Problematizando uma estratégia multimetodológica...

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Olhar de Professor Universidade Estadual de Ponta Grossa [email protected] ISSN (Versión impresa): 1518-5648 BRASIL 2004 Taís Ferreira PROBLEMATIZANDO UMA ESTRATÉGIA MULTIMETODOLÓGICA DE PESQUISA EM TEATRO E EDUCAÇÃO Olhar de Professor, año/vol. 7, número 001 Universidade Estadual de Ponta Grossa Ponta Grossa, Brasil pp. 43-66 Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal Universidad Autónoma del Estado de México http://redalyc.uaemex.mx

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Olhar de Professor Universidade Estadual de Ponta [email protected] ISSN (Versión impresa): 1518-5648BRASIL

2004 Taís Ferreira

PROBLEMATIZANDO UMA ESTRATÉGIA MULTIMETODOLÓGICA DE PESQUISA EM TEATRO E EDUCAÇÃO

Olhar de Professor, año/vol. 7, número 001 Universidade Estadual de Ponta Grossa

Ponta Grossa, Brasil pp. 43-66

Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal

Universidad Autónoma del Estado de México

http://redalyc.uaemex.mx

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Problematizando uma EstratégiaMultimetodológica de Pesquisa em Teatro

e Educação1

Problematizing A multimethodologicalResearch’s Strategy In Theater And

Education

Taís Ferreira*

RESUMO

Neste artigo, que se caracteriza como um recorte de minha dissertação de mestrado,reflito acerca das escolhas metodológicas que compuseram o estudo empírico de recep-ção que propus junto a um grupo de crianças espectadoras de teatro infantil. Subdividoa escrita em quatro seções que contemplem alguns dos procedimentos metodológicosimplicados na construção da estratégia multimetodológica traçada. Na primeira, discor-ro sobre a inspiração de cunho etnográfico que baliza alguns fazeres em campo junto àscrianças e também os olhares constituídos por mim junto a elas. Também descrevo ossujeitos e contextos envolvidos na pesquisa de campo. Na seguinte, falo do lugar queconsidero como meu, enquanto professoratriz de teatro: do uso dos jogos teatrais comometodologia que possibilitaria, a partir de uma linguagem que não a oral, e sim a gestuale cisnestésica, a invenção de dados e materialidade empírica profícuos à pesquisadora eao tema-objeto centrado no teatral. A proposta de coletar desenhos e registros gráficosdas crianças, considerados forma de expressão construtora de significados e sentidos, éproblematizada na terceira seção. Na última parte, dedico-me a refletir acerca das impli-cações das entrevistas e do formato escolhido para realizá-las junto às crianças especta-doras, das relações de força que atravessaram nosso estar junto, do narrar-se e rememorarenquanto mecanismos e técnicas de si, que constituem as posições ocupadas pelossujeitos.

Palavras-chave: metodologias - teatro - educação - pesquisa empírica.

1 Este texto é fruto das reflexões e discussões que tenho realizado como mestranda doPPGEdu/UFRGS, na linha Estudos Culturais em Educação, sob orientação da ProfessoraDra. Elisabete Maria Garbin, na qual tenho pesquisado acerca das experiências das criançasespectadoras com o teatro infantil.*Bacharel em Artes Cênicas pela UFRGS. E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

In this article, which is part from my master degree dissertation, I reflect on themethodological choices that formed the empiric study reception that I proposed alonga group of children expectators of childish theater. I subdivide this writing in foursections that point to some methodological procedures linked to the construction of themultimethodological strategy traced. Firstly I explain about the inspiration ofethnographic perspective, which mark some doings in field along children and also theobservations constituted by me on them. I also describe the subjects and the contextsinvolved in the field research. Secondly, I expose the place I consider mine, as theater’s‘acting teacher’: the use of the theater’s plays as methodology that would enable by anon oral but a gesture and kinesthetically language, the invention of data and empiricmateriality concerning to the researcher and to the subject-theme centered in the theatricway. The proposal of collecting drawings children’s graphic registration, considered asa form of expression of composed of meanings and senses, is problematized on thirdsection. The last part, I present the reflections about the implications of the interviewsand the chosen format to accomplish them close the children spectators, the powerrelations those marked our being together, of narrating and remembrancing while strategiesand techniques of itself, those constitute subjects’ positions.

Word key: methodologies - theater - education - empiric research.

A um ponto - não determinável -dos percursos que percorri e percor-ro, quis compreender a(s)experiência(s) que envolviam o tea-tro, seus fazeres, suas possibilidadesestéticas e sensíveis e as crianças. Noentendimento da total impossibilida-de da compreensão e de qualquermodo absoluto ou essencial de apre-ender o(s) infantil(is) em sua relaçãocom o teatro, propus-me a estar jun-to. Olhar junto com o público infan-til. Até agora tinha estado junto comcrianças em várias posições de sujei-to que ocupei e ocupo em relação aoteatral: a atriz jogando, a espectadoraassídua e crítica que me constituí atra-vés das experiências com e no teatroe em outras instâncias, a

professoratriz que garimpa nos e comseus alunos o teatral, a estudante aquem move a vontade de saber...

Obstáculos: permeada e constitu-ída que estou /sou pelos discursos epráticas que de mim fizeram o outro,assumo a intransponibilidade entreelas - crianças - e eu - adulta, o quenão me faz desistir e sim valorizar osinstantes em que não olho para as cri-anças, nem sobre seus olhares, masjunto delas. Movimento de assalto,no qual a busca pela outridade assu-me o caráter de sua impossibilidadeinerente, desejando correr os riscosda proximidade, surpreender-me como banal, ver de outros modos o já vis-to tantas vezes: crianças em relaçãocom o teatro.

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Na tentativa de contemplar asvontades (por vezes pretensiosas) depesquisa que me mobilizavam e mobi-lizam, arrisquei-me a traçar algo quedenomino aqui como uma estratégiamultimetodológica de construção dedados. Sarmento (2003) reflete sobrea questão da coleta de dados e da “in-venção dos dados” pelo pesquisadorque se vale de metodologias de pes-quisa qualitativa de cunho etnográficode uma forma muito esclarecedora:

A recolha desse materiallingüístico (dados) é quase sem-pre realizada num contexto co-municativo, no qual o investiga-dor conversa, pergunta, entrevis-ta, realiza a interação verbal quelhe permite apreender e interro-gar os múltiplos sentidos que secruzam nas escolas. Deste modo,o investigador etnográfico não‘colhe dados’, como por vezes aurgência da frase-feita convidaa dizer ou escrever. O investiga-dor produz muitos dos seus mate-riais - as palavras das entrevis-tas, por exemplo - na interaçãosocial com os atores do terreno:‘Eles não são dados, mas cria-dos’. De modo semelhante, as si-tuações observadas sãotextualizadas sob a forma de no-tas de campo: mais próprio en-tão chamar estes (não) dados de‘cenas’ do ‘teatro da vida’.(SARMENTO, 2003, p. 167).[grifos, aspas e parênteses doautor].É dessa mesma forma que encaro

os textos (verbais, escritos, visuais,corporais, cinestésicos) que criamose construímos, as crianças especta-doras e eu, durante o estar junto dotrabalho de pesquisa.

Há de se pensar, também, as impli-cações que determinados caminhosque compuseram o traçado da menci-onada estratégia multimetodológicaacarretaram, pois as escolhas e suafeitura nelas mesmas encerrampotencialidades que poderiam, ounão, vir a ser “ou isto ou aquilo”; ou,ainda, nem isto nem aquilo... Portan-to, problematizo as escolhas que ocompuseram (o caminho e seu traça-do) e a conseqüente construção damaterialidade de meu percurso pes-quisa. Trago a expressão estratégiamultimetodológica por julgar que mevalho de diferentes procedimentos einstrumentos metodológicos, prove-nientes de diferentes campos e áreasdo saber, para compor uma estratégiaque tem a finalidade de construirmaterialidades e sensações para asquais voltar-se-ão os olhares da pes-quisadora.

