Sangue Yanomami

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  • Avaliao tica em pesquisa social:

    o caso do sangue Yanomami

    Dbora Diniz

    Resumo: Este artigo discute caso paradigmtico para a tica na pesquisa com seres humanos: a

    expedio de James Neel e Napoleon Chagnon no final dos anos 60 entre os yanomamis. A

    expedio Nell/Chagnon resultou na coleta de 12.000 amostras de sangue que se encontram

    armazenadas em universidades estadunidenses, dedicadas ao Projeto Genoma Humano. Neste

    artigo, o caso do sangue Yanomami o pano de fundo para a discusso de questes centrais sobre

    a participao de populaes vulnerveis na pesquisa cientfica nas Cincias Humanas e da Sade:

    termo de consentimento livre e esclarecido, pagamento pela participao na pesquisa, uso e

    divulgao de dados de pesquisa considerados secretos para a populao pesquisada.

    Dbora Diniz

    Doutora em Antropologia pela

    Universidade de Braslia,

    professora adjunta da

    Universidade de Braslia,

    pesquisadora do Instituto de

    Biotica Direitos Humanos e

    Gnero (Anis) e integrante da

    diretoria da International

    Association of Bioethics (IAB)

    Palavras-chave: tica na pesquisa. Populao vulnervel. Yanomami.

    Os grupos yanomamis so considerados um dos povos mais

    isolados do planeta. At meados do sculo XX, o povo

    Yanomami vivia praticamente sem contato com outros gru-

    pos. At onde h registros histricos, os primeiros contatos

    dos yanomamis com povos no-indgenas se deu no incio dos

    anos 50 e, de forma mais sistemtica, com os primeiros tra-

    balhos antropolgicos e de missionrios religiosos nos anos

    60. Sob a identidade yanomami h uma diversidade de gru-

    pos com diferentes lnguas e particularidades sociais. Estima-

    se que 26.000 pessoas vivam nas sociedades yanomamis, em

    territrio fronteirio entre o Brasil e a Venezuela. Cerca de

    metade dessa populao encontra-se no lado brasileiro, agru-

    pada em duzentas sociedades. Comparados com outros grupos

    amerndios, os yanomamis possuem uma ascendncia genti-

    ca particular, o que levou alguns pesquisadores a lanar a

    hiptese de que foram os primeiros a atravessar o Estreito de

    Bering1

    .

    essa particularidade gentica associada ao isolamento

    geogrfico em que os yanomamis viviam que os tornaram to

    sedutores para a pesquisa gentica nos anos 70 e para a

    pesquisa genmica nos ltimos anos. Desde 2001, o caso

    284Revista Biotica 2007 15 (2): 284-97

  • conhecido como sangue yanomami vem

    provocando uma enxurrada de discusses

    acadmicas, acusaes polticas e investigaes

    profissionais, colocando o debate sobre o

    patrimnio gentico de um povo e a pesquisa

    cientfica com populaes vulnerveis no centro

    da reflexo da tica em pesquisa com seres

    humanos2, 3, 4, 5

    . O caso data de finais dos anos

    60, quando um grupo de pesquisadores

    estadunidenses iniciou extensa pesquisa genti-

    ca, epidemiolgica e antropolgica com difer-

    entes grupos yanomami no Brasil e na

    Venezuela. Nessa ocasio, pelo menos 12.000

    amostras de sangue yanomami foram coletadas

    e, hoje, parte delas ainda se encontra estocada

    em dife-rentes universidades nos Estados

    Unidos e ou-tras foram recentemente devolvi-

    das s lideranas yanomamis6

    .

    Muito embora, durante duas dcadas, alguns

    antroplogos brasileiros especialistas em cul-

    tura yanomami tenham denunciado os equvo-

    cos ticos dessa pesquisa, foi somente com a

    publicao do livro Trevas no Eldorado: como

    cientistas e jornalistas devastaram a Amaznia

    e violentaram a cultura ianomami, de Patrick

    Tierney, em 2001, que o caso ganhou pro-

    pores internacionais e devolveu para a comu-

    nidade de antroplogos estadunidenses o nus

    de seu enfrentamento pblico3, 7, 8, 9

    .

    Tierney um jornalista investigativo e mili-

    tante de movimentos de direitos humanos que

    durante 11 anos investigou o caso do sangue

    yanomami. Antes mesmo da publicao do

    livro, originais da obra foram divulgados pela

    internet, o que, por um lado, fez crescer a

    polmica em torno do caso e, por outro, fez

    com o que autor revisasse algumas das graves

    acusaes que dirigia equipe de pesquisadores

    estadunidenses10

    .

    O livro apresentou srias acusaes contra dois

    conhecidos cientistas: James Neel, geneticista,

    e Napoleon Chagnon, antroplogo, cujas obras

    e filmes etnogrficos formaram uma gerao de

    antroplogos estadunidenses. No total, foram

    duas acusaes contra Neel (de ter provocado a

    epidemia de sarampo, acusao revista na ver-

    so definitiva do livro, e de ter mantido seu pro-

    tocolo de pesquisa, ao invs de socorrido os

    yanomamis infectados pelo sarampo) e sete

    contra Chagnon5

    . Neel morreu dois meses

    antes da divulgao do livro, por isso no tem

    sido figura-chave nos desdobramentos da obra e

    sua defesa tem sido garantida por seus discpu-

    los acadmicos e pela Sociedade Americana de

    Gentica Humana11

    . Curiosamente, foi um

    dos precursores da tica na pesquisa gentica

    nos Estados Unidos nos anos 701,5,11

    . O centro

    da controvrsia ficou em torno de Chagnon,

    personagem j muito contestado por parte da

    antropologia indigenista brasileira.

