν τοῖς Παρμενίδου νόμοις
(Parmecircnides organizou sua proacutepria cidade com leis tatildeo excelentes que a cada ano os cidadatildeos
faziam um juramento de se manterem fieacuteis agraves leis de Parmecircnides209)
Trata-se de algumas informaccedilotildees de Parmecircnides como um grande legislador tendo
construiacutedo seu renome tambeacutem em praccedila puacuteblica Satildeo testemunhos escritos e talhados acerca
da influecircncia de Parmecircnides em sua cidade natal testemunhos da sua fama e reconhecimento
entre seus pares sua influecircncia no meio poliacutetico Parmecircnides foi realmente um indiviacuteduo
singular para sua poacutelis e exaltado nos ambientes puacuteblicos de debate Parmecircnides consolidou a
sua fama na Greacutecia antiga mas de maneira objetiva natildeo observamos o pensador tratar do κλέος
natildeo observamos essa palavra em seus fragmentos O mesmo natildeo acontece com Xenoacutefanes e
Heraacuteclito que nos legaram o tema do κλέος de forma expliacutecita De forma mais pormenorizada
detalharemos agora κλέος dentro do universo preacute-socraacutetico mais especificamente nas obras de
Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Se na poesia o κλέος se desenvolve como uma ferramenta de repeticcedilatildeo (textual formular
ou de preservaccedilatildeo da memoacuteria) veremos que na escrita desses autores aleacutem dos sentidos
poeacuteticos satildeo adequados ao κλέος novos sentidos Por isso cabe aqui uma breve justificativa do
porquecirc de escolhermos esses dois autores Como jaacute colocado inicialmente na apresentaccedilatildeo deste
trabalho acreditamos que eles representam alguns pontos principais a respeito de uma
ressignificaccedilatildeo do κλέος eacutepico que satildeo
209 Trad adaptada de DW Graham
213
- Uma forte criacutetica agrave tradiccedilatildeo principalmente personalizada na figura de Hesiacuteodo usando
essa criacutetica para criarem seu κλέος
- A presenccedila de um κλέος textual que daraacute materialidade agrave tese de um κλέος preacute-socraacutetico
(pois eles de fato utilizaram esse termo)
- A presenccedila de um κλέος como reconhecimento entre os primeiros filoacutesofos (satildeo vozes
repetidas pela tradiccedilatildeo)
Por isso a escolha ilustrativa destes dois pensadores No caso de Xenoacutefanes jaacute
apresentamos anteriormente a criacutetica contundente que este autor construiu no decorrer de seus
versos contra uma teologia arcaica contra poetas que natildeo apresentaram uma correta visatildeo da
moral divina e humana mas que por outro lado mantecircm uma forccedila poeacutetica consideraacutevel na
sua obra Veremos agora como essa criacutetica se conecta com a reescrita do sentido de κλέος no
aspecto criativo desse autor Devemos observar I) esse κλέος de maneira literal a saber como
Xenoacutefanes resgata essa palavra II) o κλέος de maneira concreta ou seja como Xenoacutefanes
demonstra querer se perpetuar como uma forccedila criativa
101 XENOacuteFANES EM SIacuteNTESE SOBRE HESIacuteODO E O ΚΛΕΟΣ
Daquilo que podemos compreender dos fragmentos e textos doxograacuteficos acerca de
Xenoacutefanes derivamos sua inegaacutevel conexatildeo com a poesia Xenoacutefanes aspirava a ser um grande
poeta e tambeacutem ser reconhecido por toda a Greacutecia e junto a essa grande aspiraccedilatildeo desenhou
e praticou um pensamento de extrema criticidade ao status quo da poesia consolidada pela
tradiccedilatildeo dos poetas arcaicos
Atravessou o mundo helecircnico desenvolvendo sua proacutepria fama materializada nas
doxografias que nos chegam e mais do que isso imortalizada na obra de grandes autores que
vieram depois Xenoacutefanes escreveu assim seu reconhecimento futuro Esse reconhecimento
possui uma forccedila primordial suas aspiraccedilotildees como poeta ampliam o proacuteprio escopo da poesia
como um espaccedilo de criacutetica da proacutepria poesia Apresentou criacuteticas severas a aspectos morais e
teoloacutegicos da obra de seus antecessores contra principalmente dois dos maiores representantes
do pensamento arcaico Homero e Hesiacuteodo Mas natildeo somente contra eles
Entretanto demos a devida ecircnfase aqui a enxergar uma criacutetica com ldquonome e endereccedilordquo
direta a Hesiacuteodo E ela existiu Tratando-se do nome Hesiacuteodo Xenoacutefanes parece ir mais aleacutem
214
trazendo como alvo de criacuteticas a proacutepria inspiraccedilatildeo do poeta e sua relaccedilatildeo com as Musas algo
muito caro agraves pretensotildees de verdade de Hesiacuteodo Por mais que Xenoacutefanes tentasse se afastar
dos temas e conteuacutedos tradicionais acabou sendo considerado um ldquosemelhanterdquo a Hesiacuteodo
pelo menos no fragmento que citamos de Heraacuteclito Por isso podemos tentar resumir a possiacutevel
pretensatildeo de Xenoacutefanes uma repaginaccedilatildeo da poesia atacando seu conteuacutedo mas natildeo sua
forma
A impressatildeo concreta que se desdobra destas citaccedilotildees de Hesiacuteodo por Xenoacutefanes possui
um caraacuteter de contraposiccedilatildeo criacutetica de tornar Hesiacuteodo um falso teoacutelogo tornar o conteuacutedo da
sua poesia algo reprovaacutevel Mas podemos retirar um aspecto positivo disso que eacute exatamente
o fato desse conflito com a tradiccedilatildeo poeacutetica orquestrado por Xenoacutefanes ainda se inserir em uma
forma tradicional Talvez como uma maneira de expandir sua influecircncia divulgar suas ideias
Xenoacutefanes tenha ainda se utilizado da performance antiga da meacutetrica eacutepica elegiacuteaca e jacircmbica
antigas ferramentas para tentar estabelecer algo diferente Por isso eacute Xenoacutefanes esse escritor no
limiar de uma tradiccedilatildeo que em sua forma negativa eacute encarnada por Hesiacuteodo e Homero
Independentemente de Xenoacutefanes estar criticando a poesia de Hesiacuteodo ou o autor Hesiacuteodo em
si suas criacuteticas permanecem por mais de dois milecircnios e pintam Hesiacuteodo com as cores negativas
de uma poesia censuraacutevel
Xenoacutefanes conseguiu escrever seu nome na recepccedilatildeo poeacutetica e filosoacutefica antiga atraveacutes
da exposiccedilatildeo da sua obra pelos pensadores quase que contemporacircneos a ele (como por exemplo
Heraacuteclito) bem como por toda uma sequecircncia de pensadores e doxoacutegrafos notoacuterios Platatildeo
Aristoacuteteles Dioacutegenes Laeacutercio Sexto Empiacuterico entre outros Escreveu seu nome na recepccedilatildeo
antiga tendo como um dos interlocutores ou ateacute mesmo como antagonista a figura de Hesiacuteodo
e sua bagagem poeacutetica
Ao criticar Hesiacuteodo de maneira profunda e original no trato das questotildees morais e
teoloacutegicas Xenoacutefanes amplia o κλέος hesioacutedico colocando-o como um grande debatedor de
ideias e acaba tambeacutem por estabelecer o reconhecimento e fama de Hesiacuteodo Mas de maneira
simultacircnea eacute preciso observar que Xenoacutefanes natildeo era insensiacutevel ao magnetismo que a busca
pelo κλέος exercia no modo de pensar grego
Nossa proposiccedilatildeo teoacuterica acerca do κλέος preacute-socraacutetico se torna mais evidente ao
cotejarmos novamente a passagem do κλέος de Xenoacutefanes Faremos isso agora de forma mais
analiacutetica O fragmento DK 21 B 6 jaacute comentado anteriormente deixa isso claro Xenoacutefanes
215
enaltece e se orgulha do pensamento que se espalha por toda a Greacutecia como em DK 21 B 8
Segue DK 21 B 6 com diferentes traduccedilotildees para sua melhor compreensatildeo
πέμψας γὰρ κωλῆν ἐρίφου σκέλος ἤραο πῖον ταύρου λαρινοῦ τίμιον ἀνδρὶ λαχεῖν τοῦ κλέος Ἑλλάδα πᾶσαν ἀφίξεται οὐδ ἀπολήξει ἔστ ἂν ἀοιδάων ἦι γένος Ἑλλαδικόν (Tendo mandado uma coxa de cabrito recebeste gordo pernil de boi
cevado quinhatildeo que honra um homem cuja gloacuteria atingiraacute toda a Heacutelade
e natildeo passaraacute enquanto viver a raccedila dos aedos helenos)210
