Super Poderosa
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Super Poderosa
Quem é ela?
Parte 1
— A polícia ainda não tem explicações
plausíveis para dar á população sobre a
recente onda de captura de bandidos.
Comerciantes locais relatam que uma
pessoa, alguma coisa com velocidade
sobre-humana tem agido contra criminosos.
Francisco Plínio de Arruda, funcionário da
pizzaria Central relata sobre a ocorrência da
noite anterior: “Os bandidos estavam
prestes a levar o dinheiro do caixa quando
um vendaval entrou pela porta da frente!
Foi incrível!” Indagado se conseguiu
identificar alguma coisa, respondeu que
não.
O jornal é jogado sobre a mesa.
— Fiz questão de guardar para você.
Li esse trecho da reportagem porque é o
mais interessante, já que o jornal todo está
repleto de reportagens desse tipo. Tem até
uma matéria na qual os cidadãos opinam
sobre o que você é, dá para acreditar? Você
gosta disso não é? — Meire acende o
cigarro.
Encostada na porta do gabinete da
delegada está a protagonista da
reportagem. Trata-se de uma jovem de
cabelos claros, olhos grandes, verdes. Os
lábios finos, o busto médio e as pernas
esguias. A barriga à mostra irrita a
delegada Meire. O corpo atlético da super-
heroína é impressionante. Super-heroína,
dá para acreditar? Meire ainda custa.
— Gosto — responde ela, a voz é de
gente.
Veste mine-blusa branca com um raio
dourado no peito, luvas sem dedos
amarelas cobrem suas mãos. Traja calça
branca com raios laterais dourados e botas
brancas de asas amarelas nas extremidades
completam o uniforme.
— Eu devia contar pra eles que
conheço você — Meire apaga o cigarro que
acendeu há pouco — Preciso parar com
isso.
— Acho que nossa pareceria funciona
bem como está, Meire.
— É verdade. Mas eu ainda não
consigo aceitar que você exista — a
delegada aponta para a heroína. — Já
pensou no dinheiro que você poderia
ganhar?
— Eu quero ajudar as pessoas, só
isso. — ela desaparece seguida de um
vendaval que derruba a papelada em cima
da mesa da delegada.
— Merda! Odeio quando ela faz isso.
Meire é alta, dos olhos verdes sem
maquiagem e cabelos curtos. Veste-se com
blazer negro e a arma da corporação
descansa no coldre embaixo do braço
esquerdo. A camisa é branca, os sapatos
escarpam, pretos. Acende outro cigarro e
relaxa em sua cadeira grande:
— Esse mundo está de cabeça para
baixo — diz a si própria.
O fato era que os crimes em Santa
Paz, cidade conhecida pela ironia do nome,
tinham diminuído bruscamente. Desde o
surgimento daquela menina com
superpoderes a cidade vivia dias nunca
antes possíveis. Santa Paz agora era santa
paz mesmo.
— Onde será que ela está agora? —
divaga sozinha a jovem delegada.
O silêncio do ambiente faz a super-
heroína frear bruscamente. Ela não
identifica o local em que se encontra.
Saara? Talvez.
As estrelas brilham com toda
intensidade no céu, são muitas. A terra
árida sem vestígio humano é um convite à
paz; ao caminhar. Ela anda, não sente frio.
A mente divaga, ainda é mais rápida que o
corpo mágico. Vai longe, onde não pode
chegar por outro meio, vai para casa. Os
passos são lentos, ela sente falta de
caminhar, de ser normal. Esconde-se, tem
medo de ser descriminada. Faz o que faz
por ensinamento, deve muito à Clarice.
Quem é ela?
Parte 2
Nove horas da manhã o celular de
Meire Teixeira, a delegada titular do 1°
distrito de Santa Paz, toca. É cedo, ela teve
uma noite terrível.
— Alô? — tenta não falar como
alguém que acaba de acordar.
— Temos um problema aqui na
delegacia, Dra. Meire. Uma advogada exige
falar com a senhora.
— Tá — Meire se levanta — Eu já vou.
Advogados sempre exigem tudo.
Acham-se mais gostosos do que os outros,
pensa Meire enquanto banha-se. Costuma
chegar á delegacia onze horas, tudo está
tranquilo ultimamente.
Sua família reside na capital e ela por
conta da nomeação veio à Santa Paz.
Formara-se em Direito há dois anos, é
jovem, bonita, não tem intenção de se
casar.
Quando estaciona o seu carro de luxo
atrás do prédio antigo do 1º Distrito Policial,
faz o sinal da cruz. É costume de família,
antes de iniciar o trabalho pedir proteção.
Cumprimenta os policias que encontra
pelo caminho até sua sala. Fita a porta e
lembra-se da última vez que estivera ali; da
super-heroína encostada no batente. Era
loucura, admitia. Mercúria, dá pra
acreditar? Era esse o nome da garota
peculiar. Meire balança a cabeça como se o
gesto físico afastasse os pensamentos.
Senta-se e então a porta se abre:
— Doutora Meire?
— Bom dia. Ia pedir para chamá-la,
mas a senhora se antecipou.
— Sou a Doutora Valéria, prazer — a
bonita senhora estende a mão cheia de
pulseiras e anéis — Vim falar pessoalmente
com a senhora sobre quem vem
estampando as primeiras páginas dos
nossos jornais.
— O que tem?
Valéria veste-se com blazer cinza e os
cabelos dourados bem penteados descem-
lhe pelos ombros. Olhos castanhos
contornados por maquiagem analisam a
delegada. Diz:
— Preciso saber quem é. Sei que a
Doutora tem uma “relação” com essa coisa.
— Não tenho nada a ver com essa
coisa — Meire gesticula negativamente —
Mas só por curiosidade, posso saber o
motivo?
— Danos ao patrimônio de meus
clientes — a advogada joga um volume de
processo na mesa da delegada —
Dilapidação do patrimônio de vários donos
de lojas e bancos — ela acrescenta
exemplares do Jornal Cidade.
— Doutora, ela prendeu bandidos,
salvou vidas — esclarece Meire.
— Ela precisa assumir os prejuízos
causados aos donos de lojas que invade.
Veja este orçamento — Valéria abre o
processo — Vidraças, balcões, paredes,
tudo danificado.
— Não sei quem é ela, lamento —
Meire puxa o maço de cigarros.
— O repórter Marcelo Siqueira me
informou que a doutora tem “amizade” com
ela, ele, ou seja lá que tipo de coisa seja.
— Marcelo é um mentiroso!
Valéria se levanta:
— Por enquanto, essa anomalia só
causou danos patrimoniais...
— Acha que ela vai matar pessoas?
Por favor, doutora.
Valéria responde com indagação:
— Se a senhora pudesse fazer algo
extraordinário, o que a impediria de oprimir
as pessoas?
Meire silencia, não tinha pensado
nisso. Valéria finaliza:
— Estou com vários processos contra
a coisa, mas todos estão parados. A Justiça
não tem como julgar um ser que não tem
características humanas e nem mesmo uma
identidade.
— Se eu soubesse de alguma coisa
diria, Doutora Valéria.
— Está bem — a elegante advogada
se vira.
Meire observa ela sair, ela é bonita.
Quem é ela?
Parte 3
É tarde da noite, a delegacia está
vazia, tem se tornado rotina para Meire
alongar o expediente. Os policias de plantão
estão nas ruas e sua desculpa para estar ali
é o trabalho atrasado. Na verdade, o que
ela espera é a chegada da super-heroína. O
vendaval anuncia Mercúria:
— Tem uma maluca que quer ferrar
com você — Meire não tira os olhos do
computador — Ela não pode não é? Você
não é humana, é?
Mercúria aproxima-se com velocidade.
Os papéis de Meire se espalharam.
— Você não sabe andar?
A heroína responde:
— Eu andei.
— Levantei para você alguns dados
dela — Meire recolhe as folhas que tinham
se espalhado com o vendaval — Dra.
Valéria Albuquerque, advogada conhecida
na cidade. Ficou uns anos sem dar as caras,
mas voltou a atuar recentemente.
Quando Mercúria observa a foto em
um documento, lágrimas ajuntam em seus
olhos. Ela procura afastá-la antes que Meire
perceba:
— Ela entrou na justiça contra você,
dá pra acreditar? Pleiteia a reparação dos
danos patrimoniais que você tem causado
na captura de bandidos. Acho que precisa
conversar com ela, mostrar que tem boas
intenções, sei lá.
Era difícil para fazer o que sugeria a
delegada. Mentiu:
— Está bem. Vou pegar uns bandidos
agora e antes do final do meu turno passo
lá.
Meire assente e depois diz:
— Eu vou para casa. Procure não
arrumar muita confusão.
Enquanto avança em supervelocidade
pelas ruas da periferia de Santa Paz,
Mercúria tem a mente distante; em Valéria.
Para afastá-la dos pensamentos, uma
senhora está sendo assaltada em uma
esquina escura. Ela acelera o passo e com
um soco veloz derruba o primeiro bandido.
A velha cai e quando Mercúria tenta erguê-
la, o disparo de um flash a deixa confusa.
— Parô, parô! Não somos bandidos! —
a senhora fala como homem.
— Mas o quê?
A velha se levanta e retira a peruca,
revelando-se um homem. Ele tem os
cabelos castanhos bem curtos, as
sobrancelhas grossas, os olhos castanhos e
um cavanhaque no queixo. É mais baixo
que a maioria dos homens como se feito
para o disfarce.
— Nem tente quebrar meu celular! —
ele lê os pensamentos da velocista — A
imagem estava programada para ser
enviada ao jornal assim que eu batesse.
Sabia que não teria mais de uma chance.
Nossa, você é real! — ele se excita.
— Eu posso descontar a minha raiva
na sua cara, o que me diz?
Ele se afasta:
— Você é gata, puxa. De outro
planeta?
— E você é enxerido demais.
— Prazer, sou Marcelo Siqueira — ele
estende a mão, mas Mercúria não o
cumprimenta — Isso é incrível! Eu coloquei
nas matérias que fiz sobre você, que
tratava-se de um alienígena. Estou certo,
não é?
Mercúria desconversa:
— Posso pedir pra não publicar a foto?
Eu não quero publicidade...
— Pôxa, os cidadãos de Santa Paz
querem conhecer você! O mundo todo quer
saber dos seus poderes, da sua história!
— Não quero atrair atenção. Não sei
dos inimigos que podem usar essas
informações.
— Relaxa! Você é a única que tem
superpoderes por aqui Que mal pode haver?
Para contrariar o que diz Marcelo,
uma explosão consome o local onde os dois
conversam. Mercúria teve tempo de salvar
o repórter, mas o outro que participou da
manobra para obter a foto da heroína está
morto. Quando a fumaça dissipa, Mercúria
identifica a figura de uma mulher.
Quem é ela?
Parte 4
Trata-se de uma moça de pele escura,
de cabelos negros, lisos, compridos demais
e olhos amarelos. Veste-se com colete de
couro e calça de couro agarrada às coxas.
Tem braceletes e caneleiras de ferro polido.
O abdômen musculoso está à mostra e na
mão direita, uma marreta.
Marcelo ainda está de mãos dadas
com Mercúria, ambos parecem não
acreditar no que estão vendo. A mulher
caminha na direção dos dois:
— Finalmente encontrei você — a voz
dela parece masculina.
— Quem é você? — Mercúria recua
um passo.
— Eu é que pergunto: você sabe
quem é?
— Sou Mercúria, a protetora da
cidade!
A inimiga ri, é alta e forte.
— Então venha, Mercúria! Me mostre
o que sabe fazer! — ela levanta a marreta.
Mercúria corre para atacá-la, mas
antes de alcança-la sente um peso estranho
atingir seu corpo e depois, como se uma
flor desabrochasse em seu peito, sente dor.
O barulho de explosão se faz mais uma vez
e ela cai de costas no meio da avenida.
— Tão previsível, heroína, tão
previsível — ela ouve a voz da inimiga.
A ferida se regenera com velocidade,
permanecendo apenas o tecido danificado
do uniforme. Mercúria ganha fôlego e
senta-se. Marcelo observa tudo com
espanto.
— A regeneração celular é um dom
útil não é? — a inimiga diz — É bom que
você também tenha desenvolvido esta
habilidade, posto que terei mais tempo para
te fazer sofrer.
— Como pôde matar aquela pessoa
inocente? — Mercúria se coloca em pé.
— O que pretende fazer? Correr? Não
é só isso que sabe fazer?
— Não.
Mercúria avança mais uma vez em
supervelocidade e desfere uma sequência
de chutes que aprendera com Clarice. A
inimiga recua dois passos.
— Isso foi bom. Mas tenho algo
melhor. — a adversária aponta a mão para
Mercúria e várias pequenas explosões
acontecem pelo corpo da heroína.
Ela cai pela segunda vez. Mateus a
fita da calçada, por que não fugiu?
— Ninguém sobrevive às explosões de
Ardente. Esperava mais de você, já que é
da família.
— Família? — os ferimentos de
Mercúria se regeneram rapidamente e ela
teme por abusar do recurso.
— Pelo visto, não sabe nada sobre
seus poderes. — Ardente sorri com desdém.
— Não me importa! — A velocista já
está de pé.
Ardente sorri com malícia e depois
avança com sua marreta levantada.
Mercúria desvia com rapidez e aproveita a
distração de Ardente para lhe desferir um
soco veloz no rosto.
A vilã cai. Mercúria a pega pela perna
e a arrasta com velocidade, mas chamas
em sua mão fazem-na largar Ardente:
— Quer bancar a heroína, não é? — a
vilã estende a mão — Seu amigo não tem o
poder de se regenerar das explosões. — Ela
se vira para Marcelo, que estava do outro
lado da rua.
Não! Mercúria dispara em
supervelocidade e tem tempo de ver o ar
faiscar na altura da cabeça do repórter.
Quando está correndo, tudo parece lento
demais e ela pode observar o ar se
transformando em explosão. O truque de
Ardente é mudar as moléculas atômicas das
coisas e transformá-las em bomba.
A heroína chega antes da explosão e
com o próprio corpo protege Marcelo. Ela
cai com as costas desfiguradas
Quem é ela?
Parte final
Marcelo segura o corpo pesado de
Mercúria, ele não sabe o que fazer. Ardente
se aproxima para terminar o seu trabalho,
imagina o jovem. Para a surpresa do
repórter Mercúria desperta:
— Não é a mim que você quer? — ela
diz com a voz fraca.
Marcelo repara que o ferimento nas
costas da heroína já não se regenera.
Imagina que ela está no limite das suas
forças.
— Eu vou dar um jeito nisso! —
Mercúria diz ao se afastar do repórter.
Avança em supervelocidade contra
Ardente, agarrando-a pela cintura e
empurrando-a para longe.
Atravessa a cidade, o estado, o país,
utilizando a inimiga como escudo para
atravessar paredes e árvores. Quando para,
Ardente está inconsciente.
Ela treme. As pernas não suportam o
peso do corpo. Os joelhos se dobram, os
músculos estão no limite. Mercúria sabe que
precisa de tempo para voltar. Ela está
ofegante, o cérebro continua pensando
rápido. Quem é Ardente? Por que deu a
entender que pertencem a mesma família?
Quem é ela própria?
Mercúria acorda algumas horas
depois. O corpo de Ardente não está mais
ali e ela se espanta. A vilã teve a chance de
liquidá-la e não o fez. O seu corpo
regenera-se o possível para voltar para casa
e Mercúria sabe que não pode abusar dele.
O corpo realiza processos físicos com
supervelocidade, por isso ela precisa se
alimentar com frequência para manter as
funções fisiológicas normalizadas.
Ela corre de volta em ritmo menos
intenso. Chega em casa uma hora depois da
partida. O uniforme está um trapo. Ela o
retira e observa que está mais magra. Abre
a geladeira e pega a tigela de macarrão,
deve estar bom. Sem esquentar, começa a
devorar o alimento e imediatamente sente-
se melhor. Suspira aliviada.
Depois de devorar tudo que havia na
geladeira, a heroína está satisfeita e salva.
Descansa no velho sofá da sala. Fita o teto
forrado de madeira e percebe que caruncho
começa a destruí-lo. Lembra que tudo é
transitório, sente saudade de Clarice.
Recorda-se do seu nome, Verônica. Mora
em um sobrado no centro da cidade e
trabalha como vendedora de revista e livros
usados no Sebo deixado por Clarice, no
andar debaixo. Desde o falecimento da
tutora, assumira o negócio. A vida havia
mudado com velocidade superior a que ela
podia atingir, era o que pensava.
O jornal que chegou cedo, junto com
a abertura do Sebo tem uma reportagem
especial de capa. Verônica fica surpresa,
era bombástico. O repórter Marcelo Siqueira
tinha publicado sua foto e feito uma matéria
reveladora.
A foto era de perto, detalhes do
uniforme, do cabelo estavam nítidos. A
dona do Sebo começa a ler e sente seu
estômago embrulhar. O repórter anuncia
que a super-heroína da cidade chamava-se
Mercúria e que, como a imagem
demonstrava, tinha aparência humana, mas
poderes sobrenaturais. O repórter elencou
dois: a supervelocidade e a regeneração
instantânea. Por último relatou o embate
com a supervilã Ardente e o salvamento
heroico de sua vida pela heroína. Torcia
para que ela estivesse bem e lamentava a
morte da pessoa que estava trabalhando
com ele naquela noite.
— Oh, droga! — diz a moça ao fechar
o jornal.