    Neel e Chagnon compunham uma equipe de

    pesquisadores cujo principal objetivo de

    pesquisa era investigar as bases genticas para a

    violncia e sua relao com as prticas reprodu-

    tivas. Os yanomamis transformaram-se na

    populao ideal para esse tipo de pesquisa por

    algumas razes: a) porque eram descritos como

    povo violento e selvagem; b) pelo profundo iso-

    lamento em que viviam, o que garantia uma

    homogeneidade gentica da populao; c) esse

    era um momento em que o debate sobre a tica

    na pesquisa era ainda incipiente, sendo raros os

    285 Avaliao tica em pesquisa social: o caso do sangue Yanomami

  • protocolos ticos de conduta da pesquisa. A

    construo social dos yanomamis como povo

    primitivo era atrativo adicional para testar as

    fronteiras entre a biologia e a cultura nas

    sociedades humanas: a busca do gene para a

    violncia e suas relaes com o comportamen-

    to reprodutivo poderia ser uma hiptese pela

    primeira vez testada em um grupo populacional

    especfico.

    Chagnon autor de um dos livros mais co-

    nhecidos e populares sobre os yanomamis,

    Yanomami: o povo selvagem12

    . O argumento

    do livro, que vendeu mais de trs milhes de

    exemplares, cifra considervel para obras de

    Antropologia, o de que a violncia ocupa

    papel central nas sociedades yanomamis5

    . Em

    parceria com Neel, Chagnon defendeu a tese de

    que o comportamento violento teria funda-

    mento gentico: os yanomamis seriam geneti-

    camente propensos violncia1, 13

    . Essa carac-

    terizao do povo yanomami como povo sel-

    vagem tinha duplo apelo: por um lado, era

    referncia idia, ainda vigente na poca, de

    que as sociedades indgenas eram grupos pri-

    mitivos que representariam parte de um proces-

    so evolutivo da humanidade e, por outro, de

    que os yanomamis eram selvagens pela violn-

    cia estrutural. A selvageria seria, portanto,

    resultado de propenso gentica ao uso da fora

    fsica, mas tambm expresso do processo evo-

    lutivo das sociedades indgenas.

    Chagnon viveu entre os yanomamis durante

    longos perodos, o que lhe garantia autoridade

    discursiva no campo cientfico. Viver em dife-

    rentes sociedades prtica de trabalho de

    campo muito comum aos antroplogos,

    chamada de trabalho etnogrfico. A etnografia

    o resultado de um trabalho de campo em pro-

    fundidade, em que o pesquisador busca com-

    preender, descrever e analisar as sociedades

    onde desenvolve pesquisas por meio de uma

    experincia profunda de vida na comunidade. A

    autoridade da etnografia forneceu a legitimi-

    dade necessria para a descrio dos yano-

    mamis como o povo selvagem da Amaznia,

    uma construo social duramente contestada

    por outros antroplogos e, mais recentemente,

    por lideranas yanomamis. Durante quase vinte

    anos os trabalhos de Chagnon foram refutados

    por antroplogos latino-americanos, o que,

    acrescido a outras acusaes de m prtica cien-

    tfica, provocou a total proibio de o pesqui-

    sador entrar em terras yanomamis no ano de

    1995 6,7

    .

    O objetivo deste artigo , por meio de um caso

    da histria brasileira da pesquisa cientfica,

    analisar as especificidades da pesquisa social e

    suas interfaces com os princpios da tica em

    pesquisa. O caso do sangue yanomami ser o

    fio condutor para a elucidao de questes cen-

    trais ainda na pauta da agenda da tica em

    pesquisa no Brasil. Nos ltimos anos, com a

    consolidao do Sistema CEP/Conep nas uni-

    versidades e centros de pesquisa, cresceram

    tambm as crticas insensibilidade do sistema

    s metodologias e tcnicas de pesquisa dos

    saberes sociais. Vrios pesquisadores sociais

    relatam as dificuldades epistemolgicas que

    experimentaram ao submeter seus projetos ao

    sistema. O sistema foi elaborado tendo como

    referncia os campos biomdicos e suas parti-

    cularidades metodolgicas, muito embora a

    Resoluo CNS 196/96 tenha pretenses de

    286Revista Biotica 2007 15 (2): 284-97

  • que todos os campos disciplinares submetam

    seus projetos de pesquisa aos comits.

    A crtica das humanidades no deve ser enten-

    dida como recusa reviso tica dos projetos de

    pesquisa, mas como desafio s regras do jogo

    propostas pelo sistema CEP/Conep. A partir

    dessa compreenso o Instituto de Humani-

    dades da Universidade de Braslia inaugurou,

    em 2007, um comit de tica em pesquisa

    especializado em pesquisas sociais . o terceiro

    comit da UnB, mas sua especificidade est em

    avaliar projetos de pesquisa cujas tcnicas sejam

    caractersticas das Humanidades, tais como:

    entrevistas, observao participante, etnografia,

    histrias de vida, entre outras. O objetivo do

    comit no apenas o de aproximar os saberes

    sociais do sistema de reviso tica vigente no

    pas, mas tambm o de pensar em que medida

    a Resoluo CNS 196/96 e as regras do sis-

    tema contemplam as particularidades da pes-

    quisa social.

