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PROFESSORES DE CIÊNCIAS, SABERES DISCIPLINARES E FORMAÇÃO
CONTINUADA
Eliane Cerdas LABARCE, Fernando BASTOS, Alessandro PEDRO, Bruno Tadashi TAKAHASHI
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Universidade Estadual Paulista (UNESP), Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Formação continuada e desenvolvimento profissional de Professores da Educação Básica Agências financiadoras: CNPq e CAPES
1. Introdução e questões de estudo
O presente trabalho focaliza os saberes disciplinares manifestados e ou construídos por
professores de ciências ao longo de um projeto de formação continuada, procurando discutir o
significado de tais observações em termos de uma reflexão sobre processos de formação
docente.
Reconhece-se hoje que os professores estruturam seu trabalho em aula lançando mão de
diferentes tipos de saberes (saberes experienciais, curriculares etc.). Destacaremos aqui, a título
de recorte, os saberes disciplinares (TARDIF, 2004; GAUTHIER,1998), que correspondem, numa
primeira aproximação, aos conhecimentos que o professor possui a respeito dos construtos
conceituais básicos de determinada disciplina acadêmica, que constitua objeto do ensino escolar
(biologia, química, história ou outra). Pode-se afirmar, no entanto, que os saberes disciplinares
não se restringem apenas ao conhecimento de produtos finais da investigação especializada
(teorias, modelos, leis etc.), já que incluem também as noções epistemológicas do professor, isto
é, suas noções a respeito do desenvolvimento histórico, dos problemas, dos métodos, dos
fundamentos e das perspectivas atuais do campo de conhecimentos a que sua atividade docente
está vinculada (cf. SHULMAN, 1986; CARVALHO; GIL PÉREZ, 2006; CACHAPUZ et al., 2005).
A fim de que a importância dos saberes disciplinares seja explicitada, deve ser ressaltado
que esses saberes são uma das bases para que o professor (a) decida sobre conteúdos de
ensino e sua contribuição formativa esperada (ESPINOZA, 2010, p.16), (b) realize transposições
didáticas (CHEVALLARD, 1995; ESPINOZA, 2010), (c) consiga preparar e dirigir “a aprendizagem
dos alunos” como “investigação” (CARVALHO; GIL PÉREZ, 2006, p.34-35 e 48; CACHAPUZ et
al., 2005, p.61-63), (d) apresente-se diante dos alunos como um orientador capacitado para o
trabalho educativo (CARRASCOSA et al., 1991) e (e) desenvolva progressivamente seu
“conhecimento pedagógico do conteúdo” (SHULMAN, 1986, p.9). Em outras palavras, um domínio
satisfatório da matéria a ser ensinada é fundamental para que o professor qualifique tanto o
processo de ensino e aprendizagem como seu próprio processo de desenvolvimento profissional.
Embora seja consensual a importância atribuída a um adequado conhecimento acerca da
matéria a ser ensinada, a literatura tem revelado que grande parte dos professores possui sérias
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lacunas de formação em relação aos tópicos de conteúdo integrantes do currículo (CARVALHO;
GIL PÉREZ, 2006; MARIN, 2003; FREITAS, 1988; KRASILCHIK, 1987). Tal situação acarreta
dificuldades para que os professores criem e explorem atividades de ensino diferentes das usuais
(debates, projetos, investigações etc.) (TOBIN; ESPINET, 1989, citados por CARVALHO; GIL-
PÉREZ, 2006, p.21). Assim, é importante enfatizar que uma eventual precariedade dos saberes
disciplinares tem consequências sobre a própria metodologia adotada pelo professor (cf.
CACHAPUZ et al., 2005; MIZUKAMI et al., 2002).
Tendo em vista tais desafios, este trabalho procura abordar as seguintes questões: Numa
situação de formação continuada, quais foram algumas das dificuldades conceituais (em biologia,
física etc.) que os professores participantes manifestaram? Como essas dificuldades se
relacionam com a formação anterior dos professores e com suas propostas para o trabalho em
aula? De que maneira as estratégias empregadas pelos pesquisadores possibilitaram a
explicitação e indagação dos saberes disciplinares dos professores?