Eu sou Mercúria
Parte 1
Mercúria avança veloz pelo bairro
nobre da cidade. Visa o apartamento do
repórter Marcelo Siqueira. Tem assuntos
importantes para tratar com ele. Antes que
o porteiro se dê conta, entra seguida do
vento e sobe as escadas até o vigésimo
andar. Toca a porta por várias vezes e
quando o repórter abre, entra rapidamente:
— Que história é essa de contar sobre
meus poderes e o meu nome?
Ele deixa cair a caixinha de yakisoba
que jantava.
— Só estava fazendo meu trabalho —
argumenta. — Quer jantar? Você come né?
— Viu o que aconteceu na noite
passada, as pessoas que aquela maluca de
martelo matou. Ela virá atrás de você!
— Fique tranquila, eu sei me cuidar.
Vou pegar uma caixinha pra você. Moro
sozinho e só como essas coisas que
entregam.
— Eu não vou estar por perto o tempo
todo, Marcelo. — ela aponta para o
repórter.
— Me chamou pelo nome! Estamos
progredindo.
Mercúria suspira:
— Não adianta falar com você, não é?
Ele se levanta para buscar o yakisoba,
mas quando volta não há ninguém na sala.
Mercúria tem receio de ir à delegacia
e colocar a vida de Meire em risco. Ela sabe
que a qualquer momento pode ser atacada
novamente por Ardente. Por falar na vilã,
tinha dúvidas que precisam ser esclarecidas
por ela, afinal era a primeira que encontrou
com poderes sobre-humanos.
O que lhe resta é patrulhar a cidade e
fazer o seu trabalho. Na periferia ela se
depara com crianças dormindo em um
galpão abandonado, era a primeira vez que
as via. São treze, ela conta. Todas
abandonadas pelos órgãos públicos,
pessoas e mídia. Pela primeira vez não sabe
como agir, era diferente o tipo de mal a ser
combatido. Na avenida acima, carros
luxuosos passam velozes sinalizando que a
vida transcorre sem que a presença dessas
crianças seja considerada. Ela permanece
estática e o vento da noite toca-lhe o rosto.
As crianças ao notarem a presença da
heroína deixam o galpão e suas camas de
papelão para avançarem:
— Tia, dá um real? — diz um.
— Estamos com fome! — reclama
outro.
Mercúria observa que a maioria deles
portam garrafa plástica á mão ou
pendurada no pescoço e não entende o que
isso significa, apesar do cheiro estranho que
tais objetos exalam. Ela se afasta e os
excluídos avançam novamente.
— Eu não tenho dinheiro — ela
argumenta.
Mercúria é surpreendida quando uma
das crianças lhe puxa os cabelos com
violência e outra lhe arranca os brincos
dourados em forma de raio. O sangue
escorre pela orelha mutilada e as lágrimas
pelos olhos.
— Não é lamentável? — é Ardente,
observa Mercúria.
Ela caminha em direção das crianças.
A marreta vem presa à cintura.
— Isso é obra sua! — Mercúria grita.
— Não. Isso é obra humana. É contra
isso que luto e contra o que você deveria
lutar. — ela afaga o cabelo de uma criança.
— Quem é você? Qual a sua relação
comigo?
— Já disse, somos parentes. — Uma
explosão e Ardente desaparece.
Aquilo intriga Mercúria. Parentes?
Tantas perguntas e ninguém para
respondê-las. Se tivesse um tempo com
Ardente. Ela se lembra das insinuações da
inimiga; das crianças de rua abandonadas
pelos humanos. Mercúria indaga a si mesma
se prender bandidos, evitar assassinatos e
crimes era tudo; se era suficiente.
No outro dia, pela manhã, ao abrir a
loja de revistas usadas ela observa o pacote
com exemplares do Jornal Cidade deixados
pelo entregador durante a madrugada. Uma
nova matéria sobre ela estava anunciada na
capa. Marcelo Siqueira usa a mesma
fotografia da notícia anterior, mas o texto é
outro. Nele, o repórter diz que cidadãos de
Santa Paz devem ter muito orgulho por
poder contar com Mercúria para protegê-
los. Ele informa que a heroína faz toda a
diferença para quem salva, mesmo sendo
impossível salvar todo mundo; ela é um
exemplo, um convite para fazermos algo
também. No fim do artigo, ele diz que nos
esquecemos dos outros e estamos focados
nas nossas vidas, deduzindo que os outros
também estão. Mercúria vem numa época
perfeita para mudar o nosso pensamento.
Ele a agradece publicamente por ter lhe
salvado a vida.
Eu sou Mercúria
Parte 2
O artigo mudou o pensamento de
Verônica a respeito de Marcelo. Era o que
pensava enquanto divagava e montava seu
visual. Agora, com a foto do repórter
estampando os jornais diariamente, ela
tinha de criar uma identidade secreta para
quando estivesse sendo uma pessoa
comum. Com a descoberta do repórter,
Verônica e Mercúria tinham de ser pessoas
completamente diferentes.
Seu cabelo dourado foi arrumado em
um penteado “rabo de cavalo” e óculos
falsos cobriram seus olhos verdes, de modo
que a camisa xadrez larga pudesse
combinar. Calça jeans velha terminava em
tênis brancos, estava perfeito. Ela ri para o
espelho antes de descer para o trabalho.
Naquela manhã, a advogada Valéria
Albuquerque passa no Sebo para comprar o
jornal. Era a primeira vez e isso deixou
Verônica sem saber o que fazer. Ela tenta
agir com naturalidade:
— Em que posso ajudá-la?
— Quero um exemplar do Jornal
Cidade.
Verônica retira um exemplar da
gondola e entrega à doutora. Escuta a
reclamação:
— Eu sabia que Marcelo estava
envolvido com aquela “coisa”.
Verônica silencia. A advogada
continua:
— Com as informações que ele vem
colocando no jornal, vou identificá-la e fazê-
la pagar pelos danos causados à cidade. Já
sabemos tratar-se de uma pessoa! — faz
uma pausa para depois perguntar — O que
pensa dela?
— Não sei. — Verônica fala baixo.
— Algum problema com você? —
Doutora Valéria estranha a palidez da
vendedora.
— Eu estou bem. Acho que Mercúria
ajuda as pessoas.
— Não me faça rir. Ela ajuda quem
quer.
— Tenta ajudar o máximo de pessoas
que pode.
— Tenho observado que muitos
crimes continuam acontecendo.
— Ela é rápida, mas não pode estar
em todos os lugares.
— Ela deve ter um motivo para salvar
quem salva.
— Tenho certeza que a Mercúria sente
muito por todos aqueles que não pôde
salvar.
Valéria fita Verônica pela primeira
vez. Os olhos da vendedora lhe parecem
familiares; tristemente familiares...
— Onde estava Mercúria quando
minha menininha morreu? Deus, ela só
tinha treze anos.
— Ela não tinha como impedir o que
aconteceu Doutora Valéria...
Valéria chora copiosamente. Verônica
se aproxima e a abraça, Deus, como ela
desejou aquilo. Ambas se permitem gostar
do abraço; se reconhecem. Verônica diz:
— Eu lamento pelo que aconteceu
com sua filha. Eu perdi minha mãe
recentemente e sei como é doloroso... Mas,
aprendi com ela que não devemos colocar a
culpa nos outros pelas nossas faltas ou pelo
ruim que experimentamos.
Valéria se afasta subitamente:
— Me desculpe. — ela pede,
recompondo-se.
Verônica sorri. Arruma o jornal da
advogada em uma sacola de papel e diz:
— Venha sempre comprar jornais
aqui.
Valéria sorri também, mas nada diz.
Ela se vai.
Meire está terminando um inquérito
quando um vendaval anuncia Mercúria,
mais cedo do que de costume. A heroína
está encostada no batente, na entrada da
sala da delegada:
— Quero que retire as crianças das
ruas.
— Boa noite! — Meire recolhe os
papéis. — Está famosa, agora que é
amiguinha do Marcelo Siqueira, não é?
— É sério, Meire. Preciso de ajuda
para tirá-las das ruas.
Faz-se silêncio por um tempo.
— Não é tão simples assim — Meire
aponta para a super-heroína — Elas não
querem sair.
— Como não?
— Preferem viver como vivem a voltar
para casa ou para um orfanato. No seu
planeta isso não acontece?
— Onde estão os pais dessas
crianças?
— Mortos, presos, você escolhe.
— Temos que fazer alguma coisa.
Meire ajeita os óculos e fita Mercúria:
— Não acha melhor voltar a prender
os criminosos?
Eu sou Mercúria
Parte 3
A porta do apartamento do repórter
Marcelo Siqueira se abre com velocidade,
ele tinha o costume de deixá-la
destrancada. Em pé, na sua sala uma
mulher de pernas fortes e de uniforme
agarrado se faz presente. Ele fica surpreso
e ela vai direto ao assunto:
— Meire não quer ajudar a tirar as
crianças das ruas.
Ele não diz nada, ainda fascinado.
— Quero sua ajuda. — ela continua.
— Já fiz matéria sobre as crianças de
rua — ele responde como se tivesse
despertado de algum transe — São fugitivos
de orfanatos ou filhos de pais presos e
falecidos. O conselho tutelar já recolheu boa
parte, mas eles fogem e voltam para as
ruas. Puxa, você me procurou!
Mercúria aponta para Marcelo:
— Não se empolga. Achei que você
poderia fazer alguma coisa.
Ele sorri:
— Eu posso.
O resto da noite foi de muito trabalho.
Mercúria agarrou crianças uma a uma e as
levou para um orfanato indicado por
Marcelo Siqueira. O repórter tinha visitado o
estabelecimento meses atrás e constatado
as ótimas condições para o crescimento de
crianças abandonadas. Era longe, em outro
Estado, mas para a velocista era como
atravessar a rua.
Antes de amanhecer todas as crianças
tinham sido levadas. No retorno a Santa
Paz, numa lanchonete que funcionava a
noite toda, Marcelo espera Mercúria.
— O Orfanato é ótimo! — ela se senta
com velocidade, derrubando a toalha e os
copos de plásticos vazios.
— Fiz uma matéria lá. Falei das
condições exemplares do orfanato e fiz um
apelo ao prefeito de Santa Paz para que
fizesse algo similar.
— Não sabia que você fazia este tipo
de trabalho.
Ele sorri:
— Tem muita coisa sobre mim que
você não sabe.
Ela devolve o sorriso:
— Aposto que eu tenho mais
segredos.
— Não vale! Agora apelou, você é
super! Tá com fome?
Ela assente e Marcelo pede um
hambúrguer. Ela o interrompe e pede que o
funcionário prepare cinco.
— Tudo isso? — ele estranha.
— Eu tenho metabolismo celular
acelerado. Por isso, a recomposição de
tecido acontece com velocidade, mas a
minha queima de energia também é rápida.
— Não entendi nada do que você
disse.
— Para correr e me curar rápido de
machucados, preciso comer com frequência
e bastante.
— Agora entendi. — ele se ajeita na
cadeira — Posso falar isso no jornal né?
Mercúria responde:
— Só porque me ajudou com as
crianças.
Os hambúrgueres são colocados sobre
a mesa e Mercúria começa a comê-los com
rapidez.
— Tem mais alguma coisa que
gostaria de informar às pessoas?
— Quem sabe numa outra
oportunidade. — ela diz enquanto mastiga.
Ao terminar de comer, sob a
admiração do repórter, diz:
— Boa noite e obrigada, Marcelo.
Antes da resposta do repórter,
Mercúria desaparece.
— De nada — ele dá de ombros para
ninguém.
Eu sou Mercúria
Parte final
O jornal chegou cedo o que fez
Verônica deduzir que Marcelo não dormiu
depois da entrevista na lanchonete. A foto
de capa mostrava Mercúria de corpo inteiro
na frente do estabelecimento comercial da
noite anterior. A chamada para a matéria é
a seguinte: “Super-heroína de Santa Paz
recolhe todas as crianças de rua.” Ela abriu
na página que continha a matéria e leu
satisfeita. No fim da reportagem ainda
havia a informação de que Mercúria precisa
se alimentar muito e com frequência dado
os poderes de velocidade que tem. Com ela
tudo é rápido, finaliza Marcelo.
A Doutora Valéria tem tempo de
pegar o sorriso nos lábios de Verônica
quando chega para adquirir um exemplar
do Jornal Cidade. Indiferente, cumprimenta
a vendedora de revistas e franze o cenho ao
ver a matéria de capa:
— Esse jornal só pode estar de
brincadeira.
A jornaleira respeita a opinião da
advogada, mantendo-se silente.
— Até amanhã. — Valéria diz mal-
humorada após pagar pelo exemplar que
levou consigo.
— Até. — Verônica por muito pouco
não completa a frase com a palavra que
aparece em sua mente toda vez que vê
Valéria. Entristece-se por alguns segundos
enquanto observa a silhueta da mulher
elegante deixar o Sebo. Ela ainda usa o
mesmo perfume.
No centro, na cede do Jornal Cidade
que também é cede do Grupo Cidade de
Entretenimento, Marcelo Siqueira está
debruçado sobre sua mesa, na baia no final
da sala da redação. Exausto pela noite não
dormida cedida para ajudar a heroína da
cidade e depois preparar a matéria de capa
de hoje. O telefone do jornal não para de
tocar.
O repórter tinha se formado em
jornalismo recentemente e quando o
trabalho no único jornal da cidade
apareceu, não pensou duas vezes, afinal
oportunidade de trabalho em Santa Paz não
acontecia frequentemente. Nascido e
crescido na cidade só a deixou para concluir
os estudos. Homem audacioso ganhara
destaque pelas matérias publicadas sobre
Mercúria.
Seu fascínio por ela era evidente.
Deste que tomou conhecimento de que algo
estava agindo na cidade contra o crime,
empenhou-se de todas as formas para
descobrir mais. Os frutos pelo seu interesse
foram o destaque no jornal e a felicidade do
chefe junta com a inveja dos outros
companheiros de trabalho.
— Marcelo, acorde! — era Janaina,
outra repórter do jornal.
— O que foi?
— O chefe quer falar contigo. É pra
você ir à sala dele.
— Está bem.
Ele se estica na cadeira. Levanta-se e
confere o rosto no espelho do corredor para
ver se está apresentável. Tirando as
olheiras tudo está em ordem. A porta do
gabinete do chefe está aberta, ele pede
licença e entra. Humberto se levanta e vem
ao encontro do funcionário com um sorriso
no rosto. É um homem obeso de cabelos
grisalhos, penteados de forma a esconder
sua calvície. Veste-se terno cinza.
— Marcelo, como vai? Sente-se, por
favor.
O jovem repórter assente. O patrão
continua:
— Você é especial, Marcelo. Não sei
como faz, mas suas matérias sobre
Mercúria são sucesso. O jornal nunca
vendeu tanto.
— É o meu trabalho, senhor.
O chefe acende um charuto e oferece
outro ao funcionário que nega, não fuma.
— Quero lhe propor um novo
trabalho, escute.
Ela é Ardente
Parte 1
Verônica dirige a velha caminhonete
de Clarice até o mercado, odeia fazer
compras. O carro funciona bem, foi útil tê-lo
recebido junto com todos os outros bens da
falecida. Ela estaciona, retira suas sacolas
de pano e dirige-se à entrada do grande
mercado. Tudo está tranquilo naquela
tarde. Nos corredores encontra a advogada
Valéria. Durante aquela semana haviam se
visto todos os dias, já que Valéria passou
no Sebo para comprar seu jornal todas as
manhãs.
— Como vai? — cumprimenta a
advogada.
— Bem. Só vir fazer compras que não
me agrada, mas fazer o que...
— Eu gosto. — a advogada sorri.
Verônica retribui o sorriso.
— Acompanhe-me e lhe mostrarei
como pode ser gostoso realizar compras.
Verônica e Valéria andam juntas pelos
corredores conversando assuntos rotineiros
durante o período de compras. Dirigem-se
ao corredor de congelados e a advogada
acha incrível como se sente bem ao lado da
jovem vendedora de revistas.
O carrinho de Verônica está cheio, o
que causa curiosidade em Valéria:
— Disse-me que mora sozinha, não é
muita coisa para uma pessoa?
— Ah sim — Verônica tenta explicar.
— É que compro muito para evitar voltar
em breve ao supermercado.
A advogada assente já se
aproximando dos caixas.
— Vamos? — ela diz.
— Sim, não vejo a hora.
Quando Valéria está passando suas
compras ouve o barulho de motocicletas e
observa elas se aproximarem da entrada
vidrada do estabelecimento. São três e
delas descem duplas armadas. Eles se
aproximam e anunciam o assalto.
Verônica está logo atrás de Valéria e
observa a ação dos bandidos, aflita. Os
funcionários do supermercado começam a
esvaziar os caixas enquanto os criminosos
apontam suas armas. Valéria está muito
perto de um deles.
— Por favor, deixe-nos ir. — ela
implora.
O bandido, cujo rosto é escondido por
capacete, aponta o revólver para Valéria.
Verônica não consegue esperar mais,
agarra o inimigo e o lança contra a parede
em supervelocidade, retorna ao seu local de
origem sem que possam perceber o
ocorrido.
— Mas o quê? — indaga outro
criminoso ao notar o comparsa inconsciente
e distante. — Deve ser a vadia com
superpoderes! Vamos ver se ela consegue
nos impedir de fazer uma chacina aqui!
Ele parece ser o líder, porta uma
mine-metralhadora. Aponta para Valéria e a
aflição de Verônica aumenta. Ela jamais se
perdoaria se algo acontecesse à advogada.
— Apareça, Mercúria! Eu vou matar
essa mulher que você salvou se não der as
caras, vadia!
Sua prematura identidade secreta
estava por um fio, imagina Verônica. Vidas
são mais importantes, se conforta enquanto
caminha para frente com as mãos
levantadas. O bandido fita a jovem e diz:
— O que foi?