    A pesquisa sociogentica

    A pesquisa sociogentica teve incio em 1968

    e, a princpio seus objetivos de investigao no

    estavam claros. At onde se comprovou, aps a

    controvrsia pblica com o livro de Tierney, a

    pesquisa era parcialmente financiada pela Fun-

    dao de Energia Atmica dos Estados Unidos

    e tinha por objetivos: coletar o sangue de

    12.000 yanomamis para futuras pesquisas

    genticas; testar novo protocolo de vacina con-

    tra o sarampo; incluir os yanomamis como

    grupo de controle para pesquisa sobre seqelas

    de exposio radioativa com populaes japone-

    sas aps a II Guerra Mundial1,5

    . A chegada de

    Neel e Chagnon entre os yanomamis foi, no

    entanto, surpreendida por avassaladora epi-

    demia de sarampo que dizimou cerca de um

    tero de toda a populao indgena.

    E foi essa coincidncia nefasta um dos mais

    graves mal-entendidos do livro de Tierney: ele

    acusava os pesquisadores de terem provocado a

    epidemia do sarampo com o novo protocolo de

    vacina3

    . Essa acusao foi radicalmente refuta-

    da no apenas pelas evidncias histricas

    disponveis, que comprovavam que a epidemia

    tivera incio antes da chegada da equipe de

    pesquisa entre os yanomamis, mas principal-

    mente por pesquisas epidemiolgicas contem-

    porneas que demonstraram a impossibilidade

    de a nova vacina ter provocado o sarampo. A

    controvrsia em torno dessa acusao foi to

    extensa que a Universidade Federal do Rio de

    Janeiro (UFRJ) realizou detalhada investigao

    sobre o caso e apresentou relatrio que demons-

    trava o equvoco da acusao de Tierney10

    .

    Superada a acusao de genocdio dos

    yanomamis pela pesquisa da vacina do saram-

    po, a controvrsia se mantinha pelas acusaes

    de Tierney sobre os mtodos de Chagnon para

    o recrutamento dos ndios para participao na

    pesquisa. Tierney acusou Chagnon de incitar a

    violncia para filmar os yanomamis em com-

    bate. Apresentou evidncias de graves interfe-

    rncias na dinmica cultural para levantar

    dados, alm de outras prticas equivocadas de

    trabalho de campo. Desde ento, o caso do

    sangue yanomami tornou-se situao paradig-

    mtica para analisar os desafios envolvidos para

    o controle social da tica na pesquisa em cin-

    cias humanas com populaes vulnerveis.

    287 Avaliao tica em pesquisa social: o caso do sangue Yanomami

  • Aps quase duas dcadas de silncio em torno

    do experimento, a publicao do livro e a soli-

    citao dos yanomamis de devoluo do sangue

    reacenderam a controvrsia, cujo fato mais

    recente foi o anncio da devoluo de algumas

    partidas de sangue da Universidade Federal do

    Par (UFPA) para as lideranas yanomamis14

    .

    Esse novo captulo da histria do sangue

    yanomami envolveu diferentes geraes de

    pesquisadores, novos protocolos ticos de

    pesquisa com seres humanos e relaes

    diplomticas entre os pases, o que terminou

    por tornar ainda mais complexo e rico um

    debate ainda a espera de soluo.

    Genealogia familiar: o tabu

    Yanomami

    Um trao cultural dos povos yanomamis que

    o nome pessoal no revelado em pblico15

    .

    Nomear algum enunciando seu prprio nome

    grave insulto. Em geral, a resposta de um

    yanomami pergunta qual o seu nome?

    uma mentira. A descortesia no est em men-

    tir, mas sim na insistncia de um no-yanoma-

    mi em saber uma informao que socialmente

    considerada secreta. Insulto ainda mais grave

    perguntar o nome de pessoa j morta. Os

    nomes prprios so espcies de codinomes pejo-

    rativos e que descrevem marcas corporais,

    leses ou mesmo estigmas corporais. poss-

    vel, por exemplo, que o nome de uma criana

    yanomami com lbio leporino faa referncia a

    esta marca corporal. Mas o nome no ser ape-

    nas uma descrio de sua condio fsica:

    tambm uma enunciao depreciativa do indi-

    vduo. Por isso, os nomes so secretos e sua

    explicitao considerada um insulto15

    .

    Nesse contexto social e cultural de nomes

    prprios como insultos, fcil imaginar os

    desafios de uma pesquisa gentica em que a

    reconstituio das genealogias familiares pres-

    supunha a identificao de cada pessoa em dado

    ordenamento familiar. Era preciso coletar

    informaes no apenas individuais, mas de

    colaterais, de ascendentes, de descendentes e da

    famlia extensa. E, tradicionalmente, a medici-

    na gentica realiza esse levantamento por meio

    dos nomes prprios. O fato de os nomes serem

    um tabu cultural exigia de Neel e Chagnon ou

    a interrupo da pesquisa ou estratgias cul-

    turalmente sensveis para a coleta das infor-

    maes sobre parentesco e filiao dos

    yanomamis. A escolha de Chagnon foi por

    ignorar os valores yanomamis e manter os

    parmetros tradicionais da pesquisa gentica: as

    genealogias foram montadas recuperando-se os

    nomes individuais e sua rede de parentesco,

    inclusive dos yanomamis j mortos.