(Pois tendo enviado uma coxa de cabrito recebei um pernil de touro cevado digno de um varatildeo cuja gloacuteria alcanccedilaraacute toda a Greacutecia e natildeo se apagaraacute enquanto houver a estirpe de aedos helenos)211 (Tu inviasti in regalo una coscia di capretto e ne ottenesti in cambio una grassa gamba di bue impinguato dono degno di un uomo la cui gloacuteria si estenderagrave per tutta lEllade e non verragrave meno fincheacute viva la progenie dei canti ellenici)212 (For you sent the thigh of a young goat and won a fat leg of a fatted bull a thing of honour to fall to a man whose fame will reach all Greece and never cease so long as a Greek sort of song shall be) 213
Das traduccedilotildees acima a uacutenica que daacute o sentido de κλέος como fama eacute a de Lesher (2001)
as outras apresentam o sentido de gloacuteria Os diversos autores ainda traduzem τίμιον com as
ideias de ldquohonrardquo e ldquodignidaderdquo (τίμιον ἀνδρὶ λαχεῖν) precircmio imaterial que homens dignos
receberiam na troca poeacutetica (tema jaacute por noacutes explorado anteriormente) Um breve resumo argumentativo
do fragmento se daacute por quatro elementos 1ordm verso (troca de presentes) 2ordm verso (a honra advinda desse
processo) 3ordm verso (o κλέος pan-helecircnico) 4ordm verso (o κλέος associado agrave funccedilatildeo dos aedos
O fragmento doxograacutefico em que surge parte da poesia de Xenoacutefanes inclusive o trecho
acima citado se daacute na obra Δειπνοσοφισταί (O Banquete dos eruditos) do autor Ateneu de
Naacuteucratis que viveu entre o segundo e o terceiro seacuteculo da nossa era Essa obra de escrita
eminentemente erudita (como o nome jaacute indica) tem como um de seus objetivos preservar o
210 Trad de Anna L A de A Prado (Ediccedilatildeo Os Pensadores) 211 Trad F Santoro 212 Trad GGiannantoni 213 Trad J H Lesher
216
patrimocircnio cultura da liacutengua grega principalmente seus grandes autores e sua riqueza lexical
Daiacute sua riqueza como uma obra de cunho historiograacutefico e gramatical
O contexto em que eacute citado o trecho da elegia de Xenoacutefanes em que o termo κλέος
aparece trata na verdade de outro vocaacutebulo importante para Ateneu mais especificamente duas
formas para a palavra ldquocoxa de cabritordquo κωλῆ ou κωλήν214 Segue deste vocaacutebulo κωλῆ uma
sequecircncia de autores que utilizaram esse termo entre eles Xenoacutefanes que o cita no iniacutecio de
seu verso B 6 Importante observar a importacircncia da passagem de Xenoacutefanes a ser lembrada
quase que oito seacuteculos apoacutes sua criaccedilatildeo lembrada em uma obra que trata exatamente da
preservaccedilatildeo de vocaacutebulos gregos
Uma primeira anaacutelise que podemos fazer da passagem eacute uma criacutetica velada de
Xenoacutefanes a uma categoria de poetas que enalteciam o κλέος como algo advindo do ambiente
de gloacuteria atleacutetica Lesher (2000 p 90) observa κλέος como associado ao ambiente poeacutetico mas
tambeacutem como criacutetica velada a Simocircnides que associou o termo kudroacuteteros ao tratamento dado
aos heroacuteis atletas que Xenoacutefanes combate em DK 21 B 2
De fato em DK 21 B 2 Xenoacutefanes contrapotildee as honras adquiridas por atletas que
vencem nos Jogos Oliacutempicos agrave sua proacutepria sabedoria mais especificamente nos versos 10-12
fazendo referecircncia aos privileacutegios concedidos pelas cidades aos desportistas de grande sucesso
ταῦτά κε πάντα λάχοι οὐκ ltἐὼgtν ἄξιος ὥσπερ ἐγώ ῥώμης γὰρ ἀμείνων ἀνδρῶν ἠδ ἵππων
ἡμετέρη σοφίη (receberia todas essas coisas embora sem ser digno como eu pois melhor do
que a forccedila fiacutesica de homens e cavalos eacute a minha sabedoria)
Essa possiacutevel criacutetica a Simocircnides de fato pode ser observada nas proacuteprias palavras de
Xenoacutefanes em B 21215 ὁ Σιμωνίδης διεβέβλητο ἐπὶ φιλαργυρίαι χαριέντως δὲ πάνυ τῶι
αὐτῶι λόγωι διέσυρε (β τοῦ ἰαμβοποιοῦ) καὶ μέμνηται ὅτι σμικρολόγος ἦν ὅθεν Ξενοφάνης
κίμβικα αὐτὸν προσαγορεύει (Simocircnides foi acusado de avarice[]com muita graccedila
(Aristoacutefanes) o ridicularizou com as mesmas palavras (Livro II do Satiacuterico) e lembra que era
mesquinho Por isso Xenoacutefanes chamou-o de Matildeo-de-vaca) Ou seja a criacutetica a Simocircnides pode
ser encontrada tanto na sua suposta avareza como na premiaccedilatildeo de gloacuteria aos heroacuteis atletas
214 O trecho eacute Athenaeus 9368b ldquoAttic writers say both kocirclen and kolecirc for ham [hellip] So also Xenophanes of Colophon says in his Elegies For though thou didst send but the ham of a kid thou has won the fat leg of a stout bull a rich prize for a man to win whose fame shall reach over all Greece and never cease so long as the Greek mode of songs shall be Trad C D Yonge 215 Trata-se de Escoacutelios a Aristoacutefanes A Paz 697
217
Observamos nessa passagem Xenoacutefanes sem nenhum pudor enaltecer seu ramo de
atividade frente agrave praacutetica condecoradora dos competidores dos jogos pan-helecircnicos Xenoacutefanes
aspira aqui a um status superior ao de pessoas cuja fama tambeacutem se espalha por toda a Greacutecia
o que mimetiza de certa forma as supostas pretensotildees pan-helecircnicas de Homero e tambeacutem
Hesiacuteodo Cabe lembrar que natildeo agrave toa os jogos pan-helecircnicos encontram seus antecedentes
literaacuterios nos jogos fuacutenebres em homenagem a Paacutetroclo no canto 23 da Iliacuteada nos jogos entre
os feaacutecios do canto 8 da Odisseia bem como nos jogos de Anfidamante citados em Os trabalhos
e os dias
De forma indireta observamos tambeacutem nesse fragmento uma posiccedilatildeo criacutetica diante da
glorificaccedilatildeo das vitoacuterias em competiccedilotildees atleacuteticas encontrada exatamente na obra de um dos
maiores rivais elencados por Xenoacutefanes em sua obra e caminhada intelectual Xenoacutefanes opera
uma recepccedilatildeo criacutetica do κλέος de Homero bem como repete o gesto hesioacutedico ao afirmar seu
proacuteprio κλέος O embate poeacutetico se coloca como superior agrave disputa atleacutetica
Outro aspecto pode ser observado ao cotejarmos Odisseia 8 onde temos uma cena que
encontra um paralelo com o fragmento DK 21 B 2216 aquela em que um dos feaacutecios Euriacutealo
que eacute descrito como grande atleta e detentor de beleza (115-116 127) zomba de Odisseu (159-
164) por este ainda anocircnimo sob o disfarce de um pobre andarilho natildeo aceder ao convite de
participar das competiccedilotildees Odisseu responde (166-185) sugerindo que de nada vale ter a beleza
fiacutesica (subentende-se atributo de bons atletas como Euriacutealo) se natildeo se possuir compreensatildeo
inteligecircncia e eloquecircncia (deficiecircncia que Odisseu diz ser a de Euriacutealo) Para Odisseu o homem
a quem os deuses privaram de beleza fiacutesica mas deram beleza nas palavras de modo que fale
com doccedilura e reverecircncia destaca-se nas reuniotildees do povo e eacute visto como um deus na cidade
(169-173)
Desta forma Xenoacutefanes faz alusatildeo a Odisseu que eacute o personagem representante das
qualidades intelectuais homeacutericas mas com o objetivo de acentuar uma criacutetica agrave forma
tradicional grega de se pensar em contraposiccedilatildeo agrave sabedoria especial uma daacutediva de
Xenoacutefanes Xenoacutefanes estaria talvez trazendo agrave tona um dos aspectos de uma criacutetica antiga que
jaacute estaacute presente no proacuteprio Homero agrave visatildeo de mundo heroica Xenoacutefanes faz alusatildeo ao (e
repete o gesto do) grande mestre das qualidades intelectuais homeacutericas que eacute Odisseu mas para
acentuar uma criacutetica agrave mentalidade tradicional grega (tambeacutem representada por Homero) em
216 Conforme nos sugere o prof Alessandro Rolim de Moura
218
contraposiccedilatildeo agrave sabedoria especial que eacute o talento de Xenoacutefanes Mais uma vez Xenoacutefanes
repete os poetas arcaicos mas para superaacute-los (e superaacute-los de certa forma no seu proacuteprio
jogo) e com isso fazer jus a um κλέος superior
Outra relaccedilatildeo entre o κλέος demonstrado em B 6 por Xenoacutefanes eacute a proacutepria semelhanccedila
linguiacutestica com um trecho da Odisseia Ao analisarmos os fragmentos de Xenoacutefanes em
comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo homeacuterica podemos observar uma passagem importante em Od 1
344 ἀνδρός τοῦ κλέος εὐρὺ καθ᾽ Ἑλλάδα καὶ μέσον Ἄργος (do varatildeo cuja fama eacute ampla na
Heacutelade ateacute o meio de Argos) Trata-se da Palavra de Peneacutelope a Fecircmio o qual canta a canccedilatildeo
que traz o κλέος dos grandes varotildees entre eles claramente Odisseu cujo κλέος alcanccedila
amplitude em toda a Greacutecia Observamos uma grande semelhanccedila se colocarmos lado a lado
τοῦ κλέος Ἑλλάδα πᾶσαν de Xenoacutefanes e τοῦ κλέος εὐρὺ καθ᾽ Ἑλλάδα de Homero Mais do
que a coincidecircncia de palavras nota-se a importacircncia do aedo nas duas passagens (no caso
Xenoacutefanes e o personagem Fecircmio) Mais do que isso parece ser o κλέος de Xenoacutefanes uma
espeacutecie de expressatildeo que se articula como possiacutevel foacutermula
Natildeo somente na passagem acima mencionada da Odisseia Xenoacutefanes se relaciona com
o vocabulaacuterio homeacuterico ainda em outras passagens Xenoacutefanes pode ainda ser analisando tendo
como referecircncia outras expressotildees formulares da tradiccedilatildeo homeacuterica Trabalho importante que
devemos referenciar foi feito por Joseacute B Torres-Guerra (1999 p 85) que apresenta uma anaacutelise
que contabiliza as ocorrecircncias de foacutermulas encontradas na tradiccedilatildeo homeacuterica dentro dos
fragmentos de Xenoacutefanes cuja siacutentese se daacute assim
Tabela 9 ndash Expressotildees homeacutericas em Xenoacutefanes
Expressotildees formulares Expressotildees que ocorrem 1
uacutenica vez em Homero
Elegias 6 6
Siacutelloi 4 ---
Perigrave Phyacuteseos 8 2
219
Xenoacutefanes apresenta o κλέος dentro da materialidade de suas palavras Natildeo eacute um κλέος
em com sentido isolado ou apagado mas sim descrevendo aquilo que o autor enxergava como
sua proacutepria condiccedilatildeo de poeta Como se observa em vaacuterias passagens de Xenoacutefanes (falamos
de muitas ao apresentar sua criacutetica moral a Hesiacuteodo e Homero) o mesmo junta a esse κλέος
uma possiacutevel criacutetica a seus pares Xenoacutefanes demonstra apreccedilo pelo κλέος assim como a
tradiccedilatildeo posterior a Xenoacutefanes daraacute apreccedilo ao conjunto de sua obra Xenoacutefanes se torna famoso
pela sua criaccedilatildeo conceitual Se tornou repetido pela forccedila de sua obra
Ao afirmar textualmente o κλέος em sua obra Xenoacutefanes perpetua a tradiccedilatildeo poeacutetica da
repeticcedilatildeo pelo eacutepos (jaacute que escreveu tambeacutem em hexacircmetros) Perpetua tambeacutem a fama de sua
produccedilatildeo conceitual produccedilatildeo que promove uma nova teologia que alcance toda a Greacutecia
proposiccedilatildeo de uma nova moral que supere Homero e Hesiacuteodo tudo isso mantendo a
necessidade do κλέος Xenoacutefanes tambeacutem se coloca no ambiente criativo da repeticcedilatildeo como
diferenccedila
Xenoacutefanes natildeo eacute o uacutenico poreacutem a produzir uma interpretaccedilatildeo proacutepria do κλέος
Heraacuteclito de Eacutefeso tambeacutem pode ser colocado nessa categoria de pensadores que criticaram
tanto Hesiacuteodo como a poesia tradicional mas que cria sua forccedila conceitual atraveacutes tambeacutem de
um κλέος Eacute sobre Heraacuteclito e sua relaccedilatildeo com o κλέος que falaremos agora
102 O ΚΛΕΟΣ DE HERAacuteCLITO
Ao criar toda uma rede conceitual diversa acerca da realidade ressignificando
conceitos e palavras como loacutegos eacuteris e diacuteke Heraacuteclito tambeacutem nos deixou uma polissemia de
interpretaccedilotildees e teses acerca de sua obra Interpretaccedilotildees que variam inclusive pela abordagem
temaacutetica dos seus doxoacutegrafos Segundo seus comentadores doxoacutegrafos e testemunhos mais do
que criar uma ampla obra filosoacutefica com forccedila poeacutetica (como indicam alguns trechos aqui
discutidos) Heraacuteclito deixou sua marca no debate conceitual acerca de como se explica a
natureza E a essa criaccedilatildeo conceitual Heraacuteclito parece ter oferecido o κλέος
Como jaacute apresentamos neste trabalho Heraacuteclito exerceu uma importante contribuiccedilatildeo
criativa na produccedilatildeo de ideias inclusive em seus aspectos poeacuteticos mesmo sendo um forte
criacutetico de Homero e Hesiacuteodo Na escrita atraveacutes de maacuteximas parece ter sido Heraacuteclito um autor
que buscava uma espeacutecie de fama e reconhecimento Talvez ateacute uma fama e renome que
poderiacuteamos chamar de oracular O fragmento DK 22 B 93 nos ajuda a defender essa ideia de
220
um Heraacuteclito que buscava tal atributo ateacute pelo aspecto ambiacuteguo e poeacutetico de sua linguagem
talvez para sugerir que mostrava verdades e vontades dos deuses ὁ ἄναξ οὗ τὸ μαντεῖόν ἐστι
τὸ ἐν Δελφοῖς οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει ἀλλὰ σημαίνει (O senhor cujo o oraacuteculo eacute em Delfos
natildeo pronuncia nem esconde seu significado mas o mostra por um sinal217) Mas vejamos como
essa fama e renome podem ser observados com mais rigor no texto de Heraacuteclito
Para ampliarmos a anaacutelise do κλέος de Heraacuteclito assim como fizemos ao falar de
Xenoacutefanes devemos observar I) esse κλέος de maneira literal a saber como Heraacuteclito resgata
essa palavra II) o κλέος de maneira concreta ou seja como Heraacuteclito demonstra querer se
perpetuar como uma forccedila criativa
Falemos primeiramente de I) A palavra κλέος ocorre somente uma vez no texto de
Heraacuteclito assim como em Xenoacutefanes Eacute o que nos diz DK 22 B 29218 que tratando de ponto
nevraacutelgico desta tese apresentaremos de forma destacada e na sua sequecircncia algumas opccedilotildees
de traduccedilatildeo
αἱρεῦνται γὰρ ἓν ἀντὶ ἁπάντων οἱ ἄριστοι κλέος ἀέναον θνητῶν οἱ δὲ πολλοὶ κεκόρηνται ὅκωσπερ κτήνεα
(Pois uma soacute coisa escolhem os melhores contra todas as outras um rumor de gloacuteria eterna contra as (coisas) mortais mas a maioria estaacute empanturrada como animais)219 (Haacute o que os melhores homens prefiram a tudo a gloacuteria perene agraves coisas perecedouras A grande maioria poreacutem farta-se agrave maneira do gado)220 (Prefieren pues los mejores uma cosa uacutenica en vez de todas [las demaacutes] gloria eterna antes que cosas mortales la mayoriacutea en cambio quiere atiborrarse como ganado)221 (Ils prennent une chose en eacutechange de toutes les meilleurs ndash la gloire impeacuterissable en eacutechange des choses mortelles mais le nombreux sont repus comme du beacutetail)222 (The best chose one thing above all the everlasting fame of mortals the many gorge themselves like cattle)223
217 Trad Joseacute Cavalcante de Souza 218 Trata-se de citaccedilatildeo de Heraacuteclito no teoacutelogo cristatildeo Clemente de Alexandria em Stromates 5 60 219 Trad Joseacute Cavalcante de Souza 220 Trad Damiatildeo Berge 221 Trad Rodolfo Mondolfo 222 Trad Marcel Conche 223 Trad Daniel W Graham
221
As traduccedilotildees acima transcritas optam em sua grande maioria pela traduccedilatildeo de κλέος
como gloacuteria menos Graham que utiliza a palavra ldquofamerdquo Deve se destacar tambeacutem que
enquanto a maioria interpreta θνητῶν como genitivo de comparaccedilatildeo Graham o lecirc como
restringindo o sintagma de κλέος ἀέναον O sentido baacutesico do fragmento tambeacutem parece ser
seguido por todas as traduccedilotildees um primeiro bloco de ideias que segue [αἱρεῦνται γὰρ ἓν ἀντὶ
ἁπάντων οἱ ἄριστοι] =gt [κλέος ἀέναον θνητῶν] com o sentido baacutesico de que os melhores
buscam uma soacute coisa que eacute o κλέος um segundo bloco de ideias que indica [οἱ δὲ πολλοὶ] =gt
[κεκόρηνται ὅκωσπερ κτήνεα] com o sentido baacutesico de que a maioria se comporta
bestialmente
Cabe uma anaacutelise inicial do contexto em que o fragmento eacute lanccedilado dentro da obra de
Clemente de Alexandria Stromates 5 60 para ver se esse esquema geneacuterico se confirma O
argumento se inicia em 5 59 4
