POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA: possibilidades...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
MIRIAN LÚCIA GONÇALVES
POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA:
possibilidades decoloniais no Ensino Superior
CAMPINAS
2019
MIRIAN LÚCIA GONÇALVES
POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA:
possibilidades decoloniais no Ensino Superior
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos
para a obtenção do título de Doutora em
Educação, na área de concentração de
Educação.
Orientadora: DEBORA MAZZA
Este trabalho corresponde à versão final da tese defendida pela aluna Mirian Lúcia Gonçalves
e orientada pela profa. Dra. Debora Mazza.
Campinas
2019
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Public Policies of affirmative action : decolonial possibilities
in Higher Education
Palavras-chave em inglês:
Public policies of affirmative action
Decolonial education
Higher education
Black movement
Racism
Área de concentração: Educação
Titulação: Doutora em Educação
Banca examinadora:
Débora Mazza
Ângela Fátima Soligo
Cláudia Marinho Wanderley
Mara Fernanda Chiari Pires
Wilson Gomes de Almeida
Data de defesa: 29-01-2019
Programa de Pós-Graduação: Educação
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
TESE DE DOUTORADO
POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO FIRMATIVA:
possibilidades decoloniais no Ensino Superior
Autora: MIRIAN LÚCIA GONÇALVES
COMISSÃO JULGADORA:
Debora Mazza – Presidente
Ângela Fátima Soligo – membro interno
Cláudia Wanderley Marinho – membro interno
Mara Fernandes Chiari Pires – membro externo
Wilson Gomes de Almeida – membro externo
A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de
Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.
2019
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, a quem
agradeço pela possibilidade de dedicação exclusiva durante três anos desta pesquisa.
Agradeço aos trabalhadores e às trabalhadoras do Estado de São Paulo que, ainda
que sem saber, financiam as universidades públicas do Estado e, de tal modo, possibilitaram
que eu cursasse graduação, mestrado e doutorado, desfrutando de um privilégio que,
infelizmente, ainda é para poucos neste país.
Agradeço à minha família, em especial ao meu pai (in memoriam) e à minha mãe,
amiga e conselheira, que nutre uma confiança inabalável em mim e na vida e, assim, inspira-
me a seguir sempre em frente, apesar das pedras do caminho.
Às minhas amigas, umas de longa data, outras que a vida me presenteou ao longo
deste trabalho. Amigas com quem troquei medos, angústias e as alegrias desse processo que é
escrever uma tese. Correndo o risco de ser injusta cito algumas a quem a presença está
também nas linhas aqui escritas: Angélica; Marina; Tamires, Alessandra, Nádia e Jordana:
amigas com quem divido a utopia de dias melhores em que a justiça social seja uma realidade
e não mais algo pelo que se lutar.
Aos colegas da EMEF Padre Emílio Miotti que me acolheram, ensinaram e
travam comigo diariamente a batalha por uma educação pública, laica, gratuita e de qualidade.
Em especial ao Professor Daniel e à Gilmara, pela amizade e companheirismo.
Às funcionárias da secretaria da Pós-Graduação, sempre atentas e atenciosas em
ajudar nos processos burocráticos e resolver problemas.
Às funcionárias e funcionários terceirizados, muitas vezes invisíveis, mas que
realizam o trabalho que torna possível todos os demais trabalhos.
Aos integrantes dos coletivos pesquisados, em especial aos respondentes dos
questionários e entrevistas, pela contribuição que possibilitou esta pesquisa.
Por fim, agradeço imensamente à Professora Débora Mazza que me acolheu no
momento mais difícil dessa caminhada, acreditando em mim e neste trabalho, quando eu
mesma já tinha desacreditado.
A vocês, meu mais sincero, muito obrigada!
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos movimentos sociais que lutaram e ainda lutam por direitos.
Aos Movimentos Negros que nos revelam a verdadeira história por trás de heróis que
carregam sangue negro e indígena nas mãos.
Aos indígenas que resistem e que nos ensinam outras lógicas de existência e resistência.
Aos movimentos feministas que me mostraram que lugar de mulher é onde ela quiser.
Ao MST que ainda precisa lutar pelo direito à terra para produzir alimentos livres dos venenos
do agronegócio.
Aos trabalhadores e às trabalhadoras deste país que lutam cotidianamente para viver e
sobreviver, mas ainda assim acreditam em dias melhores.
Perguntar-nos-ão se o colonialismo português não teve uma ação positiva na África. A
justiça é sempre relativa. Para os africanos, que durante cinco séculos se opuseram à
dominação colonial portuguesa, o colonialismo português é o inferno; é onde reina o mal,
não há lugar para o bem".
Amílcar Cabral
A arma da teoria (1976)
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo geral analisar as Políticas Públicas de Ação Afirmativas
(PPAAs) e seu efeito em duas universidades públicas. O suporte teórico do trabalho, ancorado
na teoria desenvolvida pelo Grupo Modernidade/Colonialidade, desvela como o processo de
colonização produziu desde o século XVI uma hierarquia epistêmica global, reproduzida
também por meio da Universidade, que impõe um pensamento hegemônico e corrobora na
perpetuação dos marcadores do sistema-mundo fundamentados na tradição eurocêntrica que
tem o racismo como elemento estrutural e estruturante frente aos povos e culturas
colonizadas, o que, apesar da descolonização política-jurídica, permanece no que se denomina
colonialidade. Nosso quadro teórico inclui ainda um levantamento sobre as PPAAs no mundo
e no Brasil a fim de compreender seus objetivos e, como, e por quê essas políticas entraram na
agenda de diversos países e, mais tardiamente, do Brasil. Para tanto, realizamos pesquisa em
fontes documentais para levantamento de diversas legislações, bem como, autores e obras que
já se debruçaram sobre o tema. Metodologicamente, a pesquisa se insere como um estudo de
caso que busca responder os efeitos causados pelas PPAAs em duas universidades públicas
brasileiras: UFSCar e Unicamp. Levantamos os dados quantitativos acerca do perfil
socioeconômico dos estudantes ingressantes nestas universidades no período de 2013 a 2017.
Identificamos os coletivos, cuja pautas sejam de caráter étnico-racial, formados nestas
universidades após a implementação das políticas de ação afirmativa inclusivas. A pesquisa
empírica se deu por meio de questionários e entrevistas a fim de conhecer melhor as
características dos coletivos e seus integrantes Partimos da hipótese de que as PPAAs,
principalmente as de inclusão, como é o caso da Lei 12.711/12, ao possibilitar o ingresso de
grupos antes excluídos do espaço acadêmico, como do povo negro e indígena, enriquecem as
dinâmicas formativas e de sociabilidades dentro da universidade ao colocar no cenário
acadêmico novas formas de pensar, sentir e agir, novas temáticas, diferentes epistemologias e
demandas para diferentes formações que podem promover o que alguns autores tem
denominado de pensamento decolonial. Uma segunda hipótese era a de que as Leis 10.639/03
e 11.645/08 são políticas públicas de ação afirmativa que dão amparo à demanda de
formações ampliadas que supere o que muitos chamam de colonialidade do saber presente na
universidade. A pesquisa mostrou que os Coletivos trazem alterações significativas nas
universidades, como foi o caso da conquista das cotas no vestibular da Unicamp, organização
de novos eventos como, por exemplo, o Quem tem Cor Age (Unicamp) e o Encontro Nacional
de Estudantes e Coletivos Universitários Negros (EECUN), o vestibular indígena da UFSCar
realizado agora em quatro capitais, não mais somente na UFSCar (São Carlos/SP). Além
disso, a pesquisa empírica mostrou que temas, autores e epistemologias antes ignorados
começam a emergir no cenário acadêmico brasileiro com estreito diálogo com o pressuposto
pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08, o que confirma as hipóteses levantadas.
Palavras-chave: Políticas Públicas de Ação Afirmativa; Pensamento Decolonial; Movimento
Negro, Ensino Superior; Racismo;
ABSTRACT
This research had as general objective to analyze Public policies of Affirmative Action
(PPAAs) and your effect on two public universities. The theoretical support of labor,
anchored in the theory developed by Modernity/Colonialidade Group, reveals how the process
of colonization has produced since the 16th century an epistemic global hierarchy also
reproduced through the University, imposing a hegemonic thinking and corroborates the
perpetuation of markers of the world system based on Eurocentric tradition that has racism as
structural and structuring element front of colonized peoples and cultures, which, despite the
decolonization legal policy, remains in called colonialidade. Our theoretical framework also
includes a survey on the PPAAs in the world and in Brazil in order to understand their goals
and, how, and why these policies entered the agenda of several countries and, later, of Brazil.
To this end, we conduct research on documentary sources.To this end, we conduct research on
documentary sources for survey of various laws, as well as authors and works that already
pored over the theme. Methodologically, the lookup is inserted as a case study that seeks to
answer the effects caused by PPAAs in two Brazilian public universities: UFSCar and
Unicamp. We raise the quantitative data about the socio-economic profile of students entering
these universities during the period from 2013 to 2017. Identify the collective, whose agendas
are of ethnic-racial character, formed in these universities after the implementation of
affirmative action policies, inclusive. The empirical research took place by means of
questionnaires and interviews in order to better know the characteristics of collective and its
members we set out the hypothesis that the PPAAs, especially inclusion, as is the case of
12,711/Law 12, by enabling the group ticket before excluded from academic space, as the
black and indigenous people, enrich the training dynamics and social arrangements within the
University to put the academic setting new ways of thinking, feeling and acting, new themes,
different epistemologies and demands for different formations that can promote what some
authors have called decolonial thought. A second hypothesis was that the law 10,639/03 and
11,645/08 are affirmative action policies that give extended formations demand support that
surpasses what many call the colonialidade know this at the University. Research has shown
that bring significant changes in Collective universities, as was the case of the conquest of the
vestibular dimension in the Unicamp, organizing new events as, for example, the Who has
Color Acts (Unicammp) and the national meeting of students and Collectives Black College
(EECUN), the indigenous of vestibular UFSCar held now in four capitals, not only at UFSCar
(São Carlos/SP). In addition, the empirical research.
Keywords: Public policies of affirmative action; Decolonial Thought; Black Movement;
Higher Education; Racism;
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Árvore do Conhecimento Humano de Diderot e D'Alembert ................................. 34
Figura 2 - A redenção de Cam – Modesto Brocos ................................................................... 67
Figura 3 – Diagrama de respostas ao questionário - UFSCar................................................. 152
Figura 4 - Diagrame de respostas ao questionário - Unicamp ................................................ 152
Figura 5 - Sistema de reserva de vagas de acordo com a Lei 12.711/12 ................................ 161
Figura 6 – 1ª foto postada no 'Café das Pretas' - Angela Davis discursando.......................... 174
Figura 7 - Eventos realizados pelo "Café das Pretas" ............................................................ 175
Figura 8 - Divulgação do Evento ............................................................................................ 176
Figura 9 - Publicação para a 1ª Reunião da Frente Negra UFSCar ........................................ 178
Figura 10 - Evento para Participação estudantil no ConsUni de aprovação da Política de
Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade .......................................................................... 181
Figura 11 - Evento organizado pela Frente Negra - UFSCar ................................................. 183
Figura 12 - Roda de Conversa realizada pela Frente Pró-Cotas em 2014 .............................. 211
Figura 13 - Divulgação de Evento para discussão sobre Cotas. ............................................. 215
Figura 14 - Carta Aberta da Frente Pró-Cotas ........................................................................ 217
Figura 15 - Divulgação de debates sobre “Cotas Étnico-raciais” na FE ................................ 218
Figura 16 - Publicação racista após a aprovação do princípio de Cotas na 151ª Sessão do
Consu ...................................................................................................................................... 225
Figura 17 - Divulgação do I Quem tem Cor age .................................................................... 227
Figura 18 - Cartazes de divulgação das 4 últimas edições do "QUEM TEM COR AGE" .... 229
Figura 19 - Ações durante a Calourada Negra de 2014 .......................................................... 231
Figura 20 - Cartaz de divulgação da Calourada Negra de 2018 ............................................. 232
Figura 21 - Denúncia realizada pelo NCN sobre atos de racismo na Unicamp ..................... 233
Figura 22 - Cartaz de divulgação do Ato contra o racismo e o fascismo na Unicamp .......... 235
Figura 23 - Cartaz de divulgação para o Ato de Mobilização para aprovação do Projeto que
previa a inclusão de cotas na graduação da Unicamp (21/11/2017)....................................... 239
Figura 24 - Nota do NCN contra a ameaça fascista ............................................................... 240
Figura 25 - EECUN - UFRJ ................................................................................................... 245
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Políticas Públicas de Ação Afirmativa brasileiras ............................................... 116
Quadro 2 – Projetos de Lei que resultaram na Lei 12.711/12 ................................................ 122
Quadro 3 – Coletivos atuantes nas IES e seus propósitos ...................................................... 150
Quadro 4 – Presença de Disciplina com a temática de História e Cultura Africana, Afro-
brasileira e indígena (13 respondentes) .................................................................................. 167
Quadro 5 - Presença de disciplinas que abordem História e Cultura Africana, Afro-Brasileira
e Indígena (8 respondentes) .................................................................................................... 204
Quadro 6 – Edições do Evento "Quem tem Cor Age" ........................................................... 228
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADunicamp – Associação dos Docentes da Unicamp
CCI – Centro de culturas Indígenas (UFSCar)
CE – Ceará
CEB – Câmara de Educação Básica
CNCD – Conselho Nacional de Combate à Discriminação
CNE – Conselho Nacional de Educação
COMVEST – Comissão Permanente para os Vestibulares (Unicamp)
Consu – Conselho Universitário (Unicamp)
ConsUni – Conselho Universitário (UFSCar)
CR – Coeficiente de rendimento (Unicamp)
DCN – Diretrizes Curriculares Nacional
DEM – Democratas
EECUN – Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros
EJA – Educação de Jovens e Adultos
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
EUA – Estados Unidos da América
FHC – Fernando Henrique Cardoso
FNB – Frente Negra Brasileira
FPC – Frente Pró-Cotas da Unicamp
FUFSCar – Fundação Universidade Federal de São Carlos
Fuvest – Fundação Universitária para o Vestibular
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IES – Instituições de Ensino Superior
INCRA – Instituto de Colonização e Reforma Agrária
INEP – Instituto Nacional Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LDB – lei de Diretrizes e Bases
LGBTTQ – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Queer
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MEC – ministério da Educação
MG – Minas Gerais
MNU – Movimento Negro Unificado
MS – Mato Grosso do Sul
MT – Mato Grosso
NCN – Núcleo de Consciência Negra da Unicamp
ONG – Organização Não Governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
PAAIS – Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social
PDT – Partido Democrático Trabalhista
PFL – Partido da Frente Liberal
PL – Projeto de Lei
PL/RJ – Partido Liberal / Rio de Janeiro
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PPAA – Políticas Públicas de Ação Afirmativa
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
Reuni – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
RR – Roraima
RS – Rio Grande do Sul
SAADE – Secretaria Geral de Ação Afirmativa, Diversidade e Equidade UFSCar
SC – Santa Catarina
SEPPIR – Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial
SiSU – Sistema de Seleção Unificada
TEN – Teatro Experimental do Negro
UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense
UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFBA – Universidade Federal da Bahia
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina
UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
UHC – União dos Homens de Cor
UnB – Universidade de Brasília
Unicamp – Universidade Estadual de Campinas
USP – Universidade de São Paulo
Vunesp – Fundação para o Vestibular da Universidade Estadual Paulista
SUMÁRIO
PREFÁCIO ....................................................................................................... .............. 15
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 26
2. DA COLONIZAÇÃO À COLONIALIDADE: O PERIGO DA HISTÓRIA ÚNICA ... 47
2.1. UM PAÍS COLONIAL É UM PAÍS RACISTA ....................................................................... 73
2.2. COLONIALIDADE DO PODER, DO SER E DO SABER – PÓS COLONIALISMO E DECOLONIALIDADE
..................................................................................................................................... 90
3. POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA (PAAS) ...................................... 102
3.1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL .................................... 108
3.1.1. O debate sobre as “cotas” – a Lei 12.711/12 ................................................. 121
3.1.2. História e Cultura africana, afro-brasileira e indígena – as Leis 10.639/03 e
11.645/08 ......................................................................................................... 138
4. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA E SEUS EFEITOS – OS CASOS DA
UFSCAR E DA UNICAMP .................................................................................................... 146
4.1. UFSCAR ..................................................................................................................... 153
4.1.1. Café das Pretas e Frente Negra – UFSCar ..................................................... 173
4.2. UNICAMP .................................................................................................................... 184
4.2.1. Frente Pró-Cotas da Unicamp ...................................................................................... 208
4.2.2. Núcleo de Consciência Negra da Unicamp ........................................................... 225
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 242
6. REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 249
7. APÊNDICES .......................................................................................................... 267
7.1. QUESTIONÁRIO .......................................................................................................... 267
7.2. ENTREVISTA – FRENTE NEGRA UFSCAR .................................................................. 271
7.3. ENTREVISTA – NÚCLEO DE CONSCIÊNCIA NEGRA – UNICAMP .................................. 272
15
PREFÁCIO
Escrever uma tese foi algo realmente desafiador. Foi um caminho tortuoso que me
colocou em dúvidas acerca do meu “potencial acadêmico”, como também com minha postura
“militante” pelos encontros e desencontros que tive nestes quase cinco anos. Chegar até aqui
leva-me também a recordar os caminhos anteriores que me trouxeram até este momento.
Escrever esta tese me colocou em contato crítico com o ensino escolar que tive, o
qual me ensinou a obedecer antes e muito mais que questionar. Foi na escola que aprendi, por
meio de uma equação quase matemática que, filha de pai preto e mãe branca eu era parda.
Que os negros vieram da África para serem escravos. Eu aprendi também, sem muita
dificuldade, que “vovô viu a uva”, mas demorou muito tempo para que eu pudesse entender
quem plantava a uva, que havia exploração dos trabalhadores e que no final nem todos teriam
direito a desfrutar do seu sabor.
Cursar pedagogia foi o acontecimento que amparou as minhas questões e
inquietações em teorias e discussões que, embora nem sempre acompanhadas da prática
docente, fizeram com que pudesse compreender os incômodos vivenciados como
“colaboradora” em uma empresa privada. Eu não queria vestir a camisa da empresa e
tampouco conseguia deixar o lado pessoal do lado da fora da empresa como nos era
solicitado. Eu ainda não conhecia Marx, mas já ansiava por mudanças que eu nem sabia que
já haviam sido teorizadas.
Assim, desde a graduação em pedagogia (2004-2007) passei a entender a
educação como um processo que deve ter em seu cerne o senso crítico, a reflexão e que tenha
como objetivo central a formação de cidadãos éticos e socialmente responsáveis. Da menina
que entrou no curso porque “gostava de criança” foi no estágio na Faculdade de Ciências
Médicas que encontrei um caminho até então imaginável: a educação médica. Era fascinante
pensar a formação de profissionais que, muitas vezes, esquecem que a medicina deve, antes
de tudo, cuidar de gente. Foi assim, passando pela temática da Educação Médica que me
interessei pela Educação Superior como tema para pesquisa.
Ao concluir a graduação cursei, como ouvinte, a disciplina “Teoria de Currículo e
Filosofia na Educação Superior”, momento que conheci a teoria da Educação Geral1 e
1 A educação geral tem o papel de formar cidadãos capazes de desempenhar uma atividade profissional à
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encontrei os respaldos teóricos que respondiam aos meus anseios para tratar deste nível de
ensino e prosseguir com os estudos no mestrado (FE/Unicamp, 2010-2012), quando pesquisei
a avaliação que os egressos dos cursos de Pedagogia e de Medicina da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) faziam sobre as contribuições da formação acadêmica e das
vivências universitárias para uma atuação como profissional-cidadão2 (GONÇALVES, 2012).
Esse estudo permitiu concluir, embora com ressalvas como o limite do tamanho e
representatividade da amostra, que a Unicamp é capaz de possibilitar uma formação
abrangente, crítica e pautada em valores éticos que possibilitou o desenvolvimento de um
olhar mais sensibilizado sobre a sociedade na qual estes profissionais – médicos e pedagogos
– estão inseridos e uma ação profissional que valoriza o ser humano, sem descuidar da
preocupação com a sua inserção no mundo do trabalho, ciência e tecnologia (GONÇALVES,
2012).
Entretanto, durante o Mestrado3 tornou-se muito forte no cenário nacional a
discussão sobre as cotas nas instituições de ensino superior, principalmente quando foi
sancionada a Lei 12.711/12 que tornou obrigatória a reserva de vagas nas instituições de
educação do âmbito federal para estudantes da escola pública e também para negros, negras e
indígenas. Neste cenário fui me aproximando cada vez mais das questões de políticas públicas
de ação afirmativa e das questões históricas e contemporâneas acerca das relações étnico-
raciais, tão necessárias para o entendimento de nossa sociedade e da necessidade de políticas
públicas que visam a igualdade racial.
Assim, voltando minha atenção e reflexão para estas temáticas foram desveladas
situações que anteriormente eu pouco percebia e que agora tornara-se um mal estar constante:
a quase ausência de negros, negras e indígenas ocupando os bancos das universidades, mas
presentes massivamente nos seus serviços terceirizados, realidade vivenciada durante os mais
de dez anos em que estive/estou na Unicamp; a quase ausência de negras e negros em
profissões de prestígio social como Medicina e Engenharia, por exemplo; a presença
quantitativa inexpressiva de negras e negros em meu convívio profissional e social, apesar da
sociedade, prepará-los para exercer o papel de cidadãos numa sociedade civil e política mais justa e democrática.
Prepará-los para o mundo do trabalho e não apenas para o mercado de trabalho (ALMEIDA, 2007).
2 O termo profissional-cidadão se refere ao sujeito que se vê primeiramente como um cidadão ativo e
significativo em seu tempo histórico e que age profissionalmente em sua área tendo, primordialmente como
perspectiva a sua condição de cidadão inserido em uma sociedade e um mundo global e complexo (PEREIRA,
2007).
3 Cursei o Mestrado de março de 2010 a novembro de 2012.
17
origem família paterna negra; a criminalização dos jovens negros, sempre tido como
suspeitos; a História oficial apresentada, na qual as pessoas negras e indígenas, extirpadas de
sua história e consideradas sem cultura, são apresentadas como escravas e/ou selvagens,
ignoradas na sua essência humana e, por fim, a ausência de possibilidades pedagógicas que
extrapolassem a exclusividade da tradição eurocêntrica dos currículos.
A partir deste cenário, comecei também a me incomodar com as perspectivas da
Educação Geral no Brasil que, apesar de objetivar o rompimento das barreiras disciplinares e
buscar transcender as áreas específicas do conhecimento a partir de um diálogo
interdisciplinar que retoma a tradição clássica ocidental, não tem buscado incorporar as
histórias, filosofias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas limitando, desta forma, o
horizonte de formação geral e reforçando o silenciamento sobre o conhecimento dos povos
africanos e indígenas que, além dos europeus, são também basilares na constituição de países
como o Brasil4.
Essas novas reflexões fizeram com que eu questionasse por que, apesar de ter
cursado Pedagogia em uma das bem-conceituadas universidades brasileiras, não tive qualquer
aproximação acadêmica com as Histórias e Culturas Africanas e Indígenas, apesar de à época5
já ser obrigatório, por força da Lei 10.639/03, o ensino de História e Cultura Africana e Afro-
brasileira6. Isso me fez questionar se, após mais de dez anos da implementação das Leis
10.639/03 e 11.645/08, estas temáticas teriam finalmente ganhado espaço no currículo formal
dos cursos, principalmente de formação de professores, e se as universidades passaram a se
organizar para oferecer uma educação antirracista. Essas foram as inquietações que
começaram a dar forma a este trabalho.
De frente a essas questões que me perturbavam por não encontrar na academia a
ressonância e interlocução que desejava para as mesmas, percorri um caminho de leituras e
tentativas, muitas vezes frustradas, de um trabalho que dialogasse com as minhas ansiedades e
o desejo de contribuir com uma formação que superasse o racismo e a ideologia7 da
4 Silva (2007) explica que isto acontece porque somos oriundos de uma educação que atribui aos brancos
europeus a cultura que denominam clássica, desconhecendo as culturas dos povos não europeus que também têm
permanecido no tempo e, portanto, são igualmente clássicas. Assim, diz a autora, ignoramos que o conhecimento
produzido pelos egípcios, povo negro, são a nascente da filosofia e das ciências que se costuma atribuir aos
gregos e a outros europeus.
5 Cursei licenciatura em Pedagogia na Faculdade de Educação da Unicamp durante o período de 2004 a 2007.
6 A questão indígena é incluída cinco anos depois, em 2008.
7 Apesar do uso recorrente da expressão “mito da democracia racial”, optamos por usar o termo “ideologia da
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democracia racial, como também contribuísse para o desenvolvimento de uma sociedade mais
justa e igualitária a partir da construção de uma nova perspectiva de relações étnico-raciais.
Por fim, o fator determinante que me trouxe um novo caminho e fez emergir o
problema desta pesquisa se deu quando, ao ser contemplada com uma Bolsa Santander para
intercâmbio, estive durante 70 dias (outubro a dezembro de 2016) em Cabo Verde, país
insular da denominada África Ocidental. A expectativa era a de que me depararia com
Histórias e Culturas Africanas vivas que me subsidiassem a aproximação com a
ancestralidade africana que foi relegada ao Brasil pelo racismo epistêmico8. Entretanto, a
surpresa e frustração tão logo chegaram ao perceber que o peso da colonização portuguesa
neste país é tal qual ou ainda mais forte que no Brasil, o que pode ser explicado em vista da
sua recente independência, em 1975, que, embora conquistada à base de luta, não foi
suficiente para romper com cinco séculos de dominação que acabara por impor também em
terras africanas a hegemonia cultural, religiosa e epistemológica europeia9.
Assim, pude presenciar – com o limite do tempo e espaço em que estive no país10
– a religiosidade cabo-verdiana fortemente ligada ao cristianismo com uma maioria
esmagadora da população autodeclarada católica. Presenciei também manifestações religiosas
de igrejas evangélicas como a Batista, Adventista do 7º dia, Nazareno e Universal do Reino
de Deus. Na universidade, era comum ver estudantes com terços adornando o pescoço, ou
brincos com a imagem de Jesus Cristo. Não encontrei manifestações religiosas ligadas às
matrizes africanas, como o Candomblé, por exemplo.
Pude ainda perceber que o ideal de branqueamento está presente, tal qual no
Brasil, no qual o prestígio social liga-se também a quanto mais clara for a pele da pessoa. Isso
se concretiza em Cabo Verde na rivalidade entre as ilhas, na qual a ilha que possui uma
democracia racial” uma vez que, ao nosso entender, ideologia corresponde melhor ao que de fato foi e ainda
persiste ser a ideia de uma harmonia racial no Brasil. Assim, compreendemos ideologia como um instrumento de
dominação da classe dominante, convertida em ideias supostamente comuns a todos através da educação, da
religião, costumes e dos meios de comunicação disponíveis (CHAUÍ, 2008). 8
O racismo epistêmico fez com que todo o conhecimento e cultura advindos dos povos originários americanos e
africanos fossem ignorados e/ou tidos como inferiores. O termo é melhor discutido na página 09.
9 Mourão (2009) explica que a construção das nacionalidades cabo-verdianas privilegia a forma de colonização
portuguesa e as elites cabo-verdianas são fundamentais à compreensão da construção da identidade nacional em
Cabo Verde. A forma de ocupação e as estratégias usadas pelos portugueses e pelas elites cabo-verdianas –
aliadas aos portugueses, no projeto colonial – distanciaram os cabo-verdianos de suas "raízes africanas" e os
aproximaram mais da "cultura europeia", possibilitando questionar se são africanos, atlânticos, europeus ou uma
mistura de todos esses atributos. Em suas definições sobre a "cabo-verdianidade", muitos elementos identitários
são acionados e se relacionam, como "raça", língua, religião e nacionalidade. 10
Estive na cidade de Praia, capital do país, na Ilha de Santiago entre os meses de outubro a dezembro de 2016.
19
população mais branqueada manifesta um sentimento de superioridade em relação à
população de ilhas com pessoas de pele mais escura.
Assim, a partida de Cabo Verde finalizou uma experiência que, paradoxalmente,
alçou-me novamente no recomeço desta pesquisa ao pensar sobre possibilidades decoloniais e
políticas públicas de ação afirmativa.
Em meio a essas reflexões, o Brasil sofreu em 2016 um novo golpe que acarretou
no impeachment da presidenta eleita Dilma Roussef (PT), colocando no poder seu vice,
Michel Temer (PMDB) o qual passa a implementar o programa da agenda da bancada do
capital financeiro, do agronegócio, da segurança militar e da moralização religiosa. Exemplo
disso é a Emenda Constitucional nº 95, de 2016 que institui um novo regime fiscal que
congela os gastos do governo por 20 anos e, além disso, a diminuição de investimentos nas
universidades federais em 28,5% que fez com que 90% delas recebessem em 2017 valor
abaixo do recebido em 2013 ou 2014 (para as universidades mais novas), mesmo
considerando a correção pela inflação11
.
O golpe evidencia ainda o desagrado com os poucos e lentos processos de
decolonização que vem se implantando com, por exemplo, a obrigatoriedade do ensino de
história e cultura afro-brasileira, africana e indígena e as cotas para pessoas negras e indígenas
em instituições federais (e muitas estaduais). O golpe coloca em curso o projeto de
recolonização da América Latina que tem como pontos estratégicos: o controle dos recursos
naturais e a privatização das empresas estatais com os Estados Unidos como centro de origem
da articulação golpista12
.
Por fim, o último ano da pesquisa foi marcado pela volta à sala de aula. Depois de
poder dedicar 3 anos somente à pesquisa sob o amparo financeiro da Capes, em março de
2018 assumi como professora no Ensino Fundamental da Rede Municipal de Campinas, o que
acaba por retardar o desenvolvimento final e defesa da tese, mas traz vivências que me
enriquecem e me sensibilizam de modo que, ainda que não explicitamente, estão também
marcadas na escrita final deste trabalho.
No cenário nacional, nos momentos finais da escrita, sofremos mais um abalo na
já tão frágil democracia brasileira. Foi eleito como presidente o candidato (PSL) que proferia
11 https://g1.globo.com/educacao/noticia/90-das-universidades-federais-tiveram-perda-real-no-orcamento-em-
cinco-anos-verba-nacional-encolheu-28.ghtml
12 http://www.carosamigos.com.br/index.php/cotidiano/6782-golpe-no-brasil-e-parte-do-projeto-de-
recolonizacao-da-a-latina-diz-premio-nobel-da-paz-perez-esquivel
20
publicamente declarações racistas, machistas, homofóbicas, além de manifestações de desejo
de aniquilamento de seus adversários políticos. Jair Bolsonaro foi eleito com uma campanha
pautada em fake News patrocinada por doação de empresas por meio de serviços, o que é
proibido pela legislação eleitoral, configurando-se como caixa 213
.
Desde a vitória sobre o candidato Fernando Haddad (PT), o presidente eleito já
fez declarações com vistas à perseguição ideológica de professores, buscando instaurar na
prática o nefasto projeto do programa “Escola sem partido14
” que, de fato, é um projeto de
partido único que visa impor a censura e perseguição a professores e professoras que busquem
desenvolver uma criticidade para além do status quo imposto. Um dos ataques mais
corriqueiros do projeto é acerca as questões de gênero, denominada “ideologia de gênero”. O
programa tenta proibir a educação sexual e a educação para a diversidade nas escolas,
amparado num moralismo cristão heteronormativo que ignora as questões sociais que
envolvem a diversidade humana, como também os abusos contabilizados que acontecem
contra mulheres, crianças e LGBTQs em grande parte, dentro de casa. Além disso, práticas
com questões de africanidades também têm sido cada vez mais hostilizadas e, muitas vezes,
proibidas15
, ignorando-se a obrigatoriedade da Lei 10.639/03.
Diante disso, esta tese marca também a não neutralidade diante do status quo, e o
posicionamento político e ideológico de mulher, professora, inserida em uma geografia ainda
marcada pelo machismo, misoginia, racismo, LGBTQfobia, policialesca e por um
autoritarismo que se aproxima de um fascismo que alcança os muros da universidade em
ameaças e pichações que são diminuídas a crime contra o patrimônio público16
e não como
violências fascistas e racistas que são. A escrita que apresento a seguir marca, portanto, o lado
da história em que me coloco: o lado de quem ousa lutar pela manutenção e ampliação dos
direitos e por dias melhores.
Antes da Introdução, apresentamos, a seguir, os principais autores com quem
estabelecemos diálogo durante o desenvolvimento deste trabalho. A apresentação constava
nas páginas iniciais do trabalho, mas o modelo engessado com que a universidade insiste em
produzir conhecimento proibiu que assim fosse, de forma que incluímos nesta seção a
13 https://exame.abril.com.br/brasil/pt-quer-investigacao-da-campanha-de-bolsonaro-por-praticas-ilicitas/
14 Movimento político criado em 2004 no Brasil e divulgado em todo o país pelo advogado Miguel Nagib. Ele e
os defensores do movimento afirmam representar pais e estudantes contrários ao que chamam de "doutrinação
ideológica" nas escolas. 15
https://jornalistaslivres.org/escola-do-sesi-proibe-livro-sobre-cultura-africana/ 16
https://www.geledes.org.br/pixador-racista-da-unicamp-sera-investigado-apenas-por-dano-ao-patrimonio/
21
apresentação de tais autores, muitos dos quais, por muitos anos, foram excluídos e/ou
ocultados do mundo científico pelas suas marcas de raça e gênero. Entendemos que
representatividade importa e desejamos reforçar que a ciência é uma construção coletiva que
inclui pessoas de diversas raças e gêneros.
LISTA DE PRINCIPAIS AUTORAS E AUTORES
Hector ALIMONDA Pierre Félix BOURDIEU
Linda Martín ALCOFF Bell HOOKS
José Augusto Lindgren
ALVES Vera Maria Ferrão
CANDAU
Luciana BALLESTRIN Aparecida Sueli
CARNEIRO
22
Márcio BARBOSA José Jorge de
CARVALHO
Dora Lúcia de Lima
BERTÚLIO
Santiago CASTRO-
GOMEZ
Aimé Fernand David
CÉSAIRE
Jeffrey LESSER
Marilena de Souza
CHAUÍ José DIAS SOBRINHO
Sérgio COSTA Frantz Omar FANON
23
Manuela Carneiro da
CUNHA
Ruth FRANKENBERG
Jerry D’ÁVILA Paul GILROUY
Joaquim Benedito
Barbosa GOMES
Nelson MALDONADO-
TORRES
Nilma Lino GOMES Albert MEMMI
Ramón GROSFOGUEL Walter D. MIGNOLO
24
Antônio Sérgio Alfredo
GUIMARÃES
Kabengele MUNANGA
Stuart HALL Abdias do NASCIMENTO
Oracy NOGUEIRA Darcy RIBEIRO
Renato NOGUERA Edward Wadie SAID
Arabela Campos
OLIVEN
Boaventura de Sousa
SANTOS
25
Marcelo Jorge de Paula
PAIXÃO
Natália Neris da Silva
SANTOS
Aníbal QUIJANO Lilia Moritz SCHWARCZ
Petronilha Beatriz
Gonçalves e SILVA
Carlos Moore
WEDDERBURN
Valter Roberto
SILVÉRIO Francisco Sandro da
Silveira VIEIRA
Catherine WALSH
26
1. Introdução
Esta tese partiu do seguinte problema de pesquisa: quais os efeitos causados pelas
políticas públicas de ação afirmativa nas universidades? Para tanto, adotamos como objetivo
geral analisar as Políticas de Ação Afirmativas e seus efeitos nas universidades públicas.
Ou seja, visa compreender os efeitos causados no espaço acadêmico, pelas Políticas Públicas
de Ação Afirmativa das Leis 10.639/03, 11.645/08 e 12.711/12 que, lentamente, incluíram o
povo negro e indígena no ensino superior e o ensino de história e culturas africanas, afro-
brasileira e indígenas nos currículos17
em duas universidades públicas brasileiras: UFSCar e
Unicamp.
A partir disso, elencamos como objetivos específicos:
i. analisar as políticas de ação afirmativa implementadas nas universidades
investigadas;
ii. identificar e analisar o perfil dos estudantes de 2003 a 2017, período que
recobre os vestibulares antes e depois da implementação das PPAAs;
iii. identificar se o período coberto pelas PPAA de inclusão nas universidades
promoveu o aparecimento de novas temáticas;
iv. levantar os coletivos formados, nestas universidades após a implementação da
política de ação afirmativa de inclusão (cota ou bonificação no vestibular);
v. conhecer e analisar as especificidades e práxis dos coletivos (quando se
formou? Quem são os membros? São estudantes de quais cursos? São todos beneficiários das
PPAA? Quais as principais atividades? Etc.);
vi. investigar se e como os coletivos estabelecem relação com as Leis 10.639/03 e
11.645/08;
vii. investigar se e como a práxis desses coletivos transcendem a exclusividade da
tradição eurocêntrica;
Partimos da hipótese de que as políticas públicas de ação afirmativa,
17 Embora o texto da Lei apresente a obrigatoriedade deste ensino na Educação Básica, os documentos
normativos que determinam, dentre outros pontos, a sua abrangência como as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações étnico-raciais e para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2004b), por exemplo, determinam que as Instituições de
Ensino Superior deverão incluir nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares nos diferentes cursos que
ministram a Educação das relações étnico-raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem
respeito aos afrodescendentes.
27
principalmente as de inclusão, como é o caso da Lei 12.711/12, ao possibilitarem o ingresso
de grupos antes excluídos do espaço acadêmico, como o povo negro e indígena, alteram e
enriquecem as dinâmicas formativas dentro da universidade ao colocar no cenário acadêmico
novas formas de pensar, sentir e agir, novas temáticas, diferentes epistemologias e demandas
para diferentes formações que podem dar início a uma tradição decolonial nas universidades.
Temos ainda uma segunda hipótese que é a de que as Leis 10.639/03 e 11.645/08
são políticas públicas de ação afirmativa que dão amparo à demanda para formações
ampliadas que superem a colonialidade do saber presente nas universidades.
O interesse pelas Políticas Públicas de Ação Afirmativa se deve ao fato de
compreender e rechaçar o fato de que vivemos em um país racista e, portanto, são necessárias
medidas que auxiliem a destruir esta ideologia tão nefasta. Desta forma, as PPAAs, ao
reconhecerem o racismo estrutural e estruturante da sociedade, são possibilidades de esfacelar
esta ideologia secular e iniciar a construção de uma democracia racial de fato, tendo em vista
que nossa universidade “não tem sido democrática desde a primeira instituição brasileira que
adotou esse nome – a Universidade de Manaus criada em 1909 e que vingou até 1929”
(ROSEMBERG, 2010, p. 10). Daí o desejo de analisar o impacto que estas políticas estão
causando nas universidades brasileiras.
Importante, portanto, retomar, ainda que brevemente, o histórico do Ensino
Superior brasileiro que até o início do século XIX era realizado na Universidade de Coimbra
que servia tanto à Metrópole quanto à Colônia (TEIXEIRA, 1989). Isto porque até o século
XVIII o governo português proibia de modo explícito a criação de instituições de ensino
superior, já que um dos fortes vínculos que sustentava a dependência das colônias era a
necessidade de estudar em Portugal. A Universidade de Coimbra, portanto, tinha como um
dos objetivos unificar o controle do império português desenvolvendo uma homogeneidade
cultural avessa a questionamentos à fé católica e à superioridade da Metrópole em relação à
Colônia (MAYORGA; COSTA; CARDOSO, 2010).
Assim, o Ensino Superior no Brasil teve início apenas no século XIX com a
chegada da Família Real Portuguesa em 1808 e a transferência da sede do poder
metropolitano para o Brasil sendo, portanto, necessário promover um ensino superior
adequado ao modelo de Estado nacional liberal (MAYORGA; COSTA; CARDOSO, 2010).
De tal modo, foram criadas Faculdades isoladas (medicina e academias militares e Escola de
Belas Artes) por D. João VI, com grande influência do Modelo Francês, que visava uma
formação profissionalizante em detrimento de uma formação cultural. Já em 1911 foram
28
instituídos os exames de admissão cujo objetivo era dificultar o acesso ampliado tendo em
vista que os conhecimentos arguidos no exame se relacionavam ao capital social e cultural
reservados aos membros da pequena elite (idem).
Somente no Século XX foram criadas as primeiras universidades brasileiras18
, ou
seja, instituições caracterizadas pelo tripé composto por Ensino, Pesquisa e Extensão mas
seguindo a política de atender aos interesses da elite do país. Assim sendo, a universidade foi
construída pautada naquilo que era importante para esse grupo: “a reprodução quase
automática da percepção desse grupo acerca de um modelo de sociedade e de sujeito, que
pouco correspondia à sociedade brasileira e ao interesse de grande parte da população”.
(CRUZ, et. Al., 2010, p. 71).
Na década de 60, um movimento liderado pela União Nacional dos Estudantes
(UNE), apesar da repressão às manifestações após o golpe militar de 1964, tomou as ruas
requerendo “mais verbas e mais vagas” nas universidades. O movimento culminou na
primeira Reforma Universitária brasileira (1968), a qual foi fundamentada nos modelos
estruturais estadunidense. Na prática, a Reforma acabou por concretizar a expansão do ensino
superior, via autorizações do Conselho Federal de Educação, para a criação de escolas
isoladas privadas, que acabaram por se tornar a regra da expansão do ensino superior.
Apesar da expansão, o ensino superior até o final do Século XX continuava a se
configurar como privilégio de uma minoria que representava pouco mais de 20% da
população de 18 a 24 anos. A situação era ainda mais excludente ao pensar a população negra,
uma vez que, destes, apenas 4% eram negros, conforme é possível observar no gráfico a
seguir.
18 O Brasil foi o último país da América a implementar Ensino Superior de nível universitário.
29
Gráfico 1 – Taxa bruta de escolaridade no Ensino Superior da população de 18 a 24 anos
Este breve histórico visa evidenciar que a universidade brasileira jamais se
constituiu como uma instituição neutra e fora da dinâmica política e econômica da sociedade
brasileira, pelo contrário, além de ser um privilégio característico da riqueza de uma
determinada classe – branca, patriarcal e senhoril –, também se caracteriza como uma das
formas de dominação hegemônica europeia na medida em que coloniza conhecimentos,
práticas e sujeitos através dos laços de dependência criados e mantidos para este fim
(MAYORGA, COSTA, CARDOSO, 2010).
Diante desce cenário, acreditamos que discutir cotas é repensar e avaliar a função
social da universidade pública que deveria abarcar as diferenças, sem transformá-las em
desigualdades, trazer para si o esforço de “desaprender o colonialismo” (HOOKS, 2017, p.
48), e formar lideranças que representassem a diversidade étnica e racial do país
(CARVALHO, 2003). De tal modo, a “opção decolonial”19
(FANON, 1968; QUIJANO,
2005; MIGNOLO, 2008; WALSH, 2010; GROSFOGUEL, 2012; BALLESTRIN, 2013) foi o
respaldo encontrado nas buscas teóricas e metodológicas para nos amparar nesta pesquisa.
Esta perspectiva nos trouxe os respaldos necessários para compreender que o racismo
19 A “opção decolonial” é encontrada nos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo Modernidade/Colonialidade
formado por intelectuais latino-americanos, e também pelo português Boaventura de Sousa Santos, que
encabeçam um movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica das ciências sociais na América
Latina no século XXI (BALLESTRIN, 2013). O Grupo foi estruturado no final dos anos 90 e tem entre seus
membros: os filósofos Enrique Dussel, Neson Maldonado-Torres, os sociólogos Aníbal Quijano, Immanuell
Wallerstein e Edgard Lander, o semiologista Walter Mignolo e a semilogista Zulma Palermo, a linguista
Catherine Walsh, os antropólogos Arthuro Escobar e Edgardo Lander e o jurista Boaventura de Sousa Santos.
No Brasil autores como Vera Maria Candau e Luciana Ballestrin são adeptas das teorias do grupo.
1988 1998 2008
12,4% 16,8%
35,8%
3,6% 4,0% 16,4%
Negros
Brancos
30
ultrapassa as questões sociais locais isoladamente, à medida que faz parte de uma estrutura
ideológica maior e mais complexa implantada com a colonização nas Américas, Ásia e África
que coloca em voga um projeto de mundo no qual a Europa afirma-se “como uma identidade
superior ao construir constructos inferiores (raciais, nacionais, religiosos, sexuais, de gênero)”
(CASTRO-GOMES; GROSFOGUEL, 2007, p. 291).
Desta forma, ao compreender, através de Quijano (2005), que a ideia moderna de
“raça” humana surge como categoria após a invasão dos europeus às terras americanas para
marcar as diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados a partir de supostas
diferenças biológicas entre os grupos, torna-se evidente que o conceito esteve atrelado a uma
visão hierárquica que “converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da
população mundial nos níveis e papéis na estrutura de poder da nova sociedade” (idem, p.
118). É dentro deste cenário que se desenvolvem as relações étnico-raciais no Brasil. Elas
estão intimamente ligadas ao processo histórico de dominação a partir do momento em que
nossas terras foram invadidas pelos portugueses.
Frantz Fanon (1969, p. 35) explica que o “racismo não é um todo, mas o elemento
mais visível, mais quotidiano, para dizermos tudo, em certos momentos, mais grosseiro e de
uma estrutura dada”, ou seja, “a realidade é que um país colonial é um país racista” [grifo
nosso] (idem, p. 44). De tal modo, supomos que a implementação de Políticas Públicas de
ação Afirmativa, seja de inclusão do povo negro e indígena no Ensino Superior pela Lei
12.711/12, seja pela obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana, Afro-brasileira
e Indígena, como pressuposta pelas Leis 10.639/03 e 11.645/08, são possibilidades
decoloniais, uma vez que visam romper com o racismo estrutural e epistêmico.
A perspectiva decolonial compreende a colonialidade como a extensão da
colonização que, apesar de política e juridicamente ter se findado, não encerrou com a forma
de pensar, sentir e agir e com as práticas sociais imputadas violentamente pelos colonizadores
e, portanto, da mesma forma como foi necessária a descolonização, ou seja, a eliminação da
presença física e da exploração do colonizador, na contemporaneidade urge romper com a
colonialidade do ser, do saber, do poder e da natureza20
, num processo decolonial. Isto porque
20 O conceito de colonialidade da natureza é menos visto na literatura do grupo Modernidade/Colonialidade, mas
presente. Alimonda (2011) explica que a colonialidade da natureza persiste desde a colonização no pensamento
hegemônico das elites dominantes da região que compreendem a natureza como um espaço subalterno, que pode
ser explorado, arrasada, reconfigurado de acordo com as necessidades do sistema de acumulação vigente. Desta
forma, ao longo de cinco séculos, ecossistemas inteiros foram arrasados pela implementação da monocultura
para exportação. Hoje, esta colonialidade está presente nas monoculturas de soja e agrocombustíveis com
31
“nenhum povo, mesmo no período pós-colonial, consegue se livrar de seu colonizador,
enquanto não se liberta também de seus referenciais teóricos, de suas premissas, de seus
fundamentos e de seus paradigmas” (ROMÃO, 2012). Ou seja, destruir o racismo passa
também por um projeto decolonial de sociedade.
Em outras palavras, a colonialidade inclui como autoridade política a distribuição
hierárquica de certos lugares, de processos, metodologias e epistemologias na qual a questão
de identidade torna-se elemento legítimo no desenvolvimento de uma filosofia da libertação
(ALCOFF, 2016). Alcoff (2016, p. 136) explica que
O projeto de decolonização epistemológica (e a mudança da geografia da razão
requer que prestemos atenção à identidade social não simplesmente para mostrar
como o colonialismo tem, em alguns casos, criado identidades, mas também para
mostrar como têm sido silenciadas e desautorizadas epistemicamente algumas
formas de identidade enquanto outras têm sido fortalecidas. Assim, o projeto de
decolonização epistemológica presume a importância epistêmica da identidade
porque entende que experiências em diferentes localizações são distintas e que a
localização importa para o conhecimento. [...] Acredito que a inclinação anti-
identidade tão prevalente na teoria social hoje é outro obstáculo para o projeto de
decolonização do conhecimento.
Estamos de acordo com a importância da identidade e, neste sentido, parece-nos
importante salientar que, ao contrário da concepção moderna, entendemos “raça” como um
conceito social que contempla a possibilidade de desenvolvimento de uma cidadania plena, à
medida que se busca, neste momento histórico, a reparação para os danos causados pela visão
biologista e hierárquica que o conceito carregou e ainda carrega no senso comum onde o
racismo impera. Sabemos que não há na espécie humana nada que possa ser classificado a
partir de critérios científicos que corresponda à compreensão que se tem de raça, assim, “o
que chamamos de “raça” tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo social e,
portanto, somente no mundo social pode ter realidade plena” (GUIMARÃES, 2002, p. 50).
Neste sentido, o conceito de raça no mundo social só poderá ser dispensado quando já não
existirem grupos sociais que se identifiquem a partir de marcadores direta ou indiretamente
derivados da ideia de raça; quando as desigualdades, as discriminações e as hierarquias
sociais não corresponderem a esses marcadores e, por fim, quando tais identidades forem
dispensáveis para a afirmação social dos grupos oprimidos (idem.).
De tal modo, embora haja diversos autores que discutem a não racialização, ou
seja, defendem a eliminação do termo, a questão da “raça”, compreendida como conceito
insumos químicos que arrasam ambientes inteiros – inclusive os seres humanos – nos grandes projetos
hidrelétricos e das vias de comunicação na Amazônia e nas infraestruturas de novos ciclos exportadores.
32
social de identidade, é um movimento necessário porque, de acordo com Mignolo (2008), a
identidade na política visa romper com as grades da moderna teoria política que é, mesmo que
não se perceba, racista, patriarcal, sexista. De tal modo, diz o autor, a identidade em política é
crucial para a opção decolonial porque sem a construção de teorias e ações políticas
fundamentadas em identidades que foram criadas nos discursos imperiais, pode não ser
possível desnaturalizar a construção racial e imperial da identidade no mundo moderno em
uma economia capitalista.
Luciana Ballestrin, em entrevista para Gallas e Machado (2013, s/p.) explica que a
decolonialidade busca o rompimento com as lógicas da colonialidade apostando em outras
experiências políticas, vivências culturais, alternativas econômicas e de produção do
conhecimento que rompam com a exclusividade eurocêntrica. A decolonialidade concebe a
importância da interação entre teoria e prática, buscando dialogar com a gramática das lutas
sociais, populares e subalternizadas dos povos que compuseram e compõem a construção da
ideia de América Latina.
Sobre o termo “decolonial” Walsh (2013) explica que dentro da literatura
relacionada à colonialidade do poder se encontram referências tanto aos termos “descolonial e
descolonialidade”, como também “decolonial e decolonialidade”. Temos a mesma posição da
autora de suprimir o “s”, para marcar uma distinção com o significado do “des” que pode ser
entendido como um simples desarmar, desfazer ou inverter o colonial. O uso do termo sem o
“s” objetiva colocar em evidência que não existe um estado nulo da colonialidade, mas sim
posturas, posicionamentos e projetos de resistir, transgredir, intervir, insurgir, criar e incidir,
ou seja, denota um caminho de luta contínuo no qual se pode visibilizar lugares de
exterioridade e construções alternativas.
Assim, romper com a colonialidade do saber implica em romper com a
exclusividade eurocêntrica que dominou as teorias, métodos e epistemologias de todo o
mundo, uma vez que o eurocentrismo colocou-se como verdade universal.
Mesmo o projeto iluminista que considerou a vastidão dos reinos, reis, das
culturas e que defendeu filosoficamente a igualdade entre os homens e sua singularidade na
universalidade, não deixou de projetar a superioridade da cultura ocidental sobre as demais
culturas.
O Candido, de Voltaire (2009) diz:
Que os bens da terra são comuns a todos os homens, que todos têm direitos iguais
(p. 35)
As crianças de outros reinos e países são muito educadas (p. 64)
33
Que país é este [...] desconhecido no resto da Terra e onde toda a natureza é um tipo
tão diferente da nossa? (p. 66)
Devo observar que as pessoas de outros mundos costumam apresentar questões
muito singulares (p. 68)
A verdade é que é preciso viajar (p. 69)
Todos os homens são livres (p. 71) (VOLTAIRE, 2009)
O projeto enciclopedista coordenado por Denis Diderot e Jean D´Alembert buscou
catalogar todo o conhecimento humano a partir dos princípios da razão, entretanto, traduzia
“conhecimento humano” como sinônimo de conhecimento produzido na e pela Europa
central. Vide o quadro referencial a partir do qual os 35 volumes da Enciclopédia foram
produzidos. Ele expressa a régua utilizada para catalogar o conhecimento humano e a
compreensão de humanidade.
34
Figura 1 – Árvore do Conhecimento Humano de Diderot e D'Alembert
Fonte: CAMPOS, F. de; MIRANDA, R. G.. A escrita da História. Ensino Médio: volume. único. São Paulo:
Escala Educacional, 2005. p. 259.
35
Para Hall (2009) o Iluminismo construiu uma posição epistemológica centrada no
processo de colonização. Antes do Iluminismo a diferença era concebida em termos de ordens
distintas do ser: “São eles homens de verdade???” perguntou Sepúlveda a Bartolomeu em
1550”. (HALL, 2009, p. 110). A dúvida levantada pela razão iluminista construiu um olhar
universalista onde todas as formas de vida humana eram incluídas no escopo universal a partir
de uma única ordem do ser, de tal forma que a diferença teve que ser constantemente
reformulada na marcação e remarcação de posições dentro de um único sistema discursivo. A
diferença foi fixada e consolidada (fetiche e patologia) dentro de um discurso unificado de
civilização. Neste sentido, Hall entende que o termo pós-colonial demarca um paradigma
temporal e epistemológico diferente.
Dentro deste cenário imposto, não se abarca na educação formal a diversidade que
faz parte da construção de mundo. A África nos é apresentada como território de onde foram
capturados “escravos”21
. Não são apresentados os diversos impérios e formas de organizações
sociais desenvolvidas ao longo de milhares de anos da História Africana. O estudo do Egito,
com suas inegáveis riquezas e sociedade altamente desenvolvida, é intencionalmente
descontextualizado de seu pertencimento continental africano. Ignoramos os saberes
indígenas, ou a estes é dado status de “crendices” e, pouco ou nada sabemos sobre a história
das Américas e seus povos: os Incas, os Maias e as diferentes etnias indígenas que habitavam
– e algumas ainda habitam – o território hoje denominado Brasil. Tudo isso se engloba dentro
do que se denomina racismo epistêmico de acordo com autores como Grofoguel (2007),
Maldonado-Torres (2008), Nogueira (2011).
O racismo epistêmico é, portanto, a força que opera privilegiando as políticas
identitárias e a tradição de pensamento dos homens ocidentais (que quase nunca inclui as
mulheres), considerada como a única legítima para a produção de conhecimentos e como a
única com capacidade de acesso à “universidade” e à “verdade”. “O racismo epistêmico
considera os conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais.”
(GROSFOGUEL, 2007, p. 32).
Santos (1999), Carneiro (2005) e Grosfoguel (2016) explicam que o racismo
epistêmico é também um “epistemicídio” porque ao desqualificar o conhecimento dos povos
subjugados, produz a indigência por diferentes mecanismos de deslegitimação e
21 Usamos escravos entre aspas porque não concordamos com a terminologia, uma vez que não se nasce escravo,
mas se torna escravo, portanto, para o trabalho utilizamos o termo homens ou mulheres escravizado(a)s.
36
desqualificação das formas de conhecimento de indígenas e negros, ignorando que estes são
também portadores e produtores de conhecimentos causando, portanto, a morte de
epistemologias diferentes da ocidental, europeia, branca – e porque não dizer masculina,
heterossexual, cristã e capitalista.
No Brasil, o racismo epistêmico (epistemicídio) fortaleceu a ideia difundida de
que se vive neste país uma democracia racial. Em outras palavras, é forte a ideia de que somos
todos miscigenados e, portanto, uma sociedade harmônica em que a raça em nada pesa para os
constructos sociais. Esta imagem ganha força ainda hoje porque a história contada apenas sob
a ótica dos europeus apresenta um Brasil cordial, uma vez que não houve por aqui uma
política institucionalizada de apartheid racial22
após a abolição da escravidão, como
aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo, apesar das várias leis que impediram negros de
circularem em diversos espaços sociais. Soma-se a isso, a obra de Gilberto Freyre23
, marco
importante na construção da ideologia da democracia racial. Diz o autor que a “mediação
africana no Brasil aproximou os extremos, que sem ela dificilmente se teriam entendido tão
bem, da cultura europeia e da cultura ameríndia, estranhas antagônicas...” (FREYRE, 2006 p.
116) Para o autor (2006, p. 418)
A força, ou antes, a potencialidade da cultura brasileira parece-nos residir toda na
riqueza dos antagonismos equilibrados [...] Não que no brasileiro subsistam, como
no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-
escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêm
mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos
completarmos em um todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro.
[grifo nosso]
As políticas públicas de ação afirmativa (PPAAs), neste cenário, colocam em
xeque a ideia da democracia racial e dos “antagonismos equilibrados”, uma vez que, ao
levantar o debate as questões étnico-raciais, escancaram as diferenças econômicas, sociais,
educacionais, de trabalho e saúde presentes entre negros e brancos e, escancaram ainda, o
racismo presente na sociedade e estampado em pichações24
e ações de pessoas que se colocam
22 Nos EUA, após a abolição da escravidão em 1863, formou-se uma sociedade segregada e que passa a ter
respaldo legal quando em 1896 a Suprema Corte considerou constitucional a existência de acomodações
separadas para brancos e negros, erguendo uma barreira que negava às pessoas negras o livre acesso à moradia,
restaurantes e à maioria dos serviços públicos (OLIVEN, 2007).
23
A ideia de que a sociedade brasileira foi concebida sob relações harmônicas aparecem pela primeira vez em
textos do século XIX, no “Abolicionismo” de J. Nabuco, por exemplo. Entretanto, foi com Gilberto Freyre na
sua obra “Casa-Grande & Senzala” de 1933 que o termo se eternizou (HAUFBAUNER, 2015).
24 A título de exemplo, algumas das notícias sobre pichações racistas em Universidades brasileiras: Estudantes
37
contrárias às PPAAs, muitas vezes sob a o discurso de que são as políticas que criam o
racismo, tão forte a ideia de democracia racial, ignorando que o racismo é elemento
estruturante do Brasil desde a violenta chegada dos portugueses a essas terras.
De forma sintética o termo “política pública de ação afirmativa” (PPAA) se refere
a toda ação direcionada ao enfrentamento das desigualdades sociais, não apenas as de caráter
racial, causadas por ações discriminatórias direcionadas a grupos específicos como: pessoas
negras; indígenas; mulheres; homossexuais, transexuais; seguidores de determinadas religiões
etc. (ROCHA,1996; MOEHLECK, 2002; MOROSINI, 2006; WEDDERBURN, 2007;
SILVÉRIO, 2007; GOMES, 2007). Assim, as PPAAs não criam o racismo, mas trazem à tona
a sua perversidade no ataque de quem antes usufruía de espaços exclusivos aos brancos e que
agora se enraivecem em ter que compartilhá-los com pessoas negras e indígenas que passam
também a ter direito de, finalmente, alçar novas posições sociais.
Neste cenário, embora a chamada Lei de cotas – Lei 12.711/12 – tenha sido a
PPAA que mais se destacou na mídia e nos debates acalorados entre contrários e favoráveis à
política, esta não foi a única, tampouco a primeira política pública de ação afirmativa
instituída no Brasil. Desde o final dos anos 90 foram implementadas PPAAs voltadas ao povo
negro, o que será melhor discutido no capítulo 3 (três). No entanto, destacamos aqui a
primeira Lei sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 09 janeiro de
2003, a 10.639/03. Isto porque a lei é um marco significativo da história da luta do povo
negro, pois, com ela, reconhece-se as desigualdades raciais que colocam em desvantagem a
população negra até os dias atuais. Além disso, implica em análises e avaliações mais
complexas nas interpretações e intervenção no mundo a partir dos diferentes tipos de
conhecimento, ou seja, é um instrumento para romper com a colonialidade presente nos
currículos, uma vez que a Lei altera o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional 9.394/96 (LDB) (BRASIL, 1996) e inclui no currículo oficial de toda a Rede de
Ensino (pública e privada) a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africanas e
Afro-brasileira em todos os níveis de ensino25
e, altera ainda o artigo 79-B que preconiza que
denunciam pichação racista em faculdade de Direitos de SP (Revista Fórum, 2015); Banheiro feminino da USP
Leste com frases racistas (Último Segundo, 2015); Pichações racistas são encontradas em banheiro da Unesp em
Bauru (G1, 2015); Pichações racistas e homofóbicas são encontradas na Unesp de Ourinhos (G1, 2015) UnB
apura pichações de conteúdos racista e homofóbico em banheiros (G1, 2016); Universidade tem nova pichação
racista: “Tirem os pretos da Unicamp” (Educação UOL, 2016); Alunos denunciam pichações homofóbicas e
machistas na Universidade Mackenzie (G1, 2017);
25 De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira (BRASIL, 2004).
38
o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência
Negra” (BRASIL, 2003). Em 2008 o Artigo 26-A passa por uma nova alteração quando, por
força da Lei 11.645, tem acrescentada a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura
Indígenas.
Essas leis dialogam com a urgência de alternativas epistemológicas ao mesmo
tempo em que revelam a enorme dimensão dos obstáculos políticos e culturais que impedem a
sua concretização (SANTOS; MENESES, 2010). Elas buscam diminuir o distanciamento e
silenciamento impostos e trazer à tona a versão dos vencidos, violentados e oprimidos durante
a colonização, buscando colocar, a partir de uma perspectiva intercultural, as Histórias e
Culturas dos povos Indígenas e Africanos antes e depois do processo de colonização e, têm
estimulado, ainda que de forma tímida, a retomada da ciência sob novas perspectivas, com
novas possibilidades epistemológicas e filosóficas. Elas se colocam na perspectiva de uma
interculturalidade que não visa apenas reconhecer, tolerar e incorporar o diferente dentro da
estrutura estabelecida, pelo contrário, uma interculturalidade que busca implodir as estruturas
coloniais do poder para refundar estruturas sociais, epistêmicas e de existências que coloquem
em cena e em relação equitativa, práticas e modos culturais diversos de pensar, atuar e viver
(WALSH, 2010).
Apesar da importância das Leis para enfrentar o racismo presentes na sociedade,
principalmente o racismo epistêmico, elas ainda têm pouca visibilidade na mídia e baixa
aplicabilidade em todos os níveis de ensino. Relatos e pesquisas como de Gomes e Jesus
(2013) e Soligo et. Al. (2018), por exemplo, apontam que no nível básico o que se encontra
são trabalhos isolados de alguns professores engajados com a temática que desenvolvem uma
prática pedagógica em acordo com o pressuposto pelas Leis, no entanto, é difícil encontrar
escolas que a assumam como um projeto pedagógico da instituição e não como ações isoladas
sobre a temática em datas comemorativas como o “dia do Índio” ou o “Dia da Consciência
Negra”, por exemplo. Soligo et. Al. (2018) atentam que há ainda um longo caminho a
percorrer na direção da efetiva inserção das africanidades e de História da África no cotidiano
e na cultura escolar, na busca do enfrentamento e ruptura com o racismo institucional no
cotidiano escolar que se opera pela ausência, pelo silencio e pela superficialidade.
Em nível superior, uma busca rápida nos cursos de Pedagogia, por exemplo, de
instituições renomadas como a Unicamp26
e USP27
(SP) mostra que não há disciplinas
26 De acordo com o Projeto Político Pedagógico, catálogo 2016. Apesar de não oferecer disciplinas obrigatório o
39
obrigatórias que abordam a temática após quase 15 anos de sancionada a Lei 10.639/03.
Carvalho (2007) atenta ainda para o “racismo acadêmico” (p. 89) com o qual se
deparou após constatar que convivia há mais de uma década apenas com colegas brancos no
Instituto de Ciências Sociais da UnB. O professor conta que após quatro décadas da
implantação dessa universidade, apenas 1% do corpo docente é negro e que, na verdade, esta
porcentagem acaba sendo alta quando comparada com outras universidades de ponta como a
Unicamp, UFRJ e UFRGS com 0,2%; 0,5 e 0,7% respectivamente de pessoas negras no
quadro docente. Os levantamentos foram realizados pelo autor que pediu também o auxílio a
colegas negros das outras IES para apresentar tais dados. Carvalho lamenta que não exista
ainda um censo racial nacional da docência nas universidades públicas e denuncia que “a sua
própria inexistência já é um forte indício da resistência da classe acadêmica de enfrentar-se
com sua condição racial privilegiada” (idem, p. 91). Ele denuncia ainda o “confinamento
racial” (p. 92) vivido pelos docentes das universidades públicas brasileiras, tendo em vista que
ao somar todos os professores de algumas das principais universidades de pesquisa brasileiras
(USP, UFRJ, Unicamp, UnB, UFRGS, UFSCar e UFMG) tem se um contingente de 18.400
docentes, sendo que destes, 18.330 são brancos e apenas 70 são negros, ou seja, apenas 0,4%
do total.
Paradoxalmente foi justamente desse ambiente segregado que saíram todas as teorias
que negam a existência de segregação racial no Brasil. E se estamos falando de
relações raciais, é perfeitamente aceitável que demandemos dos intérpretes não
apenas a sua leitura da desigualdade racial existente na sociedade brasileira “lá
fora”, mas também que se posicionem acerca dessa realidade de segregação que eles
mesmos participam. Está claro que não sairemos “naturalmente” desse escândalo de
segregação racial. Já ampliamos os números de estudantes e de docentes dezenas de
vezes nas últimas décadas, e os números relativos à presença negra em nada
melhoraram (CARVALHO, 2007, pp 91-92).
Esse cenário de exclusão dos negros e da temática das questões raciais em todos
os níveis de ensino, acaba por alimentar o discurso contrário à Lei 12.711/12 – a Lei das
Cotas – que reserva atualmente 50% das vagas dos institutos e universidades federais para
curso de Pedagogia da Unicamp oferece duas disciplinas de caráter eletivo: EP812-Seminário de Pesquisa em
História da África; EP813-Seminário de Pesquisa em História Indígena
27 De acordo com o Projeto Político Pedagógico de 2011 que começou a ser implantando em 2012. Há
disciplinas que parecem se aproximar da temática como: EDF0694-Multiculturalismo e Educação: introdução à
temática; EDF0703-A indústria Cultural e o Hip Hop: uma reflexão sobre a cultura de massas, a música, a
contestação urbana e o acesso ao masculino nas metrópoles; EDF0717-Multiculturalismo na Educação;
EDF0718-Multiculturalismo, Diretos Humanos e Educação: temas contemporâneos; EDF0723-Diversidade,
Desigualdades e Educação: aportes teóricos e estudos contemporâneos, no entanto, nenhuma delas traz no cerne
a história e cultura africana, afro-brasileira ou indígena, ou as relações étnico-raciais.
40
estudantes que venham de escolas públicas e, dentro deste percentual, uma porcentagem (de
acordo com a % de autodeclarados negros e indígena no Estado em que a instituição estiver
localizada, segundo último IBGE) é reservada para estudantes que se autodeclarem como
negros(as) ou indígenas. Uma sociedade que mantém universidades com 99,6% de docentes
brancos que se não se colocam como agentes da crítica necessária à desigualdade racial, uma
sociedade que desconhece a história da escravidão e seus impactos que permanecem até a
contemporaneidade nas desigualdades raciais geradas e mantidas pelo racismo estrutural e
estruturante da sociedade, se volta facilmente à falácia da meritocracia, ignorando que a
ausência de pessoas negras e indígenas nas universidades, por exemplo, não é resultado do
acaso ou falta de esforço individual.
O desconhecimento sobre a especificidade das Políticas de Ação Afirmativa
atinge patamares que ultrapassam o senso comum, sendo possível encontrar discursos
contrários recheados de desconhecimento histórico, político e social até mesmo em
professores(as) de renomadas universidades, dos mais diversos cursos, que se embasam,
dentre outras ideias, à de meritocracia. Para Carvalho (2003) inclusive, uma parte das
resistências às ações afirmativas se deve à ignorância e à desinformação resultados do silêncio
que a academia branca impôs a si mesma e à sociedade durante mais de um século. Em 2007,
o mesmo autor questiona como ainda nos dias de hoje as universidades resistem à inclusão
sustentando-se na ideologia do mérito, mesmo contando com pesquisadores perfeitamente
capazes de fazer a crítica das bases econômicas, sociais, políticas e raciais dessa ideologia.
Há ainda a confusão entre as cotas e as políticas de ação afirmativa. Muitas
pessoas, incluindo aí, estes(as) mesmos(as) professores(as), usam os termos como sinônimos,
quando na verdade a política de cotas é apenas um dos tipos possíveis de ação afirmativa. As
políticas de ação afirmativa são mais amplas que as cotas e têm como objetivo promover
condições concretas da igualdade prevista constitucionalmente, mas jamais alcançada entre
brancos, negros e indígenas, como também reparar e ressignificar a herança indígena e
africana no país, transpondo as marcas negativas deixadas pela história da colonização e
escravidão que violentou, exterminou os povos indígenas; e desenraizou, os povos africanos
da sua história e cultura e que no período pós-abolicionista não incluiu nenhuma política a fim
de tornar esses povos cidadãos de direito na sociedade.
A partir deste cenário, compreendemos que democracia racial e meritocracia são
ideologias que apagam e negam o racismo existente, numa falsa superação da colonização.
Assim sendo, a perspectiva decolonial busca se constituir como um projeto alternativo ao
41
racismo, e busca a reconstrução radical do poder, do saber e do ser numa perspectiva de
interculturalidade crítica que reconhece que a diferença se constrói dentro de uma estrutura
colonial de poder racializado e hierarquizado.
Ao encontro disso, Fanon (1968) nos impele a encontrar novos caminhos e a não
nos deixar mais empolgar pelo desejo de alcançar a Europa, mas de usar nossos esforços
numa direção nova, na qual é preciso multiplicar as conexões, diversificar as ramificações,
mudar os procedimentos, humanizar as mensagens, desenvolver um pensamento novo, tentar
colocar de pé um homem novo, ou seja, romper com a colonialidade. “O Terceiro Mundo
surge hoje diante da Europa como uma massa colossal cujo projeto deve ser o de tentar
resolver os problemas aos quais essa mesma Europa não soube oferecer soluções” (p. 274).
Neste cenário, retornamos à questão central deste estudo: Quais os efeitos
causados pelas políticas públicas de ação afirmativa nas universidades? As notícias apontam
que uma das consequências da inserção de políticas de ação afirmativa com foco na inclusão
da população negra é o desocultamento do racismo presente na sociedade brasileira, que se
apresenta nas notícias que se multiplicam corriqueiramente: “Mesmo com avanço pelas cotas,
negros enfrentam racismo na universidade” (TERRA, 2013); “Racismo na USP: estudante
negra é impedida de entrar na universidade” (PRAGMATISMO POLÍTICO, 2014);
(MARCHEZI, 2016); “Racismo e falta de formação dificultam educação de temas étnico
raciais nas escolas” (NUNES, 2016).
Mas, se por um lado as políticas públicas de ação afirmativa escancaram o
racismo presente na sociedade, por outro rompem radicalmente com a lógica de
funcionamento do mundo acadêmico brasileiro, porque além do reposicionamento concreto
das relações raciais nas universidades, elas colaboram com o questionamento da legitimidade
das interpretações teóricas e epistemológicas acerca das relações raciais no Brasil, formuladas
no interior de um universo acadêmico majoritariamente branco (CARVALHO, 2007). Passos,
Rodrigues e Cruz (2006) mostram que as PPAAs têm impulsionado, em termos normativos, a
inclusão de temas e conteúdos que versam sobre a educação das relações étnico-raciais em
duas universidades analisadas – UFSCar e UFSC, no entanto, estas orientações ainda não
impactaram profundamente a estrutura curricular dos cursos analisados nestas instituições.
Desta forma, este estudo torna-se relevante, pois busca atualizar e ampliar o
escopo de análise sobre como as Políticas Públicas de Ação Afirmativa estão impactando o
ambiente acadêmico, sendo ainda possível fazer a análise em instituições com diferentes
políticas com vistas à inclusão, a saber: UFSCar e Unicamp. Acreditamos que o estudo pode
42
evidenciar a importância das Políticas Públicas de Ação Afirmativa para além da inclusão,
mas para o aprofundamento da vocação da universidade tendo em vista o seu caráter
universal, à medida que alcança absorver diferentes epistemologias, teorias, metodologias e
práxis sociais e pedagógicas.
Além disso, a pesquisa dialoga diretamente com a Década Internacional em
vigência (2015 a 2024), proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 2013, que tem como
tema: “Povos Afrodescendentes, reconhecimento, justiça e desenvolvimento” tendo em vista a
necessidade de se debater o racismo e a valorização do povo africano e da diáspora africana.
Os principais objetivos para a Década Internacional são: promover o respeito, proteção e
cumprimento de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas
afrodescendentes, como reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos;
promover um maior conhecimento e respeito pelo patrimônio diversificado, a cultura e a
contribuição de afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades; adotar e reforçar os
quadros jurídicos nacionais, regionais e internacionais de acordo com a Declaração e
Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial, bem como assegurar a sua plena e efetiva implementação28
.
Desta forma este estudo dialoga com a necessidade urgente colocada por Leis
nacionais e acordos internacionais com vistas ao enfrentamento do racismo e rompimento
com a exclusividade da tradição eurocêntrica presente nas instituições escolares de todos os
níveis de ensino, do qual o ensino superior não se exclui.
