Stuart Hall: a Favor Da Diferenca (Sovik)

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Fernando Pessoa LOREDANO 4 l O GLOBO l Prosa l Sábado 22.2.2014 EDITORA: Mànya Millen [email protected] REPÓRTERES: Guilherme Freitas [email protected] e Leonardo Cazes [email protected] DIAGRAMAÇÃO: Anderson Barboza Telefones: 2534-5616 e 2534-5650 E-mail: [email protected] T alvez Stuart Hall gostasse de saber que falar dele logo depois de sua morte é participar de uma polifo- nia bakhtiniana, um conjunto de vozes diferentes que falam sobre ele, o que ele fez e disse, o impac- to que teve. Minha homenagem favorita, no momento, é um trecho da nota de óbito de Da- vid Morley e Bill Schwarz, seus amigos e ex-alu- nos. Publicada no site do “The Guardian” , a nota foi a matéria mais lida do jornal no dia da morte do professor, teórico e ativista, do mestre e maî- tre-à-penser. O texto termina assim: “Quando apareceu no programa de rádio Desert Island Discs, Hall falou de sua paixão duradoura por Miles Davis. Explicou que a música represen- tou para ele o som do que não pode ser, ‘the sound of what cannot be. O que era sua vida intelectual, senão o esforço, contra todos os obstáculos, para fazer ‘o que não pode ser’ , viver na imaginação?” Em “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?” , Hall escreveu que “o povo da diáspora negra tem, em oposição a tudo isso [a cultura logocêntrica, da escrita], encontrado a forma profunda, a estrutu- ra profunda de sua vida cultural na música” . Hall era duplamente diaspórico, descendente de po- vos deslocados pela história da colonização e da escravidão e migrante da Jamaica à Inglaterra. Ele se pronunciou em textos, como se fosse um Miles Davis: tocava e colaborava com seus parceiros, li- vremente solando em sintonia e contradição com seu contexto, em um som complexo, difícil de ou- vir na primeira vez, mas de uma liberdade admi- rável a cada nova audição. NO BRASIL, EM 2000, UM DISCURSO DE IMPACTO Hall elaborava suas ideias através da construção de tensões — já descrevi esse processo na apresen- tação da coletânea de seu trabalho, “Da diáspora: identidades e mediações culturais” (Ed. UFMG, 2003). Em “Que ‘negro’ ...?” , disse: “a pergunta sobre identidade negra a que se refere o título do artigo reverte para a consideração crítica da etnicidade dominante; a identidade negra é atravessada por outras identidades, inclusive de gênero e orienta- ção sexual. A política identitária essencialista aponta para algo pelo qual vale lutar, mas não re- sulta simplesmente em libertação da dominação. Nesse contexto complexo, as políticas culturais e a luta que incorporam se trava em muitas frentes e em todos os níveis da cultura, inclusive a vida coti- diana, a cultura popular e a cultura de massa. Hall ainda acrescenta um complicador, no final do tex- to: o meio mercantilizado e estereotipado da cul- tura de massa se constitui de representações e fi- guras de um grande drama mítico com o qual as audiências se identificam, é mais uma experiência de fantasia do que de autorreconhecimento” . Difícil seria reduzir o caminho desse pensa- mento à dialética. Ao invés, podemos pensar que a maneira de Hall elaborar ideias tem uma estrutura musical, em que tema e variação po- dem ser interrompidos por improvisações, on- de o solo se destaca de um coro de vozes trazi- das de uma bibliografia entendida como fonte de forças a serem chamadas para entender os objetos — ao contrário do hábito acadêmico de criticar negativamente os antecessores sob pe- na de parecer submisso a eles. Talvez seja por sua maneira de sentir e elaborar ideias a partir de uma estrutura profunda musical, que tam- bém diz respeito à vida cultural brasileira, que Stuart Hall teve tanta ressonância aqui. A vinda a Salvador em julho de 2000, a convite da diretoria da Associação Brasileira de Literatura Comparada, teve por trás uma preocupação em destacá-lo como intelectual negro de impacto in- ternacional na cidade negra, de cultura negra, marcada pela opressão racista, em um momento em que havia certa romantização da Bahia como berço da cultura negra brasileira. Hall não deixou por menos: fez uma conferência em que conce- beu a colonização não como um efeito da hege- monia europeia, mas como acontecimento histó- rico mundial, envolvendo “expansão, exploração, conquista, colonização, escravidão, exploração econômica e hegemonia imperial”, através do qual a Europa “se refez” a partir de 1492. Essa concepção tem os efeitos de deslocar o foco his- tórico da Europa moderna para as periferias glo- bais; deixar de celebrar a diversidade cultural da periferia como fruto profícuo da globalização e entendê-la como produto da recusa e persistên- cia de povos distantes da metrópole; e identificar a modernidade ocidental não com o “Reino Uni- versal da Razão” , mas com a dimensão vinculante de seu poder e capacidade, em consequência, de gerar diferenças. Em segundo lugar, identificou no racismo (e nos discursos sobre gênero e sexu- alidade) a exceção