Assim, dou seqüência à escritasubdividindo-a em quatro seções quecontemplam alguns dos procedimen-tos metodológicos implicados naconstrução da estratégia traçada. Naprimeira, discorro acerca da inspira-ção de cunho etnográfico que balizaalguns fazeres em campo junto às cri-anças e também os olhares constituí-dos por mim junto a elas. Na seguin-te, falo do lugar que considero comomeu, enquanto professoratriz de tea-

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tro: do uso dos jogos teatrais comometodologia que possibilitaria, a par-tir de uma linguagem que não a oral, esim a gestual e cisnestésica, a inven-ção de dados e materialidade empíricaprofícuos à pesquisadora e ao tema-objeto centrado no teatral. A propos-ta de coletar desenhos e registros grá-ficos das crianças, considerados for-ma de expressão2 legítima e constru-tora de significados e sentidos, éproblematizada na terceira seção. Naúltima parte, dedico-me a refletir so-bre as implicações das entrevistas edo formato escolhido para realizá-lasjunto às crianças espectadoras, dasrelações de força que atravessaramnosso estar junto, do narrar-se erememorar enquanto mecanismos etécnicas de si, que constituem as po-sições ocupadas pelos sujeitos.

Entretanto, antes de iniciar essasproblematizações mais pontuais e re-ferentes à prática junto às criançassujeitos e personagens desta histó-ria, gostaria de levantar um aspectoque me parece ser de grande impor-tância ao entendimento que tenho dotrabalho e de como constituímo-nos,

as crianças e eu, no momento mesmode nosso estar juntos.

Quando jogávamos, conversáva-mos e desenhávamos sobre teatro,narrando nossas experiências, nossosquereres, gostares e desgostares, es-távamos também nos constituindo emrelação ao teatro, tema central de nos-sos debates e embates no curto espa-ço-tempo em que estivemos juntos.Lembrando Larrosa (1995), ao referir-se ao pensamento de Foucault em seuestudo, posso inferir que as práticasque realizamos - com base nessa es-tratégia multimetodológica de cons-trução de dados - podem ser conside-radas “tecnologias do eu”. Atravésdelas as crianças constituíram-se, nomomento mesmo em que as realizáva-mos, enquanto sujeitos espectadoresde teatro. Ao brincar, contar, desenhar,perguntar, jogar, responder e criar, in-ventavam-se e percebiam-se tambémcomo os espectadores que estão a ser,que (des)constroem-se a cada dia desuas vidas, nas mais diferentes ins-tâncias e em relação a artefatos denaturezas diversas.

Através das atividades que

2 Em relação ao controverso termo expressão, principalmente no campo da arte-educação,posiciono-me junto ao caráter que Larrosa confere ao conceito e sua operatividade, quandonos diz que “Seria possível, pois, considerar a estrutura geral do expressar-se como adobradura reflexiva, sobre si próprio, dos procedimentos discursivos que constituem osdispositivos de construção e mediação da experiência de si. ( . . . ) O que ocorre, antes, é que,ao aprender o discurso legítimo e suas regras em cada um dos casos, ao aprender a gramáticapara auto-expressão, constitui-se ao mesmo tempo o sujeito que fala e sua experiência desi. Não se trata que a experiência de si seja expressada pelo meio da linguagem, mas, antes,de que o discurso mesmo é um operador que constitui ou modifica tanto o sujeito quanto oobjeto da enunciação, neste caso o que conta como experiência de si.” (LARROSA, 1995,p. 67-8).

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vivenciamos juntos, criamo-nos: eupesquisadora, professoratriz; as cri-anças assumindo posições de sujei-tos espectadores. Constituímo-nos,através dos citados “mecanismos deprodução da experiência de si”, sujei-tos junto à linguagem teatral, em rela-ção (com) a ela. “A criança produz tex-tos. Mas, ao mesmo tempo, os textosproduzem a criança” (LARROSA,1995, p. 46). E suas identidades e sub-jetividades como espectadores pro-duzem-se concomitantemente à pro-dução dos gestos, sons, falas, riscose rabiscos, movimentos decorrentesdas práticas que brincamos juntos.

1. OBSERVANDO E(RE)CONTANDO - OLHARESETNOGRÁFICOS PÓS-MODERNOS

Dia 1, Bento Gonçalves, 17 desetembro de 2003Após um mês, encontrávamos no-vamente. Iniciamos as atividadescom uma conversa, em que fiz per-guntas e também fui questiona-da, na qual trocamos experiênci-as e vivências, narrando uns aosoutros nossas histórias e inven-tando a nós mesmos. Ao pergun-tar se sabiam porque estávamosali, as respostas foram variadas:para brincar, para ‘matar aula’,para fazer entrevista, para jogarjogos, para fazer teatro. Muitasvezes, durante os cinco dias deatividades, ouvi de várias crian-ças que estávamos ali ‘matandoaula’, ou seja, este espaço era um

outro espaço que não a aula co-tidiana e todos os dispositivos dedisciplinamento e regulação quea constituem. Mesmo que estivés-semos dentro da escola, vigiadose observados, e que tenhamosdesenvolvido nestes poucos diasmecanismos próprios dedisciplinamento e regulação (di-ferentes dos da sala de aula), asatividades que realizávamos nes-te espaço-tempo eram lúdicas,não evocavam conteúdos traba-lhados pelas professoras nas sa-las de aula. Enfim, para as crian-ças, o que fazíamos ali, ocupan-do um tempo em que deveriamestar debruçados em suas clas-ses, definitivamente, não eraaula. Por isso, ‘matávamos aula’.Propus os jogos previstos no pla-no de ação, que foram acolhidospela grande maioria das crian-ças sem resistência alguma e atécom bastante entusiasmo. Os doismeninos da quarta série mostra-ram-se um pouco menos dispos-tos que os outros colegas. Sem-pre realizei os jogos em dois gru-pos, em que um faria e outro esta-ria observando, na posição deplatéia. Em determinado momen-to, em que as crianças todas fala-vam ao mesmo tempo, gritavam eagitavam-se, a Coordenadora doturno, que por ali passava, inter-veio. Sentou-se em uma cadeira eficou observando-os com umolhar repressor. Todos se mostra-ram temerosos e, no mesmo ins-

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tante, pararam de rir, falar, etc. Adisciplina mantida pela escolaparece-me bastante rígida. Ape-sar de serem agitados (soliciteicolaboração e silêncio diversasvezes), são extremamente discipli-nados e acostumados a respeitara ‘autoridade’. As crianças sãomuito participativas, disponíveise empolgadas. O único momentoem que ficaram caladas e para-das foi quando propus que pre-enchessem suas fichas, durante oúltimo jogo. Parece-me que sedivertiram com as atividades re-alizadas. O último jogo proposto(jogo das fichas com mímese) foimuito revelador dos significadosprimeiros atribuídos pelas crian-ças ao teatro, suas manifestaçõese linguagem.Empolgada pelas possibilidades,

pelos prazeres e anseios que de mi-nhas escolhas poderiam ser frutos,aventurei-me por processos não vin-culados estritamente a umametodologia específica de pesquisa,permiti-me apropriar-me de práticas emétodos que me pareciam, naquelemomento, os que melhor serviriam àsminhas vontades de pesquisa. Assimsendo, busquei inspiração nasetnografias pós-modernas, que per-mitem ao pesquisador estar junto deseu objeto de pesquisa, de certa for-ma confundindo-se com ele, dissol-vendo a dicotomia “sujeito-objeto”,borrando as fronteiras (ainda que es-tas continuem a existir aliadas àalteridade do humano). Busco, neste

trabalho, “inspirar-me livremente nasetnografias pós-modernas”, em al-guns escritos de Gottshalk (1998),Clifford (1995) e Geertz (1989), impor-tantes nomes que respondem peloque poder-se-ia chamar de “traçosetnográficos pós-modernos” no cam-po da Antropologia. Entretanto, asmetodologias etnográficas ultrapas-sam as barreiras do campo que assu-me sua paternidade para compor es-tudos nos campos da Psicologia, daArte, da Educação, da Medicina, daComunicação, entre tantos outros.