2. A pesquisa
Este trabalho destaca e analisa alguns dados obtidos no âmbito de um projeto de formação
continuada de professores. O referido projeto foi desenvolvido em uma escola de ensino
fundamental e médio vinculada à rede pública do Estado de São Paulo. Participaram de atividades
do projeto alguns professores, aqui nomeados de acordo com a disciplina que lecionavam (B,
biologia; Q e Q2, química; C e C2, ciências).
Em atendimento às solicitações dos professores, o projeto iniciou-se com o estudo de
atividades práticas que pudessem ser articuladas aos tópicos de ensino previstos no material
curricular oficial, composto pelos cadernos do Aluno (ver, por exemplo, SÃO PAULO, 2011). As
atividades práticas selecionadas foram estudadas através de sua realização e discussão durante
as reuniões do projeto, empregando-se, assim, estratégias de “modelagem”, as quais
proporcionam a vivência dos procedimentos didáticos propostos (JOYCE, 1980, citado por
MARCELO GARCÍA, 1999, p.179-180). Em alguns casos, essas atividades práticas foram
também desenvolvidas em aula pelos professores participantes, e os resultados obtidos foram
posteriormente discutidos.
Numa segunda etapa do projeto, com o intuito de aprofundarmos o debate sobre questões
didático-pedagógicas, foi feita uma análise coletiva sobre objetivos descritos e comentados na
literatura, quanto ao uso de atividades práticas no ensino de ciências (cf. GALIAZZI, 2001).
Na terceira e última etapa do projeto, tendo sido detectada uma dificuldade das
professoras participantes em discutir as atividades práticas em relação a conceitos como
“hipóteses”, “experimentação”, “modelos”, “investigação” etc. (CARVALHO, 2013; CACHAPUZ et
al., 2005; HODSON, 1990; GIL e PAYÁ, 1988), foram organizados estudos e discussões sobre
características da atividade científica (KNELLER, 1980; CHALMERS, 1993).
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A metodologia de coleta de dados foi qualitativa, e incluiu a observação participante,
entrevistas semiestruturadas e análise documental (FLICK, 2009). Não foram autorizadas
gravações de áudio ou vídeo das reuniões do projeto, portanto os acontecimentos que tiveram
lugar em tais situações foram posteriormente reconstituídos através da elaboração de relatórios
de observação, submetidos à crítica, discussão, aperfeiçoamento e validação por parte de todos
os pesquisadores envolvidos. Quanto à análise de dados, esta foi feita mediante procedimentos
de análise de conteúdo (BARDIN, 1977).
3. Algumas considerações teóricas
O movimento em favor da profissionalização da docência, deflagrado nas décadas de1980
e 1990, deu grande destaque à questão dos saberes docentes, discutindo-os em termos de suas
relações com os contextos reais em que os professores devem atuar (TARDIF, 2004). Diante
disso, as pesquisas recentes em formação de professores levam em consideração a existência de
saberes ou conhecimentos que fundamentam o ato de ensinar, e cujo domínio requer a imersão
em situações específicas de formação e trabalho.
Desenvolvendo alguns aspectos dessa discussão, Gauthier et al. (1998, p.20-27)
defendem que o desafio da profissionalização do ensino nos obriga a evitar dois “erros” opostos:
conceber o ensino como um ofício “sem saberes” ou, alternativamente, formular “saberes” sem
uma clara conexão com o ofício em suas condições reais de manifestação.
Quanto ao segundo erro, os autores argumentam que não se podem identificar os saberes
próprios do ensino na ausência do contexto real em que eles evoluem. Trata-se de uma crítica a
uma parte importante das pesquisas acadêmicas em educação, as quais formalizam ideias a
respeito de um ensino que, em última análise, é inexistente (GAUTHIER et al., 1998).
Tendo em vista tal linha de raciocínio, é importante que a pesquisa acadêmica analise o
funcionamento dos saberes docentes - entre eles os saberes disciplinares - nas condições reais
de formação e atuação dos professores.
Shulman, Tardif, Gauthier e outros autores elaboraram categorizações a respeito dos
diferentes saberes ou conhecimentos de que os professores lançam mão em seu trabalho diário
(BORGES, 2001).