Sabemos que romper com ideologias hegemônicas29
construídas ao longo de
séculos, como é o caso do eurocentrismo e do racismo em suas diversas formas, impõe-se
como uma tarefa improvável se não houver um rompimento com a colonialidade, que nos
mantém ainda ligados a classificações hierárquicas de raça, gênero, religião, epistemologia
etc.. Assim, estamos de acordo com Nogueira (2011) que propõe uma valorização geopolítica
africana e afrodiaspórica e, para além do que aponta o autor, latino-americana, e indígena
28 Disponível em: http://decada-afro-onu.org/index.shtml
29 Apesar do conceito de hegemonia ter suas origens na social-democracia russa e em Lênin, é Gramsci que
apresenta uma noção mais elaborada e adequada para pensar as relações sociais (ALVES, 2010). “Segundo
Gramsci, a hegemonia é obtida e consolidada em embates que comportam não apenas questões vinculadas à
estrutura econômica e à organização política, mas envolvem também, no plano ético-cultural, a expressão de
saberes, práticas, modos de representações modelos de autoridade que querem legitimar-se e universalizar-se.
Portanto, a hegemonia não deve ser entendida nos limites de uma coerção pura e simples, pois inclui a direção
cultural e o consentimento social a um universo de convicções, normas morais e regras de conduta, assim como a
destruição e a superação de outras crenças e sentimentos diante da vida e do mundo” (GRAMSCI, 2002 apud
MORAES, 2010, p.55).
43
brasileira, a fim de colocar a produção intelectual desses povos no mapa acadêmico mundial e
romper de vez com o projeto científico eurocêntrico de mundo.
Entendemos esta pesquisa como espaço de aprendizagens, desaprendizagens e
reaprendizagens a partir de novos enunciados teórico-metodológicos e, assim como Damázio
(2011), defendemos politicamente e justificamos este estudo como parte de uma nova postura
acadêmica, comprometida com a perspectiva de mudança da produção de saberes para formas
mais plurais, mais politizadas e direcionadas “localmente” a partir do pensamento e reflexão
crítica sobre o atual momento em que vivemos.
Dentro desse contexto, entendemos Método como ato vivo e concreto que se
revela na maneira como olhamos para o mundo, ou seja, nas nossas crenças, valores, atitudes
e ações, na nossa organização e no desenvolvimento do trabalho de pesquisa (GATTI, 1999).
“Quando falamos de método, estamos falando da forma de construir o conhecimento” (idem,
p. 64).
O método distingue da metodologia. O método vem do grego e significa
“caminho para se fazer algo. Podemos pensar, pois, que o método de investigação é um
caminho que se percorre para obter um conhecimento. A metodologia é uma coisa distinta,
com um caráter mais teórico: é um discurso sobre esse método, algo que vem a posteriori para
falar e descrevê-lo, como quem faz um relato do caminho percorrido. Para fazer uma boa
investigação é mais importante o método prático que a metodologia teórica (BORREGO,
PEDREÑO, 2010).
De acordo com Minayo (1993) o conhecimento científico é sempre uma busca de
articulação entre a teoria e a realidade empírica e o método é o fio condutor para se formular
esta articulação, no entanto, tendo em vista nossa opção teórica pelos estudos decoloniais,
afastamo-nos daquilo que é rígido, das essências, das convicções universais próprias do
eurocentrismo e nos aproximamos dos pensamentos que nos movem, colocam em xeque
nossas verdades e nos auxiliam a encontrar caminhos para responder nossas interrogações ao
encontro do que propõem Meyer e Paraíso (2012). Ao nos afastar das perspectivas
eurocêntricas, compreendemos que nossa pesquisa não resulta em uma verdade, mas sim
permite a descrição, análise e problematização de “verdades contexto-dependentes” (MEYER,
2012, p. 54). Verdades que não serão tomadas como um conhecimento universal, mas como
um saber local, político, comprometido em desvelar as relações entre saber e poder
(DAMÁSIO, 2011).
A crítica a este modelo vem de pesquisadores amparados em perspectivas
44
eurocêntricas ortodoxas que acusam que para os estudos pós-críticos, nos quais se aproxima a
perspectiva decolonial, qualquer verdade vale, no entanto, o que entendemos e defendemos é
que o que vale como verdade é ainda objeto de disputa e é determinado na luta das posições
existentes e em disputa no campo acadêmico e nossa pesquisa faz parte deste processo,
colocando-se em disputa (MEYER, 2012) e compreendendo que existem verdades: plurais e
inclusivas, ao contrário das metanarrativas: singulares e excludentes.
Gatti (1999, p. 75) explica que a verdade é uma abstração. Socialmente falando, a
verdade pode ser um consenso historicamente construído e, portanto, mutável. “Em ciência, o
que se busca são aproximações da verdade da realidade em que vivemos; aproximações que
sejam consistentes e consequentes, pelo menos por um tempo”. De tal modo, trabalhar com
metodologias de pesquisas pós-críticas nos permite aceitar diferentes traçados, como também
pensar coisas diferentes na educação. Assim, a metodologia nas pesquisas pós-críticas:
Gosta de incorporar conceitos, de “roubar” inspirações dos mais diferentes campos
teóricos para expandir-se. Por ser tão aberta, quer expandir suas análises para
diferentes textos para produzir novos sentidos, expandir, povoar e contagiar. O que
importa, em síntese, é movimentar-se sempre para a dissolução das formas. Afinal,
sempre que se instaura uma forma que divide e classifica, “é porque um poder se
infiltrou” (GAUTHER30
, 2002, p.149 apud MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 42).
Neste contexto, de acordo com Creswell (2010) nossa pesquisa se aproxima da
concepção reivindicatória, pois está diretamente atrelada à uma agenda política e trata de uma
questão social específica – a desigualdade, a opressão e a dominação advindos do processo
colonizador e que, pelo racismo, resulta em desigualdades raciais escandalosas no país
conhecido internacionalmente pela sua “democracia racial”. Assim,
essa pesquisa também assume que o investigador vai proceder colaborativamente, de
modo a não marginalizar ainda mais os participantes como um resultado na
investigação. [...] a pesquisa reivindicatória proporciona uma voz a esses
participantes, elevando sua consciência ou sugerindo uma agenda de mudança para
melhorar suas vidas. Torna-se uma voz unida para a reforma e a mudança (idem, pp.
32-33)..
Metodologicamente a pesquisa se insere como um “estudo de caso” que busca
responder quais os impactos que as Políticas Públicas de Ação Afirmativa promovem em duas
universidades públicas brasileiras: UFSCar e Unicamp. De acordo com Creswell (2010 apud
Stake, 1995) o estudo de caso é uma estratégia de investigação em que se explora
profundamente um programa, um evento, um processo que envolve um ou mais indivíduos.
30 GAUTHER, C. Esquizoanálise do currículo. In: Educação e Realidade, v.27, n.2, p, 143-156, 2002.
45
Os casos são relacionados pelo tempo e pela atividade e coletam-se informações detalhadas
usando diversos procedimentos de coleta de dados. Nosso “caso” é a implementação de
Políticas Públicas de Ação Afirmativa com vistas à inclusão de pessoas antes excluídas do
universo acadêmico e seus efeitos na universidade.
Para a seleção das duas instituições, utilizamos como critérios o fato de serem
instituições públicas de grande prestígio no Brasil, com idades muito próximas31
, a diferença
de categoria administrativa entre universidade pública estadual e federal; a diversidade de
política de ingresso, na qual a Unicamp possui uma política de ação afirmativa baseada em
acréscimo de pontos individual à nota do vestibular – o PAAIS, enquanto que a Ufscar possui
a política de cotas para os grupos étnico-raciais minorizados (negros e indígenas).
Em relação à coleta e análise de dados a pesquisa classifica-se como quali-
quantitativa. De acordo com Granger32
(1982 apud Minayo, 1993, p. 243) “a realidade social
é qualitativa”. Nesse sentido, a dualidade quali-quantitativa vem no intuito de
complementariedade dos dados e não de contradição. Enquanto a abordagem quantitativa atua
nos níveis da realidade, onde objetiva-se trazer à luz dados, indicadores e tendências
observáveis, a abordagem qualitativa trabalha com os valores, crenças, representações,
hábitos, atitudes e opiniões, sendo adequada para aprofundar a complexidade dos fenômenos,
fatos e processos particulares e específicos de grupos delimitados e capazes de serem
atingidos intensamente (MINAYO, 1993). Assim, o “material primordial da investigação
qualitativa é a palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas e técnicas, seja
nos discursos intelectuais, burocráticos e políticos” (idem, p. 243).
Coletamos informações disponíveis das mais variadas formas: mídias sociais;
documentos, questionários e entrevistas. As mídias sociais nos possibilitaram encontrar os
coletivos formados nas instituições e obter as primeiras informações acerca dos mesmos,
assim como realizar os contatos para prosseguir com a pesquisa empírica - questionários.
Buscamos ainda as legislações que explicam os códigos do período colonial e o pós-abolição
da escravatura no Brasil e, ainda, as legislações referentes às Políticas Públicas de Ação
Afirmativa. Em âmbito institucional, utilizamos documentos como Atas de Reuniões de
Conselho Universitário e relatórios que apresentam os dados estatísticos acerca do perfil dos
estudantes antes e depois da adoção das PPAAs, que nos oferecem dados quantitativos que
31 A diferença entre as duas é de 2 anos: a Unicamp foi criada em 1966 e a UFSCar em 1968.
32 GRANGER, G. G., Modèles qualitatifs, modèles quantitatifs dans la connaissance scientifique. In. Sociologie
et Societés. V. 14, n.1, pp. 7-15, Montréal: Les Presses de L’Université de Montréal, 1982.
46
importam para este estudo. Tratam-se de análises documentais porque são materiais que ainda
não receberam um tratamento analítico. Este tipo de pesquisa tem a vantagem de operar com
documentos variados que se constituem como fontes ricas e estáveis de dados (GIL, 2002).
Entretanto, de acordo com Gil (2002) a pesquisa documental encontra como
limitação a subjetividade dos documentos e o risco da não-representatividade total do real e,
portanto, avançamos para a segunda etapa da pesquisa a fim de aprofundar o conhecimento
sobre o impacto das PPAAs. Nesta etapa realizamos entrevistas com um(a) integrante
fundador(a) dos Coletivos investigados e aplicamos um questionário aos integrantes dos
Coletivos encontrados em ambas universidades: UFSCar e Unicamp. A seleção dos Coletivos
obedeceu aos critérios de terem sido criados após a implementação da política de ação
afirmativa e terem como mote as questões de raça/cor.
Finalizamos esta introdução parafraseando Dora Bertúlio (2007) quando diz que,
na leitura desta tese, o leitor ou leitora pode ter um exercício de apreensão menos
comprometido com os paradigmas da ciência tradicional e com a produção dos intelectuais
europeizados, compreendendo que estamos em um processo de produção de conhecimentos
sobre relações raciais no Brasil, em uma tentativa de superar as premissas racistas da nossa
formação sociopolítica e jurídica, o que por certo, irá diferenciar as referências bibliográficas
tradicionais. “Este processo, ainda que tardio, é fundamental para a mudança de paradigma
sobre racismo e relações raciais em nossa sociedade” (p. 55).
A seguir, apresentamos o processo histórico da colonização portuguesa no Brasil e
como este processo construiu hierarquias sócio-raciais que se perpetuam no que chamamos de
sociedade colonializada. No capítulo 3 apresentamos um panorama histórico das políticas de
ação afirmativa no mundo e no Brasil, estreitando a discussão para a chamada “Lei de Cotas”
amparada pela Lei 12.711/12, e das Leis 10.639/03 e 11.645/08. O capítulo 4 apresenta os
estudos de caso sobre como as políticas públicas de ação afirmativa têm impactado as
universidades – UFSCar e Unicamp. Por fim, apresentamos as considerações finais do que foi
possível refletir neste estudo.
47
2. Da colonização à colonialidade: o perigo da história única
É impossível falar sobre a história única sem falar do poder. Há uma palavra, uma
palavra malvada, em que penso, sempre que penso na a estrutura do poder no
mundo. É "nkali". É um substantivo que se pode traduzir por "ser maior do que
outro". Tal como os nossos mundos económico e político, as histórias também se
definem pelo princípio do "nkali". Como são contadas, quem as conta, quando são
contadas, quantas histórias são contadas, estão realmente dependentes do poder.
(Chimamanda Ngozi Adichie)
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie apresentou em 2009 a palestra
“O perigo de uma história única” no TED33
. Chimamanda conta, a partir de suas experiências
pessoais, como a imposição de uma ideologia eurocêntrica impute uma única possibilidade de
percepção de mundo. Assim, este capítulo tem como objetivo mostrar como, apesar do fim do
período de colonização europeia, a marca deixada pelo período impõe, até os dias atuais, a
colonialidade do poder, do saber e do ser, ao encontro do que narra Chimamanda em sua
apresentação.
Dividido em três partes, este capítulo apresentará primeiro uma narrativa histórica
que visa ilustrar os processos coloniais que imputaram as diversas hierarquias (raciais, de
gênero, teóricas, epistemológicas, culturais etc.) que se perpetuam até os dias atuais.
Seguimos apresentando como a construção da “raça” no período colonial fez perpetuar o
racismo, apesar da ressignificação do termo pelos movimentos negros. Por fim, apresentamos
a contestação à perspectiva eurocêntrica a partir da crítica de teóricos pós-colonialistas e de
intelectuais do pensamento decolonial.
Oliveira e Candau (2010) explicam que o eurocentrismo não é uma perspectiva
cognitiva restrita aos europeus, mas a todas as pessoas educadas sob a sua hegemonia. Isto
porque o fundamentalismo eurocêntrico produziu desde o século XVI uma hierarquia
epistêmica global reproduzida também por meio da globalização da Universidade
ocidentalizada que impõe um pensamento hegemônico de homens, e não mulheres;
ocidentais, nunca não ocidentais, a partir das divisões disciplinares que faz com que
33 TED é uma organização sem fins lucrativos dedicada ao lema “ideias que merecem ser compartilhadas”.
Começou há 26 anos como uma conferência na Califórnia, e, desde então, o TED tem crescido para apoiar ideias
que mudam o mundo através de múltiplas iniciativas (https://www.tedxdantealighierischool.com.br/o-que-e-
tedtedx/).
48
encontramos o mesmo nas Universidades de Paris ou Nova Iorque, de Alger, Cotonou, Dakar,
Buenos Aires, Calcutá, Rio de Janeiro, Bogotá ou Beijing, onde se produzem as elites e os
intelectuais ocidentalizados do sistema-mundo (GROSFOGUEL, 2012). Grosfoguel (2012, p.
339) explica que
sem a globalização de Universidade ocidentalizada, seria muito difícil para o
sistema-mundo reproduzir suas múltiplas hierarquias de dominação e exploração
global. Neste sentido, a descolonização do conhecimento e da Universidade
constituem pontos estratégicos fundamentais na luta pela descolonização
radical do mundo [grifo nosso].
Para compreender como se estruturou a colonialidade no Brasil, é preciso
rememorar a História desde o período da invasão dessas terras pelos portugueses, não caindo
no erro histórico de datar o início da História Brasileira no ano de 1500 e, portanto,
destacamos de antemão que o Brasil não estava aqui à espera de Cabral, como também não
são descobertas, ou como se dizia no século XVI, “achamentos”, mas invenções históricas e
construções culturais dos invasores europeus (CHAUÍ, 2000) que, muitas vezes, ignoram que,
desde muito antes de 1500, por aqui já viviam diversos povos indígenas em relações nem
sempre harmônicas, tendo em vista a enorme diversidade cultural existente. Contudo, a
História oficial do Brasil, ou seja, a história na voz do dominador, conta que nosso país fora
descoberto em 1500 por portugueses que, mesmo com as ‘novas terras’ já habitadas,
anunciaram o seu descobrimento e tomaram posse da mesma por meio de um processo de
violência física e simbólica (MUNGANGA, 2006).
Com isso, reconstruir o processo da história indígena, de acordo com Ribeiro
(1995) parece impossível porque só há o testemunho de um dos protagonistas – o invasor, e
somente a partir da data de 1500. “Ele é quem nos fala de suas façanhas. É ele, também, quem
relata o que sucedeu aos ‘índios’ e aos negros, raramente lhes dando a palavra de registro de
suas próprias falas” (idem, p. 30).
Cunha (1998, p. 20) complementa afirmando que “uma história propriamente
indígena ainda está por ser feita”. A autora coloca que além da fragilidade dos testemunhos
materiais dessa civilização, há ainda a dificuldade em adotar o ponto de vista indígena
reestabelecendo a importância da memória transmitida pela tradição oral, uma vez que a
história indigenista não contempla a complexidade da história dos “índios”.
Outro ponto que dificulta desvelar as histórias e culturas indígenas desde antes das
invasões europeias é a ideia que foi criada em torno do “primitivismo” desses povos. Em
49
função do triunfo da teoria evolucionista34
no século XIX, imperou a ideia de que certas
sociedades – as diferentes do mundo clássico europeu – teriam ficado na estaca zero da
evolução. Assim, as sociedades sem Estado se tornaram, na teoria ocidental, sociedades
“primitivas” e, portanto, não cabia procurar-lhes a história (CUNHA, 1998).
Assim, temos o primeiro exemplo de “racismo epistêmico/epistemicídio”
(GROFOGUEL, 2007; MALDONADO-TORRES, 2008; NOGUEIRA, 2011; SANTOS,
1999; CARNEIRO, 2005) no Brasil, ou seja, além do genocídio indígena, houve também o
silenciamento de suas histórias e culturas desde o momento da invasão portuguesa às suas
terras. Desta forma, é provável que as unidades sociais que conhecemos hoje sejam o
resultado de um processo de pulverização dos povos indígenas e, em síntese, o que é hoje o
Brasil indígena são fragmentos de um tecido social cuja trama, muito mais complexa e
abrangente, cobria o território como um todo (CUNHA, 1998). Isto porque o número de
indígenas nas “terras baixas da América do Sul” antes da invasão europeia é estimado entre 1
a 8,5 milhões, sendo consenso entre os historiadores o número mínimo de 1 milhão, no
entanto, os entendimentos sobre a magnitude da matança que dizimou os povos indígenas são
díspares. Enquanto Rosenblat avalia que de 1492 a 1650 a América tenha perdido um quarto
da sua população; Dobyns acredita que o extermínio indígena foi da ordem de 95% a 96%
34 Hegel (1770-1831) é um dos autores que ilustra em sua obra “Filosofia da História” a ideia de Evolucionismo
social. Diz o autor (1995, pp. 74-75) Mansidão e indiferença, humildade e submissão perante um crioulo [branco
nascido na colônia], e ainda mais perante um europeu, são as principais características dos americanos do sul, e
ainda custará muito até que europeus lá cheguem a incutir-lhe uma dignidade própria. A inferioridade desses
indivíduos, sob todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de se reconhecer. E sobre a África, “a terra
criança que fica além da luz da história autoconsciente” (p.82) diz o autor (p.84): O negro representa, como já foi
dito, o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de
tudo o que chamamos de sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia de caráter
humano. Os extensos relatórios dos missionários comprovam esse fato. E justifica a exclusão da África como
parte da história mundial (p. 88): Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela
não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar. [...] O Egito
será abordado como transição do espírito humano do Oriente para o Ocidente, mas ele não pertence ao espírito
africano. Na verdade, o que entendemos por África é algo fechado sem história, que ainda está envolto no
espírito natural. Por fim, justifica a escravidão (p.88): A escravidão é, em si e por si, injustiça, pois a essência
humana é a liberdade. Mas para chegar à liberdade o homem tem que amadurecer. Portanto, a abolição
progressiva da escravidão é algo mais apropriado e correto do que a sua abrupta anulação.
No Brasil, a obra Os africanos no Brasil (1932 - postumamente) de Raymundo Nina Rodrigues (1862-1902) é
outro exemplo da nefasta ideia de evolucionismo social. “Dada a sua absorção na população compósita do país, e
por outro lado dadas as diferenças de capacidade e graus de cultura entre os povos negros importados, está claro
que a influência por eles exercida sobre o povo americano que ajudaram a formar será tanto mais nociva quanto
mais inferior e degradado tiver sido o elemento africano introduzido pelo tráfico. Ora, os nossos estudos
demonstram que, ao contrário do que se supõe geralmente, os escravos negros introduzidos no Brasil não
pertenciam exclusivamente aos povos africanos mais degradados, brutais ou selvagens. Aqui introduziu o tráfico
poucos negros dos mais adiantados e mais do que isso mestiços chamitas convertidos ao islamismo e
provenientes de estados africanos bárbaros sim, porém dos mais adiantados” (p. 295).
50
(SÁNCHEZ-ABORNOZ, 197335
apud CUNHA, 1998).
Os grupos indígenas encontrados no litoral pelo português eram principalmente
tribos de tronco tupi que, havendo se instalado uns séculos antes, ainda estavam
desalojando antigos ocupantes oriundos de outras matrizes culturais. Somavam,
talvez, 1 milhão de índios, divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles
compreendendo um conglomerado de várias aldeias de trezentos a 2 mil habitantes
(Fernandes, 194936
). Não era pouca gente, porque Portugal àquela época teria a
mesma população ou pouco mais (RIBEIRO, 1995, p. 31).
O povo Tupi já tinha desenvolvido a agricultura e cultivava alimentos como a
mandioca – “o que constituiu uma façanha extraordinária, porque se tratava de uma planta
venenosa a qual eles deviam, não apenas cultivar, mas também tratar adequadamente para
extrair-lhe o ácido cianídrico, tornando-a comestível” (RIBEIRO, 1995, p. 31) – o milho, a
batata-doce, o cará, o feijão, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá,
cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná e também árvores
frutíferas. A estrutura social era igualitária, ou seja, não haviam camadas sociais inferiores
condicionadas à subordinação. A antropofagia era outra característica dos indígenas da etnia
Tupi (RIBEIRO, 1995).
Munanga (2006) nos conta que com a nova descoberta os portugueses enviaram
cartas ao Rei de Portugal a fim de relatar a natureza local, a terra e a “gente que acharam
muito diferente”. A essa “gente” deram o nome coletivo de “índios”, ignorando a diversidade
entre os diferentes povos. Relataram ainda que eram atrasados, andavam nus, eram canibais,
praticavam sacrifícios humanos, não possuíam religião e adoravam espíritos da natureza,
colocando, por fim, em dúvida a natureza humana dos habitantes que denominaram como
índios.
Essa dúvida sobre a humanidade dos indígenas partia do questionamento sobre se
possuíam racionalidade e alma, e foi grande motivo de especulações religiosas e científicas
entre os séculos XV e XVII e o único caminho para provar que os índios eram seres humanos
era provar que eles também eram filhos de Deus, ou seja, descentes de Adão (MUNANGA,
2006). A definição sobre a humanidade dos indígenas veio de uma decisão arbitrária do Papa
Paulo III que proclamou na bula Sublimis Deus37
, no ano de 1537, que os “índios” também
35 SÁNCHEZ-ALBORNOZ, N.. La populación de América Latina desde los tempos pré-colombianos al año
2000. Madri: Alianza Editorial, 1973.
36 FERNANDES, F.. A organização social dos tupinambás. São Paulo: Progresso Editorial, 1949.
37 A bula Sublimis Deus foi editada pelo Papa Paulo III com o intuito de criar um programa mais agressivo para
o papado nas Américas, uma vez que a declaração de que os índios são homens obrigava a empresa colonizadora
espanhola a rever suas práticas de assassinato dos índios e a própria instituição da escravidão. A publicação da
51
eram descendentes de Adão e, consequentemente filhos de Deus e humanos.
A partir de então, os povos indígenas passaram a ser considerados humanos, mas
diferentes dos europeus. Diferentes na cultura, nas vestimentas, religião, culinária, dança,
música e também no fenótipo: a cor da pele, os traços morfológicos (nariz, lábios, formato da
cabeça, queixo, cabelo etc.). Assim, os portugueses considerando os indígenas como seres
inferiores pelas suas diferenças, apostaram em provocar mudanças em suas culturas,
começando pela conversão cristianismo e gradativamente submeteram-nos a um intenso
processo de aculturação que faria deles “índios de ‘alma branca’” (MUNANGA, 2006, p 15) e
ensinaram sua língua, prescreveram como deveriam se comportar em qual deus deveriam
acreditar e as leis que deveriam respeitar, conjunto de regras que constituiu a chamada
“Missão Civilizadora” dos homens brancos sobre os homens considerados por estes
selvagens. A Missão tinha, de fato, a intenção da dominação política dos indígenas pela
“invasão do seu território, a exploração econômica de suas riquezas naturais e a sujeição
cultural que pretendia substituir as culturas, religião e visão de mundo dos povos indígenas
por outras consideradas melhores e superiores” (idem).
Não apenas no Brasil, mas nas Américas como um todo, a tomada do território
por espanhóis e portugueses, a partir do Século XV, se deu principalmente pela espada e pela
cruz. “A espada” refere-se à desproporção dos armamentos entre invasores e invadidos era
evidente: “aço contra madeira e couro; armas de longo alcance contra armas de alcance curto
e muito curto” (ROMANO, 1995, p. 13). Apesar disso, há registro de resistência vitoriosa
indígena contra a invasão espanhola. Isto se deve à extraordinária capacidade de assimilação
das técnicas militares espanholas que o povo indígena apreendeu no plano militar se
apropriando do meio de defesa que os colocavam em condições de guerrear em um suposto
equilíbrio. Em função deste suposto equilíbrio, os espanhóis compreenderam que a conquista
efetuada pela “espada” deveria agora ser mantida por outros meios. Assim, a conquista
espiritual, “pela cruz”, se inicia nas América quando Cristóvão Colombo, ao tomar posse da
terra, finca uma cruz. A evangelização foi, desta forma, uma forma complementar de agressão
uma vez que tentou – e conseguiu – modificar os hábitos dos nativos.
Certamente, da mesma maneira que face à espada, os índios organizaram sua defesa
face à cruz. Defesas ingênuas, penosas, elementares, às vezes. Mas eficazes. Na
bula Sublimis Deus representava certamente uma afronta ao Estado espanhol e ao poder de administração do
Imperador. Em função de pressões políticas diversas, Paulo III é obrigado a revogar a Sublimis Deus, ao cancelar
uma série de cartas que previam sanções para aqueles que matassem e escravizassem os índios (ALMEIDA,
2010).
52
atual Bolívia e no sul do Peru, a velha divindade pagã Pacha-mama (a Terra-mãe)
ainda permanece viva, mesmo se a assimilam à Virgem; Apu-Illampu, o Senhor dos
Relâmpagos, revive em Santiago, o Sol (Inti-huyana Capac = Sol jovem chefe), no
Cristo. No México, o culto da virgem de Guadalupe tem suas raízes no culto da
deusa Tonantizin (Mãe dos deuses...).
Uma certa representação do universo é destruída, uma outra, nova, é imposta. E esta
última carregará consigo, inevitavelmente, os fragmentos da que a havia precedido
(ROMANO, 1995, pp. 21-22).
Nesta mesma perspectiva, os portugueses, ao chegarem ao Brasil, não trouxeram
apenas um sistema econômico de capital e trabalho destinado à produção de mercadorias para
serem vendidas com lucro no mercado mundial. Embora este tenha sido o objetivo destacado
na vasta historiografia disponível e tenha sido uma parte fundamental, não foi única, mas sim
parte de um pacote mais complexo. Os portugueses trouxeram também uma enredada
estrutura de poder mais ampla e mais vasta. Ao Brasil, e às Américas como um todo, “chegou
o homem heterossexual, branco, patriarcal, cristão, militar, capitalista, europeu, com suas
várias hierarquias...” (GROSFOGUEL, 2009, p. 390), que se mantém até os dias atuais na
colonialidade.
De acordo com Casemiro dos Reis Filho (1982) a invasão da américa faz parte da
Revolução Comercial dos séculos XIV e XV que deu origem à formação sociocultural
capitalista. Assim, a colonização europeia de toda a América Latina, esteve ligada
absolutamente à expansão universalista do capitalismo que aos poucos vai deixando de ser
europeu para ser mundial, sem a perda de seus mecanismos originários de dominação e
exploração.
Ao encontro desta ideia, para Paiva (1982) a grande empresa colonial se operou
segundo o “orbis christianus”, ou seja, a crença de que o mundo é de Deus, cujo
representante na terra é a igreja católica. Para fazer cumprir o “orbis christianus”, além da
escravidão colonial, os indígenas foram também submetidos às missões jesuíticas que davam
ao indígena o estatuto de catecúmeno, ou seja, um herege que estava sendo cristianizado e
assim recuperado em benefício de sua salvação eterna (MUNANGA, 2006). Entretanto, a
prática catequética estava aliada a todo o sistema colonial vigente e, por conseguinte, “cada
passo que os jesuítas perfazem ao encontro do índio, traduz a necessidade de ele servir
docilmente à gente portuguesa” (PAIVA, 1982, p. 75). Desta forma, a catequização cumpriu
um papel colonial não apenas como uma força aliada, mas como uma força integrada a todo o
processo.
Importante destacar que a colonização brasileira teve como objetivo principal a
53
produção mercantil para o enriquecimento da Coroa, até porque nenhum povo europeu estava
em condições de grandes emigrações pois ainda sofria do déficit populacional causado pela
peste que assolou o continente dois séculos antes. Assim, a ideia de colonização fundava-se
no estabelecimento de feitorias comerciais a fim de promover a primitiva acumulação
capitalista nos quadros da economia europeia, entretanto, para os fins mercantis era necessário
ampliar as bases populacionais e criar um povoamento capaz de abastecer e manter as
feitorias. Só então surge a ideia de povoamento38
(PAIVA, 1982; PRADO JR., 1961).
Entretanto, não se deve perder de vista que, embora não visasse o povoamento, o
processo de colonização para exploração ainda traz consigo todos os valores eurocêntricos –
masculino, heterossexual, cristão, capitalista, militar – e busca imputá-los nas terras
conquistadas. Paiva (1982) explica que a “descoberta” do Novo Mundo tem como objetivo a
reprodução, nas novas terras, da mesma sociedade ibérica, no entanto, o indígena poderia
alterar sensivelmente o estilo da velha sociedade, mas a “concepção de universo então
vigente, mais do que nunca defensora do “Um só Senhor, uma só fé, um só batismo39
”, cortou
pela raiz qualquer possibilidade de uma consciente contribuição intercultural” (p. 49).
Amílcar Cabral (1976), revolucionário do Partido para a Independência de Guiné
e Cabo Verde, colonizados ambos pelos portugueses, atenta que uma análise objetiva e sem
paixão do colonialismo europeu, revela que o domínio imperialista, com todo o seu cortejo de
misérias, de saques, de crimes e de destruição de valores humanos e culturais, não foi senão
uma realidade negativa. Césaire (1978) complementa ao contrapor os “avanços tecnológicos”
ao genocídio e epistemicídio causados. Diz o autor:
Lançam-me à cara factos, estatísticas, quilometragens de estradas, de canais, de
caminhos de ferro. Mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-
Oceano40
. Falo dos que, no momento em que escrevo, cavam à mão o porto de
Abidjan. Falo dos milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos
seus hábitos, à sua vida, à vida, à dança, à sabedoria.
[...]
Eu falo de economias naturais, de economias harmoniosas e viáveis, de economia
adaptadas à condição do homem indígena desorganizadas, de culturas de
38 “Como se vê, as colônias tropicais tomaram um rumo inteiramente diverso do de suas irmãs da zona
temperada. Enquanto nestas se constituirão colônias propriamente de povoamento (o nome ficou consagrado
depois do trabalho clássico de Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez les peuples modernes), escoadouro para
excessos demográficos da Europa que reconstituem no novo mundo uma organização e uma sociedade à
semelhança do seu modelo e origem europeus” (PRADO JR., 1961, pp.24-25).
39 Carta aos efésios, 4, v. 5.
40 Aimé Césaire está fazendo a crítica sobre a colonização francesa na Costa do Marfim e, embora alguns
historiadores apontem diferenças entre os processos de colonização portuguesa e francesa (e outros), é possível
notar que a violência empregada foi similar, assim como a destruição de um tipo de sociedade em detrimento de
um modo europeizado de estrutura político-econômica-social.
54
subsistência destruídas, de subalimentação instalada, de desenvolvimento agrícola
orientado unicamente para benefício das metrópoles, de rapinas de produtos, de
rapinas de matérias-primas (CÉSAIRE, 1978, pp. 25-26).
Ao encontro disto, Henriques (2014) explica que os processos de colonização têm
como características bastante evidentes a desigualdade da relação entre colonizador e
colonizado e a descontinuidade territorial e cultural entre os dois grupos em presença. As
colonizações europeias apresentam ainda uma articulação íntima entre três planos: i.
econômico, no qual o colonizador busca o enriquecimento rápido através da exploração da
população e das terras invadidas; ii. ideológico em que a “missão civilizadora” impõe o
cristianismo como forma de legitimar a invasão, uma vez que o colonizador se coloca como
um ser superior que veio para salvar os colonizados pela verdade cristã europeia; iii. político
que impute instrumentos, legislativos e judiciais para legitimar, através da forma política
europeia, a invasão.
Para Corbisier (1977) o colonialismo se funda em 4 categorias: totalidade,
contradição, alienação e dialética. A totalidade diz respeito à ocupação que se estabelece em
termos militares que sustenta a máquina de domínio e exploração e faz com que se legitime a
estrutura política e administrativa que coloca os recursos naturais e a mão-de-obra colonial a
serviço da nação colonizadora. A contradição se dá exatamente a partir do momento em que
está montado o sistema colonial, porque daí surgem os principais protagonistas: colonizador e
colonizado – dois polos que se implicam e ao mesmo tempo se opõem e excluem
reciprocamente não apenas por apresentarem religiões, raças, línguas, culturas e civilizações
diferentes, mas porque representam interesses antagônicos e irredutíveis.
A alienação faz parte da ideologia do colonialismo porque é pela ideia de
superioridade do colonizador que o colonizado além de se submeter, faz do colonizador o seu
modelo, buscando identificar-se com ele. Assim, tendo suas terras invadidas, estando
dominado e sem condições para reagir o colonizado se perde no outro, se aliena, tentando ele
próprio tornar-se um colonizador41
. No entanto, essa assimilação pelo colonizado é impossível
principalmente em função do racismo que se estabelece pela ideia de superioridade racial
imputada junto às invasões europeias a partir do Século XV. Assim, o conformismo, a
aceitação passiva e a tentativa de coincidência com o grupo colonizador passam para uma
tomada de consciência sobre a impossibilidade da assimilação. A partir de então, o colonizado
41 Isso nos remete os ensinamentos de Paulo Freire para quem quando a educação não é libertadora, o desejo do
oprimido é tornar-se o opressor.
55
passa a negar não mais a si mesmo, suas crenças, valores, usos e costumes, mas ao
colonizador, empreendendo a negação da negação, ou seja, a afirmação de si mesmo, sua
antítese na relação dialética. “Com isso, queremos dizer que a totalidade, em que a situação
colonial consiste, além de contraditória, é um todo em movimento, cujo processo, por isso
mesmo que é contraditório, só pode ser apreendido e compreendido dialeticamente”
(CORBISIER, 1977, p. 10).
Dentro desta perspectiva dialética, Cunha (1998) explica que o entendimento de
que os indígenas são apenas vítimas de uma política que lhes foram externas e que os
destruíram faz parte da história movida pela metrópole europeia. “O resultado paradoxal dessa
postura “politicamente correta” foi somar à eliminação física e étnica dos índios sua
eliminação como sujeitos históricos” (CUNHA, 1998, p. 18). Isto porque, de acordo com
Henriques (2014, p. 49)
colonizar é um exercício que visa desmemoriar as populações em relação à sua
própria história, introduzindo a história do colonizador e construindo uma nova
memória, onde uns e outros são hierarquizados de acordo com a ordem do
colonizador, marcando de forma definitiva a valorização do mesmo, a
desvalorização e a recusa do outro. A violência nas suas múltiplas facetas inerente à
dominação foi sempre uma constante dos processos de colonização.
Além do mais, apesar do cenário de violência e de racismo epistêmico, a
resistência indígena foi importante na cultura indigenista do século XVI e XVII,
conjecturando também uma política indígena à medida que enquanto a metrópole usou de
estratégias das inimizades entre diferentes grupos indígenas nas guerras contra a França e
Holanda; os indígenas tinham seus próprios motivos para se aliarem aos portugueses,
franceses ou holandeses. Embora não se tenha conhecimento ao certo sobre a quem coube a
iniciativa das alianças nesses casos, em outros a iniciativa é comprovadamente indígena:
no século XVII, grupos Conibo (Pano) querem aliados espanhóis (missionários) para
contestar o monopólio piro (arawak) das rotas comerciais com os Andes (Erikson42
).
A coalização de Karajá, Xenente e Xavante em Goiás, que em 1812 destruiu o
recém-fundado presídio de Santa Maria no Araguaia (Karasch43
), é um exemplo da
amplitude que podia alcançar a política indígena em seu confronto com os recém-
chegados (CUNHA, 1998, p. 18).
Para Ribeiro (1995) alguns indígenas preferiam se aventurar ao convívio com os
42 ERIKSON, P.. Uma singular pluralidade: a etno-história pano. In CUNHA, M. C. [org.] História dos índios
no Brasil. São Paulo: Companhia das letras. Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 1992. 2ª edição, 1998
43 KARASCH, M.. Catequese e cativeiro: Política indigenista em Goiás, 1780-1889. In CUNHA, M. C. [org.]
História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das letras. Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP,
1992. 2ª edição, 1998
56
portugueses como flecheiros de suas guerras contra indígenas arredios, do que a rotina da vida
tribal, que perdera o viço e o brilho após a invasão das suas terras. No entanto, coalizões
como esta foram excepcionais e o seu efeito geral foi antes o fracionamento étnico, seguido
do extermínio da população nativa. De acordo com Cunha (1998, p. 12)
Povos e povos indígenas desapareceram da face da terra como consequência do que
hoje se chama, num eufemismo envergonhado, “o encontro” de sociedades do
Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio nunca visto foi fruto de um processo
complexo cujos agentes foram homens e microorganismos, mas cujos motores
últimos poderiam ser reduzidos a dois: ganância e ambição, formas culturais da
expansão do que se convencionou chamar o capitalismo mercantil. Motivos
mesquinhos e não uma deliberada política de extermínio conseguiram esse resultado
espantoso de reduzir uma população que estava na casa dos milhões em 1500 aos
parcos 200 mil índios que hoje habitam o Brasil.
Esta catástrofe demográfica se deu pelo apresamento de indígenas que eram
forçados a lutar contra outros considerados hostis; pelas grandes fomes que acompanham os
tempos de guerra, pelas doenças trazidas pela branquitude, até então desconhecidas dos
indígenas: cárie dental, coqueluche, tuberculose, varíola, sarampo, catapora, tifo, difteria,
gripe, peste bubônica e possivelmente a malária (RIBEIRO, 1995; CUNHA, 1998) que fazem
desencadear desde a primeira hora uma guerra biológica implacável, que Dobyns chamou de
“um dos maiores cataclismos biológicos do mundo” (apud CUNHA 1998, p. 13). “Assim é
que a civilização se impõe, primeiro como uma epidemia de pestes mortais. Depois, pela
dizimação através de guerras de extermínio e de escravidão” (RIBEIRO, 1995, p. 47).
Este é o esboço do cenário do primeiro século de colonização portuguesa no
Brasil (Século XVI) em que predominou a escravidão indígena principalmente como mão-de-
obra na produção de subsistência, mas também em ofícios artesanais (RIBEIRO, 1995). Em
1570, D. Sebastião enviou uma carta régia ao Brasil que, embora tivesse como mote a
proibição do aprisionamento indígena, ela mais ditou sobre a regulamentação dos casos em
que poderia se capturar e manter cativos os indígenas, desde que sob o pagamento dos direitos
reais às provedorias.
Defendo & mãdo, que daqui em diante se não use nas ditas partes do Brasil dos
modos que se ate ora usou em fazer cativos os ditos gentios, nem se possam cativar
per modo nem maneyra algua, salvo aquelles que forem tomados em guerra
justa, que os portugueses fezerem aos ditos gentios com autoridade & licença
minha, ou do meu Governador das ditas partes, ou aquelles que costumam saltear os
Portugueses, ou a outros gentios para os comerem [...] E as pessoas que pelas ditas
maneyras licitas cativarem os ditos gentios, serão obrigadas dentro de dous meses
primeiros seguintes, que se começaram do tempo, em que os cativarem, fazerem
escrever os tais gentios cativos nos livros das provedorias das ditas partes, para se
poder ver, & saber quaes são, os que licitamente foram cativos [conforme grafia
original] [grifo nosso] (NAUD, 1971, pp. 291-292).
57
A partir desta carta régia, outros atos administrativos ou cartas régias buscaram
regulamentar o aprisionamento e colonização indígena. Ribeiro (1995) coloca que na prática,
o que se pode afirmar é que o único requisito indispensável para que o indígena fosse
escravizado era ser, ainda, livre, uma vez que as legislações eram contraditórias e hipócritas
porque “proibindo o cativeiro, de fato, o instituíam” (RIBEIRO, 1995, p. 101).
A verdade é que a Coroa não tinha condições práticas de proibir a escravização do
indígena pela necessidade de mão-de-obra abundante e barata que Portugal não podia suprir,
dada sua baixa densidade populacional. “Impunham os fatos a escravidão” (PAIVA, 1982, p.
32).
A mortandade dos indígenas em função de várias epidemias no litoral brasileiro
como sarampo e varíola; a pressão dos jesuítas à Coroa portuguesa que, conforme já
apontado, promulgou leis que, embora contraditórias, coibiam de forma parcial a escravização
indígena, a resistência de alguns povos indígenas ao processo de escravização e, por fim, o
aprimoramento do funcionamento de tráfico negreiro transatlântico, sobretudo após a
conquista definitiva de Angola, nos fins do século XVI são alguns dos fatos que explicam a
mudança da mão-de-obra indígena para a do povo africano. Assim, além da barbárie cometida
contra as populações nativas brasileiras, foi também pela escravidão do povo negro africano
que os portugueses construíram no Brasil uma sociedade capaz de fornecer lucros à
metrópole.
Importante ressaltar que a ideia construída do indígena brasileiro como um ser
preguiçoso e, por isso inapto ao trabalho servil, faz parte do processo ideológico da
colonização. Memmi (1977) explica que esse retrato-acusação da preguiça é uma
caracterização cômoda do colonizador, porque desempenha um papel fundamental na
dialética enobrecimento do colonizador e aviltamento do colonizado. “Além disso, é
economicamente proveitosa” (idem, p. 78). Desta forma, explica Chauí (2000, p.63) “passa-se
então a firmar a natural disposição do índio para a lavoura e a natural afeição do negro para
ela”.
Ao instituir o colonizado como preguiçoso, o colonizador o faz sob sua
constituição sobre o que é ser preguiçoso e pouco importa o que é verdadeiramente o
colonizado, importa submetê-lo a uma indispensável transformação que se inicia com uma
série de negações, seguida da destruição, uma após outra, de todas as qualidades que fazem do
colonizado um homem. Além disso, o colonizado jamais é caracterizado de maneira
diferencial, mas sempre num coletivo anônimo, mesmo ao referir-se a uma única pessoa
58
(MEMMI, 1977).
Enfim o colonizador nega ao colonizado o direito mais precioso reconhecido à
maioria dos homens: a liberdade. As condições de vida, dadas ao colonizado pela
colonização, não a levam em conta, nem mesmo a supõem. O colonizado não dispõe
de saída alguma para deixar seu estado de infelicidade: nem jurídica (a
naturalização), nem mística (a conversão religiosa): o colonizado não é livre de
escolher-se colonizado ou não colonizado (MEMMI, 1978, p. 82).
Desta falta de escolha, resulta a chegada dos primeiros africanos escravizados no
Brasil. Há indícios de que tenham começado a chegar no ano de 153844
, no entanto, a única
certeza que se tem é a de que começaram a chegar no século XVI, sendo que a partir do
século XVII a escravidão do povo africano se tornou a principal fonte de mão-de-obra, com a
produção de cana de açúcar (MUNANGA, 2006).
Para justificar a escravidão de africanos e africanas, afirmava-se que nas guerras
entre estes e nas guerras entre africanos e europeus, os vencidos eram naturalmente escravos
e, portanto, poderiam ser usados conforme a vontade dos seus senhores. A ideia da “afeição
natural” dos negros para a lavoura tornava também natural que os vencidos de guerra fossem
escravizados para o trabalho da terra. Esta naturalização da escravidão africana,
evidentemente, ocultava o principal objetivo, isto é, que o tráfico negreiro abria um novo e
importante setor do comércio colonial (CHAUÍ, 2000).
Deste modo, entre os anos 1576 a 1600, desembarcam no Brasil cerca de 40 mil
africanos escravizados e, entre 1601 a 1625 cerca de 150 mil africanos (MUNANGA, 2006;
MARQUESE, 2008). Segundo a revisão da literatura feita por Paul Lovejoy (198945
apud
ELTIS, BEHRENDT, RICHARDSON, 2000) 11.863.000 pessoas foram embarcadas no
tráfico transatlântico, destas, entre 9.600.000 e 10.800.000 teriam chegado às Américas46
.
Assim, o primeiro contato a que se tem registros oficiais entre Brasil e África se
dá pelo processo de escravização de homens e mulheres africanos trazidos às terras brasileiras
pelos portugueses que, durante o processo de expansão marítima, encontraram na exploração
das terras invadidas o meio para fomentar o comércio. Foi o “holocausto africano” (FABBRI,
2015, p. 94; CÉSAIRE, 1978), ou seja, a história da barbárie marcada pela exploração, tortura
44 De acordo com Eltis, Behrendt e Richardson (2000) os primeiros navios negreiros de portugueses residentes
no Brasil a fazer a travessia transatlântica com pessoas negras escravizadas data, provavelmente, do ano de 1519.
45 LOVEJOY, P. E. The impact of the Atlantic slave trade on Africa: a review of the literature. In: The Journal
of African History, v. 30, n. 03, p. 365-394, 1989.
46 O número depende da taxa de mortalidade utilizada para converter os embarques na África em desembarques
nas Américas.
59
e genocídio, causada pela colonização portuguesa que se utilizou, além da escravidão
indígena, do tráfico de pessoas escravizadas vindas de vários pontos da África para o
desenvolvimento de um mercado colonial, que aproximou o Brasil do continente africano.
Césaire (1978) explica ainda que antes de serem vítimas, foram os europeus cúmplices do
nazismo. Toleraram-no esse mesmo nazismo, antes de o sofrer, absolveram-no, fecharam-lhe
os olhos e legitimaram-no. Assim, Hitler não é o crime em si, é o crime contra o homem
branco, a humilhação do homem branco que sofreu a violência mesma do processo
colonialista que até então só os povos da América, África e Índia estavam subordinados. Diz o
autor: “pela boca de todos os que julgavam e julgam lícito aplicar aos povos extra-europeus, e
em benefício de nações mais fortes e melhor equipadas, uma espécie de expropriação por
motivo de utilidade pública, era Hitler que falava” (p. 21).
O “holocausto africano”, ou seja, o tráfico de pessoas escravizadas da África para
as Américas e, consequentemente, para o Brasil, foi gerado também porque quando da
chegada dos portugueses na África, no século XV, motivada, principalmente, pela busca do
ouro, ao se depararem com grande parte do metal em mãos muçulmanas no Norte e no Leste,
acabaram por reduzir a África ao papel de fornecedora de mão-de-obra e, assim, logo
começou a exportação para a América de parte considerável da população africana
(DEVISSE; LABIB, 2010).
De acordo com Eltis, Behrendt e Richardson (2000) os navios de proprietários
portugueses que viviam no Brasil foram os primeiros a transportar pessoas escravizadas da
África para as Américas, assim como estiveram entre os últimos a fazê-lo, aproximadamente
três séculos e meio mais tarde. Desta forma,
Seres livres em suas terras de origem, aqui foram despojados de sua humanidade
através de um estatuto que fez deles apenas força animal de trabalho, coisas,
mercadorias ou objetos que podiam ser comprados e vendidos; fontes de riqueza
para os traficantes (vendedores) e investimentos em “máquinas animais” de trabalho
para os compradores (senhores de engenho). Foi este o regime escravista que fez do
Brasil uma espécie de sociedade dividida e organizada em duas partes desiguais
(como uma sociedade de castas): uma parte formada por homes livres que, por
coincidência histórica, é branca, e a outra formada por homens e mulheres
escravizados que, também por coincidência histórica, é negra (MUNANGA, 2006,
p. 16).
Dentro deste cenário, é possível afirmar que a colonização portuguesa instituiu
pela violência – física e simbólica – uma nova forma de sociedade. Seja pela escravidão que
obrigava os indígenas e, logo em seguida, africanos, aos mais diversos tipos de trabalhos
forçados e extenuantes, seja pela cristianização, aculturando-os numa religiosidade própria
60
dos europeus, a colonização, além dos saques materiais da terra invadida, tratou também de
eliminar toda uma cultura que, na verdade, eram culturas de diversas etnias indígenas e
africanas que aqui coexistiam – genocídio e epistemicídio (racismo epistêmico), portanto, são
colunas basilares do processo de colonização europeia.
O brasileiro foi, portanto, gestado no processo de unificação da língua e dos
costumes dos indígenas desengajados do seu viver gentílico, dos negros sequestrados das
Áfricas47
e dos europeus que aqui se enraizaram num processo quase sempre violento de
dominação do outro considerado como inferior (RIBEIRO, 1995).
Castigos físicos como o açoite, o tronco; palmatória, ferro quente para marcar o
corpo; a máscara (uma placa de metal que cobria a boca ou toda a cabeça); o vira-mundo que
prendia pés e mãos deixando a pessoa numa posição dolorosa; a gargalheira, uma espécie de
coleira de ferro, são algumas das formas de violência utilizadas contra as pessoas escravizadas
e consideradas legais do ponto de vista jurídico. Apenas o “excesso de punição” era visto
como um ato criminoso, no entanto, nos casos julgados, muitas vezes acabava-se por julgar
como suicídio o assassinato de um escravo pelo senhor.
O “Codigo Criminal do Imperio do Brazil” na Lei de 18 de dezembro de 1830, no
capítulo II sobre os crimes justificáveis determinava que: [de acordo com o original]
Art. 14. Será crime justificável e não terá lugar a punição delle: § 6º Quando o mal
consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus
escravos, e os mestres a seus discipulos; ou desse castigo resultar, uma vez que a
qualidade delle, não seja contraria ás Leis em vigor (BRASIL, 1830).
Todo este cenário demonstra como a colonização se esmera também em
descivilizar o colonizador, em embrutecê-lo e despertá-lo para os instintos ocultos da cobiça,
da violência, do ódio racial e do relativismo moral. A colonização desumaniza mesmo o
homem mais civilizado porque a ação colonial fundada sobre o desprezo do homem pelo
indígena, tende, inevitavelmente, a modificar quem a empreende e faz até do colonizador de
boa consciência se habituar a ver no outro um animal, se exercitando a tratá-lo como animal,
transformando-se ele próprio em animal (CÉSAIRE, 1978). Isto porque
Entre colonizador e colonizado, só há lugar para o trabalho forçado, a intimidação, a
pressão, a polícia, o imposto, o roubo, a violação, as culturas obrigatórias, o
desprezo, a desconfiança, a arrogância, a suficiência, a grosseria, as elites
descerebradas, as massas aviltadas.
Nenhum contato humano, mas relações de dominação e de submissão que
transforma o homem colonizador em criado, ajudante, comitre, chicote e o homem
47 Usamos o termo “Áfricas” para reforçar a ideia de pluralidade no continente, repudiando a visão eurocêntrica
de uma África uníssona com povo e cultura únicos.
61
indígena em instrumento de produção (CÉSAIRE, 1978, p. 25).
Fanon (1968) explica que o mundo colonizado tem como intermediário do poder a
linguagem da violência. Assim, o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções
diretas e frequentes, mantém contato com o colonizado e o “aconselha”, a coronhadas, a não
se mexer. No entanto, pesar de toda a violência e horror empregados, não foi sem luta que as
pessoas escravizadas passaram por este triste capítulo da história. A resistência negra
aconteceu de diversas formas pouco discutidas ainda nos dias atuais, não por descuido, mas
pela intencionalidade de se fazer perpetuar a crença de que os negros e negras passaram por
esse sistema apáticos e passivos. Entretanto, insubmissão às regras de trabalho nas roças;
revoltas; fugas; assassinatos dos senhores e de suas famílias; abortos; quilombos;
organizações religiosas, entre outras, foram algumas das estratégias utilizadas na luta contra a
escravidão (MUNANGA; GOMES, 2006).
A abolição da escravidão é ponto que merece atenção especial a fim de desvelar a
colonialidade presente nos discursos hegemônicos que visam romantizar a história
apresentando o fato como um ato benevolente da princesa Isabel, buscando, de tal modo,
apagar a luta dos movimentos de resistência do povo escravizado e dos movimentos
abolicionistas formados por intelectuais, religiosos, políticos e pessoas do povo, além da
pressão política da Inglaterra que, após a Revolução Industrial, precisava estabelecer novos
mercados consumidores para expandir e consolidar o sistema capitalista, o que só era possível
com trabalhadores assalariados. Assim, a partir do ano 1831 inicia-se um processo de abolição
da escravatura com a proibição do tráfico de pessoas escravizadas. A primeira lei neste
sentido foi a “Lei Feijó” que declarou “livres todos os escravos vindos de fôra do Imperio, e
impõe penas aos importadores dos mesmos escravos” (BRASIL, 1831), no entanto, foi esta a
Lei que deu origem à expressão “para inglês ver”, uma vez que foi aprovada tendo em vista
agradar a Inglaterra, não se efetivando na prática. Prova disso é que entre os anos 1831 a 1850
o desembarque de pessoas escravizadas no Brasil chegou a 712.700, sendo que o período de
1846 a 1850 foi o de maior índice de chegada de escravizados (257.500) (IBGE, 2007).
Dezenove anos depois, em 4 de setembro de 1850 foi a Lei nº 581, conhecida como a Lei
Eusebio de Queiroz [de acordo com a grafia original], devido à pressão cada vez mais
acirrada da Inglaterra, estabeleceu medidas para a repressão do tráfico de africanos no
Império e passou a considerar pirataria a importação de pessoas escravizadas, com punição
legal com base no Art. 2º da Lei Feijó.
62
Art. 2º Os importadores de escravos no Brazil incorrerão na pena corporal do artigo
cento e setenta e nove do Codigo Criminal, imposta aos que reduzem á escravidão
pessoas livres, e na multa de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos escravos
importados, além de pagarem as despezas da reexportação para qualquer parte da
Africa; reexportação, que o Governo fará effectiva com a maior possivel brevidade,
contrastando com as autoridades africanas para lhes darem um asylo. Os infractores
responderão cada um por si, e por todos (BRASIL, 1831) [de acordo com o
original].
A Lei Eusebio de Queiroz gerou efeitos mais concretos no tocante ao tráfico
diminuindo em mais de 97% a entrada de escravizados no quinquênio 1851-1855 em relação
ao quinquênio anterior (1846-1850) (IBGE, 2007), aumentando, no entanto, o tráfico interno,
concentrado nas então Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Antes da Lei Áurea, foram
ainda promulgadas a Lei do Ventre Livre (09/1871) e a Lei dos Sexagenários (09/1885). A
primeira declarava livre os filhos nascidos de mulher escravizada, a partir da publicação da
data desta lei. No entanto, na prática, a Lei beneficiava o senhor uma vez que não garantia
qualquer condição de livre sobrevivência ao menor liberto, conforme é possível perceber no §
1º do Art. 1º da lei.
Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de
receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do
menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá
o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização
pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os
quaes se considerarão extinctos no fim de 30 anos. A declaração do senhor deverá
ser feita dentro de 30 dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito
anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos
serviços do mesmo menor (BRASIL, 1871) [grifo nosso].
A Lei nº 3.270, conhecida como a Lei dos sexagenários que previa a liberdade de
escravizados com 60 anos de idade ou mais, só foi aprovada com a inserção de um artigo que
previa uma indenização ao senhor do escravizado, que deveria ser feita pelo próprio liberto
com mais três anos de serviço ou até este completar 65 anos. De tal forma, do ponto de vista
humanitário e econômico, a Lei teve pouca repercussão, uma vez que eram poucas as pessoas
escravizadas que alcançavam os 60 anos, tendo em vista os trabalhos extenuantes e as
péssimas condições de vida. No entanto, a Lei conseguiu manter em pauta a discussão sobre a
Abolição da escravidão que acabou por ocorrer definitivamente em 13 de maio 1888 por força
da Lei Imperial n.º 3.353, popularmente conhecida como a Lei Áurea. Após discussão e
votação do Senado Imperial, a Princesa Isabel, regente do Brasil, sancionou a Lei que abolia a
escravatura no Brasil, último país independente do continente americano e último país cristão
do mundo a abolir a escravidão.
63
Note-se que quando da abolição o Brasil já não era mais colônia48
, no entanto, a
construção colonial já se encontra penetrada de tal forma, que não há alterações significativas
na vida da população, principalmente das pessoas escravizadas e, embora após a abolição não
tenha havido um sistema legal declarado de segregação, como aconteceu nos Estados
Unidos49
, a segregação se deu por Leis que excluíram a população negra da sociedade e,
portanto, de qualquer possibilidade de cidadania. Exemplo disso é a Lei nº 601, de 18 de
setembro de 1850, que ficou conhecida como a Lei de Terras que impediu que negros e negras
se tornasse donos de terras. A lei estabelecia que:
Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não
seja o de compra.
[...]
Art. 18. O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente á custa do Thesouro
certo numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for
marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela
Administração publica, ou na formação de colonias nos logares em que estas mais
convierem; tomando anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonos
achem emprego logo que desembarcarem [de acordo com o original] (BRASIL,
1850b).
A perversidade da Lei está no fato de impossibilitar que pessoas que, saindo da
condição de escravas, pudessem adquirir uma terra. Interessante notar ainda que catorze dias
antecessores da Lei de Terras, havia sido promulgada a Lei Eusébio de Queirós (BRASIL,
1850a), (que reprimia o tráfico de africanos no Império) indicando assim não tardaria a
abolição da escravatura pela qual a Inglaterra já fazia pressão. Desta forma, a Lei de Terras se
adiantou em regulamentar a posse de terras, a fim de que negros e negras, ainda que libertos,
ficassem suprimidos desta possibilidade.
Outra medida que se adiantou à Lei Áurea (1888), e se colocou logo após a Lei
Dos Sexagenários (1885) foi o Código de Postura de 1886 do município de São Paulo que,
dentre outras indicações, criminalizava práticas de origem afro-brasileira a que chamavam de
“curandeiros de feitiços”, assim como os batuques e cateretês; proibia aos escravos “tirar
esmolas”; a profissão de cocheiros ou condutor de carroças de aluguel, ou ainda vender água;
proibia a profissão de caixeiro ou administradores em casas de negócios a escravos e proibia
ainda o “ajuntamento de escravos ou de outras pessoas fazendo vozerias e incomodando a
48 A chamada Independência do Brasil ocorreu em 7 de setembro de 1822.
49 Nos EUA, após a abolição da escravidão em 1863, formou-se uma sociedade segregada e que passa a ter
respaldo legal quando em 1896 a Suprema Corte considerou constitucional a existência de acomodações
separadas para brancos e negros, erguendo uma barreira que negava às pessoas negras o livre acesso à moradia,
restaurantes e à maioria dos serviços públicos (OLIVEN, 2007).
64
vizinhança, sob pena de 10$ de multa (SÃO PAULO, 1886, p 31).
Percebe-se que para o Código de Postura as pessoas escravizadas estão na mesma
categoria das demais pessoas, uma vez que se destaca a separação “ajuntamento de escravos
ou de outras pessoas”. A perversidade do Código está ainda no fato de que em 1886, dois
anos antes da Lei Áurea, o número de ex escravizados já era grande, e além de proibir
diversas atividades profissionais aos escravos, o Código de Postura impute uma forma
criminalizar qualquer possibilidade de convívio social como é possível observar no disposto
no Art. 198 – “Toda a pessoa de qualquer sexo ou idade que encontrada sem ocupação e em
estado de vagabundagem, será dada à autoridade policial competente, para assinar o têrmo de
que trata o código do Processo Criminal.” E também no Art. 2014 – “É proibido aos escravos
valetudinários ou não, esmolarem para subsistencia sua ou por ordem de alguem. Os que
forem encontrados, serão apresentados ao Juizo de Orfãos, que providenciará como fôr de
direito” (SÃO PAULO, 1886, pp. 36-37).
A escravidão, embora, dentro dos moldes coloniais, tenha se findado em 1888, é
estruturante da nossa sociedade. De acordo com Pinsk (1992) a herança escravista continua
mediando nossas relações sociais quando estabelece distinções hierárquicas entre trabalho
manual e intelectual, quando determina habilidades específicas para o negro e quando
alimenta até os dias atuais o preconceito e a discriminação racial. Além do mais, a violência
legalizada deste período, persiste nos dias atuais em instituições como a Polícia Militar.
Não bastasse isso, as doutrinas do racismo científico e da “teoria do
branqueamento” que buscou nos imigrantes europeus, mão de obra para os empregos
assalariados (DOMINGUES, 2007; ANDREWS, 1991 apud DOMINGUES, 2007), e a forte
difusão da ideologia da democracia racial, marcaram a forma como as relações raciais foram
percebidas no senso comum e também em obras científicas no Brasil por mais de um século.
Gilberto Freyre (2006), conforme já iniciamos a apresentação na introdução, é o
grande expoente acerca da ideologia da democracia racial. Em sua obra Casa Grande &
Senzala, o autor trata com romantismo as relações de exploração do trabalho e também do
sexo estupro sustentado com as mulheres escravizadas, mesmo descrevendo em alguns
momentos a crueldade imposta pelo senhores e senhoras de engenho. Para Freyre havia
doçura nas relações de senhores com escravos domésticos. O autor descreve a aculturação do
povo escravizado pelo batismo católico como algo benéfico uma vez que o aproximava da
cultura do senhor e tornara-os tão bons cristãos quanto os senhores.
Vê-se quanto foi prudente e sensata a política social seguida no Brasil com relação
65
ao escravo. A religião tornou-se o ponto de encontro e de confraternização entre as
duas culturas, a do senhor e a do negro; e nunca uma instransponível ou dura
barreira (FREYRE, 2006, p. 439).
Esta ideia ganha força principalmente porque quando comparada com o apartheid
racial institucionalizado nos Estados Unidos e África do Sul, há a ideia de que no Brasil as
relações foram construídas de forma cordial. Entretanto, a ideia de convivência harmônica
entre os “antagonismos equilibrados” (FREYRE, 2006), ou seja, a crença na existência de
uma democracia racial, apenas reforça o “apartheid extrajurídico” que faz perpetuar até os
dias atuais as injustiças sociais e econômicas, uma vez que difunde a crença de que somos
todos iguais, ignora o racismo e traz a crença de que se os negros e/ou indígenas não atingem
os mesmos patamares que os não-negros, é por falta de competência ou de interesse destes
(BRASIL, 2004).
A “ideologia do branqueamento” foi construída a partir das teorias científicas
raciais do século XIX que pregavam a inferioridade do povo negro, momento em que os
indígenas já eram minoria numérica da população. Uma ilustração da perversidade desta
teoria é encontrada na obra de Stephen Jay Gould (1990). O autor apresenta a mentalidade
racista do Século XIX, dentre outros exemplos, ao contar a história da Vênus de hotentote:
uma mulher de nome Saartjie Baartman, da etnia hotentote ou boximanes (povos de baixa
estatura, do sul da África). Saartjie Baartman trabalhava em uma fazenda de holandeses na
Cidade do Cabe até que foi coagida sob a proposta de tornar-se rica ao ir para a Inglaterra ser
exposta “como um animal selvagem”, segundo um membro da Associação Africana que
requeria sua “libertação”. Isto porque na escala racista do progresso humano, os boximanes e
hotentotes estavam junto com os aborígenes australianos nos degraus mais baixos, logo acima
dos chimpanzés e orangotangos) No entanto, Saartjie, interrogada em holandês perante um
tribunal reiterou que não estava sob coação e que compreendia que receberia metade dos
lucros. Após uma longa excursão pelas províncias inglesas, foi levada para Paris, onde foi
exibida durante 15 meses por um treinador de animais e também posou para pinturas
científicas. O grande motivo de sua popularidade era o tamanho avantajado de suas nádegas e
seus órgãos sexuais. Saartjie morreu em 29 de dezembro de 1815 e ao invés de rica, acabou
em uma mesa de dissecação de George Cuvier que ao descrevê-la enfatiza todos os pontos de
semelhança superficial com qualquer macaco ou grande antropoide, buscando provar a teoria
científica racial de evolucionismo social. Contudo, uma leitura cuidadosa da descrição de
Cuvier desmente suas próprias interpretações já que ele repete por várias vezes que Saartjie
66
era uma mulher inteligente, com excelente memória, que falava holandês razoavelmente bem,
tinha certo domínio do inglês e estava aprendendo um pouco de francês quando morreu.
Neste cenário de ideologia racista a abolição da escravatura se configura como
uma farsa que, como se viu, aendeu principalmente aos interesses político-econômicos da
época. De tal modo, os negros foram intencionalmente deixados às margens da sociedade –
física e socialmente – para que em condições de extrema pobreza se extinguissem seja pela
mortalidade infantil, pela desnutrição, doenças ou, por fim, a partir das sucessivas
miscigenações que objetivavam desaparecer com a população negra por completo do cenário
nacional. A miscigenação surge como uma saída para resolver o “dilema” da nação: o grande
número de negros que condenava ao atraso o desenvolvimento da nação e, portanto, a solução
apontada era a miscigenação pela convicção de que o sangue branco iria purificar o sangue
“primitivo” africano, permitindo a eliminação física destes e a formação gradativa de uma
nação homogênea: branca e civilizada (OLIVEIRA, 2008).
Isto se daria a partir das políticas públicas institucionais que proibiram a
imigração negra, como é o caso do Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890 que regularizava o
serviço da introdução e localização de imigrantes na República dos Estados Unidos do
‘Brazil’ [conforme grafia da época].
DA INTRODUCÇÃO DE IMMIGRANTES
Art. 1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos indivíduos
válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal do seu
país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante
autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as
condições que forem então estipuladas (BRASIL, 1890).
Em 1911, o médico e antropólogo João Baptista de Lacerda, diretor no Museu
Nacional do Rio de Janeiro, apresentou no Congresso Universal das Raças, realizado em
Londres, a tese de que em um século e, após três gerações, o Brasil teria uma população
branca, embasado na crença da seleção dos mais fortes – a população branca – (SCHWARCZ,
2011). Ele utilizou o quadro “A redenção de Cam50
”, do artista espanhol Modesto Broco,
durante a sua fala no Congresso como evidência de sua tese, ou seja, de que a entrada de
50 Segundo o texto bíblico Gênesis: 9, 18-27 Cam expõe a nudez de seu pai, Noé, a seus irmãos Sem e Iafet e, por
isso, seu filho Canaã, acaba condenados pelo pai de Cam, seu avô, a ser escravo. A Interpretação da passagem
bíblica entre o final da Idade Média e o início da Era Moderna, momento da expansão da Cristandade Ocidental
rumo à África, à Ásia e, posteriormente, às Américas, passa a ser utilizada como justificativa para a escravidão
dos africanos, vista como "natural" pelos europeus. (LOTIERZO; SCHWARCZ, 2013) “Quando Noé despertou
de sua embriaguez, soube o que lhe tinha feito o seu filho mais novo. “Maldito seja Canaã, disse ele; que ele
seja o último dos escravos de seus irmãos!” GÊNESIS, 9 – 24-25
67
imigrantes europeus faria com quem em três gerações, ou em um século, o país se tornaria
branco (LOTIERZO; SCHWARCZ, 2013). A pintura retrata uma família em três gerações
marcada pelas distintas gradações de cor entre as personagens: à esquerda, a avó negra; ao
centro, a mãe, "mulata"51
, que carrega um bebê branco no colo; à direita, o presumido pai da
criança, também branco. A cena representa a tese de Lacerda, ou seja, a tese de que o negro
seria eliminado na terceira geração a partir da miscigenação. Estas ideias eram embasadas na
teoria do darwinismo social, sob o conceito de "evolução" da espécie que, neste caso, seria
resultante da "seleção sexual" que promovia o embranquecimento. A brancura, nesse
contexto, era associada à ideia de perfectibilidade e fica retratada na posição de louvor da avó
negra pela redenção da família a partir do branqueamento – A redenção de Cam (LOTIERZO;
SCHWARCZ, 2013).
Haufbauner (2015)
complementa o entendimento desta
ideologia quando explica que ela não
se reduz apenas à concepção de
transformação do negro em branco.
Essa transformação faz surgir
implicitamente um “espectro de cores”
que impede a fixação de um consenso
entre o que é ser “negro” e o que é ser
“branco” e dificulta a tentativa de
apresentar os limites impostos pela
cor. Trabalha ainda no abafamento da
reação coletiva dividindo grupos que
poderiam se organizar em torno de
uma reivindicação comum e, por fim, nega à identidade negra a beleza de seus traços e
cultura, fazendo com que as pessoas procurem se apresentar no cotidiano o mais brancas
possível.
51 Reproduzimos o termo “mulata” utilizado pelos autores, no entanto, repudiamos o termo por entende-lo como
racista, uma vez que é uma derivação da palavra “mula”, “animal híbrido, estéril, produto do cruzamento do
cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento”. Inúmeros registros etimológicos indicam que foi há mais ou
menos 400 anos, ou seja, durante o período escravagista brasileiro, que essa palavra começou a ser usada para se
referir, de forma pejorativa, aos filhos e filhas de negros com brancas ou vice-versa.
Figura 2 - A redenção de Cam – Modesto Brocos
68
Percebe-se, desta forma, que na América Latina o racismo levou as elites a adotar
políticas eugenistas, de recorte nazista, buscando no branqueamento das populações negras e
indígenas, ou pura e simplesmente na sua eliminação física, a construção de uma sociedade
nacional. Isso acabou por formar sociedades fortemente racializadas, antidemocráticas,
autoritárias e politicamente submissas ao domínio imperial exterior, tanto nos planos
econômico e político, como no cultural. Os modos de vida vindos da velha Europa colonial e
da pujante América do Norte neoimperial se converteram, e se mantém até hoje
(WEDDERBRUN, 2007) no que autores como Fanon, Quijano, Mignolo, Walsh, Grosfoguel,
Ballestrin, entre outros, denominam colonialidade.
Embora a ideologia do branqueamento tenha começado a perder sua legitimidade
nos anos 50, em parte pela atuação da UNESCO que, ao apresentar preocupação com a
questão, faz mudar de orientação as pesquisas acadêmicas que começam a se preocupar com a
situação real de cada grupo dentro da sociedade brasileira (HAUFBAUNER, 2015), a cultura
do branqueamento continua viva na sociedade brasileira na qual aspectos da negritude como o
cabelo crespo, o turbante, o black power, e o rastafári ainda sofrem discriminação e em que
usá-los é um ato político de afirmação positiva da raça negra.
Isto porque a sociedade brasileira conserva ainda as marcas da “cultura senhorial”
(CHAUÍ, 2000, p. 87) que mantém a sociedade estruturada com uma hierarquia fortemente
verticalizada em todos os seus aspectos: “nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre
realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece” (CHAUÍ,
2000, p. 89). Esta “cultura senhorial” naturaliza as desigualdades e exclusões
socioeconômicas em que a diferença salarial entre homens e mulheres, brancos e negros; a
existência dos sem-terra; dos sem-teto; dos milhões de desempregados é tida como
ignorância, preguiça ou incompetência (idem) dos excluídos de direitos e privilégios da classe
dominante que, não por acaso é branca, heterossexual, capitalista e cristã.
Um ponto que queremos destacar nesta breve retomada histórica é a
“Comemoração dos 500 anos de descobrimento do Brasil” realizada no ano 2000 que, no
nosso entendimento, marca a forte colonialidade da nossa sociedade pois a comemoração da
data se deu como se o Brasil só tivesse existência a partir da chegada dos portugueses,
privilegiando a visão europeia sobre o mundo americano que estava aqui e sobre, inclusive
tudo o que aconteceu depois, de maneira que a perspectiva europeia foi sempre privilegiada
(SANTOS; BRUNETTO; LEAL, 2000). Além disso, o uso da expressão “descobrimento do
Brasil” denuncia como a chegada dos portugueses em terras do continente americano é
69
interpretada: mais uma vez, são eles os protagonistas da história dos 500 anos do Brasil,
mesmo que a ideia de um Estado-nação independente e soberano só tenha se tornado
realidade no século XIX (SILVA, 2003).
As atividades oficiais da comemoração tinham como tema dominante o vínculo
entre Brasil e Portugal e estiveram diluídas numa extensa agenda que foi inaugurada no início
do segundo mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso (1998-2002). Como
corolário do legado português ao Brasil, a Igreja Católica esteve presente em várias ocasiões;
única instituição religiosa a participar nas comemorações oficiais esteve presente na
celebração de missas; na assembleia anual da Conferência Nacional do Bispos do Brasil
(CNBB) que carregou a marca oficial do evento; e também através do projeto Cruz Sagrada,
pelo qual foi fixada uma cruz no local onde se diz ter sido celebrada a primeira missa no
Brasil (SILVA, 2003).
Das comemorações oficiais, destacamos ainda o ritual de entrega de três tochas ao
presidente da república por representantes de comunidades indígenas, populações
afrodescendentes e portugueses. Denominadas como “Chamas do conhecimento”, a última
delas foi entregue no dia 1º de janeiro de 2000 a FHC que proferiu as seguintes palavras:
Recebo nesse instante, vinda de Portugal, a terceira “chama do conhecimento”. A
primeira, recebi em São Raimundo Nonato, no Piauí, das mãos de chefes indígenas.