à regra pela qual a diversidade é entendida como uma criação cultural: esses discursos conseguem naturalizar mais as diferen- ças. Assim, nessa nova dança de tese e contratese, variação e invenção, a conferência de Hall trazia o tema de volta às responsabilidades políticas que, para ele, eram primordiais. A coletânea de textos de autoria de Hall, “Da di- áspora”, foi um desdobramento do congresso e desde que saiu, em 2003, se tornou um best-seller acadêmico. Retomo a afirmação anterior como refrão: talvez seja porque as temáticas que traba- lhava a partir de meados dos anos 80 dizem res- peito à vida cultural brasileira que Stuart Hall teve tanta ressonância aqui, pois a partir dessa época ele se preocupou explicitamente com questões identitárias negras. Para ele, afirmar o valor de uma “África” diaspórica, a identidade negra dias- pórica, resumida na palavra “África” , foi importan- te como fator de “descolonização” das “mentes de Brixton e Kingston” , tanto para jovens negros ingleses como jamaicanos. Essa “África” tornou pronunciável o “segredo culposo da raça [...] o trauma indizível do Caribe” , e marcou todos os movimentos sociais e ações criativas do século XX no Caribe. Ao mesmo tempo, Hall era um crí- tico implacável do fundo supostamente biológico das diferenças de — citou W.E.B. DuBois — “cor, cabelo e osso” . Para ele, o corpo é lido como se fosse um texto, e sua “racialidade” pode significar coisas diferentes dependendo das circunstâncias igualmente diferentes. Um igualitarismo utópico marcava a a relação com seus próprios outros: pessoas de outras identidades raciais, mulheres, homossexuais, es- tudantes, jovens colaboradores nas instituições que dirigia, organizadoras de livros. Nunca dei- xou de lembrar as analogias entre a ideia que a identidade racial se baseia em diferenças genéti- cas e a de que os papéis sociais subalternos das mulheres são determinados biologicamente. Es- tava sempre aberto a questões que não lhe afeta- vam diretamente. Uma vez me perguntaram se Hall era gay: no Brasil, onde a crítica à discrimi- nação tantas vezes se faz somente por suas víti- mas, era impossível imaginar um apreciador sem rodeios da perspectiva queer, como ele demons- trou ser em diversos textos, a começar por “The Spectacle of the ‘Other’” , que não fosse gay. Para Hall, que não queria discípulos, a vida inte- lectual se vivia pelo combate “mano a mano” com os textos e figuras, não pelo pertencimento aos cortes de um teórico ou outro. Conversar com ele era entrar em um mundo em que fazer reflexões que tivessem alguma repercussão política era o objeto, o problema, o jogo a ser jogado. Acolhia to- dos dispostos a entrar nesse jogo, a pensar, a tentar entender, projetar algo. O bom humor e o afeto — e também o tom combativo de um discurso da tra- dição oral, em que o interlocutor está sempre pre- sente, mesmo que implicitamente —, transpare- cem nos seus textos e talvez isso diga respeito à vi- da cultural brasileira e seja mais um motivo pelo qual Stuart Hall teve tanta ressonância no Brasil. VALORIZAÇÃO DO OUTRO Em meio a tantas homenagens a Hall, é possível que a melhor seja não entrar em consensos apres- sados a respeito de seu pensamento — por exem- plo, entendendo de forma banal, como convivên- cia pacífica, o multiculturalismo do qual, se diz, ele é pai. Quando alguém lhe perguntou, em um sim- pósio sobre cultura, globalização e o sistema- mundo, realizado no estado de Nova York em 1989, se existia algo que pudesse ser chamado de “humanidade” , ele respondeu que não. Quando se fala em humanidade ou no ser humano que “todo mundo é, no fundo” , o que está acontecendo na prática, disse, é um apagamento das diferenças em nome de uma inclusão hierárquica, que interessa a alguns. A esperança, disse, é que nesse momen- to, de naturalização da hierarquia social feita em nome da humanidade universal, algo escape. A esperança de Hall que o Outro escape de sua redução ao Mesmo e ao nome que o sistema de poder lhe dá, assim como a tradução dessa esperança em um respeito pelas pessoas, dife- rentes entre si: tudo isso fez parte de seu caris- ma, de sua capacidade de gerar sentimentos de amizade e, certamente, de sua contribuição com imagens do que (não) pode ser. Arauto da possibilidade em aberto — sempre insistia que os resultados de processos históricos não eram determinados de antemão —, seu pensamento era tão complexo quanto o som de Miles Davis. Esse pensamento, motivado pela vontade de um futuro menos cruel, justo, diz respeito à vida social e cultural brasileira: talvez por isso tam- bém Stuart Hall teve tanta ressonância aqui. l A favor da diferença Sociólogo e um dos principais teóricos do multiculturalismo, morto este mês, refletiu sobre a diáspora negra sem se prender a correntes teóricas STUART HALL LIV SOVIK Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de “Aqui ninguém é branco” DIVULGAÇÃO Original. Hall propôs uma releitura da colonização, deslocando o foco da Europa moderna para as periferias globais