Tardif identifica os seguintes tipos de saberes, capazes de orientar as formas de atuação
do professor: (a) “saberes pessoais”, cujas fontes são a família, o ambiente de vida etc.; (b)
“saberes provenientes da formação escolar” anterior à formação universitária; (c) “saberes das
ciências da educação e da ideologia pedagógica”, tais como os saberes construídos sob a
influência dos resultados de pesquisas na área de Didática; (d) “saberes disciplinares”, que se
referem basicamente ao conhecimento sobre a matéria a ser ensinada; (e) “saberes curriculares”,
que dizem respeito ao conhecimento das propostas curriculares oficiais, dos livros didáticos etc.;
(f) “saberes experienciais”, que são adquiridos “no âmbito da prática da profissão docente”, e
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correspondem a saberes formados “de todos os saberes retraduzidos e submetidos ao processo
de validação constituído pela prática cotidiana” (TARDIF, 2004, p.36-53, 61-63).
A construção de saberes disciplinares inicia-se antes do ingresso na universidade, mas sua
fase mais intensa ocorre geralmente através da inserção do futuro professor em um curso de
graduação. Nota-se porém que a formação inicial de professores é muitas vezes falha quanto a
garantir um domínio adequado da matéria a ser ensinada (KRASILCHIK, 1987; RABONI, 2002;
CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2006; MOREIRA, 2014). Um dos fatores para isso é a infindável
persistência das abordagens tradicionais no âmbito do ensino superior, as quais impedem que o
graduando desenvolva uma aprendizagem significativa ou significativa crítica (MOREIRA, 2014).
Outro problema correlato é destacado por Carvalho & Gil-Perez (2006). Grande parte das
atividades de formação continuada preocupa-se principalmente com os ‘saberes das ciências da
educação e da ideologia pedagógica’ (etapas do desenvolvimento cognitivo dos alunos, avaliação
da aprendizagem etc.), admitindo, implicitamente, que os saberes disciplinares já foram
adequadamente ‘proporcionados’ durante a etapa de formação inicial dos professores. Assim, há
inúmeros casos em que essas atividades de formação continuada simplesmente passam ao largo
da discussão sobre conhecimentos científicos do campo de referência.
Conforme já salientado anteriormente, os saberes disciplinares incluem algumas noções
de ordem epistemológica (SHULMAN, 1986), as quais permitem ao professor compreender o que
é a ciência e como ela funciona. Tais noções são fundamentais para que professor modifique suas
aulas em busca de abordagens didáticas críticas e diferenciadas (CACHAPUZ et al., 2005, p.61-
63). Entretanto, os currículos do ensino superior muitas vezes não incluem discussões sobre
história da ciência, filosofia da ciência e relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente,
ao mesmo tempo em que acolhem metodologias que ensinam “ciência” de maneira “não científica”
(WIEMAN, 2013, p. 292, citado por MOREIRA, 2014, p.8-9). Isso contribui para que inúmeros
estudantes de graduação fiquem presos a concepções de senso comum a respeito da atividade
científica (CACHAPUZ et al., 2005, p.38-49), e sofram o lastro de tais concepções quando
solicitados a atuarem como professores.
Finalmente, é preciso reforçar que os saberes empregados por professores em seu
trabalho diário são de naturezas variadas (TARDIF, 2004), por isso não se pode esperar que a
formação inicial ou continuada de professores se fundamente apenas na construção de um tipo
privilegiado de saberes (saberes “disciplinares” versus saberes “das ciências da educação”,
versus saberes “experienciais” etc.). Estamos colocando essa observação para deixar claro que o
presente trabalho, apesar de estar dedicado à temática dos saberes disciplinares, não minimiza a
importância de outras discussões referentes à formação e ao trabalho do professor.
4. Resultados e discussão
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No início do projeto, as professoras participantes mostraram-se interessadas
principalmente por sugestões de atividades práticas de Biologia, Química e Ciências, que
pudessem ser realizadas em aula e complementassem o currículo oficial obrigatório do estado de
São Paulo. Assim, por interesse compartilhado de pesquisadores e professores, o trabalho
colaborativo que então se desenvolveu caracterizou-se por dois focos principais: (a) o estudo
permanente de possibilidades para a implementação do ensino prático; (b) uma abordagem
calcada na discussão de determinados conteúdos e ‘situações de aprendizagem’ propostos nos
cadernos do Aluno, material didático básico através do qual o currículo oficial do Estado de São
Paulo é implementado (ver, por exemplo, SÃO PAULO, 2011).