αἱ γοῦν Ἰάδες μοῦσαι διαρρήδην λέγουσι τοὺς μὲν πολλοὺς καὶ δοκησισόφους δήμων ἀοιδοῖσιν ἕπεσθαι καὶ νόμοισι χρέεσθαι εἰδότας ὅτι πολλοὶ κακοί ὀλίγοι δὲ ἀγαθοί τοὺς ἀρίστους δὲ τὸ κλέος μεταδιώκειν αἱρεῦνται γάρ φησίν ἓν ἀντὶ πάντων οἱ ἄριστοι κλέος ἀέναον θνητῶν οἱ δὲ πολλοὶ κεκόρηνται ὅπως κτήνεα224 (As musas jocircnicas dizem expressamente que a maior parte dos homens e os pretensos saacutebios apreciavam os cantores populares e suas modinhas sabendo embora ser a maioria ruim e poucos bons os melhores homens poreacutem cuidariam da gloacuteria pois assim fala Haacute o que os melhores homens prefiram a tudo a gloacuteria perene agraves coisas perecedouras A grande maioria poreacutem farta-se agrave maneira do gado)225
O contexto da obra Stromates de Clemente de Alexandria gira em torno de argumentos
filosoacuteficos colhidos na Antiguidade grega que justificam a tese de Clemente de que o
cristianismo eacute uma consequecircncia do pensamento antigo e tambeacutem uma evoluccedilatildeo intelectual
greco-romana Inclusive satildeo colhidas teses de alguns pensadores gnoacutesticos para analisar
questotildees teoloacutegicas principalmente acerca da perfeiccedilatildeo de Deus do martiacuterio cristatildeo da ascese
e da feacute
Observamos um trecho em que ele cita Heraacuteclito que inclusive eacute um trecho que versa
sobre a busca da verdade que estaria no rol de autores elencados por Clemente velada em
224 Retirado de Marcovich (1978 p 349) 225 Trad Damiatildeo Berge
222
simbologias Inclusive em Heraacuteclito que eacute denominado no texto de Clemente como Ἰάδες
μοῦσαι (Musas Jocircnicas) Cabe uma breve reflexatildeo sobre essa denominaccedilatildeo Lembrando poreacutem
aquilo que jaacute dissemos ao tratar do estilo de Heraacuteclito Lucreacutecio pode ter colocado tambeacutem essa
ideia sobre Heraacuteclito em sua obra
No texto platocircnico Sofista 242 d-e observamos essa denominaccedilatildeo Ἰάδες δὲ καὶ
Σικελαί τινες ὕστερον Μοῦσαι συνενόησαν ὅτι συμπλέκειν ἀσφαλέστατον ἀμφότερα καὶ λέγειν
ὡς τὸ ὂν πολλά τε καὶ ἕν ἐστιν ἔχθρᾳ δὲ καὶ φιλίᾳ συνέχεται (Posteriormente certas Musas da
Jocircnia e da Siciacutelia concluiacuteram que o mais certo seria combinar as duas teses e dizer o ser eacute ao
mesmo tempo uno e muacuteltiplo mantendo-se a sua coesatildeo pelo oacutedio e pela amizade)226 Trata-
se de uma analogia entre duas teses a de Heraacuteclito Musa Jocircnica (o ser eacute ao mesmo tempo uno
e muacuteltiplo) e Empeacutedocles Musa da Siciacutelia (mantendo-se a sua coesatildeo pelo oacutedio e pela
amizade) Outra referecircncia importante que traz Heraacuteclito como Musa Jocircnica estaacute em Dioacutegenes
Laeacutercio Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres 912 como jaacute apresentamos
Σέλευκος μέντοι φησὶν ὁ γραμματικὸς Κρότωνά τινα ἱστορεῖν ἐν τῷ Κατακολυμβητῇ Κράτητά τινα πρῶτον εἰς τὴν Ἑλλάδα κομίσαι τὸ βιβλίον ltὃνgt καὶ εἰπεῖν Δηλίου τινὸς δεῖσθαι κολυμβητοῦ ὃς οὐκ ἀποπνιγήσεται ἐν αὐτῷ ἐπιγράφουσι δ᾽ αὐτῷ οἱ μὲν Μούσας οἱ δὲ Περὶ φύσεως Διόδοτος δὲ ἀκριβὲς οἰάκισμα πρὸς σταθμὴν βίου (O gramaacutetico Seleucos entretanto diz que um certo Crocircton em sua obra O Mergulhador relata que um certo Crates foi o primeiro a trazer para a Heacutelade a obra de Heraacuteclito tambeacutem foi ele que disse que a obra necessitava de um mergulhador deacutelio para natildeo nos afogarmos nela Alguns autores datildeo-lhe o tiacutetulo de As Musas outros Da Natureza mas Diocircdoto a chama de ldquoguia exato para a regra da vidardquo)227
Observa-se entatildeo que As Musas seria uma espeacutecie de tiacutetulo da obra de Heraacuteclito por
isso talvez a denominaccedilatildeo que observamos em Clemente de Alexandria aleacutem da referecircncia
encontrada em Lucreacutecio e no Sofista de Platatildeo Mais um detalhe importante eacute outra citaccedilatildeo a
Heraacuteclito dentro da obra Stromata em 47502 com quase o mesmo conteuacutedo de DK 22 B 29
κἀντεῦθεν Ἡράκλειτος ἓν ἀντὶ πάντων κλέος ᾑρεῖτο τοῖς δὲ πολλοῖς παραχωρεῖν ὁμολογεῖ
κεκορῆσθαι ὅκωσπερ κτήνεσι (Heraacuteclito preferia uma coisa gloacuteria a tudo mais e professa
lsquoque ele permite que a multidatildeo se encha de saciedade como gadorsquo)228 Como observamos
226 Trad Joseacute Cavalcante de Souza 227 Trad Mario da Gama Kury 228 Trad baseada em Philip Schaff
223
nesta passagem Heraacuteclito eacute chamado pelo nome mas cabe ressaltar que o κλέος aqui eacute uma
atribuiccedilatildeo de Clemente a Heraacuteclito
Mas voltemos agrave passagem completa de Clemente No iniacutecio da passagem ldquoAs musas
jocircnicas dizem expressamente que a maior parte dos homens e os pretensos saacutebios apreciavam
os cantores populares e suas modinhasrdquo e ainda ldquosabendo embora ser a maioria ruim e poucos
bonsrdquo Podemos entender esse trecho como uma criacutetica agrave tradiccedilatildeo da poesia eacutepica bem como
ao falso saber que ela trazia assim como jaacute debatemos ao apresentar a criacutetica de Heraacuteclito a
Homero e Hesiacuteodo jaacute que δοκησισόφους faz referecircncia aos falsos saacutebios que adoravam
exatamente os δήμων ἀοιδοῖσιν O trecho faz referecircncia aos cantores populares que nos
lembram a educaccedilatildeo eacutepica e suas ldquomodinhasrdquo que poderiacuteamos traduzir tambeacutem por ldquo leisrdquo ou
ldquocanccedilotildeesrdquo pois o termo utilizado por Clemente eacute νόμοισι (νόμος pode significar ldquocostume leirdquo
ou um modo musical ldquocanccedilatildeordquo)
Clemente deixa claro que desses cantores (ou dentre as pessoas em geral) a maioria eacute
ruim e pequena parte eacute boa Essa minoria eacute boa exatamente por manter o κλέος τοὺς ἀρίστους
δὲ τὸ κλέος μεταδιώκειν (os melhores homens poreacutem cuidariam da gloacuteria) O κλέος assume
aqui claramente uma conotaccedilatildeo de valor positivo ou seja eacute mantido por aqueles ditos τοὺς
ἀρίστους Eacute a afirmaccedilatildeo de Clemente que a partir desse momento na citaccedilatildeo faz referecircncia ao
discurso de Heraacuteclito sobre o κλέος E o fragmento de Heraacuteclito segue a mesma linha de
argumentaccedilatildeo
Como jaacute observamos ao tratar das traduccedilotildees o fragmento apresenta um primeiro bloco
de ideias que segue [αἱρεῦνται γὰρ ἓν ἀντὶ ἁπάντων οἱ ἄριστοι] ligado a [κλέος ἀέναον θνητῶν]
argumentando que os melhores buscam o κλέος E um segundo bloco de argumentaccedilatildeo [οἱ δὲ
πολλοὶ] [κεκόρηνται ὅκωσπερ κτήνεα] no sentido de que a maioria se comporta de maneira
animalesca Eacute um fragmento com oposiccedilotildees bem marcadas A primeira oposiccedilatildeo eacute entre οἱ
ἄριστοι e οἱ πολλοὶ os melhores em contraposiccedilatildeo agrave grande maioria Uma outra oposiccedilatildeo eacute
entre aquilo que os melhores preferem (uma uacutenica coisa) frente agravequilo que a maioria prefere
ie ldquocomerrdquo A terceira oposiccedilatildeo a que daremos o destaque eacute exatamente entre κλέος ἀέναον
(gloacuteria perene) contraacuterio a θνητῶν (as coisas perecedouras)
Vejamos quem (ou o que) seriam esses οἱ ἄριστοι para Heraacuteclito Marcel Conche
argumenta (1998 p 121) que nesse trecho Heraacuteclito trata dos heroacuteis de batalha (οἱ ἄριστοι)
contrapondo-se aos homens comuns (οἱ δὲ πολλοὶ) Argumenta ainda que o κλέος descrito ali
eacute comum aos heroacuteis de batalha inclusive que Heraacuteclito estaria fazendo referecircncia ao κλέος de
224
Aquiles Essa referecircncia a Aquiles e aos guerreiros sustentaria o significado desse κλέος O que
Conche natildeo argumenta mas que poderiacuteamos complementar a seu raciociacutenio eacute que Heraacuteclito
faz menccedilatildeo aos ldquomelhoresrdquo tambeacutem nos fragmentos DK 22 B 49 e B 118 respectivamente B
49229 εἷς ἐμοὶ μύριοι ἐὰν ἄριστος ἦι (Um para mim vale mil se for o melhor) e B 118230 αὐγὴ
ξηρὴ ψυχὴ σοφωτάτη καὶ ἀρίστη (Brilho seco eacute a alma mais saacutebia e melhor) Novamente
Heraacuteclito apresenta em B 49 a primazia do melhor perante ldquoos muitosrdquo (μύριοι) bem como em
B 118 a qualificaccedilatildeo de uma melhor alma (ψυχὴ) como aquela que se aproximaria de uma