Fundamentada nesses autores,entendo que as etnografias pós-mo-dernas distanciam-se das etnografiasclássicas, ainda que tenham surgidobaseadas em vários de seus precei-tos e princípios metodológicos depesquisa, principalmente aquelesconcernentes aos trabalhos de cam-po. Todavia, nos estudosetnográficos clássicos, a observaçãoprolongada e uma pressuposta neu-tralidade do antropólogo/ pesquisa-dor ao narrar as “experiências do ou-tro” lhe conferem um caráteressencialista que, posteriormente,será contestado e rearticulado noschamados estudos etnográficos pós-modernos. Estes, por sua vez, permi-tem ao pesquisador trabalhar com di-versas metodologias de pesquisaqualitativa articuladas, tais como aobservação (participante ou não), aentrevista em profundidade, o relatoautobiográfico, a análise de dados emateriais textuais. Outro pressupos-to das etnografias pós-modernas é

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distanciar-se de uma suposta neutra-lidade do pesquisador, que passa acolocar-se também enquanto sujeitode pesquisa, na medida em que inter-fere nas próprias relações que estáestudando; sua voz faz-se ouvir notexto etnográfico, contudo, não é maisa única como nas etnografias clássi-cas, em que o etnógrafo é unívoco epossui a autoridade para falar pelossujeitos. Dessa forma, não há mais umolhar universal e transcendental, masum olhar pessoal, em que o etnógrafoassume a especificidade de sua auto-ria e “do lugar de onde fala”, abrindoespaço para que também as vozes dossujeitos se façam presentes nas nar-rativas e estudos etnográficos pós-modernos, além das outras vozes so-ciais que atuam como mediadoras dasvozes dos sujeitos e do pesquisador:a mídia, os contextos políticos e eco-nômicos, os artefatos e as práticasculturais, os discursos, as linguagens,entre outras.

Tendo em vista o exposto, situo-me enquanto pesquisadora, no espa-ço (mal)dito da tradução. Da dívidapermanente que a tradução nos im-põe para com o outro, já que da suaimpossibilidade absoluta nos consti-tuímos: a linguagem como a impossi-bilidade permanente da tradução(DERRIDA, 2002), que, mesmo impos-sível, faz-se e vem a ser, constituin-do-nos em seu fazer-se, na relaçãocom o outro. Coloca Clifford que “aobservação participante obriga a seusparticipantes a experimentar, em umnível tanto experimental quanto cor-

poral, as vicissitudes da tradução”(CLIFFORD, 1995, p. 41).

Dessa forma, interpenetram-se aexperiência e a interpretação comoqualidades constituintes doetnógrafo. Mais tarde, unindo-se aelas, a reflexividade. Há, nas ativida-des de observação participante doetnógrafo, uma oscilação contínuaentre “o dentro” e “o fora”, “umadialética entre a experiência e a inter-pretação” (id ibid, p. 53). Além dosmodos ditos “experiencial” e“interpretativo” da “autoridadeetnográfica”, dos quais nos falaClifford (1995), podemos encontrartambém as autoridades “dialógica” e“polifônica”, metáforas lingüísticasou paradigmas discursivos que vãoao encontro do que anteriormente foitratado: a presença de vozes que nãosó a do etnógrafo enquanto autorida-de absoluta da “escrituraetnográfica”. Entretanto, não se apre-goa a essencialidade de cada um des-ses paradigmas, sendo o próprioClifford quem expõe esta potencialhibridação: “os modos de autoridade[...] - experiencial, interpretativo,dialógico e polifônico - estão dispo-níveis a todos os escritores de textosetnográficos [...]. Nenhum está obso-leto, nenhum é puro; há espaço paraa invenção dentro de cada paradigma”(id ibid, p. 74).

Dando continuidade às reflexõesque teço, inspirada pelos referenciasdas etnografias pós-modernas, apre-sento na seção seguinte as criançasespectadoras, sujeitos desta pesqui-

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sa, personagens da história que aqui(re)conto, e os contextos em que estaaconteceu e se construiu.

2. OS SUJEITOS E O CONTEXTO

“De que sujeito falar?”, esta é apergunta que dá título a uma das se-ções de artigo de Fischer (1995) e quetambém norteou uma importante es-colha na prática que envolve este tra-balho: de que infância falar, tendo emvista a multiplicidade e a volatilidadeassumidas pelo infantil na pós-modernidade? Na completa impossi-bilidade de tentar demonstrar a rela-ção das crianças com o teatro paraelas realizado abrangendo uma gran-de variabilidade de “situações/ cons-truções de infância”, optei por traba-lhar em um contexto específico de re-cepção: a escola.

Tendo em vista as complexas rela-ções travadas entre a instituição es-colar, seus dispositivos dedisciplinamento, regulação e normali-zação (VEIGA-NETO, 2003)3 e o cam-po do teatro infantil, e também o fatode ser esse o único contexto em quegrande parte das crianças de classesdesfavorecidas, da periferia de gran-des centros urbanos e dos municípi-os do interior tem acesso à produçãoteatral considerada “profissional”,julguei que seria profícuo limitar-me,neste momento investigativo, a essecontexto de recepção determinado,

explorando suas especificidades eparticularidades.

A escola, como já salientei anteri-ormente, apresenta-se como a “comu-nidade de apropriação” privilegiadado teatro pelas crianças. Os proces-sos de recepção, que antecedem eextrapolam o momento do contatocom os artefatos, passam por diver-sos cenários em seu movimento deconstrução de sentidos e significados.De acordo com Orozco, que é quemlevanta os conceitos de “comunida-de de apropriação” e de “comunida-de de interpretação”: “Em cada cená-rio se está negociando a mensagem etalvez produzindo novos significadosou confirmando os anteriores. Os ce-nários são todos aqueles lugaresonde se produz sentido àquilo que seobtém dos meios de comunicação”(OROZCO GÓMEZ, 2000, p. 118).

Esse mesmo autor diferencia ostermos comunidade de apropriação ecomunidade de interpretação, referin-do-se ao primeiro como os espaços,grupos ou lugares nos quais aconte-ce a recepção em si. Podemosexemplificar dizendo que, no caso dopúblico infantil, a família é a principalcomunidade de apropriação da tele-visão, enquanto que a escola é a prin-cipal comunidade de apropriação doteatro.

Assim sendo, nos discursos epráticas (indissociáveis) das criançasespectadoras, busca pistas e

3Anotações feitas em palestra proferida pelo Prof. Dr. Alfredo Veiga-Neto junto ao PPGEdu/UFRGS, em 2003/01.

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intertextos que me conduzam a inves-tigar, além da relação da construçãodas crianças enquanto espectadoras,qual a contribuição dos discursos epráticas escolares como mediadoresdesses complexos processos de re-cepção e da formação das identida-des desses sujeitos enquanto espec-tadores híbridos.

Portanto, essa escolha orientava-me a realizar meu plano de ação comcrianças que assistissem a espetácu-lo teatral infantil através de suas es-colas, ou em um edifício teatral, ounas próprias dependências da insti-tuição escolar.

Assim, nesta pequena narrativa,os cenários são a escola (pátio, refei-tório, sala dos professores, sala de-baixo da sala dos professores), a ruae o salão de um Centro de TradiçõesGaúchas. O tempo é setembro de 2003,ensolarado, quase primavera, quasecalor. O local é Bento Gonçalves, ci-dade da região Nordeste do estadodo Rio Grande do Sul, com mais oumenos 100.000 habitantes, segundoo último senso do IBGE, fundada pelacolonização italiana, industrializada,com amplas redes de ensino públicoe privado, em que todas as criançasem idade escolar freqüentam a esco-la.