Embora os pesquisadores pretendessem que as discussões em torno das atividades
práticas contemplassem aspectos didático-pedagógicos do trabalho em aula, diálogos dessa
natureza dificilmente ocorreram durante grande parte das reuniões, pois esbarrávamos em muitas
dúvidas e perguntas das professoras sobre as explicações científicas para os fenômenos
observados, tornando-se esse o foco principal do processo.
Consideremos, para começar esta análise de dados, alguns comentários das professoras
participantes a respeito de sua formação inicial.
B relatou que cursara o Ensino de 1º e 2º Graus “com muito sacrifício”, em escola pública
da zona rural e, em razão de tais circunstâncias, não obteve uma boa formação de nível básico.
Afirmou também que o curso superior que frequentara (Ciências com Habilitação em Biologia,
complementado depois com uma Habilitação em Matemática) foi “falho” em vários aspectos: as
disciplinas de Zoologia “foram muito ruins” (não aprendera “quase nada”), diversos tópicos de
Genética e Evolução foram mal trabalhados e quase não havia “aulas práticas”. Contou ainda que,
por influência do ensino deficiente em algumas disciplinas de graduação, não gostava de
determinadas áreas da biologia, nem de ensiná-las aos alunos (notar aqui o prejuízo direto à
atuação profissional de B). Finalmente, afirmou que teve que aprender muitos dos conteúdos do
currículo escolar por conta própria, utilizando como fonte de informação os próprios materiais
didáticos dos alunos, representados, na ocasião, pelos cadernos do Aluno. Tal descrição de B,
acerca da precariedade de seus saberes disciplinares, foi posteriormente confirmada durante as
reuniões de trabalho do projeto. Tratava-se pois de uma profissional com muitas lacunas em sua
formação inicial, reconhecidas abertamente por ela mesma.
C era formada em Fisioterapia. Pouco comentou a respeito de sua experiência no ensino
superior, mas, em certa ocasião, afirmou não saber “nada de química”, porque não tivera a
oportunidade de estudar essa disciplina nem no ensino médio (isto é, no curso de magistério de
nível médio), nem no curso de graduação. Perguntamos, então, como era possível “não ter tido
química no curso de fisioterapia”. Ela respondeu que estudara apenas “bioquímica” e
“farmacologia”, e não a “química”. Assim, parecia entender a química, a bioquímica e a
farmacologia como áreas que não possuem relações entre si. Diante de tais falas, concluímos que
o ensino de química recebido por C na universidade não proporcionara a aprendizagem
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significativa de conceitos químicos, mas apenas a memorização mecânica de informações
fragmentadas (MOREIRA, 2014), daí resultando a percepção manifestada pela professora.
Outra questão sobre a qual as professoras se pronunciaram foi a respeito de sua formação
para o trabalho com conteúdos de história da ciência, tendo em vista que esses conteúdos vêm
sendo propostos em vários currículos oficiais e livros didáticos. B, C e Q relataram ter tido pouca
ou nenhuma oportunidade de contato com estudos de história da ciência, tanto durante o período
de graduação quanto posteriormente, isto é, em cursos, oficinas ou palestras de formação
continuada. Apenas Q citou um curso que frequentara, no qual havia sido abordada a história da
elaboração da classificação periódica “dos elementos químicos”.
Passemos agora à apresentação e análise de alguns episódios registrados ao longo do
projeto.
Durante uma atividade de observação de tecidos vegetais ao microscópio (cortes de folhas
e caules, folhas de Elodea, epiderme de cebola), a professora B fez comentários e perguntas que
evidenciaram que ela apresentava várias lacunas em seus conhecimentos básicos sobre células e
tecidos, pelo menos no que se refere aos saberes necessários à orientação dos alunos em
situações de atividade prática. Embora possuísse Habilitação em Biologia, B inicialmente não
soube localizar, nas imagens fornecidas pelo microscópio, as células e os cloroplastos, ou as
estruturas que correspondiam a tecidos. Nossa impressão foi a de que as dificuldades de B não
estavam apenas na compreensão descritiva, mas também na compreensão conceitual. Notamos
ainda que B não estava familiarizada com o uso do microscópio. Não obstante, após a vivência
desses momentos de observação e diálogo, B mostrou-se mais segura quanto ao tema proposto,
ficou entusiasmada com a nova possibilidade e decidiu realizar uma atividade de microscopia de
células vegetais com seus alunos. Não quis, entretanto, conduzir essas aulas sem o nosso apoio,
assim solicitou a participação de um dos pesquisadores. Isso foi feito, e o desempenho de B
durante as referidas aulas demonstrou que ela de fato melhorara seus conhecimentos sobre o
assunto, conseguindo orientar satisfatoriamente o trabalho dos alunos. Esses episódios
evidenciaram, entre outras coisas, o caráter livresco dos conhecimentos que B havia adquirido na
universidade, possivelmente com algum grau de prejuízo para a compreensão conceitual (cf.