referecircncia ao ldquobrilho secordquo denotando o papel do fogo na teoria heraclitiana
Conche ainda (1998 p 120) descarta a vinculaccedilatildeo desse κλέος a uma possiacutevel gloacuteria
do filoacutesofo Sua justificativa estaria no fato de que o filoacutesofo ao alcanccedilar a verdade eterna
atraveacutes do discurso natildeo se importa com a gloacuteria Ou seja o autor considera aqui o κλέος
somente tratando-se de uma gloacuteria da batalha Poreacutem Conche natildeo leva em conta a totalidade
da citaccedilatildeo de Clemente que como jaacute argumentamos falava acerca dos poetas populares
(δήμων ἀοιδοῖσιν) e dos pretensos saacutebios (δοκησισόφους) ou seja natildeo podemos falar de um
κλέος somente guerreiro
Segundo Marcovich (1978 p 349) a grande dificuldade de interpretaccedilatildeo dessa
passagem estaacute na palavra θνητῶν que poderia ser traduzida no trecho como ldquogloacuteria entre os
mortaisrdquo ldquode mortais como elesrdquo exatamente por estar no genitivo Normalmente se traduz
como πρὸς θνητῶν e natildeo como ἀντὶ θνητῶν que no caso eacute a opccedilatildeo desse comentador Observa-
se poreacutem nas traduccedilotildees aqui apresentadas que a maior parte dos tradutores interpretam a
expressatildeo como ἀντὶ θνητῶν isto eacute ldquono lugar das coisas mortaisrdquo denotando o que ldquonatildeo se
prefererdquo Jaacute πρὸς θνητῶν teria como possiacuteveis traduccedilotildees ldquona presenccedila dos mortaisrdquo ldquode junto
aos mortaisrdquo ldquoque conveacutem aos mortaisrdquo
Nenhuma das traduccedilotildees citadas acima todavia traduz ἀέναον como ldquode eterno fluir231rdquo
que eacute uma das possibilidades de traduccedilatildeo segundo LSJ ldquoever-flowingrdquo232 Inclusive com um
exemplo retirado de Hesiacuteodo Op 595 κρήνης τ ἀενάου καὶ ἀπορρύτου (De liacutempida fonte
229 Trata-se de Galeno De Dignoscendis Pulsibus VIII 733 Trad Joseacute Cavalcante de Souza 230 Trata-se Estobeu Florileacutegio V 8 Trad Joseacute Cavalcante de Souza 231 Hooper (2015) ao analisar a obra de Kirk (1954) apresenta essa possibilidade de interpretaccedilatildeo do κλέος de Heraacuteclito como ldquoeverflowingrdquo colaborando para as conclusotildees de nossa tese Mas cabe a referecirccia a Berge (1969 p 110) que jaacute descrevia a possibilidade de se pensar aeacutenaon como fluxo em Heraacuteclito Outra autora que segue essa linha de raciociacutenio eacute Martha Nussbaum (1972 p 20) ao associar tambeacutem aeacutenaon a ldquosempre-fluirrdquo 232 LSJ apresenta essa possibilidade e ainda traz algumas passagens que exemplificam ldquoever-flowing κρήνης τ ἀενάου καὶ ἀπορρύτου Hes Op595 ἀ λίμνη ποταμός Hdt193145 cf Simon120 ποταμοί ASupp553 EIon1083 cf 118 Ἀχέρων Theoc15102 ἀενάου πυρός PiP16 cf CallAp83rdquo
225
corrente sempre a fluir) Nesse sentido poderiacuteamos pensar a traduccedilatildeo da expressatildeo κλέος
ἀέναον θνητῶν em algo como a ldquogloacuteria de eterno fluir agraves coisas mortaisrdquo Tal traduccedilatildeo manteria
a complexidade e criaccedilatildeo conceitual de Heraacuteclito adicionada agrave heranccedila e tradiccedilatildeo do κλέος
Mudaria tambeacutem o sentido de οἱ ἄριστοι pois esses melhores estariam tambeacutem
subjugados agrave forccedila desse eterno fluir Optando-se por essa traduccedilatildeo o κλέος desenhado por
Heraacuteclito encarnaria o sentido baacutesico do loacutegos como o orquestrador do fluxo da realidade
Poucos teriam esse κλέος de eterno fluir
O κλέος associado com um ldquosemprerdquo pode ser tambeacutem observado na tradiccedilatildeo homeacuterica
Em Homero observamos a seguinte passagem (Od 24 93-94) ὣς σὺ μὲν οὐδὲ θανὼν ὄνομ᾽
ὤλεσας ἀλλά τοι αἰεὶ πάντας ἐπ᾽ ἀνθρώπους κλέος ἔσσεται ἐσθλόν Ἀχιλλεῦ (Assim tu nem
apoacutes morrer perdeste o nome mas sempre entre todos os homens tua fama seraacute distinta
Aquiles) Seria uma formulaccedilatildeo parecida com o trecho de Heraacuteclito ressaltando o adveacuterbio
eacutepico αἰεὶ que eacute parte da palavra ἀέναον que possui sua etimologia na junccedilatildeo entre αἰεὶ
(sempre) + νάω (verbo fluir) Eacute uma marcaccedilatildeo interessante por estar αἰεὶ completando o sentido
de κλέος nessa passagem homeacuterica assim como ἀέναον completa-o no trecho de Heraacuteclito
Com sentido similar agrave nossa opccedilatildeo pelo ἀέναον de Heraacuteclito como ldquosempre fluirrdquo
observamos o trecho κόσμον ἀέναον κλέος do poeta Simocircnides no fr 26 18233 Esse κλέος de
Heraacuteclito pode nos remeter a alguns outros valores poeacuteticos como em Simocircnides mas vistos
por outro acircngulo conectando-se inclusive com o κλέος do personagem Aquiles e mantendo o
mesmo sentido de ldquosempre fluirrdquo Khan (1979 p 233-234) comenta o sentido desse fragmento
e tambeacutem sustenta nossa visatildeo
DK 22 B 29 give us two opposing conceptions of life and immortality the choice of the noblest (hoacutei aristoacutei) like Achilles in love with imperishable fame (κλέος) in contrast to the desires and satisfaction of most men who are compared to cattle or beasts of burden (kteacutenea) [hellip] Achilles is the paradigmatic hero precisely because when confronted with a clear choice between long life (aioacuten) or undying fame (κλέος) to be paid for by an early death he unhesitatingly pursues the course of honor and death in combat
233 ldquoτῶν ἐν Θερμοπύλαις θανόντων εὐκλεὴς μὲν ἁ τύχα καλὸς δ᾽ ὁ πότμος βωμὸς δ᾽ ὁ τάφος πρὸ γόων δὲ μνᾶστις ὁ δ᾽ οἶκτος ἔπαινος ἐντάφιον δὲ τοιοῦτον οὔτ᾽ εὐρὼς οὔθ᾽ ὁ πανδαμάτωρ ἀμαυρώσει χρόνος ἀνδρῶν ἀγαθῶν ὅδε σηκὸς οἰκέταν εὐδοξίαν Ἑλλάδος εἵλετο μαρτυρεῖ δὲ καὶ Λεωνίδας Σπάρτας βασιλεύς ἀρετᾶς μέγαν λελοιπὼς κόσμον ἀέναόν τε κλέοςrdquo (Daqueles que morreram em Termoacutepilas gloriosa eacute a fortuna justo o destino seu tuacutemulo eacute um altar pelo lamentar eles tecircm lembranccedila por louvor de piedade Um tal presente funera1 nem o mofo nem o tempo de tudo conquistador deve destruir Este recinto de homens nobres escolheu a gloacuteria da Greacutecia como habitante testemunha disso eacute o proacuteprio Leocircnidas rei de Esparta que deixou um grande adorno de valor e gloacuteria impereciacutevel) Trad baseada em David A Campbell
226
Heraclitus has generalized this choice as an option between two forms of death and survival a flaming ardor for one thing in exchange for all or the animal satisfactions of a portion of life continued across the generations by procreation [hellip] The phrase which follows immediately everflowing fame among (literally) mortals is marked by a curious syntactic ambiguity and a famous literary parallel In his encomium on the glorious dead of Thermopylae Simonides spoke of the tomb which is an altar a funeral offering which all-conquering time will not efface and of Leonidas who left behind a great adornment of excellence (areteacutes koacutesmon) and everflowing fame (aeacutenaon te κλέος)
Kahn apresenta um correlato literaacuterio de grande relevacircncia que demonstra mais uma vez
a afinidade de Heraacuteclito com as questotildees postas pela poesia revela um paralelo com o encocircmio
do poeta liacuterico Simocircnides dirigido aos guerreiros de Termoacutepilas As palavras εὐκλεὴς (de boa
fama bom renome) e κλέος datildeo bem o tom do renome heroico que Simocircnides quer passar
Realmente a expressatildeo κλέος ἀέναον θνητῶν (gloacuteria-eterno-fluir dos mortais) de Heraacuteclito
muito se parece com κόσμον ἀέναόν τε κλέος (ornamento ordem de valor e gloacuteria-eterno-fluir)
de Simocircnides E aqui une-se a doutrina propriamente dita de Heraacuteclito do ἀέναoν eterno-fluir
exatamente com a ideia de κλέος o conceito se conecta com a fama almejada por Heraacuteclito
Falando ainda em ἀέναον como ldquoeterno fluirrdquo coletamos ainda mais um exemplo na obra Leis
onde Platatildeo fala acerca do ser ldquoque flui eternamenterdquo (ἀέναον οὐσίαν)234 ao tratar das
caracteriacutesticas da alma com seu estatuto divino Satildeo indicaccedilotildees de que a opccedilatildeo de ἀέναον κλέος