    Como pesquisador responsvel pelo levanta-

    mento dessas informaes, Chagnon afirmou

    em um de seus livros que uma de minhas tare-

    fas fornecer aos meus colegas genealogias

    mnimas para uso nos estudos familiares sobre

    genes hereditrios5

    . Mas, ao invs de utilizar

    sua sensibilidade etnogrfica para identificar

    possveis estratgias de levantamento dos dados

    sem provocar ofensas aos valores locais, optou

    por dois procedimentos metodolgicos j na

    poca considerados eticamente questionveis:

    oferecia presentes s crianas para que reve-

    lassem os seus nomes e os nomes de seus fami-

    liares; e oferecia presentes aos inimigos dos

    yanomamis para que esses informassem os

    nomes dos yanomamis 3,5

    . O teste de veracidade

    288Revista Biotica 2007 15 (2): 284-97

  • da informao era feito enunciando o nome da

    pessoa e avaliando a intensidade da indignao

    que a enunciao provocava ou, nas palavras de

    Chagnon, fiz uso das brigas e animosidades

    locais para selecionar meus informantes5

    . Com

    essa dupla estratgia Chagnon levantou grande

    parte das genealogias yanomamis, o que, por

    sua vez, permitiu a Neel iniciar os protocolos de

    vacina e os grupos de controle da pesquisa

    genmica.

    A estratgia utilizada por Chagnon pode ser

    analisada a partir de trs pontos centrais: em

    que medida a oferta de bens tcnica legtima

    para convencer as pessoas a participar de uma

    pesquisa? Como deve ser feita a coleta de infor-

    maes consideradas socialmente secretas e

    quais os compromissos ticos de um pesqui-

    sador no manuseio e divulgao desse tipo de

    dado? Como lidar e respeitar os valores cultu-

    rais dos yanomamis sobre o corpo e vestgios

    corporais, uma vez que a pesquisa pressupunha

    coleta de amostras de sangue? Quanto a essa

    ltima questo cabe relatar que o corpo ocupa

    espao socialmente privilegiado entre os ya-

    nomamis, a tal ponto que, imediatamente aps

    a morte de algum, todos os vestgios corporais

    devem ser cremados e destrudos. Nesse con-

    texto, o sangue no apenas indcio de que algo

    permanece do passado e no foi destrudo, mas

    risco moral, pois pode trazer danos pessoa j

    morta5, 14, 15

    .

    A estocagem do sangue e o

    consentimento livre e esclarecido

    Foi somente aps a publicao do livro de Tier-

    ney que os yanomamis tomaram conhecimen-

    to de que as amostras de sangue estavam em

    universidades estadunidenses e em alguns labo-

    ratrios dedicados pesquisa genmica. Vrias

    lideranas yanomamis acusaram a equipe de

    Neel de no ter informado que o sangue seria

    permanentemente estocado. A compreenso

    inicial era de que a coleta se justificava para a

    vacinao contra o sarampo e para a pesquisa

    sobre o novo protocolo da vacina. Muitos cien-

    tistas que criticaram essa estocagem do sangue

    por mais de 30 anos lembram que, no final dos

    anos 60, o termo de consentimento livre e

    esclarecido, ou ao menos procedimentos seme-

    lhantes para garantir o processo de informao

    para a participao na pesquisa cientfica, j era

    parte de protocolos internacionais de pesqui-

    sa1, 5

    . Chagnon refutou essa acusao com dois

    argumentos: a) de que teria informado todos os

    participantes da pesquisa sobre os usos e finali-

    dades da coleta do sangue, bem como sobre a

    estocagem por tempo indeterminado para

    pesquisas futuras; b) de que maiores detalhes

    sobre a pesquisa no foram fornecidos uma vez

    que os yanomamis no seriam capazes de com-

    preender a complexidade da informao cient-

    fica2

    .

    O primeiro argumento de defesa de Chagnon

    de difcil comprovao ftica. No h como

    confirmar ou refutar a alegao do antroplogo

    de que teria informado aos yanomamis sobre

    todos os procedimentos da pesquisa, bem como

    sobre a questo da estocagem permanente. O

    segundo argumento foi o que maior controvr-

    sia gerou durante as investigaes mais

    recentes2

    . A tese de que h uma incomensura-

    bilidade permanente entre as culturas e, por-

    tanto, a impossibilidade de explicar e informar

    289 Avaliao tica em pesquisa social: o caso do sangue Yanomami

  • populaes indgenas sobre caractersticas,

    mtodos, riscos e resultados de uma pesquisa ,

    hoje, largamente refutada por antroplogos da

    sade e por cientistas sensveis diversidade

    cultural e comprometidos com a tica na

    pesquisa. H, e isso dado inegvel, um maior

    desafio na traduo do vocabulrio cientfico

    para culturas, cuja cincia e medicina susten-

    tam-se em premissas diversas da biomedicina.

    Isso no significa, no entanto, a impossibili-

    dade da traduo cultural e mesmo da razovel

    compreenso por parte dos indgenas do proto-

    colo de pesquisa.