KRASILCHIK, 1987, p.52-53). Ficou claro também que, sem o processo deflagrado pelos
pesquisadores, B não teria tido a ideia de propor aos alunos observações ao microscópio ou, pelo
menos, não se arriscaria a desenvolver uma aula com tais características.
Durante a realização de uma atividade prática de cromatografia em papel, perguntamos às
professoras se as folhas da planta escolhida para ser utilizada no experimento (Setcreasia) -
folhas estas que são de coloração predominantemente roxa - realizavam fotossíntese. B opinou
que não, pois “não são verdes, então não têm clorofila”. Na continuidade, perguntamos a B se
achava que poderiam existir plantas que não possuíam clorofila e não realizavam a fotossíntese.
Ela confirmou que sim. Diante disso, questionamos se a capacidade de realizar fotossíntese não
seria “uma característica geral de todas as plantas”, isto é, se a fotossíntese não seria “um
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processo de nutrição típico das plantas”. B ficou em dúvida e pôs-se a pensar. Após alguns
segundos, fomos em socorro a ela, lembrando que a fotossíntese era o processo através do qual
as plantas conseguiam obter energia, portanto todas as plantas dependiam da fotossíntese e
precisavam de clorofila. Na continuidade do processo, foi realizado o experimento de
cromatografia, cujo resultado sugeriu que as folhas da Setcreasia, embora predominantemente
roxas, também continham pigmentos verdes (que poderíamos supor ser as clorofilas “a” e “b”).
Terminada tal atividade, B quis realizar uma nova cromatografia, utilizando agora um macerado de
pétalas de hibisco (Hibiscus). Assim foi feito e, nessa oportunidade, B, ao emitir sua previsão
acerca do resultado do experimento, procurou fundamentá-la em algum tipo de relação ou
conceito (cf. CARVALHO, 2013); disse então que as pétalas “são para atrair os insetos”, por isso
“não devem ter a ver com fotossíntese, clorofila”. Cabe ressaltar que essa segunda cromatografia
em papel retornou basicamente o resultado previsto por B. A professora Q não pôde estar
presente o tempo todo de transcurso das atividades, mas acompanhou o processo e opinou em
alguns momentos. Note-se portanto que, durante os episódios em questão, as professoras (a)
foram solicitadas a elaborar previsões e fundamentá-las; (b) tiveram suas ideias discutidas e
confrontadas com conhecimentos teóricos e com resultados de experimentos; (c) tiveram a
liberdade de realizar novas investigações práticas; (d) apresentaram falas mais elaboradas
conforme os trabalhos evoluíram (cf. CARVALHO, 2013; CACHAPUZ et al. 2005).
Antes do início do projeto, a professora B, seguindo uma sugestão de atividade existente
no “Caderno do Aluno”, levara seus alunos do 6º Ano para uma visita às cercanias da escola. B
opinou que, durante essa atividade, os alunos "se comportaram bem", mas sua própria atuação
não havia sido satisfatória, pois não sabia “identificar as plantas” que existiam nas ruas e praças
do bairro. Chegou a perguntar se não poderíamos indicar algum livro ou guia a respeito. Assim,
para ela, o conteúdo de ensino relevante tinha a ver com os nomes dos organismos, ficando a
dúvida sobre o destaque que ela atribuía aos aspectos ecológicos e adaptativos. Posteriormente
(e já na época do projeto), B levou esses mesmos alunos para uma visita a um Jardim Botânico.