como gloacuteria do ldquosempre fluirrdquo eacute algo possiacutevel
Poreacutem Kahn natildeo atenta ao fato de que κλέος ἀέναόν pode fazer alusatildeo exatamente ao
loacutegos como aquilo que Heraacuteclito proclama como o mais importante de sua obra aquilo que
deveria permanecer acima inclusive de seu proacuteprio nome Eacute o que nos diz o fragmento DK 22
B 50 aqui jaacute comentado οὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν
πάντα εἶναι (Natildeo de mim mas do loacutegos tendo ouvido eacute saacutebio homologar tudo eacute um) Eacute o loacutegos
que deve ser ouvido eacute do loacutegos que devemos derivar a concepccedilatildeo de ldquoeterno-fluirrdquo da realidade
eacute do loacutegos que se forma o κλέος No caso de Heraacuteclito o κλέος passa a ter um sentido muito
mais caracteriacutestico daquilo que pensamos ser a grande marca conceitual desse pensador o fluxo
da natureza e das palavras orquestrado pelo loacutegos Mais ainda como dissemos anteriormente
234 ldquoἓν μὲν ὃ περὶ τὴν ψυχὴν ἐλέγομεν ὡς πρεσβύτατόν τε καὶ θειότατόν ἐστιν πάντων ὧν κίνησις γένεσιν παραλαβοῦσα ἀέναον οὐσίαν ἐπόρισενrdquo (Um eacute o nosso dogma sobre a alma - que eacute a mais antiga e divina de todas as coisas cujo movimento quando desenvolvido em tornar-se fornece uma fonte sempre fluente de serrdquo Trad baseada em RG Bury
227
devemos lembrar que uma das acepccedilotildees de loacutegos pode ser tambeacutem ldquofamardquo ou ldquorenomerdquo isso
fortalece ainda mais a relaccedilatildeo do κλέος colocado no fragmento de Heraacuteclito com sua proacutepria
criaccedilatildeo conceitual
Isso nos faz passar para a concepccedilatildeo II o κλέος de maneira concreta Ou seja como
Heraacuteclito demonstra querer se perpetuar como uma forccedila criativa
Ao pensarmos ἀέναον κλέος como parte de uma escrita conceitual maior em Heraacuteclito
o fazemos para apontar Heraacuteclito como um articulador e criador de um novo κλέος Esse novo
κλέος retrataria de forma mais clara a definiccedilatildeo da natureza como um fluxo constante como
parte de uma mecacircnica de movimentos ainda maior que estaria subjugada agrave dinacircmica do loacutegos
Heraacuteclito daria um novo sentido filosoacutefico a um termo consolidado na eacutepica Daria ainda um
novo sentido se verificarmos o trecho inteiro inclusive ao ofiacutecio dos homens bons dos homens
virtuosos
Se tomarmos o κλέος relacionado com esse ldquosempre fluirrdquo eacute inevitaacutevel a relaccedilatildeo que
fazemos com a proacutepria criaccedilatildeo conceitual de Heraacuteclito acerca do loacutegos Da mesma maneira que
Hesiacuteodo criou o seu κλέος da mesma maneira que Xenoacutefanes buscou seu κλέος Heraacuteclito
tambeacutem apresenta evidecircncias de que buscava essa gloacuteria e renome Mais do que desejar esse
κλέος ele o constroacutei atraveacutes da sua criatividade conceitual
Heraacuteclito ainda aponta as qualidades daqueles que buscam esse κλέος satildeo os melhores
(οἱ ἄριστοι) numa apresentaccedilatildeo dicotocircmica entre o comum e o fluxo eterno Eacute uma alusatildeo a
toda carga interpretativa do κλέος e da imortalidade associados ao conceito de sempre fluir soacute
que natildeo mais fundamentada exclusivamente na honra do guerreiro mas tambeacutem na sabedoria
filosoacutefica que discorre sobre o fluxo harmocircnico do loacutegos O loacutegos de Heraacuteclito eacute o seu maior
κλέος Os melhores escolhem somente uma coisa que segundo Heraacuteclito repousa no fluxo e
na gloacuteria repousa no κλέος Eacute uma escolha natildeo pela vida animalesca (comparaccedilatildeo dada pelo
proacuteprio Heraacuteclito) ou ateacute mesmo por uma vida regrada por componentes materiais mas sim
uma busca pelo imaterial do eterno
Heraacuteclito descreve gloacuteria eterna pelo loacutegos soacute que agora o campo de batalha eacute o agoacuten
filosoacutefico que eacute tambeacutem o campo de aquisiccedilatildeo do κλέος Eacute a opccedilatildeo pelo κλέος repaginado
agora por toda uma obra que Heraacuteclito construiu um tipo diferente de fama que prosperou na
sua proposta filosoacutefica O loacutegos ao ser o fundamento de outros conceitos essenciais da sua
obra como a discoacuterdia no embate das forccedilas de oposiccedilatildeo existentes em todas as coisas motiva
e impulsiona seu κλέος e acaba por escrevecirc-lo na imortalidade conceitual que segue na histoacuteria
228
da filosofia como se o loacutegos de Heraacuteclito surgisse como sua assinatura singular na histoacuteria do
pensamento ocidental
O conceito de loacutegos alcanccedila a repeticcedilatildeo na materialidade das palavras de Heraacuteclito
Aleacutem disso Heraacuteclito parece empreender uma nova funccedilatildeo do κλέος na criaccedilatildeo de uma espeacutecie
de expressatildeo formular uma repeticcedilatildeo que poderia se encaixar numa meacutetrica poeacutetica mesmo
sem ter escrito em versos Tomemos κλέος ἀέναον θνητῶν Poderiacuteamos escandir a expressatildeo235
como abaixo
˘ ˘ macr ˘ ˘ macr macr macr
κλ έ ος ἀ έ να ον θνη τῶν
Por mais que Heraacuteclito repudiasse a meacutetrica eacutepica apostando na obscuridade de seu
estilo parece que aqui podemos observar uma espeacutecie de simulaccedilatildeo uma repeticcedilatildeo atraveacutes de
uma expressatildeo que embora caiba num verso homeacuterico ou hesioacutedico usa termos proacuteximos aos
que laacute estavam na tentativa de criar algo novo de aprofundar a penetraccedilatildeo do loacutegos no debate
puacuteblico Aprofundar ainda a relaccedilatildeo entre todas as coisas (πάντων) todos os melhores (οἱ
ἄριστοι) e toda a realidade nesse ldquoeterno fluirrdquo do loacutegos
Do ponto de vista meacutetrico a expressatildeo estaria ocupando o lugar das duas breves do
final de um peacute daacutetilo seguido de um daacutetilo de um espondeu e da primeira metade de um quarto
peacute Tomada isoladamente a expressatildeo tem um ritmo anapeacutestico isto eacute baseado no peacute anapesto
(˘ ˘ macr) que pode ser concebido como inversatildeo do peacute daacutetilo tatildeo caracteriacutestico do eacutepos Seria uma
sutil indicaccedilatildeo de que Heraacuteclito estaacute ldquomudando o ritmordquo do pensamento
Atraveacutes dos fragmentos de Heraacuteclito a nosso ver fica evidente a busca deste autor
por um κλέος provavelmente a ser desbravado num campo de batalha filosoacutefico e poeacutetico jaacute
que Heraacuteclito aparentemente queria conquistar tambeacutem o espaccedilo puacuteblico (como no trecho que
fala em τῶν ἀγώνων) Queria tirar dali a presenccedila de Homero Queria enfrentar Hesiacuteodo aquele
235 Hooper (2015 p 70) jaacute demonstrou a importacircncia dessa espressatildeo κλέος ἀέναον θνητῶν ldquoCentral to my interpretation of F29 is a proper appreciation of the crucial importance of the phrase κλέος ἀέναον θνητῶν lsquoeverflowing fame among mortalsrsquo Immediately noteworthy is that the phrase recalls the standard Homeric construction lsquoκλέος ἄφθιτονrsquo lsquoundying famersquo But equally noteworthy here is that Heraclitus does not merely reproduce the Homeric formula but rather adapts it replacing lsquoundyingrsquo for lsquoeverflowingrsquo and adding the post-qualification that fame flows lsquoamong mortalsrsquo The subtlety and simplicity of these changes belie their significance but this adaptation of the Homeric formula constitutes a thoroughgoing criticism of Homerrsquos presentation of kleacuteos and central to this response is the issue of fluxrdquo
229
que nos fragmentos de Heraacuteclito eacute tratado como um debatedor qualificado aquele que enxergou
o papel crucial de alguns conceitos na descriccedilatildeo da realidade mas que precisa ser superado
atraveacutes desta proacutepria disputa
Nietzsche parece ter descrito bem o κλέος de Heraacuteclito por mais que natildeo utilize esse
termo exatamente em A Filosofia na idade traacutegica dos gregos capiacutetulo 8