Logo depois, Ruth Cardoso recebeu, nos sertões de Goiás, das mãos dos Calungas,
descendentes de escravos africanos, a outra das chamas simbólicas do encontro
entre raças e culturas que formou o Brasil. No romper do ano 2000, quando nosso
país completará seus 500 anos, rendemos homenagens aos formadores de nossa
civilização: brancos europeus, de fala portuguesa e fé em Cristo, índios autóctones
com dezenas de falas e crenças e negros africanos, também diversificados na língua
e na cultura. [...] Somos talvez a maior nação multirracial do mundo Ocidental,
senão em número de habitantes, na capacidade integradora da civilização que
fundamos. [...] E essa identidade dá-nos a base para a entrada no novo milênio, o da
“civilização global”; nos distingue pelos valores da tolerância, permite que
reflitamos, a partir dela, o quanto conseguimos caminhar nesses 500 anos. [...] Pátria
da imigração, de braços abertos aos que aportam, como Cristo que nos guarda do
alto do Corcovado. [...] Terra da solidariedade. É isso que pedimos como benção
nesta entrada do Milênio. [...] Paz e amor são nossos lemas [...]. Meus amigos,
quando os portugueses aventuraram-se pelos oceanos na ânsia de descobrir novas
terras e novas gentes deram a marca da modernidade: a descoberta do outro, o
reconhecimento da variedade e da diferença [...]. (SILVA, 2003, pp. 146-147) [grifo
nosso]
A tocha vinda de Portugal ao Brasil nos remete a um simbolismo o qual
inferimos, amparadas pela alegoria da Caverna de Platão, que é Portugal quem nos tira da
escuridão e nos traz à luz com as “chamas do conhecimento”. Além desse simbolismo com
forte aspecto colonial, é possível perceber na fala do então presidente a consagração de uma
democracia racial não apenas pelo dito, mas principalmente pela omissão do discurso. FHC ao
70
reforçar a ideia do “encontro de raças”, a “capacidade integradora da civilização” e os
“valores de tolerância” omite toda a violência e o racismo que chegou com os portugueses
dizimando e escravizando indígenas e africanos. Racismo que se perpetua nesses 500 anos de
história e que mantém a população negra e indígena em condições de desvantagem em todas
as esferas da vida social, outra herança da “cultura senhorial” (CHAUÍ, 2000, p. 87).
Entretanto, enquanto no evento oficial se comemorava a data sob o discurso
romantizado da história do Brasil, movimentos sociais organizados pelo Movimento de
Resistência Indígena, Negra e Popular “Brasil Outros 500” denunciavam a história de
invasão, saque, genocídio e epistemicídio cometido nestas terras desde a chegada dos
portugueses. No “Manifesto Brasil 500 anos de resistência”52
os movimentos sociais
organizaram também uma agenda para suas ações e colocavam-se como antagônicos em
relação às comemorações oficiais. Dizia o manifesto:
Aproxima-se a data — 22 de abril de 2.000 — que nos fará refletir sobre o dia, 500
anos atrás, em que um grupo armado de portugueses desembarcou nestas terras, com
a meta de anexá-la como território colonial. Aqui viviam, há mais de 40 mil anos,
mais de 5 milhões de pessoas, pertencentes a cerca de 970 diferentes povos. Eram os
legítimos donos destas terras, possuidores de tudo -- menos de anticorpos para
doenças européias, de armas mortais à base de pólvora e chumbo, nem do impulso
de violência, exploração, depredação e saque. Disto, eram portadores privilegiados
aquele grupo de homens maltrapilhos e doentes que desceu na praia da hoje
Cabrália, sul da Bahia, cinco séculos atrás, dizendo que estavam "descobrindo um
Novo Mundo" e que para estas terras trariam seus ideais de civilização, progresso e
evangelização.
Naquele dia foi dado início à expansão do Velho Mundo nestas terras, através da sua
brutalidade letal e organizada, pronta para projetar-se contra tudo e contra todos que
estivessem em seu caminho. Aquele 22 de abril de 1.500 foi um dia mítico, matriz
de uma história violenta e desumana, que continua até os nossos dias.
[...]
Pretendemos, através do nosso movimento, expor nossa divergência clara e
transparente com relação às comemorações oficiais. Estas irão comemorar os 500
anos da construção de uma nação supostamente unida e harmônica, erguida, na sua
visão, com a "contribuição voluntária" dos povos indígenas, dos africanos
"trasladados" para estas terras e dos brancos europeus. Para as comemorações
oficiais, inexiste a noção de conflito, hoje como no passado. Para nós, pelo
contrário, a noção de conflito é central na história como no presente, projetando-se
no futuro. A brutalidade do genocídio indígena capitaneado pela empresa colonial e
52 Assinado em dezembro de 1998 pelos movimentos sociais: CONEN (Coordenação Nacional de Entidades
Negras); MNU (Movimento Negro Unificado); CMP (Central De Movimentos Populares); CIMI
(Conselho Indigenista Missionário); CPT (Comissão Pastoral da Terra); GTME (Grupo de Trabalho Missionário
Evangélico); Comitê 500 Anos de Resistência Negra, Indígena e Popular (Salvador/Ba); Fórum 500 Anos
(Campinas/SP); Capoib (Conselho de Articulação dos Povos e Organizações do Brasil); Apoinme (Articulação
dos Povos Indígenas Do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo); Articulação de Mulheres Negras Lélia
Gonzales (Salvador/Ba); CEPIS (Centro de Educação Popular do Instituto Sedes; Sapientiae A.C.R.(Anarquistas
contra o Racismo); Equipe Palmares de Rio Claro/SP; Coletivo 500 Anos de Araras/SP; Sinpro (Sindicato Dos
Professores da Rede Particular do Abc/SP); Comitê De Solidariedade às Comunidades Zapatistas (SP) COIAB
(Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira); Setor Pastoral Social da CNBB
(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
71
responsável pela extinção de povos inteiros, a barbárie da sociedade escravocrata
que espoliou os povos africanos sacrificando e desagregando famílias e
comunidades, a crueldade atroz, que vitimou e vitima cotidianamente os setores
populares, marca uma das sociedades mais desiguais do planeta: a sociedade
brasileira até os dias de hoje. Todas essas realidades históricas não podem ser
compreendidas sem a noção central do conflito — conflito entre povos, entre
classes, entre ideologias, entre concepções de vida, de mundo, do humano, da
própria história (MANIFESTO BRASIL 500 ANOS DE RESISTÊNCIA, 1998).
Como se pode ver, o Manifesto traz à tona a história dos de baixo, ou seja, “dos
que sofreram e lutaram contra a espoliação colonial e a exploração de classe, dos condenados
da terra, das periferias das cidades e da história oficial”. Em Abril do ano 2000, paralelo às
comemorações oficiais, os movimentos sociais realizaram diversas ações no sul da Bahia para
discutir sobre o significado destes 500 anos de história do ponto de vista indígena, negro e
popular. Contestando a versão romantizada proferida no evento oficial, denunciaram a
repressão, a miséria, a injustiça e as mortes que não cessaram desde 1500. Destacamos a
seguir algumas falas proferidas na Conferência realizada.
Nós somos pessoal reprimido pelos não índios, pelos empresário fortes, pelos
latifundiários que querem ser donos da nossas terras, ainda nós vivamos há tantos
anos, nossos pais, nosso avós, que eram donos das terras deles, livres, que podiam
cortar o pé, e hoje em dia nós se encontra como os oprimidos sem poder botar o pé.
Eu choro o coração e derramo minhas lágrimas como meu parente derramou, porque
também somo povo sofrido do Ceará, somo pessoal que precisamos também de ser
um povo cidadão, pessoal respeitado (Líder indígena – O RELOÓGIO E A
BOMBA, 2000).
Queremos que vocês brancos ajudem a gente a preservar a terra e não deixar
destruir. Vocês também precisam da terra. Não queremos dinheiro. Dinheiro só
deixa a gente doido. Não queremos mais mortes. Há posseiros e garimpeiros, mesmo
onde as terras j· foram demarcadas. Eles querem festejar invasão, morte e injustiça.
Davi Kopenawa, líder yanomami (CCPY, 2000).
Essa é uma luta que para nós, não é nova e, portanto, estar amanhã fazendo esse
grande ato porque amanhã culmina, é o ápice desse movimento na grande marcha
que nós vamos realizar sobre Porto Seguro colocando para o mundo a nossa leitura
dos supostos 500 anos do Brasil, nós não reconhecemos esse 500 anos porque
reconhecer 500 anos significa negar os mais de 5 milhões de povos indígenas que
habitavam esse país com a forma de organização própria, comunitária e que
alimentava a todos, sem a miséria que a gente vê hoje. As mulheres negras e as
mulheres indígenas estão aqui pra denunciar a violência, o estupro que Gilberto
Freyre não foi capaz de romantizar como ele gostaria, nós fomos violentadas
historicamente, gerações e gerações e não adianta fazer um livrinho e dizer por aí
que houve encontro de raças, houve massacre sim, e isso precisa ser
reconhecido porque senão não será possível fazer um novo milênio e um novo
século. Então essa é a contribuição a União de Negros. (líder do movimento negro –
A BOMBA E O RELÓGIO, 2000). [grifo nosso]
No dia que marcou oficialmente os 500 anos de “descobrimento do Brasil” – 22
de Abril – foi realizada uma missa na solenidade oficial que contou com a presença dos
72
presidentes Fernando Henrique Cardoso e Jorge Sampaio, de Portugal. Na ocasião, FHC
voltou a exaltar em sua fala o encontro que deu origem ao brasileiro mestiço no “encontro de
várias raças” (O RELÓGIO E A BOMBA, 2000; SILVA, 2003). Enquanto FHC exaltava o
“encontro cordial” num evento repleto de celebridades (maioria esmagadora branca) com
lugares reservados, a marcha organizada pelo Movimento “Brasil Outros 500”, era fortemente
reprimida pela Polícia Militar, num novo “encontro” nada cordial que resultou em feridos e
detidos. Doze anos depois o Estado da Bahia foi condenado a pagar uma multa de R$10
milhões pelo uso desproporcional da força.
O protesto de diversos índios, integrantes do movimento negro, estudantes e outros
cidadãos foi considerado como pacífico pela Justiça. O grupo seguia da enseada de
Coroa Vermelha, há cerca de 20 Km de Porto Seguro, para o Centro Histórico da
cidade para expor a visão dos manifestantes sobre o significado dos 500 anos de
descobrimento do país.
Apesar de não portarem armas e carregarem apenas faixas, bandeiras e panfletos,
bem antes do local dos festejos oficiais os manifestantes foram surpreendidos por
uma barreira policial que impediu o prosseguimento da marcha com uso de bombas
de gás lacrimogênio e balas de borracha.
O episódio, que repercutiu nacional e internacionalmente na mídia, marcou as
comemorações pelos 500 anos do Brasil principalmente pela forma violenta e
desproporcional que a Polícia Militar dissolveu a passeata (REDAÇÃO, 2012).
Desta forma, a comemoração dos 500 anos do Brasil termina da mesma forma
como começou sua história como Brasil53
: violência com uso desproporcional da força contra
um povo desarmado que é expulso do seu direito de vivenciar uma cidadania plena.
Não é nosso objetivo neste trabalhar fazer um histórico detalhado dos mais de 500
anos desde a colonização do Brasil que nos colocam hoje no patamar de uma “independência
colonial” (QUIJANO54
, apud GROSFOGUEL, 2012), na qual o racismo, o machismo, a
LGBTQfobia55
, a força policialesca militarizada e o capitalismo que aumenta dia-a-dia a
desigualdade social, estão impregnados de tal forma que são naturalizados56
em nossa
53 História como Brasil porque as terras achadas e invadidas já possuíam habitantes e uma História que, portanto,
não se inicia em 1500.
54 QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (ed.) Colonialidad
del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. CLACSO: Buenos Aires, 2000; QUIJANO, A. La colonialidad
del poder y la experiencia cultural latino-americana. In: BRICEÑO-LEÓN, R.; SONNTAG, H. R. [eds.],
Pueblo, época y desarrollo: la sociología de América Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 139-155, 1998. 55
Sobre esta questão ver a tese de Estevão Rafael Fernandes, “Decolonizando sexualidades: enquadramentos
coloniais e homossexualidade indígena no Brasil e nos Estados Unidos, Brasília, 2015”. O autor explica que a
colonização criou um aparato burocrático-administrativo, político e psicológico (o enquadramento, em suas
múltiplas formas) para normalizar as sexualidades indígenas, moldando-as à ordem colonial. 56
De acordo com Chauí (2000, p. 88) as “divisões sociais são naturalizadas em desigualdades postas como
inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, dos negros, índios, imigrantes, migrantes e
idosos) e as diferenças também naturalizadas, tendem a aparecer ora como desvios da norma (no caso das
73
sociedade, mas buscar na história os elementos coloniais que persistem até os dias atuais e
que contaminam nossas formas de sociabilidade.
Tendo em vista o objetivo deste estudo, nossas discussões e reflexões enviesam
para a categoria colonial do racismo, uma vez que, conforme mostramos, a ideia de raça e
consequente desenvolvimento do racismo não apenas esteve presente, mas estrutura toda a
formação sociocultural do país desde a escravidão, até os dias atuais em que o racismo
estrutural mantém as pessoas negras em condições de desvantagens social, econômica,
cultural, educacional, de saúde e lazer57
.
2.1. Um país colonial é um país racista
O título deste subitem é uma afirmação de Frantz Fanon (1968) que sintetiza o
que buscamos mostrar anteriormente, ou seja, de que o racismo é um desdobramento do
processo de colonização que surgiu a partir da hierarquização das raças a partir de supostas
diferenças biológicas presentes nas diferenças fenotípicas entre conquistadores e
conquistados. Assim, diz o autor “Quando se observa em sua imediatidade o contexto
colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou
não a tal espécie, a tal raça. [...] A causa é consequência: o indivíduo é rico porque é branco, é
branco porque é rico” (FANON, 1968, p. 29), ou seja, o racismo se fundou como uma
categoria que determina os lugares sociais ocupados por brancos, negros e indígenas.
De tal modo, fica evidente, que a colonização tem relação direta com os processos
de extermínio indígena, de sujeição e de escravidão de homens e mulheres vindos do
continente africano, que resultam no racismo que persiste até os dias atuais, apesar da negação
diferenças étnicas e de gênero), ora como perversão ou monstruosidade (no caso dos homossexuais, por
exemplo). Essa naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis de violência, pois estas não são percebidas
como tais.”
57 Os estudos realizados pelo IPEA, evidenciam as desigualdades vivenciadas pela população negra em todas as
esferas da vida social. De acordo com Jaccoud e Beghin (2002, p.11), sob qualquer aspecto analisado,
impressiona a magnitude das injustiças que sofre esse grupo populacional. Os dados revelam que as
desigualdades são oriundas tanto de menores níveis de educação, como da discriminação racial, ou seja, a
convergência do preconceito e do racismo prejudica indivíduos somente em razão de suas características físicas
ou culturais. As autoras explicam ainda que apesar do crescimento econômico que marcou a segunda metade do
Século XX, as desigualdades econômicas entre brancos e negros não se alteraram. “A cor das pessoas é um
determinante importante das chances de vida, e a discriminação racial parece estar presente em todas as fases do
ciclo de vida individual”.
74
de sua existência. Sobre isso, Gomes (2017, p. 51) explica que o “Brasil construiu
historicamente um tipo de racismo insidioso, ambíguo, que se afirma via sua própria negação
e que está cristalizado na estrutura da nossa sociedade.”.
Ao tratar sobre “racismo”, faz-se importante elucidar o conceito de raça
empregado, para que não se caia na armadilha da simplificação biologista de “raça humana”
que busca suprimir o debate sobre racismo. O conceito de raça que estruturou o racismo está
diretamente atrelado ao conceito biológico, no entanto, o termo foi adquirindo diferentes
sentidos ao longo da história e, portanto, seu entendimento durante o período de colonização,
difere do entendimento contemporâneo acerca do termo.
De acordo com Memmi (1993), a palavra “raça” surge na língua francesa no
século XV e vem do latim ratio, sendo compreendida, neste momento, como um conjunto de
traços biológicos e psicológicos que liga ascendentes e descendentes numa mesma linhagem,
termo que só é aplicado ao homem no século XVII. Essas visões, baseadas no conceito
biológico de raça humana, foram nefastas na construção do racismo que, de acordo com
Guimarães (2003) não existiria sem essa ideia que divide os seres humanos em subespécies,
cada com qual com suas qualidades. “Foi ela que hierarquizou as sociedades e populações
humanas e fundamentou um certo racismo doutrinário” (GUIMARÃES, 2003, p. 96).
Petrucelli (2013) explica que na cultura ocidental as classificações de seres
humanos em diferentes grupos tiveram início no século XVIII quando Carl Von Linné (1707-
1778), Georges Georges Louis Leclerc, o conde de Buffon (1707-1788) e Johann Friedrich
Blumenbach (1752-1840) construíram as primeiras classificações humanas baseadas em
características morfológicas. Todos remetiam, em primeiro lugar ao traço mais marcante, a
cor da pele, seguido pelo tamanho e forma e, por fim, aos traços “morais” que questionaram a
humanidade dos indígenas e trataram como inferior a cultura africana. De tal modo, o
conceito de “raça” foi desenvolvido pela biologia e pela antropologia física e colocava que a
espécie humana, tal como os demais animais, poderia ser dividida em subespécies.
A partir desta perspectiva, a ideia de raça produziu nas Américas identidades
historicamente novas como: índios, negros e mestiços; e refinou outras como a identidade de
“europeu” que até então indicavam somente procedência geográfica, mas a partir de então
referia-se também a uma identidade racial e à medida em que as relações sociais eram
relações de dominação, as identidades acabaram por associar-se a hierarquias, ou seja, como
instrumento de classificação social das populações. “Desse modo, raça, converteu-se no
primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis e papéis na
75
estrutura de poder da nova sociedade” (QUIJANO, 2005, p. 118).
O sequenciamento do genoma humano em 2003 encerra a possibilidade de
hierarquização de humanos em raças porque a pesquisa permitiu concluir que as
características físicas utilizadas para distinguir “raças” não têm significado biológico. Assim,
a fim de superar a “raça”, diversos autores (PENA; BRICHAL, 2005-2006; GILROY, 2007),
utilizam desses argumentos para incidir o desejo de uma “sociedade não-racialista”, “cega a
cores”. Antes mesmo do Projeto Genoma, depois da tragédia do holocausto na Segunda
Guerra Mundial, houve um esforço de cientistas das diversas áreas – biologia, sociologia,
antropologia – para eliminar o conceito de raça e o seu uso como categoria científica
(GUIMARÃES, 2003).
O londrino Paul Gilroy, “um dos mais brilhantes intelectuais negros do nosso
tempo” de acordo com Guimarães (2002, p. 48), em sua obra “Entre campos: nações, cultura e
o fascínio da raça” lançada na Inglaterra e nos Estados Unidos no ano 2000, defende a ideia
de que após os horrores da II Guerra Mundial o conceito de “raça” não pode ter um lugar
eticamente defensável. A tese do autor nasce de suas memórias da infância sobre os horrores
sobre este momento histórico em que a raça foi utilizada como discurso de ódio na ideologia
nazista e fascista.
Lembro-me de ter ficado especialmente perplexo quando num final de semana,
durante uma caminhada de historiador através das áreas desoladas e destruídas pelos
bombardeios às margens do rio, meu pai e eu encontramos a insígnia da União
Britânica dos Fascistas [...] pintada cuidadosamente num muro, lado a lado com a
então tradicional injunção de Mantenha a Bretanha Branca. (GILROY, 200758
, p.
21).
A partir destas lembranças, o autor constrói a sua discussão em defesa da não
racialização. Gilroy (2007) reconhece que o determinismo genético transformou o significado
da diferença racial e que esta nova situação exige uma crítica renovada do pensamento sobre
“raça”. No entanto, coloca que mesmo uma mudança positiva que surja da crise no conceito
de raça não pode ser defensável uma vez que a “raça” “não pode ser prontamente
ressignificada ou dessignificada, e imaginar que seus sentidos perigosos possam ser
rearticulados com facilidade em formas benignas e democráticas” (p. 29).
O argumento do autor gira em torno do que ele chama de crise da raciologia que
advém das construções genômicas de “raça” e que, neste cenário, se esboça uma possibilidade
de se libertar “dos laços da raciologia por inteiro num projeto abolicionista novo e ambicioso”
58 A primeira versão traduzida para o português é de 2007.
76
(GILROY, 2007, p. 33) tendo em vista um humanismo planetário e pragmático. “A vontade
política de liberar a humanidade do pensamento racial deve ser complementada por razões
históricas precisas de por que essas tentativas valem a pena. Para Gilroy a primeira tarefa é
sugerir que a morte da “raça” não é algo que deva ser temido” (p.30) porque com ela acabaria
também as hierarquias raciais.
Gilroy critica ainda o conceito de raça com ênfase na cultura porque, para ele, a
relação entre diferenças culturais e as particularidades raciais são complexas sendo difícil
determinar o que é necessário para ser reconhecido como pertencente a determinada cultura.
Além do mais, para o autor
as versões culturalistas do discurso racial – ainda que superficialmente mais benigna
do que a força mais crua da teoria biológica de “raça” – não são menos malévolas ou
brutais para aqueles que estão no elo final das crueldades e terrores promovidos por
elas (GILROY, 2007, p. 55).
A discussão sobre cultura fica mais clara em sua obra “O Atlântico Negro59
”
lançada em 1993. Nesta obra o autor estrutura sua análise de política de raça, etnicidade,
cultura e nacionalidade sob a ótica da diáspora. Para Gilroy a diáspora traz à luz “não a raça, e
sim formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas
comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e
transcendem" (p. 25).
Para Guimarães (2002) ainda que Gilroy tenha razão quando se refere à Europa
Ocidental, a perspectiva contrária ao uso de conceito de “raça” não tem a mesma validade no
caso brasileiro ou estadunidense. Neste contexto, o desafio do exame crítico das relações
raciais – negritude e branquitude – está exatamente em se ater à irrealidade da raça, mas ao
mesmo tempo aderir tenazmente ao reconhecimento de seus efeitos sumamente reais
(FRANKENBERG, 2004).
Ao encontro disto, Munanga (2013), coloca que a saída não está no simples fato
de eliminar o conceito de raça, ensinando, por exemplo, que raça não existe, mas sim na
aceitação das diversidades como bandeira de luta a fim de exigir a convivência equânime de
todas. Munanga explica ainda que a retirada do conceito de raça dos textos científicos pelos
biólogos antirracistas não ajudou no combate ao racismo, pois o racismo sobreviveu por meio
de termos mais cômodos e, muitas vezes, invisíveis como “etnia” ou “identidade”.
Além do mais, entendemos ser perverso eliminar o conceito de “raça” justamente
59 Gilroy, P.. The Black Atlantic Modemity and Doiuble Consciouness. London, Verso, 1993. 261 p
77
quando esta é ressignificada dentro do contexto social a fim de, por meio de políticas de ação
afirmativa, possibilitar que a população negra tenha reconhecido o seu direito de reparação e a
afirmação da sua história e cultura, depois dos crimes de mais de trezentos anos de escravidão
que impactam negativamente a vida socioeconômica, cultural e psicológica dos negros e
negras até a atualidade. Gomes (2018) explica também que o Movimento Negro ressignificou
e politizou afirmativamente a ideia de “raça”, entendendo-a como potência de emancipação, e
não como uma regulação conservadora.
Ao politizar a raça, o Movimento negro desvela a sua construção no contexto das
relações de poder, rompendo com visões distorcidas, negativas e naturalizadas sobre
os negros, sua história, cultura, práticas de conhecimentos; retira a população negra
do lugar da suposta inferioridade racial pregada pelo racismo e interpreta
afirmativamente a raça como construção social; coloca em xeque o mito da
democracia racial (GOMES, 21018, p. 22).
Advertimos ainda que a preocupação com o perigo do uso do termo “raça” surgiu
“apenas” quando europeus brancos foram assassinados no terrível cenário do holocausto. Não
se encontra na História a mesma preocupação durante o “holocausto africano” (FABBRI,
2015, p. 94; CÉSAIRE, 1978), ou seja, após os quase quatro séculos de escravidão que
sequestrou, violentou das mais diversas formas, assassinou, e aculturou milhões de pessoas
africanas.
Neste contexto, como explicar com um “humanismo planetário” (GILROY, 2007)
não racializado as desigualdades raciais brasileiras nas taxas de analfabetismo na população
acima de 15 anos que, em 2008, entre a população branca era de 6,2%, enquanto na população
negra era de 13,6%, sendo superior à taxa de analfabetismo entre os brancos dez anos antes,
quando esta era de 12,1%? (PAIXÃO, et al., 2010). Como resolver apenas com medidas
universalistas a diferença entre brancos e negros, por exemplo, na proporção de pessoas de 25
anos ou mais com 12 anos ou mais de estudo na qual os brancos saltam de 12,5 em 1995 para
24,5 em 2013 e os negros partem de 3,3 e chegam à proporção 10,8 no mesmo período?
(IPEA et al., 2013). Ou seja, a população negra brasileira em 2013 tinha uma proporção de
adultos com 12 anos ou mais de estudos, menor que a proporção entre os brancos em 1995.
Desta forma, concordamos com Guimarães (2002) para quem “raça” não é apenas
uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas é
também categoria analítica indispensável para revelar que as discriminações e as
desigualdades brasileiras não são apenas de “classe”. Ressaltamos, portanto, o uso social do
conceito e trazemos novamente Guimarães (2003, p. 96) que nos explica que
78
as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um
ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais.
Estamos, assim, no campo da cultura e da cultura simbólica. Podemos dizer que as
“raças” são efeitos de discursos; [...] São discursos sobre as origens de um grupo,
que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades
morais, intelectuais, psicológicas, etc., pelo sangue (conceito fundamental para
entender raças e certas essências).
O autor explica ainda que na formação do campo da sociologia ocorre um
deslocamento das explicações sobre o mundo social baseadas em raça ou clima, trazendo à luz
as explicações baseadas no social e na cultura. “É a idéia de que a vida humana, a sociedade
política, etc., não são determinadas, de maneira forte, por nada além da própria vida social”
[grafia segundo o original] (GUIMARÃES, 2003, p. 95). Ou seja, não há, na espécie humana
nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos que corresponda à compreensão
que se tem de raça, assim, “o que chamamos de “raça” tem existência nominal, efetiva e
eficaz apenas no mundo social e, portanto, somente no mundo social pode ter realidade plena”
(GUIMARÃES, 2002, p. 50).
Apesar da conceituação sociológica sobre raças e etnias há ainda no senso comum
e mesmo entre muitos intelectuais o questionamento sobre “Quem é negro no Brasil?” questão
frequentemente presente nos debates acerca das diversas políticas públicas de ação afirmativa
para grupos com histórico de discriminação e usurpação de direitos ao longo da história do
Brasil. Da mesma forma, na questão indígena, a questão “O que é um ‘índio’?” predominando
ainda no senso comum a ideia de que os indígenas ao lutarem por suas terras, atrasam o
desenvolvimento do país, que são preguiçosos, e que se não estiverem nus e com cocar na
cabeça, não são mais “índios”. Além disso, a questão não é simplesmente acadêmica porque
envolve o destino econômico de muitas populações, tendo em vista que a política indigenista
busca garantir aos indígenas a posse das terras em que vivem.
Assim, no Brasil, aceita-se a discussão feita por Caneiro da Cunha (198660
) e
Ribeiro (195761
) que concluíram que a identidade étnico-racial deve estar vinculada à
autodeclaração do grupo e à identificação deste pela sociedade em que está inserido
(SALZANO, 1998). Em outras palavras, a classificação racial no Brasil, diferente do que
acontece nos Estados Unidos62
, é baseada na autodeclaração individual. É a autopercepção
60 CARNEIRO DA CUNHA, M.. Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Edusp, 1986.
61 RIBEIRO, D.. Culturas e línguas indígenas do Brasil. In: Educação e Ciências Sociais. v. 2, n. 6, pp. 5-102.
Rio de Janeiro, 1957
79
que faz um sujeito definir se é negro, indígena ou branco.
Neste cenário, a luta dos movimentos negros na valorização da identidade e
cultura negra tem feito com que haja uma percepção positiva da negritude que trouxe como
consequência um crescimento da população que se autodeclara como negra. Isto deve-se
também pelo acesso ao conhecimento efetivo da História Africana e Afro-brasileira, conforme
explica a coordenadora da primeira licenciatura do Brasil de estudos africanos e afro-
brasileiros, Katia Regis (ROSSI, 2015). A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD, 2014), realizada pelo IBGE mostrou que em 2014 53,6% da população brasileira se
autodeclararam como negra (pardos 45% e pretos 8,6%), em 2004 este percentual era de
48,1% (42,2% de pardos e 5,9% de pretos).
Podemos inferir que o pensamento colonial começa a se esfacelar quando pessoas
negras negam o padrão imposto, rompendo com a política de branqueamento iniciada no
século XIX e passam, em contrapartida, num movimento decolonial, a construir uma
identidade negra positiva, apesar do racismo enfrentado cotidianamente. Esta inferência se
reforça na explicação de Adriana Beringuy, técnica do IBGE, que avalia que o aumento desse
percentual não tem relação com a taxa de natalidade entre negros, mas sim com o aumento da
autodeclaração porque as pessoas têm começado a se perceber e a valorizar a identidade negra
como algo positivo (ROSSI, 2015). Petruccelli (2013) explica que toda percepção é orientada
e informada, ou seja, a maneira como uma pessoa se percebe não é simplesmente a imagem
óptica que se forma em sua retina, mas o produto de uma seleção dos componentes desta a
partir de um arcabouço mental configurado pelos seus conhecimentos, ideias, ideologias,
crenças, conceitos e, também, seus preconceitos. Daí a importância da construção educacional
e social de uma imagem negra positiva, que fuja dos velhos estereótipos preconceituosos e
racistas.
O quesito “raça/cor” com as cinco categorias conforme se tem atualmente:
“branca, preta, amarela, parda e indígena”, apareceu pela primeira vez no censo brasileiro no
ano 2000. No primeiro recenseamento do Brasil, realizado em 1872 foram utilizadas as
categorias: branco, preto, pardo e caboclo. No segundo censo, em 1890, o termo pardo foi
62 Nos Estados Unidos é considerada negra a pessoa que tem qualquer ancestral africano – assim o preconceito
racial relaciona-se com a origem genotípica do indivíduo e, neste cenário, o preconceito racial vem da suposição
de que o indivíduo descende de um determinado grupo étnico sendo considerado como “ preconceito de origem”,
fazendo com que as restrições impostas ao grupo negro, em geral, se mantenham independentemente de
condições pessoais como a instrução, ocupação etc. (NOGUEIRA, 1985).
80
substituído por mestiço. Nos anos 1900 e 1920 a questão racial foi excluída da pesquisa. O
censo de 1940 foi o primeiro realizado pelo IBGE e, neste ano, foi incluída a categoria
“amarela” em função da imigração japonesa ao Brasil. Em 1950 foi reincorporada a categoria
“pardo” mantendo as categorias branco, preto, pardo e amarelo nos censos de 1960 e 1980
(em 1970 novamente foi excluída a pergunta sobre raça/cor). A categoria “indígena” foi
introduzida apenas no censo de 1991 e tão somente em 2010 as pessoas que se identificaram
como indígenas foram questionadas acerca da sua etnia e língua falada (PETRUCCELLI,
2013).
Este registro é importante porque, além de apresentar um retrato sobre a formação
da sociedade brasileira, permite a elaboração de políticas públicas de acordo com o perfil
desta sociedade, por isso as informações referentes à raça/cor são uma antiga reinvindicação
dos movimentos negros. Em 1995 a senadora Benedita da Silva (PT) apresentou o Projeto de
Lei nº 16 de 1995 que previa a obrigatoriedade do registro raça/cor em registros de
instituições públicas e privadas como: registros escolares, prontuários hospitalares, postos de
atendimento, estabelecimentos médicos e registros policiais. O projeto foi aprovado pelo
Senado Federal, mas acabou arquivado na Câmara dos Deputados.
Apenas em dezembro de 2012 este quesito passou a ser um campo obrigatório,
mas abrangendo somente os registros administrativos, cadastros, formulários e bases de dados
do Governo Federal.
A medida foi divulgada através do Aviso Circular Conjunto n° 01, de 28 de
dezembro de 2012, assinado pelas ministras Gleisi Hoffmann (Casa Civil), Luiza
Bairros (Igualdade Racial), e Miriam Belchior (Planejamento). De acordo com o
documento, a inclusão do campo “cor ou raça” deve ser feita conforme classificação
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. O preenchimento do
quesito é obrigatório, mediante autodeclaração nos documentos que contenham
informações pessoais, inclusive do público externo, no âmbito dos órgãos e de seus
vinculados (SEPPIR, 2013).
Apesar disso, intelectuais renomados como Simon Schwartzman (2006), por
exemplo, desconsideram a importância de tal registro. O autor justifica que a classificação
joga as pessoas em valas comuns da uniformidade que, muitas vezes, encobre situações
odiosas de discriminação e desigualdades. Diz ainda que a recuperação e valorização das
identidades é um processo rico e profícuo que pode dar às pessoas mais sentido para suas
existências, mas que este deve ser um processo das pessoas, dos grupos, e permanecer sempre
aberto e plural, não devendo o Estado assumir para si a tarefa de definir de forma forçada a
identidade das pessoas, mesmo em nome de ideais tão nobres como a "pesquisa" ou o
81
"conhecimento", pois pode se transformar com facilidade em um instrumento de
discriminações e conflitos entre cidadãos de diferentes classificações.
Ignora o autor que as situações odiosas de discriminação e desigualdades
aconteceram e acontecem desde a invasão portuguesa ao Brasil, independente do registro
racial oficial. O autor demonstra ainda total desarticulação com os movimentos negros que
lutaram para ter o direito ao registro de “raça/cor”, uma vez que esta é uma medida que, além
de reiterar as persistentes diferenças socioeconômicas e culturais entre a população negra e a
não-negra, torna o registro um instrumento político que possibilita a implementação de
políticas públicas de reparação a povos historicamente excluídos na sociedade brasileira,
capazes de promover a equidade e combater o racismo.
Diferente do que afirma Schwartzmann, o racismo não acontece a partir da
categorização e quantificação de autodeclarações, mas sim a partir do fenótipo das pessoas, ou
seja, é a aparência, os traços físicos, a fisionomia, os gestos ou o sotaque das pessoas, que as
tornam vítimas do racismo, uma vez que, no Brasil, o preconceito é de marca, ou seja, quanto
mais características negras uma pessoa tiver, mais exposta ao racismo estará (NOGUEIRA,
1985). Ao encontro disso, Rosemberg (2010) enfatiza que embora desacreditado no meio
acadêmico, o sentido biológico de raça permanece vivo no senso comum e classifica
hierarquicamente segmentos sociais.
Além disso, a introjeção de uma história única contada pelos colonizadores e a
europeização do mundo moderno a partir da colonização que se estende até os tempos atuais
pela colonialidade é a estrutura que opera o racismo enraizado nas relações sociais do Brasil.
O racismo, de acordo com Albert Memmi (1993, p. 128) “é a valorização, generalizada e
definitiva, de diferenças, reais ou imaginárias, em proveito do acusador e em detrimento de
sua vítima, a fim de justificar os seus privilégios e a sua agressão”. O autor ressalta que, no
entanto, não é fácil uma definição sobre o conceito que contenha unanimidade.
Fanon (1980) nos explica que o racismo vulgar, primitivo, simplista, de
exploração brutal física, que buscou no biológico a base material da sua doutrina compreende
ao período anterior ao racismo atual, ao que denomina racismo cultural. Neste caso, o racismo
é um elemento cultural, dentro da perspectiva de que a cultura é o conjunto dos
comportamentos físicos e mentais que nascem do encontro do homem com a natureza e com
seus semelhantes. Assim, o objeto do racismo não é mais o homem em particular, mas a
forma de existir de um povo, ele torna-se a opressão sistematizada de um povo pela destruição
dos seus sistemas de referência: os valores culturais, a linguagem, o vestuário, suas formas de
82
existir, enfim.
Como doutrina, o racismo data do século XVI quando os espanhóis colocam à
missão civilizadora a sua superioridade natural em contraposição a perversidade dos índios,
que garante o aval à recriminação, ou correção, legitimando assim a missão do branco. “O
racismo do colonizador quer demonstrar a impossibilidade de incluir o colonizado numa
cidadania comum: porque ele seria muito diferente biológica e culturalmente; porque ele seria
incapaz, técnica e politicamente, etc.” (MEMMI, 1993. p. 121).
No Brasil, uma característica marcante do racismo, conforme já dissemos no
início, é a sua aparente invisibilidade que se dá via a ideologia da democracia racial, na qual
uma suposta igualdade entre as raças é destacada (GOMES, 2017). Esta invisibilidade impede
uma discussão séria e profunda sobre as relações étnico-raciais brasileiras e, pior, impede a
implementação de políticas públicas específicas para a população negra.
Concordamos com Santos (2007) que explica que passou a fazer parte do ethos
brasileiro a indiferença moral em relação à situação social das pessoas negras de forma que
nem ficamos constrangidos com a constatação das desigualdades raciais. É como se negros e
negras não existissem e não participassem da sociedade brasileira.
Esta indiferença se expande nas relações do cotidiano no interior das instituições
que vão reproduzir as práticas sociais corriqueiras, dentre as quais o racismo de forma
explícita ou em microagressões como piadas, silenciamento, isolamento etc., o que se
denomina “racismo estrutural”. Assim, sem nada fazer, quase que automaticamente, toda
instituição se torna uma correia de transmissão de privilégios e violências racistas e sexistas,
constituído o que se denomina “racismo institucional” (ALMEIDA, 2018). Ou seja, racismo
estrutural e racismo institucional estão diretamente ligados tendo em vista que “as instituições
são racistas porque a sociedade é racista (idem, p. 36).
Deste modo, o racismo institucional não se resume aos comportamentos
individuais, mas ao funcionamento das instituições que atuam em uma dinâmica que confere,
ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça (ALMEIDA, 2018).
Almeida (2018) explica que a primeira obra a usar o adjetivo institucional para se referir ao
racismo foi “Black Power: Politics of Liberation in America, de Charles V. Hamilton e
Kwame Ture. Os autores, nesta obra, propõem um rompimento com as análises que
restringiam o racismo a comportamentos individuais para compreender o racismo como “a
aplicação de decisões e políticas sobre considerações de raça com o propósito de subordinar
83
um grupo racial e manter o controle sobre esse grupo” (TURE, HAMILTON, 196763
apud
ALMEIDA, 2018, p. 33). O racismo institucional é menos evidente que o racismo individual,
ele “se origina na operação de forças estabelecidas e respeitadas na sociedade e, portanto,
recebe muito menos condenação pública do que o primeiro tipo64
” (idem, pp.33-34)
Figueiredo (2017) explica que os brasileiros estão convencidos da existência do
racismo, no entanto, na maioria das vezes, não acreditam que isto afeta profundamente a vida
daqueles que são discriminados, menos ainda acreditam que o racismo comprometa o
desempenho escolar das crianças e jovens negros, assim como as suas expectativas de vida e
escolhas profissionais. Assim, diz a autora, o Brasil é um país em que existe racismo, sem que
haja racistas, tendo em vista que o racismo é visto como algo abstrato, que não afeta a vida
real.
Essa mesma dificuldade ocorre com alguns acadêmicos e intelectuais brasileiros,
que têm enorme dificuldade em reconhecer o racismo institucional existente no
espaço universitário, como associado às práticas cotidianas que desqualificam ou
desestimulam a trajetória de acadêmicos negros (FIGUEIREDO, 2017, p. 96).
O racismo estrutural/institucional ao valorizar apenas as formas eurocêntricas de
conhecimento leva ao “racismo epistêmico” (NOGUEIRA, 2008; GROSFOGUEL, 2016;
MIGNOLO, 2017), ou seja, desde a colonização foi designada uma superioridade ao
conhecimento europeu, de modo que os conhecimentos subalternizados foram excluídos,
omitidos, silenciados e ignorados sob a justificativa de que tais conhecimentos representam
um saber mítico, inferior, pré-moderno e pré-científico do conhecimento humano (CÁSTRO-
GÓMEZ E GROSFOGUEL, 2007). Neste sentido, Grosfoguel (2016, p. 25) explica que
A inferiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo o
planeta (incluindo as mulheres ocidentais) tem dotado os homens ocidentais do
privilégio epistêmico de definir o que é verdade, e que é a realidade e o que é melhor
para os demais. Essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens
ocidentes tem gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexismo
epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos
projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo.
Santos (1999) e Carneiro (2005) compreendem o “racismo epistêmico” como um
63 HAMILTON, C. V.; KWAME, T.. Black Power: Politics os Liberation in America. Nova York: Random
House, 1967. 64
A obra de HAMILTON e KWAME citada por Almeida (2018, p. 34) traz um exemplo bem elucidativo acerca
da concepção do racismo individual e do racismo institucional: “Quando terroristas brancos bombardeiam uma
igreja negra e matam cinco crianças negras, isto é um ato de racismo individual, amplamente deplorado pela
maioria dos segmentos da sociedade. Mas quando nessa mesma cidade, quinhentos bebês negros morrem a cada
ano por causa da falta de comida adequada, abrigos e instalações médicas, e outros milhares são destruídos e
mutilados fisicamente, emocionalmente e intelectualmente por causa das condições de pobreza e discriminação,
na comunidade negra, isto é uma função do racismo institucional”.
84
“epistemicídio”, uma vez que o genocídio causado pela expansão europeia, além de eliminar
os povos considerados estranhos/diferentes, eliminou também as suas formas de
conhecimento porque eram sustentadas por práticas sociais desconhecidas por eles. Santos
considera o epistemicídio como um dos grandes crimes contra a humanidade porque além do
sofrimento e da devastação que produziu nos povos e nas práticas sociais, significou um
empobrecimento irreversível das possibilidades de conhecimento. O autor ainda explica que
O epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se
pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar ou ilegalizar práticas e grupos
sociais que podiam constituir uma ameaça à expansão capitalista ou, durante boa
parte do nosso século, à expansão comunista (neste domínio tão moderna quanto a
capitalista); e também porque ocorreu tanto no espaço periférico, extra-europeu e
extra-norte-americano do sistema mundial, como no espaço central europeu e norte-
americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as minorias
em geral (étnicas, religiosas, sexuais) (SANTOS, 1999, p. 283).
Carneiro (2005) explica que o epistemicídio vai além da anulação e
desqualificação do conhecimento dos povos subjugados porque ele é um processo persistente
na produção da indigência cultural através da negação ao acesso à educação; pelos diferentes
mecanismos de deslegitimação do outro como portador e produtor do conhecimento e pela
desqualificação das formas de conhecimento desses povos. Assim, o epistemicídio sequestra a
capacidade de aprender porque nega a racionalidade de quem está subjugado e/ou porque lhe
impõe a assimilação cultural dos dominadores.
Autores da sociologia da ciência hegemônica como o polonês Ludwik Fleck
(2010), o francês Pierre Bourdieu (2003) e, de certa forma, até mesmo o estadunidense
Thomas Kuhn (1979) apresentam elementos que ajudam a compreender como a constituição
da ciência se deu a partir de interesses que estabeleceram as regras que privilegiam uma forma
de compreender o mundo em detrimento de outras e, assim, fizeram com que o eurocentrismo
ditasse as regras sobre todo conhecimento científico e cultural promovendo epistemicídios.
Fleck (2010) nos alerta que o processo de conhecimento representa a atividade
humana que mais depende das condições sociais, sendo o próprio conhecimento um produto
social por excelência. Ou seja, a ciência é uma instituição social que tem a sua dinâmica e
funcionamento como resultados de um processo histórico, cultural e social que apresenta uma
parte, de uma verdade, implicando na imposição de um “estilo de pensamento” que, além de
não levar em consideração o condicionamento cultural e histórico da suposta escolha
epistemológica, impõe um estilo de todo um conceito no qual convenções igualmente
possíveis não são tidas como equivalentes (FLECK, 2010).
85
Na prática, colonização europeia implicou não só na desconstrução societal dos
povos da África e América, mas impôs o seu “estilo de pensamento” reduzindo os saberes dos
povos colonizados à categoria de crenças ou pseudossaberes, desqualificando e
invisibilizando os saberes tradicionais, proporcionando a completa desconsideração do
pensamento filosóficos desses povos, voltando todo o mundo para uma visão eurocentrada de
ciência, cultura e filosofia, ou seja, a colonização europeia produziu o que, conforme já
apresentado, Nogueira (2011); Grosfoguel, (2016); Mignolo (2017) denominam racismo
epistêmico.
Para Grosfoguel (2016, p. 29) há quatro genocídios/epistemicídios que são partes
constitutivas das estruturas epistêmicas do sistema-mundo. São eles:
1. contra os muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus em nome da “pureza
do sangue;
2. contra os povos indígenas do continente americano, primeiro, e, depois, contra os
aborígenes na Ásia;
3. contra africanos aprisionados em seu território e, posteriormente, escravizado no
continente americano; e
4. contra as mulheres que praticavam e transmitiam o conhecimento indo-europeu na
Europa, que foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas.
Esses quatro genocídios/epistemicídios dos séculos XV e XVI trouxeram à tona a
criação do poder racial e patriarcal e as estruturas epistêmicas em escala mundial
emaranhadas com o processo da acumulação global capitalista (GROSFOGUEL, 2016). Desta
forma, Santos (2007b) coloca que o pensamento moderno ocidental é um “pensamento
abissal” uma vez que a realidade social é dividida por linhas radicais em dois universos
distintos “o deste lado da linha” e o “do outro lado da linha”. Assim, o pensamento abissal
elimina definitivamente quaisquer realidades que se encontrem no “do outro lado da linha”
(SANTOS, 2007b, p. 73).
Este “estilo de pensamento” (FLECK, 2010) – abissal e bifurcado – não ocorre ao
acaso, mas é institucionalizado por meio das universidades, centros de pesquisa, escolas e as
sofisticadas linguagens técnicas da ciência, que tornam a exclusão simultaneamente racial e
inexistente ao considerar o que está do “outro lado da linha” como subumano e, portanto,
sequer candidatos à inclusão social. “A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na
medida em que se constitui a condição para que a outra parte da humanidade se afirme como
universal” (SANTOS, 2007b, p. 76).
86
Desta forma, o “campo científico65
” (BOURDIEU, 2003, p. 128), determina o que
tem e o que não tem valor na disputa científica, sendo que os dominantes são “aqueles que
conseguem impor uma definição de ciência segundo a qual a realização mais perfeita consiste
em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são e fazem”, ou seja, o “campo científico” é
legitimado na força relativa dos grupos dominantes que faz perpetuar um sistema que esteja
de acordo com seus interesses. Daí a imagem difundida pelo eurocentrismo de uma África,
conforme palavras de Hegel, “negra e selvagem”, construindo no imaginário popular que o
Egito não faz parte do continente africano (VIEIRA, 2012). Neste cenário, diz Grosfoguel
(2016, p. 43):
As universidades ocidentalizadas, desde o início, internalizaram as estruturas
racistas/sexistas criadas pelos quatro genocídios/epistemicídios do século XVI.
Essas estruturas eurocêntricas de conhecimento se tornam consensuais. Considera-se
normal haver homens ocidentais de cinco países que produzem o cânone de todas as
disciplinas daquela universidade. Não há um escândalo nisso, é tudo um reflexo da
naturalização das estruturas epistêmicas racistas/sexistas de conhecimento que
imperam no mundo moderno e colonial.
O que se percebe, portanto, é que o eurocentrismo reivindicou a si uma
universalidade que organizou a ciência moderna e, sob o pretexto da missão colonizadora,
procurou homogeneizar o mundo, suprimindo todas as práticas sociais do conhecimento que
contrariassem os interesses que ela servia (SANTOS; MENESES, 2010) a partir de um “estilo
de pensamento” (FLECK, 2010) legitimado pelo “campo científico” (BOURDIEU, 2003).
Grosfoguel (2016, pp. 26-27), no entanto, questiona
Como é possível que o cânone do pensamento em todas as disciplinas da ciências
sociais e humanidades nas universidades ocidentalizadas (GROSFOGUEL, 2012) se
baseie no conhecimento produzido por uns poucos homens de cinco países da
Europa Ocidental (Itália, França, Inglaterra, Alemanha e os Estados Unidos)?
Como foi possível que os homens desses cinco países alcançaram tal privilégio
epistêmico ao ponto de que hoje em dia se considere o seu conhecimento superior ao
do resto do mundo?
[...]
Como é possível que no século XXI, com tanta diversidade epistêmica existente no
mundo, estejamos ancorados em estruturas epistêmicas tão provincianas camufladas
de universais?
Para Kuhn (1979), embora o dogmatismo das consideradas ciências maduras
tenha alcançado uma adesão profunda a uma maneira particular de ver o mundo e praticar a
ciência, tal adesão pode ser, e é, de tempo em tempos, substituída por outra, ainda que não
65 Campo científico é o espaço de jogo de uma luta concorrencial em que o que está em jogo é o monopólio da
autoridade científica, compreendida como a capacidade de falar e de agir legitimamente (BOURDIEU, 2003).
87
possa ser abandonada. Para o autor, uma “anomalia”, ou seja, uma quebra nas regras do jogo
preestabelecido é o início para uma inovação científica importante, a fim de que se ajuste ao
paradigma vigente ou, se isso for impossível, justifique a proposição de um novo paradigma.
No entanto, na perspectiva da decolonialidade, não se trata de ajuste ou
substituição de um novo paradigma nos termos de Kuhn, mas do surgimento de paradigmas
outros, em outras palavras, trata-se de um movimento de descobrimento e de revalorização
das teorias e epistemologias do Sul (BALLESTRIN, 2013 apud MIGNOLO, 2003) e, neste
sentido, temos caminhado para a proposição de um novo paradigma que transcenda o
eurocentrismo a partir de uma interculturalidade crítica.
Isto porque, percebemos que o processo de colonização resultou em uma
sociedade esvaziada de si própria, de culturas espezinhadas, de terras confiscadas, de religiões
assassinadas, de grandezas artísticas aniquiladas, de possibilidades suprimidas (CÉSAIRE,
1978). Ou seja, o colonizador é um usurpador que ao chegar em terras desconhecidas,
conseguiu não apenas um lugar, mas tomar a do habitante legítimo, e outorgar-se privilégios e
direitos pela subversão das normas vigentes e ainda que haja alguns privilégios entre os
colonizados, são sempre menores que o do colonizador (MEMMI, 1978).
O racismo, portanto, é uma construção social que cria categorias dialéticas em
que, tanto o negro como o indígena como categorias de classificação racial, só existem em
relação com o outro, o branco. Desta forma, uma vez que se fala e estuda a “negritude”, é
preciso também que se fale e estude sobre a branquitude. Guerreiro Ramos, já em 1957,
sustentou que teorias sobre relações raciais no Brasil são na verdade uma “sociologia do
negro brasileiro” (RAMOS, 1995[1957]c, pp. 163-211, SOVIK, 2004ª, pp. 363-386) porque
não se fala, de fato, sobre relações raciais, trata-se de uma abordagem unilateral, feita muitas
vezes por prestigiados pesquisadores brancos preocupados em analisar o “problema do
negro”.
Em função disso, diversos autores e autoras, geralmente negros e negras,
trouxeram à tona um termo que diga respeito à identidade racial branca, ou seja, uma vez que
a negritude se refere ao pertencimento étnico-racial do negro, a branquitude é a pertença
étnico-racial atribuída ao branco (CARDOSO, 2011; SCHUCMAN, 2012).
A palavra branquitude no Brasil surge como neologismo da palavra negritude
numa ironia a Gilberto Freire (1962) que na sua obra “Casa-Grande & Senzala” coloca que
não é preciso, mas a ideia de se problematizar o branco vem com Guerreiro Ramos que em
1957 coloca a branquitude como objeto de análise sociológica necessária para o entendimento
88
do racismo e das situações adversas em que os negros estão expostos.
É nesse sentido que a discussão sobre a branquitude é tão importante, porque por
muito tempo as questões raciais estiveram focadas apenas na negritude, ou seja, na população
negra, ignorando-se o fato que as condições do povo negro foram assim designadas em um
processo dialético do qual a população branca não pode se esquivar, uma vez que, sob a
crença racista de raça superior, escravizou, dominou, subjugou, aculturou e, com o fim da
escravidão, deixou a população negra à sua própria sorte à margem da sociedade o que reflete
em desigualdades raciais até os dias atuais.
Ao ignorar a branquitude, coloca-se nas discussões sobre relações raciais que as
desigualdades existem pelo legado histórico da escravidão, no entanto, isto acaba aparecendo
como um legado inerte de um passado no qual os brancos parecem ter estado ausentes, ou
seja, os brancos não se reconhecem como parte absolutamente essencial na permanência das
desigualdades raciais no Brasil, reiterando que estas constituem um problema exclusivamente
do negro, que é sempre problematizado, estudado, dissecado para compreensão das relações
raciais (BENTO, 2002).
É a partir destas reflexões que o termo branquitude passou a fazer parte das
pesquisas e entrou na discussão do movimento negro. No Brasil, o termo foi usado pela
primeira vez por Gilberto Freyre em oposição a “negritude”, ressaltando, entretanto, que não
se precisava de um ou outro termo, uma vez que a miscigenação fez do Brasil uma
“democracia racial”66
. Mas o uso, no entendimento que estamos mostrando, foi feito pela
primeira vez por Guerreiro Ramos que utilizou o termo “brancura” no sentido de branquitude.
Entretanto, assim como tantos outros termos, “branquitude” se constrói e reconstrói histórica
e socialmente no decorrer do tempo (CARDOSO, 2011).
Assim, branquitude vem sendo compreendida por alguns autores67
como uma
identidade branca que busca romper com os privilégios e nega a supremacia branca numa
reflexão a partir da própria experiência como branco que pode levar a uma ação política
antirracista. Em contrapartida a “branquidade” diz respeito a uma identidade social e cultural
66 Democracia racial é a ideia de que a sociedade brasileira foi concebida sob relações harmônicas entre
colonizador e colonizado, senhor e homem escravizado. Aparece pela primeira vez em textos do século XIX, no
“Abolicionismo” de J. Nabuco. Entretanto, foi Gilberto Freyre que eternizou a ideologia da democracia racial na
sua Obra Casa Grande e Senzala de 1933 (1ª edição).
67 Edith Piza no seu artigo “Adolescência e Branquitude” apresentado em 2005 e Camila Moreira de Jesus
endossam as novas concepções no artigo “Branquitude X Branquidade: uma análise conceitual do ser branco”,
apresentado em 2012.
89
não demarcada racialmente e voltada para os valores do próprio grupo social e que geralmente
incorpora os traças do racismo, ainda que inconscientemente. A branquidade apresenta-se
para os negros como uma barreira para a construção de uma identidade racial positiva
(negritude) uma vez que coloca como modelos de humanidade positivas apenas pessoas
brancas (PIZA, 2005).
A branquidade se dá por um processo de acumulação de vazios e silêncios sobre o
outro, até que sejamos obrigados a nos defrontar com ele. Só então o preconceito e a
discriminação podem se manifestar como elementos da sociedade e da cultura.
Antes disso, o outro não existe, ou sua existência é totalmente irrelevante (PIZA,
2005, s/p.)
Portanto, as identidades raciais que legitimam as relações raciais, e se colocam
como parte de um processo que é necessariamente dialógico, são concebidas como
branquitude e negritude e, assim definidas, significam a compreensão por ambas as partes de
que a escravidão por quase 400 anos e o racismo persistente se dá pela presença de dois atores
– o branco e o negro ou o branco e o indígena, no qual, em ambos os casos, o primeiro detém
até os dias atuais os privilégios do trabalho do segundo, que em consequência continua em
situação de desvantagem socioeconômica em relação ao branco.
Compreendemos a diferença entre branquitude e branquidade, na qual o primeiro
termo se coloca numa postura crítica diante das desigualdades raciais, no entanto, apesar
disso, ambas, branquitude e branquidade, apesar de posturas diferentes, associam-se e se
privilegiam do prestígio social, econômico e político e ligam profundamente os modos de
funcionamento do racismo no Brasil às hierarquias raciais de outras sociedades fundadas no
colonialismo europeu. Assim, explica Laborne (2014), a branquitude e branquidade enquanto
esse lugar de poder articula-se nas instituições (universidades, empresas, organismos
governamentais etc.) que são por excelência reprodutoras e mantenedoras do quadro das
desigualdades raciais.
No entanto, a análise sobre a branquitude e o conhecimento no Brasil, não pode
deixar de considerar a dimensão da mestiçagem que acarreta maior complexidade para o
entendimento das relações raciais e de poder. É preciso, portanto, compreender como a
política de branqueamento a partir da mestiçagem corroborou na construção dos significados
culturais que a branquitude forjou em nossa cultura desde o período colonial e continua
operando nos tempos atuais marcada pela colonialidade do poder e do saber, na perspectiva
abordada por Quijano (2010) e Santos (2008) (LABORNE, 2014, p. 156).
90
2.2. Colonialidade do poder, do ser e do saber – Pós Colonialismo e
Decolonialidade
Ao longo deste capítulo buscamos demonstrar os traços coloniais que
permanecem apesar do fim da colonização política e jurídica. Mostramos como o racismo se
estruturou a partir da concepção biológica de raça que dividiu a sociedade entre brancos,
negros, amarelos e indígenas de forma hierárquica, na qual os brancos se mantém em situação
de privilégio, no que se denomina branquitude e branquidade.
Isto porque, o colonial vai além do período colonialista e impute situações de
opressão diversas, definidas a partir de fronteiras étnico-raciais, sexual ou de gênero,
econômica, espiritual, epistemológica, pedagógica, linguística, cultural (COSTA, 2006;
GROSFOGUEL, 2012), entretanto, conforme já dissemos, a colonialidade do poder tem a
raça e o racismo como princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do
sistema-mundo (GROSFOGUEL, 2009)
Assim, com o fim da colonização os países tornam-se “Estados independentes e
sociedades coloniais” (QUIJANO, 2005, p. 134). O Século XVI lançou uma nova matriz de
poder colonial que, os finais do século XIX, já havia se alastrado para todo o planeta
(GROSFOGUEL, 2008). Com o fim da colonização a pequena minoria branca –
branquidade/branquitude – no controle dos Estados agora independentes não tinha nenhum
interesse social comum com indígenas, negros e mestiços, uma vez que seus interesses,
amparados nos seus privilégios compunham-se no domínio e na exploração dessas gentes,
estando, portanto, muito mais próximos dos interesses dos europeus, o que levava a
aristocracia branca a seguir os interesses da burguesia europeia, ou seja, havia uma
dependência histórico-estrutural. Dessa forma, não havia nenhum interesse nacional comum a
todas as gentes que compunham os países (QUIJANO, 2005). De acordo com Figueiredo
(2017), no Brasil, a independência sem decolonialização manteve os negros e indígenas
excluídos, explorados, marginalizados e segregados dos espaços de poder social, cultural,
econômicos, político e educativo.
A dependência dos senhores capitalistas não provinha de uma subordinação
nacional, mas como consequência de interesses raciais que impediu o Brasil de desenvolver
seus interesses sociais na mesma direção que os europeus, isto é, transformar capital
comercial em capital industrial. A industrialização veio apenas durante a crise econômica
mundial nos anos 30, quando a burguesia foi forçada a produzir localmente os bens que
91
serviam para seu consumo ostentador e que antes tinham que importar. “A industrialização
através da substituição de importações é, na América Latina, um caso revelador das
implicações da colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005, p. 135).
Desde então, os países da América Latina, no qual se inclui o Brasil, estiveram
ocupados na tentativa de avançar no caminho da nacionalização das sociedades e dos Estados,
mas ainda não é possível encontrar nenhum país latino-americano plenamente nacionalizado,
nem tampouco um genuíno Estado-nação (QUIJANO, 2005). Isto porque as independências
no terceiro mundo, nos últimos cem anos, nunca mexeram nas hierarquias globais criadas ao
longo dos mais de quatro séculos de colonização europeia no mundo. De tal modo, a ideia de
que cada Estado é “soberano” porque decide sobre seu destino histórico, podendo agir com
liberdade independente das relações de força política e econômica do sistema-mundo
capitalista68
, é um dos mitos mais importantes da modernidade capitalista – “o mito da
independência dos Estados periféricos” (GROSFOGUEL, 2012, p. 347) que nos coloca num
período de colonialidade global.
A noção de “colonialidade do poder” aponta que o colonialismo foi a condição
sine qua non de formação da modernidade e que a raça e o racismo se constituem como
princípios organizadores da acumulação de capital em escala mundial e das relações de poder
do sistema-mundo (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016). Atenta ainda que o
mundo não foi completamente descolonizado. A descolonização foi incompleta porque se
limitou a independência jurídico-política dos países periféricos. A segunda descolonização – a
qual aludimos com a categoria decolonialidade – dirige-se a heterarquia, ou seja, na ausência
de um controle centralizado vertical, das múltiplas relações raciais, étnicas, sexuais,
epistêmicas, econômicas e de gênero que a primeira descolonização deixou intactas. Como
resultado, o mundo do século XXI necessita de uma decolonialidade que complemente a
descolonização dos séculos XIX e XX. “En pocas palabras: necesitamos avanzar hacia lo
que el sociólogo griego Kyriakos Kontopoulos denomino pensamiento heterárquico69
(1993)”
(CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 18).
68 Grosfoguel (2009, 2012) considera que diferente do que propõe a economia marxista ortodoxa, o capitalismo
histórico desde seu começo, no século XVI, tem sido um sistema mundial que engloba outras categorias sendo,
portanto, um “sistema mundo europeu/norte-americano moderno capitalista colonial/patriarcal”.
69 O pensamento heterárquico tem como objetivo conceitualizar as estruturas sociais com uma nova linguagem
que transpassa o paradigma da ciência social eurocêntrica herdada desde o século XIX (CASTRO-GÓMEZ;
GROSFOGUEL, 2007).
92
A colonialidade do poder70
, portanto, exprime a ideia de que as relações coloniais
nas esferas econômica e política não findaram com o fim do colonialismo. Mas a
colonialidade se estende ainda para outros âmbitos e se reproduz em uma tripla dimensão: do
poder, do ser e do saber.
Conforme já dissemos, a colonialidade liga-se diretamente à hierarquia racial,
tendo em vista que raça e racismo são os princípios organizadores da estrutura do sistema-
mundo. Assim, ao espaço e à experiência, a “colonialidade do ser refere-se ao processo pelo
qual o senso comum e a tradição são marcados por dinâmicas de poder de caráter preferencial:
discriminam pessoas e tornam por alvo determinadas comunidades” (MALDONADO-
TORRES, 2008, p. 96). Compreender a colonialidade do ser implica em reconhecer a
experiência da colonização no tocante à perseguição das diferentes subjetividades.
Um diagnóstico crítico da topologia europeia do ser deve trazer nitidez ao que
permaneceu invisível até agora e desvendar como funcionam as categorias da condenação, por
exemplo, do negro, do judeu e/ou do muçulmano. Essa invisibilidade é fruto da terceira
dimensão da colonialidade, a colonialidade do saber (idem).
A colonialidade do saber atua como uma hierarquia epistêmica global e é traço de
extrema importância na construção do colonialismo global. Construída desde 1492 pelos
processos colonizadores, é fundamental porque determina quais conhecimentos são válidos e
quais não são, a partir de uma ‘geopolítica do conhecimento’71
, na qual se torna
imprescindível o “de que lugar” se está pensando, uma vez que é esta geopolítica que
condiciona as experiências que se viabilizam e as que se inviabilizam (GROSFOGUEL,
2012). A colonialidade do saber se relaciona diretamente a uma “geopolítica racista do
conhecimento” (MALDONADO-TORRES, 2008 p. 108) – racismo epistêmico/epistemicídio,
uma vez que legitima apenas as epistemologias eurocêntricas, que são, portanto, uma lógica
fundamental para a reprodução da colonialidade do saber. Importante ressaltar que
compreendemos Eurocentrismo como uma
uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa
Ocidental antes de meados do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são
sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes se tornou
mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa
burguesa. Sua constituição ocorreu associada à específica secularização burguesa do
pensamento europeu e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder
capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América.
Não se trata, em conseqüência, de uma categoria que implica toda a história
70 Conceito desenvolvido originalmente por Aníbal Quijano em 1989 (BALLESTRIN, 2013).
71 Conceito definido pelo filósofo latino-americano Enrique Dussel (1977).
93
cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras
palavras, não se refere a todos os modos de conhecer de todos os europeus e em
todas as épocas, mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento
que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as
demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na
Europa como no resto do mundo. [conforme original] (QUIJANO, (2005, p. 126)
Neste contexto, o eurocentrismo, como epistemologia dominante, reduziu a
diversidade cultural e impôs como verdadeira e válida apenas a perspectiva paradigmática que
vê a Europa como origem única dos significados (VIEIRA, 2012), eliminando da reflexão
científica, o contexto cultural e político da produção e reprodução do conhecimento sob a
égide de neutralidade e/ou rigor científico (SANTOS; MENESES, 2010). Assim sendo, o
sujeito que produz conhecimento está sempre encoberto para produzir a ideia de
universalidade e neutralidade pelo ocultamento do lugar de quem fala e sua localização
epistêmica nas estruturas de poder (FIGUEIREDO, 2017). Santiago Castro-Gomez (2003
apud FIGUEIREDO, 2017) chamou isto de epistemologia do “ponto zero”. “O “ponto zero” é
o ponto de vista que esconde e encobre seu próprio ponto de vista particular, isto é, a
construção de um ponto de vista que representa a si mesmo como não tendo nenhum ponto de
vista e, portanto, almeja ser neutro universal.” (idem, p. 94).
Esta estratégia epistêmica coloca a perspectiva particular do homem branco sem,
no entanto, evidenciar esta localização, recorrendo na crença de que este pensa fora de um
corpo, de um tempo e um espaço, sob um suposto universalismo que se ergue como a norma
universal de produção de conhecimentos e, portanto, é utilizada como referência para todas as
outras formas de produzir conhecimentos. Isto tem sido crucial para os desenhos
imperiais/globais ocidentais e para a hegemonia europeia/euro-norte-americana. De acordo
com Figueiredo (2017) é por meio deste encobrimento da localização particular do sujeito de
enunciação que se tornou possível a expansão e a dominação colonial europeia/euro-norte-
americana, e o poder das elites euro-latino-americanas que acabaram por construir uma
hierarquia do conhecimento superior versus conhecimento inferior e, portanto, de seres
superiores versus seres inferiores no mundo. Com isso, diz a autora, passamos “de povos sem
escrita no século XVI a povos sem história no século XVIII, a povos sem civilização no
século XIX, a povos sem desenvolvimento em meados do século XX e, agora, a povos sem
democracia no início do século XXI” (idem, p. 93).
De tal modo, os autoconsagrados ‘seres superiores’ buscam invisibilizar a
diversidade epistemológica existente. Carneiro (2005) explica que atualmente o epistemicídio
se manifesta no discurso que coloca em oposição o discurso militante do discurso acadêmico,
94
em que o pensamento do ativismo negro é tratado como fonte de saber, mas é desqualificado
como fonte de autoridade do saber e interlocução sobre o negro, enquanto é legitimado o
discurso do branco sobre o negro. Em outras palavras, “qualquer demanda de acadêmicos
negros que reivindique sua própria geopolítica e corpo-política do conhecimento é
imediatamente rechaçada pela grande maioria dos universitários brancos como uma
perspectiva particular e parcial” (FIGUEIREDO, GROSFOGUEL, 2007, p. 38).
A crítica a esta hierarquia epistêmica global fez emergir os estudos pós-coloniais
que buscam “o esforço de esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, uma
referência epistemológica crítica às concepções dominantes da modernidade” (COSTA, 2016
p. 117). Esta crítica é encontrada com muita nitidez na obra “Orientalismo72
”, do palestino
Edward Said73
, considerada como um dos textos fundadores dos estudos pós-coloniais.
Publicada em 1978, nela o autor denuncia a relação de poder e de dominação em variados
graus de uma complexa hegemonia do Ocidente sobre o Oriente. De acordo com Said (1990)
o orientalismo é o modo pelo qual a experiência ocidental europeia compreende o Oriente.
O Oriente não está apenas adjacente à Europa; é também onde estão localizadas as
maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte das suas civilizações e
línguas, seu concorrente cultural e uma das suas mais profundas e recorrentes
imagens do Outro (SAID, 1990, p. 13).
Esta obra traz em seu cerne a crítica à concepção dominante da modernidade. Ela
aponta como o “orientalismo” traz em si uma distinção binária entre Ocidente e Oriente, e a
ideia de superioridade da identidade europeia em comparação com os povos e culturas não-
europeus, ou seja, o orientalismo é um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter
autoridade sobre o Oriente. Said denuncia o imperialismo presente nas metanarrativas da
modernidade demonstrando como as teorias de renomados intelectuais como Ernest Renan,
Edward William Lane, Gustave Flaubert, Karl Marx, etc. estão permeadas de doutrinas de
superioridade europeia, vários tipos de racismo, visões dogmáticas do “oriental” como um
lugar que precisava de atenção, reconstrução e até mesmo da redenção ocidental.
Tomamos como ilustração Marx, para quem o Oriente, como material humano,
72 Do início do Século XIX até o final da Segunda Guerra, a França e a Inglaterra dominaram o Oriente e o
orientalismo; desde a Segunda Guerra os Estados Unidos têm dominado o Oriente, e o abordam do mesmo modo
que a França e a Inglaterra o fizeram outrora.
73 Said explica que a motivação para este trabalho deve-se à sua consciência de ser um “oriental” que cresceu em
duas colônias britânicas (Palestina e Egito) e depois nos Estados Unidos, no qual teve uma educação ocidental.
Assim, o estudo do orientalismo foi uma tentativa de inventariar em si o oriental, os traços dessa cultura cuja
dominação foi um fator tão poderoso na vida de todos os orientais.
95
era menos importante que como um elemento em um projeto redentor romântico, uma vez que
as suas concepções socioeconômicas teóricas são abafadas pela imagem de uma Inglaterra
regeneradora, ainda que a humanidade de Marx e a sua solidariedade pela miséria do povo
estejam envolvidas. Diz o autor:
Ora, por revoltante que deva ser para o sentimento humano
testemunhar essas miríades de organizações sociais patriarcais e inofensivas
desorganizadas e dissolvidas em suas unidades, atiradas em um mar de infortúnios, e
os seus membros individuais perdendo ao mesmo tempo a sua antiga forma de
civilização e os seus meios hereditários de subsistência, não devemos esquecer que
essas idílicas comunidades de aldeia, por inofensivas que possam parecer, sempre
foram a sólida fundação do despotismo oriental, que elas restringiam a mente
humana ao menor compasso possível, transformando-a no instrumento dócil da
superstição, escravizando-a sob as regras tradicionais, privando-a de toda grandeza e
energia histórica. [...]
A Inglaterra, é verdade, ao causar uma revolução social no Indostão,
foi movida apenas pelos interesses mais vis, e estúpida em sua maneira de pô-los em
prática. Mas essa não é a questão. A questão é: pode a humanidade cumprir o seu
destino sem uma revolução fundamental no estado social da Ásia? Se não, quaisquer
que tenham sido os crimes da Inglaterra, ela foi o instrumento inconsciente da
história ao dar origem àquela revolução.
Então, qualquer que seja a amargura que o espetáculo do desmoronamento de um
antigo mundo possa provocar em nossos sentimentos pessoais, temos o direito, no
tocante à história, de exclamar com Goethe: “Deveria essa tortura atormentar-nos
Posto que nos traz maior prazer?
Não foram, pelo governo de Timur,
As almas devoradas sem medida?” (MARX74
, 1973 apud SAID, 1990
pp.161-162)
Grosfoguel (2012) explica que essa visão se dá porque o marxismo eurocentrado
não escapa às dinâmicas coloniais e por isso a importância de reconhecermos que vivemos em
um mundo no qual as relações entre culturas se realizam verticalmente, isto é, entre
dominados e dominadores, entre colonizados e colonizadores. E, neste sentido, a obra de Said
lança luz ao projeto imperial europeu, seguido num segundo momento pelos Estados Unidos,
no qual a dominação dá-se também pelo silenciamento do outro, da cultura, das tradições, na
qual a colonização não apenas destrói pela violência física, mas também pela simbólica ao
colocar o outro como ponto para apregoar uma diferença que acaba por determinar as
desigualdades.
O triunfo desta corrente orientalista, diz Said, está no novo imperialismo dos
Estados Unidos, no qual o mundo árabe é hoje seu satélite intelectual, político e cultural, tanto
pelas universidades do mundo árabe que são geralmente administradas de acordo com o
74 MARX, K.. Surveys from exile. Londres: Pelicam Book, 1973
96
padrão herdado pela experiência colonial, como pela busca dos estudantes e professores
orientais em estudar com os orientalistas estadunidenses para mais tarde repetir os dogmas
orientalistas das suas experiências para as suas audiências locais. Este triunfo deve-se ainda
ao consumismo do Oriente, em que os árabes são “consumidores altamente diversificados de
uma vasta de gama de produtos americanos, materiais e ideológicos” [grifo nosso] (SAID,
1990, p. 329).
A abordagem pós-colonial traz em seu cerne a crítica a este processo de produção
do conhecimento científico que privilegia modelos e conteúdos eurocêntricos – e atualmente
também estadunidense – e, portanto, busca produzir uma outra lógica da relação colonial e
imperialista.
Stuart Hall, jamaicano que viveu e atuou no Reino Unido, amplia o debate sobre o
imperialismo europeu dentro de uma perspectiva pós-colonial. O autor examina a ideia de
“West/Rest” e busca mostrar a relação assimétrica entre o “Ocidente e o Resto”. Neste
cenário, o conceito de “Ocidente” acaba adquirindo um sentido polissêmico porque, além de
se relacionar a questões geográficas de localização, da forma como é tratado pela visão
eurocêntrica, torna-se um conceito histórico e não geográfico75
à medida que se emprega
“Ocidente” para designar um tipo de sociedade, um nível de desenvolvimento e assim por
diante. Este segundo significado se originou na Europa Ocidental, no entanto, o “Ocidente”
não se limita mais apenas à Europa, e nem toda a Europa se encaixa geográfica
ideologicamente no “Ocidente” (HALL, 1996).