Verônica se prepara para responder,
mas uma explosão se forma perto e o braço
do bandido é arrancado do seu ombro. Tiros
se fazem.
Ela é Ardente
Parte 2
A fumaça se dissipa e revela Ardente
de marreta em punho e com os cabelos
organizados em uma longa trança. Os olhos
amarelos confiantes fitam Verônica como se
soubessem da verdade. Algumas pessoas
estão mortas, dado o susto causado pela
entrada da vilã nos bandidos. Ela não se
importa:
— Corja, roubam uns aos outros!
— Pra trás! — fala outro bandido.
— O que vai fazer? Matar este que
tens rendido? Não me importa, te matarei
depois.
— Não! — diz Verônica.
Ardente se vira para a jovem:
— Ora, o que temos aqui? Uma
defensora do que não tem defesa?
Valéria tenta impedir Verônica de se
aproximar da vilã:
— Ela é louca! Fique quieta!
— Eu não sou louca — responde
Ardente. — Não roubo, não mato e nem
ameaço os meus, diferente do que está
acontecendo aqui.
— Acha que vai resolver com
violência?
— Acho. Os mais fortes impõem e os
mais fracos se sujeitam.
Ouve-se mais um tiro. Uma pessoa
tentou fugir e um bandido acerta-lhe nas
costas.
— Impeça-os! — lágrimas se ajuntam
nos olhos de Verônica.
— Impedi-los de se matarem,
matando-os? Há remédio?
Lá fora várias viaturas chegam. A
polícia cerca o local, mas os policiais não se
atrevem a entrar, podem causar a morte de
mais reféns é o pensamento da delegada
Meira ao organizar o seu pessoal.
Não há tempo a perder, ainda com os
olhos cheio de lágrimas Verônica se volta
para Valéria. Nada diz, mas o olhar parece
dizer o que há muito está preso à garganta.
A advogada sente um aperto nos braços e
tudo se torna velocidade, mal dá para
respirar. Quando volta a si está na calçada
de casa.
Menos de um minuto, Mercúria
adentra pelo supermercado e golpeia com a
força de sua velocidade o rosto de Ardente,
arremessando-a contra as prateleiras do
mercado. Ela desarma os quatro bandidos e
os imobiliza. As pessoas estão apavoradas,
três delas mortas.
— Teve tempo de trocar de roupa,
irmã? — Ardente se levanta com a mão no
queixo.
Mercúria aponta para a inimiga:
— Você poderia ter impedido tudo
isso!
— Não entendo seu apego a esta reles
espécie. Não somos iguais e eles, aceite.
—Primeiro, eu me acho humana e
segundo que papo é esse de irmã?
— Você não é humana, não mais.
Somos Divas e nossas habilidades vêm dos
Deuses-banidos! Aquele que lhe dá poder é
meio irmão daquele que escolheu a mim.
Mercúria está confusa:
— Divas? E quem são esses Deuses-
banidos? — pergunta.
— São aqueles que habitavam o
planeta antes dos homens. O meu deus é
Hefesto e o seu, Hermes. O meu possui a
habilidade de manipular as chamas e como
você já deve ter percebido, o seu a
velocidade.
— Clarice não disse nada.
— Não sei quem é esta pessoa que
menciona, mas suponho que tenha omitido
a informação de propósito para que você se
desviasse da sua verdadeira missão.
— Missão?
Ardente sorri.
— Acha que ganhou poderes sem um
propósito para utilizá-los? Você é a mão de
seu Deus-banido para exterminar a
humanidade.
— Eu nuca farei isso!
— Quando compreender a verdade,
no seu tempo, tudo mudará. — Chamas
aparecem na mão direita da vilã.
Ela arremessa uma esfera flamejante
contra Mercúria que desvia com facilidade.
— Somos as escolhidas dos deuses
para purificar o planeta e prepará-lo para o
retorno deles. — ela diz ao avançar contra
Mercúria.
Os golpes de marreta são esquivados
pela velocista e seus contra-ataques
também não surtem efeito. O corpo da
inimiga é resistente.
Ardente sorri ofegante. Vira-se para
as pessoas que não deixaram o
supermercado por conta do embate das
duas supercriaturas.
—Eu os matarei, Mercúria. Continuarei
a dizimar humanos em prol de um amanhã
melhor. — ela diz.
— Não! — grita Mercúria.
— Já disse da nossa missão. Quer me
ajude ou não, realizarei o que me foi
predestinado.
Ardente ergue a mão e uma explosão
atinge um homem que tentava escapar.
— Pare! — Mercúria avança e agarra
Ardente pelo braço.
Arrasta a Diva até o fim do corredor e
a arremessa contra a parede.
Ela é Ardente
Parte 3
O estrondo atrai a atenção de Marcelo
Siqueira, o repórter que acaba de chegar ao
local, informado do que acontecia. Dentro
do furgão além dele, encontra-se o
motorista Carlos e o cinegrafista Fausto.
Meire está a frente conversando com
policiais.
Marcelo desce e aproxima-se da
delegada. Ela é quem fala primeiro:
— Sua garota está lá dentro. Parece
que tem outra... — acende um cigarro.
— Ela não é minha garota. O que está
acontecendo?
— Um assalto. Pelo menos estava. Os
que saíram me informaram que Mercúria já
rendeu todos os bandidos, mas há outra
mulher com superpoderes que está lutando
com ela. Sabe alguma coisa dessa outra?
— Não. Santa Paz tem se tornado um
lugar peculiar.
— Nem me fale — Meire expele a
fumaça pelos lábios.
— Vou chamar o meu cinegrafista e
vou entrar ao vivo. — ele informa.
— Vai lá. Como se não bastasse as
matérias para o Jornal Cidade agora para a
TV Paz? Você está fazendo disso um
espetáculo.
— O meu patrão é dono da TV e do
Jornal. Pediu para eu cobrir Mercúria já que
tenho conseguido boas matérias para o
jornal.
A explosão estilhaça os vidros da
adega do supermercado. Mercúria está
caída, ferida. Ardente caminha mancando
na direção da heroína, arrastando sua
marreta.
— Luta comigo que sou sua irmã em
defesa desses insignificantes?
— Defendo a vida — o corpo de
Mercúria está se regenerando enquanto é
banhado por vinho e outras bebidas
alcóolicas.
— Pois tirarei a sua — a vilã eleva a
marreta para o golpe fatal.
Mercúria se esquiva com agilidade e
uma cratera é aberta no local que ocupava.
Os olhos de Ardente demonstram sua
irritação:
— Se você ficasse parada... Não
importa, quero ver se esquivar do ar em
explosão. — Ela lança a mão para
manipular as moléculas do ar.
A mente de Mercúria identifica logo o
que acontecerá, afinal aquele ataque já
tinha sido usado várias vezes por Ardente.
Avança o mais rápido possível e empurra a
vilã antes que as explosões se façam. Como
o chão estava liso por conta do líquido das
garrafas quebradas, ambas escorregam e
caem. A marreta se desprende da mão da
inimiga pela primeira vez.
Ardente tenta recuperar a arma, mas
Mercúria lhe impede segurando-a pelas
pernas:
— Solte-me! — é a primeira vez que
Ardente está sem o costumeiro semblante
de confiança.
Ela consegue soltar uma das pernas e
desfere um chute contra o rosto de
Mercúria. As mãos da heroína se afrouxam
e a inimiga se coloca de joelhos. Observa
que Mercúria também está de joelhos e
sangue pinga do seu rosto.
— Está no seu limite, não é? — ela se
levanta e desfere um poderoso chute nas
costelas de Mercúria.
O barulho de ossos se partindo é
música para Ardente que acaba se
esquecendo de recuperar sua marreta. Ela
continua o espancamento.
O metabolismo acelerado de Mercúria
já não dá conta de regenerá-la. Sente dor
que nunca imaginou sentir um dia, mas se
mantém consciente.
Ardente para, ofegante e Mercúria
tem a oportunidade de atacá-la com uma
rasteira. A vilã cai, Mercúria manca até ela
e lhe desfere socos. A velocidade dos
ataques é comum, já que não possui
energia para acelerá-los.
— Pare! — diz Ardente. — Ambas
morreremos se continuarmos com essa luta
— a voz da inimiga soa feminina, o que a
faz levar as mãos aos lábios. — Oh, não!
Ela tenta se soltar, mas Mercúrua
está sobre ela.
— Como fui tola! Por Hefesto!
— O que está dizendo? — a heroína
está confusa.
Os policias invadem o supermercado
numa operação montada pela delegada.
Portam armas de calibre pesado, já que não
sabem como ferir esses seres poderosos.
Ardente abre os braços, Mercúria
continua sobre ela. A pele da inimiga se
torna clara, os olhos castanhos. O tamanho
diminui.
— Que está acontecendo com você?
— indaga Mercúria.
— Estou sendo expulsa do meu
hospedeiro. — é o que diz a vilã.
Mercúria abaixa o punho que
mantivera levantado desde o pedido de
Ardente para cessar os ataques. A inimiga
aproveita-se da guarda baixa da oponente
para cravar-lhe no peito um estilhaço médio
de vidraça.
Os policiais se aproximam, mas
Mercúria não tem tempo de vê-los em ação.
A consciência e a vida lhe fogem.
Ela é Ardente
Parte 4
Meire sempre fora considerada uma
mulher forte. Na academia de polícia se
destacava pela resistência física e pela
determinação, o que causava certa inveja
em seus companheiros. Diziam que ela era
um homem no corpo de mulher. Até mesmo
seu psicológico sempre fora equilibrado,
mas isso vinha mudando de um tempo para
cá, desde que conheceu Mercúria.
Se tinha mesmo as qualidade que
invejavam seus companheiros de academia,
precisaria delas agora que entrava no
supermercado palco da batalha de Mercúria
e Ardente.
Em um dos corredores destruído
depara-se com o corpo inerte de quem
conhecia escorrendo rubro, debruçado
sobre outra mulher.
— Tirem Mercúria de cima da mulher.
— foi sua primeira ordem aos policiais.
De arma em punho ela acompanha o
procedimento. A mulher desconhecida
banhada pelo sangue de Mercúria pede
socorro.
Os policiais afastam a heroína da
menina que pede ajuda.
Meire se aproxima e diz:
— O que houve aqui?
— Eu não sei. Deus, eu não sei o que
estou fazendo.
— Parece que você é a responsável
pelo que aconteceu aqui. Inclusive pelo
ferimento de Mercúria.
A jovem fita o corpo da heroína ao
lado e depois suas mãos ensanguentadas.
Está nua, observa confusa.
— Não é possível — ela tapa o rosto
com as mãos.
Meire não tem tempo para descobrir a
verdade. Ordena:
— Algemem-na.
Ardente é algemada sem resistência
pelos policiais. Meire volta-se para Mercúria
e por um momento não sabe o que fazer.
Saca o celular e disca para Emergência.
— Levem essa mulher daqui. — ela
diz aos seus homens, referindo-se a menina
que fora Ardente.
— Eu não sou criminosa! — Ela se
debate e chora enquanto é levada.
Marcelo não estava no ar quando os
homens de Meire deixam o local do crime
com a jovem bandida algemada coberta por
uma toalha branca. A marreta e a armadura
de Ardente eram carregadas por dois
policiais que vinham logo atrás.
Em sua última chamada para o
plantão de notícias da TV Paz, o repórter
havia anunciado que o roubo ao
supermercado do Centro da cidade havia
terminado em tragédia, que a heroína de
Santa Paz estava gravemente ferida.
Agora poderia ter mais informações,
pensou ao pedir para Fausto ligar a câmera
e segui-lo. Quando ganhou os corredores do
supermercado destruído, pediu para Fausto
filmar cada detalhe. Entretendo, assim que
notou Mercúria pediu que a gravação fosse
interrompida.
Aproximou com velocidade,
preocupado. Meire estava conversando com
policiais ali perto:
— Que está fazendo aqui, Marcelo?
— Deus, ela tá fria. — ele está de
joelhos.
— Já chamei a ambulância — diz a
delegada.
— Não dá pra esperar, Meira. — ele
agarra o corpo de Mercúria.
— Marcelo, espere! — ela sai atrás do
repórter.
Ambos cruzam a saída do mercado
sob olhares curiosos. Marcelo abre a porta
do furgão da TV e deixa Mercúria no banco
traseiro. Meire entra pela porta do
passageiro e segue com Marcelo para o
hospital.
— Achei que ela fosse invulnerável —
a delegada comenta.
— Se lesse minhas matérias já
saberia que não.
— Vire aqui — ela sugere ao mesmo
tempo em que ignora o comentário do
repórter — podemos pegar um atalho.
Chegam ao hospital rapidamente.
Meire desce do furgão da TV Paz e corre até
a recepção. Marcelo abre a porta lateral e
agarra Mercúria.
— Aguente firme.
Ela é Ardente
Parte 5
Mercúria se levanta subitamente. Está
num leito de hospital. As mãos estão
trêmulas.
— Oh, puxa, que bom que acordou! —
é Marcelo que se levanta da poltrona ao
lado da cama.
— Marcelo? Onde estão minhas
roupas?
— No lixo. Foi uma confusão danada.
— Confusão?
— Ah sim. Trouxemos você toda
quebrada e com um ferimento de vidro no
peito. Parecia morta, inclusive. Os médicos
não sabiam o que fazer. Uns queriam te
operar, outros queria te abrir só pra ver o
que tinha dentro. Daí eu, com a ajuda de
Meire, entrei na sala e impedi que fizessem
qualquer coisa. Disse que só deveriam te
dar “comida”. Soro, pela sua condição
naquela oportunidade. Parece que
funcionou.
Mercúria ainda está confusa:
— Ardente, onde está?
— Então, descobri com um
sobrevivendo do supermercado que é esse
o nome da outra Super Poderosa que lutava
com você. Meire me informou que prendeu
uma menina de treze anos quando entrou
no mercado. Segundo a delegada, ela é
Ardente.
Seria coincidência? Verônica tinha
exatos treze anos quando se transformou
em Mercúria. Se a inimiga tinha voltado a
idade de antes algo similar poderia ocorrer
com ela? Poderia recuperar a vida perdida?
— Ardente estava se transformando
quando me acertou pra valer. Disse algo
sobre hospedeiro, se me lembro bem. — A
heroína leva as mãos ao rosto. — Preciso
conversar com essa menina. Será que eu
também sou hospedeira?
— Ei ei, primeiro você tem que se
recuperar totalmente. Ainda está fraca.
Quanto a saber se você é hospedeira, eu
nem faço ideia do que seja isso.
— Nem eu. Por isso é importante falar
com essa menina.
— Eu posso ajudar você de alguma
forma? — Marcelo coloca a mão no ombro
de Mercúria.
— Você já fez isso — ela sorri. — Eu
não tenho como agradecer pelo que fez por
mim aqui.
Ele sorri e se afasta:
— É só me conceder entrevistas. Vou
mandar entregar comida. Muita comida.
Os papeis estão sobre a mesa da
delegada Meire; o cigarro nos seus lábios. A
sua prisioneira peculiar, a menina que ferira
Mercúria, estava sob sua custódia em uma
sala particular improvisada. Ela é menor de
idade e não pode, segundo as leis do país,
ser mandada para a cadeia comum. O
correto é instalá-la em uma Casa de
Custódia para adolescentes.
— Estou começando a odiar esse
pessoal com poderes. — ela diz para si
mesma.
Nos três dias que sucederam o
acontecimento do supermercado, Meire
havia ouvido alguns presentes a adiantado
o Inquérito Policial. Tinha solicitado a
soltura da adolescente que fora Ardente e
que agora atendia por Mariana Marques da
Silva. O argumento da delegada era de que
não havia sido Mariana a autora dos crimes.
Segundo Meire, ela não havia agido por
vontade própria, o que a eximia de
responsabilidade. A decisão cabia ao jovem
Promotor Cícero Alves com quem a
delegada não tinha afinidade.
Um vendaval se faz, mas Meire
segura os papéis com as mãos antes que se
espalhem:
— Peguei você! — ela diz, referindo-
se sobre a manobra de impedir os papéis de
se espalharem.
— Não estou abusando dos poderes
depois do que aconteceu no mercado. Não
sei quando vou precisar deles para não
morrer.
— Estou feliz que tenha sobrevivido.
— Obrigada por ter me salvado —
Mercúria abraça Meire.
A delegada a afasta rapidamente, sem
jeito. Tosse e depois diz:
— Tem uma coleção do modelito? O
de antes estava um trapo.
— Isso não é importante. Quero falar
com Ardente.
— Ela está diferente agora. Colhi
depoimentos que relataram que você estava
lutando com uma mulher de pele escura,
forte. Venha ver pro sim mesma, ela está
na sala de arquivos aqui da delegacia.
Ela é Ardente
Parte 6
As duas caminham em silêncio, o
abraço ainda surte efeito em Meire. Ela abre
a porta e uma menina normal é avistada
sentada em um colchão improvisado.
— Você é a mulher que estava em
cima de mim quando fui presa! — a garota
aponta para a heroína. Me tire daqui, por
favor!
— Você foi quem quase me matou.
— Por isso devo estar presa. Mas não
fui eu quem te causou mal ou se causei não
estava consciente.
— O que você quer dizer com “não
estava consciente”? — Mercúria se ajoelha.
— A marreta.
— A marreta? — a delegada
questiona.
A menina olha para Meire. Depois
volta-se para Mercúria.
— Sim. Eu não sei explicar direito o
que aconteceu. Quando toquei aquela
marreta algo estranho aconteceu.
— Não se lembra dos poderes que
tinha? Do que fez? — indaga Mercúria.