Cheguei até essa instituição deensino através de contatos travadoscom um grupo teatral da cidade quefaria apresentação de um espetáculoteatral infantil para os alunos da es-cola, no mês de setembro de 2003.Dessa forma, contatei a escola a fim

de solicitar permissão para realizar otrabalho com as crianças em suas de-pendências e horários de aula, emacompanhar a ida delas da escola atéo teatro, etc.

A Escola Estadual de Ensino Fun-damental Irmão Egídio Fabris, locali-za-se em um bairro de classe média,próximo ao centro da cidade e tem tur-mas da Educação Infantil e do EnsinoFundamental: Jardim B à quarta-sérieno turno da tarde, 9 turmas, em umtotal de 109 alunos; quinta a oitavaséries no turno da manhã, além de umaturma de Jardim A, perfazendo um to-tal de 210 alunos. Ao todo, são 391alunos regulares freqüentando a ins-tituição no ano letivo de 2003.

As primeiras impressões sobre oambiente, registradas em meu Diáriode Trabalho, são as seguintes:

A escola é pequena, limpa, orga-nizada, paredes bem pintadas (debege claro e escuro). Tem umaquadra ao ar livre e uma ‘áreacoberta’. Uma biblioteca e umaparte nova, onde fica a ‘sala dosprofessores’. As salas são dispos-tas ao redor da área coberta, ten-do no centro a ‘sala da direção’.No horário em que estive lá, nãohavia crianças no pátio, nem cir-culando pelos corredores. Apa-rentemente, todos estavam emsuas salas de aula. Ordem e lim-peza. Lembra-me um pouco a épo-ca em que eu cursava as sériesiniciais.Quanto ao quadro docente, as

turmas de jardim à quarta-série con-

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tam com professores unidocentes; asdemais séries, com um professor paracada área de ensino. Há uma diretorae duas vice-diretoras. Também há umacoordenadora para cada turno. O úni-co homem no quadro funcional daescola, no turno da tarde, é o jovemporteiro.

Transcrevo aqui algumas anota-ções sobre o primeiro encontro com acoordenadora e a vice-diretora do tur-no da tarde, de como as expectativasrecíprocas não se corresponderam ime-diatamente, ainda que meu ingresso naescola tenha sido bastante tranqüilo:

Fui à escola. Fui recebida pelavice-diretora do turno da tarde epela coordenadora do turno. Ex-pliquei-lhes o projeto. Elas ouvi-ram-me e consentiram que eu re-alizasse o trabalho na escola, comas crianças. As expectativas de-las em relação ao meu trabalho,como professora de teatro, pare-ciam ser outras. A vice-diretoralogo comentou comigo, assim quecheguei, que se eu fosse fazer umtrabalho a longo prazo, elas gos-tariam de uma ‘pecinha’ para asapresentações de Natal.Depreendo desta fala que elaspensaram que eu formaria umgrupo de teatro com as crianças,daria aulas, montaria peças. Aimagem do teatro na escola cos-tuma ser esta: uma visãoutilitarista, o ‘teatrinho’ que ascrianças fazem para mostrar aospais e colegas em datas / come-morações cívicas.

Durante alguns minutos de umrecreio, expus minhas intenções detrabalho também às professoras, so-licitando que indicassem um alunopor turma para participar do grupocom o qual realizaria as atividades decoleta de dados. Formaria um grupomisto de alunos/as, com o intuito derealizar as atividades de coleta. Seri-am duas crianças por turma, um me-nino e uma menina, sendo uma dascrianças indicada pela professora daturma e outra escolhida por sorteio,aleatoriamente. Por idéia da coorde-nadora, as professoras indicaram asmeninas; eu sorteei, através das lis-tas de chamada, os meninos. Mesmoassim, submeti os nomes às respec-tivas professoras. Alguns deles fo-ram “vetados”, pois, segundo elas,“iriam se prejudicar faltando às au-las”. As professoras indicaram-meoutros meninos.

O grupo, então, foi composto por18 alunos, sendo 9 meninas e 9 meni-nos, com idades entre 5 a 11 anos;os alunos que freqüentam a escolaem questão pertencem, eminentemen-te, à classe média. No segundo diaem que estive na escola, mais oumenos um mês antes da data previs-ta para apresentação do espetáculoteatral, conversei com as professo-ras no horário do recreio e solicitei15 minutos para me apresentar às cri-anças e explicar-lhes o projeto: o queeu pretendia fazer, saber se estavaminteressados em participar, informá-las dos objetivos do projeto, escla-recer as dúvidas que possivelmente

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surgiriam.Assim, após o término do recreio,

esperei pelos alunos na sala que fi-cava no andar debaixo da sala dosprofessores. Em alguns minutos, aliestavam.

As crianças vão chegando, emduplas (um menino e uma meni-na). Olham-me desconfiados. Ten-to descontrair, digo oi, convido-os a sentar no chão comigo, emroda. Esperamos os que faltamchegar. Eles me perguntam o queestamos fazendo ali. Conversamossobre coisas banais enquanto osoutros não chegam. Todos, apa-rentemente, se conhecem, a esco-la é pequena. (...) Usam unifor-mes: calças pretas, moletons e blu-sões decote v vermelhos, camise-tas brancas, alguns casacos deabrigo. Logo percebo: foram es-colhidos a dedo pelas professoras!São ativos, falantes, agitados.Fazem perguntas, estão curiosos.Conversamos, proponho uma

apresentação em roda, em que cadaum fale de si e do que gosta de fazer.Dois meninos da quarta-série mos-tram-se irrequietos: estão “perdendo”a aula de Educação Física! Nessemomento, reproduzo parte de minhasanotações sobre essa conversa, naqual as crianças falam de suas prefe-rências:

As idades variam dos 6 aos 11anos. Dentre suas preferênciasestão: jogar vôlei, espirobol, ler,estudar, nadar, assistir teatro (asmeninas), jogar no computador,

brincar de carrinho, jogar fute-bol (os meninos). Percebe-se quesão crianças ativas, gostam deatividades desportivas, de movi-mento. São também falantes ecomunicativas.Durante esse primeiro encontro,

além de apresentar-nos, de explicar eesclarecer dúvidas acerca das ativi-dades que desenvolveremos juntos,entrego-lhes um Termo de Consenti-mento Informado, documento esseque deve ser lido e assinado pelosresponsáveis de cada criança, autori-zando-me a realizar o trabalho de pes-quisa e a utilizar os dados coletadosnesta proposta de dissertação. Algunspais e mães telefonaram-me a fim deobter alguns esclarecimentos depoisde receberem o termo. Todos consen-tiram com a participação de seus fi-lhos nas atividades que propunha.

No geral, as crianças pareceramempolgadas com a idéia de realizarematividades diferentes das cotidianas,principalmente com os jogos e as en-trevistas; ficaram muito excitados aosaber que suas falas seriam gravadas.Prometi-lhes que escutaríamos juntos,depois, aquilo que fosse gravado.