Para o autor, “Ocidente” e “moderno” são categorias ideológicas que têm o
mesmo significado porque condensam uma série de características em uma mesma imagem:
urbano, desenvolvido, industrial... Assim como Said, Hall investiga obras de autores
fundadores das ciências humanas como Karl Marx e Max Weber e encontra traços de
pressupostos “orientalistas”, ou seja, ambos os modelos fornecem evidências de que o
discurso de “o Ocidente e o Resto” ainda opera em algumas categorias conceituais, como as
oposições extremas, simples e amplas, e os dualismo teóricos da sociologia moderna.
Desta forma, para Stuart Hall (200376
apud BERNARDINO-COSTA;
GROSFOGUEL, 2016) o pós-colonial é uma abordagem crítica que se propõe a superar a
75 “the West” is a historical, not a geographical, construct. (HALL, 1992, p. 186)
76 HALL, S.. Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite. In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e
mediações culturais, p. 101-131. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
97
crise de compreensão produzida pela incapacidade dessas antigas teorias e categorias de
explicar o mundo. Assim, o que difere o pós-colonialismo é a capacidade de fazer uma
releitura da colonização, bem como do tempo presente a partir de uma escrita descentrada das
grandes narrativas imperiais do passado.
Vieira (2012) dialoga com esta ideia e discute que a construção eurocêntrica
bifurcou o mundo em o “ocidente e o resto” e organizou a linguagem do dia-a-dia em
hierarquias binárias que implicitamente favoreceram a Europa: nossas nações, as tribos dele;
nossas religiões, as superstições deles; nossa cultura, o folclore deles; nossa arte, o artesanato
deles; nossa defesa, o terrorismo deles.
Os autores pós-coloniais buscam, portanto, mostrar que a polaridade West/Rest
arquitetada principalmente pelos processos de colonização, constrói uma relação assimétrica
irreversível entre o Ocidente e o Oriente, conferindo ao primeiro uma superioridade que não é
circunstancial, mas ontológica e total, imutável e essencializada. Esta identificação do viés
colonialista no processo de produção do conhecimento é o que melhor define o prefixo “pós”
do termo pós-colonial (COSTA, 2006).
Para Ballestrin (2013) do termo “pós-colonialismo” depreendem-se dois
entendimentos: i. tempo histórico posterior aos processos de descolonização; e, ii. um
conjunto de contribuições teóricas oriundas principalmente dos estudos literários e culturais.
Ainda de acordo com a autora (p. 91)
O argumento pós-colonial em toda sua amplitude história, temporal, geográfica e
disciplinar percebeu a diferença colonial e intercedeu pelo colonizado. Em essência,
foi e é um argumento comprometido com a superação das relações de colonização,
colonialismo e colonialidade.
Para a desconstrução da dicotomia “Ocidente/Oriente” ou “West/Rest”, os estudos
pós-coloniais buscam mostrar que estes termos correspondem a construções mentais sem
correspondência empírica, buscam ainda pela reinterpretação da história moderna a fim de
reinscrever o colonizado na modernidade, não como o outro, sinônimo de atraso, mas como
parte constitutiva essencial daquilo que foi construído discursivamente como moderno
(COSTA, 2006).
Para Santos (2004) o pós-colonialismo é um conjunto de correntes teóricas e
analíticas, com forte ligação com os estudos culturais, mas hoje presentes em todas as ciências
sociais que têm em comum o fato de darem preferência teórica e políticas às relações
desiguais entre o Norte e o Sul (geopolítica do conhecimento) na explicação e/ou
98
compreensão do mundo contemporâneo. Diferente de Hall, Santos divide a geopolítica do
conhecimento entre Norte e Sul e explica que as diferenças entre estes polos foram
construídas historicamente pelo colonialismo e o fim deste, enquanto relação política, não
acarretou no fim do colonialismo nas relações sociais, nas mentalidades e formas de
sociabilidades marcadas pelo autoritarismo e discriminação.
Entretanto, apesar da longa história colonial e as consequências que moldam as
sociedades na América Latina, a mesma não se figura no campo dos estudos pós-coloniais,
nem na referência de autores como Homi Bhabha, Edward Said e Gauatri Spivak, nomes
expressivos do campo acadêmico pós-colonial, nem com a participação de intelectuais latino-
americanos na construção do paradigma pós-colonial (BERNARDINO-COSTA;
GROSFOGUEL, 2016).
Além disso, Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) atentam que os estudos pós-
coloniais caracterizam o sistema-mundo moderno como um sistema de significações culturais
que se sobrepõe às relações econômico-políticas, no entanto, devemos entender que o
capitalismo não é apenas um sistema econômico, nem apenas um sistema cultural, mas uma
rede global de poder. Daí a necessidade de desenvolver uma nova linguagem que abarque os
complexos processos do sistema-mundo capitalista/patriarcal moderno/colonial sem depender
das ciências sociais do século XIX. Para os autores do pensamento decolonial era preciso
encontrar novos conceitos que dessem conta da complexidade das hierarquias de gênero, raça,
classe, sexualidade, conhecimento e espiritualidade dentro dos processos geopolíticos,
geoculturais e geoeconômicos do sistema-mundo.
Desse cenário emerge, no final do Século XX, a rede de pesquisadores da
decolonialidade que lançou outras bases e categorias interpretativas da realidade a partir das
experiências da América Latina. A articulação desta ideia, com o conceito de colonialidade,
foi formulada de maneira explícita por Immanuel Wallerstein (1992). Anibal Quijano, na
sequência, passou a nomear o conceito como colonialidade do poder (BERNARDINO-
COSTA; GROSFOGUEL, 2016). Contudo, Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016) explicam
que já era possível encontrar a ideia de “colonialidade” na tradição do pensamento negro em
autores e autoras como W. E. B. Du Bois, Oliver Cox, Frantz Fanon, Cedric Robinson, Aimé
Césaire, Eric William, Angela Davis, Zora Neale Huston, Bell Hooks etc..
Fanon, em sua obra “Os condenados da terra”, embora discuta o processo de
descolonização político jurídico, abarca a necessidade de descolonizar também as ideias e os
valores. O autor explica que
99
a violência com que se afirmou a supremacia dos valores brancos, a agressividade
que impregnou o confronto vitorioso desses valores com os modos de vida ou de
pensamento dos colonizados fazem com que, por uma justa reviravolta das coisas, o
colonizado ria com escárnio antes a evocação de tais valores. [...] No período de
descolonização a massa colonizada zomba desses mesmos valores, insulta-os,
vomita-os” (FANON, 1969, p. 32).
Para o autor (FANON, 1969), se a descolonização acontece sem ser abalada
suficientemente pelas lutas de libertação, mantendo os mesmos intelectuais ardilosos, as
normas de conduta e as formas de pensamento acumuladas na convivência com a burguesia
colonial continuarão intactas de forma que “meninos mimados ontem pelo colonialismo, hoje
pela autoridade nacional” (p. 36) erguem-se por meio dos roubos legais e, doutrinalmente,
proclamam a necessidade imperiosa de nacionalizar o roubo da nação.
Conceitualmente, a decolonialidade se diferencia e supera a descolonização
porque enquanto a última indica a superação do sistema colonial, a ideia de decolonialidade
procura transcender a colonialidade, a face da modernidade que opera, apesar do fim da
colonização, em um padrão de poder mundial que inclui a colonialidade do poder, do ser e do
saber (GALLAS, MACHADO, 2013).
Tendo em vista este cenário, o projeto decolonial reconhece a dominação colonial
nas margens externas aos impérios (nas Américas, no sudeste da Ásia, na África), e reconhece
também a dominação colonial dentro dos impérios, por exemplo, o negro e os latinos nos
Estados Unidos e os negros e indígenas no Brasil. Essa diferença colonial nas fronteiras
internas dos impérios foi conceituada por Pablo Conzales Casanova de “Colonialismo
Interno” em que, sobretudo, o eixo racial estabelece uma divisão de privilégios, de
experiências e de oportunidades diferentes entre negros, indígenas e brancos, tal como é
perceber nas relações raciais do Brasil.
A decolonialidade representa, portanto, um giro epistemológico a fim de construir
e reconstruir as particularidades perdidas pelo violento processo de colonização. Isto porque a
elaboração intelectual do processo de modernidade produziu uma perspectiva de
conhecimento e um modo de produzir conhecimento que demonstram o caráter do padrão
mundial de poder: colonial/moderno, capitalista e eurocentrado – colonialidade do saber
(QUIJANO, 2005).
Maldonado-Torres (2008) explica que os conceitos de colonialidade do poder, do
saber e do ser seguem o radicalismo de Fanon, no entanto, também podem vir a se tornar
problemáticos se não derem espaço à enunciação de cosmologias não-ocidentais e à expressão
100
de diferentes memórias culturais, políticas e sociais, ou seja, a crítica radical deve assumir
formas dialógicas e uma crítica das raízes que inibem o diálogo e a formulação de uma
geopolítica do conhecimento decolonial e não-racista. Mignolo (2007) vai além e explica que
a coexistência do conceito decolonial não deve ser tomado como uma deslegitimação das
ideias críticas europeias ou das ideias pós-coloniais, mas coloca que a opção decolonial é
epistêmica, ou seja, ela retira do centro hegemônico os fundamentos genuínos dos conceitos
ocidentais de acumulação do conhecimento.
Santos (2007) explica que a nossa compreensão de mundo é ainda hoje uma
compreensão ocidental do mundo e, portanto, precisamos de uma revolução epistemológica,
outros olhares, outros sentidos que nos permitam captar a diversidade a partir de uma
“sociologia das ausências”77
(p. 178), a partir do que o autor chama de “Epistemologias do
Sul” (p.176) porque o sul simboliza o sofrimento humano causado pelo capitalismo global.
E essa epistemologia do Sul tem que ser construída, porque não podemos confiar na
epistemologia do Norte. A epistemologia do Norte, que ainda hoje domina as nossas
universidades, que ainda hoje domina o nosso saber, é uma epistemologia que, de
algum modo, ainda está fechada dentro de si mesma. Nós não podemos esquecer que
as teorias, por exemplo, sociológicas e antropológicas, foram criadas em quatro ou
cinco países do Atlântico Norte no século 19 e a partir daí ousaram a se considerar
universais e são elas que ainda estudamos e repetimos, quando de fora delas ficou
toda a experiência do mundo, que ainda hoje é muito mais diversa e que, na altura,
não contava, porque esse outro mundo, essa outra grande diversidade da América
Latina, da África, da Ásia, na altura, eram colônias, estavam incluídas dentro desse
imaginário europeu e eurocêntrico como não significando uma alternativa viável,
uma diversidade credível, as vivências e as consciências dos países do Norte (idem,
p. 177).
É a partir deste cenário que acreditamos na necessidade de uma desobediência
epistêmica num processo de decolonização das estruturas de conhecimento da universidade
ocidental que principalmente reconheça o provincialismo e o racismo/sexismo epistêmico que
constituem a estrutura fundamental das universidades; rompa com o universalismo da
epistemologia ocidental; reconheça a diversidade epistêmica do cânone do pensamento,
criando o pluralismo de sentidos e conceitos, onde a conversação interepistêmica, entre
muitas tradições epistemológicas, produza novas redefinições para velhos conceitos e crie
novos conceitos plurais. Esses três pontos programáticos podem transformar as uni-versidades
ocidentais em pluri-versidades decoloniais (GROSFOGUEL, 2016).
Ao encontro do que nos convoca Fanon (1969)
77 “Sociologia das ausências” é a ideia de que muito daquilo que não existe é produzido ativamente como não
existente. De fato, existe, mas não se vê, é invisível, é desprezível, está marginalizado, suprimido, oprimido,
ocultado, impronunciável. Não tem sequer linguagem ou conceito para ser falado. (SANTOS, 2007, p. 178).
101
temos muito trabalho, não podemos divertir-nos com jogos da retaguarda. A Europa
fez o que tinha de fazer e, no fim de contas, fê-lo bem; vamos parar de acusa-la e
dizer-lhe com firmeza que não deve mais continuar a fazer tanto barulho. Não
precisamos temê-la mais; paremos, portanto, de invejá-la. [...] Há dois séculos uma
antiga colônia europeia resolveu alcançar a Europa. E tal foi o seu êxito que os
Estados Unidos da América se converteu num monstro em que as taras, as doenças e
a desumanidade da Europa atingiram dimensões espantosas. [...] se queremos que a
humanidade avance um futo, se queremos levar a humanidade a um nível diferente
daquele onde a Europa a expôs, então temos de inventar, temos de descobrir.
Pela Europa, por nós mesmos e pela humanidade, camaradas, temos de mudar de
procedimento, desenvolver um pensamento novo, tentar colocar de pé um homem
novo. (FANON, pp. 273-275).
102
3. Políticas Públicas de Ação Afirmativa (PAAs)
As políticas de ação afirmativa (PASs) são um conjunto de orientações e ações
destinadas a grupos minorizados que tenham sido historicamente discriminados seja pela
questão racial, de sexo/gênero e/ou origem social e que, assim sendo, estão sub-representados
em instituições e posições de maior prestígio e poder social. Desta forma, as PAAs visam em
caráter provisório, a criação de incentivos a estes grupos para que haja representatividade
numérica do conjunto de população em universidades, cargos públicos etc., por exemplo
(MOROSINI, 2006).
Universidades em diversos países têm implementado esse tipo de política, o que
contribui para aumentar a diversidade nos sistemas de educação superior, tanto na
composição dos alunos, professores e funcionários como, também na organização do
currículo, programas de estudos e de pesquisas (MOROSINI, 2006, p. 198)
Para Joaquim Barbosa Gomes, Ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal do
Brasil, as políticas de ação afirmativa são “voltadas a concretização do princípio
constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de
gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física” (GOMES, 2007, p. 47). Desta
forma, a igualdade não é um simples princípio jurídico a ser respeitado por todos, mas sim um
objeto constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade. As PAAs
Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por
entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações
flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fato, de fundo cultural,
estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente
impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o
engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, aptas a inculcar nos
atores sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do
pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano
(GOMES, 2007, p. 51).
Para Carmen Lúcia Antunes Rocha, atual presidenta do Supremo Tribunal Federal
e do Conselho Nacional de Justiça, a igualdade de fato, sem um traço de ingenuidade cômoda
ou de hipocrisia mal dissimulada, não pode ser alcançada de modo eficiente e democrático
apenas pela negação jurídica da desigualdade formal e pela proibição da manifestação do
preconceito. Ao encontro do que explica a teoria da colonialidade, ela coloca que “o mundo
ocidental continua sendo o espaço do homem médio branco” (ROCHA, 1996, p. 284) e,
portanto, a ação afirmativa é “a expressão democrática mais atualizada da igualdade jurídica
promovida na e pela sociedade” (p. 295). A ação afirmativa reconstrói o tecido social com
103
propostas novas à convivência política de fato democrática, nas quais se descobrem novos
caminhos para trazer a igualdade na verdade do direito, e não apenas na palavra da lei, o que o
racismo histórico desigualou.
Desta forma, os programas de ação afirmativa trazem em si a compreensão de que
a igualdade completa não é possível apenas com a aplicação das mesmas regras de direito a
todas e todos. A igualdade de fato precisa se materializar por meio de medidas específicas que
considerem as situações particulares das pessoas pertencentes a grupos minorizados
(SILVÉRIO, 2007). Em outras palavras, a igualdade material tem que ser acompanhada da
igualdade real nas condições concretas de existência.
Rocha coloca ainda que um país que se quer republicano e democrático não pode
aceitar que a cidadania esteja restrita a apenas uma elite em função de preconceitos que
subsistem sob o silêncio branco com o negro, da palavra gentil com as mulheres, da esmola
para os pobres, da frase lida para os analfabetos. Para ela (ROCHA, 1996, p. 295):
não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da
Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que não lhe rebuscasse a
alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história
feita pelas mãos calejadas dos discriminados.
Na ordem das políticas públicas, as ações afirmativas são uma forma de
discriminação positiva a partir da decisão do Estado em oferecer tratamento especial a
determinado grupo em razão da sua marginalização, de modo a lhe permitir o direito
fundamental da igualdade, tendo em vista as condições desiguais de competição (VOLPE,
SILVA, 2016).
Para Oliven (2007) a ação afirmativa é um conjunto de políticas para proteger
minorias e grupos que tenham sido discriminadas no passado e/ou no presente, visando assim,
remover barreiras formais e informais que impedem ou dificultam o acesso desses grupos ao
mercado de trabalho, universidades e posições de liderança. Silvério (2007) complementa
explicando que as políticas de ação afirmativa são, antes de tudo, políticas sociais
compensatórias, ou seja, são intervenções do Estado por uma demanda da sociedade civil que
garantem o cumprimento de direitos sociais que não são integralmente cumpridos pela
sociedade. Estas políticas abrangem programas sociais que buscam corrigir problemas
gerados pela ausência ou ineficiência de políticas preventivas de exclusão e devem ter uma
duração definida, deixando de existir quando os mecanismos de exclusão social que lhe deram
origem forem eliminados. Silvério (2007, p. 21-22) coloca ainda que:
As políticas de ação afirmativa apresentam-se como importante mecanismo social
104
com características ético-pedagógicas para os diferentes grupos vivenciarem o
respeito às diversidades, sejam elas raciais, étnicas, culturais, de classe, de gênero ou
de orientação sexual. Essa percepção do direito à diferença leva em conta que a
realidade das políticas denominadas universalistas – ou, no caso das políticas raciais,
cegas em relação à cor – não atendem às especificidades dos grupos ou indivíduos
vulneráveis, permitindo a perpetuação da desigualdade de direitos e de
oportunidades. Disso emerge a idéia de adoção de políticas compensatórias focais
(ou particularistas) que, atendendo ao direito à diferença, percebem os grupos ou
indivíduos como sujeitos concretos, historicamente situados, que possuem cor, etnia,
deficiências, transtornos emocionais, orientação sexual, origem e religiões diversas.
É a superação da idéia filosófica moderna, que encarava o ser humano como uma
unidade homogênea, pela idéia pós-moderna dos seres humanos que possuem as
especificidades relatadas.
Em resumo, de acordo com Jaccoud e Beghin, (2002), a defesa das políticas de
ação afirmativa parte do reconhecimento da urgência em não mais postergar o enfrentamento
da exclusão social de caráter racial que existe no Brasil.
A partir do exposto, entendemos que as políticas de ação afirmativa são
construções decoloniais à medida que trazem à tona pessoas, conhecimentos, culturas e
histórias silenciadas pela colonização e que a colonialidade busca manter no mesmo lugar de
exclusão social, política e econômica. Wedderburn (2007) explica que as políticas públicas de
ação afirmativa foram implantadas em vários países do chamado “Terceiro Mundo” – exceto
nos da América Latina – a fim de resolver os graves problemas decorrentes da marginalização
seletiva do segmento marginalizado herdado do passado colonial. De acordo com o autor, elas
se integraram à consciência mundial a partir das lutas pela descolonização após a Segunda
Guerra Mundial quando países africanos e asiáticos se defrontaram com o urgente problema
de substituir em tempo relativamente curto os europeus que, sob o regime colonial,
monopolizaram todos os postos de comando da sociedade, inclusive da rede de ensino. As
ações afirmativas estavam voltadas, portanto, para a formação de quadros autóctones. Desta
forma, as PPAAs dialogam perfeitamente com a perspectiva de uma Educação Decolonial,
uma vez que reconhece e busca trazer à tona e colocar em diálogo crítico as diferenças que o
projeto expansionista europeu buscou eliminar a partir da homogeneização do mundo.
A primeira implementação formal de uma política de ação afirmativa no formato
de cotas foi registrada em 1902 em Kollapur, estado da Índia Central, que reservou 50% das
vagas em cargos de administração pública para as “classes atrasadas” ou desfavorecidas
(PAZICH, 2015). Assim, o conceito de ação afirmativa originou-se na Índia
(WEDDERBURN, 2007). Em 1921 e 1936 os estados indianos de Madras (atual Chennai) e
Travencore, respectivamente, implementaram cotas na administração pública para os não
105
Brâmanes, os Mulçumanos e alguns grupos cristãos (KRISHNAKUMAR, 200478
; LASKAR,
201079
apud PAZICH, 2015).
No campo educacional, há registros da existência de sistema de cotas na Índia
logo após a sua independência, em 1947, quando por meio da primeira emenda constitucional,
em 1951, uma cláusula permitiu a reserva de vagas na proporção de 15% na Educação para os
integrantes da casta dos Dalits, conhecidos como “intocáveis” (MUNANGA, 2007; SILVA,
2010; PAZICH, 2015). Munanga (2007) conta que apesar dos conflitos e tensões provocados
pela política de cotas no país, os partidos políticos dirigentes da Índia continuam a apoiá-la.
Os protagonistas emblemáticos do primeiro conflito histórico em torno das ações
afirmativas foram Mahatma Mohandas Ghandi (1869-1948), promotor da luta
antibritânica, pela independência – e pertencente à “casta superior” brahmin –, e o
pensador e militante nacionalista dravídio, B. R. Ambedkar, dirigente dos dalits e
adivasis, e verdadeiro genitor histórico do conceito e prática das ações afirmativas
(MOWLI, 199080
apud WEDRERBRUN, 2007, P. 309).
Na Índia, o drama dos shudras, dalits, adivasis e das “tribos estigmatizadas”, em
que as pessoas são consideradas praticamente como sub-humanas, também tem sua essência
na opressão racial. Isto porque o termo “casta” se traduz literalmente por “cor de pele” e,
portanto, estamos de frente a um sistema de opressão que é sócio-racial-religioso de natureza
pimentocrática, “protegido por um vasto arcabouço teórico-religioso e sócio-racial, articulado
a partir da religião hinduísta” (WEDDERBURN, 2007, p. 309).
Apesar do pioneirismo indiano, a expressão “ação afirmativa” foi utilizada pela
primeira vez numa ordem executiva federal dos EUA, em 1965 (ROCHA, 1996), o primeiro
país do “Primeiro Mundo” a incorporar, à sua legislação e prática social, mecanismos
surgidos do contexto de descolonização do mundo afro-asiático (WEDDERBURN, 2007). A
adoção de tais medidas deve-se à luta pelos direitos civis, desencadeada a partir dos anos 50
pela comunidade afro-estadunidense. Importante destacar que:
A luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis teve como pano de fundo a
Guerra Fria entre os dois blocos ideológicos mundiais – a União Soviética e os
Estados Unidos – e revelou ao mundo as terríveis desigualdades e o racismo que
corroíam a democracia. Essa complexa interação, entre o contexto internacional e a
luta orgânica desencadeada pelos afro-norte-americanos, fez com que o Estado se
mostrasse menos omisso em relação à mais flagrante das contradições que afligiam e
fragilizavam o sistema democrático estadunidense – a questão racial
(WEDDERBRUN, 20070, p. 312).
78 KRISHNAKUMAR, R. A history of reservation. In: Frontline, v. 21, n. 17, 14 Aug. 2004.
79 LASKAR, M. H. Rethinking Reservation in Higher Education in India. In: ILI Law Review, v. 1, n. 1, p. 25,
2010 80
MOWLI, V. C.; B. R. Ambedkar – Man and His Vision. New Delhi: Sterling Publishers Pvt. Ltd., 1990.
106
Assim, a ação afirmativa neste país surgiu, em 1965 quando as empresas
empreiteiras contratadas pelas entidades públicas foram obrigadas aumentar a contratação dos
grupos minorizados, por meio de percentuais reservados de oportunidades de empregos, de
cargos, de espaço sociais, políticos e econômicos em entidades públicas e privadas (ROCHA,
1996). No Ensino Superior, a Universidade de Califórnia (UC) foi a pioneira na adoção de
ação afirmativa quando em 1960, diante do crescimento de candidatos e demanda por vogas, a
Universidade decidiu que deveria selecionar seus novos estudantes dentre os que estivessem
entre os 12,5% melhores de sua classe no ensino médio e a adoção de um teste nacional
padronizado, o Scholastic Assesment Test (SAT). Como contrapeso ao aumento da
importância dos testes foram criados também programas de ação afirmativa para garantir uma
igualdade nas oportunidades de acesso à Universidade (MOEHLECKE, 2004).
In 1964, at the peak of the civil rights movement, Berkeley instituted its Education
Opportunity Program to bring in more students from disadvantaged minority
groups. Under the master plan, the university could select up to two percent of its
incoming freshman from the pool of applicants who did not meet its eligibility
requirements. Though this loophole was probably added to the plan to allow the
schools to stay athletically competitive, Berkeley partially used it to admit low-
income and minority students that otherwise wouldn't have been accepted81
(FRONTLINE, 2014).
A partir dos anos 70 outras universidades estadunidenses passaram a adotar
políticas de ação afirmativa com o objetivo de atingir entre seus alunos e professores uma
distribuição racial, étnica e sexual condizente com os percentuais existentes na sociedade
estadunidense como um todo e um “dos caminhos para se atingir esses percentuais de maneira
rápida foi o estabelecimento de cotas mínimas para negros, hispânicos, orientais e outras
minorias” (BRANDÃO, 2005, p. 53).
A utilização do critério “raça” para admissão de novos estudantes levantou um
intenso debate principalmente após o que ficou conhecido como “Caso Blake” de 1978, em
que Allan Blacke abriu um processo contra a Universidade de Califórnia, alegando que a
faculdade de medicina o discriminou por ser branco ao adotar o sistemas de admissão
distintos para brancos e negros e, desta forma, negou-lhe admissão, aceitando estudantes
81 Em 1964, no auge do movimento dos direitos civis, a Universidade da Califórnia em Berkeley instituiu o
Programa Oportunidade Educacional para trazer mais estudantes de grupos minoritários desfavorecidos. Sob o
plano diretor, a universidade poderia selecionar até 2% dos seus ingressantes do conjunto de candidatos que não
cumpriram seus requisitos de elegibilidade tradicionais. Embora esta lacuna provavelmente tenha sido incluída
ao plano para permitir que as escolas ficassem atleticamente competitivas, Berkeley, em parte, usou para admitir
estudantes de baixa renda e de minorias que de outra forma não teriam sido aceitos (livre tradução).
107
negros com notas inferiores às suas (MOEHLECKE, 2004). A Suprema Corte dos EUA
julgou o caso e por cinco votos a quatro, proibiu a adoção de cotas rígidas para minorias na
admissão de estudantes nas universidades, mas considerou legítima a utilização da raça como
critério na seleção de alunos desde que combinado com outros (BRANDÃO, 2005;
MOEHLECKE, 2004).
Justifica-se que a raça poderia ser utilizada como critério de ingresso desde que isso
ocorresse para reparar uma situação de desvantagem que atingisse determinado
grupo em conseqüência da discriminação racial passada e presente. Ou, ainda, que a
raça seria um meio de garantir a diversidade no interior das instituições de ensino
superior, já que a convivência entre diferentes grupos étnicos enriqueceria essa
experiência e seria parte dos objetivos da educação (MOEHLECKE, 2004).
A partir de então, universidades públicas e privadas têm se baseado em outros
meios para promover a integração, mas esses meios foram novamente limitados pela Suprema
Corte em 2003. “As decisões decretaram que as universidades não podem utilizar um sistema
mecanicista de pontos, que incluem a raça, ao decidir as admissões, mas podem, de maneira
informal, levar em conta a raça, sem dar a esse fator um peso específico e constante”
(D’ÁVILLA; LESSER, 2008, p. 131).
Apesar desta decisão, de acordo com Munanga (2003) a maioria das universidades
públicas americanas, até mesmo as mais conceituadas como Princeton, Harvard e Stanford,
continua com programas de ações afirmativas em termos de meta, sem recorrer
necessariamente às cotas ou estatísticas definidas. Isto porque nos Estados Unido as
universidades priorizam, além da diversidade étnica, a diversidade cultural entre os estudantes
que contribui para elevar o nível educacional de todos. Em três décadas de política de ação
afirmativa, incluindo as cotas, o número de negros com formação universitária e em escolas
profissionais estadunidenses aumentou de 5,4% em 1960 para 15,5% em 1995 (BRANDÃO,
2005).
Isto num cenário em que a presença da população negra é significativamente
menor que no Brasil, atingindo no ano de 2010 pouco mais de 17% do total de estadunidenses
(UNITED STATES, 2013), grande parte dela concentrada em centros empobrecidos das
grandes metrópoles (OLIVEN, 2007). No Brasil o censo demográfico de 2010 mostrou que a
porcentagem de negros (soma de pardos e pretos, segundo classificação do IBGE) é de 50,7%
(PORTAL BRASIL, 2012) e, tendo em vista que em 1999 apenas 2% dos jovens negros de 18
a 25 anos ingressaram no Ensino Superior, o movimento negro constatou que as políticas
públicas de educação de caráter universal, ao serem implementadas, não atendiam a grande
108
parcela do povo negro e, portanto, as cotas emergem nas discussões como uma possibilidade
para mudar este cenário (GOMES, 2004).
Na América Latina as primeiras políticas de ação afirmativa foram as cotas
baseadas nas questões de gênero. A Argentina foi o primeiro país a adotar uma cota mínima
obrigatória de 30% para as candidaturas femininas em todos os partidos políticos pela Lei de
Cupos em 1991. Leis semelhantes foram seguidamente adotadas também o Paraguai, Peru,
República Dominicana, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Panamá, Venezuela, México e
Costa Rica, em porcentagens que variam de 20 a 40% de cotas para mulheres que permitiram
uma redução na assimetria de gênero na América Latina (WEDDERBURN, 2007).
Há ainda experiências de políticas de ação afirmativa em vários países da Europa
Ocidental, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Cuba, Afeganistão, Índia, Irã,
Paquistão, Turquia, etc. O público alvo destas políticas varia de acordo com as situações
existentes podendo abranger: minorias étnico-raciais, mulheres, grupos religiosos, pessoas
com deficiência etc.. As principais áreas contempladas para políticas de ação afirmativa são o
mercado de trabalho, o sistema educacional (principalmente o Ensino superior) e a
representação política (MOEHLECK, 2002; WEDDERBURN, 2007).
Como se vê, a definição de ação afirmativa é bastante ampla e engloba uma
variedade de desenhos e parâmetros que dependem dos contextos institucionais e culturais
(FERES JÚNIOR; CAMPOS, 2007). Assim, as experiências de políticas de ação afirmativa
feitas por diversos países servem de inspiração para o Brasil, respeitando as peculiaridades
culturais e históricas do racismo à moda nacional (MUNANGA, 2003).
3.1. As Políticas Públicas de Ação Afirmativa no Brasil
Tendo em vista os objetivos do trabalho, não esgotaremos a temática “Ações
Afirmativas” em seus diversos desdobramentos de objetivos, metodologias e público-alvo,
focaremos, portanto, a partir deste ponto, nas ações afirmativas brasileiras que têm como
critério a “raça/cor” no âmbito do campo da Educação.
Entretanto, faz-se imprescindível ressaltar que a adoção de medidas de políticas
de ação afirmativa não faz parte de um movimento de natural de reconhecimento por parte da
sociedade brasileira em reparar os danos causados por mais de 300 anos de escravidão,
109
contudo, é resultado da luta dos Movimentos Negros que têm uma história de resistência e
contestação desde o período colonial escravista.
Enquanto no período escravista muitos negros e negras resistiam ao sistema na
forma de revoltas, fugas e até suicídio para se livrar da dominação colonial, organizando-se
em quilombos que formavam sociedade que rompiam com a colonização, possuindo
estruturas decoloniais ainda durante o processo de colonização do Brasil; após a libertação
seguiram organizando-se em movimentos políticos e culturais em busca de reparação e justiça
social pelos danos causados pelos quase 400 anos de escravidão que criaram e seguiram,
mesmo após a abolição, alimentando a profunda desigualdade racial entre negros e brancos
nas esferas educacional, cultural, política e econômica na sociedade brasileira.
No período republicano (proclamado um ano após a abolição da escravatura, em
1889) foram criados dezenas de grupos organizados em grêmios, clubes ou associações que,
inicialmente, tinham cunho assistencialista, recreativo e/ou cultural. A agremiação negra mais
antiga de São Paulo foi o Clube 28 de setembro, constituído em 1897, enquanto que as
maiores foram o Grupo Dramático e Recreativo Kosmos e o Centro Cívico Palmares fundadas
em 1908 e 1926, respectivamente, conforme explica Domingues (2007). Destacamos ainda as
“associações formadas estritamente por mulheres negras, como a Sociedade Brinco das
Princesas (1925), em São Paulo e a Sociedade de Socorro Mútuos Princesa do Sul (1908), em
Pelotas” (DOMINGUES, 2007, p. 104).
A imprensa negra – jornais publicados por negros – também teve um papel
importante porque dava visibilidade às diversas mazelas que afetavam a população negra no
âmbito do trabalho, habitação, educação e saúde, além de fazerem a denúncia do regime de
segregação racial que incidia em diversas cidades brasileiras, impedindo que a população
negra frequentasse determinados hotéis, clubes, cinemas, teatros, restaurantes,
estabelecimentos comercias e religiosos, além de algumas escolas, ruas e praças públicas
(DOMINGUES, 2007).
Um marco importante para a mobilização política dos negros em São Paulo foi o
Centro Cívico Palmares, criado em 1926 e que, de acordo com Andrews (1998, p. 22782
apud
PEREIRA, 2012) foi assim chamado em homenagem ao quilombo de Palmares do século
XVII e
originalmente destinava-se a proporcionar uma biblioteca cooperativa para a
comunidade negra. A organização logo progrediu e passou a patrocinar encontros e
82 ANDREWS, George R. Negros e brancos em São Paulo. Bauru: EDUSC, 1998.
110
conferências sobre questões de interesse público, e em 1928 lançou uma campanha
para derrubar um decreto que proibia aos negros ingressar na milícia do Estado, a
Guarda Civil. O centro foi bem sucedido ao requerer do governador Júlio Prestes
que suspendesse o decreto, e depois o convenceu a derrubar uma proibição similar
que impedia as crianças negras de participar de uma competição patrocinada pelo
Serviço Sanitário de São Paulo para encontrar o bebê mais “robusto” e
eugenicamente desejável do Estado.
Em 1931 é fundada a Frente Negra Brasileira (FNB) em São Paulo, considerada a
sucessora do Centro Cívico de Palmares e a mais importante do país na primeira metade do
século XX. A Frente, que possuía grupos homônimos em diversos estados brasileiros e tinha
caráter recreativo e beneficente, destacou-se pela realização das primeiras reivindicações
políticas mais deliberadas, tornando-se um partido político em 1936. (DOMINGUES, 2007;
GOMES, 2011). Além disso, a entidade mantinha ainda escola, grupo musical e teatral, time
de futebol, departamento jurídico, além de oferecer serviço médico e odontológico, cursos de
formação política, de artes e ofícios, assim como publicar um jornal, o A Voz da Raça
(DOMINGUES, 2007). A participação das mulheres também é destaque na organização, de
acordo com um dos seus líderes, Francisco Lucrécio as mulheres “eram mais assíduas na luta
em favor do negro, de forma que na Frente a maior parte era mulher. Era um contingente
muito grande, eram elas que faziam todo o movimento, que ajudavam...” (BARBOSA, 2007,
pp. 37-38)
Com a ditadura do “Estado Novo” de Getúlio Vargas, em 1937, todos os partidos
políticos foram extintos e, consequentemente, também a FNB. Na segunda fase do
movimento negro organizado durante a República surgiu em 1943 a União dos Homens de
Cor (UHC), fundada por João Cabral Alves, em Porto Alegre. A UHC atuava principalmente
na promoção de debates na imprensa local, publicação de jornais próprios, serviços de
assistência jurídica e médica, aulas de alfabetização, ações de voluntariado e participação em
campanhas eleitorais (DOMINGUES, 2007).
Em 1944 surgiu o Teatro Experimental do Negro, ou TEN, no Rio de Janeiro
que, liderado por Abdias do Nascimento, defendia os direitos civis dos negros na qualidade de
direitos humanos e propugnava a criação de uma legislação antidiscriminatória para o país
(DOMINGUES, 2007). De acordo com Abdias do Nascimento (2004, p. 210) O TEN
se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-
africana, degradados e negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos
da colônia, portava a bagagem mental de sua formação metropolitana européia,
imbuída de conceitos pseudo-científicos sofre a inferioridade da raça negra.
Propunha-se o TEM a trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através
da educação, da cultura e da arte. [Grafia de acordo com o original]
111
O Teatro Experimental do Negro disponibilizou curso de alfabetização aos seus
primeiros participantes e também um curso de iniciação à cultura geral, lecionado por
Aguinaldo Camargo, enquanto que as primeiras noções de teatro e interpretação ficaram a
cargo de Abadias do Nascimento (NASCIMENTO, 2004). Em 8 de maio de 1945 o TEN
apresentou seu espetáculo fundador no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, concedido ao
grupo por apenas uma noite, e por intervenção direta do presidente Getúlio Vargas. A
apresentação de “O imperador Jones” que causou alvoroço no meio cultural principalmente
pelo grande sucesso de Aguinaldo de Oliveira Camargo no papel do negro Jones e abriu
passagem à criação de peças dramáticas brasileiras para o artista negro.
Mais uma vez, uma ditadura amorna as atividades do movimento negro, dessa vez
a ditadura militar instaurada em 1964. No final dos anos 70 começa a reorganização política
da luta antirracista e em 1978 é fundado o Movimento Negro Unificado (MNU), inspirado na
luta a favor dos direitos civis dos negros estadunidenses, projetados em lideranças como
Martin Luther King, Malcolm X e as Panteras Negras, assumiu um discurso radicalizado
contra a discriminação racial (DOMINGUES, 2007). No Programa de Ação de 1982 o MNU,
dentre outras reivindicações, passou a intervir no terreno educacional. De acordo com Gomes
(2011, p. 137)
Os estudos de Pinto (1994), Gomes (1999; 2008; 2010), Gonçalves e Gonçalves e
Silva (2000), Silvério (2002), Passos (2004) revelam que o movimento negro, no
Brasil, conquanto sujeito político, tem sido o principal responsável pelo
reconhecimento do direito à educação para a população negra, pelos
questionamentos ao currículo escolar no que se refere ao material didático que
apresenta imagens estereotipadas sobre o negro, pela inclusão da temática racial na
formação de professores(as), pela atual inclusão da história da África e da cultura
afro-brasileira nos currículos escolares e pelas políticas de ação afirmativa nas suas
mais diferentes modalidades
Abdias do Nascimento, no papel de deputado federal (PDT/RJ), apresentou o
primeiro Projeto de Lei (PL) sobre políticas públicas de igualdade racial no Brasil (MÜLLER,
COELHO, 2013). Abdias apresentou, em 1983, o Projeto de Lei Nº 1332/83 que dispunha
sobre ações compensatórias visando à implementação do princípio da isonomia social do
negro. O PL propunha, dentre outros pontos, que fosse assegurada a isonomia concedida a
todos os brasileiros, também aos brasileiros negros, nos setores de oportunidades de trabalho,
remuneração, educação e tratamento policial, entre outros; que nos órgãos de administração
pública e também no setor privado (empresas, firmas, estabelecimentos de comércio,
indústria, serviços, mercado financeiro e setor agropecuário) se garantisse a participação de
112
pelos menos 20% de homens negros e 20% de mulheres negras em todos os escalões de
trabalho e de direção, particularmente aquelas funções que exigem melhor qualificação e que
são melhor remuneradas, sendo obrigados a comprovar anualmente o cumprimento da medida
(BRASIL, 1983).
No campo educacional, o PL propunha bolsas de estudo para estudantes negros;
reserva, no Instituto Rio Branco, nos cursos das três armas (Marinha, Exército e Aeronáutica)
de 20% das vagas para candidatos negros e 20% para candidatas negras (BRASIL, 1983).
Para o currículo, o PL propunha no Artigo 8º que:
O Ministério da Educação e Cultura, bem como as Secretariais Estaduais e
Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das entidades negras e
com intelectuais negros comprovadamente engajados no estudo da matéria,
estudarão e implementarão modificações nos currículos escolares e acadêmicos,
em todos os níveis (primário, secundário, superior e de pós-graduação), no sentido
de:
I – Incorporar aos conteúdos dos cursos de História Brasileira o ensino das
contribuições positivas dos africanos e seus descendentes à civilização brasileira,
suas resistências contra a escravidão, sua organização e ação (a nível, social,
econômica e política) através dos quilombos, sua luta contra o racismo no período
pós-abolição;
II – Incorporar aos conteúdos dos cursos sobre História Geral o ensino das
contribuições positivas das civilizações africanas, particularmente seus avanços
tecnológicos e culturais antes da invasão européia do continente africano;
III – Incorporar ao conteúdo dos cursos optativos de estudos religiosos o ensino dos
conceitos espirituais, filosóficos e epistemológicos das religiões de origem africana
(candomblé, umbanda, macumba, xangô, tambor de minas, batuque, etc.);
IV – Eliminar de todos os currículos referências ao africano como “um povo apto
para a escravidão”, “submisso” e outras qualificações pejorativas;
V – Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escolares que apresentem o negro de
forma preconceituosa ou estereotipada;
VI – Incorporar ao material de ensino primário e secundário a apresentação gráfica
da família negra de maneira que a criança negra venha a se ver, a si mesma e à sua
família, retratadas de maneira igualmente positiva àquela em que vê retratada a
criança branca/
VII – Agregar ao ensino das línguas estrangeiras européias, em todos os níveis em
que estas são ensinadas, o ensino de línguas africanas (yoruba ou kiswaihili) em
regime opcional;
VIII – Incentivar e apoiar a criação de Departamentos, Centros ou Institutos de
Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro-Brasileiros, como parte integral e normal
da estrutura universitária, particularmente nas universidades federais e estaduais
(BRASIL, 1983, p.65). [grafias como no original]
O PL propunha ainda cursos obrigatórios de orientação antirracista para as
polícias civis e militares; obrigação do IBGE de incluir em todas as pesquisas o quesito
cor/raça ou etnia; e, por fim, determina no Art. 13 que a “expressão ‘negro’ compreende todos
aqueles classificados como ‘pretos’ e ‘pardos’ segundo os critérios utilizados pelo IBGE no
PNAD de 1976 (BRASIL, 1983, p. 65)
Vê-se, portanto, que já em 1983 havia a disputa por um projeto de sociedade que
113
reconhecesse a dívida com o povo negro e que a saldasse por “uma ação compensatória da
sociedade e do Estado, destinada a indenizar, embora tardiamente, o trabalho não remunerado
do negro escravizado e o trabalho sub-remunerado do negro supostamente libertado a 13 de
maio de 1988 (BRASIL, 1988, p. 65). No entanto, o projeto, apesar de ter votos favoráveis
nas três comissões83
: de Constituição e Justiça; de Trabalho e Legislação social; de Finanças,
não foi aprovado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados que determinou o
arquivamento do PL.
Outro Projeto que merece destaque no âmbito das PAAs é o PL nº 4.339/93
apresentado pela deputada Benedita da Silva do Partido dos Trabalhadores do Rio de Janeiro,
à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias no dia 16 de dezembro de
1993. É o primeiro projeto que previa a adoção de cotas de 10% (dez por cento) das vagas das
instituições de ensino superior públicas e particulares, federal, estadual e municipal, para
estudantes negros e indígenas. A deputada justifica a adoção da reserva de vagas tendo em
vista que:
A composição étnica da população brasileira acusa que 44% (quarenta e quatro por
cento) do nosso povo é afro-brasileiro, isto é, descendentes de raça negra (pretos e
pardos, conforme a denominação do IBGE). Independente desta estatística, setores
etno-raciais permanecem marginalizados. As razões históricas, sociais, econômicas e
culturais desta desproporção e exclusão são conhecidas. A garantia de uma cota
mínima de 10% (dez por cento) em instituições de ensino superior não resolve o
problema estrutural, mas cria um precedente para minimizar esta injustiça e atenuar
a exclusão que desfaz, na prática, todas as garantias constitucionais de igual acesso
ao ensino, conforme determina o art. 206 (BRASIL, 1993).
Da mesma maneira que o PL 1332/83, o Projeto de Lei da deputada Benedita da
Silva não foi aprovado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, tendo o mesmo destino
do seu precursor: o arquivamento. Atentamos para o fato de estas leis, de alguma forma,
serem precursoras das Leis 10.639/03 – institui obrigatoriedade do ensino de história e cultura
africana e afro-brasileira, 11.645/08 – inclui a questão indígena à obrigatoriedade do ensino
de história e cultura afro-brasileira, e 12.711/12 – conhecida como Lei de Cotas, promulgadas
com um atraso de pelo menos vinte anos.
Santos (2014) aponta os diversos Projetos de Lei com propostas de políticas de
ação afirmativa em prol da população negra apresentados a partir dos anos 90 e que acabaram
83 As comissões possuem o chamado poder de apreciação conclusiva e são grupos formados por membros de
cada Casa Legislativa (Câmara e Senado que analisam técnica e legalmente os projetos de lei apresentados para
saber se eles têm as condições necessárias para se tornar uma lei.
114
arquivados. Em 1990, José Luiz de Sá do PL/RJ apresentou o Projeto de Lei 493284 o qual
versava sobre a participação do negro em espetáculos cênicos obrigando a participação de
artistas negros, na proporção mínima de 30% em espetáculos cênicos, compreendendo teatro,
circo, televisão, exibições de canto e música instrumental com ingresso pago. Em 1993, o
PL85 que propunha a participação de 45% de atores/atrizes e modelos negros/as em filmes e
peças publicitárias encomendadas por órgãos do governo Federal. No âmbito do mercado de
trabalho, Abdias do Nascimento apresenta a primeira proposta86
em 1997 e demanda que 40%
das vagas dos órgãos da administração direta e indireta, empresas públicas e as sociedades de
economia mista sejam destinadas à população negra (20% para homens negros e 20% para
mulheres negras). Na política, a proposta de reserva de vagas surge pelo então deputado Paulo
Paim (PT/RS) no ano 2000 e prevê “que cada partido ou coligação deveria reservar o mínimo
de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, e os mesmos percentuais
deveriam ser reservados para afrodescendentes87
.
Todos esses projetos buscavam de alguma forma o rompimento da política de
branqueamento e da eugenia silenciosa, mas nefasta, ainda vigente no século XX, construída
sob a égide do eurocentrismo imposto pela colonização. No entanto, todos foram solapados
sob a prerrogativa da democracia (racial!?) de uma Câmara e Senado com maioria de homens
brancos bem nascidos. É esta a colonialidade que denunciamos. Ela se manifesta no racismo
que exclui a possibilidade de ascensão social e silencia possibilidades de uma verdadeira
democracia racial.
Prova disso, é que as cotas em ensino técnico e superior não eram tema inédito no
Brasil. As primeiras cotas deste tipo datam do ano de 1968, período em que o Brasil vivia sob
o regime militar e que, por força da Lei nº 5.465, de 3 de julho do citado ano, o então
presidente Arthur da Costa e Silva sancionou que:
Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura
84 Projeto de Lei 4932/1990 de autoria de Jose Luiz de Sá (PL/RJ) “Disciplina a participação do negro em
espetáculos cênicos”. Situação: arquivado 85
Projeto de Lei 3809/1993 de autoria de Cyro Garcia (PT/RJ) – “Dispõe sobre a participação de artistas e
modelos da raça negra nos filmes e peças publicitárias encomendadas e/ou realizadas pelo Governo Federal”.
Situação: arquivado 86
Projeto de Lei do Senado nº 75, de 1997 de autoria do senador Abdias Nascimento – arquivada ao final da
legislatura – “Dispõe sobre medidas de ação compensatória para a implementação do princípio da isonomia
social do negro”. “ 87
Projeto de Lei 3435/2000 – de autoria de Paulo Paim (PT/RS) “Altera a redação do § 3º do art. 10 da Lei nº
9.504, de 30 de setembro de 1997, para instituir cotas para candidaturas de afrodescendentes”. Situação:
apensada ao PL 3198/2000 – Institui o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou
discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor, e dá outras providências).
115
e Veterinária, mantidos pela União, reservarão, anualmente, de preferência, de
50% (cinqüenta por cento) de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos
dêstes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e
30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos dêstes, proprietários ou não de terras,
que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio
(BRASIL, 1968). [grifo nosso].
A Lei durou dezessete anos e não se encontra na história uma oposição que se
aproxime à que sofre a atual Lei de Cotas (12.711/12). A Lei 5.465/68 foi revogada quando o
Brasil retomava a democracia, pelo então presidente José Sarney que sancionou a Lei nº 7.423
em 17 de dezembro de 1985 acabando, portanto, com as cotas para agricultores ou filhos
destes.
Uma elucidação que consideramos importante fazer é que políticas de ação
afirmativa e cotas não são termos sinônimos. As políticas de ação afirmativa referem-se a um
conjunto mais amplo de ações do que a reserva de vagas para grupos minorizados (MÜLLER,
COELHO, 2013). Santos (2014) chama ainda atenção para a diferença entre políticas de ação
afirmativa e políticas de promoção de igualdade racial pois, ainda que haja relação entre as
mesmas, elas não são sinônimas uma vez que nem toda política de ação afirmativa é uma
política de promoção de igualdade racial.
As pesquisadoras Jaccoud e Beghin (2002) classificam as políticas para a
promoção de igualdade racial em três tipos: ação afirmativa; políticas repressivas e ações
valorizativas. “As políticas repressivas visam combater o ato discriminatório – a
discriminação direta – usando a legislação criminal existente.” (p.55), enquanto isso as ações
afirmativas procuram combater a discriminação indireta, ou seja, a discriminação presente em
atos velados que provoca a exclusão de caráter racial, assim, as ações afirmativas visam
combater o resultado da discriminação.
As ações valorizativas são aquelas que têm como objetivo combater os
estereótipos negativos historicamente construídos e consolidados no e pelo racismo, ou seja,
elas buscam reconhecer e valorizar a pluralidade étnica, reconhecendo a importância do papel
do povo negro e indígena na construção nacional. Assim, “as políticas e ações valorizativas
possuem caráter permanente e não focalizado
Entretanto, para este trabalho, assumimos que o termo “política pública de ação
afirmativa” (PPAA) se refere a toda ação direcionada ao enfrentamento das desigualdades
sociais, não apenas as de caráter racial, causadas por ações discriminatórias direcionadas a
grupos específicos como: pessoas negras; indígenas; mulheres; homossexuais, transexuais;
116
seguidores de determinadas religiões etc., ao encontro do que pressupõe autores como: Rocha
(1996); Moehleck (2002); Morosini (2006); Wedderburn (2007); Silvério (2007); Gomes
(2007). Desta forma, entendemos que as PPAAs podem ser classificadas como valorativas,
repressivas ou de inclusão, como é o caso das políticas de cotas, por exemplo.
Compreendemos ainda que as políticas de inclusão são também políticas de reparação, uma
vez que abrem um espaço negado pelo racismo estrutural presente na sociedade.
A seguir apresentamos um quadro com as principais políticas de ação afirmativa
implementadas no Brasil a partir do período de redemocratização da sociedade brasileira,
classificando-as de acordo com o seu tipo: valorativo, repressivo ou de inclusão.
Quadro 1 – Políticas Públicas de Ação Afirmativa brasileiras
AN
O
AÇÃO AFIRMATIVA OBJETIVO TIPO
19
88
Art. 37º, § VIII da Constituição da República
Federativa do Brasil, de 5 de outubro 1988
Reservar percentual dos cargos e
empregos públicos para pessoas
com deficiência.
Inclusão
19
90
Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 –
Art. 5º, §2º Às pessoas portadoras de
deficiência é assegurado o direito de se
inscrever em concurso público para
provimento de cargo cujas atribuições sejam
compatíveis com a deficiência de que são
portadoras; para tais pessoas serão
reservadas até 20% das vagas oferecidas no
concurso.
Garantir o ingresso de pessoas com
deficiência física ou intelectual no
serviço público civil da União.
Inclusão
19
91
Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991 – Art.
93 A empresa com 100 (cem) ou mais
empregados está obrigada a preencher de 2%
(dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos
seus cargos com beneficiários reabilitados ou
pessoas portadoras de deficiência, habilitadas
Garantir o ingresso de pessoas com
deficiência física ou intelectual no
mercado de trabalho privado.
Inclusão
19
93
Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Art.
24, inciso XX - na contratação de associação
de portadores de deficiência física, sem fins
lucrativos e de comprovada idoneidade, por
órgãos ou entidades da Administração
Pública, para a prestação de serviços ou
fornecimento de mão-de-obra, desde que o
preço contratado seja compatível com o
praticado no mercado
Garantir a contratação de
Associações filantrópicas de
pessoas com necessidades especiais
Inclusão
19
95
Lei nº 9.029, de 13 de abril de 1995 – Proíbe
a exigência de atestado de gravidez e
esterilização, e outras práticas
discriminatórias, para efeitos admissionais
ou de permanência da relação jurídica de
trabalho, e dá outras providências.
Proíbe práticas discriminatórias,
para efeitos admissionais ou de
permanência da relação jurídica,
por motivo de sexo, origem, raça,
cor, estado civil, situação familiar
ou idade, e dá outras providências
Repressiva
19
95
Lei nº 9.100, de 29 de setembro de 1995 –
“Lei de cotas” – estabeleceu, no parágrafo
terceiro do artigo 11, cota mínima de 20%
das vagas de cada partido ou coligação para a
candidatura de mulheres, foi alterada da pela
Lei 9.504 de 1997 que, no Art. 10 aumentou
a reserva para 30%
Garantir a representatividade
feminina no cenário político.
Art.10, § 3o Cada partido ou
coligação preencherá o mínimo de
30% e o máximo de 70% para
candidaturas de cada sexo.
(Redação dada pela Lei nº 12.034,
de 2009)
Inclusão
19
96 Lei nº 9.315, de 20 de novembro de 1996 –
Inscreve o nome de Zumbi dos Palmares no
Livro dos Heróis da Pátria
Garante a representatividade do
povo negro, na figura de Zumbi. Valorativa
117
19
97
Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997 – Define
os crimes de tortura e dá outras providências
Caracteriza crime de tortura
qualquer constrangimento que
cause sofrimento físico/mental,
dentre outras coisas, em razão de
discriminação racial.
Repressiva
20
00
Lei nº 3.524, de 28 de dezembro de 2000 –
Dispõe sobre os critérios de seleção e
admissão de estudantes da rede pública
estadual de Ensino em Universidades
Públicas do Rio de Janeiro.
Estabelece no Art. 2º a reserva de
50% das vagas para estudantes que
cursaram integralmente os Ensinos
fundamental e médio em
instituições da rede pública dos
Municípios e/ou do Estado (RJ).
Inclusão
20
01
Lei nº 3708, de 09 de novembro de 2001 –
Institui cota de até 40% para as populações
preta e parda no acesso à Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e à Universidade
Estadual do Norte Fluminense
Garantir o acesso da população
negra nas universidades estaduais
do Rio de Janeiro
Inclusão
20
02
Decreto nº 4.228, de 13 de maio de 2002 –
Institui, no âmbito da Administração Pública
Federal, o Programa Nacional de Ações
Afirmativas e dá outras providências.
Incentivar a inclusão de mulheres,
negros e pessoas com deficiências
como critério de pontuação em
licitações que beneficiem
fornecedores que comprovem
desenvolver políticas compatíveis
com o programa
Inclusão
20
02 Lei n° 10.558, de 13 de novembro de 2002 –
Cria o Programa Diversidade na
Universidade e dá outras providências
Implementar e avaliar estratégias
para a promoção do acesso ao
ensino superior de pessoas
pertencentes a grupos minorizados,
especialmente afrodescendentes e
indígenas brasileiros.
Inclusão
20
03
Lei nº 10.678, de 23 de maio de 2003 - Cria
a Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial, da
Presidência da República (SEPPIR), e dá
outras providências.
Tem como objetivo principal a
formulação, coordenação e
articulação de políticas e diretrizes
para a promoção da igualdade
racial.
Inclusão
20
03
Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 –
Altera a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) e torna
obrigatório o Ensino de história e cultura
africana e afro brasileira na educação básica
Ambas as Leis (10.639/03 e
11.645/08) têm como objetivo
corrigir injustiças, eliminar
discriminações e promover a inclusão
social e a cidadania para todos no
sistema educacional brasileiro a
partir de uma visão positiva acerca da
história e cultura das pessoas negras
e de indígenas mostrando a
importância destes povos e culturas
na formação do Brasil.
Valorativa
20
08 Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008 –
Altera novamente a LDB e torna obrigatório
o Ensino de história e cultura afro brasileira e
indígena nos currículos da educação básica
Valorativa
20
10
Lei nº 12.288 de 20 de julho de 2010 –
Institui o Estatuto da Igualdade Racial
Objetiva garantir à população negra
a efetivação da igualdade de
oportunidades, a defesa dos direitos
étnicos individuais, coletivos e
difusos, e o combate à
discriminação e às demais formas
de intolerância étnica
Inclusão e
valorativa
20
12
Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012 –
“Lei de Cotas” - reserva de 50% das vagas
por curso e turno nas universidades e
institutos federais de educação, ciência e
tecnologia a estudantes oriundos
integralmente do Ensino Médio público e,
dentre estes para pretos, pardos e indígenas
Garantir o acesso de estudantes de
escolas públicas, negros e
indígenas no Ensino público
(federal) brasileiro.
Inclusão
20
14 Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014 –
Reserva de 20% das vagas oferecidas em
concursos públicos para pessoas negras
Garantir o ingresso e, portanto, a
representatividade de pessoas
negras nos serviços públicos.
Inclusão
118
20
16
Portaria Normativa n 13, de 11 de maio de
2016 – dispõe que as Instituições Federais
de Ensino Superior, no âmbito de sua
autonomia e observados os princípios de
mérito, terão o prazo de noventa dias para
apresentar propostas sobre inclusão de
negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas
com deficiência em seus programas de pós-
graduação (Mestrado, Mestrado Profissional
e Doutorado), como Políticas de Ações
Afirmativas
Ampliar, para a pós-graduação a
garantia de representatividade de
pessoas negras, indígenas e com
deficiência.
Inclusão
Elaboração própria
Fontes: http://www4.planalto.gov.br/; IPEA, Políticas sociais: acompanhamento e análise. v. 7, Ago. 2003.
Como se viu, as políticas públicas de ação afirmativas brasileiras, apesar de
tardias quando comparadas com as temporalidades do cenário internacional, têm diferentes
objetivos, público alvo e metodologias, entretanto, o tema ficou amplamente conhecido e
ganhou notoriedade na sociedade, principalmente por meio da grande mídia, pela adoção das
cotas, especialmente as voltadas à questão étnico-racial. Tendo em vista que o Brasil se
desenvolveu sob a égide da ideologia da democracia racial que ampara a negação do racismo,
é de se compreender que cause controvérsia a ideia de política de reparação histórica às
pessoas negras uma vez que, nesta perspectiva (de democracia racial e negação do racismo),
de quem sempre esteve na Casa Grande e nunca sentiu o açoite no pelourinho, que nos dias
atuais se manifesta na violência policial e na crença de que todos os brasileiros são iguais, a
ideia da meritocracia acaba por ocupar um lugar central.
A visão colonial e racista do Brasil faz com que apenas a partir de 1996 as PPAAs
começassem, ainda que timidamente, a atender de forma mais específica as particularidades
da população negra. Resultado da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela
Cidadania e a Vida, ocorrida em novembro de 1995, em comemoração ao tricentenário da
morte de Zumbi. O evento contou com a participação de diversas organizações do movimento
negro brasileiro e também de várias organizações da esquerda que, pela primeira vez,
somaram-se à luta antirracista. Nesta mobilização foi entregue ao então presidente da
República, Fernando Henrique Cardoso, o Programa de Superação do Racismo e da
Desigualdade Racial, exigindo uma posição do governo brasileiro diante das situações de
racismo (GOMES, 2011).
Dentro deste cenário, Fernando Henrique Cardoso (FHC) acabou por reconhecer
pública e claramente em 1995 a existência de racismo na sociedade brasileira, ato que foi
importante para fazer avançar políticas de ação afirmativa para o povo negro. Isto porque o
peso político e a importância simbólica do reconhecimento do racismo, feito por um
presidente da República, evidenciaram que a questão não poderia mais ser ignorada. FHC
também ratificou a importância da criação de políticas para a eliminação das desigualdades
ligadas à “raça” durante o Seminário Internacional Multiculturalismo e racismo: o papel da
119
ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos, organizado pelo Ministério da
Justiça em 1996 (BERNARDINO, 2002; SANTOS, 2007; PAULA, 2010).
Além disso, o então presidente FHC, por meio do Decreto nº 1904 de 13 de maio
de 1996, instituiu o I Programa Nacional de Direitos Humanos que previa o desenvolvimento,
a médio prazo, de ações afirmativas para o acesso da população negra aos cursos
profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta; e o estímulo para que os
livros didáticos enfatizassem a História e as Lutas do povo negro na construção do Brasil, a
fim de eliminar estereótipos e discriminações (BRASIL, 1996b),
Um ano após a Marcha Zumbi dos Palmares, Fernando Henrique Cardoso
sancionou a Lei 9.315/96 que “inscreve o nome de Zumbi dos Palmares no ‘Livro dos Heróis
da Pátria’”.
Apesar disso, a emergência de ações afirmativas governamentais para a população
negra no Brasil se deu notadamente no período “pós-Durban” (VOLPE, SILVA, 2016). A
Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância foi
realizada em setembro de 2001 em Durban, na África do Sul e constituiu um marco para a
luta antirracista no Brasil.
Diferente do que se observou nos Estados Unidos em que as ONGs, a imprensa e
até mesmo as universidades quase não deram atenção à Conferência, no Brasil os preparativos
foram intensos, envolvendo o Governo e a Sociedade civil (ALVES, 2002). O então
presidente FCH, por meio do Decreto de 8 de setembro de 2000, criou um Comitê Nacional
para a Preparação da Participação Brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Entre outras atribuições, o comitê
deveria promover, em cooperação com a sociedade civil, seminários e outras atividades de
aprofundamento e divulgação dos temas de discussão e objetivos da Conferência Mundial.
Além de Pré-Conferências que constituíram a base temática para a Conferência Nacional
contra o Racismo e a Intolerância realizada em julho de 2001, na Universidade Estadual do
Rio de Janeiro da qual se retirou o “Plano Nacional de Combate ao Racismo e Intolerância –
Carta do Rio” (SANTOS, 2007). As Pesquisadoras Jaccoud e Beghin (2002, p. 22) destacam
que
ao longo de todo o processo preparatório da Conferência de Durban, a participação
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), particularmente no que diz
respeito à produção de diagnósticos inéditos sobre a magnitude das desigualdades
raciais no Brasil: o governo reconhece, a partir de números oficiais, as imensas
distâncias que existem entre negros e brancos.
120
A “Conferência de Durban”, como ficou conhecida, abordou temas como o tráfico
transatlântico de escravo, o antissemitismo, a islamofobia, a discriminação contra ciganos e de
gênero, a segregação de castas, a marginalização dos povos indígenas, a discriminação de
migrantes etc., trazidos pelas mãos de descendentes de pessoas escravizadas, israelenses,
muçulmanos, ciganos, mulheres, dalits etc.. Ela constituiu um marco para as organizações e
movimentos negros no Brasil, uma vez que um de seus principais objetivos foi o de fornecer
um conjunto de elementos normativos em torno do emprego de instrumentos mais eficazes no
combate às manifestações de racismo e à discriminação racial contemporânea (THOMAZ,
NASCIMENTO, 2003).
Após a Conferência foi criado, por meio de decreto88
o Conselho Nacional de
Combate à Discriminação (CNCD), no âmbito da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos
do Ministério da Justiça. O CNCD89
foi instituído com o objetivo de atuar na proposição e
acompanhamento de políticas públicas envolvidas na defesa dos direitos sociais e individuais
de vítimas de discriminação racial ou outra forma de intolerância.
A primeira ação, resultado da discussão iniciada no período pré-Durban, foi a
criação do Programa de Ação Afirmativa pelo então Ministro do Desenvolvimento Agrário
(MDA), Raul Belen Jungmann Pinto, que determinou a adoção de medidas compensatórias,
especiais e temporárias, que acelerassem o processo de construção da igualdade racial no
campo, de acordo com o Artigo 1º da Portaria nº 202, de 4 de setembro de 2001. A Portaria
previa a adoção de política progressiva de cotas para assegurar o acesso de servidores e
servidoras negros e negras em no mínimo 30% (trinta por cento) nos cargos de direção no
MDA/INCRA. O impacto da Conferência nesta determinação está relatado na Portaria:
O MINISTRO DE ESTADO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, no uso da
competência que lhe confere o art. 87, parágrafo único, incisos I e II, da
Constituição Federal, Considerando que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial e contra a Mulher, a Convenção Internacional sobre a
Repressão e Castigo de Crime de Apartheid, III Conferência Mundial das Nações
88 Decreto presidencial nº 3.952/01 que trata da competência, da composição e do funcionamento do Conselho
Nacional de Combate à Discriminação
89 Com as políticas voltadas para a promoção da igualdade racial e para a população indígena sendo executadas
por outros órgãos, em dezembro de 2010 o Governo Federal institui nova competência e estrutura
ao CNCD/LGBT, por meio do Decreto nº 7388, de 9 de dezembro de 2010. Para atender uma demanda histórica
do movimento LGBT brasileiro e com a finalidade de potencializar as políticas públicas para a
população LGBT, o agora CNCD/LGBT passa a ter como finalidade formular e propor diretrizes de ação
governamental, em âmbito nacional, voltadas para o combate à discriminação e para a promoção e defesa dos
direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (BRASIL, MINISTÉRIO DOS DIREITOS
HUMANOS. Participação social. Conselho Nacional de Combate à discriminação de LGBT (CNCD/LGBT).
Brasília, s/d.
121
Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata, ora em curso na África do Sul, reafirmam o direito
inalienável de toda as pessoas viverem em uma sociedade livre de racismo,
xenofobia e de toda forma de intolerância e discriminação (BRASIL, 2001) [grifo
nosso]
Apesar desses primeiros esforços para a inclusão da população negra, de fato, na
sociedade brasileira, no governo Fernando Henrique Cardoso a estratégia discursiva e a
política se pautaram na promoção do reconhecimento sem investimentos no aspecto
redistributivo, embora a desigualdade racial fosse a principal justificativa para as políticas de
valorização da população negra (LIMA, 2010, p. 81). De tal modo, as PPAAs que dialogam
mais diretamente com as pautas do movimento negro começam a se consolidar no Governo
Lula a partir de 2003. A primeira Lei sancionada pelo então presidente, foi a Lei 10.639/03
que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira na Educação
Básica. Outra ação marcante na luta contra o racismo e a desigualdade racial foi a criação da
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) da Presidência da
República, em 21 de março de 200390
.
A constitucionalidade do princípio de cotas, instituídas pela Lei nº 12.711/12, é
outro marco de vitória dos anos de luta do movimento negro. Importante ressaltar que quando
da aprovação da Lei, muitas universidades já possuíam por iniciativa própria ou do Estado em
que se localizavam uma política de cotas. Doze anos antes da Lei de Cotas, o Estado do Rio
de Janeiro instituiu a reserva de 50% das vagas das universidades estaduais para estudantes de
escola pública, e no ano seguinte, em 2001, institui cota de até 40% para negros e negras,
sendo assim o primeiro estado a instituir a política de cotas. Depois do Rio de Janeiro, a
Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) instituíram um
sistema de cotas, tipo de política de ação afirmativa de inclusão que veremos com mais
detalhes na sessão a seguir.
3.1.1. O debate sobre as “cotas” – a Lei 12.711/12
Antes de apresentar o histórico e a discussão acerca das políticas públicas de ação
90 Criada pela Medida Provisória n° 111, de 21 de março de 2003, convertida na Lei nº 10.678. Foi vinculada ao
Ministério da Justiça no Governo de Michel Temer pela Medida Provisória nº 726 de maio de 2016. Em
fevereiro de 2017, a Medida Provisória incluiu a SEPPIR à estrutura do Ministério dos Direitos Humanos
122
afirmativa na forma de cotas para negros(as) e indígenas nas instituições de ensino superior,
faz-se importante retomar o que já fora apresentado na introdução: o ensino superior brasileiro
foi criado para atender aos interesses da elite do país e até o final do Século XX se
configurava como privilégio de uma minoria que representava pouco mais de 20% da
população de 18 a 24 anos, sendo ainda mais excludente para a população negra, uma vez
que, destes, apenas 4% eram negros. Ou seja, uma universidade inclusiva e diversa nunca
esteve no projeto político brasileiro que mantém um paradigma positivista de ciência que
deslegitima qualquer conhecimento que não se respalde em valores eurocêntricos.
Dito isso, torna-se menos surpreendente as reações contrárias à política de cotas
para as universidades brasileiras, conquistada através da luta dos movimentos negros que
reivindicaram e reivindicam políticas públicas que corrijam as diferenças socioeconômicas e
culturais causadas pelo legado da escravidão e pela ideologia da democracia racial.
Prova disso é que a Lei das cotas aprovada em 2012 é resultado de um longo
processo de debates e disputa pela inclusão da questão étnico-racial na reserva de vagas para o
ensino superior.
O projeto de lei que deu origem à Lei 12.711/12 data de 1999. Foi o PL nº73/1999
de autoria da Deputada Nice Lobão (PFL/MA) que dispunha sobre a reserva de 50% das
vagas nas universidades públicas, a serem preenchidas mediante seleção de alunos nos cursos
de ensino médio, tendo corno base o Coeficiente de Rendimento (CR), obtido através da
média aritmética das notas obtidas no período, considerando-se o currículo comum a ser
estabelecido pelo Ministério da Educação e do Desporto, ou seja, tratava-se de um novo
mecanismo de seleção de estudantes para ingresso no ensino superior, alternativo ao
vestibular, que previa a inclusão de estudantes das escolas públicas, mas ainda sem recorte
étnico-racial. O quadro a seguir apresenta os PLs que foram sendo apensados até chegar a
sanção da Lei 12.711/12
Quadro 2 – Projetos de Lei que resultaram na Lei 12.711/12
DATA APENSADO AUTOR(A) EMENTA
24/02/1999 PL 73/1999 Deputada Nice
Lobão (PFL/MA)
Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e
estaduais e dá outras providências. Reserva
cinquenta por cento das vagas para serem
preenchidas mediante seleção de alunos nos cursos
de ensino médio - cota universitária.
23/09/1999 PL 1.447/1999 Deputado Celso
Giglio (PTB/SP)
Dá nova redação ao art. 53 da Lei nº 9.394, de 24 de
dezembro de 1996, estabelecendo reserva de 40%
das vagas nas faculdades públicas, para alunos
oriundos de cursos médios, ministrados por escolas
123
públicas.
14/02/2000 PL 2.069/1999
Dep. Raimundo
Gomes de Matos
(PSDB/CE)
Dispõe sobre reserva de 50% das vagas nas
instituições de ensino superior públicas para alunos
que tenham cursado integralmente, os níveis
fundamental e médio em escolas públicas.
16/05/2000 PL 1643/1999 Senador Antero
Paes de Barro
(PSDB/MT)
Estabelece reserva de 50 % das vagas nas
universidades públicas para alunos que tenham
cursado integralmente, os níveis fundamental e
médio em escolas públicas. 13/12/2000 PL 1643/1999*
236/06/2004 PL 3.627/04
Poder executivo
(Ministro da
Educação Tarso
Genro)
Institui Sistema Especial de Reserva de Vagas para
estudantes egressos de escolas públicas, em especial
negros e indígenas, nas instituições públicas
federais de educação superior e dá outras
providências.
06/06/2005 PL 615/2003 Murilo Zauith
(PFL/MS)
Dispõe sobre a obrigatoriedade de vagas para
indígenas que forem classificados em processo
seletivo, independentemente de sua classificação,
sem prejuízo das vagas abertas para os demais
alunos.
11/08/2005 PL 1.313/03 Deputado Rodolfo
Pereira (PDT/RR)
Institui o Sistema de cota para a população
indígena nas Instituições de Ensino Superior.
28/05/2007
PL 373/03 Deputado Lincoln
Portela (PL/MG)
Institui cotas para idosos nas instituições públicas de
educação superior.
PL 2.923/04 Deputado Lincoln
Portela (PL/MG)
Dispõe sobre a dispensa de vestibular nas
universidades públicas federais para maiores de
sessenta anos de idade.
23/08/2007 PL 1.736/07
Deputado
Neucimar Fraga
(PR/ES)
Dispõe sobre reserva de vagas em instituições
públicas federais de ensino nas condições que
especifica (50% para estudantes que tenham cursado
integralmente o ensino público e destas vagas, a
proporção de autodeclarados negros e indígenas
de acordo com a população na Unidade da
Federação onde estiver localizada a instituição,
segundo o IBGE).
30/08/2007 PL 14/07
Deputado José
Aristodemo Pinotti
(DEM/SP)
Garante, no mínimo, 20% (vinte por cento) das
vagas nas universidades públicas aos alunos que
tenham cursado todo ensino médio em
estabelecimento público de ensino, modificando o
inciso IV do art. 53 da Lei nº 9.394/96.
04/09/2008 PL 3.913/08 Senador Ideli
Salvatti (PT/SC)
Institui o sistema de reserva de vagas para
estudantes egressos de escolas públicas nas
instituições federais de educação superior,
profissional e tecnológica.
29/08/2012 Lei 12.711/12
Fonte: câmara.gov.br
Elaboração própria
* A repetição de apensamentos deve-se à discussão nas diferentes Comissões onde os PLs são desapensados e
apensados novamente em novas discussões
Como foi possível visualizar no quadro, apenas em 2004 é incluída a questão
étnico-racial no debate sobre cotas. O PL 3.627/04 foi o primeiro a trazer o debate sobre a
124
necessidade de inclusão de pessoas negras e indígenas. O projeto previa a reserva de 50% das
vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas e,
destas, a proporção de autodeclarados negros e indígenas na população da Unidade da
Federação onde estivesse situada a instituição, segundo o último censo do IBGE.