Essa visita foi feita a fim de que B pudesse coletar dados para um TCC de Especialização. Um
dos pesquisadores acompanhou-a durante esse processo. O Jardim Botânico propunha às
escolas diversas atividades, entre elas a caminhada através de uma trilha em mata de cerrado.
Antes dessa caminhada, B solicitou aos alunos que respondessem a um questionário. O
questionário era composto por perguntas que cobravam apenas definições de conceitos (“O que é
bioma?”, “O que é cerrado” etc.). Esse fato deu pistas, novamente, sobre o tipo de conteúdos que
B valorizava (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2006, p.28, 59; KRASILCHIK, p.52-53). Terminada a
atividade com o questionário, os alunos foram conduzidos através da trilha. Esse trabalho foi feito
pelos monitores do Jardim Botânico, e B deixou totalmente a cargo deles a tarefa de mostrar e
explicar. Ficou-nos a impressão de que a visita era, em parte, para ela própria aprender.
Posteriormente, em um momento em que já havia examinado as respostas dos alunos ao
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questionário, B afirmou estar decepcionada, pois, na opinião dela, o questionário mostrou que os
alunos “não sabem nada”.
Houve duas ocasiões em que realizamos, por solicitação das professoras, atividades de
observação da estrutura de flores (de hibisco, Hibiscus, e de lírio, Lilium). Vejamos como ocorreu
o trabalho com a flor de lírio. Notamos inicialmente uma grande preocupação das professoras B e
C em identificar e nomear as diversas partes da flor (KRASILCHIK, 1987, p.52-53). A fim de dar
conta dessa tarefa, utilizaram-se de ilustrações existentes em livros didáticos. B teve dificuldade
em compreender aspectos descritivos - por exemplo, que conjunto de estruturas constituíam o
gineceu e o androceu. Aos poucos, porém, as professoras começaram a fazer perguntas e
formular hipóteses sobre o significado biológico das estruturas que estavam observando
(CARVALHO, 2013). Algumas dessas discussões evoluíram para questionamentos sobre as
funções das estruturas em estudo. E, a partir de certo momento, as professoras passaram a
desmembrar e cortar as flores, como forma de buscar dados que dessem respostas a suas
perguntas.
Desse modo, a observação da estrutura de flores ensejou a discussão de conceitos de
biologia vegetal. Os pesquisadores argumentaram, antes de tudo, que o mais relevante não eram
os nomes de determinadas estruturas encontradas nos principais órgãos vegetais, e sim ter uma
noção sobre como esses órgãos atuavam na sobrevivência e adaptação da planta (cf.
KRASILCHIK, 1987, p.52-53). No caso do estudo da flor - opinaram -, interessava que o aluno
compreendesse, em linhas gerais, a dinâmica e a importância do processo de reprodução em
plantas angiospermas. Assim, durante a observação da flor de hibisco, um pesquisador lembrou
que, uma vez ocorrida a polinização, o ovário se desenvolve “e forma o fruto”. A professora B
mostrou-se então surpresa: “Mas... o hibisco tem fruto?”. Em outro momento, as falas de B
evidenciaram que, na concepção dela, havia plantas [angiospermas] que não possuíam flores.
Notamos que C também partilhava dessa visão. Assim, aparentemente, para essas professoras, o
protótipo de flor era o da flor vistosa de floricultura, e protótipo de fruto, o dos frutos carnosos e
adocicados que são consumidos nas refeições (em outras palavras, talvez concebessem flores e
frutos de maneira antropocêntrica, sem dar destaque ao significado biológico dessas estruturas).
C, por sua vez, ao observar a flor de lírio, localizou nas ‘pétalas’ determinadas estruturas que, em
sua opinião, deveriam ser “para captar água da chuva e a planta não ressecar”. Essa fala sugeriu
que C que não tinha clareza de que a absorção de água pela planta é primordialmente realizada
através das raízes. Foi então necessário que os pesquisadores apresentassem generalizações
sobre o assunto, argumentando, por exemplo, que flores, frutos e sementes são as estruturas de
reprodução das plantas angiospermas, de modo que “todas as plantas angiospermas possuem
[obrigatoriamente] flores e frutos”. Nem B nem C faziam relações entre estrutura e funcionamento
ao considerar o organismo vegetal, por isso uma breve discussão foi promovida na ocasião, sobre
as funções dos órgãos vegetais (raiz, caule, folha, flores, frutos), utilizando-se para tanto de uma
estratégia de fomentar perguntas e diálogos. Nesse momento, quando foram discutidas as
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funções da folha, apontando-se que aberturas existentes nela (estômatos) eram importantes para
a entrada do oxigênio, B afirmou ainda que “não sabia que a planta respirava”.