Naquele momento travávamosuma espécie de pacto, no qual eu mecomprometia a oferecer-lhes algunsmomentos lúdicos e prazerosos e elescomprometiam-se a colaborar pronta-mente comigo, desde que lhes fossedada a oportunidade de, juntos, defi-nirmos como efetuar praticamente oque eu propunha. E esse foi o inícioda construção de uma relação efêmera

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e produtiva, em que o estar junto ren-deu, além de muitas dúvidas, risos,gritos, cochichos, pensares e viveres,um riquíssimo material de trabalho.Material palpável e material intangí-vel, pois além dos registros, grava-ções, anotações, fotos, desenhos,háa experiência juntos. Ou seja, aqueleentre nós que me constituiu e consti-tui-as, que fez de nós algo único eefêmero, naquela conformação espa-ço-temporal que dividimos, que jun-tos construímos e pela qual passaramafetos, dissabores, sons, rancores,odores, toques, sensações, expres-sões, enfim, tudo aquilo que não cabeno espaço do papel e que, por maisesforço descritivo que se faça, sem-pre estará indisponível a uma repre-sentação fidedigna. Ou seja; estarámuito próximo daquilo a que tenhoreferido-me como essencialmente te-atral: o inenarrável estar junto.

3. BRINCANDO E INVENTANDOCOM CORPOS VIVOS - JOGOSTEATRAIS

Dia 3, Bento Gonçalves, 19 desetembro de 2003Este encontro, no dia após a idaao teatro, foi muito produtivo.Conversamos longamente sobrea peça, sobre outras peças queassistiram, sobre suas preferên-cias, entrevistaram-me, interes-sados por minha história com oteatro, contaram-me suas histó-rias com o teatro. Após esta con-versa, propus que fizéssemos trêsjogos teatrais: estátua em du-plas, jogo do quadro/ fotografiasobre a peça e jogo Quem eu sou?livre. Muitas relações, significa-dos e sentidos conferidos pelosalunos ao (e através do) espetá-culo que assistiram no dia ante-rior surgiram durante os jogos,com seus gestos, ações, movi-mentos e falas. Corpos(re)produzindo e (re)criando aexperiência do dia anterior, como artefato teatral e sua lingua-gem peculiar. Corpos vivos brin-

4 Talvez possamos pensar no teatro enquanto o encontro de várias linguagens em ummesmo artefato, que seria o espetáculo cênico. Seriam elas:·Linguagem visual ou plástica (cenários, figurinos, maquiagem, iluminação, elementos cênicos,etc.);·Linguagem sonora e musical (vozes, entonações, ruídos, sons, músicas, trilhas sonoras, etc.);·Linguagem cinestésica ou dos movimentos, ações e gestos (ritmos, amplitude, tamanho,força, etc.);·Linguagem dramática (o texto dramático, as falas ou as indicações de ações, a fábula, anarrativa, a história contada, etc.).É importante salientar que para que ocorra o evento teatral, necessita-se, minimamente, deum ator que represente algo com alguma intenção estética diante de um espectador. Apresença física e a troca, a comunhão efêmera entre um ator e um espectador, estas são asúnicas características intrínsecas daquilo que chamamoslinguagem teatral.

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cando e inventando.A linguagem teatral5 (com todas

as implicações que advêm do uso des-se termo) pode ser pensada como umaforma de jogo inexoravelmente ligadaà espécie humana. Segundo as carac-terísticas que Huizinga (2000) levantacomo sendo próprias das atividadeslúdicas, o teatro apresenta-se comouma modalidade de jogo por excelên-cia.

Conforme esse autor, o jogo não é“vida corrente”, é um intervalo na vidacotidiana e prosaica; contudo, é par-te integrante de uma suposta “vidareal” e utiliza-se de elementos e influ-ências desta para sua posterior nega-ção e reorganização no universo pró-prio do jogo. Tem sempre uma finali-dade autônoma e se realiza tendo emvista uma satisfação que consiste nopróprio ato de jogar, sendo uma ativi-dade livre e voluntária, mesmo que sigaregras internas rígidas, as quais de-vem ser aceitas e conhecidas por to-dos os jogadores para que ele sucedacom êxito pleno. O jogo só pode exis-tir em uma limitação definida de espa-ço e tempo: ele cria um espaço e umtempo próprios e durante esse espa-ço-tempo tudo é movimento, mudan-ça, associação e separação; entretan-to, o jogo cria ordem e é ordem, poisdentro de seus domínios a ordem

deve ser específica e absoluta.Após essa longa listagem de ca-

racterísticas abordadas por Huizinga(2000) como sendo necessárias a umaatividade lúdica ou jogo, posso infe-rir que há uma forte e marcada analo-gia entre as práticas teatrais e o jogoou as atividades lúdicas. Tal como nojogo, no teatro busca-se uma espéciede evasão da vida prosaica na qual seconstrói uma nova situação galgadaem elementos retirados do contextocultural e de seus sujeitos, reorgani-zados de forma estético-poética; aefemeridade e a limitação espacial doteatro são idênticas as do jogo (e ab-solutamente necessárias à existênciade ambos); as regras do jogo sãohomólogas às convenções estéticase éticas que seguimos na elaboraçãoe reconhecimento de uma linguagemteatral (produtores e receptores de-vem conhecer e respeitar as mesmasregras no teatro). Assim sendo, mes-mo que sejam atividades exteriores àvida cotidiana e habitual, tanto o tea-tro como o jogo são capazes de ab-sorver os participantes de uma ma-neira intensa, criando uma tensão que“transportaria” os jogadores a umespaço-tempo diferenciado, extra-co-tidiano.

No espaço-tempo não-cotidianodo jogo desenvolvem-se sentimentos

5 Segundo Orozco (2000), uma entrevista semi-dirigida caracteriza-se por ter algunsnúcleos temáticos de assuntos a serem discutidos elaborados anteriormente pelo pes-quisador, o que não significa que as perguntas a serem feitas serão estanques e definidas.Há mobilidade nas perguntas e respostas, contudo estas serão conduzidas pelo pesqui-sador dentro de eixos temáticos pré-estabelecidos.

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“genuínos”, como a sensação que ex-perimentam os jogadores de estar “se-paradamente juntos” (HUIZINGA,2000), em uma situação excepcional,partilhando algo importante. Logo, pen-so que no caso específico do teatro tam-bém aquilo que denomino neste tra-balho de “comunhão teatral”, ou oestar junto que vivenciam atores eespectadores, atores e atores e ato-res e personagens, possa ser signifi-cado por seus participantes enquan-to algo que os arrebata e provocasensações semelhantes aoenvolvimento em um jogo coletivo.Portanto, o público deve ser seduzi-do e convencido a aceitar o jogo pro-posto pelos atores em cena e pelaestética da encenação e seus elemen-tos, e a partir daí compartilhar dasregras e (des)prazeres possíveis.

Após essas considerações inici-ais que tiveram o intuito decontextualizar a analogia possívelentre a linguagem teatral e o jogo,julgo ser pertinente ressaltar que aprática de jogos dramáticos e teatraisé amplamente utilizada tanto na for-mação de atores como na de platéi-as, bem como enquanto estímulo paraa iniciação de crianças e adultos coma linguagem teatral e algumas de suasespecificidades técnicas, formais eestéticas. Diversos autores, profes-sores, diretores, atores de teóricosformularam suas metodologias daabordagem teatral através de jogos.

Trazendo agora para este espaçoa justificativa do uso de jogos tea-trais como uma das metodologias de

coleta de dados junto às crianças es-pectadoras, posso dizer que desde oinício da elaboração do trabalho mi-nhas idéias encaminhavam-se no sen-tido de não somente ouvir as falas dascrianças, ou seja, não me ater somenteàs informações que poderia obter atra-vés da linguagem verbal ou escrita. Ora,se o teatro apresenta-se marcadamenteligado a diversas linguagens, entre elase talvez com mais força, pela linguagemdos movimentos e gestos dos atoresem cena, por que não possibilitar às cri-anças que se expressem e expressemaquilo que sentem e pensam sobre alinguagem teatral através de seus cor-pos, da tonicidade e ritmo de seus mo-vimentos, da plasticidade de seus ges-tos? Além disso, sendo eu umaprofessoratriz, parecia-me óbvio queabordasse aquelas crianças e tentasseconstruir uma relação com elas atravésda linguagem com a qual estou familia-rizada e que, enfim, era/é o objeto cen-tral de minhas vontades de pesquisa.