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Stuart Hall: a Favor Da Diferenca (L. Sovik)Estadão, 22-02-2014"Sociólogo e um dos principais teóricos do multiculturalismo, morto este mês, refletiu sobre a diáspora negra sem se prender a correntes teóricas"

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Page 1: Stuart Hall: a Favor Da Diferenca (Sovik)

FernandoPessoa

LOREDANO

4 l O GLOBO l Prosa l Sábado 22 .2 .2014

EDITORA: Mànya Millen [email protected] REPÓRTERES: Guilherme Freitas [email protected] e Leonardo Cazes [email protected] DIAGRAMAÇÃO: Anderson Barboza Telefones: 2534-5616 e 2534-5650 E-mail: [email protected]

Talvez Stuart Hall gostasse de saberque falar dele logo depois de suamorte é participar de uma polifo-nia bakhtiniana, um conjunto devozes diferentes que falam sobreele, o que ele fez e disse, o impac-

to que teve. Minha homenagem favorita, nomomento, é um trecho da nota de óbito de Da-vid Morley e Bill Schwarz, seus amigos e ex-alu-nos. Publicada no site do “The Guardian”, a notafoi a matéria mais lida do jornal no dia da mortedo professor, teórico e ativista, do mestre e maî-tre-à-penser. O texto termina assim:

“Quando apareceu no programa de rádio DesertIsland Discs, Hall falou de sua paixão duradourapor Miles Davis. Explicou que a música represen-tou para ele o som do que não pode ser, ‘the soundof what cannot be’. O que era sua vida intelectual,senão o esforço, contra todos os obstáculos, parafazer ‘o que não pode ser’, viver na imaginação?”

Em “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”, Hallescreveu que “o povo da diáspora negra tem, emoposição a tudo isso [a cultura logocêntrica, daescrita], encontrado a forma profunda, a estrutu-ra profunda de sua vida cultural na música”. Hallera duplamente diaspórico, descendente de po-vos deslocados pela história da colonização e daescravidão e migrante da Jamaica à Inglaterra. Elese pronunciou em textos, como se fosse um MilesDavis: tocava e colaborava com seus parceiros, li-vremente solando em sintonia e contradição comseu contexto, em um som complexo, difícil de ou-vir na primeira vez, mas de uma liberdade admi-rável a cada nova audição.