— Não. Estou presa e longe de casa
sem saber o motivo.
— Conte-nos mais sobre essa
marreta.
— Ninguém acreditaria. Eu moro em
um sítio e num dia chuvoso, quando
retornava da escola, algo caiu do céu. Ao
me aproximar por curiosidade percebi que
era uma marreta! Alguma força me instigou
a tocá-la.
Mercúria se levanta, surpresa:
— Deve avisar aos homens que
levaram a marreta para que fiquem longe
do objeto, Meire.
— Farei isso! Pelo que pude constatar
é a arma que faz quem a empunha se
transformar em Ardente.
Passos apressados pelos corredores
da delegacia e vozes interrompem o
interrogatório. Meire abre a porta e escuta
uma mulher dizer:
— Mariana está mesmo aí? Deus, é
mesmo ela! Tão longe! Quanto tempo!
A mulher, que vem seguida de um
homem e duas crianças, entra na sala e se
depara com a filha perdida. Mercúria
observa a felicidade da mãe ao reencontrar
a filha e lágrimas ajuntam nos seus olhos.
Um dia seria ela? Toda a família, ali naquela
prisão improvisada, reunida novamente.
Feliz.
— Que aconteceu, Mariana?
Pensávamos que estava, sequestrada,
morta. — a mãe em pranto apalpava a filha
adolescente.
Meire fita Mercúria e observa que
aquela cena mexe com a super-heroína.
Imagina o quanto Mariana e Mercúria têm
em comum.
Meire está fumando no corredor da
delegacia. A porta da sala de arquivos se
abre e dela sai Mercúria.
— Ela não é mais Ardente. Não há
motivo para mantê-la presa. — diz a
heroína.
— Eu também entendo assim e vou
pedir para Promotor de Justiça soltá-la. O
problema é que vão querer um responsável
pelo incidente no supermercado. A
imprensa, a promotoria. Essa questão de
sobrenatural complica as coisas e o Cícero é
um pé no saco.
— Não entendo dessas coisas, Meire.
Sei que ela é inocente.
— Eu não posso soltá-la. Há leis que
me impedem. Tem todo um processo...
— Você não, mas eu sim.
Meire apaga cigarro e volta-se para
Mercúria.
— É. Você pode — ela joga o cigarro
no lixo — Mas não deve. Notei que a
menina mexe com você de alguma forma.
Já não acho que você seja alienígena.
Tenho pra mim que alguma coisa caiu e te
deixou Super Poderosa.
Ela é Ardente
Parte final
São sete horas da manhã quando
Meire retorna à delegacia. Policiais a
esperam na sacada do prédio com
semblante de preocupação. Meire deduz o
motivo.
— O que está acontecendo? — ela
pergunta para Antônio, o investigador de
sua confiança.
— Meire o Promotor está aí e está
uma fera.
— Ele sempre está. — ela segue o seu
caminho até sua sala.
Nela, em pé com um livro de Meire
nas mãos está Cícero, o Promotor de Justiça
de Santa Paz.
— Bom dia, doutora — ele diz sem
tirar os olhos do livro.
— Bom dia, doutor. O que o fez
madrugar?
— Não seja sínica.
Faz-se silêncio.
— Ela tem superpoderes, doutor. —
Meire senta em sua cadeira. — Eu disse a
ela que não deveria fazer, mas ela é cabeça
dura.
— Todos na cidade sabem da sua
relação com essa coisa.
— Meça suas próximas palavras — ela
aponta para o promotor.
Ele suspira. Fecha o livro e o coloca
na estante. Ela continua:
— Interroguei a menina ontem. Hoje
eu prepararia novo pedido de soltura.
— Não importa. Eu vou indiciar
Mercúria como cúmplice das mortes
ocorridas no supermercado. Não é por outro
motivo que ela libertou a outra criatura.
— Só para o seu governo, doutor, a
outra criatura é uma criança! Ela não matou
ninguém! Era uma força desconhecida que a
possuía quando empunhava a maldita
marreta.
— Ora, Meire, tenha santa paciência!
Força desconhecida? Isso virou o que?
Como você pode ter certeza que essa
criança não pode voltar a ser a criatura que
dizimou as pessoas no supermercado?
— Eu confio em Mercúria.
— Mas eu não. Por isso você está fora
do caso; por amizade íntima com uma das
criminosas. Um novo delegado está
chegando para assumir esse caso.
— Ah, você não pode fazer isso! Estou
nessa cidade há muito mais tempo que
você, seu playboy de merda!
— Eu já fiz. Uma pena que eu não
possa transferi-la para outra cidade. Pelo
menos, os casos envolvendo sua amiga
aberração não serão mais de sua
responsabilidade. — Cícero deixa a sala e
fecha a porta.
Os palavrões ditos por Meire são
abafados pela porta fechada.
Origem Revelada
Parte 1
A porta velha da loja de revistas
usadas se abre. Verônica está com duas
sacolas na mão esquerda. Traz pão,
presunto e leite. Do lado de dentro do
balcão está Mariana.
— Então essa é sua verdadeira vida?
— ela diz.
— Bem, é o mais próximo que consigo
chegar de uma vida normal.
— Não tem medo? Revelou sua
identidade para mim, me trouxe para a sua
casa. Eu quase matei você.
— Aqui você está segura. Pelo menos
por enquanto. Eu não posso te levar para
casa porque eles irão te procurar. Nem
revelar aos seus pais que você está bem,
pelo menos por enquanto.
— Por que me trouxe aqui? Me
libertou?
— Porque preciso entender o que é
você. O que sou eu — Verônica coloca as
sacolas em cima do balcão.
— Eu juro que não quis machucar
ninguém.
— Eu acredito em você.
— Por que se importa em me ajudar?
Não que eu esteja reclamando, mas é que
você se complicará com a polícia por causa
disso.
— Eu me vejo de alguma forma em
você. Daria tudo para desligar os meus
poderes, como aconteceu contigo. Ter a
chance de retomar a vida que eu tinha.
Quanto à polícia, explicarei tudo em breve.
Meire entenderá.
— Então você também ganhou
poderes por tocar algo que não devia?
O passado se fez como resposta.
Havia feito muito calor naquela tarde.
Uma tempestade tinha se formado nos céus
de Santa Paz. As árvores balançavam com
violência, os ventos levantavam poeira e
lixo. Ninguém mais transitava pelas ruas.
Verônica estava voltando do dentista
com sua bicicleta cor-de-rosa e empregava
toda sua força para pedalar e evitar que a
chuva forte lhe alcançasse. Ela escutava os
trovões e um medo súbito invadiu-lhe,
estranhamente. Empregou mais força, mas
o vento insistia em lhe atrapalhar.
Poeira continuava a se levantar das
ruas sujas e trovões rachavam os céus, mas
não chovia ainda. Todo mundo tinha
desaparecido dando espaço à escuridão que
obrigou os postes a se acenderem. A
menina teve a ideia de cortar caminho pelo
Parque da Lagoa, pois aquele local público
de muitas árvores era imenso e cortava
parte da cidade. Se ela transpassasse por
ele, como já havia feito por diversas vezes,
ganharia tempo.
Verônica entrou pelo portal de ferro
enferrujado e aproveitou a descida antes de
ganhar as dependências de uma estrada de
terra. Sentiu seu corpo ser atingido pelas
primeiras gotas de chuva e ficou
imaginando como sairia dali quando o som
de um trovão se fez em seus ouvidos. Ela
sentiu um arrepio e suas pupilas se
tornaram pequenas, ao mesmo tempo em
que a luz invadia todo aquele ambiente.
KRABOOOOOOON
Houve o barulho de árvore caindo.
Depois, tudo ficou calmo e silente. Nada de
chuva ou raios, nada de dor, nada.
Verônica abriu os olhos devagar.
Estava entardecendo, silencioso. A garota
olhou para o seu braço agora desnudo e
viu-o maior. Assustada olhou sua mão e
notou que a mesma estava grande! Era
uma mão adulta! Sentou-se e viu que
estava nua! Sua roupa se encontrava toda
rasgada devido ao seu súbito crescimento!
Ela agora tinha grandes seios e um corpo
esbelto, adulto! Músculos!
— Ai, droga! — disse ela ao se
levantar espantada. — O que aconteceu?
Preciso sair daqui...
Quando a garota forçou suas pernas
para se movimentar sentiu que elas tinham
força descomunal. Acabou correndo ao
invés de andar e desajeitada caiu vários
quilômetros à frente, já fora da cidade. Com
a velocidade assombrosa que havia
adquirido em tão pouco tempo, os
ferimentos abertos pela queda foram
severos:
— Ai! — Verônica fez uma careta ao
fitar seu ombro em carne viva e ver seu
sangue escorrer pelo machucado.
Mas, para sua surpresa, os tecidos
rompidos foram sendo reconstituídos com
velocidade. Em alguns segundos, por todo
seu corpo, não havia mais nenhuma
escoriação:
— Que estranho... o que aconteceu
comigo? Estou sentindo fome... — Olhou
para as mãos e viu que estavam tremulas.
Origem Revelada
Parte final
— Então foi assim — são as primeiras
palavras de Mariana depois de ouvir o relato
de Verônica.
Ela coloca o copo vazio sobre o
balcão. Verônica assente. Depois diz:
— Fiquei apavorada. Também tinha
treze anos quando o raio me atingiu.
— O que aconteceu com a gente é
estranho, impossível.
— Ardente tem opinião diferente. No
nosso último encontro ela disse que éramos
Divas. Pelo que compreendi, somos
representantes de seres fantásticos que
viveram no mundo antes dos homens. Ela
os chamou de Deuses-banidos.
— Que confuso.
Verônica coloca café em seu copo.
Depois diz:
— Nem me fale. Precisamos descobrir
mais.
— Sim. Posso te perguntar uma coisa?
Como você veio parar nesta loja de revistas
usadas?
Verônica estava caída em posição
fetal, nua, magra. Vários tombos
aconteceram na sua tentativa de andar.
Esperava a morte sem entender o que
estava acontecendo, quando o barulho do
motor velho de camionete lhe trouxe
esperança. Os seus olhos se abriram ao
mesmo tempo em que o barulho da porta
sendo fechada se fez em seus ouvidos. Os
passos aconteceram lentos.
— Deus, o que aconteceu com você?
Foi a primeira vez que ouviu a voz
rouca de Clarice. Ela era uma senhora de
cabelos prateados, presos no penteado
“rabo de cavalo”. Os óculos vinham na
ponta do nariz fino e os olhos já embaçados
pela idade, eram castanhos. Vestia-se com
saia longa, camisa clara e blusa xadrez.
— Eu não sei — respondeu Verônica
com dificuldade.
— Eu vou cuidar de você.
— Clarice era a dona deste lugar. —
Verônica está no presente. — Trouxe-me
para cá, cuidou de mim.
— O que aconteceu com ela?
— Faleceu, dormindo. Ainda não me
acostumei com sua ausência. Tenho a
impressão de que ela aparecerá das
escadas com o sorriso nos lábios como fazia
todos os dias.
— Sinto muito.
— Ela era uma ótima pessoa.
Ensinou-me a controlar os meus passos, a
ter calma. Fez-me estudar ruas, caminhos e
países para que eu pudesse correr por
todos os lugares.
— Ela foi sua mentora.
Verônica assente.
— Fez-me continuar os estudos na
escola de educação para adultos durante as
noites. Durante os dias eu trabalhava aqui
na loja de revistas.
— Quando virou Mercúria?
— No mês anterior ao falecimento de
Clarice ela apareceu em casa com uma
caixa grande contendo vários uniformes de
Mercúria. Disse que eu não seria vista, mas
para o caso de ser, estaria preparada;
pronta para ser um símbolo para as
pessoas. Que o mundo precisava de alguém
que lhe desse o exemplo e que eu poderia
ser essa pessoa.
— Puxa.
— Mas ela não estava certa. Ardente
me disse que sou predestinada a dizimar a
humanidade e não a salvar o mundo.
— É uma barra e tanto ficar sozinha e
ainda não saber o que você deve fazer com
seus poderes. — fala Mariana.
Verônica sorri.
— Sinto muito a perda de Clarice.
Sinto falta da minha família de verdade; da
minha mãe.
Mariana recolhe os copos e dá nó na
sacola de pães.
— Acho que podemos escolher o que
queremos ser.
Arte
Ardente
Arte
Mercúria
Inimiga n° 1
Parte 1
Santa Paz não é uma grande cidade,
mas também não é pequena. Tem a fama
de ser violenta. Litorânea, com cerca de
quase um milhão de habitantes, sobrevive
do turismo e do polo industrial dominado
pelas empresas de pescados. Na periferia,
nos morros, como em qualquer centro
populacional, funciona a indústria do tráfico
de drogas.
Fernando conhece a triste realidade
da cidade, mas tem esperança de que a
super-heroína Mercúria salve-a. É um dia
comum do seu trabalho como Policial
Militar, conseguido às duras penas de muito
estudo. Ali, na camionete da corporação
junto dos outros três companheiros ele
também se sente herói. O patrulhamento é
de rotina, eles não ousam subir nos morros,
ainda mais naqueles tempos.
Uma moto de grande cilindrada
aproxima-se veloz e se posiciona
paralelamente à viatura em movimento. Os
ocupantes da motocicleta estão armados.
Os policiais sacam suas armas de calibre
modesto e não conseguem se defenderem
dos tiros de submetralhadora que alvejam
todo o veículo. O carro desgovernado sobe
a calçada e bate em um poste. Há o silêncio
do fim de vidas.
Mercúria passa pelo local
rapidamente e o veículo batido lhe chama
atenção. Retorna. Uma moto está parada
perto e dois homens de capacete com
armas em punho se aproximam do carro.
Avança e desfere dois poderosos socos
contra a dupla de bandidos, usando da força
proporcionada pela sua velocidade. Ela
escuta alguém chorando. Volta-se para o
veículo e ao abrir a porta vê Fernando ainda
em estado de choque. Os outros três
policiais estão mortos.
— Que aconteceu? — pergunta ao
policial.
— Cê chegou tarde. Os caras já
chegaram atirando.
Um dos bandidos está consciente e
rasteja pela calçada. Mercúria o agarra pela
jaqueta e o conduz até a árvore com
velocidade. O impacto das costas do vilão
com o tronco o faz urrar de dor:
— Por que fizeram isso? — ela indaga.
— Porque nos mandaram fazer — a
voz do assassino sai abafada pelo capacete
que ele usa — Nós vamos continuar
matando até conseguirmos pegar você.
Mercúria desfere um soco contra a
viseira do capacete do vilão, impedindo-o
de continuar falando.
Mauro está tenso. É sua primeira
noite na delegacia, na sua nova sala, no seu
novo cargo. Recentemente aprovado no
concurso público para delegado de polícia
mesmo sem estar preparado para o exame,
tinha sido escalado para ocupar o cargo de
segundo delegado de Santa Paz. O contato
com a primeira delegada não tinha sido dos
melhores. Por alguma razão, ela não gostou
dele. Julgou ser pelo motivo que estava ali;
pela troca que tinha feito com Cícero, o
promotor. “Te dou o cargo e você me dá
Mercúria.”
Havia estudado o caso, os
documentos, os relatórios e os processos.
Custava acreditar ainda. Os policiais
estavam posicionados. Dez deviam bastar.
Sua arma estava no coldre.
É jovem, por volta dos vinte seis anos
e veste terno completo, cinza. Careca, tem
cavanhaque em volta dos lábios. Os anos de
academia lhe deram um corpo robusto.
O vendaval anunciou a chegada de
Mercúria. A cadeira estava virada para a
janela, atrás da mesa.
— Meire, já sabe que estão matando
policiais? O último bandido que peguei disse
que é por minha causa, sabe de alguma
coisa?
A cadeira se vira. Um revólver é
apontado para o rosto da heroína.
— Você está presa — fala Mauro.
— Onde está Meire?
— De folga.
— Você, quem é?
— O delegado. Seu delegado,
precisamente.
— Preciso vê-la.
— Você está presa, já disse.
— Eu digo que não.
Mauro dispara. Estranhamente
Mercúria vê o movimento do gatilho em
câmera lenta. Ouve a explosão e visualiza a
bala deixar o cano da arma. A distância é
curta, ela se desloca com agilidade e o tiro
atinge o batente da porta. A heroína está
surpresa, nunca havia tido a experiência de
ver as coisas em velocidade reduzida.
A porta da sala se abre e muitos
policiais entram com rifles nas mãos.
Inimiga n° 1
Parte 2
O sorriso nos lábios do novo delegado
é de confiança. Mercúria seria capaz de
desviar de um fuzilamento?
— Como vai ser, criatura? — ele diz.
— Meu nome é Mercúria — a heroína
avança em direção ao delegado e o
empurra pela janela atrás de sua cadeira.
Os tiros acontecem, os vidros se
estilhaçam e Mercúria ganha a calçada com
Mauro de escudo.
Ela o fita nos olhos. Percebe que a
confiança se foi daquele rosto. Sorri ainda
extasiada pela habilidade que acabara de
descobrir; a de ver os movimentos alheios
desacelerados.
— Delegado, preocupe-se com as
mortes dos policiais — desaparece em
supervelocidade.
Mercúria precisava ver Meire, mas não
sabia onde a delegada residia. Sempre
usara a delegacia para encontrá-la. Novo
delegado; era só o que faltava! Avançou
com rapidez até a residência de Marcelo
Siqueira.
O vento agita as cortinas de cetim. As
luzes do quarto se acendem e o homem se
vira devagar. Era tarde para uma visita.
— Olá, Marcelo — é Mercúria
encostada no batente da porta do quarto.