Dos doze projetos apresentados antes da Lei 12.71/12, apenas dois incluíam a
questão étnico-racial na política de inclusão ao ensino superior e dois traziam apenas a
questão indígena para o foco do debate. Desta forma, foram 13 anos de disputas entre diversas
propostas até chegar à Lei 12.711, sancionada em 29 de agosto de 201291
, pela então
presidenta Dilma Rousseff. De acordo com a Lei:
Art. 1o As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da
Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de
graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas
para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50%
(cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias
com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per
capita.
Art. 2o (VETADO).
Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art.
1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos
e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção
ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos,
indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde
está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística - IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016)
A Lei 12.711/12 ficou conhecida popularmente como a Lei de Cotas e acalorou o
debate nacional sobre as relações étnico-raciais, acabando por explicitar o racismo na
perversidade de quem utiliza-se da ideologia da democracia racial para reclamar uma
igualdade falsa que mantém o status quo no qual a população negra se mantém em
desvantagem em todas as esferas da sociedade.
Importante destacar que antes da Lei, 40 das 58 universidades federais já
realizavam alguma modalidade de ação afirmativa, entretanto, ao homogeneizar os
procedimentos e estabelecer a obrigatoriedade da reserva de vagas, a Lei passa a assegurar
uma maior efetividade da ação afirmativa (FERES JÚNIOR et. Al, 2013). Além disso, 27
91 A lei foi regulamentada pela Portaria Normativa nº 18 do MEC, de 11 de outubro de 2012, e o Decreto nº
7.824, da mesma data.
125
universidades estaduais já possuíam algum tipo de ação afirmativa antes da Lei (que abarca
apenas as instituições federais), conforme se pode observar no gráfico a seguir:
Gráfico 2 - Universidades com Ação Afirmativa de inclusão antes da Lei 12.711/12
Conforme foi possível observar, diversas universidades públicas, federais e
estaduais já praticavam algum tipo de ação afirmativa de inclusão antes da Lei normatizar a
política para as instituições federais.
A nível estadual, conforme apresentado no capítulo anterior, o Estado do Rio de
Janeiro foi o pioneiro na discussão de cotas. A Lei Estadual nº 3.527/00 estabeleceu a reserva
de 50% das vagas para estudantes que cursaram integralmente os Ensinos fundamental e
médio em instituições da rede pública dos Municípios e/ou do Estado (RJ) nas duas
universidades estaduais – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade
Estadual do Norte Fluminense (UENF). A partir de 2001, a Lei Estadual n. 3708/01
estabeleceu cota de até 40% para a população negra no preenchimento das vagas relativas aos
cursos de graduação destas Universidades (RIO DE JANEIRO, 2000; 2001). Nos anos
seguintes, o Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul
estabeleceram Leis Estaduais para políticas de ação afirmativa.
A UnB, no entanto, foi a primeira universidade pública federal a adotar 20% de
cotas para a população negra e indígena, iniciando a inclusão no segundo semestre de 2004.
De acordo com Filice e Santos (2010) a UnB descarta, desta forma, a indiferença e o
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
2 2 2 1
7
1
4
1 3
4
1
0 1
3
6
4
5
12
7
2
IES Estadual IES Federal
126
desconhecimento do mundo acadêmico com a relação à exclusão racial, rompe com a
homogeneidade racial no corpo discente e abre novos saberes originários de outras realidades
vividas.
O quadro a seguir apresenta as universidades públicas – estaduais e federais – que
estabeleceram algum tipo de política de ação afirmativa antes de se tornar Lei em âmbito
federal.
Quadro 1 - Adoção de Política de Ação Afirmativa nas IES brasileiras – 2000 a 2014
AN
O
IES PAA Beneficiários %
reserva
Meio de
adoção
20
00
Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy
Ribeiro - UENF
Cota
Escola pública, negros,
indígenas, pessoas com
deficiência, outros
45,5% Lei Estadual
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro - UERJ Cota
Escola pública, negros,
indígenas, pessoas com
deficiência, outros
45,0% Lei Estadual
20
01
Universidade Estadual do
Paraná - UNESPAR
Acréscimo
de Vaga Indígenas Lei Estadual
Universidade Estadual do
Norte do Paraná -
UNESPAR
Acréscimo
de Vaga Indígenas Lei Estadual
20
02
Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte -
UERN
Cota Escola pública e pessoas com
deficiência 56,8% Lei Estadual
Universidade Estadual do
Rio Grande do Sul -
UERGS
Cota
Escola pública, negros,
indígenas e pessoas com
deficiência
60,3% Lei Estadual
20
03 Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul -
UEMS
Cota Negros e indígenas 30,1% Lei Estadual
20
04
Universidade de Brasília -
UnB
Cota e
acréscimo
de vaga
Negros e indígenas 20,0%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade do Estado do
Amazonas (UEA)
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola pública, indígenas e
residentes do Estado 75,0% Lei Estadual
20
04
Universidade do Estado de
Mato Grosso Unemat
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola pública, negros e
indígenas 60,5%
Resolução
Conselho
Universitário
Universidade (Estadual) de
Pernambuco Cota Escola Pública 20,0%
Resolução do
Conselho
Universitário
Universidade Estadual de
Alagoas - UNEAL Cota Escola Pública 49,9% Lei Estadual
Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia -
UFRB
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola Pública, Baixa renda,
negros, indígenas,
quilombolas e pessoas com
51,4%
Resolução do
Conselho
Universitário e
127
deficiência Lei Federal
Universidade Estadual de
Montes Claros - Unimontes Cota
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e pessoas
com deficiência
45,0% Lei Estadual
Universidade do Estado de
Minas Gerais - UEMG Cota
Escola pública, negros,
indígenas e pessoas com
deficiência
49,9% Lei Estadual
Universidade Estadual de
Campinas - Unicamp Bônus
Escola Pública, negros e
indígenas
Resolução do
Conselho
Universitário
Universidade Federal do
Tocantins - UFT Cota
Indígenas (1ª a adotar cotas p
indígenas) 5,0%
Resolução do
Conselho de
Ensino,
Pesquisa e
Extensão, Lei
Federal
20
05
Universidade Federal da
Bahia Cota
Escola pública, negros e
indígenas 45,0%
CONSEPE N°
3A/2004
Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira - UNILAB
Cota e
bônus
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,4% Lei Federal
Universidade Federal do
Rio Grande do Norte -
UFRN
Cota e
bônus
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e residentes
do interior
50,1%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal do
Pará - UFPA
Cota,
Bônus e
acréscimo
de vaga
Escola Pública, Baixa renda,
negros, indígenas,
quilombolas e pessoas com
deficiência
54,6%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
Juiz de Fora - UFJF Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,6%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
São Paulo - Unifesp Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,2%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Estadual de
Londrina
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola pública e negros 40,1%
Resolução do
Conselho
Universitário
20
06
Universidade Federal do
Maranhão - UFMA Cota
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e pessoas
com deficiência
59,1%
Resolução
Conselho
Universitário
Universidade de São Paulo -
USP
Cota e
bônus
Escola Pública, negros e
indígenas 10,5%
Resolução do
Conselho
Universitário
20
06
Universidade Federal Rural
de Pernambuco - UFRPE
Cota e
bônus
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e residentes
do interior
50,0%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Estadual de
Feira de Santana - UEFS
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola pública, negros,
indígenas e quilombolas 55,5%
Resolução do
Conselho
Universitário
Universidade Estadual de
Santa Cruz - UESC Cota
Escola pública, negros,
indígenas e quilombolas 52,0%
Resolução do
Conselho
Universitário
128
Universidade Estadual de
Ponta Grossa - UEPG Cota
Escola pública, negros e
indígenas 37,9%
Resolução do
Conselho
Universitário
20
07
Universidade do Estado da
Bahia - UNEB
Cota e
acréscimo
de vaga
Negros e indígenas 46,1%
Resolução do
Conselho
Universitário
Universidade Federal
Fluminense - UFF
Cota e
Bônus
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 51,2%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal do
ABC - UFABC Cota
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e pessoas
com deficiência
53,2%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal do
Paraná - UFPR
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e pessoas
com deficiência
50,8%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
Santa Catarina
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 52,0%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
Santa Maria Cota
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e pessoas
com deficiência
52,8%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
20
08
Universidade do Estado do
Amapá Cota
Escola pública, negros,
indígenas e pessoas com
deficiência
11,8% Lei Estadual
Universidade Estadual do
Piauí - UESPI Cota Escola pública e negros 29,3%
Resolução do
Conselho
Universitário
Universidade Estadual de
Ciências da Saúde de
Alagoas - UNCISAL
Cota Escola Pública 50,0%
Resolução do
Conselho
Universitário
Universidade Federal de
Sergipe - UFS Cota
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e pessoas
com deficiência
52,2%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
Goiás - UFG Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,1%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal dos
Vales do Jequitinhonha e
Mucuri - UFVJM
Cota Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,7%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
Uberlândia - UFU Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,3%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
Ouro Preto - UFOP Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 44,6%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
Minas Gerais - UFMG Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,0%
Resolução do
Conselho
Universitário e
129
Lei Federal
Universidade Federal do
Espírito Santo - UFES Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 56,1%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Fundação Universidade
Federal da Grande
Dourados - UFGD
Cota Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 51,0%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
São Carlos - UFSCar
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola Pública, baixa renda,
negros, indígenas e refugiados 52,2%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal da
Grande Dourados - UFGD cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 51,0%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Estadual de
Maringa - UEM Cota Escola pública e indígenas 15,5% Lei Estadual
20
09
Universidade Estadual da
Paraíba - UEPB Cota Escola Pública 23,2%
Resolução do
Conselho
Universitário
Universidade Federal do
Piauí - UFPI Cota
Escola pública, baixa renda,
pretos e pardos, indígenas 50,0%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia - UESB
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola pública, negros,
indígenas e quilombolas 61,7%
Resolução do
Conselho
Universitário
Universidade Federal do
Triângulo Mineiro - UFTM Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,2%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
Viçosa - UFV Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,2%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Federal de
São João Del-Rei - UFSJ Cota
Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,3%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
Universidade Estadual do
Oeste do Paraná - Unioeste
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola Pública e Indígenas 29,9% Lei Estadual
20
09
Universidade Estadual do
Centro-Oeste - Unicentro
Cota e
acréscimo
de vaga
Escola Pública e Indígenas 20,0% Lei Estadual
Universidade Federal do
Pampa - Unipampa Cota
Escola pública, baixa renda,
negros, indígenas e pessoas
com deficiência
52,1%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
20
10 Universidade Federal do
Vale do São Francisco -
Univasf
Cota Escola pública, baixa renda,
negros e indígenas 50,0%
Resolução do
Conselho
Universitário e
Lei Federal
130
20
11
Universidade do Estado de
Santa Catarina - UDESC Cota Escola pública e negros 30,0%
Resolução do
Conselho
Universitário
20
14 Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita
Filho - UNESP
Cota Escola Pública, negros e
indígenas 35,4%
Resolução do
Conselho
Universitário
20
16
Universidade Estadual de
Campinas Cota
Aprova a adoção de cotas e
vestibular indígena para o
vestibular 2019.
Elaboração própria.
Fonte: Mapa das Ações Afirmativas do GEMAA e Portal MEC
Desde então iniciou-se nos cenários acadêmico, midiático e social de forma geral,
um debate entre favoráveis e contrários às cotas nas universidades, como também o
questionamento sobre a constitucionalidade das mesmas. Debate que, nestes termos, deveria
ter se findado quando, em abril de 201292
, os ministros votaram em unanimidade a favor do
voto do relator ministro Ricardo Lewandowski (2012) que decidiu pela constitucionalidade
das cotas ao examinar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental atos que
instituíram o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial (cotas) no
processo de seleção para ingresso em Instituição Pública de ensino Superior, alegada ofensas
aos Arts. 1º, Caput, III, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, Caput, 205, 206, Caput, I,
207, CAPUT, E 208, V, todos da Constituição Federação, requerida pelos Democratas
(DEM).
O ministro justificou sua decisão, dentre outros pontos, explicando que a adoção
das políticas de ação afirmativa leva à superação de uma perspectiva meramente formal do
princípio da isonomia, integra o próprio cerne do conceito de democracia e nas palavras de
Boaventura de Sousa Santos93
(LEWANDOWSKI, 2012) coloca que
(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que
não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.
92 O Acórdão de ADPF foi publicado na íntegra apenas em 20 de outubro de 2014 devido a pendências na
Secretaria Judiciário do STF. 93
SANTOS, B. de S. S.. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 56.
131
Lewandowski coloca ainda que a Constituição de 1988 não se restringe a
proclamar solenemente, em palavras grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei, mas
buscou emprestar a máxima concreção a esse importante postulado, de maneira a assegurar a
igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no país,
levando em consideração a diferença que os distingue por razões, naturais, culturais, sociais,
econômicas ou até mesmo acidentais. A Portaria Normativa nº 18 do MEC, de 11 de outubro
de 2012, e o Decreto nº 7.824, também de 11 de outubro de 2012, regulamentam a questão.
Assim, a universidade pública brasileira está sendo chamada a participar da
correção dos erros de 500 anos de colonialismo, escravidão, extermínio físico, psicológico e
simbólico dos povos indígenas e negros africanos e seus descendentes (SILVA, 2003). Para
Antonio Sergio Guimaraes, professor da USP, a sociedade está cada vez mais democrática e
há uma questão de princípio no critério de cotas: a finalidade é aumentar a inclusão e fazer
com que a elite intelectual não se confunda com a elite econômica, que pessoas talentosas,
mas pobres não sejam simplesmente barradas. Essa perversão do sistema é o que se busca
corrigir (MARQUES, 2008).
No entanto, apesar de julgada a constitucionalidade das cotas, há ainda muita
discussão e contrariedade a tais políticas de ação afirmativa voltadas a esses grupos em
específico. Paixão (2008) apresenta sete matrizes teóricas mobilizadas para combater a
validade das políticas de promoção da igualdade racial com foco em cotas raciais. São elas:
liberal; democrático-racial; nacionalista; culturalista contemporânea; funcionalista; marxista e
geneticista.
A fundamentação liberal embasa-se primordialmente no conceito de igualdade
jurídica de todos os cidadãos, como também no mérito num ideário individualista liberal
(PAIXÃO, 2008). Entretanto, as cotas – sociais e raciais – não tiram o mérito na disputa por
uma vaga no ensino superior tendo em vista que o número total de concluintes no ensino
médio (1.877.960 em 2012) é maior que o número de vagas disponíveis no ensino superior
público federal (334.212 vagas em 2012). Além do mais, se formos levar em consideração a
porcentagem (%) de estudantes vindos do ensino médio público, a concorrência em números
absolutos, mesmo com cotas, para estes acaba sendo abundantemente maior que a
concorrência para os estudantes de escola privada conforme é possível observar nos gráficos a
seguir:
132
Gráfico 3 - Concorrência às vagas nas Universidades Federais segundo % de concluintes e vagas
Fonte: INEP, 2014; Lei 12.711/12. Elaboração própria
Gráfico 4 - Relação entre número absoluto de concluintes do Ensino Médio e vagas em instituições
públicas federais de nível superior
Fonte: Censo, 2013; INEP, 2014. Elaboração própria
Os gráficos ilustram como a reserva de vagas implementada após a Lei para as
universidades federais não elimina a meritocracia para os concorrentes, sejam optantes pelo
sistema de cotas, ou não. O que a Lei busca é separar a concorrência, inserindo a disputa entre
iguais. Ainda assim, a concorrência entre pessoas que optaram pelo sistema de cotas no
processo seletivo de 2013, em números absolutos, seria de 10 candidatos/vaga, enquanto para
EM Público EM Privado
87,2%
12,8%
50,0% 50,0%
% estudantes
Cotas
EM Público EM Privado
1637581
240379
334212 334212
Concluintes EM (2012)
Vagas ES Público Federal
133
os concluintes de escolas privadas na ampla concorrência, seria de 1,5 candidatos/vaga,
considerando em ambos os casos um cenário ideal em que só os concluintes concorressem às
vagas e desconsiderando as diferenças de concorrências entre os diferentes cursos, o que não
reflete a realidade, na qual muitos tentam uma vaga por vários anos, aumentando assim a
concorrência em ambos os tipos de vagas – concorrência ampla e cotas.
A segunda vertente contrária às cotas é a democrático-racial que se pauta na
ideologia da democracia racial, ideia que tem uma longa trajetória no pensamento social e do
senso comum brasileiro que, além de acreditar que as relações raciais são harmônicas e
igualitárias, coloca ainda que “num país em que ninguém sabe ao certo quem é branco e quem
é negro, a medida é de difícil aplicação” (KAMEL apud PAIXÃO, 2008, p. 139).
Na fundamentação nacionalista expressa-se o racismo estruturante da sociedade.
Isto porque, os autores contrários às políticas de ação afirmativa, nesta perspectiva,
argumentam que as especificidades culturais são fundamentais em termos da construção de
um ambiente ideológico e cultural propício ao desenvolvimento econômico e institucional do
Brasil. Inferimos, portanto, que, ao afirmar isso, tal perspectiva nega a possibilidade de
desenvolvimento a partir da inclusão dos povos minorizados numa clara acepção racista. De
acordo com Paixão (2008, p. 159) “parece óbvio que quando os nacionalistas, em nome da
preservação de algum patrimônio cultural imaterial tipicamente brasileiro, se opões às
políticas de equidade racial, estão mais justificando as tradicionais hierarquias socioraciais”.
A 4ª corrente apresentada é a culturalista contemporânea na qual se reconhece
que a democracia racial é, de fato, um mito, no entanto, há a crença de que no Brasil há
espaços de relações inter-raciais e de repúdio ao racismo e, portanto, as políticas de ação
afirmativa (PAAs) poderiam colocar em risco os princípios de paz inter-racial vigente.
(PAIXÃO, 2008) Wedderbrun (2007) explica que os defensores do status quo racial na
América Latina argumentam que a implementação de medidas étnico-raciais resultará em
rachaduras na coexistência inter-racial harmônica que prevalece na América Latina em
contraposição ao resto do mundo.
A crítica funcionalista é a 5º corrente e nesta, os críticos às cotas endossam a
crença de que “as desigualdades raciais brasileiras seriam produtos espontâneos, causados
pela maior concentração de afro-descendentes na população mais pobre (PAIXÃO, 2008,
p.147), não estando esta situação ligada às relações raciais vigentes, mas sim ao preconceito
social. A teoria funcionalista elabora o estratagema de afirmar que a pobreza não tem cor,
embora reconheça que quem carrega as marcas raciais negra é, em geral, pobre.
134
Entretanto, a história pode fornecer elementos para ilustrar como as desigualdades
entre negos e brancos foram construídas socialmente durante os quase 400 anos de escravidão
que, além de toda a violência física e simbólica, impôs no campo educacional medidas legais
que impediram o acesso da população negra à escola. Exemplo disso é o Artigo 69 do Decreto
nº 1.331 de 1854 (BRASIL, 1854) que estabelecia que:
Art. 69. Não serão admitidos à matricula, nem poderão frequentar as escolas:
§ 1º Os meninos que padecerem moléstias contagiosas.
§ 2º Os que não tiverem sido vacinados.
§ 3º Os escravos. (BRASIL, 1854). [grifo nosso]
Feres Júnior et. al (2013) atenta que a alegação de que a adoção exclusiva de cotas
sociais nas universidades, com o argumento de que os negros estão concentrados nas classes
sociais mais baixas e, portanto, esses grupos seriam imediatamente incluídos, não se
comprova empiricamente. Os autores explicam que:
Segundo o pesquisador Thomas Weisskopf, “quanto maior a aceitação em definir
beneficiários de políticas sociais em termos étnicos – e não sócio-econômicos –
maiores serão os benefícios da discriminação positiva” (Weisskopf, 2004: 9194
). De
acordo com o modelo de Darity, Deshpande & Weisskopf (2011), políticas de ação
afirmativa baseadas exclusivamente em classe em vez de raça e etnicidade falham
em incluir membros dos grupos étnico-raciais discriminados. Os autores testam o
argumento que sustenta que o critério socioeconômico é a melhor forma de
promover a integração racial – dada forte convergência entre raça e classe – a partir
de um modelo aplicado aos casos dos Estados Unidos e Índia.
De acordo com as estimativas estatísticas para esses dois casos, a adoção dos
critérios de classe ou de raça/casta/etnicidade conduz a resultados muito distintos.
No primeiro caso, isto é, quando as ações afirmativas baseiam-se no critério da
renda familiar apenas, o número de potenciais beneficiários provenientes dos grupos
étnicoraciais discriminados cai substancialmente e eleva-se o percentual de
potenciais beneficiários de grupos que não sofrem discriminação. No segundo caso,
o objetivo de dessegregar as elites, introduzindo nelas membros de grupos
discriminados, é atingido de forma mais eficaz. A análise procura demonstrar que a
substituição de políticas baseadas em raça e etnicidade por políticas que utilizam
apenas o critério de renda pode inclusive agravar a discriminação do grupo étnico-
racial visado, uma vez que são excluídos do benefício justamente aqueles indivíduos
do grupo que melhor poderiam se qualificar para as vagas ofertadas (Darity,
Deshpande & Weisskopf, 201195
apud FERES JÚNIOR et. al., 2013, p. 17).
A 6ª corrente vem do campo da esquerda, na qual os marxistas ortodoxos se
opõem às PPAAs pois, para estes, a contradição se dá entre operários e os proprietários dos
meios de produção. Para a tradição marxista, determinadas lutas – tais como a antissexista,
antirracista ou em prol da preservação ambiental, por exemplo, atingiriam seus objetivos após
94 Weisskopf, Thomas E. Affirmative Action in the United States and India. Londres: Routledge, 2004
95 Darity, William, Deshpande, Ashwini, & Weisskopf, Thomas. “Who Is Eligible? Should Affirmative Action
be Group- or Class-Based?” In: American Journal of Economics and Sociology, vol. 70, nº. 1: 238-268, 2011
135
a superação da sociedade capitalista, antes disso, elas assumem um caráter que acaba por
dividir a classe operária. Importante destacar que:
Evidentemente, não se ignora que a tradição marxista incorpora diversas correntes e
que, portanto, no seu interior podemos encontrar diversos autores vinculados a este
aporte que leem, por exemplo, o racismo como estrutural do sistema capitalista:
Oliver Cox, Jean-Paul Sartre, Franz Fanon, herbert Blaumer e, mencionando
intelectuais marxistas brasileiros, Leôncio Basbaum e Florestan Fernandes
(PAIXÃO, 2008, p. 149).
Glória (2006) e Leite (2011; 2012) são autoras que combatem o princípio das
cotas sob a prerrogativa marxista ortodoxa. Para as autoras, as cotas são uma estratégia do
capitalismo e do neoliberalismo que visam eliminar a luta política dos trabalhadores e
escamotear as expressões da questão social, sendo as políticas públicas de caráter universal
capazes de contribuir para a construção de uma sociedade justa e igualitária,
Por fim, a perspectiva geneticista se baseia na questão racial pelo viés da origem
genética de que “todos os seres humanos atualmente presentes na Terra compartilham um
ancestral africano relativamente recente” (PENA; BRICHAL, 2006). Esses argumentos
acabam servindo de fundamentação para os contrários às cotas, que se utilizam da
mobilização instrumental da genética para deslegitimar o discurso do povo negro, racialmente
discriminado (PAIXÃO, 2008).
O médico (geneticista) Sérgio D. J. Pena é um expoente no Brasil desta
perspectiva provando com seus estudos a inexistência de diferenças genéticas significativas
entre “brancos” e “negros”. No artigo “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das
cotas universitárias e demais ações afirmativas?”, que assina junto com a bióloga Maria Cátira
Bortolini, ambos buscam deslegitimar a política de cotas a partir do perfil genético da
população brasileira afirmando que
muitos dos que se identificam como negros apresentam uma proporção significativa
de ancestralidade européia. Dessa maneira, não é nada surpreendente que existam
confusões e problemas relacionados aos critérios adotados para definir quem deve
ser beneficiado pelas políticas de ação afirmativa no Brasil (PENA, BORTOLINI,
2004, p.46).
O médico afirma ainda em entrevista que
manter o conceito de raça vivo é igual a ter em casa um pitbull: a qualquer hora ele pode
te morder. Parece irrelevante acreditar que as raças existem. Até que, de repente, começa a
haver uma luta entre elas. E aí se cria um problema. No Brasil, a questão de cotas raciais
tem gerado conflito. Se tivessem feito um programa de ações afirmativas com bases mais
financeiras e de classes, mais do que de raças, os mesmos objetivos seriam atingidos sem
criar ressentimentos96
.
96 https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2017/07/racas-nao-existem-trata-se-de-um-conceito-
136
Yvonne Maggie e Peter Fry (2004, p. 70), apesar de não serem autores da linha
geneticista, constroem a partir da perspectiva biológica de raça, que ignora a construção social
e a luta de grande parte do movimento negro97
acerca do termo, a argumentação contrária à
política de cotas, aproximando-se da perspectiva geneticista. Para os antropólogos
as "raças" de fato não existem naturalmente, e um sistema de cotas implica
logicamente a criação de duas categorias "raciais": os que têm direito e os que não
têm. Afinal, ou você tem direito à cota ou não tem! O sistema de cotas, então,
representa, de certa forma, a "vitória" de uma taxonomia bipolar sobre a velha e
tradicional taxonomia de muitas categorias
Como se viu, de forma geral, as críticas se baseiam na ideia de meritocracia, de
democracia racial, da não racialização e na luta de classes como única possibilidade de
superação do racismo, o que inclui a ideia de políticas universalistas para enfrentamento das
desigualdades. No entanto, Norões (2011) explica que apesar de toda a polêmica em torno das
cotas raciais, foram essas que possibilitaram alguns avanços sociais à medida que para
discuti-las tornou-se necessário discutir estrutura, marginalização social e meios para
modificar os índices alarmantes de desigualdade salarial, mortalidade juvenil, violência
policial, perseguição religiosa, entre outros, denunciados há tempos pela população negra,
encarnada nos movimentos negros.
Para Gomes (2007) as ações afirmativas, como as cotas, concebidas com o
objetivo de quebrar as dinâmicas perversas das desigualdades sociais que operam
principalmente nas minorias, notadamente as minorias raciais, sofrem o influxo de forças
contrapostas e atraem resistência porque alteram estruturas ocupadas por aqueles que
historicamente se beneficiavam da exclusão dos grupos excluídos e marginalizados. Além
disso, as políticas de ação afirmativa na forma de cotas, por exemplo, não desvalorizam o
princípio do mérito, mas o reafirmam uma vez que a prática cotidiana e os dados estatísticos
mostram que diante de qualificações iguais existe preferência em favor do branco98
. Desta
inventado-garante-o-geneticista-sergio-pena-9835374.html 97
O movimento Negro embora utilizado no singular é plural e possui diversas vertentes político-ideológicas. 98
Um exemplo disso é o caso do Professor de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo que afirmou
em sala de aula que prefere ser atendido por um médico branco a um negro. Em entrevista a um Jornal, ele negou
essa frase, mas afirmou ter dito, sim, que preferia ser atendido por um médico branco, pela "possibilidade
estatística" deste ter tido uma melhor formação ("mais preciosa, mais cultivada") do que um colega negro, caso o
currículo de ambos fosse igual. Correio 24 horas. Professor causa polêmica ao dizer que prefere ser atendido por
médicos brancos a negros.
137
forma, cabe à política pública intervir no sentido de reverter esta situação de desigualdade
arbitrária baseada na ação discriminatória (JACCOUD; BEGHIN, 2002).
Ao encontro disso, Volpe e Silva (2016) explicam que as ações afirmativas
destinadas à população negra sempre foram objeto de contestação mais intensa porque se nega
o racismo, ou acredita-se que ele opera apenas subjugado a condições socioeconômicas. No
entanto, uma prova da discrepância racial, de acordo com Kleinke (2006), é que basta um
olhar mais atento a um campus de universidade pública para se perceber que, apesar de o
Brasil apresentar uma população parcialmente pobre, negra e mestiça, os estudantes das
universidades públicas são ainda, em sua grande maioria, ricos e brancos. É neste cenário real
que se encontram as fundamentações para o desenvolvimento de políticas de acesso à
educação superior, tendo em vista diminuir essa discrepância. Completando a proposta de
empiria de Kleinke, destacamos ainda que, também com um olhar atento, é possível notar que
a maioria dos trabalhadores terceirizados das universidades são negros e negras.
A ação afirmativa, na forma de cotas, nas universidades brasileiras traz uma
população antes excluída deste nível de ensino, mas ainda o faz, de forma geral, numa
perspectiva multiculturalista prescritiva, ou seja, pessoas pobres, negras e indígenas são
incluídas no ensino superior, mas sem que se questione o caráter monocultural presente na
dinâmica acadêmica, tanto no que se refere aos conteúdos do currículo, quanto às estratégias
utilizadas em sala de aula, aos valores privilegiados etc. (CANDAU, 2008).
Hooks (2017) evidencia como a integração racial educacional dos EUA
transformou a experiência do aprendizado como revolução em uma educação bancária. Conta
a autora:
Quando entramos em escolas brancas, racistas e dessegregadas, deixamos para trás
um mundo onde os professores acreditavam que precisavam de um compromisso
político para educar corretamente as crianças negras. De repente, passamos a ter aula
como professores brancos cujas lições reforçavam os estereótipos racistas. Para as
crianças negras, a educação já não tinha a ver com prática de liberdade (HOOKS,
2017, p. 12).
Por isso, não basta incluir num processo de “neo-aculturação”, é necessário pensar
em uma educação decolonial, que surja da perspectiva de uma interculturalidade crítica, ou
seja, capaz de reconhecer e romper com a hierarquia existente entre as culturas, filosofias,
pedagogias e epistemologias. Isto porque, em boa medida, o combate à pobreza passa pela
inclusão da criança e do jovem negro nas instituições educacionais, no entanto, com a
possibilidade de uma educação de qualidade que consiga ensinar, sem mistificação, a
138
contribuição de cada raça e de cada etnia na formação sociocultural do Brasil. A construção
deste processo escolar depende de uma política educacional que considere, principalmente,
duas condições básicas: a inclusão imediata dos jovens negros nas universidades e a
reformulação curricular a partir de parâmetros multiculturais (SILVÉRIO, 2002) e
decoloniais. De acordo com Norões (2011) assumir políticas públicas de ação afirmativa
requer um modelo de Estado assumidamente intercultural, o que significa a continuação e
aprofundamento das discussões acerca das PPAAs a fim de construir outra sociedade a ser
assumida por todas e todos.
Neste cenário, de fato, as cotas são uma barreira eficaz à progressão do racismo e
das desigualdades sociais que dele se desenvolvem. “Por isso, derrubá-las é uma necessidade
de todo projeto conservador de sustentação de um status quo sócio-racial baseado na
dominação hegemônica de uma raça sobre outra, e da supremacia social de uma classe sobre
todas as outras” (WEDDERBRUN, 2007, p. 318).
As Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornam obrigatório o ensino de História da
África, Cultura Africana e afro-brasileira e indígena, e a educação das relações étnico-raciais
nos currículos escolares da Educação Básica vêm no sentido de romper com o caráter
monocultural presente nas instituições e também, de acordo com Filice e Santos (2010) as
Leis, se cumpridas, serviriam de mecanismos sensibilizador para a maior compreensão e
aceitação das políticas de cotas nas universidades públicas brasileiras. Ao encontro disso,
Oliveira e Candau (2010) colocam que a possibilidade de uma emancipação epistêmica se dá
na coexistência de diferentes epistemes ou formas de produção de conhecimento entre
intelectuais da academia e dos movimentos sociais.
Esta reflexão dialoga com a nossa hipótese de que estas PPAAs são instrumentos
que possibilitam o rompimento com a colonialidade, ou seja, com a exclusividade
eurocêntrica presente no Ensino Superior e que reverbera em todos os níveis de ensino. A
discussão seguinte, a respeito das Leis 10.639/03 e 11.645/08 evidenciará melhor esta
possibilidade.
3.1.2. História e Cultura africana, afro-brasileira e indígena – as Leis 10.639/03 e
11.645/08
Para lecionar em comunidades diversas, precisamos mudar não só
139
nossos paradigmas, mas também o modo como pensamos, escrevemos
e falamos. (HOOKS, 2017, p. 22)
Muitas das crianças que frequentam a escola se deparam com o ensino de uma
história que não é a sua. “Os livros lhe falam de um mundo que em nada lembra o seu; o
menino chama-se Toto e a menina Marie; e, nas tardes de inverno, Marie e Toto voltam para
casa por caminhos cobertos de neve, detêm-se diante do mercado de castanhas” (MEMMI,
1978, p. 96). Silvério explica que muitas crianças negras, no Brasil e no mundo, “sentem-se
silenciadas, ou seja, sentem que suas vozes, experiências e histórias não são validadas e
ouvidas pela escola” (2002, p. 242).
Num aceno positivo a uma pauta histórica do Movimento Negro, o então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou em 09 de janeiro de 2003 a Lei 10.639/03 que
tornou obrigatório o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira na Educação
Básica e o 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” ao alterar os artigos
26-A e 79-B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em 2008 a Lei 11.645
incluiu no artigo 26-A o estudo da História e Cultura Indígena. O Artigo 26-A tem atualmente
a seguinte redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira
e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). § 1
o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos
da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir
desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos,
a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena
brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do
Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). § 2
o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (Redação
dada pela Lei nº 11.645, de 2008) (BRASIL, 2008).
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional
da Consciência Negra’. (Incluído pela Lei nº 10.639, de 9.1.2003)
Ambas são leis inseridas no âmbito das políticas públicas de ação afirmativa
sancionadas como resultado da legitimidade ganha pelo movimento negro na batalha para
atacar as persistentes e crescentes desigualdades raciais no país e convencer a opinião pública
e o governo federal de que há uma questão racial a ser enfrentada no Brasil (GUIMARÃES,
2009). Assim, elas visam romper com o racismo epistêmico trazendo para dentro da sala de
140
aula representações positivas acerca da população negra e indígena. Importante destacar aqui
que as Leis, quando colocadas em prática, agem em consonância com a Constituição Federal
que determina em seu Artigo 215, § 1o que “o Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígena e afro-brasileiras” (BRASIL, 1988).
Neste cenário, a escola tem um papel importante a cumprir diante dos
preconceitos e discriminações raciais. Ela deve ser o espaço de práticas pedagógicas e
estratégias de promoção da igualdade racial a partir do conhecimento sobre a história e a
cultura africana, afro-brasileira e indígena para superar opiniões preconceituosas e denunciar
o racismo existente, rompendo com a ideologia da democracia racial (GOMES, 2005).
Neste sentido, estamos de acordo com Miranda (2013, p. 103) para quem
Assumidamente, o que propomos são bases teórico-metodológicas que nos permitam
experiências curriculares expedicionárias capazes de influir nas “desaprendizagens”
que, na atualidade, empurram as portas das instituições educacionais sustentadas,
ainda, por orientações eurocêntricas das práticas pedagógicas.
[...]
As trajetórias dos sujeitos representados como o “Diferente” da colonização passam
a ganhar relevo, bem como suas ancestralidades, tendo em vista os objetivos da
agenda antirracista a qual defendemos.
Desta forma, salientamos que embora no artigo da Lei o escopo seja a Educação
Básica, os diversos documentos que visam orientar e normatizar a aplicabilidade da lei
ampliam o escopo para todos os níveis e modalidade da educação brasileira. O Parecer
CNE/CP003/2004 (BRASIL, 2004a) que apresenta as Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCNs) para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana dispõe que deverá haver a
Inclusão, respeitada a autonomia dos estabelecimentos do Ensino Superior, nos
conteúdos de disciplinas e em atividades curriculares dos cursos que ministra, de
Educação das Relações Étnico-Raciais, de conhecimentos de matriz africana e/ou
que dizem respeito à população negra. Por exemplo: em Medicina, entre outras
questões, estudo da anemia falciforme, da problemática da pressão alta; em
Matemática, contribuições de raiz africana, identificadas e descritas pela Etno-
Matemática; em Filosofia, estudo da filosofia tradicional africana e de contribuições
de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade.
[...]
Inclusão, em documentos normativos e de planejamento dos estabelecimentos de
ensino de todos os níveis - estatutos, regimentos, planos pedagógicos, planos de
ensino - de objetivos explícitos, assim como de procedimentos para sua consecução,
visando ao combate do racismo, das discriminações, e ao reconhecimento,
valorização e ao respeito das histórias e culturas afro-brasileira e africana (BRASIL,
2004a, p.14) [grifo nosso].
Mais especificamente, o Parecer enfatiza em diversos tópicos a necessidade da
inclusão da questão racial como parte integrante da matriz curricular dos cursos de formação
141
de professores, inclusive de docentes do Ensino Superior, como também a necessidade de
adequação dos mecanismos de avaliação nos itens relativos a currículo, atendimento aos
alunos, projeto pedagógico, plano institucional, de quesitos que contemplem as orientações e
exigências formuladas pelo Parecer. (BRASIL, 2004a).
A Resolução Nº 1 de 17 de junho de 2004 que institui as Diretrizes para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana determinam no Artigo 1º que a resolução deve ser observada pelas instituições de
ensino que atuam em todos os níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial,
por Instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores.
Os parágrafos a seguir complementam:
§ 1º As instituições de ensino superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e
atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étnico-
Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos
afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP003/2004.
§ 2º O cumprimento das referidas Diretrizes Curriculares, por parte das instituições
de ensino, será considerado na avaliação das condições de funcionamento do
estabelecimento (BRASIL, 2004b).
No Parecer CNE/CEB Nº2/2007 quanto à abrangência das DCNs para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
(BRASIL, 2007) é relatado que há um hiato entre as determinações trazidas pelas Diretrizes e
a execução concreta nos sistemas de ensino de todo o território nacional. De acordo com o
Parecer:
A persistência desse hiato pode resultar em prejuízos à celeridade do processo de
construção de uma efetiva igualdade étnico-racial na educação brasileira, atrasando a
oportunidade histórica conquistada pela sociedade, em especial, pelas populações
negras e demais grupos populacionais, historicamente discriminados, de verem as
suas especificidades culturais, suas identidades, seus sistemas filosóficos, suas artes,
seu conjunto de valores relacionais, suas religiões e celebrações, seus heróis míticos
e históricos, seus homens, mulheres e crianças, não mais serem retratados e
representados em materiais didáticos, órgãos, instituições e práticas pedagógicas de
modo pejorativo, desrespeitoso, inferiorizante e subalternizados pela hegemonia de
referenciais de pensamento e de conhecimento intrinsecamente refratários à riqueza
representada pela diversidade (BRASIL, 2007, p. 02).
Esse hiato deve-se principalmente, salvo algumas louváveis exceções, a escassa
produção e distribuição de material didático diversificado, como também à insuficiente
atenção oficial dada ao necessário processo de formação de professores com conteúdos
específicos aos objetivos preconizados pelas Diretrizes. A partir deste contexto, portanto, o
Parecer determina que as Diretrizes se configuram como “um documento normativo ímpar
cuja aplicação imediata, da Educação Infantil à Educação Superior, é uma necessidade
142
indiscutível” (BRASIL, 2007, p. 05).
Para Miranda (2013) as políticas de ação afirmativa são parte de um conjunto que
reconfiguraram o acontecimento universitário, mas não podemos ignorar os confrontos
ideológicos que envolvem diferentes esferas na agenda das políticas com foco nas DCNs para
a Educação das Relações Étnico-raciais.
As leis tornam-se medidas decoloniais à medida em que buscam romper com os
estereótipos criados no processo de colonização em que a produção da inferioridade foi
construção sine qua non para sustentar a descoberta imperial em que o descoberto foi dotado
em três formas principais: o Oriente, o selvagem e a natureza” (SANTOS, 2006). Em outras
palavras, a colonização produziu o “diferente” e o sistema educacional o deixou de fora
(MIRANDA, 2013). Por isso
O trabalho da informação e de educação deve repensar a noção de diferença. Para o
racista, quer ele o seja por desorientação ou por medo do desconhecido, a diferença
é má, e, portanto, condenável. Paradoxalmente, o humanista e o antirracista não o
contradizem: eles limitam-se a negar a existência de diferenças, o que é uma
maneira de fugir do problema. Será então necessário constatar certas diferenças
entre os homens e mostrar que elas não são nocivas nem escandalosas” (MEMMI,
1993, p. 128).
Portanto, as Leis colocam em evidência a proposição de um novo paradigma que
surge do princípio que o mundo é epistemologicamente diverso e que essa diversidade
representa um enorme enriquecimento das capacidades humanas. Romper com a
colonialidade vigente até então, permite uma mudança nas condições dadas para o ato de
conhecer, ou seja, abrange novas possibilidades epistêmicas. Além disso, as leis objetivam a
formação de cidadãos empenhados em promover condições de igualdade no exercício de
direitos sociais, políticos e econômicos, sendo capazes de reconhecer e valorizar visões de
mundo, experiências históricas, contribuições dos diferentes povos que têm formado a nação
(SILVA, 2007).
A construção deste novo paradigma implica em pensar sob uma perspectiva
afrocentrada que, diferente do eurocentrismo, não busca assumir uma postura universalista,
pelo contrário, consiste em estudar, articular e afirmar aquilo que diferencia o ponto de vista
africano, identificando, ao mesmo tempo, os postulados supostamente universais do
eurocentrismo (VIEIRA, 2012). Melofi K. Asante (apud MUNANGA, 2003b, p.14)
complementa explicando que o afrocentrismo “serve como base de resistência ao
etnocentrismo ocidental e à hegemonia da brancura, mas não se opõe ao dinamismo cultural e
ao interculturalismo, conforme o acusam, sem fundamentar-se nos textos, os críticos
143
apressados”.
As Leis, dentro de uma perspectiva afrocentrada, possibilitam tirar do
ocultamento os impérios e sociedades africanos nos tempos pré-coloniais, como também a
diversidade de etnias, línguas e culturas indígenas presentes no território brasileiro quando da
chegada dos portugueses e que persistem, ainda que em menor representatividade, até os dias
atuais e, assim, superar um estado de ignorância sobre a constituição da brasilidade.
Além de evidenciar as desigualdades raciais e romper com a ideologia da
democracia racial, a Lei 10.639/03 busca destacar a importância da África na origem da
humanidade, tendo em vista que foi o lugar onde foram encontrados os primeiros hominídeos
há cerca de 7 milhões de anos. Foi também onde surgiu o Homo Sapiens, há cerca de 160 mil
anos, com o início da evolução da espécie humana na África Oriental e Meridional, o ponto
de partida para a povoação do restante do continente e do mundo.
Com o rompimento da visão eurocêntrica de mundo, será possível trazer à luz que
grande parte dos conhecimentos médicos têm sua raiz em solo africano, elucidando que o
verdadeiro pai da medicina não foi Gregório Hipócrates, mas sim o cientista clínico egípcio
Imhotep, que há três mil anos antes de Cristo já praticava grande parte das técnicas básicas da
medicina; na África central, o conhecimento dos Banyoro já era capaz de realizar cesarianas
antes de 1879; em Mali e no Egito há cerca de 4600 anos já se realizam cirurgias dos olhos
que removiam cataratas. Além da medicina, a astronomia é outra ciência que esteve presente
no continente antes da colonização.
Pesquisas feitas no Quênia, em 1978, pela equipe de Lynch e Robbins da
Universidade de Michigan encontraram restos de um observatório astronômico. Eles
concluíram que as evidências “atestam a complexidade do desenvolvimento cultural
pré-histórico na África Sub-saariana. E a pesquisa também sugere que um sistema
de calendário complexo e preciso, baseado nos cálculos astronômicos, foi
desenvolvido até o primeiro Milênio a.C. na África Oriental” (NASCIMENTO,
199499
apud VIEIRA, 2012).
Há também registros de sociedades altamente desenvolvidas com sistema
econômico, político e científico complexos e que se diferenciam ao longo da diversidade dos
30.343.551 km² de extensão territorial do continente. A visão negativa sobre o continente
africano começou após a Conferência de Berlim (1885) que definiu a partilha colonial da
África entre os países europeus interessados em explorar econômica e politicamente o
continente. Até então, era comum encontrar imagens positivas sobre a África. Árabes e
99 NASCIMENTO, E. L.. Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira. Rio de Janeiro: Seafro, 1994.
144
europeus falavam com admiração das formas sociopolíticas africanas altamente elaboradas
que se alternavam em reinos, impérios, cidades-estados, clãs, linhagens etc. (MUNANGA,
GOMES, 2006).
Do ponto de vista filosófico, tirar do quase anonimato autores como George
Granville Monah James (1894-1958), Cheikh Anta Diop (1923-1986), Frantz Fanon (1925-
1961) e Molefi Kete Asante (1942) que recusam a exclusividade do ocidente como regulador
epistemológico aponta para o rompimento do racismo epistêmico que inviabilizou as
produções negro-africanas (NOGUEIRA, 2011).
No âmbito da Lei 11.645/08100
que trata do ensino de História e Cultura
indígenas, faz-se urgente romper com os estereótipos que habitam sobre a cultura indígena, a
começar pela própria denominação “índio”. Diversos indígenas têm atentado para o fato de
que “índio” não é a expressão mais adequada, uma vez que esta foi uma denominação
utilizada pelos portugueses que acreditavam (segundo conta a História oficial) estar na Índia e
por muito tempo chamaram as terras invadidas de Índia Ocidental. Assim, ao se depararem
com a população nativa, automaticamente denominaram-na “índios”. Contudo, atualmente
tem sido mais aceita a expressão “indígena” que significa “originário da terra”, “nativo”
(KEZO, 2015).
O termo “Tribo” é outro ponto que precisa ser melhor trabalhado porque, apesar
de possuir diversos significados na história e na antropologia, no senso comum remete à ideia
de selvagem, colocando-se como antagônico ao termo “sociedade”. Por isso, Luciano Arikabo
Kezo, indígena do povo Balatiponé, explica que os povos indígenas têm mecanismos
extremamente complexos que se equiparam em muitos aspectos em relação às populações que
são enxergadas como sociedade: eles têm seu próprio idioma, regimentos próprios além do
regimento do Estado Brasileiro, sua própria liderança política e produção de conhecimento
independente e, desta maneira, “tribo” não é um termo suficiente para descrever as
“sociedades ou povos indígenas” (KEZO, 2015). Sociedades que se diferenciam em diferentes
etnias, línguas e culturas indígenas. De acordo com o último senso do IBGE (2010) há 305
diferentes etnias no país e 274 línguas indígenas ainda presentes no Brasil.
Importante ressaltar novamente que não se trata de, com essa perspectiva,
desprezar ou depreciar a ciência moderna eurocêntrica, mas colocá-la em seu contexto. Nosso
100 Embora as duas leis resultem na alteração do mesmo artigo 26-A da LDB, faz-se importante a utilização em
separado para dar destaque às lutas dos dois movimentos – negro e indígena.
145
interesse está em superar o eurocentrismo, essa tentativa ideológica de reduzir a diversidade
cultural a apenas uma perspectiva paradigmática que vê a Europa como a origem única dos
significados (SANTOS, 2007, VIEIRA, 2012).
O que criticamos na ciência moderna não é aquilo que ela pode produzir como
intervenção no mundo. É o arrogar-se como uma única forma de conhecimento
válido no mundo. É o monopólio do rigor que nós criticamos. E, portanto, estamos
em condições de poder apreciar o que na ciência deve ser apreciado, e deve ser
resgatado ao mesmo tempo criando espaço para outros conhecimentos, para outras
experiências de saberes.
[...]
As teorias, por exemplo, sociológicas e antropológicas, foram criadas em quatro ou
cinco países do Atlântico Norte no século 19 e a partir daí ousaram a se considerar
universais e são elas que ainda estudamos e repetimos, quando de fora delas ficou
toda a experiência do mundo, que ainda hoje é muito mais diversa [...] (SANTOS,
2007, p.178-177).
Essa crítica que fazemos é porque o legado do eurocentrismo justificou e
legitimou o colonialismo porque abstraiu os elementos comuns a muitos grupos étnicos e
articulou uma visão generalizada a partir de suas referências clássicas (as civilizações grega e
romana), deixando como efeitos intelectuais um conjunto de representações negativas
contemporâneas sobre a história e culturas africana e indígena (VIEIRA, 2012). Viera (2012,
p. 101) atenta que esta universalização do modelo europeu, diferencia o eurocentrismo do
etnocentrismo, uma vez que este último se refere a forma como cada grupo étnico tende a
elaborar o seu centro como referência e valorizar sua própria cultura, enquanto que o
eurocentrismo se expande para processos violentos de dominação/exploração e de falsificação
histórica para impor o seu etnocentrismo como universal a todos os povos.
É diante disto que urge a decolonização do poder, do saber e do ser. Isto significa
mexer com valores, crenças e culturas consideras como verdades exclusivas; “significa
desconstruir práticas pedagógicas escolares que ainda se pautam por uma concepção
colonialista, racista, conservadora e excludente que banalizam e tornam insignificantes as
práticas culturais ditas como “populares”” (VIEIRA, 2012, p. 113).
146
4. As Políticas Públicas de Ação Afirmativa e seus efeitos – os casos da
Ufscar e da Unicamp
A fim de desvelar como as políticas públicas de ação afirmativa impactam as
universidades escolhemos estudar o caso de duas universidades – UFSCar e Unicamp.
Ambas as Universidades nasceram na década de 60, após a interiorização
industrial no país e, em especial em São Paulo, e a interiorização do “ensino ginasial” por
quase todos os municípios do Estado quando houve o que se chamou de “explosão
educacional”. Desta forma, houve a necessidade de expansão e interiorização do ensino
superior no Estado de São Paulo para atender a demanda de alunos excedentes à época
(SGUISSARD, 1993, MENEGHEL, 1994). Elas possuem em comum, portanto, a idade e a
localização dos seus campi em cidades do interior do Estado de São Paulo, mas são diferentes
quanto à: organização administrativa e política de ação afirmativa para inclusão
implementadas, conforme é possível observar no quadro a seguir em que estão apresentadas
as características gerais dessas universidades.
Quadro 3 – Características Gerais das IES’s investigadas
UFSCar Unicamp
Ano de Criação 1968 1966
Organização Administrativa Pública Federal Pública Estadual (SP)
Ano de implementação da PPAA 2008 2004 (para vestibular ano 2005)
Tipo da PPAA Cotas – reserva de vagas PAAIS – Bonificação na nota do/a
estudante
Localização dos Campi São Carlos, Araras, Sorocaba e
Lagoa do Sino Campinas, Limeira, Piracicaba
Cursos presenciais de graduação
presenciais oferecidos 64 66
Vagas oferecidas anualmente em
cursos de graduação 2897 3330
nº total de alunos(as) 101
(em 2016) 25.167 36.268
nº total de docentes (em 2016) 1256 2179
AE* Bolsa Alimentação102
1950 550
101 Alunos matriculados incluindo: graduação, graduação à distância (no caso da UFSCar), Mestrado
Profissional, Mestrado acadêmico, Doutorado e Pós-graduação Lato Sensu
102 Na UFSCar a bolsa é alimentação dá direito a duas refeições gratuitas no restaurante universitário do
respectivo campus. Na Unicamp a bolsa alimentação dá direito às três refeições (café-da-manhã, almoço e jantar)
nos restaurantes universitários (RUs)do campus e está atrelada à bolsa transporte em que o(a) aluno(a) receberá o
valor de dois passes municipais por dia útil com valor vigente em Campinas
147
AE* Bolsa auxílio Moradia 1544 705
AE* Prédio Moradia Estudantil
(PME) - 1191
AE* Bolsa Atividade/Bolsa
auxílio social103
184 1364
AE* Bolsa Permanência 235 -
AE* Bolsa Auxílio Estudo e
Formação - 50
AE* Bolsa Emergência - 344
AE* Bolsa Auxílio Social
Iniciação Científica - 280
AE* Bolsa Auxílio instalação - 200
TOTAL AE* 3.913 4684
*AE: Assistência estudantil com base no perfil socioeconômico do(a) estudante
Elaboração própria. Fontes: Anuário estatístico Unicamp 2017 (base 2016); www.saewiki.sae.unicamp.br;
UFSCar em números 2017 (base 2016)
O quadro apresentado mostra que em relação à assistência estudantil, as duas
universidades contam com um número significativo neste quesito. A Unicamp é uma
universidade que se destaca no cenário pelos tipos e quantidades de assistência oferecidas a
partir de critérios socioeconômicos, no entanto, ela só fica à frente da UFSCar em números
absolutos quando são somadas as vagas disponíveis no Prédio da Moradia Estudantil. Se
fossem considerados apenas as bolsas, a UFSCar estaria à frente com 3913 bolsas oferecidas,
contra 3493 oferecidas pela Unicamp. Além disso, se, de forma grosseira, dividíssemos o total
de assistência estudantil oferecida por uma e outra Universidade pelo número do total de
estudantes, a UFSCar conseguiria atender 15,5% do total de matriculados, enquanto a
Unicamp atenderia 12,9%.
Importante destacar que a ausência de uma moradia estudantil na UFSCar faz
parte do seu projeto de criação nos idos de 1968 no qual, dentre outras coisas “decidiu-se que
não haveria área residencial dentro do campus” (SGUISSARD, 1993, p. 129). Era o auge da
Ditadura Militar e aglutinar estudantes em um mesmo espaço de convivência não poderia ser
algo interessante ao regime.
103 Na UFSCar a Bolsa atividade tem como objetivo fornecer auxílio financeiro, prioritariamente ao estudante
ingressante, de modo a subsidiar sua manutenção, permanência e conclusão de curso de graduação presencial,
integrando-o às atividades acadêmicas e administrativas da Instituição. O recebimento da bolsa-atividade e a
participação nas atividades acadêmicas e administrativas não estabelecem vínculo de natureza empregatícia com
a UFSCar. Na Unicamp, na Bolsa auxílio social o/a estudante realiza atividades em projetos dentro de diversas
áreas da Universidade, devendo cumprir 60h mensais (15h semanais), sempre com a orientação (professores,
coordenadores ou outros profissionais das unidades da Unicamp) e recebe R$678,81 (valor em 2017), mais
alimentação (3 refeições/dia nos RUs), mais o valor correspondente a 2 vales-transportes. Ambas as bolsas
(UFSCar e Unicamp) são atribuídas com base em critérios socioeconômicos.
148
Estes dados referentes à assistência estudantil são importantes nesta pesquisa
porque pensar em políticas públicas de ação afirmativa, passa também por pensar em como
garantir a permanência dos estudantes incluídos, a fim de que a inclusão se torne uma política
de fato eficaz. Assim, para efetivar a inclusão, pensar a permanência é essencial e não se
encerra nas bolsas de auxílio financeiro, ou seja, na permanência material. Compreendemos
que a permanência abarca ainda as condições simbólicas de existência na Universidade, a
“Permanência Simbólica” conforme nos aponta Santos (2009, p. 71). Para a autora a
permanência traz “uma concepção de tempo que é cronológica (horas, dias, semestres, anos) e
outra que é a de um espaço simbólico que permite o diálogo, a troca de experiências e a
transformação de todos e de cada um” (idem, p. 68).
A permanência material é importante porque ela visa garantir a possibilidade dos
estudantes vivenciarem a universidade em sua plenitude, sem que precisem trabalhar, pois
neste caso, a falta de tempo suficiente para a dedicação exclusiva aos estudos, leituras de texto
e realização dos trabalhos acadêmicos, contribui para alguns resultados insuficientes e atrasos
durante o curso. “Pode-se afirmar seguramente que estes estudantes-trabalhadores terminam
excluídos; não pertencendo às inúmeras atividades que propiciam a imersão na nova cultura”
(SANTOS, 2009, p. 73).
Neste sentido, para as universidades federais foi lançado em 2013 o Programa
Bolsa Permanência104
que concede auxílio financeiro a estudantes das instituições federais em
situação de vulnerabilidade socioeconômica, e para estudantes indígenas e quilombolas, com
objetivo de minimizar as desigualdades sociais e contribuir para a permanência e a
diplomação dos estudantes de graduação. O valor estabelecido pelo Ministério da Educação é
equivalente ao praticado para as bolsas de iniciação científica (R$400,00). Esta bolsa tem a
vantagem de ser acumulável com outras modalidades de bolsas acadêmicas. Como foi
possível observar no quadro anterior, a UFSCar conta com 235 Bolsas Permanência.
No entanto, além da permanência material, é preciso haver uma política de
permanência simbólica, que garanta que os estudantes ao ingressarem à universidade se
integrem a todo o ambiente acadêmico, com direito à experiência universitária em todos os
seus âmbitos, garantindo a sobrevivência no sistema de ensino superior. Isto porque os
104 No 1º semestre de 2018 o Governo Temer interrompeu novas bolsas do Programa Bolsa-Permanência para
cerca de 2.500 calouros indígenas e quilombolas de todo o país. O ministro da Educação, Rossieli Soares,
colocou que a nova proposta do Ministério é de apenas 800 novas bolsas para este ano (FOLHA DE SÃO
PAULO, 2018).
149
estudantes das classes populares que ingressam à universidade, em geral, são os primeiros de
suas famílias a entrar em um curso superior e ao chegarem no campus se deparam, muitas
vezes, com códigos que não lhe são conhecidos ou íntimos. Carvalho (2002105
apud
SANTOS, 2009, p. 77) explica que
Nossa academia, num país que quando interessa à elite é descrito como mestiço, se
imagina europeia. Tudo são imagens evocadoras do Ocidente Branco: as bibliotecas,
os auditórios, as línguas de prestígio, os lugares mitificados das biografias dos
grandes acadêmicos, etc.. para o universitário negro, ao stress de classe, soma-se o
stress racial.
Não se pode negar que a sociedade estabelece os meios de classificar as pessoas e
os códigos tidos como naturais para cada categorial e espaço social, estabelecendo, desta
forma, quais pessoas têm probabilidade de estar em determinado lugar e quais não. A
universidade, inserida neste contexto, não se difere deste sistema e, portanto, a entrada de um
“estranho” acaba por produzir relações tensas. A permanência simbólica precisa, portanto, ser
pensada para garantir e fortalecer a trajetória acadêmica de estudantes negros(as) e pobres
(SANTOS, 2009).
A garantia de permanência simbólica deve visar o rompimento com o preconceito
que transforma diferenças em desigualdades e que cria formas institucionais de inferiorizar, e
que deslegitima os grupos considerados subalternos nos processos de participação social. De
acordo com Amaral (2013, pp. 230-231)
Pensar o processo de democratização da universidade interpelando questões e
dilemas cruciais para ela exige nos debruçarmos teoricamente sobre as normas e
valores produzidos e reproduzidos na/pela universidade bem como sobre a
diversidade de atores sociais no seu interior que se relacionam e se contrapõe a esses
valores e normas. Análises sobre os processos de democratização da universidade
precisam revelar as dinâmicas de inferiorização social que ocorrem no seu interior e,
para além disso, os processos de politização e de reflexão dessas relações tomando-a
como objeto passível de (auto)reflexão e de (auto)crítica.
Neste sentido, entendemos que os Coletivos criados nas universidades após a
implementação das políticas públicas de ação afirmativa de inclusão apontam para a
politização dessas dinâmicas e para a emergência de lutas sociais de enfrentamento ao
preconceito e às hierarquias sociais reiteradas na/pela universidade, pois ao se apropriar do
discurso científico os militantes dos coletivos universitários entendem o potencial que ele tem
para legitimar ou não certos discursos e que interpelar a universidade envolve repensar suas
105 CARVALHO, J. J.. Exclusão racial na universidade brasileira: um caso de ação não negativa: In: QUEIROZ,
D. M.. [coord]. O negro na universidade. Programa a Cor da Bahia/ Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Salvador: Novos Toques, n.5, 2002
150
práticas, sendo a principal delas a produção do conhecimento. Amaral (2013, p. 255) explica
ainda que:
A emergência política de novos atores sociais acaba por fazer uma denúncia, política
e epistemológica, do histórico de desrespeito de certos grupos e o esforço para
romper com a reprodução e atualização dessas lógicas provenientes das normas que
perpassam as instituições de produção do conhecimento. Essa renovação reivindica
um novo tipo de comprometimento ético por parte dos sujeitos envolvidos com a
produção de conhecimento, o que faz emergir alguns pesquisadores preocupados
com os aspectos sociopolíticos de sua produção considerados como MILITANTE.
Entretanto, essa inserção não se dá sem conflitos. Alas mais tradicionais e/ou
conservadoras da produção acadêmica não encaram essa renovação como científica,
mas a desqualificam taxando-a, pejorativamente, como MILITANTES. Sustentadas
por uma visão de ciência neutra e objetiva, essas correntes enxergam essa produção
como cientificamente ilegítimas. Importante ressaltar aqui que um pesquisador
engajado ou MILITANTE, não é aquele que, necessariamente, milita em algum
grupo ou movimento social (ainda que essa possibilidade se coloque). Fazer ciência
comprometida ou MILITANTE, requer pensar a produção científica como um
instrumento de manutenção, de questionamento ou de construção de um
posicionamento alternativo em relação às desigualdades sociais.
Nesta perspectiva, levantamos os coletivos universitários criados na UFSCar e
Unicamp que têm como pauta a questão étnico-racial, os quais apresentamos no quadro a
seguir.
Quadro 3 – Coletivos atuantes nas IES e seus propósitos
Coletivo Sobre
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Café das Pretas
Fundado em 10 de setembro de 2014. Coletivo formado por mulheres
negras de São Carlos- SP. Surgiu da necessidade de discutir temas que
englobam a vivência de ser mulher e negra na sociedade.
Centro de Culturas
Indígenas
O CCI (Centro de Culturas Indígenas) é composto pelos estudantes
universitários indígenas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
que buscam sua autonomia e lutam por seus direitos e melhorias dentro e
fora da universidade, de forma que favoreça a permanência dos estudantes
indígenas no meio acadêmico.
Frente negra – São
Carlos
Construção de uma frente única de estudantes e coletivos negros em São
Carlos. Unificação da Força na luta antirracista.
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Núcleo de
Consciência Negra
da Unicamp
Fundado no final de 2012, pela iniciativa de estudantes que impulsionaram a
organização das atividades no mês da Consciência Negra, realizadas em
conjunto com outros setores da Unicamp.
A partir desta mobilização, foi possível articular vários grupos organizados
da comunidade negra, dentro e fora da universidade, para promover a luta
racial, a partir do acúmulo de uma série de conquistas do movimento negro e
da necessidade de propiciar um espaço de politização das relações raciais no
Brasil. Tem como principal objetivo a construção de uma luta conjunta entre
estudantes, professores e funcionários da Unicamp e movimentos sociais
contra opressão rumo à conquista das bandeiras históricas do movimento
negro tais como: fim do genocídio da juventude negra, igualdade de
oportunidades no mundo do trabalho, valorização das contribuições da
cultura afro-brasileira para a formação da cultura nacional, reconhecimento
da dívida histórica com o povo negro decorrente dos crimes cometidos no
período da escravidão. Busca ainda criar espaços de sociabilidade para o
151
estudante negro da Unicamp, compreendendo que o racismo instituído
segrega, hostiliza e ataca diariamente a autoestima destes estudantes.
Frente Pró-cotas da
Unicamp
Fundação em 30 de julho de 2012. Tem como objetivo enegrecer o debate
sobre o acesso dxs negrxs ao ensino superior público, pautando a reparação
histórica e a luta de classes.
Elaboração própria. Fonte: rede social (facebook)
A data de criação dos coletivos apresentados106
mostra que todos foram criados no
período pós políticas públicas de ação afirmativa de inclusão no ensino superior, o que aponta
indícios para comprovar a nossa hipótese de que as PPAAs causam efeitos no meio
acadêmico, uma vez que estes coletivos trazem novos debates e reflexões, além de disputar,
muitas vezes, as pautas políticas das universidades.
A pesquisa empírica foi realizada por meio de questionário on line107
aos
integrantes dos Coletivos, como também com algumas entrevistas. Este levantamento buscou
conhecer pessoal e academicamente os integrantes, como também a atuação do coletivo na
universidade, ou seja, o questionário108
, além de traçar o perfil pessoal e socioeconômico dos
integrantes dos Coletivos, desvela suas percepções pessoais acerca da adaptação e
permanência no curso e na universidade; quais atividades acadêmicas participam; se e quais
pesquisas realizam; se já enfrentaram situações de racismo e, se o como, o coletivo auxiliou
nesta situação; quais as pautas defendem, se promovem a discussão de Histórias e Culturas
Africanas, afro-brasileiras e indígenas a fim de romper com a exclusividade da tradição
eurocêntrica, caminhando para uma perspectiva decolonial.
O questionário foi enviado por meio dos grupos virtuais dos Coletivos – Café das
Prestas; Centro de Culturas Indígenas; Frente Negra da UFSCar; e à Frente Pró-Cotas
Unicamp “Núcleo da Consciência Negra da Unicamp” – disponíveis em rede social virtual.
Nos coletivos da UFSCar o questionário foi disponibilizado em dois momentos,
devido ao baixo número de respostas que tivemos na primeira tentativa. Os dois envios
alcançaram 76 pessoas (63 na primeira tentativa e 13 na segunda), o que resultou em um total
de 18 (dezoito) respondentes, com 11 (onze) questionários finalizados, ou seja, respondidos
106 Não encontramos a data de criação do Centro de Culturas Indígenas, mas as atividades apresentadas na página
iniciaram no ano de 2015 com a organização da I Semana de Estudantes Indígenas da UFSCar.
107 Utilizamos a plataforma www.encuestafacil.com que proporciona um relatório de resultados que abarca, além
dos resultados obtidos nas respostas, a data e horário em que o participante iniciou a responder o questionário, a
que finalizou e também a de abandono, quando for o caso. Permite ainda verificar o IP de onde foi respondido
cada questionário, o que garante maior segurança no tocante à participação não repetida de um mesmo
respondente. 108
Disponível no Apêndice 1
152
integralmente até o final. As imagens a seguir ilustram as respostas ao longo dos períodos.
Nos Coletivos da Unicamp, o questionário ficou disponível 26/06/2018 a
13/07/2018 e alcançou 158 pessoas, no entanto, o índice de resposta foi baixo, com 17
respondentes, dos quais apenas 8 responderam a todas as perguntas. A seguir é possível
observar o diagrama de respostas durante o período.
A fim de complementar e enriquecer a análise utilizamos também dados
disponíveis nos Grupos Virtuais, tais como: postagens e interações entre os membros que se
mostrem relevantes para compreender a práxis, ou seja, o “agir e refletir sobre o mundo a fim
de modificá-lo” (HOOKS, 2017, p. 26) dos Coletivos pesquisados. A busca de dados nos
Grupos nos traz a potência do registro histórico das movimentações, acontecimentos, eventos
e discussões, ou seja, tem a potência da história que nos interessa, da história dos
“subalternos” (SPIVAK, 2010) a quem nos interessa garantir a fala.
Ao encontro do que nos coloca Gomes (2017), reconhecemos a força desses
Coletivos como movimentos sociais e, especificamente como Movimentos Negros Brasileiro,
nas lutas emancipatórias e pela democracia, além da produção engajada da intelectualidade
negra que se coloca contra os processos de colonização incrustrados na América Latina e no
mundo e indagam a primazia da interpretação e da produção eurocentrada de mundo e do
conhecimento científico
A seguir apresentaremos as análises realizadas a partir dos documentos,
questionários e entrevistas acerca das universidades e coletivos investigados.
Figura 3 – Diagrama de respostas ao questionário - UFSCar
Figura 4 - Diagrame de respostas ao questionário - Unicamp
153
4.1. UFSCar
A história da criação da UFSCar que apresentaremos nas linhas a seguir nos é
desvelada por Sguissard (1993) que ocupou-se em recuperar a origem e trajetória da
instituição porque registrar, analisar e avaliar os caminhos percorridos por uma instituição, de
seu nascimento à encruzilhada de suas crises109
, pode ajudar a compreender e a superar os
críticos impasses de sua existência e ainda auxiliar a planejar o seu futuro.
A data oficial de nascimento da UFSCar é 22 de maio de 1968, no entanto, até que
se chegasse a este momento, foram oito anos de articulações políticas iniciadas na Ordem do
dia da 8ª Reunião Ordinária da Comissão de Educação e Cultura, realizada em 25/08/60 em
que, dentre outros, estava o Projeto n. 2007-60 que propunha a federalização da Universidade
da Paraíba e também propunha, na Emenda 6, a criação da Universidade Federal de São Paulo
de autoria do deputado Lauro Monteiro da Cruz (médico, pastor presbiteriano e deputado
federal pela UDN e ARENA).
O Projeto em questão (n. 2007-60) transformou-se na Lei 3.835 sancionada pelo
presidente Juscelino Kubitscheck em 13 de dezembro de 1960. Lauro Cruz transformou a
Emenda 6 nos artigos 11, 12 e 13 e parágrafos que determinavam que:
Art 11. Fica criada a Universidade Federal de São Paulo (U.F.S.P.) com sede na
cidade de São Carlos, Estado de São Paulo, e que será integrada no Ministério da
Educação e Cultura. Parágrafo único. A Universidade terá personalidade jurídica e gozará de autonomia
didática, financeira, administrativa e disciplinar, na forma da lei. Art 12. A universidade compor-se-á dos seguintes estabelecimentos de ensino
superior. (Revogado pela Lei nº 4.421, de 1964) a) Escola Paulista de Medicina (Lei nº 2.712, de 21 de janeiro de 1956); (Revogado
pela Lei nº 4.421, de 1964) b) Escola de Engenharia de São Carlos (Decreto nº 41.797, de 8 de julho de
1957); (Revogado pela Lei nº 4.421, de 1964) c) Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (Decreto número 45.776,
de 13 de abril de 1959); (Revogado pela Lei nº 4.421, de 1964) d) Faculdade de Farmácia e Odontologia de Araçatuba (Decreto número 41.557, de
22 de maio de 1957); (Revogado pela Lei nº 4.421, de 1964) e) Faculdade Municipal de Ciências Econômicas de Santo André (Decreto nº
42.706, de 29 de novembro de 1957). (Revogado pela Lei nº 4.421, de 1964) Parágrafo único. São transformados em estabelecimentos federais de ensino superior
os estabelecimentos referidos nas letras b e e dêste artigo, sem ônus para a União e
mediante a incorporação ao patrimônio desta dos bens imóveis em que funcionam as
escolas, de propriedade do Govêrno do Estado de São Paulo e da municipalidade de
Santo André, Estado de São Paulo, bem como suas atuais instalações. (Revogado
pela Lei nº 4.421, de 1964) (BRASIL, 1960).
109 Sguissard publicou o livro em 1993 período em que os governos (anos 80 e 90) priorizaram a privatização na
política universitária.
154
Após sancionada essa lei, foram oito anos de luta pela implantação da
Universidade até que em 22 maio de 1968, no auge da ditadura militar, Costa e Silva assinou
o Decreto 62.758 que autorizava a instituição da 4ª universidade sob o regime, a Fundação
Universitária Federal de São Carlos, responsável pela instalação e manutenção da
Universidade do mesmo nome.
Art. 1º. É autorizada a instituição da Fundação Universidade Federal de São Paulo,
que terá por objetivo instalar progressivamente e manter na forma estabelecida neste
decreto, a Universidade Federal de São Paulo (UFSP), criada pela Lei nº 3.835, de
13 de dezembro de 1960 (art. 11).
Art. 2º. A fundação, com sede e fôro na cidade de São Carlos, Estado de São Paulo,
gozará de autonomia didática, financeira, administrativa e disciplinar, de acôrdo
com a Lei número 4.024 de 20 de dezembro de 1961, e adquirirá personalidade
jurídica a partir da inscrição de seu ato constitutivo no registro civil das pessoas
jurídicas, do qual serão partes integrantes o estatuto e o Decreto que o aprovar.
[...]
Art. 8º. A Universidade será constituída de um ou mais "campus", situados em
cidades diferentes e integradas por institutos básicos de ensino e pesquisa, e por
faculdades destinadas à formação profissional, cabendo:
I - aos institutos:
a) ministrar cursos básicos de ciências, letras e artes;
b) fornecer pesquisadores especialistas; e
c) realizar cursos de pós-graduação, estudos e pesquisas, nas respectivas
especializações; e
II - às faculdades:
a) ministrar cursos de graduação, para formação profissional e técnica;
b) realizar cursos de especialização e pós-graduação;
c) realizar estudos e pesquisas nas respectivas áreas de trabalho.
§ 1º O primeiro núcleo universitário, com "campus" próprio, será instalado
progressivamente no Município de São Carlos, sede da Fundação e da Universidade
(BRASIL, 1968).
Assim a FUFScar foi a única entre as 19 universidade fundacionais federais a
nascer via decreto, o que, do ponto de vista jurídico, somente poderia acontecer mediante
norma legislativa votada pelo Congresso Nacional.
Um primeiro desafio imposto era a ideia de uma universidade multicampi, o que
só veio a se consolidar 20 anos depois, em 1991, quando houve a incorporação do campus de
Araras/SP – ex-Instituto do Açúcar e do Álcool), portanto, durante a criação da nova
universidade voltou-se à ideia de professores como Sérgio Mascarenhas que defendia “uma
universidade pequena de alta qualidade [...] e revolucionária, no sentido da pesquisa e do
ensino” (SQUISSARD, 1993, p. 131).
Em fevereiro de 1969, o presidente Costa e Silva aprovou o Estatuto da Fundação,
o qual constituiu-se como o mais autoritário na história recente da universidade brasileira. Em
outras, palavras, buscou-se uma instituição que servisse à população de São Carlos e do
155
Estado, sim, mas, porque conquistada e garantida pelas ações do grande político-empresário e
aliado das forças que sustentaram o regime militar-autoritário, que pudesse servir
“legitimamente” aos seus interesses. Assim, o reitor e vice-reitor deveriam ser eleitos pelo
Conselho de curadores da Universidade.