NO BRASIL, EM 2000, UM DISCURSO DE IMPACTOHall elaborava suas ideias através da construçãode tensões — já descrevi esse processo na apresen-tação da coletânea de seu trabalho, “Da diáspora:identidades e mediações culturais” (Ed. UFMG,2003). Em “Que ‘negro’...?”, disse: “a pergunta sobreidentidade negra a que se refere o título do artigoreverte para a consideração crítica da etnicidadedominante; a identidade negra é atravessada poroutras identidades, inclusive de gênero e orienta-ção sexual. A política identitária essencialistaaponta para algo pelo qual vale lutar, mas não re-sulta simplesmente em libertação da dominação.Nesse contexto complexo, as políticas culturais e aluta que incorporam se trava em muitas frentes eem todos os níveis da cultura, inclusive a vida coti-diana, a cultura popular e a cultura de massa. Hallainda acrescenta um complicador, no final do tex-to: o meio mercantilizado e estereotipado da cul-tura de massa se constitui de representações e fi-guras de um grande drama mítico com o qual asaudiências se identificam, é mais uma experiênciade fantasia do que de autorreconhecimento”.

Difícil seria reduzir o caminho desse pensa-mento à dialética. Ao invés, podemos pensar

que a maneira de Hall elaborar ideias tem umaestrutura musical, em que tema e variação po-dem ser interrompidos por improvisações, on-de o solo se destaca de um coro de vozes trazi-das de uma bibliografia entendida como fontede forças a serem chamadas para entender osobjetos — ao contrário do hábito acadêmico decriticar negativamente os antecessores sob pe-na de parecer submisso a eles. Talvez seja porsua maneira de sentir e elaborar ideias a partirde uma estrutura profunda musical, que tam-bém diz respeito à vida cultural brasileira, queStuart Hall teve tanta ressonância aqui.

A vinda a Salvador em julho de 2000, a conviteda diretoria da Associação Brasileira de LiteraturaComparada, teve por trás uma preocupação emdestacá-lo como intelectual negro de impacto in-ternacional na cidade negra, de cultura negra,marcada pela opressão racista, em um momentoem que havia certa romantização da Bahia comoberço da cultura negra brasileira. Hall não deixoupor menos: fez uma conferência em que conce-beu a colonização não como um efeito da hege-monia europeia, mas como acontecimento histó-rico mundial, envolvendo “expansão, exploração,conquista, colonização, escravidão, exploraçãoeconômica e hegemonia imperial”, através doqual a Europa “se refez” a partir de 1492. Essaconcepção tem os efeitos de deslocar o foco his-tórico da Europa moderna para as periferias glo-bais; deixar de celebrar a diversidade cultural daperiferia como fruto profícuo da globalização eentendê-la como produto da recusa e persistên-

cia de povos distantes da metrópole; e identificara modernidade ocidental não com o “Reino Uni-versal da Razão”, mas com a dimensão vinculantede seu poder e capacidade, em consequência, degerar diferenças. Em segundo lugar, identificouno racismo (e nos discursos sobre gênero e sexu-alidade) a exceção à regra pela qual a diversidadeé entendida como uma criação cultural: essesdiscursos conseguem naturalizar mais as diferen-ças. Assim, nessa nova dança de tese e contratese,variação e invenção, a conferência de Hall trazia otema de volta às responsabilidades políticas que,para ele, eram primordiais.

A coletânea de textos de autoria de Hall, “Da di-áspora”, foi um desdobramento do congresso edesde que saiu, em 2003, se tornou um best-selleracadêmico. Retomo a afirmação anterior comorefrão: talvez seja porque as temáticas que traba-lhava a partir de meados dos anos 80 dizem res-peito à vida cultural brasileira que Stuart Hall tevetanta ressonância aqui, pois a partir dessa épocaele se preocupou explicitamente com questõesidentitárias negras. Para ele, afirmar o valor deuma “África” diaspórica, a identidade negra dias-pórica, resumida na palavra “África”, foi importan-te como fator de “descolonização” das “mentesde Brixton e Kingston”, tanto para jovens negrosingleses como jamaicanos. Essa “África” tornoupronunciável o “segredo culposo da raça [...] otrauma indizível do Caribe”, e marcou todos osmovimentos sociais e ações criativas do séculoXX no Caribe. Ao mesmo tempo, Hall era um crí-tico implacável do fundo supostamente biológico

das diferenças de — citou W.E.B. DuBois — “cor,cabelo e osso”. Para ele, o corpo é lido como sefosse um texto, e sua “racialidade” pode significarcoisas diferentes dependendo das circunstânciasigualmente diferentes.

