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plástico bolha www.jornalplasticobolha.com.br | jornalplasticobolha.blogspot.com Distribuição Gratuita Ano 4 - Número 27 - Novembro/Dezembro de 2009 DESTAQUES ENTREVISTA COM GEORGES LAMAZIèRE, POR PAULO GRAVINA DESAFIO POéTICO: POEMAS BREVíSSIMOS NA COLUNA PUZZLES, STELLA CAYMMI ESCREVE SOBRE COMO ERA COTIDIANO DO AVô, DORIVAL POEMAS DE ADéLIA PRADO, CHIARA DI AXOX, LEANDRO JARDIM, ALICE SANT’ANNA, MARIANO MAROVATTO, PAULO VITOR GROSSI, ISMAR TIRELLI NETO, JOVINO MACHADO, MIGUEL DEL CASTILLO, WILMAR SILVA & CHACAL TEXTOS DE FRED COELHO, ISABEL DIEGUES, RITA BRáS, FABIO BASTOS & ANTONIO MATTOSO leve literatura Angelo Abu www.angeloabu.com.br O rio e o mar Afogaram-se os peixes no mar por falta d’água, morreu meu cão inchado feito uma bola, morreu Bolota. Mas eu fui ao enterro não, que a enchente a levou. Pra onde, eu não sei não, talvez pra água seca que afogou os peixes de ar. Ah, talvez você comece a me entender agora. é pena que eu te engane. Lê de novo este início, depois. O rio barracento era uma torrente só. Muita casa caiu, muita gente sumiu e outro tanto de gente chorou na tristeza que a chuva pariu. E ali, bem perto dali, tudo há dias era só sequía. Mas o barro do rio da rua lambeu as fendas do chão salgado do que já fora oceano, inundando suas rugas. Só que, tadinhos, nesse impossível, os mil de mais de mil peixinhos embeberam- se de um marrom gosto de esgoto: cadê o sal do nosso azul? Veio a Bolota, durinha de tão inchada, e se juntou aos sofás que boiavam, aos pneus que boiavam e àqueles miles de peixinhos com as boquinhas em beijo pedindo ar, ah! Que cardume fúnebre. E foi que no dia seguinte tava lá eu, a Bete, Pedrinho e o Alex, mergulhando naquele rio de mar, incomodando o urubu na Bolota, jogando peixe um no outro, felizes na nossa desgraça, criando montões de anticorpos. E as ideias que se misturam, as coisas que não casam, dizem que sou leso da cabeça, mas a Bete ainda fala comigo — eu acho. A minha mente... às vezes boia. Luciano Prado da Silva

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plástico bolhawww.jornalplasticobolha.com.br | jornalplasticobolha.blogspot.com Distribuição Gratuita Ano 4 - Número 27 - Novembro/Dezembro de 2009

DESTAQUESEntrEvista com GEorGES LAmAzièrE, por PAULo GrAviNA

DEsafio poético: poEmas brEvíssimos

na coluna puzzlEs, STELLA CAymmi EscrEvE sobrE como Era

cotiDiano Do avô, DorivAL

poEmas DE ADéLiA PrADo, ChiArA Di Axox, LEANDro JArDim,

ALiCE SANT’ANNA, mAriANo mArovATTo, PAULo viTor GroSSi, iSmAr TirELLi NETo, JoviNo mAChADo, miGUEL DEL CASTiLLo, WiLmAr SiLvA & ChACAL

tExtos DE FrED CoELho, iSAbEL DiEGUES, riTA bráS, FAbio bASToS & ANToNio mATToSo

leve literatura

Angelo Abu www.angeloabu.com.br

o rio e o mar

afogaram-se os peixes no mar por falta d’água, morreu meu cão inchado feito uma bola, morreu bolota. mas eu fui ao enterro não, que a enchente a levou. pra onde, eu não sei não, talvez pra água seca que afogou os peixes de ar. ah, talvez você comece a me entender agora. é pena que eu te engane. lê de novo este início, depois.

o rio barracento era uma torrente só. muita casa caiu, muita gente sumiu e outro tanto de gente chorou na tristeza que a chuva pariu. E ali, bem perto dali, tudo há dias era só sequía. mas o barro do rio da rua lambeu as fendas do chão salgado do que já fora oceano, inundando suas rugas.

só que, tadinhos, nesse impossível, os mil de mais de mil peixinhos embeberam-se de um marrom gosto de esgoto: cadê o sal do nosso azul? veio a bolota, durinha de tão inchada, e se juntou aos sofás que boiavam, aos pneus que boiavam e àqueles miles de peixinhos com as boquinhas em beijo pedindo ar, ah! Que cardume fúnebre.

E foi que no dia seguinte tava lá eu, a bete, pedrinho e o alex, mergulhando naquele rio de mar, incomodando o urubu na bolota, jogando peixe um no outro, felizes na nossa desgraça, criando montões de anticorpos. E as ideias que se misturam, as coisas que não casam, dizem que sou leso da cabeça, mas a bete ainda fala comigo — eu acho.

a minha mente... às vezes boia.