Diferente da História da Unicamp, como se verá logo a frente, a UFSCar nasceu
sem a incorporação de unidades pré-existentes, sem campus, sem prédios, sem laboratórios e
sem reitor, ou seja, não possuía um projeto de universidade bem definido e orgânico, uma vez
que atendia a interesses particularmente políticos e empresariais. Neste contexto, o Conselho
de Curadores tinha o caráter de Conselho Universitário e deveria elaborar uma lista sêxtupla
com nomes de possíveis reitores a ser escolhido pelo Presidente da República. De tal forma,
em 16 de Agosto de 1970, o prof. Heitor Gurgulino de Souza foi nomeado reitor, tomando
posse em Brasília em 20 de setembro do mesmo ano.
O Projeto de Implantação da Universidade previa que a ela deveria atuar no
campo científico-tecnológico, de forma criadora a fim de responder à demanda social por uma
tecnologia de ponta, autônoma, com o cunho da multidisciplinaridade, por meio da pesquisa,
formando profissionais com qualificação nos níveis de mestrado e doutorado, como de cursos
de extensão, procurando interagir com o complexo industrial avançado; Chegou-se até a
cogitar a hipótese da implantação somente de cursos de pós-graduação, ideia que foi
abandonada, levando seis anos para ser implementada. A outra linha marcante nas diretrizes
era a predisposição para atuar a fim de resolver o problema do ensino secundário, o que é
expresso no Decreto de criação que previa uma Faculdade de Educação que deveria incluir
obrigatoriamente cursos de pós-graduação em administração escolar.
Os primeiros cursos da UFSCar se iniciam dois anos após a sua criação, em 1970,
com 50 vagas para a Licenciatura em Ciências e também 50 vagas para o Bacharelado em
Engenharia de Ciências de Materiais, área pioneira no país. “O prof. Mascarenhas, alguns
anos antes da implantação definitiva da UFSCar, via a criação dessa universidade como uma
oportunidade rara de pôr em prática muitas das idéias consideradas avançadas à época nessa
área” (SGUISSARD, 1993, p. 154).
No segundo semestre de 1970 começaram a ser definidos os novos cursos para
início em 1971, com a preocupação de não criar cursos que se sobrepusessem aos existentes
na Universidade de São Paulo, campus São Carlos. Assim discutiu-se sobre a criação de seis
cursos: Licenciatura em Matemática; Licenciatura em Biologia; Curso de Língua Portuguesa;
Licenciatura em Física; Licenciatura em Química e Curso de Pedagogia; mas apenas os três
156
últimos foram implantados a partir de 1971.
O Conselho de Curadores da FUFSCar detinha o poder da universidade e exercia
o papel de “Comissão Organizadora da Universidade” sendo, portanto, o responsável pela
elaboração do Estatuto da UFSCar em 1972. O estatuto previa um Conselho Universitário,
mas este estava subordinado ao Conselho de Curadores da Fundação para decisões como:
aprovação da elaboração do Regime Geral; Orçamento interno etc.. Como a criação dos
órgãos colegiados da Universidade dependiam do Conselho de Curadores da FUFSCar, os
colegiados superiores, dentre eles, o Conselho Universitário da UFSCar, somente passam a
funcionar a partir de 1978.
As marcas do autoritarismo na UFSCar começam a se esfacelar no segundo
semestre de 1984, quando houve a consulta à comunidade universitária para a composição da
lista sêxtupla para Reitor, sendo nomeado, Munir Rachid, o primeiro desta lista por ordem de
votos. A nomeação do vice-reitor seguiu a mesma lógica, sendo eleito e nomeado o Prof.
Sebastião. Em 1988 a consulta e nomeação de reitor e vice-reitor passou a acontecer na forma
de “equipe”, como se chamou à época.
Em 1991 foi aprovado o novo Estatuto da Fundação que significou a conquista da
autonomia universitária, encerrando finalmente os conflitos de competências entre a Fundação
e a Universidade. A partir de 1992 a Universidade Federal de São Carlos passou a elaborar
planos estratégicos, para períodos de quatro anos, com a participação da comunidade
universitária.
A partir de então os horizontes da Universidade se alargaram na busca de atuação
em outras áreas que não as escolhidas de início, e com intenção de atingir os vários segmentos
da sociedade e não mais preferencialmente aqueles vinculados ao complexo industrial
(UFSCAR, 2002). No Plano de Desenvolvimento Institucional aprovado no ano de 2004,
foram incluídas Diretrizes para a ampliação, acesso e permanência na Universidade, dentre as
quais:
Desenvolver e apoiar ações que ampliem as oportunidades de acesso e permanência
dos estudantes na universidade e contribuam com o enfrentamento da exclusão
social.
Buscar o pleno aproveitamento da capacidade já instalada na UFSCar na ampliação
do acesso à Universidade.
Buscar a garantia da permanência a estudantes sem condições financeiras na
Universidade, através de políticas e infra-estrutura que atendam a toda a demanda
(UFSCAR, 2004, p. 29).
A fim de cumprir com essas Diretrizes, em maio de 2005, o Conselho
157
Universitário instalou a Comissão de Ações Afirmativas (CAA)110
, com o objetivo de
formular propostas para um Programa de Ações Afirmativas na UFSCar. A Comissão
organizou eventos para subsidiar os debates e estudos sobre as implicações políticas, sociais e
jurídicas das ações afirmativas, apresentando a primeira Proposta de Programa de Ações
Afirmativas para a UFSCar, em abril de 2006.
Essa proposta previa a criação de um sistema de reserva de vagas para alunos que se
submetessem ao exame vestibular, com 50% das vagas de todos os cursos da
UFSCar destinadas a alunos que tivessem cursado integralmente todo o ensino
médio no sistema público de ensino; destes 50%, 46% das vagas reservadas seriam
destinadas a candidatos afro-descendentes e indígenas. O objetivo desta proposta
preliminar foi promover consulta aos diferentes segmentos e instâncias da
comunidade universitária, a fim de que o Programa de Ações Afirmativas da
UFSCar, a ser submetido aos órgãos superiores, representasse expectativas e
proposições da comunidade (UFSCAR, 2006, p. 04).
Com as sugestões enviadas pela comunidade acadêmica, a Comissão elaborou
uma segunda Proposta, que tinha como diferença substancial o escalonamento da implantação
e o percentual reservado às pessoas negras. A nova Proposta foi encaminhada ao Conselho de
Ensino e Pesquisa (CEPE) e ao Conselho Universitário (ConsUni). Em 7 de julho de 2006 o
CEPE decidiu prorrogar até novembro a discussão sobre a Proposta de PAA sob a justificativa
de uma demanda da comunidade acadêmicas por mais debates sobre o tema.
A Comissão, empenhada em informar e subsidiar a discussão, promoveu uma
série de atividades entre agosto e outubro, com destaque para o ciclo “UFSCar debate Ações
Afirmativas” que ocorreu durante uma semana inteira de setembro. Além disso, a Comissão
reuniu e disponibilizou na página da UFSCar estudos produzidos por pesquisadores sobre as
questões relativas a ações afirmativas e reserva de vagas. Uma nova consulta sobre a Proposta
mostrou que uma parte significativa da comunidade apoiava integralmente o Programa
apresentando; outra parte, também significativa, concordava com o Programa de Ações
Afirmativas, mas discordava da sua abrangência para negras e indígenas; e uma terceira parte,
minoritária, foi contrária à quase totalidade do Programa apresentado. Diante disto, foi
elaborada e aprovada em deliberação conjunta do Conselho Universitário com o Conselho de
Ensino, Pesquisa e Extensão, em dezembro de 2006, a Proposta implementada111
a partir de
110 A comissão teve como integrantes: Prof.ª Dra. Maria Stella Coutinho de Alcântara Gil, Prof.ª Dra. Petronilha
Beatriz Gonçalves e Silva, Prof. Dr. Francisco José da Costa Alves, Prof. Dr. Valter Roberto Silvério, Prof.ª Dra.
Tânia Maria Santana de Rose, Prof.ª Dra. Lúcia Maria de Assunção Barbosa, o estudante de pós-graduação
Danilo de Souza Morais e o estudante de graduação Joéverson Evangelista, assistente em administração Andrea
Ferreira Palhano de Jesus. 111 Implantada oficialmente pela Portaria GR nº 695/07
158
2008. Esta tinha como Princípios e Objetivos:
Princípios 1. Afirmação do atendimento plural pelas instituições públicas federais de ensino
superior à diversidade da sociedade brasileira.
2. Correção de desigualdades sociais e étnico-raciais, tendo em vista a vocação da
UFSCar para a qualidade acadêmica, o compromisso social e a ousadia.
Objetivos
1. Implantar um sistema de reserva de vagas para ingresso na instituição, que
contemple o critério sócio-econômico e o critério étnico-racial;
2. Ampliar as ações institucionais existentes que garantam as condições de
permanência e sucesso acadêmico de todos os alunos da UFSCar, por meio de um
Programa de Apoio Acadêmico aos alunos de graduação, de modo a atender as
necessidades dos estudantes;
3. Implantar um sistema de avaliação do Programa de Ações Afirmativas (UFSCAR,
2006, pp.12-13).
A Proposta previa uma progressão trienal no percentual reservado para egressos
do ensino médio de escolas públicas e de escolas indígenas começando com 20% do tal de
vagas no triênio que compreende 2008 a 2010; 40% de 2011 a 2013, 50% de 2014 a 2016. Em
todos os triênios, dentro do percentual reservado, 35% das vagas (% referente à proporção da
população negra no Estado de São Paulo) eram reservadas para pessoas negras e foi
adicionada uma vaga em cada curso para indígenas (UFSCAR, 2006). O critério de “baixa
renda” foi adicionado somente a partir da Lei de Cotas (Lei 12.711/12), em 2012 (UFSCAR,
2016).
O ingresso de indígenas, para ocupar a vaga adicional em cada um dos cursos de
graduação da UFSCar, é realizado desde o ano de 2008 por meio do vestibular indígena
destinado exclusivamente a candidatos(as) das etnias indígenas do Brasil que tenham cursado
o Ensino Médio integralmente na rede pública e/ou escolas indígenas reconhecidas pela rede
pública de ensino. Até 2014 o vestibular indígena era aplicado apenas no campus da UFSCar
em São Carlos, nos anos 2015 e 2016 foi aplicado em quatro capitais: Cuiabá (MT), Recife
(PE), Manaus (AM)) e São Paulo (SP). A partir de 2017 (ingresso 2018) a prova não será
realizada em Manaus, mantendo-se nas outras três capitais.
A prova do exame indígena é realizada em uma única etapa com avaliações
compostas por questões objetivas de múltipla escolha sendo 14 de Linguagens e Códigos; 12
de Ciências da Natureza; 12 de Matemática; 12 de Ciências Humanas e uma Redação. Apenas
para concorrer ao curso de Licenciatura em Música é necessária ainda a realização de uma
Prova de Conhecimento e habilidade em Música, a ser realizada na UFSCar, campus São
Carlos.
Além da reserva de vagas e do vestibular indígena, a Proposta previu também a
159
ampliação de apoio institucional visando oferecer condições de permanência e sucesso
acadêmico. Assim, moradia estudantil; restaurante universitário; assistência médica e
odontológica ambulatorial; bolsa atividade e alimentação; apoio pedagógico; espaços
acadêmicos de convivência da diversidade; promoção da educação das relações étnico-raciais
a estudantes, docentes e servidores, nos diferentes âmbitos da vida universitária foram
medidas tomadas a fim de garantir permanência material e simbólica no curso e na
universidade.
A comunidade negra são-carlense e de estudantes da UFSCar, notadamente
negros e negras, tiveram papel fundamental porque despertaram discussões e apresentaram
propostas a órgãos superiores da Universidade, a fim de possibilitar o ingresso de maior
número de estudantes negros(as). A existência do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros
(NEAB112
), desde 1991, também foi importante porque criou condições com projetos,
dissertações, teses e articulações locais, nacionais e internacionais para que as propostas
pudessem se articular e serem apresentadas, resultando na política de cotas implementada em
2008 pela UFSCar (UFSCAR, 2016).
Outro fato a se destacar na História da UFSCar foi sua adesão ao Programa de
Apoio e Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI113
, no
ano de 2008, o que resultou na ampliação de vagas na graduação em 16 cursos já existentes e
a criação de 20 novos cursos, totalizando 1012 novas vagas.
Em relação ao vestibular, Sguissard (1993) revela que a UFSCar realizou suas
primeiras provas de processo seletivo para a graduação em fevereiro de 1970, no entanto não
detalha as características destas. O Plano de Desenvolvimento Institucional de 2004 informa
que, ao longo dos anos, os exames vestibulares foram bastante diversificados, buscando
sempre o seu aprimoramento. Assim, o vestibular, que até 1999, era realizado pela FUVEST,
a partir do ano 2000 passou a ter um processo seletivo exclusivo, realizado pela Vunesp
(UFSCAR, 2003).
O vestibular aplicado para ingresso na UFSCar, via Fundação Vunesp até o ano de
112 O Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de São Carlos foi criado em 1991, por
iniciativa de professores, estudantes, servidores e de militantes do Movimento Negro da cidade de São
Carlos/SP. Desde sua criação o NEAB tem desenvolvido atividades de pesquisa, ensino e extensão.
113 O REUNI foi instituído pelo Decreto nº 6.096 de 24 de Abril de 2007 na gestão do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e tinha como objetivo criar condições para a ampliação do acesso e permanência na educação
superior, no nível de graduação, pelo melhor aproveitamento da estrutura física e de recursos humanos existentes
nas universidades federais.
160
2009114
era realizado em uma única fase dividida em três dias; com provas com duração de 4
horas, organizadas da seguinte forma: 1º dia: Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Redação,
contendo 16 questões objetivas, 12 questões dissertativas e uma proposta de redação; 2º dia:
Química, Matemática e História e, 3º dia: Biologia, Física e Geografia. Nos 2º e 3º dias as
provas eram compostas por 30 questões objetivas e 15 discursivas.
No ano 2010, a UFSCar dividiu o seu exame vestibular em duas fases, tendo o
ENEM como a primeira, e a segunda composta por duas provas, realizadas em dois dias, com
duração de 4h30m cada. A prova do primeiro dia era composta por conteúdos de Matemática,
Língua Inglesa, Língua Portuguesa com 15 questões discursivas, mais uma proposta de
Redação. No segundo dia, 25 questões discursivas, avaliavam os conhecimentos sobre
História, Geografia, Física, Química e Biologia.
Ainda no ano de 2010, em junho, o Conselho Universitário da UFSCar decidiu
abandonar o vestibular próprio e adotar o Sistema de Seleção Unificado (SiSU115
) como
forma de seleção para o ingresso nos cursos de graduação já em 2011. O Reitor da
Universidade à época, Targino de Araújo Filho, destacou a importância da decisão do
Conselho e reiterou que ela representa um avanço para democratização do acesso ao Ensino
Superior público e de qualidade.
"A nossa participação no SiSU faz com que a UFSCar esteja acessível a estudantes
de todo o País. No modelo de vestibular próprio as provas eram realizadas em doze
cidades. Com o SiSU apoiado na realização do Enem, nós vamos possibilitar que
estudantes de todo o País participem do processo seletivo" enfatizou o Reitor, que
aponta também que a participação da UFSCar no Sistema está respaldada nos bons
resultados que o SiSU já tem apresentado (SACI UFSCAR, 2010).
Apresentar esta trajetória do vestibular é importante porque, embora ele não seja o
início, é um marco importante para a exclusão ou inclusão no ensino superior, uma vez que,
dificuldades como o pagamento da taxa de inscrição116
, deslocamento para realização das
provas e até mesmo o formato da prova, são elementos que podem excluir estudantes
desfavorecidos por um processo denominado autoexclusão, ou seja, situação em que o(a)
estudante não chega a se inscrever para o vestibular por não se sentir capaz e/ou não ter
114 Não encontramos dados sobre o vestibular da UFSCar quando o mesmo estava sob responsabilidade da
FUVEST. Os dados sobre o vestibular, quando este era realizado via Vunesp, são escassos. Nossa busca
encontrou as provas aplicadas a partir do vestibular 2000 (vestibular de verão para ingresso no 1º semestre de
2000), que nos permitiu explicar a configuração da prova no período de 2000 a 20009, conforme consta no texto. 115
O Sisu é o sistema Informatizado do Ministério da Educação por meio do qual instituições públicas de ensino
superior oferecem vagas a candidatos participantes do ENEM de acordo com a sua classificação no exame.
116 Embora muitas universidades ofereçam isenção nesta taxa, nem todas as pessoas que precisam são atendidas,
e muitas não conhecem essa possibilidade.
161
Alunos de escola Pública
Renda ≤ 1,5 salário-mínimo per capta
Negros(as) e Indígenas
Renda > 1,5 salário-mínimo per capta
Negros(as) e Indígenas
Ampla concorrência
condições econômicas de participar do processo seletivo. Neste sentido, a UFSCar apresenta
uma trajetória que demonstra uma busca em tornar seu processo seletivo mais inclusivo, com
a adoção do SiSU como uma marca significativa neste processo, uma vez que o ENEM é
gratuito para todos os(as) estudantes do 3º ano de escolas públicas e é realizado em cerca de
1700 cidades brasileiras.
A Política de cotas, implantada na universidade em 2008, atingiu no ano de 2014
o percentual de 50% de reserva de vagas que a Lei 12.711/12 estabeleceu como meta para
implantação o ano limite de 2016, ou seja, a universidade reserva o mínimo de 50% do total
de vagas de cada curso para estudantes de escola pública, destas, o mínimo de 50% são para
estudantes com renda per capta inferior a 1,5 salário mínimo e destas últimas, 34,7% das
vagas destinadas a pretos(as) pardos(as) e indígenas (de acordo com as estatística
representativa da população negra no Estado de SP medida pelo IBGE). Destacamos o fato de
ser o mínimo de 50% porque em caso de cursos com número ímpar de vagas, a vaga
indivisível vai para o sistema de cotas. A imagem a seguir ilustra esta divisão em um curso
que oferece, por exemplo, 45 vagas.
Fonte: Portal do MEC
A seguir, apresentamos o gráfico que ilustra a evolução da inclusão de estudantes
oriundos de escolas públicas nos cursos de graduação da UFSCar.
Figura 5 - Sistema de reserva de vagas de acordo com a Lei 12.711/12
162
Gráfico 5 - Percentual de ingressantes na UFSCar de acordo com o tipo de Ensino Médio cursado (público
ou privado)
Elaboração própria. Fonte: Indicadores UFSCar 2003-2012, dados da política de cotas (2014).
Com a implementação da política de cotas no ano de 2008, o percentual de
ingressantes oriundos de escolas públicas começou a aumentar, alcançando em 2014 a meta
de 50% dos estudantes matriculados na UFSCar que cursaram o Ensino Médio em escolas
públicas.
A UFSCar deixou no passado a história de autoritarismo e, atualmente, assume
um compromisso com as diferentes realidades da sociedade brasileira da busca pela garantia
da equidade. Assim, considerou fundamental formalizar um espaço institucional para
formular propostas que contemplem as diferenças e diversidades da comunidade universitária,
garantindo que todos e todas se sintam respeitadas nas suas especificidades e atendidas nas
suas necessidades. Neste contexto, o Conselho Universitário aceitou a proposta de criação da
Secretaria Geral de Ação Afirmativa, Diversidade e Equidade (SAADE), oficializada por
meio da Resolução nº 809 de 29 de maio de 2015. A SAADE compreende um órgão de apoio
administrativo vinculado à Reitoria da universidade, responsável pelo estabelecimento e
implementação de políticas de ação afirmativa, diversidade e equidade para a UFSCar e
divide suas atividades em três coordenadorias: Coordenadoria de Inclusão e Direitos
Humanos (CoIDH); Coordenadoria de Relações Étnico-Raciais (coRE); Coordenadoria de
Diversidade e Gênero (CoDG).
32% 28% 27%
23% 22%
28%
34% 37%
45% 44% 50%
68% 72% 73%
77% 78%
72%
66% 63%
55% 56% 50%
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2014
EM público EM privado
163
Tendo em vista o objetivo do trabalho – analisar os efeitos das Políticas Públicas
de Ação Afirmativa na Universidade –, identificamos e buscamos compreender melhor os
movimentos estudantis criados após a implementação das PPAAs. Assim, levantamos três
Coletivos criados: Café das Pretas, Frente Negra – UFSCar e Centro de Culturas Indígenas e
aplicamos um questionário on line, conforme já apresentamos. No entanto, contamos com
respondentes apenas dos dois primeiros coletivos, não tendo sido possível avançar na
pesquisa sobre o Centro de Culturas Indígenas.
O perfil dos respondentes, quanto à raça/cor e gênero foi solicitado em uma
questão aberta uma vez que nosso interesse é captar a autopercepção individual de cada
pessoa, sem que esta tenha que buscar se encaixar em categorias pré-estabelecidas. Os 100%
dos respondentes (17) se autodeclararam como negros, no entanto, as subcategorias se
dividiram entre – preto/a/; negro/a; negro/a; pardo/a e africana da diáspora, conforme é
possível observar no gráfico abaixo
Gráfico 6 - Autoidentificação quanto ao gênero e raça/cor (17 respondentes)
Optamos por manter as subcategorias tais como apareceram117
, uma vez que não
encontramos sentido em garantir tal liberdade na resposta, para posteriormente enquadrá-las
117 Apesar de sabermos que “negros” referem-se a pretos e pardos, mantivemos as declarações tais como foram
apresentadas pelos respondentes..
Homem Pardo
6%
Homem Negro
23%
Mulher Parda (tez
clara)
12% Mulher Negra
41%
Mulher Preta
12%
Africana da
diáspora
6%
164
em moldes pré-estabelecidos. De tal modo, percebe-se que apesar de uma amostra 100%
autodeclarada negra, as pessoas têm percepções diferenciadas quanto a raça/cor. Em relação
ao gênero, além de se autodeclararem como mulheres, duas respondentes incluíram nas suas
respostas a orientação sexual: bissexuais. Outro ponto que nos chamou a atenção foi o fato de
duas respondentes colocarem em suas respostas o termo “cisgênero”. Isto porque esta
percepção demonstra um olhar ampliado para além da heteronormatividade, uma vez que
reconhece outras possibilidades de identidades de gênero.
O gráfico a seguir apresenta os dados referentes à escolaridades dos responsáveis
(divididos em responsável 1 e responsável 2). Obtivemos 17 respostas acerca da escolaridade
do responsável 1 e 15 respostas acerca do responsável 2.
Gráfico 7 - Escolaridade dos responsáveis (R1 17 respondentes e R2 15 respondentes)
Os resultados mostram que 41,2% dos responsáveis 1 concentram-se nas
categorias que vão de ensino fundamental incompleto a ensino médio incompleto, 41,2%
possuem ensino médio completo. Apenas 11,8% (2 respostas) possuem ensino superior
completo. No caso do/a responsável 2, 53,4% têm ensino fundamental incompleto ou ensino
médio completo. Apenas 20% possui ensino superior completo. Esses dados evidenciam a
entrada dos jovens que são 1ª geração no ensino superior.
Em relação a como se mantém na universidade, a maioria dos/as 14 respondentes
(32,1%), indicou que recebe auxílio financeiro da família, seguido de ¼ da amostra que conta
com os auxílios sociais da universidade. Apenas duas pessoas responderam que trabalham em
NF EF
incompleto
EF
completo
EM
incompleto
EM
completo
ES
incompleto
ES
completo
0,0%
29,4%
5,9% 5,9%
41,2%
5,9%
11,8%
0,0%
46,7%
0,0%
6,7%
13,3% 13,3%
20,0%
Responsável 1 Responsável 2
165
atividade sem relação com o curso. Na categoria “outra”, seis estudantes responderam
realizarem atividades diversificadas tais como: transcrição de entrevistas de outros
pesquisadores; participação no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência e
confecção de artesanatos; freelancer em eventos (2 respostas); bolsa em projeto de extensão e
auxílio financeiro do namorado.
Gráfico 8 - Fonte de renda durante o curso universitário – por categoria de fonte de renda (14
respondentes)
Em relação ao ano de ingresso, a maioria dos respondentes (8) ingressou a partir
de 2016 e dos 6 respondentes sobre o uso ou não da política de cotas, 5 afirmaram terem
utilizado-a em um ou mais dos critérios que se encaixavam, como é possível observar no
gráfico 10.
Gráfico 9 - Ano de ingresso na UFSCar (14 respondentes)
Trabalho meio período – em atividade sem relação
profissional com o curso
Trabalho período integral – em atividade sem relação
profissional com o curso
Estágio remunerado
Iniciação Científica financiada pela Capes, CNPq,
Fapesp ou outro órgão de fomente à pesquisa
Trabalho período integral – em atividade com relação
profissional com o curso
Outra (Por favor especifique)
Assistência Estudantil da Universidade
Auxílio financeiro da família
3,6%
3,6%
3,6%
7,1%
7,1%
17,9%
25,0%
32,1%
2
0
1
2
1
3 3
2
2011 ou
antes
2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
166
Gráfico 10 - Meio de ingresso na UFSCar (06 respondentes)
Quanto ao curso, a maioria dos respondentes (78,6%) é da graduação, dividindo-
se nos cursos de Ciências Sociais, Pedagogia, Medicina, Psicologia e Engenharia Física.
21,4% são estudantes da Pós-Graduação – mestrado em Antropologia Social e Pós-graduação
em Educação (sem identificação quanto ao nível).
Questionamos então se os respondentes tiveram, nas disciplinas obrigatórias do
Sim, como egresso/a de escola pública
Sim, como pessoa negra
Sim, como pessoa indígena
Sim, renda familiar per capta igual ou inferior a 1,5 salário
mínimo
Não utilizei o sistema de cotas
3
4
0
1
1
Pedagogia
23%
Ciência Sociais
31%
Psicologia
7%
Engenharia Física
8%
Mestrado em
antropologia social
15%
Medicina
8%
Pós-graduação em
Educação
8%
167
curso, alguma disciplina que abordasse a História e Cultura Africana, Afro-brasileira e/ou
Indígena (obrigatórias a partir das Leis 10.639/03 e 11.645/08) e apenas o curso de pedagogia
apresentou resposta afirmativa para a questão.
Quadro 4 – Presença de Disciplina com a temática de História e Cultura Africana, Afro-brasileira e
indígena (13 respondentes)
CURSO SIM NÃO
Pedagogia 3 0
Ciência Sociais 0 3
Psicologia 0 1
Engenharia Física não respondeu
Mestrado em antropologia social 0 2
Medicina 0 1
Pós-graduação em Educação 1 0
Interessante notar que a graduação em Pedagogia e a Pós-Graduação em Educação
foram os únicos cursos que, segundo os respondentes, contemplam as questões de História e
cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena cumprindo ao pressuposto pelo Parecer do
Conselho Nacional da Educação118
.
Sim. Em duas disciplinas. Uma obrigatória que antes de mudarem a grade está mais
próxima ao fim do curso e agora na nova colocaram no primeiro semestre (Didática
nas relações étnico-raciais) e uma optativa Infância, Raça e Cinema. Sei que tem
mais uma, mas ainda não fiz. (sujeito 3, graduanda em pedagogia, mulher, negra)
Tive aula de Literatura Africana de autoria feminina (Optativa) e de Literatura
africana de língua portuguesa (Obrigatória) (sujeito 17, pós-graduanda em
Educação, mulher negra)
Não contém! Para se ter a acesso a esses conteúdos deve se buscar em disciplinas
optativas (que são poucas) ou no Núcleo de Estudos Afro-brasileira (NEAB).
(sujeito 8, graduando em ciências sociais, homem negro).
Não tive disciplinas sobre história e cultura africana, apenas em antropologia temos
mais contato com a cultura indígena. (sujeito 9, graduanda em ciências sociais,
mulher negra).
118 De acordo com o documento, os sistemas de ensino e os estabelecimentos de Educação Básica, nos níveis de
Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, Educação Superior,
precisarão providenciar, dentre outros pontos, a inclusão, respeitada a autonomia dos estabelecimentos do Ensino
Superior, nos conteúdos de disciplinas e em atividades curriculares dos cursos que ministra, de Educação das
Relações Étnico-Raciais, de conhecimentos de matriz africana e/ou que dizem respeito à população negra. Por
exemplo: em Medicina, entre outras questões, estudo da anemia falciforme, da problemática da pressão alta; em
Matemática, contribuições de raiz africana, identificadas e descritas pela Etno-Matemática; em Filosofia, estudo
da filosofia tradicional africana e de contribuições de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade.
168
64,2% da amostra (14 respondentes) responderam que possuem vínculo com
pesquisa em diferentes níveis – iniciação científica (IC), trabalho de conclusão de curso
(TCC), mestrado ou doutorado. Destes, 55,6% (5 respondentes) desenvolvem pesquisa com
temática voltada para as questões relacionadas à raça, racismo e/ou relações étnico-raciais.
Gráfico 11 - Vinculação à Pesquisa (14 respondentes)
Os respondentes, além de indicarem o tema da pesquisa, também apresentaram as
dificuldades que encontram para desenvolvê-la como se pode observar a seguir:
[Pesquiso] Aquilombamento como política de permanência de estudantes
afrodescendentes no Ensino Superior. Escolhi essa pesquisa para mensurar de que
forma os Aquilombamentos (coletivos de iniciativa e liderança negra) podem
contribuir para o enfrentamento do epistemicídio presente nas universidades
brasileiras. A dificuldade que tenho enfrentado são as críticas devido a minha
escolha de não estar disposta a referenciar intelectuais brancos e europeus. Escolhi como epistemologia o Pan Africanismo e a Afrocentricidade [grifo nosso]
(sujeito 18, mulher, africana da diáspora, pós-graduanda em educação).
Meu tema de pesquisa é: "Representatividade negra nos cordéis: a literatura como
estratégia educativa" Penso que escrever sobre a temática racial, sendo negro,
permite uma conexão maior com os problemas sociais que nos afetam todos os dias,
analisando possíveis estratégias para acabar com eles. Além disso, estudar sobre
esse tema permite que eu construa uma base forte com minha identidade. Acho um
tema um tanto complexo (Sujeito 9, homem negro, graduando em Pedagogia).
Tema: Entender a tríade: família, preconceito racial e afeto. Escolhi esse tema
devido a admiração pelo trabalho da Lia Vainer Schucman. (sujeito 5, mulher negra,
graduanda em Psicologia)
Sim, IC; 22%
Sim, TCC; 14%
Sim, Mestrado;
21%
Sim, Doutorado;
7%
Não ; 36%
169
Pesquiso em meu TCC a temática da Afrocentricidade no campo da educação.
Escolhi esse tema devido a aproximação e vínculo com a perspectiva. No momento
não encontro dificuldades para desenvolver tal temática, devido a minha
orientadora ter aproximação com a temática (Sujeito 14, mulher parda,
graduanda em Ciências Sociais).
Trabalho com a representação da afetividade negra no romance de estreia da autora
Norte-Americana Toni Morrison. Passo por muitas dificuldades pois não tenho
bolsa, fiquei desempregada boa parte do curso, mudei de cidade para ampliar as
possibilidades de emprego e me afastei muito da pesquisa, agora estou negociando
prazos com o departamento para tentar finalizar (Sujeito 16, mulher negra,
graduanda em Ciências Sociais).
Alguns pontos nos chamam a atenção nas falas dos sujeitos. O mais gritante é a
dificuldade apontada pela respondente identificada como sujeito 18 que aponta as críticas
sofridas devido ao fato da escolha em não referenciar intelectuais brancos e europeus. Isto
porque a ciência moderna, baseada nas tradições epistemológicas do primeiro período do
Renascimento, assumiu o privilégio epistemológico de ser a única forma de conhecimento
válida. No entanto, os saberes produzidos pela comunidade negra, são marcados pela criação,
recriação, produção e potência. Este conhecimento significa a intervenção social, cultural e
política de forma intencional e direcionada dos negros e negras ao longo da história, na vida
em sociedade, nos processos de produção e reprodução da existência (GOMES, 2017).
Ao encontro disso, a pesquisa de Pires (2014) revela que o professor ou professora
negra, consciente de seu papel na universidade, pode representar aos estudantes um
referencial, uma personalidade paradigmática, na medida em que, enfrentando toda sorte de
obstáculos, conseguiu ocupar o espaço da docência e está particularmente sensível aos
grandes obstáculos enfrentados por seus alunos e alunas. De acordo com a autora o “olhar
militante de professores negros serve de referência e apoio a esses alunos” (PIRES, 204, p.
161). Apesar de a respondente 14 não indicar a identidade racial de sua orientadora, ela
reconhece que não encontra dificuldade na realização da pesquisa que tem como temática a
“Afrocentricidade” pelo fato de sua oientadora ter aproximação com a temática119
.
Pires questiona ainda se não estamos em um momento da luta antirracista em que
o protagonismo está colocado também na mão de professores negros que com seu olhar
crítico sobre os conteúdos e currículos, e sensibilizados a identificar o conteúdo racista e
estigmatizante presente no conteúdo das diferentes disciplinas, estimulariam um repensar
sobre o saber eurocêntrico de nossas universidades, favorecendo aos alunos de diferentes
119 Sabemos da presença de dois docentes negros no IFCH que atuam também com temáticas relacionadas as
questões étnico-raciais e África, o que nos leva à suposição de que seja um desses professores a orientadora em
questão.
170
trajetórias e, especialmente, aos estudantes negros, a possibilidade de desconstrução e
reconstrução desses saberes, tornando-se, efetivamente, protagonistas de sua formação.
A próxima questão abordava a participação dos sujeitos em coletivos com
temáticas ligadas à raça/cor. A princípio havíamos selecionados três coletivos da UFSCar: o
Café das Pretas, a Frente Negra e o Centro de Culturas Indígenas, no entanto, apesar desta
pré-seleção, a questão foi feita de forma aberta para que os sujeitos respondessem se e em
quais coletivos atuam ou atuavam. Interessante notar que nas respostas apareceram outros
Coletivos, sendo o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) o Coletivo ligado à raça/cor
que não constava em nosso levantamento inicial. Atentamos ainda para o fato de alguns
respondentes estarem ligados à dois coletivos – Café das Pretas e Frente Negra e NEAB e
Frente Negra. Apesar disso, não tivemos respondentes integrante do Centro de Culturas
Indígenas, conforme é possível observar no gráfico a seguir.
Gráfico 12 - Participação em coletivos (13 respondentes)
Na questão seguinte, os sujeitos responderam os motivos que os fizeram participar
dos Coletivos em questão.
Decidi participar do Café porque, em diversos momentos a universidade me esgotou
emocionalmente e eu não me via sendo engolida pelo racismo institucional... várias
coisas que deixava passar sem entender o porquê aquilo estava acontecendo, não
querendo admitir que eram atitudes racistas. Uma amiga me convidou para o
Café das Pretas
15%
Café e Frente Negra
8%
NEAB
15%
NEAB e Frente
Negra
15%
Coletivo Feminista
8%
Não participo
39%
171
primeiro encontro, pois a mesma cansada de passar por isso e ouvir de outras
colegas discursos parecidos, percebeu que precisávamos de força para continuar e
seguir em frente, sem deixar que a universidade nos engolisse de vez (sujeito 3,
mulher negra, graduanda em Pedagogia).
Frente Negra decidi fazer parte quando estava me descobrindo enquanto negro, para
me auxiliar nessas questões... (sujeito 11, homem negro, graduando em Ciência
Sociais).
Eu comecei a participar do Café já na primeira reunião aberta, sabia que algumas
amigas minhas estavam se reunindo para conversar e quando surgiu o convite,
aceitei. Carregava muitas dores e frustrações acadêmicas e sociais e senti que aquele
espaço era o lugar em que seria compreendida e aceita. Logo o coletivo ganhou
expressão política e acreditei que seria uma forma de fazer mais pela universidade e
pela a cidade, dando visibilidade a outras mulheres negras. A frente foi uma
consequência deste movimento (sujeito 16, mulher, negra, graduanda em Ciências
Sociais).
Os relatos apontam o que Gomes (2017) explica sobre os Coletivos nas
Universidades. De acordo com a autora, essas organizações acabam por representar mais os
estudantes do que as formas convencionais dos movimentos estudantis. A autora denomina
esse movimento como “saberes estéticos-corpóreos”, ou seja, são saberes ligados às questões
da corporeidade e da estética negras. Ela explica ainda que a “partir do advento das ações
afirmativas configurou-se um outro perfil de juventude negra que se afirma por meio da
estética e da ocupação de lugares acadêmicas e sociais” (idem, p. 75, 2017).
Os resultados da questão seguinte ilustram o que a autora explica tendo em vista
que, embora com poucos respondentes (8), a concordância foi total sobre a importância dos
Coletivos para o fortalecimento pessoal e emocional, alcançando o score máximo de 5
(concordo totalmente), conforme é possível observar no gráfico a seguir. A questão foi
apresentada em forma de alternativas em que os respondentes deveriam, em uma escala likert
de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente) apontar o grau de concordância com a
afirmativa apresentada.
172
Gráfico 13 - Importância dos Coletivos - UFSCar (8 respondentes)
Os resultados (scores) foram obtidos a partir do cálculo da média ponderada que
aponta a tendência da amostra diante das afirmativas apresentadas.
Apresentamos a seguir de forma mais detalhada a história, especificidades dos
Coletivos: Café das Pretas e a Frente Negra UFSCar. Antes, porém, elucidamos que não nos
debruçamos sobre o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) porque o núcleo, criado em
1991 por iniciativa de professores, estudantes, servidores e de militantes do Movimento
Negro da cidade de São Carlos/SP já está institucionalizado pela Universidade e não se
enquadra como um coletivo criado apenas por estudantes após o período da implementação de
políticas públicas de ação afirmativa. Entretanto, destacamos a importância de tal núcleo que
desde sua criação desenvolve atividades de pesquisa, ensino e extensão atuando em 3 áreas:
Negros e Pesquisa; formação de Educadores; Memória social e intelectual dos afro-
Participar do(s) Coletivo(s) foi fundamental para
minha adaptação e/ou permanência na Universidade.
Participar do(s) Coletivo(s) foi fundamental para
minha adaptação e/ou permanência no curso.
O Coletivo foi o espaço onde encontrei grande parte
das minhas amizades na universidade.
O tema de pesquisa que desenvolvo (ou penso em
desenvolver) tem relação com minha vivência e…
O(s) Coletivo(s) me fortalece(m) pessoalmente/
emocionalmente.
O(s) Coletivo(s) me fortalece(m) academicamente.
O(s) Coletivo(s) já me ajudaram a enfrentar situações
de racismo na universidade e/ou fora dela.
Compreendo o(s) Coletivo(s) como uma militância
política.
A atuação do(s) Coletivo(s) ajudam a alterar as
lógicas eurocêntricas da Universidade.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para
estudos e discussões acadêmicas.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para a
sociabilidade e lazer.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para
discussões e atuações políticas.
As atividades promovidas pelo(s) Coletivo(s)
enriquecem minha formação pessoal.
4,000
4,000
3,750
4,125
5,000
4,625
4,750
4,875
4,875
4,750
4,750
4,875
4,875
173
brasileiros. De tal modo, o NEAB tem como objetivo:
realizar estudos cujos resultados possam ser aplicados na formulação e execução de
políticas públicas de promoção da equidade racial; estudar e divulgar a realidade dos
descendentes de africanos na sociedade brasileira; analisar as relações inter-
pessoais, culturais, sociais, econômicas mantidas pelos descendentes de africanos
com outros grupos étnico-culturais com que convivem, com vistas a criar
mecanismos de combate ao racismo e as discriminações; registrar a memória social
afro-brasileira; promover a formação de professores, agentes comunitários e outros
educadores, para que promovam atitudes de respeito às culturas dos grupos de
diferentes etnias e classes sociais presentes na escola, bem como organizem
programas e materiais de ensino que visem ao diálogo entre estas culturas e que a
escola tem por meta transmitir (NEAB, UFSCAR).
4.1.1. Café das Pretas e Frente Negra – UFSCar
O Coletivo Café das Pretas foi fundado em 10 de setembro de 2017 por mulheres
negras de São Carlos. De acordo com duas respondentes do questionário:
O Café das Pretas surgiu na necessidade de pretas se verem na universidade e se
ouvirem. Era um momento de acolhimento quinzenal em que compartilhávamos as
angustias na vida social, afetiva, acadêmica e emocional. Depois de um tempo ficou
um pouco mais acadêmico, passamos a discutir textos para ir além das mazelas que
nos assolavam na academia. Textos da Bell Hooks que nos levava a reflexão
[grifo nosso] (sujeito 3, mulher negra, graduanda em Pedagogia).
O Café surgiu em 2014, inicialmente como um papo entre amigas que tinham em
comum a cor da pele. As reuniões começaram a ganhar força a partir do momento
em que estas amigas perceberam que enfrentavam os mesmos problemas
financeiros, de aceitação, de espaço para compartilhar seus saberes e de auto estima,
então resolveram abrir para outras estudantes participarem (sujeito 16, mulher,
negra, graduanda em Ciências Sociais).
Como se pode observar nas “falas”, o Café das Pretas surge como um espaço de
acolhimento que ultrapassa o âmbito acadêmico, no entanto, ele também protagoniza a leitura
de autores não convencionais na academia. Sobre isso, Gomes (2017, p. 76) enfatiza a
importância dos Coletivos porque estes retomam “a leitura de autoras e autores negros
brasileiros e estrangeiros que refletem sobre racismo, feminismo negro, relações raciais e
educação, muitos dos quais não tinham suas obras conhecidas nem estudadas nas licenciaturas
e bacharelados”.
A primeira postagem no grupo virtual do coletivo é uma imagem de Angela Davis
discursando nos anos 60 que, de forma simbólica, mostra como o grupo se apresenta: um
coletivo de mulheres negras organizadas para lutar contra as opressões a que são
174
historicamente submetidas e que, na universidade se manifesta das mais diversas formas.
Figura 6 – 1ª foto postada no 'Café das Pretas' - Angela Davis discursando
Fonte: https://www.facebook.com/pg/Cafe.das.Pretas/posts/?ref=page_internal
A primeira reunião do Café aconteceu em 16 de setembro do ano da criação,
2014, com convite publicado na comunidade virtual. A partir de então, os encontros passaram
a ser quinzenais. Além destes encontros, o Coletivo realizou eventos diversos entre 2014 e
2017 como a I Oficina de Turbantes – Café das Pretas; o Café de Calourada (2016 e 2017); o
Primeiro Encontro de Formação Teórica do Café das Pretas; Feminismo Negro com Café das
Pretas.
175
A graduanda em Pedagogia (sujeito 3, mulher negra) conta que as principais
atividades do grupo eram “acolhimento; oficinas; rodas de conversa; discussão de textos”. Ela
diz ainda que “atualmente o café das pretas não tem se reunido”. A graduanda em Ciências
Sociais (sujeito 16, mulher, negra) conta que:
A princípio, as reuniões semanais consistiam em conversas sobre nossas vivências e
sentimentos naquele espaço, aos poucos passamos a transformar as reuniões em um
grupo de estudos da negritude, discutir questões de saúde mental da comunidade
negra, afetividade, identidade, pertencimento, classe social, periferias, cultura
negra... discutíamos e estudávamos os mais variados assuntos voltados para a
comunidade negra e, principalmente, para as mulheres. Também passamos a dar
Figura 7 - Eventos realizados pelo "Café das Pretas"
Fonte: Rede social - https://www.facebook.com/Cafe.das.Pretas/events/?ref=page_internal
176
palestrar e desenvolver atividades culturais em escolas e participar das atividades
políticas da universidade (sujeito 16, mulher negra, graduanda em Ciências Sociais).
Assim, é possível perceber que o Coletivo Café das Pretas traz à Universidade
novas possibilidades de sociabilidades, como também inclui a representatividade negra,
incomum de se encontrar nas universidades brasileiras até o início do século XXI. Além
disso, torna-se espaço de enfrentamento do racismo e de acolhimento, conforme é possível
observar nas respostas sobre os motivos para participar do coletivo.
Decidi participar do Café porque, em diversos momentos a universidade me esgotou
emocionalmente e eu não me via sendo engolida pelo racismo institucional... várias
coisas que deixava passar sem entender o porquê aquilo estava acontecendo, não
querendo admitir que eram atitudes racistas. Uma amiga me convidou para o
primeiro encontro, pois a mesma cansada de passar por isso e ouvir de outras
colegas discursos parecidos, percebeu que precisávamos de força para continuar e
seguir em frente, sem deixar que a universidade nos engolisse de vez (sujeito 3,
mulher negra, graduanda em Pedagogia).
Eu comecei a participar do Café já na primeira reunião aberta, sabia que algumas
amigas minhas estavam se reunindo para conversar e quando surgiu o convite,
aceitei. Carregava muitas dores e frustrações acadêmicas e sociais e senti que aquele
espaço era o lugar em que seria compreendida e aceita. Logo o coletivo ganhou
expressão política e acreditei que seria uma forma de fazer mais pela universidade e
pela a cidade, dando visibilidade a outras mulheres negras (sujeito 16, mulher,
negra, graduanda em Ciências Sociais).
Outro evento que nos chamou atenção na Comunidade virtual do Coletivo foi o
“Cine + Palquinho das Divas Pretas” porque o evento não se encerra numa perspectiva de
lazer apenas, mas como espaço político de resistência, bazar, Exibição do documentário da
Nina Simone e roda de conversa. O
dinheiro do evento foi revertido para
que as participantes do “Café” irem ao
“I Encontro Estadual da Juventude
Negra” que aconteceu em Campinas.
No ano de 2016, alguns
estudantes sentiram a necessidade
ampliar a discussão étnico-racial para
além da questão das mulheres negras e,
de tal modo, surgiu em 26 de abril
deste ano a Frente Negra da UFSCar, a
qual caminhou em consonância e Figura 8 - Divulgação do Evento
177
complementaridade de ideias com o Café das Pretas, conforme nos contou em entrevista a
graduanda em Ciências Sociais (mulher preta, 33 anos)
Quando eu cheguei em 2016 aqui, tinha o coletivo café das pretas, que era o coletivo
liderado por mulheres negras aqui da universidade e também pessoas negras que
estivessem próximas e quisessem participar e era um grupo apenas para mulheres. E
fazendo um debate sobre a questão das experiências das mulheres, das vivências na
universidade, quais eram os perrengues, as questões afetivas, religião, enfim, era um
grupo que fazia debate de várias questões, fazia atividades com convidadas em
departamentos ou até no SESC. Em 2016 tiveram duas meninas do coletivo que
foram ao SESC fazer uma mesa falar sobre questão de gênero racial,
interseccionado, só que acho que até 2017, começo de 2017 que não se reúne mais o
café das Pretas. Antes também de 2016 já tinha um coletivo que já estava também
parando de se reunir que era o CONAJIR120
. O CONAJIR é uma articulação
nacional de combate ao racismo, não sei bem qual é a sigla porque eu não
participava, o café das pretas eu participava. aí esse CONAJIR tinha dois integrantes
do CONAJIR, dois meninos, um dos rapazes está no Mestrado na Educação agora,
ele era estudante de Ciências Sociais, ele foi um dos articuladores e organizadores
do EECUN que era o Encontro de coletivos de Universitários Negros lá no RJ na
UFRJ, ele também ganhou esses dias uma premiação como um dos jovens mais
influentes pretos do mundo, sei lá... Eles articulavam junto com outras pessoas
antes, né, esse CONAJIR e a ideia da FRENTE era fazer uma articulação entre
esses dois coletivos para fazer o enfrentamento dentro da universidade em
relação às políticas que perpassam diretamente os estudantes negros, né, não
falando só das mulheres negras, mas juntar esses dois coletivos, né, nessa
articulação. Então a frente era justamente a junção desses dois coletivos. Como
esses coletivos não têm se organizado, né, o coletivo, acho que em 2016 mesmo já
não tinha mais o CONAJIR, eles tentaram fazer um pouco, não conseguiram, o Café
das Pretas em 2016 continuou atuando normalmente e junto com a Frente também,
então a maior parte dos trabalhos que puxavam na Frente foram as mulheres mesmo,
aí muito dos debates que eram feitos na Frente era justamente uma extensão do Café
das Pretas, tipo eram 2 grupos, duas agendas, mas o trabalho sempre era das
meninas. A proposta era essa, fazer uma articulação entre os estudantes para
fazer os enfrentamentos aqui na universidade considerando essa intersecção da
questão racial e de gênero, e da permanência estudantil, participação das
atividades da universidade, a discussão da própria 10.639 e 11.645 dentro dos
cursos e tal, acho que era um pouco isso.
O graduando em Ciências Sociais explica que a “A Frente Negra é um grupo
maior, onde todos os coletivos negros da universidade são bem-vindos e as reuniões têm
como objetivo alinhar pensamentos e ações políticas, sociais e culturais na universidade”
(sujeito 11, homem, preto).
De tal modo, a 1ª Reunião da Frente aconteceu em 22 de maio de 2016. O convite
no grupo virtual do Coletivo trazia o seguinte chamado:
Boa noite Negras e Negros maravilhosos da UFSCar! Vamos conversar sobre o
120 http://conajir.blogspot.com/
178
nosso atual cenário político??? Está na hora de pautarmos o que tem acontecido no
nosso espaço de vivência e de luta e o que queremos enquanto negras e negros
estudantes dessa universidade. Vamos colaborar??? [...] Esperamos todas e todos :)
A 1ª Reunião da Frente, dentre outros assuntos, discutiu a necessidade de
posicionamento na Assembleia Geral que aconteceria no dia seguinte (23/05/2016) com a
leitura de uma carta, a fim de dar maior visibilidade às pautas e aos coletivos (RELATO
REUNIÃO, FRENTE NEGRA, 2016121
).
Carta da Frente Negra – UFSCar- São Carlos
Nós estudantes negros e negras, graduandas/os, pós-graduandas/os, integrantes dos
coletivos Café das Pretas, Conajir e estudantes não vinculados à coletivos, alunos
cotistas, não cotistas e pessoal da comunidade externa, nos posicionamos com
indignação e resistência diante do cenário político e do plano de governo do
golpista, seus aliados e simpatizantes de projetos fascista, racista, sexista,
homofóbico e transfóbico.
O golpe em curso representa graves retrocessos aos direitos conquistados após lutas
cotidianas por transformações sociais encampadas pelo movimento negro brasileiro
composto por mães, pais, mulheres, jovens e educadoras/es. Reiteramos que nosso
posicionamento não está vinculado à partido político, pois ao longo da história as
pautas do povo negro não foram centrais nas agendas políticas da esquerda e nem da
direita.
A nossa formação social é racista e escravagista e desde que os primeiros africanos
foram sequestrados e transportados forçadamente para este país, houveram lutas
espirituais e física, sem recuo, sem temer o enfrentamento contra a situação de
desumanização imposta.
Se no passado a luta foi por liberdade, hoje lutamos pela a efetivação de direitos
conquistados ao longo de pouco mais de um século. É necessário reconhecer os
121 https://www.facebook.com/groups/1763523977212744/permalink/1773843629514112/
Figura 9 - Publicação para a 1ª Reunião da Frente Negra UFSCar
179
avanços ocorridos nos últimos anos: o acesso ao ensino superior público por meio
das políticas de ações afirmativas; PROUNI; FIES; criação da SECADI (Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão); a aprovação e
implementação do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena; a
criação da SEPPIR; o estatuto da Igualdade racial, mas não esqueçam, que todos
esses avanços são resultados da nossa luta histórica.
Ressaltamos ainda que não estamos aqui apenas pra engrossar as fileiras contra o
golpe, mas por considerarmos que num país com raízes racistas, o processo de
democratização do ensino superior deve ter centralidade no debate racial.
Quem vem pra luta quando jovens negros são mortos na periferia? Quando estudante
negro passa fome para se manter na universidade? Quem vem pra luta quando
mulheres negras são hiperssexualizadas dentro do campus? Quem vai lutar quando o
DeSS indefere pedido de bolsa para estudantes negros? Quem vem pra luta contra a
falácia da meritocracia?
É de extrema importância a união para barrar esse rolo compressor em cima dos
nossos direitos conquistados. Se esta instituição foi uma das pioneiras na
implementação da Lei de Cotas e ajudou que outras Universidades trilhassem o
mesmo caminho, essa é a hora da UFSCar liderar o caminho de ampliação da
equidade racial, pois a ausência de representatividade não acontece apenas nos
primeiros escalões dos Ministérios do Golpista, mas também dos governos
anteriores. Quantos negros ocupam espaços deliberativos da UFSCar?
Reiteramos que esse é o momento de lutarmos juntos, mas é preciso pensar formas
de criar coesão entre a comunidade universitária à longo prazo, colocando como
centralidade a desigualdade racial histórica existente no país.
Estamos aqui apoiando toda forma de mobilização em prol de um país mais
equânime e democrático, mas não temos dúvida que quando nossas pautas são a
linha de frente, estamos por nossa própria conta!!! É necessário que essa realidade
mude!!!
Em defesa do acesso e permanência de negros e negras no ensino superior, pelas
demarcações das terras quilombolas e contra o genocídio da juventude negra.
Honrando o sangue de Dandara e Zumbi, não recuaremos!
Nenhum passo atrás!!!!!!
Assim, como o Café das Pretas, a Frente também se configurou como um espaço
de acolhimento e cuidado com a saúde psicológica dos estudantes negros da UFSCar. O
graduando em Ciências Sociais conta que decidiu participar do Coletivo porque “estava [se]
me descobrindo enquanto negro, para me auxiliar nessas questões [...]” (sujeito 11, homem
preto, graduando em Ciências Sociais). A entrevistada (graduanda em Ciências sociais,
mulher preta, 33 anos) explica que
A Frente normalmente se articulava pra trocar ideias sobre a convivência
universitária mesmo, pra pensar quais são os arranjos na instituição que estavam
pegando, né, pros estudantes, que estavam sendo mais difíceis pros estudantes
negros e a partir disso cobrar, né, fazer uma, fazer uma... cobrar, enfim, participar
dos conselhos, das reuniões, fazer coisas desse tipo. Participava também dos debates
do CAs [Centros Acadêmicos] dos cursos, ou sei lá, DCE [Diretório Central dos
Estudantes], chamavam os estudantes também pra contar um pouco da importância
dos negros na ciências, os negros não sei onde, aí a gente fazia um pouco desse
trampo também, né, por exemplo, se fosse conversar sobre sociologia, autores
negros, ou a importância de se debater autores negros, ou quais são os prejuízos que
a gente tem em não discutir os autores negros...
A atenção a estas questões trouxe a proposta de uma reunião com a Frente e a
180
SAADE a fim de tratar sobre a necessidade de um estudo/mapeamento das doenças
psicológicas em mulheres negras. A Reunião aconteceu em 07 de julho de 2016 com a pauta
“Contratação Emergencial de Psicólogo Negro com formação em Relações Étnico-raciais e
Verbas e orçamento para coletivo” e teve acrescentada a “Avaliação de 10 anos de Cotas na
UFSCar”. A reunião encaminhou o seguinte:
Ver se a ProGrad já possui um documento que engloba essas questões. E articular
essa necessidade do recorte racial e cotista. Avaliação das ações afirmativas, pensar
a metodologia (depois da conversa com a ProGrad) Conversar com a ProGPe – ver contratação de psicólogos negros ou com formação
em relações étnico-raciais Contato com o Instituto AMA/Psique-Juventude Universitária: roda de conversa
com os estudantes, orientada pelas profissionais. Articular uma
atividade/atendimento, formação dos profissionais (TA’s) que fazem atendimento e
profissionais da saúde pública da SAADE que agregue coletivos e pesquisadores na
avaliação. Comitê Gestor, articular editais específicos para coletivos (agosto), será resultado da
conversa com o SPDI. SAADE pode intermediar o coletivo para concorrer a editais/bolsas e verbas já
existentes.
Além disso, ambos os coletivos – Café das Pretas e Frente Negra – atuaram no
processo de construção e aprovação da “Política de Ações Afirmativas, Diversidade e
Equidade” elaborado pela SAADE. De acordo com a postagem de uma das integrantes do
“Café” no evento: “Ocupa ConsUni pela aprovação da Política de Ações Afirmativas”:
Os impactos e desdobramentos do Programa de Ações Afirmativas na UFSCar,
resultou em novas necessidades, incluindo a criação de uma estrutura mínima, que
pudesse se articular com as diferentes unidades administrativas e que atendesse,
também, aos outros campi, claramente explicitados no PDI (2013) e que
transcendem o escopo dos estudantes de graduação" (Resolução ConsUni no. 809,
de 29 de maio de 2015, que cria a Secretaria Geral de Ações Afirmativas,
Diversidade e Equidade)
(Quer saber mais entra aqui http://blog.saade.ufscar.br )
A partir disso, foi criada no início deste ano a Secretaria de Ações Afirmativas,
Diversidade e Equidade. Que ampliou o escopo de atuação da universidade e
também sua capacidade de articulação por estar diretamente ligada à reitoria. E
resumidamente, destes últimos meses de muito trabalho, materializou-se a Política
de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade. Se a política for aprovada neste
momento, caberá à próxima gestão construir um Plano de Execução dessa política,
porém, se não for aprovada agora, corremos o risco de que esse trabalho se perca, e
que o caminho de uma universidade mais justa e equânime se torne cada vez mais
longo.
Assim, esperamos a presença de todos amanhã para fortalecer essa luta. Se você não
vai conseguir chegar as 8h, beleza, mas colem assim que puder, chama os colegas de
turma, amigos de rep. e os crush tudo.
É dispensável dizer que vivemos tempos difíceis na conjuntura nacional, porém não
podemos perder de vista nossas demandas locais e a nossa responsabilidade por
sermos ocupantes de uma vaga no ensino superior público e também com os
próximos que entrarão neste espaço.
181
Como diz Cortella, "ser pessimista é uma forma extremamente cômoda de existir".
Assim, no dia 21 de outubro de 2016, entrou para Ordem do dia da 223ª Reunião
Ordinária do Conselho Universitário a votação da “Política de Ações Afirmativas,
Diversidade e Equidade, elaborada pela SAADE. Destacamos a seguir algumas falas durante
a discussão sobre a Proposta:
o discente Iberê parabenizou o trabalho excepcional da equipe da SAADE,
destacando o momento de diálogo com a comunidade no sentido da democratização
no ensino superior e que a proposta se constitui em uma resposta crítica e
posicionamento firme de responsabilidade da universidade com a sociedade. Na
sequência, um discente pós-graduando com necessidades especiais se manifestou
lembrando da importância do momento para os estudantes que chegaram à
universidade por meio das ações afirmativas e de políticas públicas implementadas
nos últimos anos e da importância da aprovação dessa proposta.
Ornaldo Baltazar Sena: Com o lema ‘Fora Temer’ disse que os indígenas dessa
instituição não reconheciam política de retrocesso nesse atual contexto político.
Parabenizando a equipe da SAADE falou das conquistas dos indígenas e a
importância dessa política, lembrando da implantação do vestibular indígena em
2008, seguida da descentralização do processo seletivo para quatro capitais do País,
culminou no último vestibular com mais de 900 inscritos, de 89 povos de diferentes
locais de 17 estados. Comentou que naquele momento, a UFSCar contava com 38
etnias e mais de 130 alunos ativos. Reafirmou que a política de ações afirmativas
precisa ser ampliada e fortalecida, não só para os povos indígenas, mas para os
grupos sociais e historicamente marginalizados. Que, infelizmente ainda é preciso
lutar pela implantação de direitos, sendo que esse direito já poderia estar sendo
usufruído, pois são mais de quinhentos anos de história, de resistência, e de luta
contínua, e que os indígenas continuarão lutando por essas políticas e por sua
consolidação. Registrou, ainda, ter ficado feliz ao ouvir a futura reitora dizer que
Figura 10 - Evento para Participação estudantil no ConsUni de aprovação da Política de Ações Afirmativas,
Diversidade e Equidade
182
estará aberta ao diálogo e às políticas afirmativas, visto que na atual gestão, os
indígenas sempre foram ouvidos tanto na Reitoria, quanto na ProGrad e ProACE.
Em complementação, o discente Marcondy Maurício de Souza, manifestando-se
como liderança indígena e representante discente do ConsUni, CoG, e CoAd,
registrou algumas atitudes de grande benefícios e avanços conquistados nos últimos
anos em relação aos povos indígenas: criação do Centro de Cultura dos Indígenas
em 2012; 1º Encontro Nacional dos Indígenas em 2013; consolidação do SBPC
Indígena, com a oportunidade de trazer a ciência indígena para a universidade; a
participação de dois estudantes indígenas representando a UFSCar na 14ª Sessão do
Fórum Permanente para Questões Indígenas, realizada na sede da ONU, em Nova
Iorque, em 2015; também em 2015, a realização da 1ª Semana Indígena na UFSCar.
Como liderança indígena e porta voz das comunidades indígenas, registrou
agradecimentos à Reitoria, PROGRAD, PROACE, SAADE, aos conselheiros do
ConsUni e CoG, por terem acompanhado e aprovado as ações afirmativas e o
ingresso dos povos indígenas na universidade. Complementou dizendo que, talvez
nem todos tenham noção dos benefícios às comunidades, mas foram grandes os
avanços às comunidades que estão distantes de suas capitais e que demoram seis
dias para chegar de barco, lugares que ficam dentro de florestas, que até então o
estado não conseguia alcançar, e no momento, com muito orgulho em dizer que a
UFSCar está chegando lá e isso se deu principalmente, por meio do vestibular, ou
por ter um estudante formado trabalhando na FUNAI, ou ocupando cargos em
prefeituras, lutando não só pelos povos indígenas, mas também por outros povos em
que o estado acaba sendo omisso; e que isso não iria acontecer se não houvesse o
Programa de Ações Afirmativas. (CONSUNI122
, 2016, pp 12-13).
A Política de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da Universidade
Federal de São Carlos123
foi assim, aprovada em 21 de outubro de 2016 na 223ª Reunião do
Conselho Universitário, por unanimidade dos membros presentes. O Café das Pretas e a
Frente Negra da UFSCar tiveram papel importante neste momento, conforme relatado pela
graduanda em Ciências Sociais (sujeito 16, mulher, negra, graduanda em Ciências Sociais).
Acredito que nossa maior conquista foi o desenvolvimento e o fortalecimento de
todas as participantes. Mas também demos visibilidade às mulheres negras dentro da
universidade e as nossas demandas sociais, culturais e estruturais, vejo que o café,
assim como a Frente, caminhou lado a lado com os órgãos responsáveis pelas
ações afirmativas na universidade, nossa voz foi ouvida por toda a comunidade
acadêmica, passamos a ser respeitados e consultados sobre todas as questões
pertinentes à comunidade acadêmica [grifo nosso].
O documento “Política de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da
Universidade Federal de São Carlos” (UFSCar, 2016, p. 01) endossa a fala da estudante,
122 Ata da 223ª Reunião do ConsUni. Disponível em http://www.soc.ufscar.br/consuni/2016/arquivos/223a-
reuniao-ordinaria21102016/consuni223ata.pdf . Acesso em 19/11/2018.
123 No documento, a UFSCar renovou seus compromissos social e político de assumir, o mais plenamente
possível, a responsabilidade de garantir a articulação entre a construção de conhecimentos e a formação de
profissionais e de cientistas engajados/as na garantia de uma sociedade cada vez mais democrática, participativa
e dialógica” por meio de 17 princípios que visam contribuir para a consolidação de uma cultura de respeito as
diversidades e de promoção da equidade, prevenindo e combatendo atitudes racistas, misóginas, LGBTfóbicas e
capacitistas.
183
afirmando que a “participação de grupos de pesquisa, grupos, coletivos e movimentos sociais
e especialistas acadêmicos, trazendo à Secretaria textos, proposições e reflexões” foi um
processo fundamental para a construção dos princípios e diretrizes que possam fazer frente ao
desafio da promoção da equidade.
Em dezembro de 2016 a Frente organizou a Roda de conversa “Universidade
Pública e Política de Cotas Étnico-Raciais: perspectivas históricas e desafios futuros”. O
evento no grupo da rede social trazia que:
A Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (SAADE) convida
todas as pessoas interessada em debater a temática das Políticas de Cotas Étnico-
Raciais na Universidade Pública com a intenção de contextualizar este tema dentro
de uma perspectiva histórica ampla que aponta o protagonismo da resistência dos
movimentos negro e indígena.
As Cotas Étnico-Raciais fazem parte de Políticas de Ações Afirmativas que surgem
como resposta e compromisso do Estado na tentativa de ilidir desigualdades
socialmente construídas das quais resultam restrições no acesso a direitos
fundamentais, tais como a educação. Neste sentido, é de fundamental importância
que a UFSCar, uma universidade pública, há muito tempo compromissada com
políticas de equidade no Ensino Superior, enverede esforços para que a execução das
Políticas de Ações Afirmativas consiga êxito em seus propósitos. Pretendemos,
nesta Roda de Conversa, compartilhar perspectivas e ouvir expectativas da
comunidade universitária que permitam a UFSCar aprimorar cada vez mais sua
Política de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade. Para esta Roda de Conversa
trazemos alguns eixos orientadores para o debate:
- Política de Cotas Étnico-Raciais e Universidade Pública
- Ações Afirmativas na UFSCar
- Fortalecimento e ampliação das Ações Afirmativas na UFSCar
- Combate e enfrentamento às fraudes no sistema de cotas étnico-raciais
Os dados que encontramos mostram atividades intensas no ano de 2016 de ambos
Figura 11 - Evento organizado pela Frente Negra - UFSCar
184
os Coletivos, no entanto, a partir de 2017 já não encontramos dados recorrentes de atividades
organizadas por estes Coletivos. De acordo com a entrevistada (mulher, negra, graduanda em
Ciências Sociais)
A frente não tem se reunido mais, né, faz tempo, desde o ano passado, não sei
exatamente de quando, começo, 1º semestre do ano passado. Porque, enfim tinham 2
coletivos, e aí ficaram as mesmas pessoas que acabavam tocando o café a Frente, e
aí meio que ficou numa função de não se reunir assim, as pessoas foram
organizando as vidas, os estudos e tal, as militâncias em outros espaços e acabou que
acabaram as reuniões dessa articulação, mesmo que as demandas não deixem de
existir, né. Então houve uma mudança, existe agora uma articulação dos estudantes
Panafricanistas que é a OUA, Organização da Unidade Africana, mas aí a proposta
deles não sei bem qual é, não sou próxima deles.
Interessante notar que, apesar da desmobilização dos Coletivos investigados,
começam a surgir novas organizações para discussões que envolvem as relações étnico-raciais
e africanidades como a “Organização da União Africana – OUA”. De acordo com a
mestranda em Antropologia Social o “Coletivo O.U.A - Organização da União Africana, se
iniciou como grupo de estudos pan-africanista e tem a intenção de aumentar o grupo em suas
práticas”. As principais atividades do Coletivo são “Encontros semanais para debater
textos/documentários/filmes, e fazer eventos (ciclo de palestras, cine-debate, panfletagem)”
(sujeito 15, mulher, negra).
O graduando em Ciências Sociais explica que, embora a Frente não esteja mais
organizada, mantém algumas “reuniões esporádicas para tratarmos das questões que afetam os
negros e negras, e a um grupo do WhatsApp onde discutimos diversas coisas sobre essa
mesma temática”. O estudante reforça ainda a importância do Coletivo para o autocuidado:
“de vez em quando realizamos algumas confraternizações onde podemos cuidar de nossa
saúde mental em uma boa roda de samba, pagode etc.” (sujeito 11, homem preto, graduando
em Ciências Sociais).
4.2. Unicamp
Em 1963, o curso de medicina já estava em funcionamento, mesmo antes da
fundação da universidade. Dos seus 50 alunos, nenhum era negro. Isso não
significa que não houvesse negros na universidade. Embora pequeno, o contingente
de funcionários negros estava se formando (DAMASCENO, 2008, p. 63).
A Universidade Estadual de Campinas – Unicamp – foi criada pelo Decreto-lei
185
7.655 de 28 de dezembro de 1962 (SÃO PAULO, 1962), no entanto, apenas em 05 de outubro
de 1966, foi inaugurada a pedra fundamental da Unicamp, com a presença do então presidente
da República General Humberto de Alencar Castelo Branco, do Governados do Estado de São
Paulo, de Ministros e Secretários de Estado, do Presidente do Conselho Estadual de Educação
e de várias outras autoridades civis, militares e eclesiásticas (MENEGHEL, 1994).
De acordo com o Artigo 2º da Lei de criação (SÃO PAULO, 1962, p. 01), a
Unicamp tinha por finalidade:
I – ministrar o ensino universitário e pós-graduado;
II – promover a pesquisa pura e aplicada;
III – formar e treinar técnicos de nível médio e superior;
O projeto de fundação da Unicamp, em plena ditadura militar, pretendia responder
às necessidades de pessoal qualificado, e atender as exigências do processo de
industrialização do país sendo, portanto, uma universidade que desse ênfase à pesquisa
tecnológica e que mantivesse vinculação sólida ao setor produtivo (BEZZON, 1997). Assim,
a lei de criação da Unicamp, incluiu quatro faculdades – Ciências, Medicina, Odontologia e
Química Industrial e cinco institutos – Biologia, Morfologia, Química, Física e Matemática –
e encorpou a Faculdade de Medicina criada pela Lei 4.998 de 1958 à Universidade (SÃO
PAULO, 1962).
Apesar da criação no ano de 1962, a Unicamp começou a funcionar um ano
depois, em maio de 1963, apenas com a Faculdade de Ciências Médicas provisoriamente
instalada nos porões da Santa Casa de Misericórdia de Campinas. Com esta situação o
Conselho Estadual de Educação de São Paulo nomeou, em 1964, uma Comissão
Organizadora, da qual Zeferino Vaz era o presidente, para avaliar a viabilidade de
efetivamente se instalar o projeto de Universidade.
A instalação efetiva do curso médico, no entanto, deu-se apenas em 1965 com o
funcionamento das cadeiras básicas e das clínicas para o 3º ano do curso. Àquela
época a Faculdade de Medicina via-se com poucos recursos financeiros e a
implantação da Universidade ainda não havia começado (MENEGHEL, 1994, p. 97)
A atuação do Prof. Zeferino Vaz à frente da Comissão foi decisiva para os rumos
da universidade. Isto porque ele já havia atuado como professor do Instituto Biológica em São
Paulo, diretor na Faculdade de medicina veterinária da recém-fundada Universidade de São
Paulo, e foi nome importante na criação da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP).
Com o golpe militar, em 1964, Zeferino Vaz tornou-se reitor-interventor da UnB, onde
adquiriu a percepção da Universidade como um todo integrado devido à convivência de todas
186
as ciências e das artes em um mesmo campus, percebendo a importância da formação
humanista para o estudante universitário. Assim, ao ser nomeado para presente da Comissão
Organizadora, aproveitou o momento político de enfraquecimento dos meios universitários
pela repressão do regime militar e, apesar de ter sido responsável por atos repressivos e
destituições na UnB, trabalhou para que a Unicamp se transformasse num porto seguro para a
intelectualidade contrária ao regime, fazendo da Unicamp uma Universidade Crítica
(BEZZON, 1997).
Como se vê, Zeferino Vaz foi um homem com ações contraditórias pois, ao
mesmo tempo em que agiu de forma repressiva na UnB e circulava muito bem entre os
militares, acolheu professores expulsou de outras universidades e buscou implantar na
Unicamp um projeto, que se reflete no próprio logotipo da universidade, que compreendesse a
universidade como um todo orgânicos ao invés de uma colônia de organismos trabalhando
independentemente:
O que confere a unidade à universalidade dos conhecimentos humanos é o objetivo
final perseguido por todos que é a promoção do bem estar físico, espiritual, e social
do homem comum. Não acredito e não aceito a arte pela arte, a ciência pela ciência,
Ciência, Artes, Filosofia não contêm em si mesmas um objetivo alto, nobre e digno,
quando não exercidas visando o bem estar do homem” (BEZZON, 1997, p. 09 apud
JORNAL ÚLTIMA HORA, 03/08/1971).
Dentro desta perspectiva, a comissão trabalhou também no sentido de realmente
implantar uma Universidade em Campinas e não apenas solidificar a Faculdade de Ciências
Médicas como queriam alguns. Para tanto conseguiram: levantar verbas junto ao governador
do estado da época, Laudo Natel; comprar equipamentos importados e também livros e
revistas científicas visando o estímulo à pesquisa; a doação do Sr. Adhemar de Almeida Prado
de 30 alqueires, parte de uma fazenda, para edificação da cidade universitária e, por fim,
conseguiram um adiantamento de verbas do governo estadual para que pudesse abrir
concorrência pública para a construção do 1º edifício da Universidade (MENEGHEL, 1994).
Em termos de recursos humanos, o principal objetivo da Unicamp era conseguir os melhores
nomes do mundo científico e, já em 1971, 50% do corpo docente era composto por doutores,
em regime de Dedicação Integral (BEZZON, 1997).
Um aspecto importante que compôs o “modelo Unicamp” alçado por Zeferino
Vaz era de que a Unicamp não deveria ser uma grande universidade, ao contrário, ela deveria
evitar o gigantismo, limitando o número de alunos no global e, mais ainda, no ensino de
graduação. “Ela procuraria não se incomodar em ter o mesmo número de estudantes de pós-
187
graduação que teria na graduação, e deveria investir pesadamente em instalações e meios de
pesquisa, como laboratório e bibliotecas (BEZZON, 1997).
Para Bezzon (1997), a Unicamp já nasceu com “ares” de melhor e, portanto,
somente as melhores cabeças é que poderiam integrar seus corpos docentes e discentes. Com
isto, criou-se uma certa mística de “elite” em torno da universidade.
Com a abertura política do país, a Unicamp caminhou para a construção da sua
autonomia e descentralizou-se a estrutura de poder através da criação das Pró-Reitorias e
instalou-se o Conselho Universitário que substitui o antigo Conselho Diretor. Foi neste clima
que se solidificou a ideia de ter um vestibular próprio, desvinculando-se da Fuvest em 1986.
O candidato à estudantes da Unicamp deveria: ser capaz de exprimir-se com
clareza; capaz de organizar ideias; capaz de estabelecer relações; capaz de interpretar dados e
fatos; capaz de elaborar hipóteses e que demonstrasse domínio dos conteúdos das disciplinas
do núcleo comum do então 2º Grau demonstrando estas características por meio de prova
discursiva realizada em duas fases. A primeira, constituída de uma redação e 12 questões,
duas de cada disciplina (Física, Química, Matemática, Biologia, História e Geografia). Na
segunda fase, o estudante deveria responder a 16 questões de cada uma das mesmas matérias
do núcleo comum do 2º grau (BEZZON, 1997).