Pois o mundo precisa eternamente da verdade precisa portanto eternamente de Heraacuteclito embora ele natildeo precise do mundo Que lhe importa a sua gloacuteria A gloacuteria dos mortais em incessante fluxo como ele brada com desdeacutem A sua gloacuteria importa aos homens natildeo a ele imortalidade da humanidade precisa dele ele natildeo precisa da imortalidade do homem Heraacuteclito O que ele contemplou a doutrina da lei no devir e do jogo na necessidade deve contemplar-se eternamente a partir de agora foi ele quem levantou a cortina deste espetaacuteculo sublime (NIETZSCHE 1995 p 16)
As palavras usadas por Nietzsche satildeo para descrever o eterno ewig e para a gloacuteria
de Heraacuteclito Ruhm E mais ainda em ldquoDer Ruhm bei lsquoimmer fort flieszligenden Sterblichenrsquordquo (A
gloacuteria dos mortais em incessante fluxo) podemos observar uma referecircncia clara agrave passagem
acerca do κλέος de Heraacuteclito Parece que Nietzsche compreendeu o κλέος de Heraacuteclito como
sua proposta conceitual de ldquosempre fluirrdquo possivelmente fazendo referecircncia a DK 22 B 29 Natildeo
podemos contudo forccedilar a interpretaccedilatildeo Observa-se que Nietzsche nega que Heraacuteclito busque
um κλέος entendido por Nietzsche na interpretaccedilatildeo do fragmento como ldquogloacuteria de [meros]
mortaisrdquo Isto eacute Nietzsche estaria vendo o elogio aos aristoacutei como irocircnico e a gloacuteria ldquoem
incessanterdquo fluxo como despreziacutevel justamente porque passa
Observamos entatildeo como o κλέος proposto por Heraacuteclito pode ser encarado como I)
o κλέος de maneira literal em sua relaccedilatildeo com o eterno fluir da realidade e II) o κλέος de
maneira concreta a fama que derivou da figura de Heraacuteclito
103 DE QUE PODEMOS FALAR DE UM ΚΛΈΟΣ DE XENOacuteFANES E HERAacuteCLITO E
ASSIM DE UM ΚΛΕΟΣ PREacute-SOCRAacuteTICO
Podemos sistematizar da seguinte maneira o κλέος de Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Tabela 10 resumo sobre o κλέος de Heraacuteclito e Xenoacutefanes
230
Pensador I) κλέος textual II) o κλέος
como uma
forccedila criativa
ou satildeo
adequados ao
κλέος novos
sentidos
Xenoacutefanes DK 21 B 6
πέμψας γὰρ κωλῆν ἐρίφου σκέλος ἤραο πῖον
ταύρου λαρινοῦ τίμιον ἀνδρὶ λαχεῖν
τοῦ κλέος Ἑλλάδα πᾶσαν ἀφίξεται οὐδ ἀπολήξει
ἔστ ἂν ἀοιδάων ἦι γένος Ἑλλαδικόν
(Tendo enviado coxa de cabrito ganhaste uma perna gorda
de touro pingue uma honra para o homem obter
cuja gloacuteria toda Heacutelade alcanccedilaraacute e natildeo se extinguiraacute
enquanto houver a estirpe helena das canccedilotildees)
Xenoacutefanes
apresenta sua
criaccedilatildeo
conceitual para
se tornar famoso
como um criacutetico
da moralidade
desenvolvida
pelos poetas
eacutepicos como
Hesiacuteodo e
Homero
Desenvolve um
novo κλέος
principalmente
por sua nova
teologia
Heraacuteclito DK 22 B 29
αἱρεῦνται γὰρ ἓν ἀντὶ ἁπάντων οἱ ἄριστοι κλέος ἀέναον
θνητῶν οἱ δὲ πολλοὶ κεκόρηνται ὅκωσπερ κτήνεα
(Pois uma soacute coisa escolhem os melhores contra todas as
outras um rumor de gloacuteria eterna contra as coisas mortais
mas a maioria estaacute empanturrada como animais)
Heraacuteclito
apresenta sua
produccedilatildeo teoacuterica
para criar a fama
do seu conceito
de loacutegos
Principalmente
231
se tomarmos a
acepccedilatildeo de
κλέος ἀέναον
como uma
ldquofama de
sempre-fluirrdquo Eacute
um novo κλέος
pelo loacutegos
Na escalada do κλέος de Xenoacutefanes e Heraacuteclito a nosso ver Hesiacuteodo torna-se um
interlocutor fundamental Nele se concretizam as criacuteticas de ambos os autores se concretizam
os debates acerca da poesia e da realidade Hesiacuteodo torna-se assim um personagem a ser
criticado e superado na construccedilatildeo do κλέος de Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Na superaccedilatildeo de Hesiacuteodo e na produccedilatildeo de uma nova gama criativa de conceitos satildeo
adequados ao κλέος eacutepico dois novos sentidos em Xenoacutefanes eacute um novo κλέος de apelo
teoloacutegico-moral em Heraacuteclito um novo κλέος que se interconecta com a dinacircmica da realidade
explicada pelo loacutegos Desta maneira ambos os pensadores Xenoacutefanes e Heraacuteclito amplificam
sua fama por uma cadeia de repeticcedilotildees que ultrapassam tambeacutem a barreira do privado que se
torna puacuteblico ambos constroem tambeacutem seu κλέος
232
110 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS DUAS RETOMADAS CRIATIVAS DE ΚΛΕΟΣ NO
INIacuteCIO DA FILOSOFIA GREGA XENOacuteFANES E HERAacuteCLITO NA CRIacuteTICA A
HESIacuteODO
Os objetivos principais dessa tese foram apresentar 1) uma espeacutecie de caminhada do
κλέος de Homero e Hesiacuteodo para ser observado tambeacutem nas obras de Xenoacutefanes e Heraacuteclito
2) a criacutetica que Xenoacutefanes e Heraacuteclito fizeram a Hesiacuteodo para construir esse κλέος
Observamos primeiramente como a ideia de κλέος perpassa boa parte do mundo
antigo principalmente em quatro momentos Homero Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito (estes
dois uacuteltimos como um universo ainda pouco estudado na interpretaccedilatildeo do κλέος grego) Ao
observarmos essa dinacircmica de como o κλέος se desenvolveu no mundo antigo trouxemos para
nosso olhar a influecircncia teoacuterica de um κλέος como numa mecacircnica de repeticcedilatildeo e diferenciaccedilatildeo
Hesiacuteodo que faz parte da mesma tradiccedilatildeo eacutepica que Homero (segundo os teoacutericos aqui
apontados) utilizou de mecanismos mnemocircnicos e poeacuteticos que o consolidaram como um autor
que explorou um ambiente moral pedagoacutegico e teogocircnico especiacutefico que viria a ser muito
criticado pelos preacute-socraacuteticos Em especial aqui Xenoacutefanes e Heraacuteclito encaram Hesiacuteodo como
um autor a ser superado exatamente nas questotildees morais e na descriccedilatildeo da realidade
Aleacutem disso o poeta Hesiacuteodo eacute inserido no seu proacuteprio texto como uma voz autoral que
fala de si mesmo e se insere tambeacutem numa relaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo com as Musas Demonstramos
como Hesiacuteodo se insere numa tradiccedilatildeo que foi repetida e diferenciada relacionada com a
proacutepria mecacircnica do κλέος aquilo que se repete (e ao se repetir muitas vezes se torna famoso)
eacute exatamente um dos atributos do κλέος
Em Homero o κλέος se tornou eacutepos principalmente nas cadeias de repeticcedilotildees e
diferenccedilas desenvolvidas na centralidade de Aquiles e Odisseu Numa possiacutevel escala do
aparecimento textual de κλέος inclusive como expressatildeo formular ressaltam-se o κλέος
ἄφθιτον e os κλέα ἀνδρῶν Concluiacutemos que de maneira essencial o κλέος eacute uma passagem do
acircmbito privado para o puacuteblico atraveacutes da repeticcedilatildeo
Ao analisarmos as ocorrecircncias do κλέος no texto hesioacutedico observamos primeiramente
a inserccedilatildeo da voz autoral de Hesiacuteodo no proacuteprio texto Hesiacuteodo seraacute lembrado apoacutes seu suposto
tempo histoacuterico como um autor que teve acesso direto agrave inspiraccedilatildeo das Musas Observamos
tambeacutem que Hesiacuteodo repete algumas foacutermulas notoriamente tradicionais em outras passagens
da sua poesia passagens que inclusive contecircm o κλέος
233
Ao falar de si (Th v 22) Hesiacuteodo se coloca na cadeia de repeticcedilotildees do hexacircmetro
ressoa postumamente como um poeta legendaacuterio Ao colocar tambeacutem suas supostas
experiecircncias pessoais em seus versos Hesiacuteodo amplia sua fama como poeta Eacute o que
constatamos atraveacutes da sua recepccedilatildeo e testimonia Hesiacuteodo conseguiu ultrapassar a barreira do
privado para o puacuteblico conseguiu alcanccedilar a repeticcedilatildeo do κλέος produzindo uma diferenccedila
frente a Homero
Os poetas de forma geral buscavam tambeacutem um κλέος fundamentando a proacutepria poesia
como mecanismo de produccedilatildeo de κλέος Vaacuterios exemplos demonstram que os poetas se
preocupavam e desejavam um κλέος Da mesma maneira observamos esse movimento de
busca pelo κλέος nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Entretanto para chegar a esse κλέος os preacute-