— Oi — ele se senta — Que horas
são?
— Eu não sei. Preciso de sua ajuda.
— Bebe café? — ele calça seus
chinelos.
Na cozinha, enquanto o repórter
prepara o café, a heroína aguarda na
cadeira próxima á mesa. O cômodo é
agradável, bem organizado.
— Sei que você tem acesso a muitas
informações — ela começa — Preciso saber
o endereço da delegada Meire.
— Engraçado — ele faz uma pausa.
— O que disse?
— Acho engraçado que não saiba o
endereço da delegada Meire. O meu você
achou com facilidade quando publiquei a
matéria que te revelava.
— É só ligar para o jornal e pedir o
seu endereço, detetive.
— Por que não liga para a delegacia é
faz o mesmo?
— Primeiro que eu não estou bem
vista na delegacia e mesmo que eu tentasse
me passar por uma pessoa normal não me
forneceriam o endereço da delegada.
— Então está admitindo que você se
passa por pessoa normal? Tem uma
identidade secreta!
— Eu não estou admitindo nada,
Marcelo. Às vezes acho você um cara legal,
outras vezes você parece só ter interesse
nas matérias que faz de mim.
Há o silêncio constrangedor.
— Do jeito que você começou a falar
pensei que ia me pedir para acessar dados
ultrassecretos. O endereço da delegada é
fácil — Marcelo retoma a conversa como se
sua especulação sobre Mercúria não tivesse
acontecido.
— Tenho que falar com ela sobre os
ataques aos policiais.
— Tem um colega no jornal cobrindo
isso. Posso pegar com ele algumas
informações.
— Ajudaria muito.
— Vem cá, você não leu os jornais
nos últimos dias? Aliás, reparei que ficou
sumida por um tempo. Meu faro de
jornalista diz que o sumiço teve a ver com a
garota que você tirou da delegacia.
A heroína desvia o rosto.
— Não vou dizer nada.
— Pois deveria. Sabia que a Meire
pagou o pato pela sua atitude? É por causa
do que aconteceu que ela está de gancho
da delegacia e ainda colocaram um novo
delegado.
Mercúria se levanta.
— Eu não queria prejudicá-la.
— Pronto. O café está coado. Prefere
com açúcar ou adoçante? — Marcelo sorri.
Mercúria ainda estranha os modos do
repórter. Ele muda de assunto e de humor
com velocidade.
Depois do café, Marcelo vai até a sala
para pegar o laptop. Coloca o aparelho
sobre a mesa e diz:
— Vou conseguir o que me pediu.
— Obrigada.
— Não vai ser de graça — ele diz sem
tirar os olhos da tela do computador portátil
— Quero uma entrevista para a televisão.
— Eu não vou fazer isso — Mercúria
se zanga.
— É a sua chance de explicar o que
aconteceu com Ardente e livrar a barra da
Meire. A polícia está contra você, os
bandidos estão se organizando contra você.
Tem que mudar essa situação.
Inimiga n° 1
Parte 3
O dia está amanhecendo quando
Mercúria se encontra em frente ao portão
da residência de Meire. A noite tinha sido
longa, mas o mais difícil viria agora. O
portão está sem cadeado, ela entra. Coloca
a mão na maçaneta, a porta está
destrancada.
As luzes da sala estão acesas, a TV
ligada e Meire dormindo no sofá. Uma
garrafa de vodca está vazia ao pé do móvel.
A delegada ronca, vestida de moletom
cinza, folgado.
— Meire.
Ela desperta assustada e saca a arma
que esconde debaixo da almofada.
— Você? — diz.
— Preciso de sua ajuda.
Meire se senta. A mão vai á cabeça.
— Precisa? Você não é boa o
suficiente? Não está acima da lei?
— Ei, achei que estava fazendo o
certo! — Mercúria se senta.
— Você ferrou com tudo. Peguei cinco
dias de gancho e um novo delegado foi
nomeado para Santa Paz.
— Eu já o encontrei.
— Você está sendo procurada por
homicídio! O Cícero do Ministério Público e a
maluca da doutora Valéria juntaram provas
de que você é comparsa de Ardente.
— Mas eu não sou, você sabe! Viu que
lutei com ela para salvar as pessoas do
supermercado. Viu que Mariana não é
Ardente.
— Eu vi você soltando uma
prisioneira. Eles vão ficar no seu pé. Vão
pegar você.
— Não vão. Temos que nos preocupar
com os policiais que estão morrendo.
— Então é isso.
Mercúria desliga a TV pelo controle-
remoto.
— Não é só isso. Eu vim pedir
desculpas. Agi mal. Não era minha intenção
arrumar problema para você.
— Mas arrumou.
— Erro, como qualquer pessoa.
— Só que não pode. Tem poderes e
será cobrada por conta deles. As pessoas
terão inveja, culparão você.
— Se eu pudesse me desfazer dos
poderes, eu faria sem hesitar.
Meire esbarra com seu ombro no
ombro de Mercúria.
— Você é super e não deve desistir
das pessoas. Vamos lá — Meire se levanta
— Vou te passar tudo que tenho e sei sobre
as mortes dos policiais.
Verônica está sentada, cercada de
livros velhos. Os cabelos presos em um
coque, de camiseta regata e short, para que
não passe muito calor enquanto analisa os
documentos fornecidos por Meire. Os óculos
falsos estavam sobre uma pilha de livros, a
loja fechada, era feriado.
A campainha toca, ela observa a
silhueta pelo vitral da porta. Levanta-se e
abre a porta para atender, achando tratar-
se de um cliente desavisado, mas
surpreende-se:
— Doutora Valéria!
— Desculpe vir cedo e no feriado, mas
estava próxima e resolvi saber como você
está depois daquele incidente no
supermercado.
— Entre! — Verônica abre totalmente
a porta — Não repare na bagunça nem na
minha roupa. Estou organizando um lote de
livros que chegou.
— Puxa, nunca tinha reparado que era
musculosa — diz a advogada ao fitar a
amiga em traje curto.
— Como trabalho sentada, faço
musculação para manter a forma — mente
Verônica, sem muito jeito para aquilo.
Valéria entra e observa lugar. A
quietude, os muitos livros.
— Você não se sente sozinha aqui? —
indaga.
— Às vezes. Mas o trabalho me
distrai. Durante o dia recebo a visita de
amigos, clientes.
— E sua família? Uma vez você me
disse que tinha perdido a mãe
recentemente.
— Sim. Minha mãe se chamava
Clarice e o Sebo era dela.
— E o resto da sua família? Pai,
irmão?
— Eu não conheço o meu pai. Irmãos
também não tive, não que eu conheça.
— Eu também fui mãe sem marido,
como a sua mãe. Não tive nenhum filho
além da que perdi. Minha menina também
se chamava Verônica. Nossas histórias têm
pontos semelhantes.
A vendedora de livros usados esbarra
numa pilha de revistas e a derruba. Valéria
abaixa-se para ajudá-la a arrumar os
exemplares.
A advogada continua:
— Frequentei igrejas, cartomantes
para que alguém me desse uma luz, uma
mensagem da minha menininha. Sofro
tanto a falta dela.
As lágrimas se juntam nos olhos
verdes de Verônica. Ela se esforça para
contê-las.
— Eu não sei o que dizer, Valéria.
Tenho certeza que sua filha, em qualquer
lugar que esteja, deve também sentir a sua
falta. Mais ainda, ela deve querer que você
fique bem; que retome sua carreira; que
siga em frente.
— Não é fácil, minha amiga. Não é...
— Eu imagino que não — Verônica
abraça Valéria — Saiba que pode contar
comigo sempre.
— Eu não vim aqui para isso, me
desculpe — Valéria se justifica — Queria
saber se estava bem depois do incidente no
supermercado.
Minha morte
Parte 1
Meire tinha a investigação adiantada.
Segundo os documentos analisados e a
convicção de Verônica, o chefe do tráfico de
Santa Paz organizou um plano para oprimir
os cidadãos da cidade, mostrando-lhes a
fragilidade da polícia. Plantaria o sentimento
de insegurança, cuja ideia era provar que
mesmo com a atuação de Mercúria, os
moradores de Santa Paz não estavam
seguros. Os policiais eram os primeiros a
serem mortos; depois as figuras públicas e
por último, a própria Mercúria. De acordo
com os levantamentos de Meire, a
organização criminosa de Santa Paz tinha
angariado recursos para implantar essa
política de caos. Verônica não iria permitir.
Não era justo que os policiais de Santa Paz
pagassem por sua ação. Tinha de subir o
Morro do Ouro, como se chamava o
complexo de favelas de Santa Paz, para
resolver aquela situação de uma vez por
todas. Seria nesta noite, seria agora.
Trocou-se para a ação.
O pensamento de Mercúria ao correr
pelas ruas da cidade estava estático em
Valéria. Era estranho tê-la como amiga e ao
mesmo tempo como inimiga. Estava claro
que a advogada não gostava de Mercúria,
apesar de ter afeição pela vendedora de
livros usados. Sua dedução foi que
necessitava conversar com Valéria vestida
de Mercúria, como Meire lhe sugerira
tempos atrás.
O morro é avistado. A rua íngreme,
mal iluminada e tortuosa. Ela nunca tinha
estado ali. O seu plano é simples: entrar,
localizar o chefe e pegá-lo. Empreende
velocidade e avança.
Em supervelocidade sua presença
não pode ser identificada por olhos comuns,
o que lhe dá vantagem. Identifica um grupo
de homens armados em uma quadra
poliesportiva. Mantém a velocidade e
derruba um por vez, deixando apenas um.
Então para.
— Onde está o seu chefe? — ela
pergunta.
— Eu vou te encher de bala! — O
bandido aponta a metralhadora para
Mercúria.
— Acho que não — ela mostra-lhe o
pente de balas.
— Mas como?
— Tirei enquanto atacava os seus
comparsas.
Ele sorri.
— Mas aqui você não está no seu
território.
Mercúria ouve o som de disparo.
Instintivamente se vira para o local de onde
provém o disparo. Do alto, de cima de um
barraco, há um homem armado com rifle. A
bala avança desacelerada e ela consegue
desviar-se.
— Mas que merda!
A heroína avança com velocidade e
empurra o homem contra a grade da
quadra.
— Fale-me!
Ele não se intimida. A rajada de
metralhadora anuncia os disparos que
atingem Mercúria nas costas, fazendo-a
soltar quem interrogava. Ela se ajoelha, os
ferimentos se fecham e os projéteis são
expelidos do seu corpo. Ela se vira e
identifica cinco homens. Desarma-os e para
depois atacá-los com socos e chutes
velozes.
Ela avança mais uma vez contra quem
almeja interrogar e o empurra com
velocidade.
— Onde estávamos?
— Você queria saber sobre o meu
chefe. Só que eu não tenho — ele se
levanta.
A quadra está cercada de bandidos
armados, Mercúria observa.
— Eu sou o chefe, Armandinho, muito
prazer! — ele faz uma reverência.
Então durante todo o tempo esteve
diante do chefe do tráfico do Morro do
Ouro? Aquele homem magro, alto, de
braços longos e preenchidos por tatuagens
era quem tinha organizado o plano de
matar policiais? Os olhos negros dele
sempre passaram confiança. A cabeça
raspada, o brinco reluzente e o sorriso
conferiam-lhe uma imagem comum. Era
jovem.
— Eu vou pegá-lo!
— Não vai. Eu te peguei primeiro. Leio
as matérias que fazem sobre você. Sei que
pode se regenerar com rapidez, mas que
tem um limite para o seu poder. Hoje
vamos testar esse limite. Fuzilem a vadia!
Muitos disparos acontecem pela grade
da quadra, não há para onde fugir nem
como desviar. Ao ser alvejada, Mercúria
sente muita dor, é terrível. Não há tempo
para sua regeneração e ela se dá conta do
erro que cometeu, agindo sem pensar. Por
falar em pensar, seu cérebro já não
funciona corretamente, ela cai em cima do
seu próprio sangue. Os tiros cessam.
— Mas já? — Armandinho se aproxima
— Vamos esquartejar o corpo para
pendurar os pedaços pela cidade.
Minha morte
Parte 2
A regeneração de Mercúria lhe
devolve resquício da capacidade de
raciocinar. O coração ainda bate. Os olhos
se abrem, ela sente o gosto de sangue.
Precisa fugir. Precisa ter forças para uma
última corrida.
A entrada da quadra está
desprotegida. Os bandidos chegam perto
para ver o esquartejamento. Um homem se
aproxima com o machado em punho. Ele o
levanta para o golpe na cabeça. Todos
observam. Quando o machado desce,
atinge o chão. Um vendaval passa pelos
bandidos e Mercúria desaparece.
Ela não sabe para onde está indo. Os
ferimentos no seu corpo são muitos, assim
como a dor. O joelho se desloca e ela cai
em um beco escuro ainda nos domínios do
morro, está fraca. Escuta o barulho de uma
motocicleta e sente a luz do farol lhe
iluminar, é o fim. A consciência lhe foge
mais uma vez.
Cinco horas da manhã o telefone
celular do repórter Marcelo Siqueira toca.
Sonolento, ele alcança o aparelho sob o
criado-mudo e atende. A notícia muda o seu
semblante imediatamente. Ele não acredita
no que o seu chefe lhe diz.
— Não é possível — ele argumenta.
— A polícia confirmou, Marcelo. Não é
possível reconhecer o rosto, mas polícia tem
certeza que é ela — Diz Janaína, sua colega
de trabalho — Eu estou no IML.
— Estou indo já para aí — São suas
palavras pouco antes de desligar o telefone.
O trajeto até o Instituto Médico Legal
de Santa Paz é feito com rapidez, tinha que
ver com os próprios olhos. Estaciona
próximo a entrada do prédio, as escadas
estão cheias de repórteres e cinegrafistas.
Viaturas estão com giroflex ligados. Meire
está sentada na sala de espera com um
cigarro nos lábios. Janaina entrevista o
delegado Mauro poucos metros dali.
— Ela foi imprudente — Meire balança
a cabeça gesticulando negativamente.
— Não é verdade. Não pode ser. Ela é
super. Nada pode matá-la.
— Acho que ser incinerado vivo é
demais até para ela.
— Eu tenho que ver o corpo.
— Vamos, eu te mostro. Jogaram o
corpo dela na entrada da delegacia. Foram
os traficantes do Mouro do Ouro.
Quando Marcelo entra na sala onde
repousa o corpo de Mercúria, depois de
passar por várias pessoas, ele não a
reconhece. Em cima da mesa de aço há um
corpo carbonizado, cujos brincos em forma
de raio reluzem em dourado.
— Os brincos são os que ela usava,
não é? — diz Meire.
— Sim, mas não se pode atestar com
certeza só por eles. É preciso fazer exames
no corpo.
O delegado Mauro, a advogada Valéria
e a repórter entram na sala.
— Se tivéssemos conhecimento de
algum parente dela, se ela fosse normal,
talvez o DNA — diz Mauro.
— Podemos fazer exames neste corpo
e provar que não é o de Mercúria. Eu tenho
certeza que não é ela.
— Se você estiver certo, vamos ver
Mercúria por aí. Se ela não aparecer é
porque você não está — sorri Mauro.
Valéria se mantém fria. Aproxima-se
do corpo e fita o rosto irreconhecível de
Mercúria. Ela deve ter tido uma morte
horrível. Queria que fosse presa, não
assassinada.
Janaína bate fotos.
— Você não está suspensa, doutora
Meire? — provoca o delegado.
— Não — Meire se aproxima de
Mauro.
— Não?
— Já é quase manhã o que nos leva
ao dia seguinte, o dia que volto ao trabalho
normalmente — Meire aponta o relógio de
pulso prateado ao delegado.
— Ah, claro.
— Logo mais nos vemos na delegacia,
doutor Mauro — ela se vira e acena —
Agora vamos, Marcelo. Você deve ter uma
matéria para escrever ainda hoje.
Minha morte
Parte final
Feijão? O cheiro invade as narinas de
Verônica e lhe devolve a consciência. Está
em uma cama simples de um quarto
pequeno, cujas paredes não são rebocadas.
O piso frio, o guarda-roupa tem as gavetas
caídas. Ela se senta, traja vestido, os
ferimentos desapareceram.
— O vestido é da minha mãe — Um
homem negro e forte entra — Eu sou
Thiago.
Verônica não diz nada.
Uma senhora de pele escura, mirrada,
de lenço na cabeça e de vestido florido
aparece ao lado do homem forte. Ela sorri e
diz:
— Não se preocupe, está segura aqui.
— Acho que ela está assustada, mãe.
— Converse com a menina, filho. Eu
vou ver o fogão — a senhora se afasta.
Thiago se aproxima e se senta na
beirada da cama. Ele é careca, alto e
musculoso. Tem os olhos castanhos e os
lábios sempre dispostos em um sorriso.
Veste-se com camiseta vermelha e
bermuda jeans. Possui brinco na orelha
esquerda e uma tatuagem com o dizer
“paz” no antebraço esquerdo.
— Sou enfermeiro e te achei caída
quando voltava do trabalho. Trouxe você
para minha casa e dei-lhe soro. Sei do seu
dom de regeneração.
— Obrigada — ela finalmente diz.
— Minha mãe está preparando o
almoço. Acho que você deve estar com
fome.
Ela assente.
— Os caras daqui querem pegar você.
Não foi uma boa ideia ter vindo assim,
sozinha, de repente. Eles são muitos. Tá
todo mundo fulo com você; por causa dos
seus poderes e sua interferência nos
crimes.
— Eu só quero ajudar as pessoas,
mas elas parecem que não querem ser
ajudadas.