Um igualitarismo utópico marcava a a relaçãocom seus próprios outros: pessoas de outrasidentidades raciais, mulheres, homossexuais, es-tudantes, jovens colaboradores nas instituiçõesque dirigia, organizadoras de livros. Nunca dei-xou de lembrar as analogias entre a ideia que aidentidade racial se baseia em diferenças genéti-cas e a de que os papéis sociais subalternos dasmulheres são determinados biologicamente. Es-tava sempre aberto a questões que não lhe afeta-vam diretamente. Uma vez me perguntaram seHall era gay: no Brasil, onde a crítica à discrimi-nação tantas vezes se faz somente por suas víti-mas, era impossível imaginar um apreciador semrodeios da perspectiva queer, como ele demons-trou ser em diversos textos, a começar por “TheSpectacle of the ‘Other’”, que não fosse gay.

Para Hall, que não queria discípulos, a vida inte-lectual se vivia pelo combate “mano a mano” comos textos e figuras, não pelo pertencimento aoscortes de um teórico ou outro. Conversar com eleera entrar em um mundo em que fazer reflexõesque tivessem alguma repercussão política era oobjeto, o problema, o jogo a ser jogado. Acolhia to-dos dispostos a entrar nesse jogo, a pensar, a tentarentender, projetar algo. O bom humor e o afeto —e também o tom combativo de um discurso da tra-dição oral, em que o interlocutor está sempre pre-sente, mesmo que implicitamente —, transpare-cem nos seus textos e talvez isso diga respeito à vi-da cultural brasileira e seja mais um motivo peloqual Stuart Hall teve tanta ressonância no Brasil.

VALORIZAÇÃO DO OUTROEm meio a tantas homenagens a Hall, é possívelque a melhor seja não entrar em consensos apres-sados a respeito de seu pensamento — por exem-plo, entendendo de forma banal, como convivên-cia pacífica, o multiculturalismo do qual, se diz, eleé pai. Quando alguém lhe perguntou, em um sim-pósio sobre cultura, globalização e o sistema-mundo, realizado no estado de Nova York em1989, se existia algo que pudesse ser chamado de“humanidade”, ele respondeu que não. Quando sefala em humanidade ou no ser humano que “todomundo é, no fundo”, o que está acontecendo naprática, disse, é um apagamento das diferenças emnome de uma inclusão hierárquica, que interessaa alguns. A esperança, disse, é que nesse momen-to, de naturalização da hierarquia social feita emnome da humanidade universal, algo escape.

A esperança de Hall que o Outro escape desua redução ao Mesmo e ao nome que o sistemade poder lhe dá, assim como a tradução dessaesperança em um respeito pelas pessoas, dife-rentes entre si: tudo isso fez parte de seu caris-ma, de sua capacidade de gerar sentimentos deamizade e, certamente, de sua contribuiçãocom imagens do que (não) pode ser. Arauto dapossibilidade em aberto — sempre insistia queos resultados de processos históricos não eramdeterminados de antemão —, seu pensamentoera tão complexo quanto o som de Miles Davis.Esse pensamento, motivado pela vontade deum futuro menos cruel, justo, diz respeito à vidasocial e cultural brasileira: talvez por isso tam-bém Stuart Hall teve tanta ressonância aqui. l

A favor da diferençaSociólogo e um dos principais teóricos do multiculturalismo, morto estemês, refletiu sobre a diáspora negra sem se prender a correntes teóricas

STUART HALL

LIV SOVIK

Liv Sovik é professora da Escola de Comunicaçãoda UFRJ e autora de “Aqui ninguém é branco”

DIVULGAÇÃO

Original. Hall propôs uma releitura da colonização, deslocando o foco da Europa moderna para as periferias globais