    Durante as investigaes conduzidas pela Asso-

    ciao Americana de Antropologia (AAA),

    Chagnon esclareceu como apresentou a pes-

    quisa aos yanomamis e como esses concor-

    daram em participar2

    . Em seus termos, o dito

    era que a equipe de Neel gostaria de examinar

    o sangue dos yanomamis para saber se haveria

    algo que provocaria doenas, isto , se havia

    shawara (doenas epidmicas) 2, 16

    . Essa expli-

    cao e, talvez, Chagnon, como especialista

    na cultura yanomami, estivesse consciente

    disso ressoou em valores e crenas culturais

    yanomamis que facilitaram a conduo da

    pesquisa. De acordo com vrios antroplogos

    da sade especialistas na cultura yanomami, h

    uma preferncia cultural por medicamentos

    injetveis entre os ndios, crena sustentada na

    idia de que esses medicamentos seriam mais

    poderosos que os ministrados por via oral15

    . As

    evidncias levantadas durante a investigao da

    AAA sugerem que Chagnon, ao explicar o

    experimento nos termos de um tratamento de

    sade e, especialmente, ao apelar para uma

    expectativa cultural de que os medicamentos

    injetveis so mais eficazes, teria confundido os

    yanomamis fazendo-os crer que a coleta de

    sangue era parte de um protocolo de ao de

    sade pblica, tal como as aes contra a

    malria j conduzidas naquela poca5

    .

    O recrutamento para a pesquisa:

    troca de presentes

    Um dado cultural comum a vrios estudos

    etnogrficos com populaes indgenas

    brasileiras o fascnio dos ndios por presentes.

    Atualmente, no h qualquer possibilidade de

    entrada em terras indgenas sem a oferta de

    comida, roupas ou outros utenslios no pro-

    duzidos em terras indgenas. O ponto de parti-

    da de uma pesquisa cientfica ou de trabalho

    jornalstico com populaes indgenas o rece-

    bimento de uma lista de presentes que o

    pesquisador ou o jornalista dever levar consigo

    para a chegada no campo. Muitos pesquisa-

    dores justificam o cumprimento dessa lista de

    presentes como forma de contribuir para o

    bem-estar da comunidade durante o trabalho

    de campo. Outros, justificam a prtica como

    forma de ser bem aceito na comunidade ou

    como resqucio da tradio colonial, pois essa

    era prtica corrente entre missionrios e colo-

    nizadores. O ponto-chave dessas diferentes

    interpretaes do significado da oferta de pre-

    sentes que a maioria dos pesquisadores e jor-

    nalistas no considera o cumprimento da lista

    de presentes como forma de pagamento pela

    pesquisa ou reportagem e, regra geral, no

    enfrentam o tema da troca de presentes como

    uma questo tica. O argumento de que a troca

    de presentes por informaes justa razoavel-

    mente bem aceita na comunidade de antrop-

    290Revista Biotica 2007 15 (2): 284-97

  • logos que trabalha com populaes indgenas e,

    em geral, no ponto moralmente question-

    vel5

    .

    Muitos antroplogos recusam o paralelo entre

    o pagamento financeiro para o recrutamento de

    voluntrios para uma pesquisa biomdica em

    sociedades urbanas com a troca de bens em

    comunidades indgenas. O principal argumen-

    to para essa recusa da equivalncia entre o

    pagamento e a troca de presentes a tese de que

    a pesquisa antropolgica e o mtodo etnogr-

    fico em particular baseia-se em um senso de

    aproximao e de confiana no automatica-

    mente conquistado. Os presentes seriam um

    mecanismo gentil de aproximao entre pes-

    soas que no possuem vnculos ou proximidade

    cultural. Uma pesquisa etnogrfica tradicional

    exige que um antroplogo viva na comunidade

    que ir realizar a pesquisa por longos perodos

    de tempo e ser aceito no grupo condio de

    possibilidade para o levantamento de dados.

    Nesse contexto, a releitura da troca como

    forma de pagamento e, portanto, de induo

    dos yanomamis a participarem na pesquisa no

    inferncia bem aceita entre a comunidade de

    antroplogos e de cientistas sociais em geral.

    Uma resposta desafiadora a esta releitura da

    troca como pagamento apontou a diferena

    entre a pesquisa com seres humanos e a

    pesquisa em seres humanos17

    . As diferenas

    metodolgicas e de mensurao de risco de uma

    pesquisa com e de uma pesquisa em pessoas

    no podem ser ignoradas. Uma pesquisa

    antropolgica, tal como a conduzida por

    Chagnon, uma pesquisa com pessoas, ao con-

    trrio de muitas pesquisas biomdicas que so

    invasivas ou exigem que se administrem

    medicamentos em pessoas. Essa diferena da

    pesquisa com para a pesquisa em seres huma-

    nos no deve ser entendida apenas como exer-

    ccio lingstico, mas como fronteira impor-

    tante para a discusso sobre os parmetros ti-

    cos que guiam diferentes metodologias e cam-

    pos de pesquisas. No h qualquer dvida de

    que a pesquisa de Chagnon resultou em male-

    fcios aos yanomamis o principal deles foi o

    estigma de povo selvagem , mas os riscos

    envolvidos na construo equivocada de um

    povo so de magnitude e impacto diferentes dos

    riscos de uma pesquisa biomdica que pode

    provocar a morte ou efeitos colaterais srios ao

    bem-estar fsico ou mental dos participantes. A

    recusa da releitura da troca como forma de

    pagamento no deve ser entendida como

    rejeio dos antroplogos ao acompanhamento

    tico de suas pesquisas, mas particularmente

    como recusa da transposio irrefletida de

    parmetros disciplinares de um campo para

    outro.

    A questo tica mais importante nesse debate

    encontrar mecanismos que garantam o carter

    livre e esclarecido do consentimento para par-

    ticipar em uma pesquisa. O desafio para os

    antroplogos no o de incorporar os protoco-

    los de pesquisa j consolidados para a pesquisa

    em seres humanos em sua rotina de pesquisa

    etnogrfica. O verdadeiro desafio encontrar

    mecanismos que comprovem a autenticidade

    do consentimento de populaes vulnerveis,

    com ou sem a troca de presentes. H o consen-

    so e no apenas entre a comunidade de cien-

    tistas sociais de que coletar mitos e crenas

    algo bem diferente que coletar sangue ou testar

    291 Avaliao tica em pesquisa social: o caso do sangue Yanomami

  • o protocolo de uma nova vacina entre pessoas.