Luciano Prado da Silva

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boLhETim

DistribuíDo no estado do rio de Janeiro e nas cidades de belo Horizonte, vitória, brasília, salvador, porto velho, curitiba, florianópolis e porto alegre. tiraGEm 13.000 | imprEsso na zm notícias

EnviE sEus tExtos para [email protected]

Enfim, ploct!recebemos muitos e-mails de leitores dizen-do que andávamos um pouco sumidos. Então, para os que ficaram preocupados, estamos aqui! o Plástico Bolha continua funcionando a todo vapor. inclusive, a edição #28 já está em fase de produção, e os que quiserem participar a hora é esta; estamos abertos aos textos. E quem sentir muito nossa falta entre uma edição e outra do impresso pode nos visitar na internet, pois o Blog do Bolha traz diariamente textos e novidades do jornal para nossos leitores, assim como a divulgação de eventos e lançamentos. Esperando o quê para nos visitar?

EDiçÃo lucas viriato | paulo Gravina | marilena moraes

consElHo EDitorial luiz coelho | Gregório Duvivier | isabel Diegues | Gabriel matos

comissÃo avaliaDora carlos andreas | nadja voss | mauro rebello | letícia simões | alice sant’anna | Edson santana | manoela ferrari rosimery trindade | nathanna alves | raïssa Degoes | maria silvia camargo

DiaGramaçÃo mariana castro Dias

rEvisÃo marilena moraes | rafael anselmé | Gabriel matos

EQuipE márcia brito | mary viriato | beatriz pedras | Gisele lemos

wEbDEsiGn Henrique silveira

cartaEi, plásticos

a gente nem se conhece, pô! como cês conseguem publicar as pessoas assim? confesso que nem sou muito simpático, nem fui, das vezes que lhes enviei material. Enfim, posso consertar isso. é foda ficar sempre sem saber de porra nenhuma, e nem conheço muita gente que mexe com lite-ratura. bom, meu tel é 8xxx-xxxx — o de casa não dou porque ainda nem tenho! o endereço da postagem é da casa da minha mãe — tô desempregado, mãe serve para isso também!! se forem fazer, participar de algo, me avisem que nos encontramos pra papear. o livro que também envio pra vocês é pura piada, e o editor, fictício. acho que dá pra dá uma coçada, ainda que tenham sido poucas impressões. Espero que se divirtam! tô preparando um romance, nos moldes desse livrinho, coisa grande, uh...

até,

Paulo Vitor Grossi

caça-palavrasEsta vai deixar até o listrado wally de cabelo em pé: é o novo e emocionante jogo do jornal Plástico Bolha. Encontre em algum lugar nesta edição as seguintes cinco palavras:

(embornal, rebobinando, desengonço, formi-gueiro, antipercussivo)

Heinz Langer

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inscrito em belém

são três horas de voo. não, quatro. não sei. De todo o modo, é tempo suficiente para escrever. tenho à mão o que preciso: papel, lápis, silêncio, mas não a ideia. tento dormir, mas o pouco es-paço impede o corpo de ficar à vontade. fecho os olhos e cubro o rosto. Entre a vigília, o sono e o assombro, o tempo passa. no ar, em pleno voo, não estou mais onde estive antes, e ainda não cheguei ao novo lugar. Estou a meio caminho entre o que fui e o que estou por ser. Em trânsito, a ideia da memória me visita. uma certa melancolia de voltar, 16 anos depois, a um antigo e co-nhecido lugar, a um estado de alma, de liberdade do eu. são poucos os lugares-momentos que transformam você no que você será para o resto da vida. Essas experiências impregnadas por baixo da pele lhe fazem o que você é. belém viveu em mim por nove meses. um lugar onde me tornei dona do meu tempo.

temo não reconhecer a cidade, os odores, os sorvetes. temo descobrir nunca ter vivido o que sempre acreditei ter experimentado; temo a ilusão de um lugar onde talvez nunca tenha estado. lugar criado com a ajuda de fotografias amareladas, borradas, cheias de mofo, esquecidas num fundo de gaveta. fotografias que são ativadores de memórias — como os diários —, e confirmam a veracidade de construções imaginárias de nossas vivências. Eles são, fisicamente, a prova con-creta da existência de um acontecimento, de um romance, de um corte de cabelo, de um estado de coisas, de um estado de alma. alma capturada pela lente, congelada no tempo e aprisionada neste hard disk externo imagético.

Entre a vigília e o sono, entre turbinas e nuvens, me pergunto se não seria mais justo simplesmente jamais voltar. Deixar o coração aquecido pela lembrança da luz, dos cheiros, dos rostos da memória; e escrever sobre esses traços que ficaram em mim. mas é tarde demais. o piloto anuncia a descida. Já não há mais como abrir o paraquedas. a queda, forçada, é livre. não sei quanto tempo estive quieta, de olhos fechados, decidindo sobre algo que não estava sob meu comando. parece que se passaram não mais que vinte minutos. vinte exaustivos minutos a questionar a ideia de voltar a viver algo que não sei se de fato vivi.