— Ah não! Você é fantástica. É uma
inspiração pra gente aqui do morro que não
tá envolvido com o tráfico. Sabe, um
exemplo.
— Eu vim por causa dos policiais
mortos.
— Eu sei. Eles também. Por isso tudo
estava preparado. Você teve sorte...
Mercúria se cala. Sorte? Queriam
esquartejá-la!
— Não imaginava que seria tão
horrível. Que eram tão cruéis.
— Crueldade é comum por aqui. Tanto
que a gente passa a não se importar.
Bastou ligar pra minha mãe e não foi difícil
arrumar um corpo carbonizado para colocar
os seus brincos. Pobre mulher que morreu
queimada viva.
— Como é? — se surpreende
Verônica.
Thiago volta para cozinha próxima e
observa a mãe mexer a panela de sopa com
uma colher de madeira. Diz:
— Com a ajuda da minha velhinha e
alguns amigos armei para que os traficantes
pensem que você está morta. É a única
forma de mantê-la viva. Tínhamos um
corpo carbonizado e tínhamos pessoas
querendo a sua morte. Unimos as duas
coisas. Eles não vão perceber que aquela
não é você. Soube que já deixaram o corpo
na delegacia para intimidar a polícia e as
pessoas.
Verônica se levanta. Vai até a cadeira
da cozinha e senta-se.
— Então estou morta.
— Sim. Vai ser bom assim. Você
poderá andar livremente pela favela e pegar
o Armandinho de surpresa.
— Armandinho — ela se lembra do
encontro com o bandido —, ele é o chefe
daqui.
— Isso mesmo. Eu tenho um plano
para pegá-lo. Vamos almoçar e te explico.
O enfermeiro que lhe havia salvado a
vida lhe cativa de alguma forma. Ela
observa enquanto escuta o plano. Ele tem
facilidade para sorrir e um cérebro aguçado.
É sincero, fala bem e se entusiasma com
facilidade.
— Será que dará certo?
— Acho que podemos tentar — ele
está lavando os pratos
Thiago conta que é de origem
humilde. Sua família nunca havia deixado o
morro, apesar de ele ter um salário
razoável como enfermeiro. Disse que ali era
o seu lugar, lá estava sua gente e quem
mais precisava de ajuda. Era membro da
Associação de Bairro do Morro do Ouro e
angariava donativos para distribuir aos mais
carentes. Comprometia parte da sua renda
com projetos sociais e preferia manter a
discrição. A mãe temia pela sua vida, se o
trabalho começasse a interferir nos
negócios dos traficantes. Ele sabia conviver
com a realidade da favela e era visto como
um maluco altruísta que representava
pouco perigo.
O plano
Parte 1
Ao lado de Thiago, Verônica caminha
pela rua íngreme. A casa do enfermeiro era
pequena e localizada no fim da rua não
asfaltada. Os meninos que soltam pipa
observam-na e ela a eles. Na verdade, todo
o lugar, agora à mostra pela luz do sol.
Tantas pessoas em situação precária
enquanto poucos gozam de tanto. Ela não
conseguia entender. Antes do acidente com
o raio que a fez crescer, julgava ser pela
sua condição infantil. Quando fosse adulta
saberia os motivos de existirem pessoas
que não possuem o que comer enquanto há
outras que gastam fortunas com coisas
supérfluas. Agora adulta, continuava na
mesma: era simplesmente incompreensível.
— No que está pensando? — diz o
amigo.
— Nada — ela abaixa a cabeça.
— No seu planeta também existem
favelas?
Ela levanta o rosto, surpresa.
— Eu sou deste planeta! Gostaria que
todas as pessoas tivessem condições
mínimas de moradia, saúde e dignidade. Sei
que há como! Vejo tantos prédios, tanta
comida!
— A culpa não é dos prédios nem dos
alimentos. Aqui, a gente tem o Armandinho
e por todos os lugares deve ter alguém que
faça a vez dele.
Verônica para de caminhar.
— O que ele faz com as pessoas aqui
do Morro?
— Bem, ele gerencia a vida de todo
mundo aqui. Os comerciantes pagam
“impostos” para ele; as famílias quando
precisam de algo vão pedir para ele, essas
coisas. Ele tem muita grana...
— Vinda do tráfico — conclui a
heroína.
— É. Tem gente que não concorda
com o que ele faz, mas não podem desafiá-
lo. Que nem hoje, ele mandou dizer que
ninguém sai e ninguém entra no Morro por
causa do que aconteceu com você.
Ela volta a caminhar com os olhos
agora voltados para o chão. Era difícil de
acreditar que mesmo com os poderes que
tinha, pudesse se sentir tão impotente
diante de uma situação.
A loja de revistas usadas abriu
normalmente naquela manhã. Os periódicos
que eram vendidos diariamente estavam
repletos de matérias sobre a morte de
Mercúria. Tanto os do dia anterior quanto os
de hoje. Verônica procurou não lê-las, mas
a de Marcelo Siqueira chamou-lhe atenção.
Dizia ele em seu texto:
“Santa Paz perde sua mágica. Na
manhã de hoje o corpo da super-heroína
Mercúria foi jogado por traficantes na
sacada da delegacia. Segundo informações
obtidas no Morro do Ouro, Mercúria havia
estado na favela na noite anterior para
capturar o chefe do tráfico de Santa Paz.
Vitima de uma armadilha armada pelos
homens do tráfico ela foi alvejada
incessantemente até o limite dos seus
poderes regenerativos. Após o
“fuzilamento” Mercúria ainda teve forças
para sua última corrida que terminou em
um beco escuro, onde foi pega pelos
traficantes e incinerada viva. Este repórter
não costuma deixas nos seus textos suas
impressões pessoais, mas a ocasião é
especial e ele se vê obrigado registrar sua
decepção com os moradores de Santa Paz.
Eles não souberam dar valor a uma criatura
esplêndida que dedicava a vida para salvar
vidas alheias. Como é comum ao ser
humano, os cidadãos de Santa Paz
abominaram o ser por sua diferença e não
lhe viram com a dignidade que merecia.
Agora não há mais preocupação, o diferente
foi extirpado da nossa convivência.
Atribuem a autoria do assassinato de
Mercúria aos traficantes quando ela deveria
ser atribuída a cada um de nós.”
Ela dobra o jornal, perturbada. Não
sabia o que pensar de Marcelo, se era
verdadeiro em suas palavras ou se as usava
para promoção pessoal. De qualquer modo
era um golpe duro, pareceu-lhe sincero.
— Nossa, você tem a coleção da
Queda do Morcego quase completa! — era
Thiago que remexia em suas estantes.
Tinha trazido o seu salvador para a
vida que lhe sobrara, mesmo sem pensar
sobre o assunto. Colocar o novo plano em
prática era o mais importante.
— Ela virá logo. Compra jornais toda
manhã.
— Certo.
— Lembre-se: chamo-me Verônica,
sua prima. Sou só vendedora de livros
usados.
— Fica tranquila. A sua identidade
secreta está segura comigo.
A doutora Valéria entra na loja,
elegante, com os óculos escuros nos olhos.
Ignora Thiago e agarra o jornal do dia da
gôndola e vai direto ao balcão.
— Por que não abriu ontem? — ela
saca a carteira.
— Tive um problema familiar.
— Um problema lá em casa — Thiago
se aproxima — Eu sou primo dela.
— Primo?
— Sim — Verônica devolve o troco à
Valéria — ele mora no Morro do Ouro.
— Achei que fosse sozinha.
— A mãe dele é prima da minha.
Desde que perdi minha mãe, faço às vezes
dela em visitá-los de vez em quando.
— Compreendo — diz Valéria.
Verônica continua.
— Eu estava lá espalharam a notícia
de que tinham pegado Mercúria. Ninguém
podia sair do morro.
— Não devia visitar aquele lugar. É
perigoso! Eu não gostava de Mercúria, mas
foi terrível vê-la morta.
— Meus primos precisam de ajuda,
doutora Valéria. Na verdade, todas as
pessoas do morro. Ninguém aguenta mais o
domínio do Armandinho.
— O que eu posso fazer, menina?
— Estive pensando, você é advogada,
poderia pedir para as autoridades invadirem
o morro e libertar a população.
— Mais que isso — Thiago saca da
mochila uma pasta de elástico — Há um
processo contra o Armandinho e a prisão já
foi decretada. O engraçado é que todo
mundo finge que não sabe que ele está no
morro. A polícia nunca tentou cumprir a
ordem.
Valéria analisa os documentos. São
fotos, mapa, publicações e petições de
processo.
— Não há pessoal suficiente para
enfrentar a indústria do tráfico e cumprir a
Ordem Judicial. Além disso, tem os policiais
corruptos que recebem para proteger os
bandidos.
— Temos que fazer alguma coisa —
diz Verônica.
— Isso é peixe grande, garota. Não é
prudente mexer com esse pessoal.
— Mercúria morreu tentando ajudar!
Temos que usá-la como exemplo.
Valéria a observa por alguns
segundos. Retira os óculos de sol e suspira.
— Eu não prometo nada. Vou levantar
algumas informações e voltamos a nos
falar.
— Obrigada! — Verônica a abraça.
O Promotor Cícero analisa os
documentos fornecidos pela doutora Valéria
naquela tarde. O mandado de prisão tinha
sido expedido há quase um ano, por
homicídio. Ele nunca tinha sido encontrado.
O promotor leva a mão á testa, o cotovelo
está sobre os documentos. Suspira. Saca o
celular e disca um número.
O plano
Parte 2
Marcelo Siqueira está editando seu
texto para a matéria do dia seguinte. O
telefone toca. A recepcionista do jornal lhe
informa que há duas pessoas que gostariam
de vê-lo, tinham algo importante para dizer
á imprensa. Ele autoriza a subida dos
visitantes.
Eles se aproximam, a porta da nova
sala de Marcelo está aberta. É uma jovem
de vestes largas e um rapaz musculoso.
— Pois não?
O forte estende a mão.
— Sou Thiago, é um prazer conhecê-
lo. Esta é minha prima, Verônica.
— Marcelo Siqueira — ele
cumprimenta Thiago e Verônica.
Detém-se alguns segundos nos olhos
da vendedora de livros usados.
Thiago chama sua atenção.
— É sobre o Morro do Ouro.
— O que tem de lá?
— Sou morador há muitos anos. Sei
do que aconteceu com Mercúria e tenho
informações sobre o pessoal que fez o que
fez com ela.
— Continue.
No outro dia, pela manhã, o jornal
está nas mãos de Verônica. O sorriso nos
seus lábios. A matéria de capa era a de
Marcelo; a entrevista que havia realizado
com um morador do Morro do Ouro. Nela,
além dos detalhes sobre o tráfico de drogas,
havia a informação de que Armandinho era
procurado pela polícia, mas estava agindo
livremente no morro. A identidade do
entrevistado foi mantida em sigilo para
segurança de Thiago.
Para Cícero, o Promotor de Justiça, o
efeito do jornal foi totalmente contrário. Foi
o suficiente para estragar o seu dia. Mal
havia terminado de ler a matéria quando o
telefone tocou em seu gabinete. Eram
ordens que deveriam ser cumpridas o mais
rápido possível. Imediatamente ligou para
Meire:
— Doutora Meire, prepare os seus
homens. Reforços do Estado estão
chegando e quero a senhora no comando da
Operação Morro do Ouro.
— Achei que fosse pedir para o seu
afilhado! — Meire se referia ao delegado
Mauro.
— Não enche, Meire! Faça o que tem
de fazer. Se quiser levar o Mauro, é por sua
conta e risco.
— Acha que vou perder a chance de
ensinar alguma coisa para o novato?
A ligação foi interrompida.
O jornal é dobrado com cuidado.
Depois é jogado no lixo. Armandinho
afasta-se da mesa de vidro e junta as mãos
num gesto apreensivo. Ele já tinha sido
informado sobre o assunto, mas agora daí a
se tronar público era demais. Precisava de
um plano. Mulheres estavam espalhadas
pelo carpete de sua sala, inconscientes. Ele
suspeitava de quem havia dado com as
línguas nos dentes, o faria pagar.
Ele saca o celular e faz contato com
os seus homens. Pede para que chequem a
casa de quem julga tê-lo traído. É preciso
também obter informações do seu homem
infiltrado no jornal de Santa Paz.
Duas horas depois, uma das meninas
desperta com sorriso faceiro enquanto
Armandinho prepara mais uma carreira de
cocaína. O seu celular toca.
— Chefe? Ele foi visto com uma
garota estranha caminhando aqui na favela.
Ela não é daqui.
— Tragam quem estiver na casa dele.
O plano
Parte 3
Dona Cidinha já tinha passado por
muita coisa nessa vida, mas nada como
aquilo.
— Deus do céu, não foi meu filho! Ele
tá trabalhando! — sua voz sai embargada
pelo choro, pelo sangue.
— Dona Cidinha, a senhora é gente
boa. Lembra que eu comprava figurinhas lá
no sue bar? — Armandinho batia o
cassetete na palma da mão esquerda — Eu
não quero machucar a senhora. Só preciso
saber onde tá o enfermeiro. Já sei que ele
não tá no hospital e que foi visto com uma
mina estranha aí.
Cidinha se debate. As cordas estavam
apertadas em seus punhos, nas costas. O
quarto cheira mijo de rato, não há janelas.
Jornais estão de baixo de seus joelhos
dobrados.
— Eu mesmo quis fazer isso. Não ia
achar legal que meus homens relassem a
mão na senhora.
A mãe de Thiago abaixa a cabeça.
Gesticula negativamente.
— Eu não sei de nada.
— A senhora não está colaborando,
tia Cidinha! — ele deu com o cassetete na
bochecha da prisioneira.
Dentes e sangue atingem o chão.
Armandinho se afasta. O celular toca.
— Chefe, já levantei a informação de
que o tal repórter da matéria recebeu a
visita de um homem forte e uma mulher
ontem de manhã. Nosso informante do
jornal disse que a garota é a dona de um
Sebo no centro da cidade.
— Bem, visite essa garota e conte que
estou com a mãe do cara que abriu o bico
pro jornal. Que o sujeito tem até a meia
noite de hoje para vir até mim.
— Ok.
— Não se esqueça de deixar na
menina o nosso recado.
Armandinho sorriu ao guardar o
telefone no bolso. Fitou Cidinha que se
encontrava de joelhos e disse:
— O enfermeiro vai receber o meu
recado.
Verônica está baixando as portas da
loja, já é tarde. Thiago tinha permanecido
na companhia da amiga desde que
começara a colocar o plano de prender
Armandinho em prática, afinal era perigoso
retornar para casa devido aos
acontecimentos recentes. Não demoraria
muito agora, era o que pensava enquanto
observava a amiga trancar a porta.
— Essas fechaduras estão velhas. Dá
um trabalho fechá-las! — comenta a
vendedora de revistas velha enquanto se
ergue com o molho de chaves estre os
dedos.
Quando ela se vira para retornar ao
balcão as portas de lata são arrancadas pela
traseira de um Comodoro preto. O barulho
é alto e o carro veloz avança para dentro da
loja carregando consigo a porta arrancada e
o corpo de Verônica.
Poeira, som de lata caindo e o ruído
do radiador do carro quente são os sons
presentes. Thiago está assustado, as portas
do carro se abrem. São cinco homens
armados e mascarados.
—Olha só quem a gente achou! — diz
o que saiu pela porta do motorista.
Thiago está apavorado. Está sob a
mira de uma metralhadora, as mãos já
estão para o alto.
— Vamos, entra no carro! O chefe
quer você!
Ele deixa o balcão e caminha em
direção dos bandidos. Todos estão mirando
o enfermeiro, quando algo os atinge com
velocidade surpreendente. Os cinco homens
de Armandinho estão no chão retorcendo de
dor. O borrão vermelho que havia
derrubado todos os inimigos ganha a forma
de Verônica.
— O que querem aqui? — ela se
ajoelha sobre o peito de um dos homens e
agarra o colarinho de sua camisa.
— O chefe! Ele quis que viéssemos
para dar um recado para você! Avisar que
estamos com a mãe do enfermeiro. É para
ele ir à favela até a meia-noite de hoje ou a
mãe dele vai morrer! Quando chegamos
percebemos que ele estava aqui! Só
queríamos levá-lo!
Ela afrouxa os dedos da gola do
bandido. Havia conhecido a mãe de Thiago
que agora estava à mercê de Armandinho.
O que ele estaria fazendo com ela? A
crueldade era uma das primeiras
características que Verônica havia
reconhecido no bandido quando o encarou.
— Ligue para a polícia! — ela se virou
para o atônito Thiago. — Eu vou salvar a
sua mãe.
O plano
Parte 4
Thiago pareceu ter despertado de um
transe. O braço direito estava estendido, a
mão aberta.
— Espera! — grita.
Verônica se assusta. Volta-se para o
amigo. Ele está ofegante.
— Você precisa de um plano! Não
pode repetir o erro que cometeu da outra
vez que esteve lá.
Ela se aproxima em supervelocidade.
— Não há tempo! Sua mãe corre
perigo!
Thiago suspira. Abaixa a cabeça
tentando recuperar a serenidade.
— Eu sei — ele diz baixo —, mas não
poderemos ajudá-la se não fizermos as
coisas direito.
Verônica olha para o amigo com
desconfiança. Não entende os dizeres dele.
— Eu não posso ficar esperando
enquanto alguém corre perigo.
Ele segura sua mão e a puxa para si.
Os corpos se esbarram e os lábios se
encontram.
— Confie em mim, por favor — Thiago
diz para a heroína que ainda está surpresa
com o que acabara de acontecer.