Dessa forma, ofertei às crianças,desde nosso primeiro encontro, a pos-sibilidade de realizarmos uma série dejogos teatrais, inspirados principalmen-te no sistema de Spolin (1987), que, se-gundo Desgranges, “está calcado emjogos de improvisação e tem o intuitode estimular o participante a construir opróprio conhecimento acerca da lingua-gem tetral, em um método em que o alu-no, junto com o grupo, aprende fazen-do, experimentando, e pensando cri-ticamente acerca daquilo que foirealizado”(DESGRANGES, s/d, p. 5).De sua parte, as crianças acolheram

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a proposta e mostraram-se sempremuito entusiasmadas na realizaçãodas atividades que envolviam jogosteatrais e atividades lúdicas de cará-ter corporal e cinestésico.

No primeiro encontro, jogamosjogos de atenção, disponibilidade,confiança, ritmo, desinibição e res-peito pelo corpo do colega, semprepensando na relação palco-platéia,sendo que enquanto um grupo reali-zava o jogo, o outro observava; pos-teriormente, comentava-se a percep-ção e as impressões dos jogadores eobservadores. Jogos de mimesecorpórea também foram realizados,sempre encaminhando o foco na di-reção de meu objetivo central, queera o de obter dados que indicassemcomo acontecem as experiências dascrianças com a linguagem teatral; tí-nhamos como temática o próprio te-atro.

Assim, não tive a intenção, com ouso dos jogos teatrais, de realizar algoque se assemelhasse aos queDesgranges (2003) nomeia de “anima-ção teatral”, ou seja, atividades com afinalidade de otimizar a recepção do es-petáculo por parte dos espectadores.Simplesmente tentei possibilitar às cri-anças que expressassem seus sentirese construíssem significados acerca doteatro através da linguagem corporal,propiciada então pelos jogos.

Durante o Encontro 3, que suce-deu a assistência ao espetáculo teatralA Terrível Viseira do Dr. Chip, propusvários jogos de mimese corpórea decaráter livre, em grupos, nos quais ascrianças poderiam ou não reproduzircenas, situações e personagens do es-petáculo assistido. Diversas relaçõesque as crianças construíram com o es-petáculo em questão surgiram nessesjogos, bem como algumas concepçõesadvindas de seu repertório culturalanterior também se fizeram presentes.

4. DESENHANDO E REPRESEN-TANDO O TEATRO - REGISTROS

Figura 2 - Encontro 1 - Hipnose em du-plas: jogo de concentração, corporeidade,confiança, ritmo.

Figura 3 - Encontro 3 - Jogo da estátua emduplas, livre: os escultores montam suas es-tátuas.

Figura 1 - Encontro 1 - Jogo das partes docorpo grudadas com deslocamento: jogo deatenção, confiança e disponibilidade.

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GRÁFICOS

Dia 4, Bento Gonçalves, 22 desetembro de 2003Neste dia, programei-me paraque as crianças realizassem umaprodução gráfica (desenho, pin-tura, colagem) acerca de suasexperiências ou expectativas como teatro. Após o horário do re-creio, encontramo-nos todos norefeitório da escola, que contacom mesas coletivas amplas,brancas, com bancos acoplados.Quando disse a eles que naqueleencontro iríamos desenhar, nãogostaram muito da idéia. Queri-am fazer outras atividades, comojogos e brincadeiras, com movi-mento e ação. Mesmo assim, aca-taram minha solicitação e divi-diram-se nas duas mesas, com lá-pis de cor e material escolar va-riado. Propus que fizessem umdesenho ‘sobre teatro’. Poderiaser sobre a peça que haviam as-sistido, sobre outro espetáculoque tivessem visto, ou tambémsobre como gostariam que fosseuma peça, inventada por eles. Osdesenhos foram os mais variados:do espetáculo do dia anterior, deoutros ‘teatros’ a que haviam as-sistido ou dos quais tinham par-ticipado, sobre temáticas de suaspreferências etc. Durante todotempo conversamos bastante, cri-anças narravam a mim seus dese-nhos. Barulho e agitação. Algunsmeninos queriam ir à aula de

Educação Física. Alguma inse-gurança em relação a suas habi-lidades em desenhar, reproduzircenas através do desenho. Tenteiaclamá-los e incentivá-los. Aoacabarem suas produções, volta-ram às respectivas salas de aula.Pois bem: as crianças desenharam

o teatro. Houve algumas insegurançasem relação às suas capacidades de re-produzir graficamente da forma (as for-mas) almejada(s), que tentei amenizarincentivando-as, dizendo-lhes daspossibilidades únicas de cada um ex-pressar-se também através do desenho.Durante a meia tarde barulhenta no lim-po e branco refeitório da escola, con-taram-me um pouco daquilo que dese-nhavam: histórias de amor novelescas,causos engraçados, de bichos, de tea-tros a que haviam assistido no passa-do e que (re)construíam agora na me-mória, de carros e motos que pareciamsaídos de filmes hollywoodianos, dospersonagens e elementos do espetá-culo assistido no dia anterior, de histó-rias vistas e ouvidas, de outras inven-tadas, “o teatro que gostariam de ver”.

Pillar (1996a) argumenta que “en-tende-se por desenho o trabalho gráfi-co da criança que não é resultado decópia, mas da construção e da inter-pretação do objeto pelo sujeito”(PILLAR, 1996a, p. 33). Pensando emsentido homólogo ao dessa autora,escolho como uma das estratégias paraa construção (junto às crianças) dedados a serem analisados a propostade desenharem aquilo que pensam,lembram e sentem em relação ao tea-

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tro. Fiz isso de forma a possibilitar cer-ta liberdade de escolha às crianças,procedendo de forma idêntica à que fizcom os jogos teatrais: propus-lhes quedesenhassem qualquer coisa que lhesaprouvesse e que tivesse alguma liga-ção com o teatro, de forma a incitar queconstruíssem alguma relação com suasexperiências com a linguagem teatral.

Quanto à qualidade dos dados re-presentados por desenhos, registrosgráficos das impressões e experiênci-as de referido grupo de crianças com oteatro infantil, posso perceber, além dapresença das relações com o teatral,diversas e diferenciadas mediações quecompõem o repertório anterior dessascrianças enquanto espectadoras e su-jeitos atravessados e constituídos atra-vés de determinada cultura. Então,pressuponho que “o olhar de cada umestá impregnado com experiências an-teriores, associações, lembranças, fan-tasias, interpretações, etc” e, portan-to, penso que nos desenhos das cri-anças, em seus registros gráficos, “oque se vê não é o dado real, mas aquiloque se consegue captar e interpretaracerca do visto, o que nos é significa-tivo.” (PILLAR, 1996, p. 36).

Assim sendo, considero esses ar-tefatos que são os desenhos comoimportantes registros das experiênci-as infantis com o teatro, ou seja, dasexperiências de construção de senti-dos em relação à linguagem teatral quetambém se produziu no momento mes-mo da elaboração desses desenhos,também eles “técnicas de si” que pos-sibilitaram, de alguma forma, a consti-

tuição dos seus autores e de suas iden-tidades de crianças espectadoras. Con-sidero, assim, tanto os desenhos quan-to as narrativas das crianças sobreeles, potenciais materiais a serem ana-lisados e refletidos. Há necessidade deproblematizar não somente a análisedos desenhos, mas o contexto em queforam produzidos, os esforços de seusprodutores e as narrativas infantis so-bre eles, ou seja, os sentidos que ascrianças conferem àquilo que represen-taram graficamente.