    Coletar mitos uma pesquisa com seres

    humanos, ao passo que coletar sangue uma

    pesquisa em seres humanos17

    . O que a pesquisa

    de Neel e Chagnon mostrou que, apesar da

    diferena de magnitude e impacto de risco da

    pesquisa em cincias humanas, h questes ti-

    cas importantes que precisam ser enfrentadas a

    partir das particularidades disciplinares de cada

    campo18

    . Isso no significa assumir, entretanto,

    que as pesquisas em cincias humanas estejam

    isentas de riscos ou conseqncias nefastas para

    os grupos.

    Informaes secretas: consentimento

    e privacidade

    De maneira geral, no h risco relevante em

    coletar genealogias familiares ou mitos de

    determinado povo. Uma das razes da contro-

    vrsia contempornea do caso do sangue

    yanomami foi exatamente ter posto em xeque

    esse consenso do baixo risco dos resultados das

    pesquisas etnogrficas em cincias sociais. Os

    livros de Chagnon descreviam os yanomamis

    como um povo selvagem (fierce people). Suas

    obras foram extensamente lidas e discutidas por

    uma gerao de antroplogos nos Estados

    Unidos e por lideranas polticas no Brasil nos

    anos 70 e 80. No Brasil, o impacto dos escritos

    de Chagnon deu-se mais no campo da poltica

    que no universo acadmico: o argumento do

    povo selvagem foi uma das evidncias utilizadas

    por governantes para justificar a reduo das

    terras yanomamis nos anos 904,8

    .

    Vrias lideranas indgenas e defensores dos

    direitos humanos acusaram Chagnon de ter

    provocado srios danos aos yanomamis por

    essa descrio cultural de povo selvagem.

    Desde finais dos anos 80, antroplogos

    brasileiros discutem com a Associao Ameri-

    cana de Antropologia os equvocos etnogrfi-

    cos das pesquisas de Chagnon e o impacto

    poltico daqueles trabalhos para os rumos da

    poltica indigenista brasileira4

    . O principal

    argumento de defesa de Chagnon a essa

    acusao foi o de que no seria correto respon-

    sabiliz-lo pelos maus usos de suas pesquisas:

    se os governantes brasileiros apoiaram-se em

    suas etnografias para justificar a reduo das

    terras yanomamis, ele no poderia se respon-

    sabilizar por isso. Essa defesa superficial de

    Chagnon, no entanto, ignorou o cerne da dis-

    cusso: a acusao mais importante de que

    havia equvocos graves em seus relatos etno-

    grficos em especial, a descrio dos

    yanomamis como povo selvagem.

    Mas havia ainda outro ponto a ser discutido

    sobre os relatos etnogrficos de Chagnon. Os

    dados apresentados diziam respeito a infor-

    maes secretas e tabus culturais, como o

    caso dos nomes prprios. O antroplogo no

    apenas levantou esses dados por meio de

    estratgias consideradas controversas, mas

    principalmente os tornou internacionalmente

    pblicos por meio de livros e filmes. preciso

    lembrar que um dos mtodos de Chagnon para

    coletar essas informaes era recrutar crianas

    em troca de presentes, provocando os inimigos

    dos yanomamis. Com os nomes prprios levan-

    tados e as genealogias recuperadas, a equipe de

    Neel iniciou a coleta das amostras de sangue

    para fins de pesquisa, mas, ao que tudo indica,

    sob o argumento de que a coleta era parte de

    292Revista Biotica 2007 15 (2): 284-97

  • um procedimento preventivo de sade pblica.

    Como dito, no tarefa simples explicar um

    procedimento de pesquisa para populaes sem

    contato regular com o vocabulrio cientfico.

    Grande parte dos yanomamis no tem acesso

    educao formal em escolas, no so bilnges

    na lngua portuguesa e ainda tm poucos con-

    tatos com populaes no-indgenas. Esse con-

    texto era ainda mais singular quando a pesquisa

    foi realizada nos anos 60 e 70. Ao que parece,

    Chagnon no apenas explicou e convenceu os

    yanomamis a participarem da pesquisa, expli-

    cando-a em termos de um tratamento mdico,

    mas desencadeou uma desarmonia social ao

    distribuir bens por informaes, alm de ter

    recrutado grupos extremamente vulnerveis,

    como as crianas. Durante as investigaes

    conduzidas pela Associao Americana de

    Antropologia, alguns adultos yanomamis,

    crianas poca da pesquisa, contaram o mal-

    estar que a participao na pesquisa havia lhes

    provocado no passado: ter revelado os seus

    prprios nomes e os nomes de seus familiares

    era algo que ainda lhes incomodava, mas a

    seduo dos presentes teria sido muito tentado-

    ra em um contexto de total escassez daqueles

    bens3, 5

    .