Neste cenário da busca pelos melhores alunos a Unicamp mantém forte a
ideologia da meritocracia e foi uma das últimas universidades a aprovar o sistema de cotas124
,
à frente apenas da USP. No entanto, com a necessidade de responder à pressão política no que
tange à possibilidade de equidade de oportunidades de acesso, a Unicamp, criou o Grupo de
Trabalho sobre Inclusão Social, instituído em 2003, que realizou um estudo para determinar
quais os fatores que poderiam ser considerados para selecionar os candidatos de maior
potencial. O estudo demonstrou, a partir da comparação do coeficiente de rendimento médio
ao longo do curso de graduação de todos os ingressantes entre 1994 e 1997 com sua
classificação no vestibular, que os estudantes que concluíram o ensino médio em escolas
públicas apresentaram um desempenho acadêmico positivo e melhor do que os demais
(TESLER, 2008).
124 A 151ª Sessão Ordinária do Consu, em 30/05/2017, aprovou o princípio de Cotas como Política Pública de
Ação Afirmativa e o Reitor designou um grupo de Trabalho denominado GT-Ingresso-Unicamp-2019 para
elaborar proposta de implementação progressiva das cotas étnico-raciais e do vestibular indígena, buscando a
meta de autodeclarados pretos, pardos e indígenas, conforme parâmetro do IBGE no Estado de São Pulo, por
curso e turno e preservando a meta de 50% dos estudantes de escola pública, buscando incluir estudantes de
baixa renda (DIÁRIO OFICIAL, SÃO PAULO, 03/06/2017).
188
É dentro deste cenário que foi apresentada a proposta do Programa de Ação
Afirmativa e Inclusão Social – PAAIS pois, de acordo com Tesler (2006, p. 06)
se dois candidatos, um egresso de escola pública e um de escola privada empataram
(tiveram pontuação semelhante) no vestibular, se optarmos pelo que veio da escola
pública teremos um melhor aluno na Unicamp. Um mecanismo de ação afirmativa
que considera prioritariamente o mérito medido pelo vestibular pode na verdade
melhorar o corpo discente da universidade
A proposta foi votada e aprovada na 87ª Sessão Ordinária do Conselho
Universitário em 25 de maio de 2004. A Ata dessa Sessão mostra que, apesar da aprovação do
programa em formato de adição de pontos à prova do estudante, já existia a proposta de cotas
para a Unicamp, conforme é possível observar nos trechos abaixo.
O Conselheiro ODIRLEI CONRADO DE SOUSA com a palavra, explica que é
membro do Grupo de Trabalho sobre inclusão social e não assinou o relatório em
respeito a deliberação da assembléia geral dos estudantes que assim determinou,
considerando basicamente a não reflexão dentro do relatório da deliberação do V
Congresso dos Estudantes da UNICAMP, que prevê outra política de ação
afirmativa, com um fator complicante que é a pouca discussão que foi feita com a
comunidade acadêmica como um todo e também com a sociedade que é a mais
diretamente interessada no assunto. Então, por esses motivos a assembléia deliberou
que não assinasse. Em relação a assistência estudantil, como representante discente
louva qualquer política que vise o aumento da assistência estudantil, mas o fato de
existir mais egressos de escola pública nos cursos de graduação, não significa
necessariamente que a UNICAMP está contribuindo com a inclusão
socioeconômica. É fundamental deixar claro que grande parte dos estudantes que
entrarem através dessa proposta do Grupo de Trabalho, sejam egressos de escolas
públicas diferenciadas, que são as escolas técnicas estaduais e federais, a exemplo
do COTUCA, o CEFET e a ETECAP, que notadamente têm uma qualidade superior
de ensino e seu quadro discente tem estudantes de um nível socioeconômico elevado
também. Então, deixa claro a diferenciação entre egresso de escola pública e
estudante carente do ponto de vista socioeconômico. Acha que a proposta melhora
um pouco em relação ao que existe hoje, mas está longe de resolver o problema, e
isso é consenso entre todos. Termina reafirmando a deliberação do V Congresso dos
Estudantes que é a inclusão socioeconômica de estudantes de graduação e pós-
graduação na UNICAMP (CONSU, 2004, pp. 128-129).
RONALDO LUÍS DE ALMEIDA com a palavra, parabeniza a UNICAMP por essa
atitude de estar abrindo esse debate, embora o que está sendo proposto é uma
questão um pouco tímida em relação a necessidade e a importância da discussão.
[...] Reafirma a proposta apresentada pelo Conselheiro Miguel dos 30% de todos os
cursos da universidade e não apenas dessa proposta. [...] Conclamamos os ilustres
representantes do CONSU a não ficar na contra mão da história, a efetuarem uma
discussão qualificada sobre as cotas raciais, não perdendo assim a oportunidade de
reafirmar a universidade como um espaço democrático para debate de questões de
interesse da sociedade brasileira. [...] Hoje cerca de 10 Universidades em todo o país
já aprovaram e implementaram esta proposta de reparações afirmativas. A história
os convoca a cumprir o papel de vanguarda que a UNICAMP merece, ocupando o
lugar de destaque na galeria daqueles que lutam pela democracia contra as injustiças
sociais. Que aprovem as cotas para negros, contra ao corporativismo de mais de
90% da cota para os brancos, sob a falsa. Aprovar as cotas é no mínimo reparar o
grande malfeito e fazer justiça social para o povo brasileiro”. O (CONSU, 2004, pp.
133-135).
189
O Conselheiro ALAN SILVIO RIBEIRO CARNEIRO com a palavra, lembra e
reafirma a proposta da estudante secundarista de que 50% das vagas fossem
reservadas para os estudantes oriundos de escola pública e 20% dentre esses 50%
para os estudantes afro-descendentes, e no caso solicitou também, que isso fosse
discutido na Comissão, não decidido agora. [de acordo com o original] (CONSU,
2004, p. 161).
A então presidenta da ADUNICAMP, Professora Maria Aparecida Afonso
Moysés, falou em nome dos associados da associação dos docentes e defendeu a proposta
apresentada pelo Professor Meyer de adicionar 30 pontos a alunos oriundos de escolas
públicas e mais dez pontos para os autodeclarados como “afrodescendentes125
”.
Após intensa discussão entre os conselheiros a Minuta é votada com a observação
do Professor Meyer que incluiu, além dos 30 pontos para alunos de escolas públicas, mais 10
pontos para autodeclarados negros ou indígenas. A proposta foi aprovada com 62 votos
favoráveis e 02 abstenções.
Desta forma, inicialmente, o programa foi moldado para acrescentar
automaticamente, aos estudantes que tenham cursado integralmente o Ensino Médio comum
ou supletivo (Educação de Jovens e Adultos – EJA, modalidades presencial, semipresencial e
a distância), em escolas da rede pública no Brasil e optarem pelo PAAIS na inscrição para o
vestibular, 30 pontos a mais na nota final, ou seja, após a segunda fase, e para candidatos
autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, dentro deste contexto, mais 10 pontos acrescidos
à nota final (MARQUES, 2008).
A escolha dessa faixa de pontuação não foi casual. Trata-se de uma espécie de zona
de empate técnico do vestibular, dentro da qual a oscilação de desempenho dos
candidatos não indica propriamente uma vantagem – caso os mesmos candidatos
submetam-se a sucessivos exames, suas colocações costumam variar dentro dessa
área cinzenta. A ideia, portanto, era privilegiar alunos de escolas públicas, negros e
índios apenas como critério de desempate dentro de uma amostra de candidatos com
rendimentos acadêmicos muito semelhantes (MARQUES, 2008, p. 96).
Vê-se, portanto, que a Universidade, mais que a inclusão, tinha com o PAAIS o
objetivo de buscar pelas melhores cabeças para o seu corpo discente, ao encontro do que
pressupunha Zeferino Vaz quando da criação da Unicamp, sob a justificativa de estimular o
ingresso de estudantes da rede pública na Unicamp e também a diversidade étnica e cultural
com o slogan de ser a primeira ação afirmativa sem cota implantado em uma universidade
brasileira (COMVEST, 2015).
De acordo com Kleinke (2006, p. 02) “um dos principais objetivos do PAAIS é
125 Termo utilizado na Sessão.
190
buscar as excelências escondidas entre os candidatos da escola pública, além de ampliar a
diversidade cultural, étnica e de classes sociais” entre os estudantes da Unicamp. Renato
Pedrosa (apud MARQUES, 2008, p. 96) explica que
O que os nosso dados mostravam e que, para além da questão da inclusão social e da
promoção da diversidade, essa fórmula também interessava à Unicamp do ponto de
vista acadêmicos, uma vez que, historicamente os alunos oriundos de escola pública
apresentavam um desempenho crescente em relação aos do ensino privado com
nível equivalente de conhecimento.
De acordo com Marques (2008), em 2005, primeiro ano de implantação do
PAAIS, a admissão de alunos vindos de escolas públicas na Unicamp cresceu de 29,6% para
34,1% e o ingresso de negros e indígenas cresceu 44% em relação aos dois anos anteriores,
subindo de 10,9% para 15,7% do total.
Outro dado apresentado por Tessler e Pedrosa (2008) é que os beneficiados pelo
PAAIS melhoram seu desempenho em relação ao vestibular; na maior parte dos cursos eles
apresentam desempenho acadêmico (medido pelo coeficiente de rendimento – CR) superior
aos demais estudantes e têm menor taxa de abandono de disciplinas.
Importante destacar que o PAAIS foi pensado quando o vestibular da Unicamp
era diferenciado e tinha como objetivos “influenciar no redirecionamento do ensino do 1º e 2º
graus” e buscava no perfil do seu corpo discente um aluno capaz de “...exprimir-se com
clareza...organizar suas idéias; ... estabelecer relações; ... interpretar dados e fatos; ... elaborar
hipóteses; ... dominar os conteúdos das disciplinas do núcleo comum do 2º grau” (SOUZA126
,
1986 apud KLEINKE, 2006). Assim, o mesmo foi pensando em uma prova que era realizada
em duas fases, sendo ambas compostas por questões discursivas127
. Na primeira fase o
candidato era avaliado a partir de uma redação, que correspondia a metade de pontos, e mais
12 questões discursivas elementares (TESSLER, 2008).
No entanto, no ano 2011 o vestibular passou por alterações. Na primeira fase o
candidato era solicitado a elaborar três textos de redação e a responder 48 questões de
múltipla escolha com quatro alternativas cada. Este modelo durou apenas dois anos. Em 2013
uma nova alteração trouxe como exigência na prova de redação dois textos de redação ao
invés de três. As 48 questões de múltipla escolha se mantiveram da mesma forma. A segunda
fase permaneceu sem alterações no período – 2011 a 2014. Era composta por três provas
discursivas por área de conhecimento: ciências da natureza; ciências humanas e artes e Língua
126 SOUZA, P.R.C. Portaria GR-250/86, Unicamp, Campinas (1986).
127 Este modelo de vestibular perdurou até o ano de 2010 conforme se pode averiguar no site da comvest.
191
Inglesa; Língua Portuguesa e Literaturas da Língua Portuguesa e Matemática.
Em 2013 o PAAIS passou por uma reformulação e passou de 30 para 60 pontos a
bonificação na nota final (segunda fase) dos candidatos egressos de escolas públicas e de 10
para 20 o bônus extra para quem se autodeclara como negro, pardo ou indígena, totalizando
80 pontos. A modificação foi implantada no vestibular 2014 (SUGIMOTO, 2013).
Para o vestibular 2015 houve nova alteração no formato das provas e a primeira
fase passou a ter 90 questões objetivas sobre as áreas do conhecimento e a redação foi
transferida para a segunda fase que ficou composta da seguinte maneira: i. Prova de Redação
(composta por duas propostas de textos a serem desenvolvidas pelos candidatos) e prova de
Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, no primeiro dia; ii. Prova de
Matemática, prova de História e prova de Geografia, no segundo dia; iii. Prova de Física,
prova de Química e prova de Biologia, no terceiro dia.
Neste formato, o vestibular se aproxima novamente do formato criticado pelo
Professor Rubem Alves quando da discussão com a comunidade acadêmica sobre os
vestibulares. Segundo o professor (apud KEINKE, 2006)
Duas coisas ficam claras:
1. Os exames vestibulares, longe de serem simples exames de entrada, são fatores
que tem determinado, em grande medida, as linhas de desenvolvimento da nossa
educação, nos 1ºs e 2ºs graus, cristalizando e institucionalizando uma série de
deformações que vão desde o estreitamento do interesse dos jovens e o desperdício
da inteligência até a injusta seleção preliminar que elimina as classes menos
favorecidas.
2. Considerando-se que é inevitável que haja um processo de seleção daqueles que
vão ingressar em nossas universidades, é necessário não nos esquecermos de que há
muitas alternativas ainda não exploradas de se fazer isto, e que poderiam ser
investigadas e sugeridas pela Unicamp (ALVES, 1985128
).
Perdeu-se com esse novo modelo o que era uma das características marcantes das
provas do vestibular da Unicamp: as questões dissertativas e associadas à leitura e
interpretação de textos que fazia com que os candidatos necessitassem menos de conteúdo
programático e mais de capacidade de síntese, análise e interpretação. Perdeu-se, portanto, a
busca daquele perfil de estudante implementando em 1986 quando a Unicamp se separou da
Fuvest para realizar a seleção dos seus estudantes.
Para o vestibular de 2017 houve uma nova mudança no PAAIS. De acordo com o
site129
do programa, a partir deste vestibular, os estudantes que optarem pelo PAAIS na
128 ALVES, R. Ofício Circular AEAE 35/85, Unicamp, Campinas (1985).
129 https://www.comvest.unicamp.br/inclusao-paais/
192
inscrição para o vestibular receberão automaticamente 60 pontos a mais já na nota da primeira
fase. Candidatos autodeclarados negros ou indígenas que atendam aos requisitos acima, terão
mais 20 pontos acrescidos à nota da primeira fase, somando um total de 80 pontos. Para os
convocados para a segunda fase, serão adicionados outros 90 pontos à nota da Redação e
outros 90 pontos para as demais provas da segunda fase. Candidatos autodeclarados pretos,
pardos ou indígenas receberão, além dos 90 pontos, mais 30 pontos à nota da Redação e mais
30 pontos para as demais provas da segunda fase.
Interessa-nos, neste cenário, analisar se a política de inclusão social e racial
adotada pela Unicamp – o PAAIS – foi eficiente no sentido de aumentar o percentual de
ingressantes oriundos de escolas públicas e, principalmente, se possibilitou a inclusão de
negros(as) e indígenas, que rompem com a estrutura hierárquica de sistema-mundo criada
pelo processo de colonização. Seguimos, portanto, apresentando as análises dos dados
disponíveis sobre o perfil dos candidatos e ingressantes do vestibular da Unicamp no período
de 2003 a 2017.
Importante destacar que no ano de 2010 a Unicamp implementou também o
Programa de formação interdisciplinar superior da Unicamp (ProFIS) no intuito de amenizar a
autoexclusão dos jovens das classes sociais menos favorecidas. De tal modo, desde 2011 são
oferecidas 120 vagas anuais para os melhores alunos classificados no ENEM de cada uma das
96 escolas públicas de Campinas, garantindo a cada escola, pelo menos, uma vaga. O
Programa foi concebido como um curso sequencial, com duração de dois anos, podendo ser
estendido para até três anos para a sua integralização.
Ao término do curso, os alunos, além de receberem o certificado de Formação
Interdisciplinar Superior, podem ter acesso a uma vaga em 62 dos 68 cursos de graduação
regular da Unicamp, fazendo a escolha por ordem da sua classificação acadêmica registrada
no CRO – coeficiente de rendimento das disciplinas obrigatórias. Desta forma, um dos
objetivos específicos do curso é também apoiar o aluno na escolha da carreira, pois primeiro o
aluno ingressa na universidade e só depois no curso em que vai se profissionalizar.
Além do caráter de inclusão social, o ProFIS apresenta sua estrutura curricular
pautada nos pressupostos da Educação Geral130
. De acordo com o Projeto Pedagógico do
130 Peterson (2012) apresenta que em várias partes do mundo países desenvolvidos ou em desenvolvimento estão
revitalizando a Educação Geral de alguma forma. Entre os países mais ricos o exemplo mais notável é a Holanda
que na última década criou oito Colleges de Artes Liberais como parte do seu sistema universitário. O autor
apresenta ainda experiências em vários países do mundo, seja na Ásia (Hong Kong, Singapura, Bangladesh e
193
Curso, o objetivo do Programa é possibilitar uma formação geral, de caráter multidisciplinar,
que proporcione aquisição de conhecimentos nas ciências humanas, ciências da natureza e
arte, visando abordagens integradas sobre o conhecimento, sobre as suas relações com o
mundo, com o ambiente e mundo do trabalho e a compreensão de si mesmos como indivíduos
e cidadãos de uma sociedade diversificada, globalizada e em constante mudança (PRÓ-
REITORIA DE GRADUAÇÃO, 2010). Assim, o curso apresenta três inovações ao cenário
do ensino superior na Unicamp: é um programa de inclusão social, tem sua base curricular na
educação geral e a seleção dos estudantes é realizada por meio do Exame nacional do Ensino
Médio (ENEM).
O Programa responde a uma política de inclusão social efetiva garantindo a
permanência dos alunos por meio de atendimento às suas carências econômicas e dificuldades
educacionais. Estudos da Avaliação longitudinal do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas
(NEPP) da Unicamp mostram que o impacto em termos de representação das escolas públicas
foi imediato quando da seleção da primeira turma. Até o oferecimento deste curso mais da
metade dessas escolas não tinha matriculado um aluno na Unicamp. Parte delas porque os
alunos não conseguiam passar pela peneira do vestibular, outra parte pelo fenômeno da
autoexclusão, pois seus alunos não tinham o ingresso no ensino superior em seus horizontes,
muito menos em uma universidade com a fama e o prestígio da Unicamp. Esta política de
inclusão resultou na atração de uma maioria dos alunos do ProFIS (entre 73% a 80%
dependendo da turma) que são a primeira geração a frequentar o ensino superior,
considerando-se a maior escolaridade de seus pais. Ainda como política de inclusão social
efetiva, todos os alunos recebem uma bolsa de estudos cuja verba vem do orçamento da
Unicamp e ainda bolsas alimentação e transporte. Os alunos do ProFIS contam também com
serviço de apoio psicológico, assistência médica, odontológica e jurídica, que são apoios
oferecidos a todos os estudantes da Unicamp.
De tal modo, além do PAAIS, o ProFIS, de maneira diferenciada, é também uma
política de inclusão da Unicamp uma vez que o ingresso ao programa se dá por meio de uma
“cota geográfica”, ou seja, alunos de todas as escolas públicas de Campinas têm ao menos
Japão), Austrália, Europa (Suécia e Polônia), Eurásia (Rússia e Turquia) e na África do Sul. Para o autor uma
lição importante na construção da história da Educação Geral é a de que ela não é estática. O ideal socrático de
examinar a vida por meio de inquéritos críticos e argumentos respeitosos agora é somado com o mais moderno
compromisso de entender as pluralidades sociais em que nós vivemos social e profissionalmente (NUSSBAUM,
2003 apud PETERSON, 2012).
194
uma chance de ingressar na Unicamp via ENEM. Assim, os dados a seguir, a partir de 2011
incluem também os estudantes oriundos desta política.
O gráfico a seguir nos permite visualizar como se dividem os ingressantes na
Unicamp de acordo com o percentual de ingressantes que estudaram todo o Ensino Médio em
Escolas Públicas (linha azul) com os que estudaram todo o Ensino Médio em Escolas
Privadas (linha verde).
Gráfico 14 - Percentual de ingressantes na Unicamp de acordo com o tipo de Ensino Médio cursado
(público ou privado)
Elaboração própria. Fonte: Perfil socioeconômico dos inscritos e matriculados anos 2003 a 2017
Importante salientar que o gráfico apresenta os dados de ingressantes que
estudaram todo o ensino médio em escolas públicas ou todo o ensino médio em escolas
privadas, deixando de fora outras situações (estudaram maior parte em escola pública, maior
parte em escola particular, no exterior etc.), por isso a soma do percentual por ano entre
oriundos de escolas públicas e escolas privadas não resulta em 100%.
O gráfico evidencia que até o ano de 2015 a Unicamp teve entre seus ingressantes
majoritariamente estudantes oriundos do ensino médio privado, com uma média entre os anos
2003 a 2015 de 60,5% de estudantes desta realidade. Nota-se que mesmo com a adoção do
PAAIS para o vestibular de 2005, os dados não se alteram significativamente. Neste ano,
2005, o percentual de estudantes vindos de escola pública aumentou de 28 para 34,1%, no
entanto, nos anos seguintes o valor decresceu atingindo em 2010 índice de 29,1%, menor que
em 2003 que foi de 29,7%, quando não havia o programa de ação afirmativa e inclusão social.
29,7%
28,0%
34,1%
32,0%
32,4% 32,8%
29,7% 29,1%
31,9%
31,6% 30,7%
36,6%
30,2%
47,4% 50,2%
63,8%
65,3%
49,8%
59,2%
60,2%
60,1% 63,4% 64,3%
58,9%
60,8% 61,1%
56,2%
63,3%
47,7%
44,4%
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Todo EM Escola pública Todo EM Escola privada
195
Ou seja, os dados demonstram que a primeira versão do PAAIS não garante a inclusão tendo
em vista que este percentual só se altera significativamente quando há alteração da política,
para o vestibular de 2016, incluindo 60 pontos a mais aos candidatos vindos de escolas
públicas e aos candidatos autodeclarados negros ou indígenas que atendam aos requisitos
anteriores, mais 20 pontos já na nota da primeira fase, neste caso, somando um total de 80
pontos. Para os convocados para a segunda fase, foram adicionados outros 90 pontos à nota da
Redação e outros 90 pontos para as demais provas da segunda fase. Neste formato, a Unicamp
alcançou os percentuais de 47,7% e 50,2% em 2016 e 2017 respectivamente, de estudantes
que cursaram ensino médio na rede pública de ensino. Este formato, apesar de nos dois anos
de experiência terem se mostrado mais inclusivos do ponto de vista de escola de origem,
também não altera significativamente a inclusão de pessoas negras e indígena como será
possível observar no gráfico a seguir. Além do mais, tendo em vista que esta política deposita
no estudante a responsabilidade da inclusão, não se garante um percentual mínimo de
inclusão, como no caso da política de cotas.
Interessante ainda notar que a partir de 2011, ano que se inicia o ProFIS, o
percentual de estudantes oriundos de escolas públicas aumenta em 2 pontos, mantendo-se a
partir de então, sempre acima dos 30%, alterando-se mais significativamente após as
alterações no PAAIS.
O gráfico a seguir apresenta o percentual de candidatos e ingressantes segundo a
autodeclaração de raça/cor no período de 2003 a 2017.
196
Gráfico 15 – % de candidatos e ingressantes de 2003-2017 segundo raça/cor autodeclarada
Elaboração própria
Fontes: Perfil socioeconômico Comvest
Escolhemos o mapa que ilustra a área para mostrar o que denunciou Carvalho
(2006) sobre o confinamento racial nas universidades. Percebe-se que mesmo com a adoção
do PAAIS para o vestibular de 2005 a inclusão de pessoas negras e indígenas não se altera de
modo significativo. Apenas nos anos 2016 e 2017 a inclusão de pessoas negras ultrapassou os
20%, alcançando 22.2% e 21,8% de ingressantes respectivamente, porcentagem maior que de
candidatos que foi de 19,2% e 20,1%. A média simples nos 15 anos de ingresso de pessoas
autodeclaradas brancas, que não incluem os “amarelos” é de 75,5%. Os indígenas não chegam
a aparecer no gráfico, tão pequena a expressão percentual de candidatos e ingressantes que
não passam de 0,5% no período (2003-2017), com exceção do ano de 2005, ano de
implementação do PAAIS, quando houve 0,7% de candidatos e 0,6% de ingressantes. 2007
foi o ano com menor ingresso de indígenas com 0,1% o que em número resulta em 3
ingressantes indígenas num universo de 2.934 ingressantes não indígenas. Nos anos 2012,
2014, 2015, 2016 e 2017 a porcentagem de ingressantes indígenas foi de 0,2%.
Além disso, a pesquisa de Souza (2006), que buscou recuperar as trajetórias de
estudantes negros na Unicamp, revelou que a maior parte destes estudantes eram pertencentes
a um segmento social com condições financeiras semelhantes à média do quadro geral da
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
80,0%
90,0%
C I C I C I C I C I C I C I C I C I C I C I C I C I C I C I
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
Branca Negra (preta+parda) Amarela Indígena Em branco
197
universidade, ou seja, não estava entre o grupo de condições socioeconômicas mais baixas.
Este dado nos revela que a instituição que não possui uma política pública adequada para
inclusão de grupos historicamente excluídos do ensino superior, é excludente à medida em
que, além de subrepresentar numericamente estes grupos, ainda traz uma representatividade
seletiva, que não dialoga com as reais condições da maior parte da população negra brasileira.
Se compararmos a distribuição segundo raça/cor da população discente da
Unicamp com a população do Brasil e do Estado de São Paulo, veremos que a Unicamp,
percentualmente, tem em sua população mais pessoas brancas e amarelas que no Estado de
São Paulo (63,91%, IBGE 2010) e no Brasil (47,73% IBGE 2010) e, consequentemente,
menos pessoas negras, não representando racialmente, portanto, o Estado ou o País na qual
está inserida, conforme é possível observar no gráfico a seguir.
Gráfico 16 – Comparação da população segundo raça/cor no Brasil, São Paulo e ingressantes Unicamp -
2010 e 2017
Elaboração própria.
Fontes: Censo IBGE ano 2010 e Perfil socioeconômico Comvest anos 2010 e 2017.
Apesar da distribuição na Unicamp não corresponder ao perfil no Estado ou País
na qual está instalada, percebe-se que houve um aumento de ingresso de pessoas
autodeclaradas negras no vestibular de 2017, quando se alcançou o patamar 21,8% pessoas
autodeclaradas negras matriculadas na Unicamp, um aumento de 8,3% em comparação ao
percentual de 2010 que foi de 13,5%.
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
Branca Negra Amarela Indígena Sem declaração
Brasil (2010) São Paulo (2010) Unicamp 2010 Unicamp 2017
198
O gráfico a seguir apresenta a distribuição de ingressantes via PAAIS no período
de 2005 a 2017, e segundo autodeclaração de raça/cor dentro do universo PAAIS e do
universo total de ingressantes.
Gráfico 17 - % de ingressantes PAAIS e segundo raça/cor no universo total e universo PAAIS
Elaboração própria.
Fontes: Perfil socioeconômico Comvest e Persil socioeconômico inscritos e matriculados no PAAIS
O gráfico anterior mostra que do ano da implementação do PAAIS (2005) até
2015 o percentual de estudantes ingressantes via o programa (linha cinza) se manteve na faixa
entre 28% (menor percentual em 2010) a 36,7% (maior percentual em 2014), com uma média
no período de 11 anos de 31,4% de ingressantes via PAAIS. Este cenário se altera
significativamente em 2016 (ano em que a bonificação já é incluída na 1ª fase do vestibular)
quando o ingresso via PAAIS sobre para 47,6% e para 50,3% em 2017. Entretanto, o
crescimento de ingresso de pessoas autodeclaradas negras não acompanha tal aumento. No
universo do total de ingressantes (linha azul) o ano com maior percentual de negros foi 2016
com 22,2%, decaindo em 2017 para 21,8%. De 2005 a 2015 a média percentual de negros foi
de 14,8% variando de 15,5% (maior percentual em 2009 e 2015) a 12,9% (menor percentual
em 2013). Dentro do universo do PAAIS, ou seja, pessoas negras que tenham cursado todo o
Ensino Médio em escola pública de 2005 a 2015 o percentual é maior, com média de 27,3%
em toda a série. O ano com maior ingresso foi 2016 como 33,7% de ingressantes
autodeclarados negros entre todos os optantes pela política de ação afirmativa.
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017
% total PAAIS % negros universo PAAIS
% indígenas universo PAAIS % negros universo total
% indígenas universo total
199
Apesar de não haver mudança significativa no ingresso de estudantes oriundos de
escolas públicas e de grupos minorizados nos dez primeiros anos do PAAIS (até 2014), nota-
se que os dois coletivos de grande destaque na universidade – a Frente Pró-Cotas e o Núcleo
de Consciência Negra da Unicamp – foram criados após a implementação da política, ambos
em 2012. Queremos agora compreender quem são seus integrantes, quais são as
especificidades, lutas e propósitos dos coletivos, assim como sua importância individual para
seus integrantes.
Durante a aplicação do questionário realizamos também uma enquete dentro do
Grupo “Frente Pró-cotas Unicamp” a fim de saber se os integrantes do grupo utilizaram a
política de inclusão adotada pela Unicamp desde o vestibular 2005, o PAAIS. Assim como no
questionário, as respostas não alcançaram grande número de participantes, dos 358 membros
do grupo, apenas 13 responderam (3,7%). Apesar do baixo número de respondentes, o
resultado aponta que nem todos os membros engajados, de alguma forma, na luta por cotas,
foi beneficiário do PAAIS. Dos treze respondentes, cinco (38,5%) não utilizaram o PAAIS,
quatro (30,8%) utilizaram a política na categoria egressa/o de escola pública e negra/o, e 3
(23,1%) utilizaram como egressa/o de escola pública.
A fim de traçar um breve perfil dos respondentes, solicitamos que se
autodeclarassem quanto ao gênero e raça/cor em uma questão aberta.
Gráfico 18 - Autoidentificação dos respondentes quanto ao gênero e raça/cor
Das 16 respostas obtidas na questão, observa-se que a maior parte das pessoas
respondentes é negra, sendo 18,8% de mulheres autodeclaradas negras e 37,5% de homens
Negra; 18,8%
Indígena ; 6,3%
Negro; 37,5%
Branco; 18,8%
Feminino ; 6,3%
Branca; 12,5%
200
negros que resulta num total de 56,3%. Uma pessoa não se identificou em relação a raça/cor,
apenas quanto ao gênero – feminino. Ao cruzar a autoidentificação com a participação nos
Coletivos, identificamos que todos as pessoas autodeclaradas negras indicaram a participação
em ao menos um dos coletivos investigados: Frente ou Núcleo.
A complexidade da questão racial é evidenciada na fala da respondente que se
autoidentificou como indígena, porém, sem deixar de narrar a dificuldade que encontra em se
autodeclarar.
Depende, na jerarquia racial cá no Brasil sou branca, ao mesmo tempo que para
outros sou indígena, para a maioria sou da grande Bolívia. No meu país meu
fenótipo é de indígena, mas como não tenho sobrenome indígena então não sou
indígena. Em resumo: como cara de indígena como os imigrantes da grande Bolívia.
Acho que assim já fui tratada no Brasil. (Sujeito 7, mulher, indígena estrangeira,
doutoranda)
Sobre o nível de escolaridade dos responsáveis, dos 15 respondentes, observa-se
que a maioria faz parte da 1ª geração no Ensino Superior, tendo em vista que 80% dos
responsáveis 1 e 85% dos Responsáveis 2 alcançaram no máximo a finalização do Ensino
Médio, conforme é possível observar no gráfico a seguir.
Gráfico 19 - Escolaridade dos responsáveis (15 respondentes)
Questionamos ainda qual a fonte de renda para se manter na Universidade. A
questão possibilitava que os respondentes pudessem assinalar mais de uma alternativa, tendo
em vista que, muitas vezes, a fonte de renda não é única, o que se mostrou como regra nos
resultados.
Não
frequentou
escola
EF
incompleto
EF
completo
EM
incompleto
EM
completo
ES
incompleto
ES
completo
7% 7%
13% 13%
40%
7%
13%
0%
23% 23%
8%
31%
0%
15%
Responsável 1: Responsável 2:
201
Gráfico 20 – Fonte de renda durante o curso universitário – por categoria de fonte de renda (12
respondentes)
Como se viu, a maioria as Bolsas de Iniciação Científica e a Assistência estudantil
oferecida pela Universidade são as principais fontes de renda dos 12 respondentes da questão,
o que evidencia a importância, tanto das agências de fomento à pesquisa, como da assistência
estudantil para a manutenção do estudante durante o Ensino Superior, corroborando com o
que Santos (2009) apresenta sobre a importância da permanência material na universidade.
Na categoria “outras” apareceram como fonte de renda: bolsa como colaborador
de cursinho popular, bolsa de Mestrado, bolsa do Programa de Apoio Didático131
(PAD) e
trabalhos em final de semana para complementar a renda.
Ao analisar os dados por respondente, verifica-se que apenas quatro pessoas (32%
da amostra) se mantém com uma única fonte de renda (Bolsa de iniciação científica; estágio
remunerado ou Bolsa de Pós-graduação). A maioria dos respondentes tem duas ou mais fontes
de renda, conforme se pode observar no gráfico a seguir.
131 Programa de bolsas destinado exclusivamente a alunos de graduação regularmente matriculados na Unicamp
que visa o aprimoramento do ensino de graduação através de monitoria exercida por estudantes que devem ter a
supervisão do professor responsável pela disciplina.
Trabalho período integral – atividade c/ relação com o curso
Trabalho meio período – atividade c/ relação com o curso
Trabalho período integral – atividade s/ relação com o curso
Estágio remunerado
Trabalho meio período – atividade s/ relação com o curso
Outra (Por favor especifique)
Auxílio financeiro da família
Assistência Estudantil da Universidade
Iniciação Científica financiada por órgão de fomente à pesquisa
0%
8%
8%
8%
25%
42%
42%
58%
58%
202
Gráfico 21 - Fonte de renda durante o curso universitário por respondente (IC = Iniciação científica; AE =
assistência estudantil SAE) (12 respondentes)
Após traçar este breve perfil da amostra, o questionário, em uma segunda parte,
abordou questões relacionadas à vida acadêmica dos integrantes dos coletivos. Quanto ao
nível/modalidade de curso em que estão matriculados na Unicamp e é interessante notar que
há presença de estudantes de todos os níveis de ensino: ProFIS, graduação, mestrado e
doutorado sem grandes discrepâncias numéricas tendo em vista o número de respondentes:
doze (12).
AE + IC
17%
Família, AE, IC,
trabalho
17%
Bolsa pós-graduação
17% Estágio Remunerado
9%
Família + AE
8%
Família + bolsa
como colaborador de
cursinho popular
8%
Família, IC e
emprego em meio
período
8%
Iniciação Científica
8%
AE + empregos
8%
203
Gráfico 22 - Matrícula na Unicamp (12 respondentes)
Os dados evidenciam ainda o caráter de pesquisa da Unicamp desde os ideais de
sua formação e que se mantém até a atualidade uma vez que, dos 11 respondentes na questão,
81,2% da amostra está vinculada à pesquisa de: doutorado (36,4%), mestrado (18,2%),
trabalho de conclusão de curso (18,2%) e iniciação científica (9,1%). Outro dado interessante
é que das 4 pessoas que fizeram iniciação científica, 3 prosseguiram na pós-graduação e
encontram-se atualmente em nível de mestrado e uma já se encontra no doutorado.
Em 50% das 8 respostas sobre a temática abordada nas pesquisas a questão racial
aparece de forma evidente em subtemas como: cultura afro-brasileira na Bahia, racismo, raça
e sexualidade, encarceramento e genocídio da juventude negra). Algumas respostas
evidenciam ainda a dificuldade em inserir na academia demandas de temas antes excluídos.
Meu tema de pesquisa gira em torno da discussão da cultura afro-brasileira na Bahia
e sua relação com a política local. Escolhi tal tema pelo interesse na relação entre
cultura e política no âmbito dos movimentos negros brasileiros e pela aproximação
ancestral (sou descendente de baianos), aproximação política (me considero
componente dos movimentos negros) e racial (sou negro). Com exceção do racismo
institucional que a todo momento o questiona sobre a importância ou não em
desenvolver pesquisa sobre questão racial, não tive maiores problemas em
desenvolver a pesquisa. [grifo nosso] (Sujeito 15 – homem, negro, mestrando)
Minha pesquisa atual é uma aproximação entre os pensamentos de Angela Davis e
Abdias Nascimento, com o intuito de elaborar uma base teórica que permita pensar
os problemas de encarceramento em massa e genocídio da juventude negra brasileira
nos dias de hoje. Escolhi esse tema porque gosto de trabalhar com teorias e também
acho que é fundamental utilizar as teorias para pensar os problemas
contemporâneos. Não tenho encontrado entraves para desenvolver a pesquisa no
programa de sociologia, mas já tentei desenvolver uma pesquisa semelhante no
doutorado em filosofia e não pude concluir o curso, pois não havia espaço para
desenvolver esse tipo de pesquisa. [grifo nosso] (Sujeito 17, homem, negro,
doutorando).
ProFIS; 17%
Graduação; 33%
Pós-Graduação -
Mestrado; 17%
Pós-Graduação -
Doutorado; 33%
204
Atualmente estudo a cena preta LGBT da cidade de São Paulo, a partir de duas
festas produzidas por e para negros LGBT. Tento compreender a relação entre
estética e política, festa e engajamento e as conexões nacionais e internacionais
destas iniciativas de sociabilidade; Fiz duas iniciações cientificas na Unicamp; na
primeira, tentei compreender e mapear os entrecruzamentos das categorias raça e
sexualidades na literatura sobre diversidade sexual e de gênero no brasil, a partir da
consolidação das Pós-graduações, na década de 1960; Já na segunda tentei
compreender as articulações de gênero e sexualidade em duas festas "negras" de São
Paulo. Estas pesquisas seguem um interesse político-acadêmico de contribuir para a
construção de material que possa ajudar na construção de políticas públicas voltadas
para negros LGBT, como também compreender fenômenos como os rolezinhos, os
efeitos das ausências de equipamentos de cultura nas periferias urbanas, a
articulação de "diversão" e "política" nas estratégias de combate ao racismo
articuladas a desigualdades de gênero e discriminações por sexualidades dissidentes.
As minhas dificuldades começam pela ausência de bibliografia e empatia por parte
da academia. A todo momento tenho que provar que este tema tem relevância.
Creio que o professorado e a estrutura da universidade não têm total disposição para
lidar com as existências negras e as demandas que emergem com elas.” [grifo nosso]
(sujeito 20, homem negro, egresso do curso de ciências sociais e atualmente
mestrando).
Gomes (2017) explica que as dificuldades apontadas pelos respondentes quanto à
legitimidade da pesquisa que aborda questões não hegemônicas são resultado do contexto
atual da educação, regulada pelo mercado e pela racionalidade científico-instrumental, que
acabam por tornar esses conhecimentos em não existência, ou seja, em ausências. De acordo
com a autora há produção de ausência “sempre que determinada entidade é desqualificada e
tornada invisível, ininteligível ou descartável de modo irreversível” (2017, p. 41).
A autora coloca ainda que os saberes produzidos pelo Movimento Negro são
emancipatórios porque são uma forma de conhecer o mundo marcado pela vivência da raça
numa sociedade racializada desde o início da sua conformação social. Esses conhecimentos
ainda são negligenciados pela universidade, apesar da obrigatoriedade estabelecidas pelas
Leis 10.639/03 e 11.645/08, conforme se pode observar nas respostas a seguir sobre a
presença de disciplinas obrigatórias que contemplassem a História e Cultura Africana, Afro-
brasileira e/ou Indígena:
Quadro 5 - Presença de disciplinas que abordem História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena
(8 respondentes)
Curso SIM NÃO
Doutorado em Educação 2
Economia 1
ProFIS 1
Sociologia 1
Doutorado em Sociologia 1
205
Ciências Sociais 1
Engenharia Elétrica 1
Graduação (não especificou
curso) 1
Infelizmente não. Ao contrário a questão racial foi intencionalmente apartada dos
temas que discutiríamos, mesmo estudando a obra de autores como Florestan
Fernandes. Cursei economia (sujeito 12, homem negro, graduação [não especificou
o curso]).
Durante o ProFIS as discussões sobre a temática foram quase inexistentes.
Apareceram de forma superficial na disciplina de Bioética (formada por professores
da FCM, cujo nome não me lembro), Psicologia e Educação (com a Profª Angela
Soligo) e na disciplina de História (ministrada na época pelo Profº Sidney
Chalhoub). No curso de Química a temática é invisível. No curso de ciências sociais
a temática aparece de forma transversal, em especial nas disciplinas de professores
comprometidos com a luta anti-racista. Geralmente aparece em tópicos especiais. O
curso em si não conta com nenhuma disciplina francamente obrigatória sobre os
temas (sujeito 14, mulher preta, ex-aluna do ProFIS, atualmente graduanda em
Química).
Meu curso atual possui apenas uma disciplina obrigatória, dedicada a discussão de
de projetos de mestrado e doutorado. Como vários projetos lidam com questões que
estão do escopo da 10639 e da 11645, a disciplina discute esses temas. As demais
disciplinas necessárias para completar o total de créditos ficam à escolha do
estudante. No meu caso, as disciplinas que escolhi sempre trabalhavam com temas
relacionados à 10639. No entanto, dependendo da escolha feita pelo aluno, é
possível fazer outras disciplinas que não abordem essa temática (sujeito 17, homem
preto, doutorando em Sociologia).
Sobre a participação nos Coletivos, interessante notar que 2 (dois) dos
respondentes (em um total de 10) não atuam ou atuaram em nenhum dos Coletivos
investigados, o que acaba, ainda que de forma não estatística, sendo representativo dos
membros presentes no Grupo e Página, uma vez que estes alcançam além dos seus
integrantes, simpatizantes e apoiadores das causas. O gráfico a seguir ilustra o resultado.
206
Gráfico 23 - Participação em Coletivo com pautas sobre Raça/cor (10 respondentes)
Como se tratava de uma questão aberta, foi relatada ainda a participação em três
outros Coletivos: Feminista; Ateliê TransMoras (coletivo de arte e política); e Cursinho
Popular Dandara de Palmares, o que demonstra engajamento em causas diversas, mas com
foco em grupos historicamente minorizados – negros, pobres, mulheres e LGBTQs.
Buscamos ainda conhecer a importância dos coletivos – Frente e Núcleo – para
seus participantes em uma questão com diversas afirmativas em que os respondentes
deveriam assinalar o grau de concordância (escala likert) de 1 a 5, sendo 1 discordo
totalmente e 5 concordo totalmente. A partir dos resultados, fizemos a média ponderada para
chegar à tendência da amostra, conforme o gráfico a seguir.
Núcleo da
Consciência Negra
20%
Frente Pró-Cotas
30%
Núcleo e Frente
30%
Não
20%
207
Gráfico 24 - Importância dos Coletivos (8 respondentes)
Os resultados apontam que os Coletivos têm grande importância na vida dos
estudantes. Destacamos a afirmativa “participar do(s) Coletivo(s) foi fundamental para minha
adaptação e/ou permanência na Universidade” em que duas (2) pessoas concordaram e 6
(seis) concordaram totalmente. As afirmativas com maior índice de concordância total – 7 dos
8 respondentes e 1 com concordância – discorrem sobre a importância dos coletivos para
formação pessoal; discussão, atuação e militância política.
Destacamos ainda a importância dos Coletivos para a “adaptação e permanência
na universidade” na qual a amostra tende a “concordar totalmente” com a afirmação. Isso
reforça o argumento de Mayorga e Souza (2010) que entendem que uma política de ação
afirmativa de permanência dos alunos negros e de origem popular na universidade devem
também contribuir para que esses possam compreender de forma críticas as dinâmicas do
Participar do(s) Coletivo(s) foi fundamental para
minha adaptação e/ou permanência na Universidade.
Participar do(s) Coletivo(s) foi fundamental para
minha adaptação e/ou permanência no curso.
O Coletivo foi o espaço onde encontrei grande parte
das minhas amizades na universidade.
O tema de pesquisa que desenvolvo (ou penso em
desenvolver) tem relação com minha vivência e …
O(s) Coletivo(s) me fortalece(m) pessoalmente/
emocionalmente.
O(s) Coletivo(s) me fortalece(m) academicamente.
O(s) Coletivo(s) já me ajudaram a enfrentar situações
de racismo na universidade e/ou fora dela.
Compreendo o(s) Coletivo(s) como uma militância
política.
A atuação do(s) Coletivo(s) ajudam a alterar as
lógicas eurocêntricas da Universidade.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para
estudos e discussões acadêmicas.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para a
sociabilidade e lazer.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para
discussões e atuações políticas.
As atividades promovidas pelo(s) Coletivo(s)
enriquecem minha formação pessoal.
4,75
4,5
3,625
4
4,25
4,625
4
4,875
4,625
4,625
4,125
4,875
4,875
208
racismo e da exclusão social na sociedade brasileira e também na universidade que marcam
seus corpos e percursos, para que a partir daí possam construir novos posicionamentos.
Posicionamentos estes que recusem o lugar do incômodo ou do ruído, ou ainda da
aculturação ou inclusão subalterna, mas que sejam marcados pela valorização da
diversidade como um princípio fundamental para a democracia, a igualdade, a
universidade na forma de vozes que possuem autores, história e legitimidade para se
expressar (idem, p. 229).
A pesquisa de Gomes (2008) ao tratar sobre a importância das redes de
solidariedade entre jovens negros, para quem a universidade não funciona como meio de
assimilação ou embranquecimento, aponta que parece “significativo que o primeiro estudante
negro da UNICAMP pertença e seja presidente da associação negra mais antiga de Campinas:
a Liga Humanitária dos Homens de Cor” (GOMES, 2008, p. 141). A autora (p. 140) explica
que
Através de suas práticas o grupo de estudantes negras pesquisado mostra que
ascensão, embranquecimento e assimilação são coisas distintas. Elas retornam a
grupos semelhantes ao seu grupo de origem. São trânsfugaz interculturais no sentido
empregado por Ricardo Vieira132
, já que tornam sua própria existência de vida como
mote para ter uma atuação mais crítica. Nesse sentido exerceriam um certo tipo de
feminismo negro, ligado à educação de outros negros e interessadas também em sua
entrada na universidade. Desse modo, notar-se-ia que a assimilação não é um
modelo determinista de ascensão social, como já mostrava Virgínia Bicudo133
nos
anos 1940. Para esse grupo a universidade não funciona como meio de assimilação
ou embranquecimento, mas como reforço e descoberta de sua negritude e de um
possível ativismo a partir dela.
A história de luta de estudantes negros e negras dos Coletivos – Frente Pró-Cotas
e Núcleo da consciência Negra – que apresentaremos a seguir evidenciará este
posicionamento crítico, capaz de interpelar a universidade nos seus pilares basilares: a
meritocracia, as dinâmicas institucionais burocratizadas e as concepções de ciência
hegemônica.
4.2.1. Frente Pró-Cotas da Unicamp
A pesquisa sobre a Frente Pró-Cotas (FPC) se iniciou em 2015, no auge da luta
132 VIEIRA, Ricardo. Vidas revividas: etnografia, biografia e a descoberta de novos sentidos. Disponível em:
<http://www.identidades.esel.ipleiria.pt/fct/tsip/Ricardo%20Vieira%202003.doc>. Acesso em 12 ago. 2006.
133 Em 1945, Virgínia Leone Bicudo tornou-se uma das três primeiras estudantes a concluírem os estudos de pós-
graduação na Escola Livre de Sociologia e Política, sendo a primeira a defender uma dissertação sobre relações
raciais (GOMES, 2008, p. 40).
209
por cotas étnico-raciais no programa de pós-graduação da Faculdade de Educação. Além da
participação em algumas reuniões, a pesquisa se deu por documentos produzidos pelo
coletivo, como também com uma entrevista com um membro do Coletivo, estudante de
mestrado no IFCH, que preferiu não se identificar, uma vez que o grupo é formado sem
hierarquias institucionalizadas e tem por preceito se apresentar apenas enquanto coletivo.
Além disso, outros motivos que levam os participantes a preservarem a identidade individual
é a possibilidade de perseguição política dentro dos seus institutos, o que já foi vivenciado em
forma de assédio por membros do corpo docente, e também para evitar um protagonismo
individual.
O manifesto de formação da Frente134
data de 08 de outubro de 2012, assinado por
diversas entidades apoiadoras (coletivos, movimentos negros, cursinhos populares, centros
acadêmicos, sindicatos etc.) traz que o objetivo da Frente é
reivindicar cotas raciais e sociais na Unicamp e não apenas políticas de ações
afirmativas, como o PAAIS que não oferece o mesmo resultado que as cotas, por
exemplo em 2012, em oito dos dez cursos mais concorridos da Unicamp, não
ingressou nenhum preto. Defendemos uma política de cotas equivalentes às
proporções raciais de cada Estado e também uma análise mais apurada dos projetos
de lei já existentes que, embora apresentem problemas sérios em sua redação,
sobretudo no que se refere à questão racial, representam um importante avanço.
Assim, a Frente Pró-Cotas da Unicamp é uma entidade formada por estudantes de
graduação e pós-graduação de diversos cursos da universidade que trazem à tona a discussão
sobre a necessidade de cotas étnico-raciais. O entrevistado, que participou dos primeiros anos
do coletivo, conta que:
O novo grupo que se organizou na Frente discutir seu objetivo principal: formular a
proposta de cotas e aprová-la na congregação do IFCH. Em tese, uma aprovação
neste âmbito não impõe uma regra aos programas de todos os cursos. Contudo, além
de colocarmos a discussão das cotas no principal espaço institucional no IFCH,
fazendo com que o corpo docente se posicionasse sobre o assunto, uma decisão da
congregação tinha um forte efeito simbólico que poderia nos ajudar nas discussões
internas nos departamentos.
O grupo passou a se reunir e traçamos uma estratégia. O seu resultado é a nossa
proposta. Primeiro, mapeamos todas as propostas de cotas étnico-raciais em pós-
graduações no Brasil. Depois reunimos as principais propostas de cotas nos cursos
de graduação de universidades brasileiras, conferindo importância para as que foram
pioneiras e as que foram criadas nas universidades consideradas mais importantes.
Além disso, reunimos uma bibliografia nacional e internacional sobre a questão das
ações afirmativas. Outros documentos, como o elaborado pelo STF a respeito da
constitucionalidade das cotas, e vídeos com debates, foram também importantes.
Com este material, fora a experiência de alguns dos membros da Frente, os quais já
tinham atuado em outras universidades do Brasil, traçamos os principais pontos do
134 O que defende a Frente Pró-Cotas da Unicamp? Disponível em:
https://cotasunicamp.wordpress.com/2012/10/08/texto-com-o-posicionamento-do-grupo/ Acesso em 21/07/2018.
210
debate. Estávamos preocupados em pontuar os principais argumentos contra e a
favor das cotas. Refletimos que este debate deveria entrar em nossa proposta, pois
quase não havia debate acerca do assunto no instituto.
Por isso, na medida em que fazíamos as reuniões internas, promovemos atividades
no IFCH para colocar a discussão. Debater a questão já era um avanço. Era
importante confrontar as posições contrárias em um espaço público com estudantes,
funcionários e professores (entrevistado, homem, negro, doutorando).
Outra integrante evidencia que, mesmo que indiretamente, a Frente Pró-Cotas
descende da história dos Movimentos Negros no Brasil e no mundo, assim como da crítica à
política de inclusão utilizada pela Unicamp, o PAAIS.
Tem uma história longa a luta do movimento no mundo e no Brasil. Ao mesmo
tempo, a frente pró-cotas deriva dessa história, e em específico na Unicamp da
existência de colectivos que acolhem e promovem as pautas do movimento negro x
direito à educação. De fato, um de nossos antecedentes é em torno da discussão
sobre o PAAIS... (sujeito 7, mulher, indígena estrangeira, doutoranda).
As reuniões da Frente à época aconteciam semanalmente e eram abertas a todas/os
interessados na discussão sobre ações afirmativas. O grupo contou também com a
participação de professores e funcionários que atuaram como apoiadores, algumas vezes com
grande importância, conforme nos relata o entrevistado:
Os professores que se dispuseram a nos auxiliar deram apoio no âmbito institucional
do IFCH, abrindo espaços, por exemplo, para nossa participação nas reuniões de
departamentos e na congregação. Alguns professores também participaram de rodas
de conversas e debates que organizamos ao longo do ano passado (2014). Já os
funcionários, nos ajudaram nos momentos em que a mobilização precisava se
intensificar. O STU deu apoio com estrutura de som e impressões de textos e
cartazes que produzimos (entrevistado, homem, negro, doutorando).
A primeira conquista expressiva do Coletivo foi a aprovação das cotas étnico-
raciais na pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH. A luta
começou no final de 2013 quando, inspirados no exemplo do Museu Nacional do Rio de
Janeiro, que determinou a implementação de cotas étnico-raciais no programa de
Antropologia Social (segundo semestre de 2013), um grupo de estudantes encontrou uma
brecha institucional para discutir as cotas na Unicamp: a autonomia dos programas de pós em
decidir a forma e os critérios dos processos seletivos sem passar pelo Conselho Universitário.
211
Figura 12 - Roda de Conversa realizada pela Frente Pró-Cotas em 2014
Fonte: Grupo “Frente Pró-Cotas” Rede social.135
O debate sobre as cotas na pós-graduação do IFCH foi também um disparador
para novos participantes na Frente, conforme relatado por um dos respondentes (sujeito 21,
homem, negro, doutorando)
No IFCH houve uma discussão por meio de uma mesa organizada pelo
departamento de História sobre a questão das cotas na pós-graduação. Começamos a
discutir sobre a possibilidade de implementar as cotas na pós, compreendendo que
isso seria uma forma de reiniciar a discussão sobre cotas na Unicamp. Era uma pauta
concreta, que achávamos que poderia ter força para mobilizar as pessoas. Então
começamos a participar da Frente, que já tinha feito um trabalho bem importante,
mas que sofria com a saída de muitos membros. Isso é um pouco do processo de
consolidação do grupo que participei. Minha decisão, para ir diretamente na
135 Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=384324448400082&set=gm.769119266493193&type=3&theater&if
g=1
212
pergunta, acho que ocorreu nesse processo. Eu já tinha lido e conversado sobre a
questão das cotas com alguns amigos e amigas de outras universidades. Com o
início das conversas com algumas pessoas que eram do Núcleo e também da
Moradia, passamos a conversar muitos e depois a estudar a questão das cotas e como
ela poderia se fortalecer na Unicamp. Como também tive muita dificuldade para
entrar na universidade, vi, por meio dessa troca de ideias, que a questão das cotas
representava uma possibilidade de democratizar o acesso. Hoje vejo que a relação
entre estudantes da moradia e do Núcleo foi fundamental para consolidação do
grupo naquela época. Depois vieram outros alunos da pós e da graduação do
Instituto, que também contribuíram.
Assim, após diversas reuniões e atividades no IFCH que colocavam a temática em
discussão, o grupo teve como primeiro resultado a “Proposta de Cotas Étnico-Raciais e de
pessoas com deficiência para Programas de Pós-Graduação” que explica a necessidade de
cotas tendo em vista
o quadro de sub-representação de negros, indígenas e pessoas com deficiência nas
posições tanto de professores, quanto de alunos das pós-graduações nas
universidades públicas em geral, e em particular nas universidades paulistas, faz-se
necessária e urgente a implementação de uma política de ação afirmativa a fim de
agir como ferramenta tanto de reparação política sobre os efeitos da exclusão
histórica dessas populações dos espaços educacionais e acadêmicos, quanto de
garantia dos direitos constitucionais dessas populações ao acesso à educação - em
especial à educação diferenciada no que toca às populações indígenas e pessoas com
deficiência.
Como toda política de ação afirmativa, ela deve ter caráter emergencial,
temporário e experimental. Emergencial porque não há indícios de que a situação
de exclusão virá a modificar-se somente a partir de políticas educacionais globais e
universalistas. Para que as universidades cumpram seu papel democrático, é preciso
forjar políticas que incidam diretamente sobre este descompasso, levando em conta
as diferenças nas trajetórias sociais dos envolvidos. Temporário porque a função de
políticas dessa natureza é justamente a de deixar de ser necessária: ao atuar na
correção da desigualdade, esta, ao deixar de existir, permite que em condições de
igualdade os critérios possam ser avaliados, enfim, no âmbito das políticas
universalistas. Nesse sentido, para se medir sua eficácia, os efeitos da ação
afirmativa devem ser continuamente acompanhados. Assim sendo, propõe-se fazer
um balanço anual da aprovação afirmativa e de seu impacto através de seminários e
da criação de um Fórum Permanente. Ao término de 10 anos de aplicação, após a
conclusão de duas turmas de doutorado e de aproximadamente quatro de
mestrado, deve-se realizar uma avaliação da pertinência dessa política e de seus
critérios. Por isso, ela é também experimental, uma vez que não há nada que
impeça que esta política específica seja alterada, refinada ou mesmo suprimida nos
anos posteriores, desde que exista um acompanhamento preciso de seus efeitos,
carências e acertos (FRENTE PRÓ-COTAS DA UNICAMP, 2015, pp.19-20).
[conforme original].
A Proposta previa um adicional de vagas mínimo de 25% para negros/as, um
adicional de vagas para pessoas com deficiência de no mínimo 1 (uma) vaga no mestrado e
mais no doutorado e o adicional de vagas para indígenas também de no mínimo 1 (uma) vaga
no mestrado e uma no doutorado do total oferecido a cada ano em seus processos seletivos. O
documento foi apresentado e discutido na 209ª Sessão Ordinária do Instituto de Filosofia e
213
Ciências Humanas em 11 de março de 2015 sob mobilização de muitos estudantes de
graduação e de pós-graduação. Na sessão:
A representante discente Tatiane Lopes leu uma moção de apoio à adoção de cotas
étnico-raciais na Pós-Graduação do IFCH. O documento havia sido aprovado por
assembléia estudantil realizada no dia anterior. Em seguida, o Prof. Sidney
Chalhoub passou a palavra ao mestrando Rodrigo, integrante da Frente Pró-Cotas,
fórum que confeccionou a proposta protocolada na Congregação. O aluno comentou
o histórico que levou à elaboração da proposta, explicou a sistemática, o percentual
de 25% de cotas e os mecanismos sugeridos para os processos seletivos da pós-
graduação. Em seguida, a Profª. Suely Kofes falou que, com relação aos negros, o
documento justifica bem a necessidade das cotas. Já a questão dos deficientes físicos
pareceu-lhe enxertada na proposta. Com relação às populações indígenas, disse
haver uma ambigüidade: se, por um lado, reconhece-se suas especificidades em
relação à população afrobrasileira, por outro, o documento pecou em não trazer uma
proposta mais efetiva para esta população. Em seguida, questionado, o Prof. Sidney
Chalhoub explicou que o encaminhamento sugerido é que o documento seja
apreciado pela instância máxima do Instituto, sendo política a decisão quanto a
adoção de cotas. Afirmou ser evidente que a sistemática e aspectos da aplicação da
proposta terão de ser, posteriormente, discutidos em cada programa de pós-
graduação. O Senhor Presidente ponderou que o documento não deve ficar como
uma espécie de princípio pétreo, que não possa ser modificado, sugerindo sua
discussão em diferentes instâncias. O Prof. José Alves argumentou que seu voto
deve representar a posição de seu Departamento. Entretanto, ele afirmou não saber
como seus colegas se posicionam quanto a este tema, pois alguns não tiveram acesso
ao documento. Assim, acredita que a dinâmica deva ser devolver aos
Departamentos, para que os mesmos possam apreciar a questão. A representante
discente Tatiane Lima sublinhou que a Unicamp está atrasada em relação a esta
temática. Afirmou que a UERJ tem cota há mais de dez anos, enquanto as
universidades estaduais paulistas não têm projetos quanto a isso. A Profª. Yara
Frateschi comemorou que o tema das cotas entrou na agenda da Congregação.
Entretanto, para ela, o teor do documento ainda não entrou na agenda do Instituto,
em todas as suas instâncias. Diante do tamanho do que está em questão, manifestou-
se pelo encaminhamento do tema aos departamentos e aos programas de pós. Assim,
o debate seria retomado posteriormente na Congregação. Para que o assunto não se
arraste por muito tempo, a representante discente Tatiane Lima solicitou a
determinação de um prazo para a implantação das cotas. Em seguida, com o intuito
de conciliar todos os pontos levantados, formularam-se três quesitos, que foram a
escrutínio: 1 - A Congregação acatou o princípio e a regra de cotas nos
Programas de Pós-Graduação (aprovado, com três abstenções); 2 - O
documento apresentado pela Frente Pró-Cotas é base para discussões e decisões
departamentais quanto à aplicação da ação afirmativa em cada Programa de Pós
(aprovado por unanimidade) e; 3 - Os Programas devem se organizar de modo que o
princípio de cotas esteja plenamente em vigor no próximo exame de seleção
(aprovado, com cinco abstenções) (ATA da 209ª SESSÃO ORDINÁRIA DA
CONGREGAÇÃO136
, 2015). [grifo nosso].
O trabalho prosseguiu com participação nas reuniões dos departamentos e, de
acordo a Frente, atualmente apenas o curso de demografia apresenta resistência para a
aprovação das cotas, embora existam professores deste curso que apoiam a ideia. Os cursos de
Antropologia Social, Ciências Sociais, Ciência Política, História, Relações Internacionais e
136 Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ifch/pf-ifch/public-files/congregacao/atas/ata_da_209a_0.pdf
214
Sociologia apresentaram edital com cotas étnico-raciais no ano de 2015. Os cursos de
Filosofia, Demografia e Ambiente & Sociedade lançaram os processos seletivos com cotas em
2016. Nenhum curso adotou cotas para pessoas com deficiência como constava na proposta
elaborada pela Frente.
O objetivo desta proposta, segundo a Frente, não é, contudo, questionar a
meritocracia uma vez que as cotas também constituem sistemas meritocráticos de seleção,
dado que a disputa pelas vagas entre os optantes é inevitável. Porém, as cotas intentam criar
condições de competitividade entre pessoas e grupos com equivalentes trajetórias sociais, ou
seja, o que os sistemas de cotas fazem é questionar os modelos atuais de aplicação da
meritocracia nos processos seletivos, os quais se sustentam em uma pretensa igualdade de
direito, mas não de fato.
A criação de cotas na pós-graduação possui ainda o objetivo de trazer para o
espaço de pesquisa acadêmica o questionamento das formas de exclusão racial que, por muito
tempo, foram pensadas como restritas às etapas anteriores de ensino. Elas podem ainda
proporcionar a produção de conhecimentos vinculados a concepções teóricas,
questionamentos e referências culturais dos grupos até então não participantes deste espaço.
Salientamos ainda que após a aprovação, seguiram os eventos com objetivo de
dialogar com a sociedade acadêmica o tema das ações afirmativas. Exemplo disso é o evento
“Prosa Sociológica – Por que Ações Afirmativas?” que, embora não tenha sido organizado
pela Frente, foi divulgado nas redes sociais do coletivo.
215
Figura 13 - Divulgação de Evento para discussão sobre Cotas.
Fonte: Grupo “Frente Pró-cotas” em Rede Social137
A aprovação de cotas no IFCH foi apenas a primeira vitória da Frente. A ação,
conforme era expectativa do grupo, teve um efeito multiplicador, primeiro na pós-graduação
de outros institutos e faculdades que acabaram por aprovar cotas étnico-raciais em seus
programas (Faculdade de Educação, 2016; Instituto de Economia, 2017; Instituto de Estudos e
Linguagem, 2018) até a aprovação de cotas para a graduação em 2017 para o vestibular ano
2019.
Em maio de 2016 a greve deflagrada pelas três categorias – docentes, funcionários
e estudantes – embora com tempo de duração diferentes, foi o momento de grande
137 Disponível em:
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=960712590606652&set=a.713750728636174.1073741826.1000000
37614865&type=3&theater&ifg=1
216
protagonismo dos coletivos Frente Pró-Cotas e Núcleo da Consciência Negra.
A greve dos estudantes, iniciada em 5 de maio, tinha como mote geral a
contrariedade do corte de gastos de R$ 40 milhões, aumento no número de moradias e adoção
de cotas étnico-raciais para a graduação. Em 10 de maio a ocupação da reitoria forçou um
diálogo com as Instâncias Superiores da Universidade que, dentre outras coisas, pautava a
necessidade
adoção de uma política de cotas étnico-raciais na graduação da Unicamp como
principal política afirmativa para promoção da inclusão social e étnico-racial na
universidade, a ser construída em conjunto e de forma paritária com toda a
comunidade acadêmica – estudantes, professores e funcionários – e, juntamente aos
movimentos sociais que levantam e constroem esse debate na universidade (Frente
Pró-Cotas e Núcleo de Consciência Negra), por meio da aprovação do princípio de
cotas étnico-raciais, referente ao documento anexo (PRIMEIRA PAUTA DE
REIVINDICAÇÕES, 2016).
Conforme relatado pela integrante da Frente, durante os três meses de greve, o
movimento para disseminar a discussão sobre a necessidade de cotas étnico-raciais para a
graduação da Unicamp aconteceu por meio das ações de debates e rodas de conversa lideradas
pelos membros do Coletivo. De tal modo, a discussão se estendeu aos diversos institutos e
faculdades da Universidade entre estudantes, funcionários e docentes, ocupando reuniões de
departamentos e rodas de conversa, dentro de um processo democrático que buscou trazer
maior nitidez ao tema. Houve ainda a realização de assembleias que resultaram em diversos
institutos aderindo à greve e incluindo como mote a adoção das cotas étnico-raciais, até
mesmo em alguns institutos e/ou faculdades historicamente avessos a greves, como foi o caso
do curso de engenharia mecânica, por exemplo.
À época da greve a Frente publicou uma Carta Aberta intitulada “Cotas sim!
Cortes não!” a qual pode ser conhecida a seguir.
217
Figura 14 - Carta Aberta da Frente Pró-Cotas
Fonte: Grupo “Frente Pró-Cotas da Unicamp” em rede social138
A Frente Pró-Cotas produziu ainda um documento de estudo sobre a falta de
representatividade negra e indígena na Unicamp, assim como demonstrou que o PAAIS não é
eficiente na inclusão nos cursos de maior prestígio.
Paralelo a isso, na Faculdade de Educação a discussão sobre a implementação de
cotas no Programa de Pós-Graduação139
ganha espaço quando também em maio de 2016 um
grupo de estudantes de graduação ocupou o Prédio principal da Faculdade de Educação como
meio de, dentre outras coisas, pressionar a direção para incluir o debate sobre as cotas na
138 Disponível em
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=596803803818811&set=gm.1059439220794528&type=3&theater&i
fg=1
139 A luta pela implementação de cotas no PPGE da FE começou com o “X Seminário de Teses e Dissertações
em andamento – Qual é o lugar da Pesquisa e da Formação na Pátria Educadora” em setembro de 2015. O
evento, promovido pela Associação de Pós-Graduandos (APG) em diálogo com a Frente Pró-Cotas, teve a Mesa
“Cotas na pós-graduação em educação: Construindo uma proposta” composta pelo Prof. Douglas Belchior -
Prof. da Rede Estadual e membro do Movimento Negro e pela Profª Dra. Maria Valéria Barbosa da UNESP de
Marília. A partir de então, uma parceria entre a APG e a Frente promoveu diversas rodas de conversa para
fomentar o debate acerca do tema na FE. O primeiro debate ocorreu em 04 de novembro de 2015.
218
Figura 15 - Divulgação de debates sobre “Cotas Étnico-raciais” na FE
agenda oficial da Faculdade. Após 3 dias de ocupação, o acordo foi realizado e o prédio
desocupado140
.
Importante destacar que a discussão sobre Cotas vinha sendo feito na Faculdade
de forma mais sistematizada desde o ano anterior (11/2015), conforme é possível observar na
imagem a seguir.
Fonte: página da APG em Rede Social141
A questão da implementação do princípio de cotas foi incluída na Pauta da 304ª
Reunião Ordinária da Congregação da Faculdade de Educação que aconteceu em 29 de junho
de 2016. Na discussão sobre a Proposta de cotas étnico-raciais e pessoas com deficiências no
programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE):
A Professora Ana Archangelo questionou em que se basearam 46 para chegar ao
período experimental de 10 anos. O acadêmico José Claudio do Espírito Santo
Souza esclareceu que o prazo de 10 anos é um período considerável para avalição de
um programa dessa natureza. O Professor Maurício Érnica como chefia do
DELART, colocou a posição do departamento sempre favorável às cotas, mas
gostaria de ouvir dos docentes que estiveram envolvidos, como foi pensada a
entrada, para que a Congregação pudesse ter ciência das discussões. A acadêmica
Liliane Bordignon de Souza expressou seu contentamento em estar na Congregação
da FE que deu a contribuição para a minimização do problema social. Em seguida
passou a palavra para o acadêmico Bruno. O acadêmico Bruno Botelho Costa fez
uma breve explanação do processo de elaboração da proposta de cotas do PPGE,
cujo encaminhamento partiu de uma comissão criada pela CPG, encaminhada pela
Direção, após mobilização dos estudantes. O Professor Maurício Érnica questionou
o item da proposta onde consta o percentual de 35% para negros/as, uma vez que
não ficou claro para ele como se dará o cálculo no processo de ingresso. A
Professora Débora Mazza manifestou sua alegria em ver a diversidade presente
naquela Congregação. Propôs alterações no texto apresentado. O Professor Renê J.
140 Notícias sobre a ocupação: http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2016/05/predio-da-faculdade-de-
educacao-da-unicamp-sera-desocupado-16h.html; https://educacao.uol.com.br/noticias/2016/05/05/estudantes-
ocupam-predio-da-faculdade-de-educacao-da-unicamp.htm
141 Disponível em: https://www.facebook.com/pg/Associa%C3%A7%C3%A3o-de-P%C3%B3s-Graduandos-
da-FEUnicamp-347645652105503/photos/?ref=page_internal
219
Trentin perguntou se alguém pertencente aos povos indígenas presentes gostaria de
se manifestar. Assim, 3 representantes de comunidades indígenas se manifestaram
alegres em poderem participar dessa discussão sobre a diversidade. A Professora
Mara Jacomeli destacou que caso se fechassem na definição do percentual a partir
das vagas nas linhas de pesquisa não daria certo. Salientou que a proposta não é da
Coordenação de Pós, mas da CPG e docentes representantes dos departamentos. Há
compromisso formal do edital que será feito pela comissão do processo seletivo com
a comissão de cotas para avaliação jurídica do que é possível ser feito, além do que,
a implementação dessa política será frequentemente revisada e acompanhada. Para
tanto, pediu um voto de confiança da Congregação da FE. O Professor Renê J.
Trentin registrou a importância da discussão no departamento. Salientou que no
DEFHE a posição foi unânime e a reunião contou com 4 representantes do segmento
estudantil. Registrou sua felicidade em estar participando daquela reunião de
Congregação, com a presença dos representantes indígenas e também do grande
grupo de discentes que acompanhava a seção. O Professor Antonio Carlos Dias
Júnior, registrou a alegria em receber todos naquela Congregação. Enquanto
membro da comissão de bolsas, reafirmou o compromisso assumido. A Professora
Lavínia Magiolino também registrou sua felicidade, uma vez que sentiu-se honrada
em participar desse momento histórico. A Professora Débora Jeffrey salientou que
não dá para discutir cotas sem discutir permanência. O Professor Lalo W. Minto
defendeu que o encaminhamento fosse feito de acordo com a proposta original, haja
vista que representa garantia suficiente para que o princípio geral de 35% das vagas
para negros (as), bem como as demais cotas, estejam representadas no final do
processo. A Professora Mara Jacomeli frisou que o documento é composto por
posicionamentos diversos. Sugeriu que o mesmo seja aprovado como está e as
comissões vão estudando as sugestões da Congregação e dos alunos. O servidor
Jórgias Alves Ferreira salientou que havia consenso pela aprovação das cotas e o
que estava em discussão era a operacionalização. Sendo assim, sugeriu aprovar
como está, e depois vai se discutindo a operacionalização. A Professora Ana
Archangelo disse que o texto do documento estava produzindo equívocos, ou seja, o
que estava escrito não estava suficientemente claro para garantir o que se queria.
Após diversas intervenções dos senhores conselheiros quanto à forma de cálculo dos
35%, se referente ao número de vagas abertas no edital ou se referente aos
aprovados ao final do processo seletivo, e todos os esclarecimentos ali prestados, a
Professora Dirce Zan propôs a votação do documento como foi encaminhado à
Congregação, apenas com as alterações propostas pela Profa. Débora Mazza.
Aproveitou para manifestar a alegria da Direção e agradeceu a Coordenação de Pós-
Graduação por ter abraçado o trabalho. Salientou que a FE estaria fazendo história.
Reiterou que seriam necessárias outras ações para garantir o avanço do processo de
democratização da pós, aprovar o documento seria a 1ª parte. Frisou que a Direção
confia na comunidade, no Fórum de Diversidade e nas instâncias gestoras da FE.
Salientou que o momento era de se repactuar a relação de confiança entre todos.
Assim, a Professora Dirce Zan colocou o item para votação, o qual foi aprovado
com a seguintes votos: 22 votos favoráveis e 1 abstenção. A Professora Selma
Martinelli que se absteve, fez a seguinte declaração de voto: “O DEPE aprova o
mérito da proposta, mas não o documento apresentado, tendo em vista que as
discussões no departamento apontam para muitas fragilidades no documento que
precisariam ser revistas, e que foram esclarecidas no ofício enviado a CPG. Os
professores manifestaram a necessidade de que o documento com as alterações
propostas pelo conjunto dos departamentos fosse novamente apreciado antes de seu
envio à Congregação. (ATA DA 304ª REUNIÃO, 2016142
) [grifo nosso].