Procuremos agora fazer uma síntese de alguns desses dados. Originalmente, a professora
B entendia que plantas não respiram, que plantas que não são verdes não realizam a
fotossíntese, que plantas angiospermas podem ou não apresentar flores e frutos etc. Tais
concepções expressam um conhecimento biológico fragmentado, em que as diversas informações
parciais não estão suficientemente organizadas em termos de ideias gerais, princípios, conceitos
ou teorias. A professora C dialogou menos que B durante os estudos sobre plantas, mas
percebemos que também possuía muitas lacunas em seus saberes disciplinares, pois não
propunha desenvolvimentos e questionamentos que avançassem além do estágio de discussão
em que B se encontrava. Diante de tais constatações, ficou claro que B e C encontrariam sérias
dificuldades para desenvolverem aulas sobre plantas com seus alunos. No decorrer do projeto,
porém, com a realização de diversas atividades práticas e estudos, ambas as professoras
melhoraram seus conhecimentos em biologia vegetal. Isso ficou evidenciado mais tarde, numa
visita a um Jardim Botânico, realizada conjuntamente por professores e pesquisadores
participantes do projeto. Nessa oportunidade, as professoras B e C, ao comentarem e
perguntarem sobre as plantas encontradas no local, apresentaram falas mais elaboradas do que
anteriormente. Verifica-se, pois, que a estratégia de trabalhar em torno da realização e discussão
de atividades práticas surtiu algum efeito. Outro aspecto a ser aqui ressaltado é a concepção das
professoras a respeito do que conta ou não como conteúdo relevante em biologia. Em diversos
momentos B e C mostraram estar preocupadas, antes de tudo, em dominar nomes e ou definições
a serem possivelmente ‘repassados’ aos alunos. Assim, pareciam conceber o conhecimento
científico como uma coleção de fatos, descrições, termos técnicos, classificações etc. (cf.
KRASILCHIK, 1987, p.52-53; MOREIRA, 2014). Entendemos que tal concepção origina-se da
própria experiência escolar do professor, não apenas no âmbito do ensino básico, mas também - e
principalmente - no âmbito do ensino superior (cf. CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2006, p.26-30). O
problema é que essa visão distorcida influencia o professor na tarefa de decidir o que vai oferecer
e cobrar de seus alunos.
Um dos episódios mais interessantes para a presente discussão ocorreu durante a
realização de um experimento sobre variação do volume de uma amostra de ar conforme a
temperatura. Uma garrafinha de vidro em cuja boca havia sido afixado um balão de látex foi
alternadamente aquecida e resfriada em bacias contendo água fervente e água gelada. Foi
solicitado aos professores que desenhassem numa folha de papel o que achavam que estava
acontecendo com a amostra de ar. As professoras B e C2 (C2 era formada em Ciências
Biológicas) entenderam que o aumento do volume da amostra de ar se dava pela “dilatação das
moléculas” (cf. MORTIMER, 2000). O professor Q2, formado em Química e aluno de um curso de
mestrado da área ‘dura’, elaborou um desenho segundo o qual o resfriamento do ar fazia com que
as partículas deixassem de ter movimento e se acumulassem no fundo da garrafa. Assim, nenhum
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dos professores participantes conseguiu utilizar, de modo satisfatório, um modelo cinético de
partículas, a fim interpretar os fenômenos observados ao longo do experimento.