    O argumento de que possvel levantar e utilizar

    dados secretos em uma pesquisa, desde que

    garantidas a privacidade na divulgao dos dados,

    no resolveria o mal-estar provocado pela simples

    enunciao desses dados pelos yanomamis. O

    fato de o nome ser tabu cultural provoca inc-

    modo moral em sua enunciao. Durante longo

    tempo, esse no foi tema a ser discutido nas

    pesquisas antropolgicas, uma vez que os grupos

    pesquisados no tinham acesso aos resultados

    das pesquisas etnogrficas. Pesquisava-se entre os

    yanomamis, coletavam-se os dados, e esses eram

    distribudos e discutidos em outro universo social

    e cultural. A distncia entre a informao cien-

    tfica e as culturas que originavam as etnografias

    era to imensa que no havia o risco da

    imputao do dano pelos relatos etnogrficos por

    parte das populaes pesquisadas: um yanomami

    no leria o livro de Chagnon ou veria um de seus

    filmes. Essa distncia social resolvia o desafio da

    tica da representao cultural de um povo: os

    yanomamis sofreram as conseqncias da repre-

    sentao como um povo selvagem antes mesmo

    que conhecessem os escritos e filmes de

    Chagnon.

    Mas em que medida Chagnon poderia ser

    responsabilizado pelos maus usos de seus relatos

    etnogrficos? Ele co-responsvel pela discri-

    minao sofrida pelos yanomamis em nome do

    estigma de povo selvagem? Responder a essas

    perguntas provoca novo desafio reflexo tica

    em cincias humanas que se aproxima do debate

    sobre as obrigaes ps-pesquisa nas cincias

    biomdicas: em que medida Chagnon deveria

    devolver seus resultados de pesquisa aos grupos

    yanomamis? As pesquisas em cincias sociais

    no so lucrativas como as financiadas por la-

    boratrios, por exemplo, mas possvel ganhar

    dinheiro, benefcios e prestgio por meio das

    pesquisas. Chagnon, excepcionalmente, ganhou

    muito dinheiro, pois seus livros e filmes foram

    extensamente lidos e assistidos em vrios pases.

    Estima-se que recebeu mais de 1 milho de

    dlares em direitos autorais de suas obras5

    . H

    um dever moral de dividir esses ganhos finan-

    ceiros e simblicos com os grupos pesquisados?

    293 Avaliao tica em pesquisa social: o caso do sangue Yanomami

  • Se sim, como proceder? As obrigaes ps-

    pesquisa devem tambm estar na pauta das dis-

    cusses nas cincias humanas ou esse deve ser

    tema restrito s cincias biomdicas? Na ver-

    dade, essas so perguntas inquietantes para

    todas as reas do conhecimento, mas ainda re-

    lativamente recentes para as cincias sociais.

    O sangue nas universidades

    estadunidenses

    Estima-se que 12.000 amostras de sangue

    yanomami estejam estocadas em universidades

    estadunidenses. Essas amostras, coletadas

    durante a pesquisa de Neel e Chagnon, so

    valiosas para fins de pesquisa gentica, dadas as

    particularidades populacionais e geogrficas dos

    yanomamis. A demanda das lideranas

    yanomamis pela devoluo do sangue para pos-

    terior destruio em territrio yanomami.

    Grande parte das amostras de pessoas j mor-

    tas, o que torna seu armazenamento ainda mais

    ultrajante para os valores culturais yanomamis.

    Quando um yanomami morre, todos os seus

    vestgios corporais tm que ser eliminados4

    .

    Aps a destruio, o corpo cremado e os

    restos mortais distribudos entre as pessoas da

    famlia e amigos mais prximos. Os restos

    mortais so valiosos, por serem utilizados para

    a preparao de alimentos em festas dedicadas

    ao morto. As pessoas prximas ao morto devem

    comer os alimentos preparados com as cinzas,

    forma de garantir que no tiveram qualquer

    participao na morte. A explicao social para

    este ritual que no h morte natural: todas

    as mortes so provocadas por bruxaria. O que o

    ritual dos alimentos garante que a bruxaria

    no foi realizada por aqueles que se alimenta-

    ram das cinzas, isto , os familiares e amigos.

    Davi Kopenawa, um dos lderes yanomamis

    mais conhecidos internacionalmente, em carta

    endereada ao governo brasileiro solicitava a

    devoluo imediata de todas as amostras de

    sangue. Em suas palavras, ns Yanomami que-

    remos mandar esta carta para vocs porque esta-

    mos tristes com sangue de nossos parentes mor-

    tos que est nas geladeiras nos Estados Unidos.

    Olha, falei com meu povo yanomami de Tooto-

    tobi onde os americanos tiraram o sangue. Os

    velhos falaram que esto com raiva porque esse

    sangue dos mortos est guardado por gente de

    longe. Nosso costume chorar os mortos,

    queimar corpos e destruir tudo que usaram e

    plantaram. No pode sobrar nada, se no o povo

    fica com raiva e o pensamento no fica tranqi-

    lo. Os americanos, esses, no respeitam nosso

    costume, por isso queremos de volta nossos

    vidros de sangue e tudo que tiraram do nosso

    sangue para estudar19

    .

    nesse contexto de total proibio de per-

    manncia de restos corporais de pessoas mortas

    que a estocagem do sangue deve ser analisada.

    A existncia de 12.000 amostras de sangue de

    yanomamis j mortos uma afronta aos valores

    culturais relacionados morte e dignidade

    individual. Alguns geneticistas e antroplogos

    estadunidenses so contrrios devoluo do

    sangue para os yanomamis em nome da riqueza

    do material para o Projeto Genoma Humano5

    .