Meire está preparada para a grande
operação. Já havia vestido o colete por cima
da sua camisa branca. Traja sua habitual
calça social cinza e sapatos. Checa os
pentes de munição. Mauro está pronto ao
seu lado, apreensivo. Traja capacete, colete
e farda negra completa. Luvas cobrem suas
mãos e o rifle vem preso por uma tira de
couro em seu ombro direito. Os homens do
Estado já estavam a postos. Todos estão na
entrada do Distrito Policial.
— Hoje você vai aprender algumas
coisas — fala Meire.
— Eu não preciso aprender nada. Só
aceitei participar deste circo porque o
Cícero disse que era para eu acompanhar
você — é a resposta de Mauro.
Os carros estão estacionados na
frente da delegacia. A primeira equipe há
pouco foi enviada ao Morro do Ouro.
— Vamos! — Meire se vira para entrar
em seu veículo.
O rádio da viatura informa:
— Solicitando viatura para o centro da
cidade. Possível roubo em andamento na
Rua dos Sabiás, na loja de revistas usadas.
— Vinte e cinco, para o centro! —
grita a delegada ainda em pé ao lado da
porta do motorista.
A viatura de número vinte e cinco sai
cantando pneus.
Marcelo Siqueira pilota a vam do
jornal. Ao seu lado está Fausto o
cinegrafista. Carlos havia sito demitido
semana passada por conta da redução de
funcionários que o Grupo Cidade de
Entretenimento tinha realizado. O canal de
TV passava por crise causada pelo
afastamento de patrocinadores. Isso se deu
por causa da morte da atração principal da
televisão: a garota com poderes
extraordinários. Ele gesticula
negativamente, sorrindo. Dirige para o
Morro do Ouro para cobrir a operação
policial que tem o objetivo de pacificar a
favela e prender o chefe do tráfico.
— Tudo bem, Marcelo? — fala Fausto.
— Só estava pensando no Carlos.
Marcelo ainda tinha dificuldade em
aceitar que não veria mais Mercúria. Em
sua mente, os encontros que tivera com a
heroína eram revividos com frequência.
Agora que ela estava morta, custava a
acreditar que um dia havia existido. Teria
espaço em nosso mundo, um ser com
habilidade extraordinária? Não é este o
sonho do ser humano? Sempre querer ser
mais; ser o que não é e amaldiçoar aquele
que é o que ele gostaria de ser. Tudo
estava certo agora, absolutamente tudo.
O uniforme está sobre a cama. O raio
dourado no peito da blusa, os raios
dourados na lateral da calça branca. As
asas nas botas estão visíveis sob o assoalho
do cômodo. Quando vestida com ele, ela
deixava de ser quem era e tornava-se um
ser alheio às características das pessoas. Na
verdade, sempre fora diferente e
continuava sendo mesmo agora, sem roupa
alguma. Quem era estava em si mesma,
não na roupa. Ser como Thiago que não
precisava de roupa especial para ajudar as
pessoas seria o ideal, mas não aceitariam.
Ao se lembrar do novo amigo Verônica teve
vontade de sorrir. Ele já havia saído para
resgatar a mãe como o verdadeiro herói
que era. Havia deixado sua princesa com
um beijo. Que coisa mais infantil!
Condizente com a idade que tinha quando
tornou-se Mercúria, pensou.
— Concentre-se no plano, Verônica.
No plano... — ela avança para se trocar.
O plano
Parte 5
Thiago desliga a moto na entrada
abandonada da favela. Aquela passagem há
muito havia sido abandonada pelos
moradores, embora fosse conhecida das
crianças que cresceram no local. O
enfermeiro costumava brincar ali na
infância. Na entrada principal, policiais
impedem a passagem de civis.
Sabia para onde Armandinho levaria
sua mãe. Ele não costumava variar o lugar
de tortura. O ponto em seu ouvido direito
era a conexão que tinha com quem lhe
salvaria e pegaria o bandido. O plano tinha
mudado, afinal, inicialmente, era para a
polícia invadir o lugar distraindo os homens
de Armandinho para que Mercúria com as
informações privilegiadas que ele havia
fornecido invadisse o lugar e pegasse o
bandido de surpresa. Agora era outro
plano...
Ele segue pela ruela desativada, cheia
de mato. A caminhada é longa até o velho
galpão de arroz. Contam no Morro do Ouro
que antigamente aquele lugar era usado
para estocar o arroz que o fazendeiro dono
daquelas terras produzia. Ele se reviraria no
túmulo se soubesse para quê Armandinho
usa o lugar.
O galpão está aberto. Ele é afastado
dos barracos, ótimo para uma fuga pela
mata. Thiago entra pela porta principal. Os
passos são firmes.
Quando transpassa pelo portal arcado
do galpão, porém, os passos perdem a
firmeza. Os olhos se abrem excessivamente
e o pavor invade o seu semblante. A mãe
está de joelhos, o vestido branco sujo e
manchado de sangue. Armandinho está de
braços cruzados atrás dela, onipotente. Os
homens de confiança, ao redor. Thiago
corre, mas as armas apontadas forçam-no a
parar e a render-se com o gesto de levantar
as mãos.
— Chegou o nosso convidado! — sorri
Armandinho.
— Seu desgraçado! O que fez com
minha mãe?
— A tia não quis colaborar e por isso
apanhou um pouco.
— Eu já estou aqui. Solte-a!
— Claro. Soltem a tia, moçada.
Os capangas desamarram os pés e
pulsos da Dona Cidinha. Ela não se move,
está fraca, ferida. Thiago ameaça se
aproximar, mas os homens gesticulam
negativamente com a ponta das armas.
— Porra, Armandinho! Ajude-a ou
deixe-me ajudá-la.
— Nada disso, enfermeiro. A coisa tá
pegando lá fora é uma questão de tempo
até que cheguem aqui. Eu preciso me safar,
saca? Como você foi quem me ferrou, vai
ser também quem me salvará.
— Explique-se!
O bandido se aproxima ainda com o
maldito sorriso nos lábios.
— Pegue isso! — ele joga um colete
laranja para Thiago. — Coloque!
As armas foram engatilhadas. Thiago
obedeceu e Armandinho continua:
— Isso tem c4 suficiente para fazer
um buraco no mundo.
— Tem jeito mais interessante de me
matar, maldito!
— E quem disse que vou te matar? Na
verdade você vai morrer se quiser. Eu
almocei um sensor de proximidade que
descarrega um pulso elétrico que acionará a
bomba que você está carregando. Ah, e só
lembrando que os engates do colete têm
sensores. Em outras palavras, você não
pode tirá-lo sem que tudo vá pelos ares e
nem se afastar de mim, não é o máximo? —
Armandinho passou o braço por cima do
ombro de Thiago.
O plano
Parte 6
O bandido respira com dificuldade.
O saco preto é retirado. De joelhos, com as
mãos para trás, algemadas, ele não sabe
até quando pode aguentar. Ele observa o
salto alto, perto.
— Vamos, onde ele está? — a dona do
salto diz, ele não a conhece. — Quer voltar
para o saco?
— Eu não sei, senhora! Juro que não.
— Coloquem-no de novo no saco —
ordena Meire.
A delegada há algumas horas se
encontrava no Morro do Ouro junto de sua
equipe. Neste tempo, prendeu alguns
comparsas do líder do tráfico e executou
outros. Alguns policiais também tinham
perdido a vida e ela já estava no seu limite.
A favela estava quase totalmente
pacificada, mas nada de Armandinho.
O saco é novamente colocado na
cabeça do homem e segurado com firmeza
por policiais fortes. Ele se debate, parece
uma eternidade. Mauro que a tudo observa,
não consegue esconder sua indignação.
— Solte-o! Vai matá-lo! — Mauro se
aproxima.
Meire dá a ordem para que retirem o
saco. O homem tomba. Ela se ajoelha e dá
alguns tapas no rosto dele. A consciência
volta.
— Então? Onde ele está?
— No... galpão... no galpão antigo. É
tudo que sei.
— Levem-no! — ela ordena aos
homens. — Venha, Mauro, vamos pegar o
nosso peixe!
Marcelo Siqueira não teve permissão
para subir o morro. Cobria a invasão da
entrada da favela e dava boletins dos
acontecimentos de tempo em tempo. As
filmagens, no entanto, eram ininterruptas e
narradas pelo apresentador sensacionalista
do horário.
— O traficante conhecido como
Quadradinho, acaba se passar por nós,
escoltado por policiais. É mais um traficante
do Morro do Ouro que deixa as ruas. —
Marcelo anuncia ao vivo.
— E o Armandinho, Marcelo? —
pergunta o João Luiz, o apresentador do
programa.
O áudio demora alguns segundos para
chegar ao fone de Marcelo e ele assente ao
entender a pergunta. Responde:
— Ainda não foi encontrado, João.
— A polícia está de brincadeira, não
é?
A câmera desvia do repórter e a
conversa continua entre José Luiz e o seu
público lá no estúdio da emissora. Marcelo
suspira e abaixa o microfone.
Meire, Mauro e alguns policiais estão
diante do velho galpão de arroz. Tudo
quieto. A delegada e seus homens se
posicionam estrategicamente. Invadem o
local pela entrada lateral. Ao invés de
surpreenderem os bandidos são eles os
surpresos.
— Estávamos esperando por vocês! —
é Armandinho que diz.
— Renda-se! — Meire levanta o
revolver.
— Não é interessante? Eu estou com
um refém peculiar. O cara que me caguetou
na TV! O legal é que ele tem um bonito
colete de C4.
Meire repara em Thiago; no seu colete
laranja. Há cinco comparsas juntos de
Armandinho e o refém. No chão, uma
senhora desacordada. Ela abaixa a arma.
— Tem mais, delegada! Eu não posso
ficar afastado do cara, porque engoli um
sensor de proximidade. Se você me separar
dele, kabum!
Meire sorri.
— E eu que pensei que bandido era
esperto. Imaginei que encontraria um
bando de comparsas armados e que
trocaríamos tiros. Você já teria fugido pela
mata! Ficou só pra me desafiar com este
seu joguinho de bomba?
— Ah, mas fugir é coisa de arregão.
Eu vou sair daqui de cabeça erguida e com
a sua permissão, autoridade!
Ela acendeu um cigarro. Os homens
de Armadinho estão sob a mira dos seus
policiais.
— Eu posso não estar nem aí para o
refém, o que me diz? Eu posso meter uma
bala no meio da sua cara!
— Você enlouqueceu? — Mauro que
até então observava tudo em silêncio se
zanga.
Armandinho gargalha.
— Eu gostei de você, chefia! — ele
junta o corpo de Thiago mais próximo ao
seu, fazendo-o de escudo. — Manda ver!
Thiago não está preocupado com sua
segurança. O seu problema é explodir e
matar as outras pessoas que estão
próximas. Sua mãe! Sabia que Mercúria já
vinha, a sua escuta denunciou tudo o que
havia acontecido até então. Ela tentaria
algo, não era este o plano. Não havia mais
plano. Não aquele...
O plano
Parte final
A franja da testa suada de Meire
balança suavemente. Antes dos olhos, uma
brisa perfumada passa pela delegada e
denuncia alguém que deveria estar morto.
Um borrão que distorce o espaço avança
contra os homens de Armandinho. A coisa
ataca e em menos de um minuto estão
todos inconscientes, menos Armandinho e o
seu refém. Os olhos ainda não identificam a
mágica criatura, até que ela para e ganha,
finalmente os contornos humanos de um
fantasma. Ela ergue as mãos em sinal de
rendição.
— Leve-me como sua refém!
O bandido ainda tem os olhos
apavorados. A criatura é imortal? Ele
aponta para Mercúria, com fúria:
— Sua vaca! Cê tá morta! — ele atira.
O disparo acerta o abdômen de
Mercúria, fazendo-a recuar um passo. O seu
corpo mágico expele a bala e se regenera
imediatamente.
Meire ainda não acredita no que vê.
Mercúria tinha mesmo o poder de voltar dos
mortos? Mauro aproveitou a distração
causada pela heroína para socorrer a
mulher caída.
— Eu te levo daqui! — ela continua —
Contanto que desarme a bomba que está
presa ao Thiago.
— Acha que sou otário?
— Acho que você não tem muitas
opções.
Armandinho dá uma gargalhada.
Depois diz:
— Ai é que tá, eu sou um cara muito
bom em improvisar. Eu vou matar o cara e
depois me render. Cê vai ficar puta comigo!
Cê não mata né? Essas paradas de
princípios...
Armandinho engatilha a arma que
está encostada na cabeça de Thiago.
Mercúria avança em velocidade e arrasta os
dois para longe dali; para a mata.
Meire ainda não acredita no que
acabou de acontecer. Mauro é quem a tira
dos devaneios ao dizer:
— Vamos, Meire! Eles não devem
estar longe! Temos que ajudá-la.
Armandinho e Thiago tentam se
levantar, desnorteados. A heroína avança
na direção do bandido e lhe desfere alguns
chutes, impedindo-o de se levantar.
Armandinho tosse e ri.
— Ah, sua galinha! Isso dói! Mas é
divertido! Muito divertido! Me bate mais!
— Você é doente! — ela lhe desfere
um soco. — Está acabado.
— Não. — ele tosse. Tenho uma
surpresa para o final.
O bandido saca um pingente que
estava preso ao seu pescoço.
— Está vendo isso? Se isso se afastar
do meu amigo enfermeiro, tudo explode!
— Mentira! Ouvi você dizendo que
engoliu o sensor de proximidade! Que só
explodiria se você e Thiago ficassem
distantes!
— E você acreditou? — ele arrebenta
a corrente e o lança.
Mercúria corre instintivamente na
direção do pingente e escuta Thiago pelo
ponto que está na sua orelha.
— Não dá pra acreditar nele!
Precisamos de um plano nosso! Eu já bolei
um.
A mente de Mercúria não é tão rápida
quanto o seu corpo. Quando ela volta a si,
já com o pingente na mão, tem tempo de
ver Armandinho se emaranhando pela
mata. Quando se desloca com a maior
velocidade que pode alcançar para impedir
a iminente explosão, já deduzindo que ela
ocorreria pelo afastamento do bandido do
seu refém e não pelo pingente, surpreende-
se ao ver Thiago agarrar Armandinho e
rolar com ele pelo chão.
— Afaste-se! — ele diz ao puxar os
engates do colete que está em seu corpo.
— Não! — Mercúria vai ao encontro
aos dois, mas não há tempo.
O estrondo horrendo, o calor e o fogo
formam a parede intransponível. A explosão
lhe arremessa para longe e desfigura parte
do seu corpo que já começa a se
reconstituir. O mesmo não se pode dizer da
sua alma. Ali, deitada, ela chora a perda da
pessoa que tinha lhe salvado a vida e lhe
roubado o primeiro beijo.
Meire e Mauro chegam logo. A fumaça
negra ainda serpenteia o céu. Ali, próximo
está Mercúria, sentada com as mãos no
rosto.
— O que aconteceu? — a delegada se
aproxima e diz hesitante.
— Eu não pude salvá-lo. — ela desaba
em novo pranto e Meire a abraça.
A entrevista
Parte 1
Num camarim da emissora de TV de
Santa Paz, uma mulher triste se encontra
sentada de frente ao espelho. Ainda doía
em Verônica lembrar-se do passado
recente. Da morte de Thiago. Fazia um mês
que tudo tinha acontecido. Prometera a
Marcelo Siqueira que daria uma entrevista
sobre o fato. Os brincos, raios dourados,
balançavam enquanto a maquiadora
caprichava no penteado. O decote, em
forma de raio, lhe parecia ousado pelo
espelho. Quem teve a ideia de vesti-la
assim?
O Morro do Ouro estava pacificado. A
equipe de Meire havia prendido os
traficantes menores, ao passo que Thiago
tinha dado cabo de Armandinho. Mercúria
subia toda noite para conferir como
estavam as coisas; dava suporte à mãe do
amigo morto e também à Associação de
Bairro dirigida por ele. Com a sua imagem
atrelada à associação, os investidores foram
atraídos e as crianças da favela passaram a
receber apoio em vários sentidos. Tudo ia
bem por lá e ela se tornou mais pública do
quer gostaria.
— Entramos em cinco minutos — um
funcionário da TV informou pela porta
entreaberta.
A maquiadora termina o trabalho.
Sorri para o reflexo da heroína. Mercúria se
levanta. Traja um elegante vestido negro,
comprido, com um decote em forma de raio
e vincado na coxa esquerda. O cabelo
arrumado em um elegante coque deixa
visível o seu pescoço alvo. A maquiagem
forte realça os seus grandes olhos verdes. O
batom claro, as maçãs do rosto sutilmente
rosadas.
— Vamos lá — ela diz para si mesma
refletida.
O salão é amplo, a cadeira
confortável, apesar do incômodo vestido.
Estaria mostrando o que não devia? Ajeita-
se, puxa aqui, arruma ali. Ao seu lado, com
a metade do corpo escondida pela mesa
prateada e luminosa está Marcelo Siqueira.
As palmas cessam. As lentes das câmeras
focalizam-na. Ela desvia o olhar, afasta a
franja clara dos olhos.
— Muito bem — começa o
entrevistador —, recebemos hoje no
programa Gente da Gente, Mercúria, a
heroína de Santa Paz. Boa noite, Mercúria.
Tudo bem com você?
— Boa noite, Marcelo. Tudo bem
comigo e com você?
— Estou ótimo. Puxa, é uma honra te
entrevistar. Há muito sonho com este
momento. Vamos começar com a
curiosidade do público. Quem é Mercúria de
verdade?
A heroína suspira. Se ajeira mais uma
vez na cadeira.
— Bom, eu não sei quem eu sou.