Em certa ocasião, por solicitação das professoras, realizamos uma atividade prática de
extração do DNA de frutas. Ao término desse experimento, a amostra de DNA aparece como uma
massa viscosa. B perguntou, então, o que veríamos se observássemos essa massa ao
microscópio. A expectativa dela era a de que iria enxergar algo semelhante aos esquemas
encontrados em livros, nos quais são ‘mostrados’ os átomos, as ligações químicas etc. Assim,
solicitamos à outra professora presente, Q, que arriscasse uma hipótese sobre o que seria
observado ao microscópio. Q respondeu com insegurança: “Nada?”. Feitos tais questionamentos,
propusemos que B e Q realizassem concretamente o teste imaginado (observar a amostra de
DNA ao microscópio). Na imagem apareceram vários ‘corpúsculos’ com contornos irregulares,
mas não ‘a molécula de DNA’. Após essa observação, B insistiu se, com um microscópio “bem
poderoso”, não seria possível ver o DNA. Argumentamos que não, pois o esquema que aparece
nos livros corresponde a um modelo, modelo este que não provém da observação direta, mas de
um longo processo em que os cientistas foram imaginando como poderiam ser as estruturas
submicroscópicas de diversos compostos químicos, e testaram essas ideias sempre por meio de
evidências indiretas. Pareceu-nos, assim, que as professoras tinham dificuldades em
compreender que a ciência trabalha com modelos.
A precariedade dos saberes disciplinares do professor tende a fazer com que ele fique
refém dos livros didáticos e das ‘apostilas’, e tenha dificuldade em analisar tais materiais de
maneira crítica (FRACALANZA; MEGID NETO, 2006; KRASILCHIK, 1987, p.47-49).
Consideremos os seguintes exemplos, referentes ao modo como o material didático oficial do
governo do estado de São Paulo transmite visões equivocadas a respeito da atividade científica:
(1) nos materiais dedicados à abordagem de temas de genética, as informações sobre a história
da elaboração do modelo de dupla hélice para o DNA se restringem à afirmação isolada de que,
em 1953, “Francis Crick e James Watson publicaram um artigo na revista Nature no qual sugeriam
um modelo para a molécula do DNA”; em seguida, perguntas são feitas ao aluno, supostamente a
fim de que ele pesquise outras informações e discussões a respeito do tema, caso queira e tenha
condições; (2) em um dos cadernos “do Aluno” (Cad. Biol., v.2, n.2, p.18-19) há um exercício em
que se supõem cruzamentos múltiplos entre cabras pertencentes a um mesmo rebanho (todos os
machos cruzando com todas as fêmeas); contudo, em total afronta a princípios da ética e do bom
senso, as “cabras” do exercício recebem os nomes de cientistas famosos (“James Watson”,
“Francis Crick”, “Thomas Morgan”, “Rosalind Franklin”, “Barbara Mclintock”, “Lynn Margulis”);
(3) numa proposta de atividade sobre conservação de alimentos (Cad. Biol., v.1, n.1, p.29-30),
bem como em outros pontos do material didático oficial, há definições e ‘insinuações’ erradas
sobre o que seria uma hipótese. Na etapa inicial do projeto, as professoras B, C e Q não haviam
atinado para as inadequações que afetavam os exemplos aqui referidos [“(1)”, “(2)” e “(3)”].
Contudo, após diversas discussões e estudos realizados ao longo do projeto, com destaque para
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os estudos em que foram discutidas características da atividade científica (terceira etapa do
projeto), as mesmas professoras passaram a ser mais críticas em relação ao material didático que
eram obrigadas a adotar, conseguindo apresentar alguns argumentos a respeito das deficiências
desse material.
5. Conclusões
Os dados mostram que os professores participantes da pesquisa possuíam diversas
lacunas e inadequações em seus saberes disciplinares, as quais provavelmente se originaram,
em grande parte, de deficiências dos cursos de formação inicial. Essas lacunas e inadequações
tiveram consequências sobre a estruturação do ensino, pois o professor, ao não dominar certos
conteúdos, evita abordagens diferenciadas (atividades práticas, debates etc.). Os pesquisadores
utilizaram a estratégia de realizar e discutir numerosas atividades práticas, em conjunto com os
professores participantes. Essa estratégia foi inicialmente positiva, no sentido de estimular a
explicitação dos saberes disciplinares dos professores e criar situações para que tais saberes
pudessem ser discutidos, ampliados ou modificados. Notou-se também que as atividades do
projeto favoreceram algumas tentativas de novas abordagens em aula. Por outro lado, o foco em
atividades práticas fez com que os professores participantes se fixassem mais em suas lacunas
de conhecimento científico e não na discussão sobre aspectos pedagógicos da ação didática,
obrigando os pesquisadores a elaborar novas propostas de condução do projeto.
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