Saliento, no entanto, que os mo-dos de olhar tais desenhos que buscodesenvolver aqui não se aliam a teori-as desenvolvimentistas e/oucognitivistas, nem mesmo intento pro-curar qualquer reprodução realista nostraços das crianças. Pretendo, sim,percebê-los como “( . . . ) documentoshistóricos aos quais podemos recorrerao necessitarmos saber mais e melhoracerca de seu mundo vivido, imagina-do, construído, numa atitudeinvestigativa que procure contemplar anecessidade de conhecer parte da His-tória e de suas histórias segundo seuspróprios olhares” (GOBBI, 2002, p. 73).

Figura 4 - Desenho de Mariana, 5 anos.

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O desenho acima nos traz um claroexemplo de como pode acontecer aressiginificação e a construção de sen-tidos a partir das práticas do desenhare narrar a produção gráfica em contex-tos e situações determinados.

Mariana, uma esperta menina de 5anos, aluna do Jardim B, desenhavacompenetrada as formas quecomumente aparecem nos desenhosdas crianças dessa idade: um sol comnuvens arredondadas, uma flor, duasárvores, um lago com peixes colori-dos. Aproximo-me dela e pergunto:

- Mariana, este é o teatro que tuimaginou?Surpreendida pela minha per-gunta, responde prontamente:- É!- E onde estão os personagens? -Insisto.- Aqui ó, são os atores vestidos -Responde ela desenhando rapi-damente bocas e olhos em nuvens,sol e árvores. - O sol fala com asnuvens que falam com as árvo-res, são os atores vestidos...- Ah, tá.... é que eu não tinha en-tendido...Resigno-me, então, a não desafi-ar mais a imaginação daMariana. Desenhava pelo prazerde desenhar e, interpelada pela“outra”, adulta e professora queera eu naquele momento, astuta-mente ressignificou aquilo quedesenhava para agradar a mim ea meus anseios de pesquisadoraque queria saber sobre o teatro eas crianças.

5. NARRANDO(SE) ECONSTRUINDO(SE) ESPECTA-DOR/A - ENTREVISTAS E CON-VERSAS

Dia 5, Bento Gonçalves, 23 desetembro de 2003Este foi o último dia em que esti-vemos juntos. Entrevistei-os emgrupos: dividi as crianças pelasséries que freqüentavam. Os gru-pos das quartas, terceiras e se-gundas séries com quatro crian-ças cada, o último grupo contoucom seis alunos/as: quatro daprimeira série e dois do JardimB. Cada entrevista durou, emmédia, 1 hora. A entrevista com oGrupo 1, das quartas séries,transcorreu tranqüilamente. Vi eEm estavam um pouco retraídos,ou não muito atraídos pelas per-guntas. No entanto, todas as ques-tões foram respondidas e comen-tadas. No Grupo 2, formado pe-los/ as alunos/ as das terceirasséries, a entrevista foi uma ativi-dade muito producente: eram to-dos falantes e tinham muita von-tade de participar, respondendoàs perguntas e elaborando ou-tras, interagindo entre si, comoem uma ‘conversa orientada’ ou‘temática’, concordando e dis-cordando uns dos outros, em umexercício de livre expressão. Jácom o Grupo 3 (segundas séri-es), foi bastante difícil realizar aentrevista: todos muito agitados

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e dispersos, eu também já estavacansada e impaciente por ter fei-to outras duas entrevistas, sempausa. Durante muitos momentosimplicaram e brigaram uns comos outros, dispersando-se. Fomosinterrompidos pelo recreio. Con-tinuamos por um curto tempoapós o término do recreio. As cri-anças do Grupo 4 (primeiras sé-ries e jardim B) responderam àsperguntas com muita desenvoltu-ra, principalmente noconcernente à televisão e aosdesenhos animados. Falavam to-dos ao mesmo tempo, tumultua-dos e alegres, mas conseguimosnos organizar de forma a todosouvirmos e falarmos.Ao optar por realizar entrevistas

semi-dirigidas4 com as crianças comas quem estive junto, inclui dentro daestratégia de pesquisa que me pro-pus a desenvolver um importantemecanismo de constituição e(re)invenção de si, que é a narrativada experiência. Em uma relaçãopolifônica (entre as várias vozes dascrianças que participaram de cada gru-po entrevistado e os diversos discur-sos que teceram relações intertextuaisem seus enunciados) e dialógica (ha-via dois “tipos” de vozes diferentesenvolvidas: a minha, deprofessoratriz; “outra”, adulta e pes-quisadora; e as das crianças, sujei-tos-personagens da pesquisa), quecaracteriza o gênero entrevista, demoscontinuidade à construção (já inicia-da nas outras atividades que crono-

logicamente a antecederam) de nos-sas “identidades narrativas”.

Acerca desse conceito, Carvalhoafirma: “A noção de identidade narra-tiva supõe um processo estruturalformador do que Ricoeur denominaipseidade - compreendida como aidentidade de um si mesmo relacionale, portanto, marcado pela abertura deum ser afetado pelo mundo, em con-traste com uma identidade fixa domesmo” (CARVALHO, 2003, p. 6).Sobre as questões relativas à polifoniapercebida nas “narrativas do eu” (en-tre as quais encontram-se os relatosprovenientes de entrevistas, como asque realizei com as crianças), essamesma autora argumenta: “Nessejogo polifônico, o sentido não estánunca aprisionado numa intenção ousignificado prévio, mas é efeitoimprevisível de um encontro dealteridades, portanto somente acon-tece numa situação de comunicaçãoe está fadado às vicissitudes da recri-ação permanente” (id ibid, p.10).

Assim sendo, reitero que relaçõesde força atravessaram e perpassaramtanto as crianças como eu, bem comoo pacto que, de forma efêmera, cons-truímos juntos e também nos consti-tuiu em sua produtividade, pois, “orelato autobiográfico não representao sujeito, mas o produz. Daí a nature-za de auto-invenção do relato autobi-ográfico” (id ibid, p.11). Em conso-nância com essas proposições, aindapodemos pensar que “Essa auto-in-venção, por sua vez, traz consigo ainvenção do Outro, das relações de

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alteridade e, portanto, da identidadenarrativa de um campo intersubjetivoe cultural em questão. É nesse senti-do que a auto-invenção dos sujeitosé simultaneamente posicionada numcampo social e demarcadora dessemesmo campo” (id ibid, p. 11).

Portanto, todo enunciado é mo-dulado pela presença do outro, dosdestinatários ou interlocutores. Nãoposso perder isso de vista ao manu-sear o material fruto de minhas experi-ências empíricas com as crianças, in-clusive as transcrições de conversase entrevistas. Algumas questões pro-postas por James Clifford ereelaboradas por Arfuch (2002) devemser levadas em conta: “O que fazercom a palavra do outro? Como trans-crever o registrado? Que signos res-peitar e recolocar, como analisá-la eexpô-la, a sua vez, à leitura pública(acadêmica, editorial, midiática)?”(ARFUCH, 2002, p. 192).

Abordo neste espaço um excertode conversa com o grupo de crian-ças, no qual elas próprias levantamaspectos da relação dialógica que es-tabelecemos, da existência de um gra-vador e outros mecanismos naqueleespaço-tempo em que estivemos jun-tos, bem como se evidenciam algumasrelações de força entre nósestabelecidas, a forma como conduzoe medeio nossas conversas sobre te-atro de acordo com meus interessesde pesquisadora.

Juliana - Pessoal, ela tá gravando.Paula - É. Ela tá gravando.Eu - Tudo bom com vocês?