socraacuteticos se inter-relacionam de forma criacutetica com a poesia eacutepica cada um agrave sua maneira
Xenoacutefanes utiliza vaacuterias formas meacutetricas para se colocar como um poeta que traz nova
concepccedilatildeo moral e teoloacutegica Mas por outro lado essas mesmas formas meacutetricas produzem
uma ruptura com a obra de Homero em especial uma ruptura com a obra de Hesiacuteodo
Heraacuteclito quebra totalmente com a forma eacutepica e aparentemente aleacutem de usar a escrita
por maacuteximas inseriu algumas figuras poeacuteticas que ilustraram seu estilo dito obscuro e
paradoxal o conceito principal que surge dessa produccedilatildeo criativa eacute o loacutegos (aquilo que daacute
unidade aos opostos) Parmecircnides por mais que natildeo seja o foco deste trabalho possui um
contrapeso essencial na triangulaccedilatildeo entre Hesiacuteodo Xenoacutefanes e Heraacuteclito
Em especial na criacutetica a Hesiacuteodo observamos Xenoacutefanes citaacute-lo diretamente como um
poeta censuraacutevel Parmecircnides retomando essa interlocuccedilatildeo possiacutevel entre Xenoacutefanes e
Hesiacuteodo parece novamente enaltecer o texto hesioacutedico Heraacuteclito critica severamente Hesiacuteodo
tambeacutem criticando o poeta como um educador reprovaacutevel numa tambeacutem sua reprovaacutevel visatildeo
deturpada da realidade
Apoacutes essa criacutetica e reprovaccedilatildeo direta agrave obra de Hesiacuteodo demonstramos como eacute
observaacutevel a busca pelo κλέος tambeacutem no texto preacute-socraacutetico Xenoacutefanes afirma um novo κλέος
ao exatamente reformular as concepccedilotildees moral-teoloacutegicas presentes na eacutepica Junto a essa
reformulaccedilatildeo eacute latente no texto de Xenoacutefanes seu desejo de se perpetuar por toda Greacutecia se
tornar famoso
Heraacuteclito tambeacutem apresenta sua nova proposiccedilatildeo criativa de um κλέος associado
principalmente ao loacutegos bem como em nossa interpretaccedilatildeo um κλέος de ldquosempre fluirrdquo
Heraacuteclito e Xenoacutefanes repetem o κλέος eacutepico mas o diferenciam numa nova visada criativa de
234
produccedilatildeo conceitual As obras de Xenoacutefanes e Heraacuteclito satildeo tambeacutem retomadas criativas do
κλέος no iniacutecio da filosofia grega
Aproximar esses distantes universos antigos na produccedilatildeo de um κλέος foi o principal
objetivo desse trabalho Esperamos que o debate tenha contribuiacutedo para uma nova anaacutelise do
κλέος no ambiente dos primeiros filoacutesofos principalmente nas retomadas criacuteticas que
Xenoacutefanes e Heraacuteclito fazem de Hesiacuteodo
235
REFEREcircNCIAS
Obras de autores antigos utilizadas
ANAXIMANDRO PARMEcircNIDES HERAacuteCLITO Os Pensadores Originaacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski 2 ed Petroacutepolis Vozes 1993
ARISTOacuteFANES Aristophanes frogs Translated by Kenneth J Dover New York Oxford Univiversity Press 1993
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica (Livros I e II) Traduccedilatildeo direta do grego por Vincenzo Coeco e notas de Joaquim de Carvalho Os Pensadores Satildeo Paulo Ed Abril 1984
ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo para o portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo de Ana Maria Valente Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2007
ARISTOTLE Meteorologica Translated by H D P Lee Cambridge MA Harvard University Press 1952
ARISTOTLE The complete works of Aristotle Translated by W S Hett Princeton Princeton University Press 1985
ATHENAEUS The Deipnosophists or Banquet of the learned of Athenaeus Literally translated by CD Yonge BAYonge London G Bohn 1854 Disponiacutevel em lt httpsarchiveorgdetailsdeipnosophistsor03atheuoftgt Acesso 04122017
CLEMENS ALEXANDRINUS Stromata Mytilene Lesvos University of Aegean 2006 Disponiacutevel em lthttpkhazarzarskeptiknetpgmPG_MigneClement20of20Alexandria_PG2008-09Stromatapdfgt Acesso 13112017
DIOacuteGENES LAEacuteRCIO Vidas e doutrinas dos filoacutesofos ilustres Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2008
DIOGENES LAERTIUS Lives of eminent philosophers Translated by R D Hicks Cambridge MA Harvard University Press 2005
236
DIONIacuteSIO LONGINO Do Sublime Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e comentaacuterio de Marta Isabel de Oliveira Vaacuterzeas Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2015 Disponiacutevel em lthttpsdigitalis-dspucptbitstream103162381621Do20Sublimepdfgt Acesso em 040117
ERACLITO Frammenti A cura di Miroslav Marcovich Firenze Editrice la nuova Italia 1978
EURIPIDES Helen Phoenician Women Orestes Edited and translated by David Kovacs Cambridge MA Harvard University Press 2002
HERAacuteCLITE Fragments Par Marcel Conche Paris Presses Universitaires de France 1998
HERMAS TATIAN ATHENAGORAS THEOPHILUS AND CLEMENT OF ALEXANDRIA Ante-Nicene Fathers Volume 2 Translated by Philip Schaff Buffalo NY Christian Literature Company 1885
HEROacuteDOTO Histoacuteria Traduccedilatildeo Pierre Henri Larcher Rio de Janeiro Claacutessicos Jackson W M Jackson Inc 1950
HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano 3 ed Satildeo Paulo Iluminuras 2007
HESIOD Theogony Works and Days Testimonia Translated by Glenn W Most Cambridge Harvard University Press 2006
HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias Ediccedilatildeo traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Alessandro Rolim de Moura Curitiba Segesta 2012 HESIODUS Fragmenta hesiodea Edit H Merkelbach et M West Oxford Clarendon Press 1967 HOMER Homeric Hynns Edited by W Allen e E E Sikes Traduccedilatildeo de Ordep Joseacute Trindade Serra Oxford Clarendon Press 1936 Disponiacutevel em httpsordepserrafileswordpresscom200903hino-a-apolo-deliopdf Acesso em 03012017
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Cotovia 2005
HOMER HESIOD The Homeric Hymns Homerica Theogony With an English Translation by Hugh G Evelyn-White Cambridge MA Harvard University Press London William Heinemann Ltd 1914
237
HOMER Homeri Opera in five volumes Oxford Oxford University Press 1920
HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo Christian Werner Satildeo Paulo Cosac-Naify 2014
I PRESOCRATI Presocratics Fragments Edited by H Diels and W Kranz with the parallel Italian translation edited by G Giannantoni ILIESI Digital Edition 2009 Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorggt Acesso em 04122017
PREacute-socraacuteticos Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo Paulo Loyola 2002
LUCIAN The Wisdom of Nigrinus Vol I Translated by A M Harmon Loeb Classical Library Cambridge MA Harvard University Press 1989 LUCREacuteCIO De Rerum Natura Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Juvino Alves Maia Junior Hermes Oriacutegenes Duarte Vieira Felipe dos Santos Almeida Joatildeo Pessoa Ideia 2016
MARCO AUREacuteLIO Meditaccedilotildees Traduccedilatildeo de Thainara Castro Brasiacutelia Editora Kiron 2011
OS PREacute-SOCRAacuteTICOS Fragmentos doxografia e comentaacuterios Traduccedilatildeo Joseacute Cavalcante de Souza 2ed Satildeo Paulo Abril Cultural 1978
OS PREacute-SOCRAacuteTICOS Fragmentos doxografia e comentaacuterios Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza Arma Lia Amaral de Almeida Prado Iacutesis Lana Borges Maria Conceiccedilatildeo Martins Cavalcante Remberto Francisco Kuhnen Rubens Rodrigues Torres Filho Carlos Ribeiro de Moura Ernildo Stein Arnildo Devegili Paulo Frederico Flor Wilson Regis Consultoria Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Satildeo Paulo Editora Nova Cultural Ltda 1996
PARMEcircNIDES Da Natureza Traduccedilatildeo de Fernando Santoro Rio de Janeiro Laboratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro 2009
PARMENIDES The fragments of Parmenides a critical text with introduction and translation the ancient Testimonia and a commentary of R D COX Translations by Richard McKirahan Los Angeles Parmenides Publishing 2009
PAUSAcircNIAS Descripcioacuten de Greacutecia Traduccion Maria Cruz Herrero Ingelmo Madri
Gredos 1993