Na greve que abarcava estudantes de diversos institutos e faculdades, após três
142 Disponível em: https://www.fe.unicamp.br/system/files/reunioes/3267/20160824-
14252426787500_168947_phpfbfnl9.pdf
220
meses de ocupação e negociação, a pauta das cotas foi atendida com o acordo de que
haveriam discussões em três Audiências Públicas na Unicamp. Assim, por meio da GR-
050/2016 de 06/09/2016, foi criado o Grupo de trabalho responsável pela organização das
Audiências Públicas para debater a Política de Cotas na Unicamp. O grupo foi constituído
pelos seguintes membros: Profa. Dra. Rachel Meneguello – Presidente; Prof. Dr. João
Frederico da Costa Azevedo Meyer; Prof. Dr. Julio Cesar Hadler Neto; Profa. Dra. Lucilene
Reginaldo; Prof. Dr. Mário Augusto Medeiros da Silva; Profa. Dra. Adriana Nunes Ferreira
(convidada); Gabriela Nascimento Ananias; Gustavo Reis de Araújo; Mariel Mitsuru Nakane
Aramaki; Taina Aparecida Silva Santos e Teófilo de Souza Carmo Reis.
A primeira audiência aconteceu em 13 de outubro com o tema “Cotas e ações
afirmativas: perspectiva histórica e o papel da Universidade Pública no Brasil” e teve como
objetivo, de acordo com o Edital143
publicado:
Realizar Audiência Pública, com a participação da comunidade acadêmica e de
todos os interessados da sociedade civil, visando subsidiar a discussão e deliberação
pelo Conselho Universitário da UNICAMP sobre a implementação da política de
cotas étnico-raciais nos cursos de Graduação da Universidade Estadual de
Campinas.
Além dos professores convidados para compor a mesa desta 1ª Audiência – Luiz
Felipe de Alencastro (FGV), José Jorge de Carvalho (UnB) e João Paulo Tukano (UFAM) –
houve espaço também para a falas da Plenária, na qual a Frente Pró-Cotas f oi a primeira e
fazer uso da palavra:
O objetivo da educação está em inventar e reinventar a civilização sem barbárie"
(Florestan Fernandes). Embora tenha nascido pobre e tenha chegado ao posto de
professor, Florestan seguramente não acreditava na meritocracia como ideal de auto
constituição do indivíduo, sua questão não era como ele chegou lá, mas sim, por que
seus amigos e amigas de infância não chegaram. A Frente Pró-Cotas, nós
entendemos, que a melhor defesa para universidade pública está na defesa da
diferença, da diferença epistemológica, da diferença cultural, étnico-racial de classe,
de gênero, enfim, na abertura para outras formas de se fazer a universidade. Essa
defesa da diferença que mais do que agregar novas manifestações culturais e sociais
ter esses postos de que somos pessoas diferentes que partimos de trajetórias sociais,
históricas diferentes, contudo, ressaltamos tudo isso visando uma igualdade de fato
(GT, 2017, pp. 11-12).
A defesa da FPC reconhece que “as parcialidades que sustentam e mantêm a
supremacia branca, o imperialismo, o sexismo e o racismo distorcem a educação a tal ponto
143 Disponível em:
http://www.unicamp.br/unicamp/sites/default/files/field/arquivo/edital_da_1a_audiencia_publica_cotas_etnico-
raciais_graduacao.pdf#overlay-context=noticias/2016/10/03/primeira-audiencia-publica-de-cotas-etnico-raciais-
sera-dia-13
221
que ela deixou de ser uma prática de liberdade (HOOKS, 2017, p. 45). De tal modo, esse
clamor pelo reconhecimento da diversidade cultural e epistemológica, bem como a
concomitante transformação das salas de aula, de como se ensina e do que se ensina, são
revoluções necessárias – “que buscam devolver a vida a uma academia moribunda e corrupta”
(idem.)
A segunda Audiência Pública teve como tema “Cotas e ações afirmativas:
experiências nacionais e internacionais”. Realizada em 18 de novembro, contou com o
auditório da Faculdade de Ciências Médicas lotado, assim como aconteceu na Primeira
Audiência. Uma das professoras convidada para esta audiência, Tatiane Cosentino Rodrigues
da UFSCar, relatou a importância não apenas do acesso, mas de modificar uma estrutura a fim
de que a política seja eficiente em toda a sua potencialidade (SUGIMOTO, 2016), de acordo
com ela:
O pressuposto é que as políticas de ação afirmativa não se limitem a questões
relativas ao acesso de estudantes anteriormente excluídos ou com desiguais
possibilidades de ingresso. A meta é que essas políticas passem a integrar e
modificar a estrutura universitária, estando presentes em diferentes componentes do
dia a dia da universidade, como indicam todos os documentos normativos da
proposta para educação das relações étnico-raciais no ensino superior.
A última audiência, ocorrida em 12 de dezembro, debateu o PAAIS sob o tema
“Cotas e ações afirmativas: o PAAIS, seus alcances e limites”. Um representante da Frente
Pró-Cotas atentou sobre como a política adotada pela Unicamp há mais de uma década não foi
eficiente para a inclusão de pessoas negras e indígenas.
[…] em vigor há doze anos, apresenta falhas lamentáveis no que diz respeito a
inclusão racial. No período entre 2005 e 2015, houve uma média de 16% na
inscrição, na inserção de alunos e alunas negras na universidade, número muito
abaixo da porcentagem da população do estado de São Paulo, que corresponde a
35% segundo dados do IBGE. Em 2016 com a atualização do PAAIS, esse número
subiu para 22%, onde 16% dos matriculados utilizaram o PAAIS. Após doze anos, o
PAAIS não atingiu a meta que ele mesmo se propôs, que era de 35%, e está claro
que ele não vai cumprir, a gente viu claramente isso nas falas, nos dados
apresentados. O programa da Unicamp não apresenta recorte racial nessa seleção e
nem mesmo de renda, pois a bonificação de pontos é dado a alunos de escola
pública, sem considerar que escolas são essas, as famosas escolas modelos, em sua
maioria, sem considerar que tipo de aluno frequentam essas escolas-modelo[…] Por
que o PAAIS ainda não atingiu a meta que ele mesmo se propôs atingir? O PAAIS
quer atingir a meta? Sendo que as cotas garantem a meta? E todas as federais que a
adotaram comprovaram esse sucesso? Porque a Unicamp ainda nega cotas? A
porcentagem de alunos brancos muda muito pouco em todos esses anos de PAAIS,
nass artes o percentual de alunos brancos somente neste ano foi de 75%, na ciências
biológicas e saúde, matriculados negros não ultrapassam os 22%, que é a média de
ingressantes deste ano de 2016. Dados de 2013 mostram que existem 2.077 docentes
na Unicamp, apenas 32 são negros, ou seja, 1,54%, o conhecimento aqui fornecido é
baseado em brancos, em sua maioria homens, e para brancos, até estudos sobre
racismo e movimentos negros são feitos por brancos. […] Coincidentemente, os
restaurantes universitários que aqui frequentamos, mostram o inverso, os
222
trabalhadores e trabalhadoras terceirizados são esmagadoramente negros, e é esta a
imagem da Unicamp, quem ensina são os brancos, eles são os bons e recebem os
melhores salários e o melhor tratamento; os negros estão aqui para limpar e servir, e
os que entram para estudar precisam passar pelo constrangimento de sentir que não
pertencem a este lugar. Isto é aceitável para Unicamp? (GT, 2017, p. 48).
A Frente questionou ainda a inclusão de indígenas, conforme o registro da fala a
seguir:
O PAAIS é uma ação afirmativa à qual de forma indireta, porém formal,
compromete-se com a inclusão de estudantes indígenas na universidade. O “I” do
PPI, no entanto, na realidade cotidiana da Unicamp, o objetivo de inclusão de
estudantes indígenas, parece de fato não existir. O que a Unicamp sabe sobre seus
estudantes indígenas? Qual é o compromisso da Unicamp para com os estudantes
indígenas? Entre 2005 e 2016, doze anos de PAAIS,119 estudantes autodeclarados
indígenas ingressaram na Unicamp, desses, 59% não utilizaram o PAAIS. É
aceitável que uma política de Ação Afirmativa seja subutilizada? A realidade é que o
PAAIS não se apresenta verdadeiramente como uma Ação Afirmativa para a maioria
dos estudantes indígenas, desses 119 estudantes, 70, 70% tiveram que fazer cursinho
pré-vestibular, O que nos levar questionar se algum momento, desde a sua criação
até o ano atual a Comvest ou Unicamp consideraram respeitar o direito indígena, a
educação específica, intercultural e pautada pelos de línguas indígenas, prevista na
constituição de 88, na lei diretrizes de bases da educação nacional, e no plano
nacional de educação, desenhando uma seleção que respeitasse e promovesse esses
direitos, como fazem os vestibulares indígenas em diversas universidades federais.
A realidade, é que o PAAIS como ação afirmativa pela inclusão de estudantes
indígenas, apresenta-se mais como um mecanismo de violação dos direitos desses
povos, seguindo agenda histórica de 516 anos. Desses 119, 41% não permaneceram
na Unicamp, seja por abandono ou por desligamento, o que nos leva a questionar:
Qual o compromisso da Unicamp com a permanência material e simbólica de seus
estudantes indígenas? Perguntam-lhes a que povos pertencem? Não. Oferecem-lhes
ensino bilíngue ou auxílio com português? Não. Preparam os professores para lidar
com as suas especificidades culturais? Também
não. Oferecem-lhes apoio psicológico diferenciado? Não. Oferecem-lhes espaço
para vivência multicultural? Não. Atualmente, 25 estudantes indígenas cursam a
graduação da Unicamp, 25 estudantes cujas dificuldades e necessidades não são
expostas, porque a universidade, a bem da verdade, simplesmente não está
interessada. Professor Pedrosa, a Unicamp considerou visitar alguma das 30 terras
indígenas demarcadas do estado de São Paulo, para abrir as demandas desses
povos quanto à educação superior? Considerou conversar com os professores
indígenas do estado para desenhar uma política de Ação Afirmativa condizente com
a realidade da educação escolar indígena de São Paulo? Professor Edmundo, a
Unicamp dialogou ou com os Mbyá, com os Ñandeva, com os Terena, com os
Krenak, com os Kaingang, com os Fulni-ô, com os Atikum, com os Pankararu, ou
com os Cariri-Xocó para traçar como deveria ser uma política de ação afirmativa
para os indígenas na Unicamp? Unicamp, se você reconhece a importância da
presença de estudantes indígenas no ensino superior público, explique-nos por favor,
como pode estar satisfeita com uma política de ação desafirmativa como é o
PAAIS? Se para as pretensões de inclusão o PAAIS é ineficaz, por que a Unicamp
não tem cotas? (GT, 2017, pp.48-49).
A partir destas três Audiências o Grupo de Trabalho (GT) apresentou, em
223
fevereiro de 2017, um Relatório144
no qual propõe a adoção de cotas étnico-raciais pela
Unicamp uma vez que o PAAIS
não se mostra eficaz enquanto mecanismo de inclusão socioeconômica, pois os
dados de distribuição dos matriculados segundo faixas de renda mostram que
segmentos mais privilegiados da sociedade (renda familiar muito superior à média
do estado e do país) têm se beneficiado do programa de inclusão (GT, 2017, p. 54).
O GT coloca ainda que definição de excelência acadêmica de universidade deve
ser redimensionada pela inclusão e diversidade e que esse “redimensionamento se dá por uma
dupla via na qual atuam novos sujeitos e novos saberes, o que conduz à oportunidade de
emergência de novas epistemes, novas formas de observar e compreender o mundo, de
maneiras mais amplas”. (GT, 2017, p. 55).
Neste sentido, a reserva de vagas no acesso ao ensino superior, para grupos étnicos
historicamente expostos à desigualdade de variadas ordens em nossa sociedade, é
uma sinalização assertiva numa concepção distinta do papel da universidade pública
e sua possibilidade de promover justiça social. Esta nova concepção reconhece a
desigualdade do ponto de partida. Reconhece as razões históricas da homogeneidade
étnica do ponto de chegada (em nosso caso, maioria esmagadora de brancos no
ambiente universitário). Reconhece a exclusão de negros e indígenas neste mesmo
ponto de chegada, enquanto contingente expressivo. Reconhece também que as
desigualdades não são apenas de classe econômica, mas que são compostas por
componentes históricos e operativos no cotidiano, de maneira estrutural, tanto
violenta, quanto sutil como o racismo e os privilégios étnicos que ele impõe
socialmente. Reconhece que enquanto universidade pública e gratuita, temos que
nos pautar pelos desafios que a sociedade brasileira nos impõe e responder ao que
ela espera da instituição com relação ao combate ao racismo, à pobreza, assim como
pelo acesso ao direito à educação e a vivência dos direitos civis e sociais.
Essa concepção de universidade reconhece, ainda, que a inclusão e a convivência
com a diversidade social, com sujeitos com trajetórias sociais diversas, fundadas na
heterogeneidade étnico-racial é um projeto de excelência acadêmica e científica.
Constitui bases para a construção de um novo conhecimento no ambiente
acadêmico, a partir de novos temas, objetos e problemas, tendo na prática da
diversidade um valor a partir do qual ganha a ciência em todas as áreas, pela
inclusão de novas formas de produção de sabe, e ganha a universidade, que
incorpora novos sujeitos e novas experiências, modificando positivamente seu
ambiente e faz jus a sua função social.
Esta mudança representa uma aposta na pluralidade empreendida em instituições
nacionais de mesma importância como a Unicamp ou instituições de renome
internacionais em países como EUA, Canadá, Rússia, África do Sul, China, dentre
outros.
As metas para inclusão social e étnico-racial devem ser acompanhadas de políticas
de ação afirmativa que possibilitem o seu cumprimento. O GT entende que a política
de ação afirmativa contempla as dimensões do acesso (com programas que incidam
no sistema de acesso à Unicamp), e da permanência (tanto material, quanto
simbólica), fomento à diversidade no tripé nas áreas de ensino, pesquisa e extensão,
bem como o combate a toda e qualquer forma de discriminação (GT, 2017, pp.56-
57).
144 Disponível em: https://www.sg.unicamp.br/pautas/p2017/consu/1-extraordinaria/relatorio-gt-cotas-anexos.pdf
224
Buscamos evidenciar até aqui o processo construído pela Frente Pró-Cotas e pelo
Núcleo da Consciência Negra em trazer o debate sobre as cotas na Unicamp a partir da
ocupação de diversos espaços até que se chegasse à aprovação do princípio de cotas em 30 de
maio de 2017, na 151ª Sessão Ordinária do Conselho Universitário145
, com a determinação da
Criação de um Grupo de Trabalho responsável por elaborar uma Proposta de implementação
progressiva de cotas a partir do ano 2019.
Este é o momento indicado pelos respondentes do questionário como a maior
conquista da Frente Pró-Cotas e do Núcleo de Consciência Negra (NCN). O relato de uma
integrante dos coletivos mostra o caminho percorrido para que se chegasse à aprovação das
cotas na graduação.
Frente: aprovação de cotas na pós da faculdade de educação, assim como na
graduação. (sujeito 7, mulher estrangeira, indígena, doutoranda).
Penso que a maior conquista foi ter colocado a questão racial como uma questão
legítima dentro da discussão política da universidade. Isso foi essencial para que se
tratasse a questão das cotas, por exemplo como uma questão séria. A partir do
momento em que discutir racismo entrou na pauta da universidade como uma
questão importante e não apenas como uma discussão lateral, foi possível construir
conjuntamente com outros grupos, com destaque para a Frente Pró-Cotas, estratégias
que levaram à aprovação das cotas étnico-raciais na graduação da Unicamp (Sujeito
17, homem negro, doutorando).
A conquista da aprovação do princípio de Cotas para o vestibular da Unicamp
trouxe à tona o racismo da “elite intelectual” universitária que ao ver seus privilégios
ameaçados utiliza-se de jargões e argumentos já refutados que servem apenas para escancarar
o racismo sempre presente na nossa desgastada “democracia racial brasileira”. O caso de
maior destaque foi a do docente Paulo Palma da Faculdade de Ciências Médicas que publicou
uma mensagem encaminhada (publicamente) ao Reitor Marcelo Knobel em rede social,
seguido da entrevista que cedeu ao Jornal Correio146
no qual afirmou que “quando permite
cota, ela (Unicamp) está trocando cérebro por nádegas ou por cor de pele e outros valores”. O
professor disse ainda: “Em vez de corrigir o problema, dão cotas para quem não tem condição
de acompanhar. Não digo cursos como dança. Digo curso técnicos que exigem um pouco
mais de QI.”.
145 Ata disponível em: https://www.sg.unicamp.br/pautas/p2017/consu/152/ata-151.pdf
146 Disponível em: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2017/06/campinas_e_rmc/481708-professor-da-unicamp-
anticotas-gera-polemica.html
225
Figura 16 - Publicação racista após a aprovação do princípio de Cotas na 151ª Sessão do Consu
Esse tipo de reação exacerba o elitismo prosaico ainda arraigado nas
universidades, brasileiras em que a autodenominada “elite intelectual” é antes de tudo a elite
econômica do país que carrega os valores construídos no período colonial – racismo e
machismo, principalmente. Rosemberg (2010) apresenta a associação entre o poder
político/econômico e a universidade pública (98,7% dos ministros do STF, 75,5% dos
ministros da Educação e 88% dos consultores do Senado estudaram em universidades
públicas) para explicar a oposição às cotas. De acordo com a autora, esta oposição constitui
defesa de posições de poder, ou seja, opor-se “a estratégias de aceleração do ingresso e de
apoio à permanência de egressos do ensino público, de negros e de indígenas, significa, para
as elites, defender seu poderio acumulado graças à subordinação dos demais segmentos
sociais.” (idem, p. 11).
Apesar do destaque da Frente Pró-Cotas, o Núcleo de Consciência Negra também
teve participação ativa nos processos de luta para a implementação de cotas. Os Coletivos se
cruzam tanto por membros que participam de ambas entidades, como também pelo seu caráter
de discussão racial. A divisão que fizemos na apresentação dos coletivos visa evidenciar as
particularidades de cada um sem, no entanto, deixar de apresentar o diálogo presente entre os
mesmos.
4.2.2. Núcleo de Consciência Negra da Unicamp
A fundação do núcleo se deu no contexto de abertura das discussões sobre a
implementação das cotas raciais na UNICAMP. O grupo que debatia as cotas era
misto – composto de pessoas brancas e negras – e nós sentíamos necessidade de
estarmos apenas entre pessoas negras para nos fortalecermos tanto de forma
226
coletiva, como individual. O racismo nos deixa muito vulneráveis e acreditávamos
que um grupo que pudesse pautar questões para além das cotas raciais poderia ser
importante para o combate à situação. Além de reuniões, tínhamos atividades de
formação política e eventos. Através de um evento no mês da consciência negra,
realizamos um chamado aos estudantes negros e negras da UNICAMP. A partir
disso, o Núcleo foi formado. Posso dizer que a situação – de racismo expresso de
diversas formas - é que nos levou a fundar o núcleo. Os primeiros debates em torno
da necessidade do Núcleo foram realizados por duas mulheres negras, já estudantes
da pós-graduação. Na fundação do núcleo, durante as primeiras reuniões, 3 homens
brancos – com origem periférica – frequentavam as reuniões e se identificavam
como membros do núcleo. Não tínhamos maturidade política para entender que
poderíamos colocar como pré-condição ser negro ou negra para se reivindicar como
componente do NCN. O que acabou acontecendo em um período posterior. Mas,
chegamos a ter reuniões com até 20 pessoas negras. O que era algo muito marcante
porque conseguimos mapear quem eram os negros que estavam espalhados pela
UNICAMP. Mas, existia um grupo de cerca de 8 pessoas que estavam em todas as
reuniões e que executaram o projeto do I Quem Tem Cor Age – evento que
aconteceu em novembro de 2012 e que contou com a participação de pessoas negras
de diversos estados, apesar do público não ser muito grande. (mulher, negra, egressa
do doutorado em Educação/Unicamp).
Iniciamos esta sessão da tese com a fala de uma das fundadoras do Coletivo
Núcleo de Consciência Negra da Unicamp, pois queremos também com este trabalho
evidenciar as vozes muitas vezes silenciadas por conta das barreiras institucionais que
impedem a promoção de vozes dissonantes. Pretendemos, portanto, desestabilizar e tensionar
o status quo a fim de fazer emergir outros referenciais e geografias, e pensar outras
possibilidades de existências para além das impostas pelo regime discursivo dominante
(RIBEIRO, 2017).
De tal modo, a fim de compreender as ações, objetivos e propostas do coletivo,
além da entrevista com uma das fundadoras do NCN, utilizamos como fonte: a página do
grupo em uma rede social virtual e as vozes dos integrantes do Coletivo que responderam ao
questionário aplicado.
De acordo com a comunidade virtual do coletivo, o Núcleo de Consciência Negra
foi fundado no final de 2012, a partir da iniciativa de estudantes que impulsionaram a
organização das atividades no mês da Consciência Negra, realizadas em conjunto com outros
setores da universidade.
O principal objetivo do coletivo é a construção de uma luta conjunta entre
estudantes, professores e funcionários da Unicamp e movimentos sociais contra opressão
rumo à conquista das bandeiras históricas do movimento negro tais como: fim do genocídio
da juventude negra, igualdade de oportunidades no mundo do trabalho, valorização das
contribuições da cultura afro-brasileira para a formação da cultura nacional, reconhecimento
da dívida histórica com o povo negro decorrente dos crimes cometidos no período da
227
escravidão. Além disso, objetiva ainda a criação de espaços de sociabilidade para o estudante
negro, compreendendo que o racismo instituído na universidade segrega, hostiliza e ataca
diariamente a autoestima destes estudantes.
Ao encontro desse propósito, foi realizado o I Quem tem Cor Age com a temática
“Desmistificando o racismo à brasileira”.
Figura 17 - Divulgação do I Quem tem Cor age147
Fonte: Rede social
147 Disponível em: https://quemtemcorageunicamp.blogspot.com/
228
O evento foi catalisador para a consolidação do NCN. Além da fala da entrevista,
este fato é relatado também por mais 5 (cinco) integrantes do coletivo que responderam ao
questionário.
O NCN surgiu em 2012, a partir de um grupo de estudantes negros que desenvolveu
o I Quem Tem Cor Age, que se não me engano, tinha como temática a discussão do
racismo à brasileira.
O NCN surgiu em meados de 2012 a partir da movimentação de alguns estudantes
negros da Unicamp, em torno da organização do evento Quem Tem Cor Age. A
ideia era, ao primeiro momento, criar espaços de diálogo sobre questão racial dentro
do ambiente universitário unicampiano, haja vista, a escassez de discussões e o
racismo institucional (sujeito 15, homem, negro, mestrando).
Eu e uma amiga fundamos o núcleo de consciência negra pq vimos que a
UNICAMP necessitava de um espaço para os negros e negras poderem se reunir e se
proteger do racismo institucional. O NCN surgiu após o primeiro evento promovido
pelo grupo de pessoas que conseguimos agregar inicialmente: o Quem tem Cor Age
(sujeito 6, mulher, preta, doutoranda).
O Núcleo de Consciência Negra surgiu no final de 2012 por meio da organização do
evento Quem tem cor age. Em 2013 o grupo que organizou o evento passou a se
encontrar regularmente e se constituir como um coletivo, e foi nesse momento que
me juntei ao grupo. A proposta era propiciar um espaço para discussão de questões
raciais entre os estudantes negros, e também agir dentro da universidade em defesa
dos estudantes negros. (sujeito 17, homem preto, doutorando).
NCN- Segundo os fundadores, o Núcleo surgiu em meio a realização de uma
semana da consciência negra na Unicamp em 2012. Após o evento, as e os
estudantes negr@s entenderam que era possível e necessária a existência de um
coletivo de acolhimento e de combate ao racismo no interior da Unicamp (sujeito
20, homem negro, egresso do curso de ciências sociais e atualmente mestrando).
Assim, de 2013 a 2018 foram 5 edições do evento “Quem ter Cor Age” com
propostas temáticas que, de forma geral, abarcaram questões acerca do racismo, epistemicídio
e políticas públicas, conforme é possível observar no quadro a seguir.
Quadro 6 – Edições do Evento "Quem tem Cor Age"
Ano Temática Objetivo
2012 1ª ed. “Desmistificando o
racismo à brasileira”
Criar um espaço para debater questões urgentes para o povo negro,
além de articular a comunidade acadêmica negra com os
movimentos sociais.
2013 2º ed. “Racismo institucional:
omissão e perseguição”
Questionar o silêncio acerca do racismo persistente nas instituições
e compreender como são estabelecidas, na prática, políticas e ações
diversas com pano de fundo racial em meio ao silêncio.
2014
3ª ed. “Intelectualidade Negra:
Conhecimento, Racismo e
Epistemicídio”
Discutir o racismo, o conhecimento acadêmico, epistemicídio e
assuntos relacionados a fim de estabelecer um diálogo com
pesquisadores, estudantes, funcionários, professores, movimentos
sociais e demais interessados na temática.
229
2017
4ª ed. “A dissimulação do
racismo e a interdição da
cidadania negra: políticas
sociais em tempos de golpe”
Discutir as políticas públicas no contexto de golpe vivenciado pela
sociedade brasileira. Cientes dos problemas existentes nas políticas
adotadas nos períodos anteriores, não podemos deixar de
reconhecer que o atual governo golpista representa um retrocesso e
uma ameaça: as retiradas de direitos e as mudanças de leis afetam
sobretudo as pessoas mais pobres, majoritariamente negras. Em
tempos temerosos, entendemos que a saída é apostar na
radicalização da democracia, o que não pode ser feito sem que as
políticas públicas tratem de forma adequada a maior parte da
população brasileira e incorporem à ordem do dia a superação do
racismo.
2018
5ª ed. “Estratégias de
sobrevivência em meio à falsa
abolição”
Discutir práticas libertadoras na conjuntura atual, em que os efeitos
do racismo se manifestam de forma sempre violenta sobre a
população negra. Ainda que a luta antirracista tenha conquistado
avanços na equidade em diferentes contextos da vida pública e
institucional, isto não é suficiente! Falta muito a conseguir e a
preservação de vidas negras é ponto crucial na construção de uma
sociedade antirracista e na ressignificação de um pacto de
humanidade em que vivências negras tenham a importância que
lhes é devida, mas que há tempos lhes é retirada.
Elaboração própria - Fonte: Rede social
Figura 18 - Cartazes de divulgação das 4 últimas edições do "QUEM TEM COR AGE"
Fonte: Rede social
230
As pautas das 5 (cinco) edições do “Quem ter Cor Age” revelam o valor
epistemológico das lutas e movimentos sociais, ou seja, revelam que eles são produtores de
um tipo de conhecimento específico, o conhecimento nascido na luta que contribui de forma
decisiva para legitimar e fortalecer as lutas pois permite aos movimentos construir
argumentos novos para sustentar as suas reivindicações; com conhecimento próprio capaz de
enfrentar, contrapor ou dialogar com o conhecimento convencional eurocentrado (SANTOS,
2018).
De acordo com Santos (2018) a riqueza epistemológica do Movimento Negro é
que é um movimento educador porque gera conhecimento novo, que não só alimenta as lutas
e constitui novos atores políticos, como contribui para que a sociedade em geral se dote de
outros conhecimentos que a enriqueçam no seu conjunto. Além do mais, operam
frequentemente a tradição intercultural entre o conhecimento nascido na luta e o
conhecimento acadêmico, com vistas a construir novas configurações cognitivas e políticas.
Concordamos com Gomes (2018), para quem as lutas do Movimento Negro
questionam os processos de colonização do poder, do ser e do saber presentes na estrutura do
imaginário social e pedagógico latino-americanos e de outras regiões do mundo e, de tal
modo, produzem conhecimento sociológico, antropológico e educacional no Brasil
dinamizando o conhecimento.
As temáticas das cinco edições do “Quem ter Cor Age” demonstram ainda que o
conhecimento produzido pelo Núcleo dialoga com os pressupostos da Lei 10.639/03 que, por
sua vez, é orientada por documentos como o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana que prevê o desenvolvimento de atividades
acadêmicas, encontros, jornadas e seminários de promoção das relações étnico-raciais
positivas para seus estudantes (BRASIL, 2009); e também como as Orientações e Ações para
Educação das Relações Étnico-Raciais que, dentre outros pressupostos, prevê que “a inserção
coerente e comprometida verdadeiramente com o combate a todas as formas de preconceito e
discriminação dá-se nos diferentes espaços por onde circula toda a comunidade acadêmica ou
não, negra e não-negra” (BRASIL, 2006, p. 132).
As respostas sobre os motivos que levaram a integrar o NCN revelam a
importância de um espaço que possibilite vivências decolonizadoras – antirracistas e
feministas, principalmente, capazes de acolher as dores causadas pela ideologia eurocêntrica
em evidência no espaço universitário.
231
Me sentia sozinha e isolada na universidade. Tinha vontade de compartilhar as dores
e as alegrias de ser uma mulher negras em um ambiente branco (sujeito 6)
O primeiro coletivo do qual fiz parte foi o NCN, e ao mesmo tempo a Frente
Feminista. Minha entrada no NCN se deu em um contexto bem turbulento
pessoalmente, onde após anos de ProFIS e a tão esperada entrada em um curso
tradicional da Unicamp (Química), me encontrava bastante desanimada, com
inúmeras dificuldades no curso, e em relação aos colegas, que tinham um perfil bem
diferente dos amigos do ProFIS, que no geral, vinham da mesma realidade que eu. A
entrada na Química e várias coisas que se sucederam ali foi um choque, um
momento de muita depressão e rebaixamento de minha autoestima. Até então, eu
nunca havia me envolvido com nada relacionado ao movimento estudantil. Foi nesse
período que conheci o Portuga, um aluno na época do curso de ciências sociais e que
era membro do NCN, e que me apresentou ao coletivo. Logo depois (Outubro/2013)
houve a ocupação da reitoria exigindo que a polícia não entrasse no campus,
processo do qual participei ativamente, dormindo na reitoria todos os dias de
ocupação. Enfim, encontrei no NCN e no movimento estudantil à época um espaço
de acolhimento, de formação e melhor compreensão dos problemas que vivia e até
então não sabia explicar. (sujeito 14, mulher preta, egressa do ProFIS, graduanda em
Química).
Na época optei por ajudar a construir o NCN porque era o único espaço que eu via
que era capaz de lidar seriamente com as questões que mais me preocupavam. Os
demais coletivos da universidade não trabalhavam de maneira satisfatória a questão
racial, e o NCN foi o espaço que melhor me propiciou essa possibilidade. (sujeito
17, homem preto, doutorando em Sociologia)
Uma ação que dialoga com a necessidade de acolhimento de grupos minorizados
num espaço de privilégio da branquitude é a “Calourada Negra”, organizada pelo NCN desde
2014. Segundo o coletivo, apesar de os negros serem a maioria nas escolas públicas, nas
periferias e favelas, ao olhar para a Unicamp e outras universidades públicas vê-se um cenário
completamente diferente, por isso o Núcleo levanta a importância de se discutir o racismo
dentro e fora da universidade, em suas diversas formas.
Figura 19 - Ações durante a Calourada Negra de 2014
Fonte: Rede social
232
Figura 20 - Cartaz de divulgação da Calourada Negra de 2018
Fonte: Rede social
O Núcleo também se organiza em ações para denunciar situações de racismo
ocorridas dentro e fora da universidade como, por exemplo, os casos ocorridos durante a
Integração de calouros à universidade no ano de 2015, denunciados pelo Coletivo em sua
página na rede social; o caso de racismo no Supermercado Dia% e os ataques
233
racistas/fascistas em diversas pichações por prédios da universidade em 2018.
Figura 21 - Denúncia realizada pelo NCN sobre atos de racismo na Unicamp
Fonte: Rede social
ATÉ QUANDO A UNICAMP CONTINUARÁ ACEITANDO E
REPRODUZINDO O RACISMO?
Atualmente estão sendo noticiados vários casos de racismo nas universidades. Há
alunos barrados nas portarias das universidades, estudantes que faltam às aulas por
sentirem a hostilidade de um ambiente racista, pichações ofendendo negras e
negros.
A situação na UNICAMP não destoa do quadro geral: vários relatos de estudantes
negros mostram o enorme desconforto que estes experimentam em sua rotina na
universidade. Seja por meio do menosprezo por parte de professores, seja por
discussões em que a simples menção a preconceito se torna alvo de chacotas e
retaliações, o racismo se faz presente diariamente na UNICAMP, e a universidade
não apresenta qualquer medida prática no sentido de combater este problema.
O caso a ser relatado hoje já foi alvo de publicação de uma nota de repúdio por nós
do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp, mas vale ser recontado, visto as
atuais discussões que estão sendo feitas sobre a prática de black-face (vide a
polêmica da peça “A Mulher do Trem”, da Companhia Os Fofos, na qual utiliza-se o
recurso da black-face de maneira extremamente negativa para as mulheres negras).
Na confirmação de matrícula, dia 24 de fevereiro de 2015, a Unicamp foi cenário de
atos racistas e machistas. Veteranos de diferentes cursos receberam seus calouros
pintando-os de preto e em alguns casos amarrando panos em suas cabeças simulando
turbantes (símbolo de luta e resistência do povo negro), sem contar que ainda
fazendo parte dos trotes opressores, veteranos dentro do bandejão (restaurante
Universitário) tiraram os garfos dos calouros, obrigando-os a comer apenas de facas.
234
Ainda nesse ambiente presenciamos hinos Homolesbobitransfóbicos e machistas que
foram cantados junto a pressões para que os calouros seguissem o que era ditado.
Este cenário evidencia as pressões que agem sobre os calouros que são
implicitamente obrigados a participarem dos atos visando à integração.
Algumas pessoas negras ao verem este ato de racismo e opressão na universidade,
sentiram-se violentadas e oprimidas, uma vez que a atitude tomada pelos sujeitos
que fizeram os trotes promovendo Black faces (pintando os corpos de negros,
usando turbantes, se” fantasiando” de pessoas pretas) ridicularizou a existência e
humanidade de todo o povo negro.
Esse tipo de atitude que presenciamos e sofremos, não ocorre apenas durante a
calourada, mas sim cotidianamente, e é mais um reflexo do caráter racista e elitista
da Universidade que assim como a sociedade brasileira, funciona pautada no
racismo estrutural e estruturante, além da falsa ideologia da democracia racial.
Ao não tomar atitudes efetivas para o combate ao racismo no meio acadêmico, a
UNICAMP aceita tacitamente a discriminação racial imposta à população negra, e
passa a reproduzir no meio acadêmico as mazelas que encontramos na sociedade
como um todo.
P.S: Na camiseta do estudante de engenharia, entre outras coisas, lê-se: "Xupa
cozinheira, Xupa pica-fio, Xupa servente de pedreiro (...) Xupa bóia-fria".
#13deMaionãoédiadeNegro! #AhBrancoDáUmTempo!
Sobre o caso de racismo praticado por um segurança do Supermercado Dia%
contra uma mulher negra, o Núcleo publicou em sua rede social uma “Nota de Repúdio aos
casos de racismo na rede dia de supermercados e em recintos comerciais de Campinas”:
Nós, membras e membros do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp,
expressamos nossa solidariedade à companheira Rosana Meneses, vítima de racismo
em um dos supermercados Dia% de Campinas no dia 25 de maio. Ela foi abordada
por um segurança do supermercado que se apresentou como agente da polícia militar
a coagindo para que realizasse uma revista em sua bolsa, sob a “suspeita” de que
Rosana, mulher negra que estava de turbante no momento da abordagem, poderia ter
roubado um pacote de peixe.
Esta foi a justificativa para mais uma conduta racista em estabelecimento comercial,
mas apesar da burocracia jurídica impor barreiras tremendas para que nós, negros e
negras, registremos casos de racismo, Rosana contatou advogadas e registrou a
ocorrência no 1º Distrito Policial de Campinas. É oportuno lembrar que racismo é
crime e sua prática passou a ser considerada crime inafiançável e imprescritível. Os
crimes de racismo expressos na Lei n. 7.716/89 são inafiançáveis e consistem em
praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional. A pena prevista é de reclusão de um a três anos, além de
multa. Ainda assim, os estabelecimentos comerciais insistem em perseguir seus
clientes negros e negras de forma sútil, como nas práticas constrangedoras de
conferir o dinheiro, e de forma explícita coagindo e fazendo revistas.
Diante disso, o Coletivo Lélia Gonzalez de Feminismo Negro Interseccional de
Campinas publicou uma denúncia nas redes sociais e convidou coletivos e
organizações para pensar um plano de ação contra este e outros casos de racismo,
relatados a partir da publicação da denúncia em sua página.
Assim, reiteramos nossa disposição em contribuir às ações de combate ao racismo
articuladas na reunião a convite do Coletivo de Feminismo Negro Lélia Gonzalez e
das Promotoras Legais Populares Cida da Terra, ontem, dia 29 de maio, na Casa
Sem Preconceito. Além do ato que está sendo programado em conjunto, convidamos
todas e todos a publicarem casos de racismo em estabelecimentos comerciais usando
a hashtag #RacismoTodoDia para que possamos pensar respostas coletivas a estes
casos.
“Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens”
235
Proverbio africano
Sigamos na luta!
Campinas, dia 1º de junho de 2018
Núcleo de Consciência Negra da Unicamp
Em meados de agosto de 2018 a Unicamp sofreu pichações racistas e fascistas,
amplamente veiculadas por diversas mídias – visual e escrita. Os alvos foram o Instituto de
Estudos da Linguagem (IEL) e o de Geociências que tiveram suas paredes, banheiros e
computadores pichados com suásticas, incitações racistas, apologias ao nazismo e à
supremacia branca e ameaças de massacre. Diante de tal violência, o Coletivo organizou um
“Ato e Manifesto contra o racismo e fascismo na Unicamp” a fim de, além de evidência o
caso, cobrar providências da reitoria. O ato ocorreu em forma de uma marcha que saiu de um
dos locais onde houve um dos casos de ataque racista, o novo prédio do Instituto de
Geografia, passando por outros pontos em que também houve ataques racistas/fascistas.
Figura 22 - Cartaz de divulgação do Ato contra o racismo e o fascismo na Unicamp
O Coletivo se mobiliza também em cobrar da Universidade ações de
enfrentamento ao racismo. Em 2016 foi lançado um Manifesto pela criação da Comissão
Permanente de Combate ao Racismo na Unicamp, disponível também em sua página na rede
social virtual.
Considerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu artigo 7º
estabelece os direitos à proteção contra qualquer forma de discriminação e à
proteção contra incitamento à discriminação;
Considerando que a Declaração supracitada estabelece em seu artigo 22º que toda
236
pessoa tem direito à segurança social e “pode legitimamente exigir a satisfação dos
direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis”; e que o artigo 26º determina
que a educação deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todos
os grupos raciais;
Considerando que o Brasil é signatário da Declaração e Plano de Ação adotados na
III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia
e Intolerância Correlata, ocorrida no ano de 2001 em Durban, África do Sul;
Considerando que estamos no início da Década Internacional de Afrodescendentes
(2015-2024), estabelecida pela Organização das Nações Unidas;
Considerando as flagrantes desigualdades raciais apontadas por diversos indicadores
econômicos e sociais no Brasil;
Considerando o racismo estrutural que molda a sociedade brasileira, e que se
manifesta em todos os ambientes;
Considerando a Constituição Federal de 1988, que estabelece em seu artigo 5º,
inciso XLII, a prática do racismo como crime;
Considerando as Leis Federais 7.716/1989 e 12.735/2012, que criminalizam os
preconceitos de raça ou de cor, inclusive as condutas realizadas por meio eletrônico;
Considerando que a UNICAMP vem sistematicamente descumprindo as Leis
10.639/2003 e 11.645/2008, que alteram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional no sentido de incluir a obrigatoriedade da educação para as relações
étnico-raciais e história e cultura afro-brasileira, africana e indígena em todos os
níveis de ensino;
Considerando a Resolução 1/2004 do Conselho Nacional de Educação, e o Parecer
3/2004 do mesmo Conselho, que instituem diretrizes curriculares nacionais para a
educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e cultura afro-
brasileira e africana;
Considerando a sub-representação de negras, negros e indígenas no corpo discente
da UNICAMP;
Considerando a sub-representação de negras, negros e indígenas no corpo docentes
da UNICAMP, que, de acordo com dados institucionais, são menos de 2% do total
de docentes;
Considerando a necessidade de a UNICAMP ser uma instituição verdadeiramente
inclusiva, tanto na composição de seus recursos humanos quanto na produção e
transmissão de conhecimento;
Considerando a insuficiência do sistema de bonificação adotado pela UNICAMP no
vestibular, em detrimento de um sistema de cotas;
Considerando que a UNICAMP é palco de manifestações racistas;
Nós, signatários do presente documento, nos manifestamos no sentido de propor à
UNICAMP a criação de uma Comissão Permanente de Combate ao racismo. Dada a
importância do tema e seu indubitável impacto social, temos a firme convicção de
que tal Comissão deve necessariamente ser integrada por setores engajados na luta
antirracista, tanto dentro quanto fora dos muros da Universidade. A integração com
os movimentos sociais em geral, e com os movimentos negros em particular, é
fundamental para que se possa empreender um combate sério e efetivo ao racismo.
Chamamos a UNICAMP a se incorporar a esta luta tão fundamental para a
construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.
Campinas, 21 de março de 2016
Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial
A importância das ações desenvolvidas pelo Núcleo é evidenciada nas respostas
ao questionário por integrantes que reconhecem o coletivo como um espaço de acolhimento,
denúncia do racismo, diálogo institucional e organização de atividades que fomentem o
combate ao racismo, conforme se pode observar a seguir:
O NCN representa na universidade um espaço de formação, acolhimento de
sujeitos negros, de educação do movimento estudantil (na medida em que muito
237
aprenderam/ainda aprendem sobre racismo na esquerda através de nossas
intervenções), um espaço de resistência e participação política, expressa nas
respostas a situações individuais de racismo e denuncia de seu caráter sistêmico nas
diferentes instancias da Universidade/ sociedade, através de reivindicações diretas
(foram inúmeras as vezes em que nos deparamos dialogando diretamente no
gabinete do reitor sobre diversas questões), de reorganização política/epistemológica
- a participação ativa de estudantes do NCN em todas as propostas de cotas já
aprovadas na universidade, seja em marchas e atos, seja na escrita dos textos dos
projetos de cotas é o exemplo mais recente e talvez emblemático disso. (sujeito 14,
mulher preta, egressa do ProFIS, graduanda em Química).
Fomento a ações políticas, interlocução entre os movimentos negros e a reitoria da
Unicamp, espaços de acolhimento para estudantes negros e negras, denúncia de
ações racistas no âmbito universitário, dentre outras (sujeito 15, homem, negro,
mestrando).
Os dois coletivos [NCN e FPF] realizam reuniões ordinárias, organizam mesas e
atividades de combate à discriminação, formação de professores e de estudantes em
escolas públicas e também se coloca como um lugar de enfrentamento ao ódio
que, não raramente, acontece dentro e fora da universidade (sujeito 20, homem
negro, egresso do curso de ciências sociais e atualmente mestrando).
Para a entrevistada, fundadora do NCN, os 6 (seis) anos de atuação do Coletivo
Contribuiu para a melhora da qualidade de vida de estudantes negros e negras e
mostrou a importância da diversidade racial na universidade. Através dos debates
encabeçados pelo NCN o racismo na UNICAMP ficou explícito, algo que era
sempre foi escamoteado. Vejo que tivemos conquistas para além das cotas e que o
NCN deve aumentar de importância no próximo período com a diversificação do
perfil racial na universidade.
As respostas evidenciam a importância de uma política de ação afirmativa de
permanência que não se resuma a uma perspectiva assistencialista, na qual os beneficiados
não passem de objetivo da política, sem poder alçar o lugar de sujeitos com vozes próprias se
busca, de fato, transformar as desigualdades raciais. Assim, a práxis do Núcleo de
Consciência Negra da Unicamp se revela também como espaço de política de permanência
uma vez que acolhe e coloca em disputa na universidade as histórias e trajetórias de vida das
pessoas negras e suas referências culturais, além de contribuir para o entendimento de forma
crítica das dinâmicas do racismo e da exclusão social na sociedade brasileira e também na
universidade, que marcam os corpos e percursos, para que a partir daí possam construir novos
posicionamentos (MAYORGA, SOUZA, 2010).
O Núcleo de Consciência Negra, em parceria com a Frente Pró-Cotas, teve ainda
um papel ativo na luta pela adoção da Política Pública de Cotas tanto nos cursos de pós-
graduação, como para a graduação, seja pela promoção de debates e rodas de conversa sobre a
temática, como na mobilização em datas importantes de tomada de decisão institucional. Este
fato é também narrado, assim como na Frente Pró-Cotas, como uma grande conquista do
238
Núcleo
Acredito sem sombra de dúvidas que [a maior conquista] foi a aprovação das cotas,
inicialmente na pós-graduação do IFCH, depois em outros institutos, e mais
recentemente, as cotas da graduação da UNICAMP. Esse processo teve a
participação de outros setores do movimento estudantil, e inclusive não podemos
deixar de levar em conta o papel que a ocupação da reitoria de 2013 teve, ao impedir
a entrada da polícia no CAMPUS, para o processo de 2016, pois seria praticamente
impossível construir uma greve como aquela se a polícia estivesse na universidade.
Mas sem sombra de dúvidas o NCN foi o grande responsável por colocar a proposta
de cotas, sempre tão marginalizada, na linha de frente das exigências da greve e
inclusive fomos nós os responsáveis direitos por educar a universidade sobre a
temática, passando toda a greve percorrendo a Universidade e fazendo espaços de
discussão sobre a temática em praticamente todos os cursos da UNICAMP. Esse
processo educativo serviu para que boa parte da comunidade acadêmica fosse
convencida da necessidade de cotas e acontecesse a aprovação massiva da pauta nas
assembleias dos cursos, fortalecendo a greve que depois culminaria nas audiências
públicas, também organizadas sobretudo pelo NCN e frente pró-cotas, enfim, todo o
processo (Sujeito 14, mulher preta, egressa do ProFIS e graduanda). [grifo nosso].
NCN da Unicamp: Aprovação das cotas raciais e do vestibular indígena na
graduação da Unicamp; aprovação das cotas em PPGs de várias unidades, derrota do
PIMESP há alguns anos. (sujeito 15, homem, negro, mestrando).
239
Figura 23 - Cartaz de divulgação para o Ato de Mobilização para aprovação do Projeto que previa a
inclusão de cotas na graduação da Unicamp (21/11/2017)
240
O Núcleo de Consciência Negra pauta discussões das quais, historicamente a
universidade se isentou, seja pela incapacidade de diálogo real com a sociedade formada por
pessoas que, muitas vezes, desconhecem a existência da Unicamp como instituição de ensino
superior, seja sob o viés da neutralidade epistemológica. De tal modo, diante do fascismo que
se escanara na sociedade e atinge principalmente pessoas negras, LGBTTs e mulheres, o
Núcleo lançou uma nota se posicionando contra a ameaça fascista.
Figura 24 - Nota do NCN contra a ameaça fascista
Diante da barbárie, da violência e da ameaça da eleição de um governo autoritário,
não poderíamos fugir da nossa história de luta por uma sociedade mais justa e livre
de opressões.
Vivemos tempos bicudos em que a possibilidade de expressar posições políticas está
sendo expurgada por um ódio autoritário de feições fascistas, cuja concretização
ceifou a vida do Mestre Moa do Katendê, quando ele declarou seu voto no Partido
dos Trabalhadores e foi brutalmente assassinado a facadas. Cenas de agressões,
ameaças de morte, humilhações e coação estão ocorrendo nos 4 cantos do país.
Sobre estes casos, apontamos dois fatores em comum: 1) os alvos principais são
pessoas negras, LGBTs, mulheres e, também, qualquer um que expresse apreço pela
democracia, pelo respeito e pela diversidade; 2) os agressores são eleitores do
candidato que desponta nas pesquisas eleitorais, aos gritos de "Bolsonaro
presidente!", eles gritam, batem, humilham e até assassinam.
Chamamos a atenção para o fato de que estas ações estão absolutamente de acordo
com as posições que Bolsonaro defendeu durante seus 30 anos de carreira como
raposa da velha política (ainda que ele minta se colocando como novidade). Uma
rápida pesquisa desmascara seu racismo e seu ódio pelos LGBTs e mulheres. O
candidato da violência não esconde sua vontade de dar carta branca para que
policiais matem.
Nesse contexto tão grave, sabemos que o ódio não está na essência das pessoas,
portanto ele pode ser acalentado e direcionado para uma busca incansável pelo bem
241
viver. Assim, há diferenças entre os eleitores que defendem o amor e a justiça, mas
que votaram em Bolsonaro por ele encarnar uma pretensa cruzada contra a
corrupção, entre aqueles que votam por desinformação ou por acreditarem que ele é
a solução dos nossos problemas sociais e econômicos. Todavia, há aqueles que
votam no Bolsonaro, pois sabem que ele defende a tortura, vai manter os privilégios
de uma elite, vai aumentar os impostos dos pobres, vai ampliar o encarceramento da
juventude negra e periférica, vai (como o próprio Bolsonaro disse após o 1º turno)
"acabar com o ativismo no Brasil". Sobre estes eleitores convictos já não há o que
fazer.
Por isso, convocamos todas e todos para que alertem seus amigos, companheiros e
familiares. Bolsonaro não é a solução e o descontentamento por erros do PT não
justifica fechar os olhos para as mortes, para o sofrimento que já estamos
presenciando e, sobretudo, para o que virá se o ódio vencer.
Estamos entre um projeto que respeita a democracia e um projeto da barbárie.
Sigamos junt@s
Pela Marielle!
Pelo Mestre Moa do Katendê!
Por todas e todos que morreram na luta por um mundo melhor!
#EleNão #ContraOFascismo #BolsonaroNão
242
5. Considerações finais
Ao nos debruçarmos sobre o pensamento decolonial, compreendemos melhor
como a Europa, durante o processo de colonização, impôs um sistema-mundo baseado em
hierarquias que colocam o homem branco, heterossexual, cristão, capitalista e militar nas
posições de poder e domínio. Estas hierarquias – racistas, machistas, lgbttfóbicas etc. – se
mantém apesar do fim jurídico e político do período colonial no que se denomina
colonialidade, sendo o racismo o princípio organizador das demais estruturas deste sistema-
mundo construído sobre o genocídio e exploração dos povos nativos e colonizados.
A produção de conhecimento e a universidade em particular impulsionam a
reprodução de tais valores, uma vez que seguem a tradição eurocêntrica que traz em si uma
visão de sociedade, humanidade e realidade que legitima apenas o que foi produzido pela
Europa ou dentro de seus cânones, numa perspectiva epistemológica da geopolítica racista ;
de dominação de formas de pensar, sentir e agir e de tentativa de extermínio e silenciamento
de outras expressões e conhecimentos que acabam diminuídos ao status de crendices.
Entretanto, o sistema-mundo constituído com os processos de colonização não foi
capaz de evitar os processos de resistência desde o período da escravidão e que seguem até a
atualidade nos diversos movimentos dos grupos não hegemônicos tais como movimentos
negro; feminista; LGBTTQ; etc.. É neste cenário que a luta dos movimentos negro conseguiu,
ainda que tardiamente, ao final da década de 90, o reconhecimento institucional brasileiro
sobre a existência do racismo. A partir disto, algumas pautas foram sendo conquistadas como
a implementação de políticas públicas de ação afirmativa das Leis 10.639/03, 11645/08 e
12.711/12 as quais, respectivamente, buscam tirar do ocultamento as Histórias e Culturas
Africanas, Afro-brasileiras e Indígenas e possibilitar uma equidade no acesso ao ensino
superior ao povo negro e indígena a partir da implementação da Política de Cotas.
Dentro desse contexto, buscamos responder os efeitos de tais políticas em duas
universidades públicas brasileiras – UFSCar e Unicamp. A pesquisa nos mostrou que as
universidades, apesar de terem pontos em comum tais como data de criação, localização dos
campi em cidades do interior e terem seus princípios voltados para o conhecimento
tecnológico de ponta, elas se diferenciam na ideologia e na implementação de suas políticas
de ação afirmativa.
A filosofia que conduziu e conduz a política de ação afirmativa na UFSCar, além
243
de democrática, uma vez que foi fortemente marcada pela participação da comunidade
acadêmica com seminários e discussões, tem a ênfase na busca de inclusão de grupos
minorizados e historicamente excluídos, tendo em vista a equidade social, resultando em uma
política de cotas que começou a vigorar em 2008 e alcançou no ano de 2014 a meta
estabelecida pela Lei 12.711 para 2016 de ter 50% de estudantes oriundos de escolas públicas
ingressantes em todos os cursos da universidade, sendo destes, 35% autodeclarados
negros(as). Além disso, há uma vaga adicional em cada curso de graduação destinada a
pessoa de etnia indígena brasileira, ocupada a partir de um vestibular próprio que respeita as
particularidades da população indígena em consonância com o Artigo 210, § 2º da
Constituição Federal que assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem.
A Secretaria Geral de Ação Afirmativa, Diversidade e Equidade (SAADE),
instituída em 2015 na UFSCar é outro ponto de destaque, uma vez que a secretaria é
vinculada à Reitoria da Universidade e tem como objetivo o estabelecimento e implementação
de políticas de ação afirmativa, diversidade e equidade, bem como criar mecanismos
permanentes de acompanhamento e consulta à comunidade. Assim, compreendemos que a
busca pela inclusão, diversidade e equidade na UFSCar é pauta institucionalizada e abranges
diversos segmentos marginalizados da sociedade como negros e negras, indígenas, pessoas
com deficiência e LGBTT, rompendo com a lógica colonial que historicamente exclui dos
espaços de poder estas pessoas.
Na Unicamp, o Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social – PAAIS foi
pensado a partir de uma pesquisa que demonstrou que estudantes oriundos de escolas públicas
obtinham ao final dos cursos de graduação um melhor coeficiente de rendimento. Foi dentro
da perspectiva de busca das “melhores cabeças” e da meritocracia, sem levar em consideração
o critério de renda, que o PAAIS foi implementado, apesar de já haver dentro da universidade
a discussão acerca da necessidade de se implementar uma política de cotas a fim de garantir a
equidade no acesso à universidade em todos os cursos, conforme demonstra a Ata de
Aprovação do Programa em 2004. Neste cenário, o que se percebe é que nos primeiros dez
anos do PAAIS, o percentual de ingressantes oriundos de escolas públicas, pessoas negras e
indígenas não se alterou significativamente. Nos dois últimos anos do Programa, após a sua
reformulação com a adição do bônus já na primeira fase do vestibular, houve um aumento
significativo de egressos de escolas públicas matriculados na Unicamp, no entanto, além desta
política não garantir a o mesmo percentual para os anos seguintes, a inclusão acontece de
244
forma desigual entre os cursos, diferente do que ocorre com a Política de cotas.
Nossa crítica se direciona ainda ao fato de que que, enquanto a política de cotas
reconhece o problema da diferença e da desigualdade histórico-social no Brasil como
estrutural e busca reverter alguns marcadores de exclusão por meio de reserva de vagas para
pessoas de escola públicas, com baixa renda, negras e indígenas, ou seja, altera as estruturas
das universidades, a fim de corrigir as desigualdades, o PAAIS, foca o problema da exclusão
nas aptidões individuais, deixando a cargo do sujeito a solução para a superação das
desigualdades, ignorando, desta forma, as hierarquias construídas no sistema-mundo que
mantém em situação de desvantagem socioeconômica e cultural principalmente pessoas
negras e indígenas.
Apesar disso, a criação dos coletivos e, particularmente, a experiência da
Unicamp com a Frente Pró-Cotas e o Núcleo de Consciência Negra, demonstra que as
políticas afetam a universidade ao trazerem novos sujeitos com novas agendas políticas e
demandas, como foi a conquista pela Política de Cotas na Unicamp protagonizada pela Frente
Pró-Cotas, política que passou a vigorar no vestibular para o ingresso deste ano, 2019.
A atuação dos coletivos evidenciam ainda a mudança de postura de estudantes
negros ao longo de pouco mais de uma década. A pesquisa de Souza (2006) mostrou que os
estudantes negros da Unicamp entrevistados entre os anos de 2003 a 2005 não avaliavam
positivamente a reserva de vagas para os negros nas universidades públicas. A autora explica
que estes consideravam mais justo beneficiar os estudantes pobres, independente de seu
pertencimento étnico-racial, pois os mesmos compreendiam o problema do reduzido número
de negros no ensino superior, como socioeconômico e não racial. Os entrevistados
demonstravam ainda temor quanto às consequências que as cotas poderiam gerar no ambiente
acadêmico, pois, segundo estes, os cotistas seriam vítimas de discriminação e, por fim,
endossam a ideologia da meritocracia. Para “estes entrevistados, sua experiência pessoal serve
de parâmetro para avaliar que qualquer um que se esforce passa pelo vestibular com êxito.
Tudo é uma questão de empenho pessoal, pois os negros têm tanta capacidade quanto
qualquer outro grupo étnico-racial.” (SOUZA, 2006, p. 87). De encontro a esta ideia, temos
em 2012 a criação da Frente Pró-Cotas que tem entre suas principais conquistas: a
implementação de uma política de cotas na Unicamp!
Além disso, a pesquisa empírica mostrou a importância dos coletivos para
acolhimento e sociabilidade dos e das estudantes negros e negras, e como estes constroem
novas narrativas, novas estéticas e novas epistemologias com a organização de eventos que
245
trazem à universidade novas perspectivas teóricas e metodológicas de ensino e pesquisa,
como é o caso do evento “Quem tem cor age” na Unicamp e o EECUN – Encontro Nacional
de Estudantes e Coletivos Negros, por exemplo, o que já revela novas práticas e temáticas
sendo evidenciadas.
O EECUN foi planejado pelo CONAJIR em 2015 com o objetivo de debater os
problemas nas políticas de permanência estudantes na universidade. A ideia surgiu no “Fórum
Nacional de Encontro da Juventude Negra” quando três estudantes de diferentes universidades
– UFSCar, UFRJ e UFPR – se encontraram e tiveram a ideia de caminhar numa pauta
específica de debater a permanência universitária. A ideia ganhou corpo e passou a envolver
diversos estudantes negros de diversas universidades brasileiras148
.
Apesar dos entraves burocráticos, como a impossibilidade de realização do
encontro na UFSCar, uma comissão organizadora, composta por cerca de 50 estudantes de
diferentes universidades brasileiras, levou à cabo a tarefa de realizar o Encontro que
aconteceu entre os dias 13 e 16 de maio de 2016 na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Figura 25 - EECUN - UFRJ
148 Vídeo disponível no ALMA PRETA - https://www.youtube.com/watch?v=visIpExQOaA
246
Na legenda da foto do “I Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Negros” a
citação de Steve Biko: “Ao dizermo-nos negros, iniciamos um caminho em direção da
emancipação, que desemboca em comprometimento para lutar contra os que se referem à cor
negra de nossa pele, como se essa fosse carimbo que nos marcaria como destinado a ser
sobreviventes”.
O evento repercutiu em diversas mídias, como na Revista Fórum, por exemplo,
que trouxe o texto do estudante Leopoldo Duarte “EECUN – minhas definições de academia
foram denegridas149
”
Tal como nos quilombos, era de se admirar toda a diversidade do nosso povo: casais
negros gays e lésbicos eram mais fáceis de se ver que nas festas LGBT “para todos”
que costumava frequentar; os closes e tombamento das não-binárias no bandejão
também foram assimilados rapidamente; assim como o respeito a identidade das
pessoas trans estampava os crachás. Também não foi difícil perceber a excelente
recepção das mães e pais que trouxeram seus (e nossos) pequenos; a nada
complicada convivência de todos os mais diferentes fenótipos da negritude; o
diálogo entre os diversos campos do conhecimento; e a fortificante sensação de estar
entre os nossos. De não estar “fora do ninho” numa instituição, ao menos
teoricamente, do povo.
Terminados os três dias, a impressão que ainda tenho é de que nada mais poderá ser
como antes e que dali todos saímos mais confiantes em soluções mobilizadas. E que
os desafios podem ser muitos. Contudo, sem sombra de dúvidas, tanto espiritual
quanto intelectual e comunitariamente não andamos só. Não apenas por termos uns
aos outros, mas por termos aprendido a nos ver uns nos outros nessa jornada de
(re)construção um conhecimento que nos contemple e não nos ignore, nos trate
como “recorte” ou nos resuma a estatísticas sem vida interna e indiferentes aos
abalos provocados pelas estruturas racistas.
Posso ter descoberto só agora o sonho de uma universidade menos branca e
eurocêntrica, mas serei eternamente grato aos produtores que proporcionaram a
tantos pretos e pretas a experiência única que pudemos vivenciar nesse final de
semana. Mais do que nunca tenho a certeza de que denegrir o meio acadêmico pode
ser algo tão revolucionário quanto prazeroso. E que vontade não nos falta e nem
amparo. Tanto da ancestralidade quanto teórica. (DUARTE, 2016150
).
Este encontro mostra a potência dos Coletivos Negros que se fortalecem e, apesar
das adversidades, constroem novas agendas nas e entre as universidades.
Outro ponto que queremos evidenciar é a inclusão indígena na UFSCar por meio
de vestibular próprio com uma vaga para cada curso que acabou por levar à criação do Centro
de Culturas Indígenas criada por estudantes indígenas, responsáveis pela promoção, desde o
ano de 2015, da Semana dos Estudantes Indígenas da UFSCar. Além disso, estes estudantes
conseguiram, a partir de estudos dos vestibulares anteriores, que a partir de 2015 o vestibular
149 Intelectuais negros tem ressignificado a palavra “denegrir”, não mais como uma referência negativa, mas
como a positividade em “se tornar negro”. 150
https://www.revistaforum.com.br/osentendidos/autor/leodu/
247
indígena acontecesse em quatro capitais e não mais apenas na UFSCar de São Carlos.
Infelizmente, não conseguimos acessar maiores informações e ter contato empírico com
integrantes indígenas, no entanto, apenas estes dados já revelam como estes sujeitos, antes
majoritariamente excluídos, alteram as lógicas e as demandas da Universidade.
As pesquisas dos sujeitos respondentes dos questionários apontam que há novas
temáticas emergindo no cenário acadêmico brasileiro e também um diálogo com as Leis
10.639/03 e 11.645/08. Temas como “cultura afro-brasileira”; “encarceramento em massa e
genocídio da juventude negra brasileira”; “sociabilidade negra LBGT”; “Aquilombamento”;
“representatividade negra nos cordéis”; “Família, preconceito racial e afeto”;
“Afrocentricidade” e “Afetividade negra” são alguns exemplos de “saberes emancipatórios”
que, de acordo com Gomes (2017, p. 136) nos ajudam a conhecer e compreender novos
processos de produção do conhecimento e outros conhecimentos e nos pressiona a repensar
conceitos, termos e categorias analíticas por meio dos quais os processos educativos têm sido
interpelados pela racionalidade científico-instrumental.
Consideramos que essas são experiências decoloniais uma vez que trazem à tona a
fala e experiência de sujeitos antes silenciados tanto pela hierarquia racista que impedia que
chegassem à universidade, como pelo rigor da tradição eurocêntrica de produção do
conhecimento que desvalorizava as produções intelectuais destes grupos.
Assim, para além da denúncia, ainda em tempo, das desigualdades raciais que se
traduzem em desigualdade econômica-social e de acesso a serviços, dentre eles, o acesso ao
ensino superior; para além da denúncia do racismo que se acirra com o ingresso de pessoas
negras e indígenas nas universidades em publicações on line e pichações no campus,
buscamos, em tempos de tantas distopias, manter a utopia151
que nos mantém a caminhar.
Buscamos com esta pesquisa mostrar como caminhos mais democráticos e inclusivos são
possíveis e que não se pode mais pensar uma universidade que não represente a sociedade em
sua totalidade, mantendo-a sob a ilusão da ideologia da democracia racial, jamais existente
neste país.
Esta pesquisa nos mostra quão limitada é uma universidade que não se abra a
receber a diversidade própria da experiência humana. Temas, autores e epistemologias antes
151 "A Utopia está no horizonte. Eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se
distanciará dez passos. Quanto mais a procure, menos a encontrarei, porque ela vai se distanciando quando mais
me aproximo. Para que serve, então? Pois a utopia serve para isso, para caminhar!" Fernando Birri (diretor de
cinema argentino – disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8>)
248
ignorados começam a ganhar corpo enriquecendo o escopo acerca do conhecimento. De tal
modo, diante do cenário nacional e internacional que aponta para retrocessos no âmbito dos
direitos sociais, encolhimento das políticas públicas universalistas, reforma trabalhista
precarizando as condições de trabalho, salário e contrato, lógica privada regulando todas as
esferas produtivas e institucionais, ressurgimento de movimentos neoconservadores e
aprofundamento de intervenções neoliberais; a pesquisa se afirma como relevante e
visionária.
Paulo Freire (2006) diz:
Os recuos não são um transito para trás. Retardam-no ou destorcem-no. Entretanto,
os novos temas e as novas visões reprimidas nos recuos “insistem” [...] até que
alcancem a sua plenitude e a sociedade então se encontrará em seu ritmo de
mudanças [...] em que o homem e a mulher se humanizem cada vez mais (p. 56).
Por isso mesmo, existir é um conceito dinâmico (p. 68).
A educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se
caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de
explicações mágicas por princípios causais. Por procurar testar os achados e se
dispor a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas
e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Pela recusa a posições
quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo (p. 69).
O povo tem assistido bestificado aos mais recuos do processo brasileiro [...] mas
começa a entender que os recuos estão se fazendo por causa dos seus avanços.
Começa a entender que era a sua crescente participação nos acontecimentos políticos
brasileiros que assustava as forças irracionalmente sectárias, ameaçadas nos seus
privilégios com a participação popular.
Assim, desejamos que mais que um emaranhado de palavras organizadas
metodologicamente com citações, esta pesquisa seja também – ainda que utopicamente –
parte de uma educação dialogal e ativa, que se coloque como resistência frente aos recuos que
já começamos a enfrentar. Que esta tese não nos deixe esquecer que os recuos estão se
fazendo por causa dos avanços, alguns dos quais aqui apontados e que, portanto, devemos
manter a utopia da construção decolonial que preza por um mundo que seja capaz de romper
com as hierarquias raciais, políticas, econômicas e de gênero construídas sob séculos de
colonialismo europeu no mundo (GROSFOGUEL, 2012).
249
6. Referências
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267
7. APÊNDICES
7.1. Questionário
Você está sendo convidado a participar como voluntário da pesquisa intitulada: Políticas Públicas de
Ação Afirmativa: possibilidades decoloniais no Ensino Superior, desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de Educação da Unicamp pela doutoranda Mirian Lúcia Gonçalves sob
orientação da Profa. Dra. Debora Mazza.
2.- TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Este documento visa assegurar seus direitos como participante. Por favor, leia com atenção e calma e
esclareça suas possíveis dúvidas com a pesquisadora. Não haverá nenhum tipo de penalização ou
prejuízo se você não aceitar participar ou retirar sua autorização em qualquer momento.
Participando do estudo você está sendo convidado a preencher o questionário a seguir. Desconfortos e
riscos: Essa pesquisa não apresenta riscos físicos para os seus participantes, e caso haja algum
desconforto emocional/psicológico o(a) participante pode optar por não participar da pesquisa ou
interrompê-la em qualquer momento.
Benefícios: Esta pesquisa não implica em benefícios diretos aos participantes.
Acompanhamento e assistência: Caso haja algum desconforto o participante pode optar por não
participar da pesquisa. O pesquisador responsável estará disponível para garantir mecanismos de
acompanhamento e assistência, inclusive após o encerramento ou interrupção da pesquisa.
Sigilo e privacidade: Você tem a garantia de que sua identidade será mantida em sigilo e nenhuma
informação será dada a outras pessoas que não façam parte da equipe de pesquisadores (doutoranda e
orientadora apenas). Na divulgação dos resultados desse estudo, sua identidade não será citada de
forma alguma.
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO: Após ter recebido esclarecimentos sobre a
natureza da pesquisa, seus objetivos e métodos:
SIM, eu aceito participar
Eu NÃO aceito participar
PARTE 1 - DADOS PESSOAIS
2. Como você se descreve em termos de raça/cor e gênero?
3. Grau de instrução dos(as) responsáveis (R) (indique o grau de parentesco com os(as)
responsáveis):
R1: R2:
Não frequentou Não frequentou
Fundamental incompleto Fundamental incompleto
Fundamental completo Fundamental completo
Seguinte->
268
Ensino Médio incompleto Ensino Médio incompleto
Ensino Médio completo Ensino Médio completo
Superior incompleto Superior incompleto
Superior completo Superior completo
Parte 2 – VIDA ACADÊMICA
5. Qual seu ano de ingresso na graduação da UFSCar/ Unicamp?
2011 ou antes
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
6152
. Você ingressou na UFSCar utilizando o sistema de cotas? Sim
Não
Prefiro não responder
6.1. Se você respondeu SIM na pergunta anterior, você utilizou uma política baseado nos
critérios (assinale todos que você se insere):
Sim, como egresso/a de escola pública
Sim, como pessoa negra
Sim, como pessoa indígena
Sim, renda familiar per capta igual ou inferior a 1,5 salário
mínimo
Não utilizei o sistema de cotas
Prefiro não responder
7. Como você se mantém financeiramente na Universidade? (Assinale todas as formas de renda que
você tem)
Auxílio financeiro da família
Assistência Estudantil da Universidade
Iniciação Científica financiada pela Capes, CNPq, Fapesp ou outro órgão de fomente à
pesquisa
Trabalho meio período – em atividade sem relação profissional com o curso
Trabalho meio período – em atividade com relação profissional com o curso
Trabalho período integral – em atividade sem relação profissional com o curso
Trabalho período integral – em atividade com relação profissional com o curso
Estágio remunerado
152 Apenas no questionários enviados aos Coletivos da UFSCar
269
Outra (Por favor especifique)
7.1. Se você recebe ou recebeu Bolsa Assistência estudantil, por favor, indique qual(is) e se
você é ou foi beneficiário(a) marcando S para SOU BENEFICIÁRIO e F para FUI
BENEFICIÁRIO.
Bolsa Atividade
Bolsa Alimentação
Bolsa Moradia
Bolsa Emergencial
Bolsa Permanência
8. Na UFSCar/Unicamp você é ou foi estudante de? Graduação
Mestrado
Doutorado
9. Qual o curso você está atualmente matriculado(a)?
10. Nas disciplinas obrigatórias do seu curso, você teve, ou sabe se o currículo contempla a
História e Cultura Africana, Afro-brasileira e/ou Indígena (obrigatórias a partir das Leis
10.639/03 e 11.645/08)? Comente:
11. Você está ou já esteve vinculado(a) a alguma pesquisa? Sim, Iniciação Científica (IC)
Sim, Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
Sim, Pesquisa de Mestrado
Sim, Pesquisa de Doutorado
Não
Outra (Por favor, especifique)
12. Se você respondeu sim à pergunta anterior, qual é o tema da sua pesquisa? Por que você o
escolheu para esta pesquisa? Teve alguma dificuldade para desenvolvê-lo? Comente:
270
13. Você participa ou participou de algum coletivo que contemple questões de raça/cor/gênero
na UFSCar? Qual? Há quanto tempo?
14. Por que, como e quando surgiu o Coletivo que você participa/participou? (por favor,
indique o Coletivo na sua resposta).
15. Por que você decidiu fazer parte do(s) Coletivo(s)? (por favor, indique o(s) coletivo(s).
16. Quais as principais atividades do(s) Coletivo(s)? (por favor indique o(s) coletivo(s).
17. Qual foi a maior conquista do(s) Coletivo(s)? (por favor, indique o(s) Coletivo(s). Conte
com o máximo de detalhes possíveis.
18. Para as afirmativas a seguir, assinale a alternativa que corresponde à sua avaliação sobre a
participação no(s) coletivo(s) sendo 1 discordo totalmente, 2 discordo, 3 indiferente, 4
concordo, 5 concordo totalmente e NA para não se aplica:
1 2 3 4 5 NA
Participar do(s) Coletivo(s) foi fundamental para
minha adaptação e/ou permanência na Universidade.
Participar do(s) Coletivo(s) foi fundamental para
271
minha adaptação e/ou permanência no curso.
O Coletivo foi o espaço onde encontrei grande parte
das minhas amizades na universidade.
O tema de pesquisa que desenvolvo (ou penso em
desenvolver) tem relação com minha vivência e
atuação no(s) Coletivo(s).
O(s) Coletivo(s) me fortalece(m) pessoalmente/
emocionalmente.
O(s) Coletivo(s) me fortalece(m) academicamente.
O(s) Coletivo(s) já me ajudaram a enfrentar situações
de racismo na universidade e/ou fora dela.
Compreendo o(s) Coletivo(s) como uma militância
política .
A atuação do(s) Coletivo(s) ajudam a alterar as lógicas
eurocêntricas da Universidade.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para
estudos e discussões acadêmicas.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para a
sociabilidade e lazer.
O(s) Coletivo(s) é(são) espaço(s) importante(s) para
discussões e atuações políticas.
As atividades promovidas pelo(s) Coletivo(s)
enriquecem minha formação pessoal.
19. Há alguma coisa que não foi perguntada sobre a sua vivência na universidade e/ou no(s)
Coletivo(s) que você gostaria de comentar?
7.2. Entrevista – Frente Negra UFSCar
Identifique-se sobre seu gênero, idade e autodeclaração racial
Curso:
Como surgiu a ideia de criar a Frente Negra – UFSCar? Quais eram as pessoas envolvidas
(estudantes, professores/as, funcionários/as...?)
Quais eram/são os objetivos da Frente? Eles mudaram do momento da criação até agora?
Quais eram/são as principais atividades da Frente?
272
Qual você considera a maior conquista da Frente?
Quais os projetos/planos da Frente a partir de agora?
7.3. Entrevista – Núcleo de consciência Negra – Unicamp
Como foi o processo de fundação do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp (motivações,
objetivos...?)
Quantos e, de forma geral, qual era o perfil das pessoas engajadas no Núcleo à época da
criação e ao longo destes 6 anos?
Como você analisa os 6 anos de atuação do Núcleo de Consciência Negra?