Acho que, como todo mundo, também
busco descobrir quem sou. Tento ajudar as
pessoas com a habilidade que tenho.
— Certo, mas quem te deu esta
habilidade? Nasceu com ela?
— Não nasci com ela. Como a ganhei,
é uma longa e inacreditável história que
prefiro não contar.
A plateia murmura desapontamento.
— O que posso fazer, pessoal?
Segredos de super-herói — Marcelo observa
o seu público.
Ele retoma a entrevista com um novo
questionamento:
— Mais pessoas podem ter habilidades
incríveis? Há um tempo apareceu outra
mulher com superpoderes.
— Ardente era o nome dela. Estou
investigando se existem mais pessoas como
nós.
— Temos informações de que ela foi
libertada da cadeia por você com a
anuência da delegada Meire. O que tem a
dizer sobre isso?
— Eu agi sozinha. Agi errado e
lamento. Havia outras maneiras de resolver
aquilo, mas optei por invadir a delegacia e
libertar quem eu achava que não deveria
ficar preso. Aproveito a oportunidade para
pedir desculpa à Polícia de Santa Paz e à
população.
— Onde está Ardente agora?
— Ardente não existe mais.
— Poderia nos explicar melhor?
— Não sei se consigo, porque também
não entendo. O que sei é que no lugar dela
ficou uma menina que precisa de ajuda.
Há o silêncio constrangedor. Marcelo
retoma a entrevista,
— Tudo bem — sorri. — E o episódio
do Morro do Ouro, o que tem a dizer sobre
ele?
— Foi assustador, é o que eu posso
dizer. Conferir a realidade degradante de
tantas pessoas; saber que os governantes
não se importam com elas; com aquelas
crianças. Pessoas fadadas à marginalidade;
sem opção, sem futuro. É triste ter certeza
de que há uma ordem nas coisas, embora
injusta. A favela é uma prisão social, um
limite para aqueles que lá residem. Sair de
lá exige esforço sobre-humano. Tudo
colabora para que as coisas continuem
como estão. Fui atacada, quase perdi a
vida; perdi uma pessoa querida, morri um
pouco com tudo aquilo.
Marcelo pigarreia. Retoma a sua
pauta de perguntas.
— E hoje, como está lá?
— O polícia de Santa Paz fez um
ótimo trabalho no local. O crime quase que
deixou de acontecer. A Associação de Bairro
está oferecendo ajuda às pessoas, depois
que várias empresas se compadeceram do
que acontece ali.
— Eles querem é ver a marca deles
atrelada à sua imagem! Sabemos que você
apoia pessoalmente os projetos da
Associação de Bairro do Morro do Ouro.
— Isso não importa desde que
ajudem.
— Para finalizar: Mercúria está triste?
Pensou em desistir? Valeu a pena ter
reaparecido?
— Eu perdi um amigo querido e isso
me deixou triste. Confesso que pensei sim
em desistir porque a injustiça é tão grande
e eu sou tão pequena. Mas, depois do que
aconteceu pude perceber que não importa o
nosso tamanho, desde que estejamos
fazendo o certo. Porque nossas atitudes
podem ser exemplo para as demais
pessoas. O meu amigo falecido me ensinou
com suas atitudes. Ele fez mudança em
mim; quero que o mesmo aconteça com
aqueles que me observam combater o
crime. Valeu a pena tudo o que aconteceu.
Eu sou Mercúria e não há como fugir disso.
A entrevista
Parte 2
A Doutora Valéria desliga a TV. A sala
está escura. Movimenta-se no sofá e o
barulho do corpo em atrito com o couro lhe
chega aos ouvidos. Acabara de assistir à
entrevista de Mercúria. Não sabe precisar se
é bom ou ruim ter a heroína de volta; tinha
se acostumado com a ideia de sua morte.
Por outro lado, as palavras dela poderiam
mesmo incentivar pessoas a trilhar por
caminhos diferentes. Ela mesma começava
a pensar a respeito.
Valéria sentia muito a perda da filha.
Sempre ocupada com os processos e
audiências, não aproveitou o pouco tempo
que teve com a pequena Verônica. Se
soubesse que seriam poucos; que o sorriso
da menina seria raro; que uma fatalidade
lhe tiraria a vida. Deus, como doía o
remorso. Passou a culpar tudo e todos pelo
acontecido. Moveu processo contra a
Prefeitura de Santa Paz, alegando que o
Parque onde o raio atingiu sua filha não
tinha para-raios; culpou a polícia por não
ter zelado pela segurança da menina;
culpou Mercúria por não ter aparecido na
cidade anos antes. Por fim, atribuiu maior
culpa ao pai da menina que nunca quisera
saber dela, abandonando-a assim que
soube da sua existência. Ele era um músico
de passagem e seguiu viagem. Se ele
estivesse com ela, teria ido levar a filha ao
dentista ao invés de deixá-la ir de bicicleta.
Quando visitou a loja de revistas
usadas da mulher que tinha o nome de sua
filha e induzida a ajudá-la a resolver o
problema do Morro do Ouro, sentiu que
estava fazendo algo de bom. O tal Thiago, o
enfermeiro da favela, parecia ser uma boa
pessoa. Lamentou a notícia que leu sobre a
sua morte. Pobre Verônica. Certamente
sentia a perda do primo.
Sentou-se no sofá com a mão nos
lábios. Espere! Mercúria tinha dito na
entrevista que perdeu um amigo querido no
episódio da favela. A vendedora de livros
velhos alegava ser prima de alguém que
perdeu a vida no mesmo episódio. Ambas
se referiam à mesma pessoa! A estatura
batia; a cor do cabelo, a voz! Estava ficando
louca ou acabara de descobrir a identidade
secreta da super-heroína de Santa Paz?
Não, não podia ser. Primo e amigo
são termos diferentes. Verônica era
desengonçada; usava roupas largas e
precisava de óculos. Mercúria era esguia,
forte e enxergava perfeitamente. Não
gostava desta última, mas tinha carinho
pela primeira. Não podiam ser a mesma
pessoa. Alguém com poderes sobre-
humanos não se fantasiaria de gente
comum! Aquilo só acontecia em histórias
em quadrinhos. Na realidade, alguém assim
ostentaria sua diferença! Mercúria fazia
isso, usando aquele uniforme alegórico e
insinuante. Era loucura, tinha se
convencido...
Uma batida na porta tira a advogada
dos pensamentos. A esta hora? Quem
seria? Levanta-se, puxa a camisola. Vai até
a porta e observa pelo olho mágico. Não
podia ser! Abre um pouco o portal de
madeira.
— Vá embora. Não temos nada para
conversar.
Do lado de fora está Mercúria, ainda
com o vestido da entrevista, mas com os
pés descalços. O cabelo, bagunçado.
— É uma tortura correr com isso! —
ela diz. — Eu não podia adiar nossa
conversa nem mais um minuto.
— Está perdendo o seu tempo! —
Valéria tenta fechar a porta, mas Mercúria a
impede.
A velocista termina de abrir a porta e
olha nos olhos da advogada. Diz:
— Queria que soubesse que eu
lamento todos os dias por não ter chegado
a tempo de salvar a sua menina. A morte
dela é o motivo de eu ter me tornado quem
sou. Acredite, eu sei muito mais da
pequena Verônica do que pode imaginar...
Há o silêncio. A advogada desiste de
fechar a porta. Responde:
— Ela era uma criança! Um raio, um
desgraçado de um raio! Essa merda que
você ostenta como símbolo!
— Faço isso para não me esquecer
daquele dia.
— Esquecer? Quem você pensa que é?
Ninguém te viu naquele dia! Ninguém
sequer imaginava que existia uma
aberração entre nós! Você se escondia
muito bem! — Lágrimas se formam nos
olhos de Valéria.
— Eu vou te dizer quem eu penso que
sou! — Mercúria aponta para o peito de
Valéria — Alguém que tenta fazer alguma
coisa ao invés de ficar jogando a culpa nos
outros! Alguém que sofre pra caramba
quando se depara com a morte, mas que
segue em frente, porque é isso que se deve
fazer! Quer saber? Eu estava lá, aquele dia!
E Deus, como quis impedir aquilo! Mas não
pude, droga! — é a vez dos olhos de
Mercúria se encherem de lágrimas.
Valéria se vira. Não quer que Mercúria
a veja chorar.
— Por que é tão difícil? Tão difícil
seguir em frente. Não tem um dia que não
me lembro da minha filha; de como ela
estaria hoje. Se ela me vê, seja lá onde ela
está. Como me arrependo de ter passado
pouco tempo com ela.
— Eu não sou sua inimiga, Doutora
Valéria. Nem a culpada pela perda da sua
filha. Sei que a senhora não é uma má
pessoa; ajudou no caso do Morro do Ouro.
A advogada afasta as lágrimas dos
olhos. Vira-se para Mercúria.
— Sim. Foi um pedido de uma amiga.
Mercúria desvia os olhos. Fala:
— Tenho certeza que esta amiga tem
muito orgulho da senhora.
Valéria se afasta; não quer ser amiga
de Mercúria. Ataca com palavras e com o
dedo em riste:
— Você tinha o dever de salvar minha
pequena! Tem os poderes! Eu jamais vou
perdoá-la!
Mercúria revida com os braços
ruzados.
— Nossa conversa terminou, Doutora
Valéria. Obrigada pela ajuda — um
vendaval antecede o desaparecimento de
Mercúria.
Valéria ajoelha-se e chora
copiosamente.
Mercúria abre a porta do seu pequeno
quarto no segundo andar do casarão do seu
Sebo. Ela está chorando. Começa a se
despir, ali pode admitir: sente muita falta
da mãe que continua lhe odiando. Como
queria estar nos braços dela e aplacar a dor
da perda de Thiago. Ela o amava. Doía
demais...
Estava sozinha.
O presente do passado
Parte 1
Verônica sai da instituição bancária. O
pensamento ainda está na conversa que
tivera com Valéria na noite anterior. Do
outo lado da rua, nota alguém familiar. Tem
vontade de sorrir ao se lembrar dos
momentos que passou ao lado daquele
menino; daquele amigo que tinha crescido
um pouco e parecia triste. Tem vontade de
sair correndo e dizer a ele que estava viva.
Imagina que importa para ele saber. Não
havia se encontrado com ele desde o
acidente com o raio.
Victor está sozinho, cabisbaixo. Ela o
observa até o ponto em que ele para a fim
de conversar com um homem estranho. As
lembranças se fazem.
Naquela fatídica manhã, na Rua
Camélia, os pássaros cantavam
despreocupados e o sol ainda tímido dava
sinais de vida. As casas estavam com as
janelas fechadas já que os mais
trabalhadores tinham saído e os
vagabundos ainda dormiam. Entre este
ultimo grupo de pessoas, havia uma que
não deveria estar em casa ou pelo menos
deveria já estar pronta para ir à escola.
Verônica Albuquerque, pré-adolescente de
12 anos de idade e de família tradicional
daquela pequena cidade.
Os passos apressados de Inezita, mais
amiga do que empregada da família, se
fizeram escadaria acima. Visavam a direção
do quarto da menina:
— Vê — que era o apelido carinhoso
que Inezita usava para chamar a pequena
patroa — está atrasadíssima! Ai, meu Deus!
— Ela batia levemente na porta rosa do
quarto da menina.
Verônica abriu um dos olhos
esverdeados que tinha. Virou-se e se
espreguiçou. Colocou-se sentada e afastou
os cabelos emaranhados do rosto pouco
antes de fitar o relógio:
— Ai, merda! — disse assustada. —
Tenho prova hoje! Droga droga! — Se
levantou depressa.
Abriu a porta ainda colocando o
uniforme escolar.
— Zita! Eu não vou tomar café! Não
dá tempo — ela desceu as escadas ainda se
vestindo. — Ai, droga!
— Srta. Verônica — A voz mansa da
professora Patrícia de matemática se fez
quando Verônica abria a porta da sua sala.
— Chegou tão cedo... — ironizou.
— Desculpe, senhora! — a menina
abaixou a cabeça.
— Sente-se que vou dar a sua prova.
Os outros alunos já estavam fazendo
a avaliação quando Verônica recebeu a
dela. Ao fitar os exercícios, a menina coçou
a cabeça e fez uma careta:
— Que difícil! Ei, Vic! — ela chamou o
amigo em voz baixa! – Me ajude! Não sei
nada!
Victor Arantes era o melhor amigo de
Verônica. Conhecia a menina desde o
primário e ainda eram vizinhos desde
sempre. O garoto conhecia todos os gostos
da menina; todas as suas qualidades e
defeitos. Sabia, então, que Verônica era
lerdinha.
— Vê, eu não posso te passar os
exercícios! Dona Patrícia vai nos pegar!
— Rápido! Troque de prova comigo!
O amigo ainda que com receio fez o
que a menina lhe pediu. Mas como previra,
a professora Patrícia pegou ambos
realizando a manobra:
— Que bonito, senhores! – ela bateu
palmas. — Eu terei que dar zero para
ambos! — Agarrou as duas provas trocadas.
— Agora quero que deixem a sala!
— Droga! — Vic reclamou. — Eu
nunca tirei um zero na vida.
— Não esquenta! Eu tirei um monte
deles!
Verônica e Victor conversavam
enquanto deixavam a escola já findo o
período das aulas.
— Não fique triste, Vic — ela abraçou
o melhor amigo. — Vamos ao Sebo novo
que abriu no centro! Lá a gente relaxa
comprando quadrinhos!
Victor sorriu. Se havia algo que
o menino gostava mais do que estudar era
ler histórias em quadrinhos. Ele próprio
tinha ensinado Verônica a apreciar esse tipo
de diversão.
— Demorô! Vamos lá então! — ele
acelerou o passo.
O presente do passado
Parte 2
O Sebo novo era localizado numa rua
estreita que desembocava na avenida
central da cidade. O prédio era um casarão
antigo de dois andares e que necessitava de
uma boa pintura. A tinta azul estava
descascando em várias partes e o telhado
precisava de reparos.
Os dois amigos adentraram pela porta
de madeira velha e viram que havia várias
revistas espalhadas pelo assoalho velho e
algumas estantes preenchidas com livros.
No fundo da grande sala, havia um pequeno
balcão e uma senhora parecia limpar o
móvel. Os dois se aproximaram:
— Bom dia, senhora! — disse Vic. —
Podemos olhar os quadrinhos?
A velha sorriu, levantou os olhos por
de trás das lentes dos óculos e observou o
casal.
— Oh! Claro que podem! — falou ao
olhar nos olhos de Victor. — Não repare na
bagunça, mas é que acabei de me instalar
aqui!
— Não se preocupe, tia — Verônica
sorriu.
Vic se afastou do balcão ao notar
uma pilha de revistas do Batman.
— Vê, vou dar uma olhada naquelas
revistas!
— Vai lá! Já já vou também! Senhora,
mora sozinha?
— Chamo-me Clarice e sou sozinha. E
você, como se chama?
— Meu nome é Verônica! Meus
amigos e minha família me chamam de Vê!
Clarice retirou seus óculos e observou
atentamente Verônica.
— Você é jovem...
— Sim! Estou na sexta série! Tenho
12 anos!
A voz de Vic se fez para atrapalhar
aquela conversa:
— Vê, olhe o que eu achei! O
quadrinho que você tanto queria! — ele
folhava uma revista.
— Ai que bom! — a garota deixou a
companhia de Clarice para ir junto do
amigo.
Mais tarde Verônica e o amigo
estavam à mesa esperando pelo almoço que
Inezita serviria. Naquela oportunidade
Valéria, advogada e mãe de Verônica estava
ali para o almoço. Ela era uma mulher
bonita, nem parecia mãe. Tinha os cabelos
dourados e bem lisos; seus olhos eram
castanhos e sua pele bem clara. Trajava um
lindo vestido, esmeralda, muito elegante.
Não tinha muito tempo para ser mãe e
cuidar da filha.
— Então você tirou zero novamente,
mocinha? — dizia a mãe enquanto se servia
de arroz. — Filha, vou precisar contratar um
professor particular para você!
— Nada, mãe! Eu só não levo jeito
para estudar — ela cruzou os braços.
— Eu acho uma boa ideia, Doutora
Valéria! — Vic opinou ao passo que Verônica
fez uma careta para o amigo.
— Me chame apenas de Valéria, está
bem?
Verônica mudou de assunto:
— Mãe, fomos ao Sebo novo, hoje.
— É mesmo? E o que viu de bom lá?
— Meu quadrinho preferido! Mas a
dona da loja é uma velha esquisita...
— Querida, não julgue as pessoas.
Preciso comer rapidinho agora, pois tenho
audiência logo mais! — a mãe de Verônica
procurou se ater apenas à refeição.
Aquilo fazia tanto tempo que tinha
acontecido. Nunca mais vira o amigo desde
aquele dia, pois naquela mesma tarde,
aconteceu o acidente com o raio. Algumas
vezes pensou em procurá-lo, mas não
soube como. Victor tinha se mudado. Agora
o reencontrava, mas havia algo estranho.
Verônica se aproxima discreta. Ajeita
os óculos falsos. Não é possível! O antigo
amigo está comprando droga?
Termina a 2ª temporada de
“Super Poderosa”! Com o núcleo
“Presente do Passado” fechamos as
aventuras de Mercúria
provisoriamente.
Para mais informações acesse o
blog do autor:
http://paullawblog.blogspot.com.
br/
Próxima postagem em breve.
Obrigado a todos que estão
apoiando e comentando “Super
Poderosa”. Gostaria de informar que
este é um projeto despretensioso e que
muito me satisfaz. Há tantas ideias...
mesmo que não sejam lá originais.
Abraço.
O autor.