Alguns - Tudo.(Saio da sala para pegar águaenquanto as outras crianças vãochegando, eles falam para o gra-vador, ameaçam desligar, etc,volto para sala, eles continuamàs voltas com o gravador)Eu - Qual é o problema que tágravando? Vocês querem ouvirum pouquinho?Juliana - Sim!!!!!(Volto a fita e deixo que escutem.Quando todos chegam, sentamosno chão, em um círculo)Andressa - Profe, quando é que agente vai poder ver a gravaçãode ontem e do outro dia que oMarcelinho gravou?Eu - Quando eu conseguir pas-sar para a outra fita normal devídeo eu trago pra vocês verem.Tem vídeo aqui na escola?Juliana - Tem. Na biblioteca e nasala do Jardim.Eu - Pessoal, tudo bem comvocês? Antes da gente iniciar asatividades, a gente vai fazer ou-tros jogos hoje, diferentes dos dooutro dia...Andressa (interrompendo) -Profe, tu vai perguntar algumacoisa do teatro?Eu - Vou, é o que eu ia dizer, an-tes da gente começar trabalhar,eu queria que, um por vez, deva-garinho, falasse o que quisesse:o que gostou, o que não gostou...Porque tem coisa que a gente nãogosta, ninguém é obrigado a gos-tar de tudo, como é que foi ir até

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lá, voltar, se quiserem falar deoutros teatros que já assistirampodem falar... O que vocês quise-rem falar! Certo? [grifo meu]Como havíamos assistido ao es-

petáculo teatral na tarde anterior, amenina Andressa em sua fala já ante-cipa e prevê que eu perguntaria algosobre essa experiência; afinal, haviaesclarecido a eles porque eu estavana escola e porque realizávamos aque-las atividades todas, qual era meu pro-pósito com isso. Depois de algumtempo de conversa, paulatinamenteinverteram-se as posições e então ascrianças começaram a me entrevistar,perguntaram sobre minhas experiên-cias teatrais, mostraram-se curiosassobre a minha relação com o teatro.Esse deslocamento de nossas posi-ções de pesquisadora e sujeitos depesquisa me pareceu um profícuomomento de troca e de confiança queconseguimos estabelecer. Reproduzoaqui parte dessa “inversão de papéis”,explícita na fala surpresa de Andressa:“Agora é a gente que tá te entrevis-tando!”.

Andressa - Profe, quando tu de-cidiu que queria fazer teatro?Eu - Quando eu era bem peque-na, assim do tamanho de vocês...(Continuam fazendo uma série deperguntas acerca de minha vidacom o teatro)Karina - Tu não teve vontade detrabalhar na TV?Eu - Não, Karina, eu nunca tivevontade de fazer TV. Eu gostomesmo é de fazer teatro.

Andressa - E tu já teve vontadede fazer outra coisa?Paula - Quando tu começou a fa-zer teatro tu tinha certeza que tuia ser professora de teatro e fazerteatro?Eu - Olha, certeza, certeza eu nãotinha, porque eu era muito pe-quena, mas eu sempre gostei mui-to de fazer teatro, e sempre fiz. Aíquando chegou na época de fa-zer vestibular... Vocês sabem oque é vestibular? É antes de en-trar na faculdade, a gente faz umaprova.Juliana - Um teste!Andressa - Agora é a gente quetá te entrevistando!Vicente - O primeiro teatro quetu fez tu não ficou assim, um pou-co com vergonha?Eu - Fiquei... Até hoje dá um medoantes de começar.Seguindo as reflexões sobre as

entrevistas, saliento que para Arfuch(1995), uma das intelectuais latino-americanas que tem desenvolvido tra-balhos acerca das entrevistas e nar-rativas autobiográficas como gênerosdiscursivos, a entrevista pode pare-cer uma simples conversação, contu-do, tem seus limites bem claros, comoo lugar ocupado por entrevistados eentrevistador e a temáticaestabelecida, em alguns casos. Essamesma autora ressalta o caráter denarrativa que as entrevistas podemassumir, conferindo-lhes característi-cas como a fragmentação, a incertezae a incompletude.

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No mesmo sentido das coloca-ções de Arfuch (1995), é Larrosa (1995)quem discorre acerca dos processosde narrar-se enquanto uma tecnologiada constituição de si: “o narrador é oque expressa, no sentido deexteriorizar, o rastro que aquilo queviu deixou em sua memória”, sendoque “a recordação não é apenas a pre-sença do passado”, mas ela “implicaa imaginação e a composição, implicaum certo sentido do que somos, im-plica habilidade narrativa”(LARROSA, 1995, p. 68). Compartilhocom esse autor a idéia de que: “é con-tando histórias, nossas próprias his-tórias, o que nos acontece e o senti-do que damos ao que nos acontece,que nos damos a nós próprios umaidentidade no tempo” (Id ibid, p. 69).Logo, posso inferir que as conversa-ções e entrevistas realizadas com ascrianças foram exercícios de narraçãoe auto-narração que constituíram tam-bém suas identidades de espectado-res de teatro (além de me constituíremprofessoratriz de teatro). Durante olembrar, narrar e (re)inventar suas ex-periências com o teatro, construíamossentidos e significados que eram con-feridos à relação das crianças com alinguagem teatral, articulando-as àssuas diversas experiências como es-pectadores híbridos nacontemporaneidade. Saliento que du-rante as atividades com os jogos tea-trais e os desenhos também constru-ímos narrativas através de duas lin-guagens que não a verbal: a corporale a gráfica.

Ainda que haja uma série de me-diações que interpolam o espaço en-tre as experiências e os significadosque conferimos a elas através de nos-sos discursos e narrativas, esses sig-nificados não são prévios ou antece-dem o momento mesmo de suaenunciação. Mesmo que os discursose as narrativas possam ser considera-dos polifônicos e portadores de di-versas vozes, de umaintertextualidade inerente, ainda quecada uma das crianças estivesseimplicada em uma relação eminente-mente dialógica (comigo e tambémcom seus colegas, já que as entrevis-tas e conversas realizaram-se em gru-pos), elas produziram sentidos e pro-duziram-se enquanto sujeitos em re-lação ao teatro, ou seja, constituíram-se espectadoras. Tais sentidos eposicionalidades assumidas foramsempre permeados pelas múltiplasmediações que atuaram e atuam naconstituição desse grupo de criançasem relação com a linguagem teatral.

6. BREVES CONSIDERAÇÕES ATÍTULO DE FINALIZAÇÃO

A título de encerramento destesescritos, mas não das possibilidadesinvestigativas que se apresentam,valho-me das palavras de Quinteiro afim de justificar essa estratégiamultimetodológica utilizada, ainda quepense que sua justificativa encontra-se no fazer mesmo das práticas quepropus às crianças e que elas gentil-mente acolheram, hospedaram e

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reinventaram, construindo-se assim asi próprias. Para essa autora, “falta porparte dos estudos etnográficos, dapesquisa participante, do inventáriodos artefatos, das produções cultu-rais, das histórias de vida e das entre-vistas biográficas propiciar um con-junto integrado de métodos e técni-cas que possa subsidiar as pesqui-sas relativas à criança e à infância nocampo educacional” (QUINTEIRO,2002, p. 41). Apresentei, portanto, nes-te trabalho, a tentativa de concretizarempiricamente algo semelhante aoque se refere a autora acima citada.

A partir dos momentos vividoscom as crianças, possuo agora, alémdas intangíveis e inenarráveis sensa-ções e sentimentos, algum materialpalpável e visível em sua concretude.E é esse mesmo material que preten-do ampliar, fazendo com que seus sen-tidos e significados dilatem-se, exer-çam-se, (re)vivam, através das análi-ses e reflexões que farei acerca deles.Logo, “[...] a entrevista utilizada nainvestigação acadêmica [...] será umpasso para ir ‘mais adiante’, até a ela-boração de um produto outro [...]”(ARFUCH, 2002, p. 179) pelo pesqui-sador. Arfuch refere-se especifica-mente às entrevistas, mas posso am-pliar essa referência à variabilidade dedados construídos através da estra-tégia multimetodológica de pesquisaempírica que aqui propus, através douso de registros gráficos, jogos tea-trais, conversações e entrevistas, ins-pirada nas etnografias pós-modernas.Meu trabalho de pesquisadora cons-

titui-se, agora, em encontrar, criar, con-ferir significados e sentidos a essematerial.

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