    Recentemente, foi anunciada a devoluo de

    algumas dessas amostras armazenadas na Uni-

    versidade Federal do Par, mas o sentimento de

    pesar cientfico imenso, especialmente se con-

    294Revista Biotica 2007 15 (2): 284-97

  • siderarmos as restries que o governo bra-

    sileiro impe a entrada em terras yanomamis

    para as pesquisas biomdicas6

    . Os argumentos

    para a no devoluo so basicamente trs: a)

    no h garantia de que o sangue ser devolvido

    na integralidade, pois bastam amostras mni-

    mas para que pesquisas genticas sejam rea-

    lizadas; b) dadas as restries do governo

    brasileiro de entrada em terras yanomamis, as

    amostras de sangue so um material gentico

    insubstituvel para estudos comparativos e

    investigativos; c) as estratgias de negociao

    com os yanomamis baseiam-se nos princpios

    do tudo ou nada e seria possvel encontrar

    mecanismos de compensao para os yanoma-

    mis em troca da estocagem do sangue5

    .

    Consideraes finais

    O caso do sangue yanomami desafia vrios

    parmetros de avaliao e controle social em

    tica na pesquisa com e em seres humanos17

    .

    No restam dvidas que a expedio de

    pesquisa de Neel e Chagnon utilizou procedi-

    mentos controversos, metodologias equivo-

    cadas. Pode-se inclusive afirmar que os resulta-

    dos da pesquisa etnogrfica no so confiveis.

    Um dos lados dessa controvrsia fcil de ser

    enfrentado: dificilmente as pesquisas de

    Chagnon sero novamente consideradas legti-

    mas para quem se interessa pela cultura

    yanomami, bem como para a comunidade

    cientfica em geral. Mas h outro lado desse

    debate que ainda se mantm aceso: a im-

    portncia do consentimento livre e esclarecido

    e seus desafios em populaes vulnerveis; a

    fronteira entre pesquisa e tratamento biomdi-

    co; as obrigaes ticas ps-pesquisa em cin-

    cias biomdicas e cincias humanas e o uso de

    informaes secretas, privadas e confidenciais.

    Nesse sentido, o caso do sangue yanomami

    pode ser considerado exemplo paradigmtico

    da controvrsia que envolve a tica em pesquisa

    com seres humanos nas diversas reas do co-

    nhecimento.

    O caso do sangue yanomami nos mostra tam-

    bm a importncia de aproximar diferentes

    campos do conhecimento ao debate sobre tica

    em pesquisa. No Brasil, o tema da tica em

    pesquisa ainda um campo circunscrito aos

    saberes biomdicos, com forte resistncia das

    humanidades em se submeter ao sistema de

    avaliao tica vigente (CEP/Conep)20

    . A

    resistncia no deve ser entendida como ato

    ingnuo de recusa ao controle social da

    pesquisa acadmica, mas como crtica aos fun-

    damentos metodolgicos e epistemolgicos do

    atual sistema de avaliao tica. inegvel que

    o tema da tica em pesquisa deve ser metadisci-

    plinar. No entanto, os critrios de funciona-

    mento dos comits de tica em pesquisa e, em

    especial, as lentes de avaliao da eticidade de um

    projeto de pesquisa, ao estarem assentadas em

    campos disciplinares especficos, so pouco con-

    vidativas a outros saberes. O desafio , ento,

    reconhecer que se o cumprimento de preceitos

    ticos condio de possibilidade para a exe-

    cuo de qualquer projeto de pesquisa no pas,

    tambm preciso assumir a tarefa de imediata-

    mente revisar as regras do jogo, a fim de harmo-

    niz-las aos saberes sociais e tcnicas de pesquisa.

    295 Avaliao tica em pesquisa social: o caso do sangue Yanomami

  • 296Revista Biotica 2007 15 (2): 284-97

    Resumen

    La sangre Yanomami: un desafo para la tica en la investigacin

    Este artculo analiza un caso que es paradigmtico para la temtica de la tica en investigacin:

    la expedicin de James Neel y Napoleon Chagnon entre los grupos Yanomami a fines de la

    dcada de 1960. La expedicin de Neel/Chagnon result en la recoleccin de 12.000 muestra

    de la sangre, que se encuentran almacenadas en universidades de E.E.U.U. dedicadas al

    proyecto Genoma Humano. En este artculo, el caso de la sangre yanomami es el marco para la

    discusin acerca de cuestiones centrales sobre la participacin de poblaciones vulnerables en las

    investigaciones cientficas en las Ciencias Humanas y en la salud: termo de consentimiento libre

    y esclarecido, pago por la participacin en la investigacin, uso y divulgacin de los datos de la

    investigacin considerados secretos para la poblacin investigada.

    Palabras-clave: tica en la investigacin. Poblacin vulnerable. Yanomami.

    Abstract

    The Yanomami blood: evaluation ethics in social research

    This paper analyses a paradigmatic case for the ethics in research with beings human: the socio-

    genetic expedition of James Neel and Napoleon Chagnon among the Yanomami groups in the

    late 1960s. The Neel/Chagnon expedition collected 12.000 blood samples, which are still

    available in American universities dedicated to the Human Genome Project. In this paper, the

    Yanomami blood expedition is a reference case to analyze three key points to the inclusion of

    vulnerable population in scientific researches in Social Sciences and Health Sciences: the

    informed consent, the payment for the participation in the research and the use and

    dissemination of the results which are considered a cultural taboo.

    Key words: Research ethics. Vulnerable population. Yanomami.

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    Contato

    Dbora Diniz [email protected]

    297 Avaliao tica em pesquisa social: o caso do sangue Yanomami