é tarde. o nariz e a garganta coçam, imploram ar puro. as luzes se acendem. é iniciada a descida. Depois o pouso brusco, o barulho das máquinas, tudo me parece muito real. ao se abrirem as portas do avião, o choque. a memória vem de onde não imaginaria jamais; vem na pele, no tato, na sensação do ar espesso e molhado tocando a pele, o rosto, os braços, o pescoço. posso fechar os olhos e me transportar a um passado de suores melados, lisos.

tudo pode estar fora do lugar, tudo pode nunca ter estado ali. mas eu estive. é a minha pele quem diz.

belém, 08.09.06

Isabel Diegues

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“primeiro: não fale. Espere que te entendam.” (Dorival caymmi – 13.07.87)

o dia a dia de Dorival é bem simples. não há grandes mudanças na sua rotina quer esteja em copacabana, pequeri ou rio das ostras. costuma acordar por volta das seis da manhã. até antes. fica na cama, esperando o movimento da casa começar para não acordar ninguém. faz, em silêncio, a ora-ção da manhã, que conhece desde menino.

Depois da oração, medita e espera o café da manhã. por causa da diabetes, não costuma abu-sar na alimentação. mas sempre que pode não dispensa uma balinha ou lascas de rapadura, pacientemente cortadas por cristiane, que trabalha na casa há anos, e colocadas num vidro que fica em seu escritório. Disciplinado, não comete extravagâncias. sabe se conter. é metódico. Gosta de se aproximar da janela a qualquer hora do dia — critica muito quem encosta móvel interditando o livre acesso a ela. se está em minas, onde tem passado longas temporadas, abre a janela de manhã e enche os pulmões com o ar puro da montanha. se passa alguém, apressa-se em acenar e recebe um alegre “bom dia, seu Dorival”, do pri-meiro passante do dia. responde com alegria. é bom estar vivo.

é uma bonita caminhada desde o mar até a mon-tanha. um caminho de sabedoria. as músicas que canta para os montes de minas só ele sabe. costuma ler. na última vez em que eu perguntei, ele tinha relido as obras completas de machado de assis. À sua maneira, é tão sábio quanto o conselheiro ayres. ou mais, pois não se afastou das mulheres. observa a vida que corre. aceita cada um como é. nada exige. nada impõe. é a favor da liberdade total. perguntem a Denise, João Gilberto, Juliana, João victor, Gabriel ou alice. só sabe o que lhe contam. não faz da vi-da alheia um alimento da sua curiosidade. invadir, jamais. conversa com criança pequena como se fosse gente grande. Ele as respeita. Elas o amam. não existe melhor ombro para chorar. Eu mesma já chorei ali muitas vezes e saí consolada. Deitei, mesmo depois de adulta, na sua barriga — quando ela era grande, era ainda melhor.

é um ser compreensivo. Jamais reclama. tem um humor manso, para ser ouvido como quem escu-ta João Gilberto sussurrar ao violão, ou a mulher amada, como diria vinicius. “necessariamente, para viver feliz tem que ter o ingrediente mais sério: humor. consulte millôr fernandes, que é o defini-tivo” — explica. suas tiradas são inteligentíssimas. noutro dia disse: “Gostar é um fenômeno da hora”. Enxuto. não é à toa que lê, apaixonado, a poesia dos manuéis, o bandeira e o de barros. adélia prado é poupada, para não acabar. a bíblia, Dom Quixote, de cervantes, e Cândido, ou o otimismo, de voltai-re, ordenadamente dispostos na sua mesinha de cabeceira, são sempre revisitados, fertilizando sua

PUzzLES por stElla caymmi

suave cotidiano

duas lentes de aumento, por causa de uma catarata que não pode mais ser operada. não desgruda de stella. Quando cochila — ele sempre cochilou — na hora da novela, stella repete: “caymmi, vá se deitar”. não adianta nada, ele fica ali sentadinho, até ela ir junto. sonha em reunir a família completa para um longo fim de semana. infelizmente, isso nem sempre é possível para as agendas dos filhos, netos e bisnetas. Gosta do movimento da mulher com as amigas e colaboradoras no zelo com a casa. alda, cristiane, telma, Elaine, sonia, celena, mara e vandréia lembram-lhe as mulheres de saia de sua infância. vive rodeado de mulheres. ainda tem maryara, que é sua amiga há anos; mas só se

conhecem por telefone. uma amiga virtual. batem longos papos. a vida para ele não teria a menor graça sem a mulher.

Às vezes, fica longos períodos em silêncio, com os olhos no longe. tem uma vida interior impossível de ser comunicada. ninguém o incomoda quando está quieto. stella, que vive com ele há mais de sessenta anos, instruiu a todos da casa que quando fosse assim não o interrompessem.

“sem a ação contemplativa você não consegue reunir a capacidade de ab-sorção. você larga os olhos no espaço e a memória, aí, tem mais atividade”

— ensina. sobre a música, disse certa vez que “o artista não deve morrer de amor pela primeira coisa que faz”. Quando escuta bach, seu compositor favorito, atinge regiões impensáveis para a maioria de nós. sobre a morte, costuma dizer que já está no lucro. tem muita consciência de si. Quem se aproxima dele percebe que está diante de um homem realizado. Ele é irresistível.

vê beleza onde as pessoas menos desconfiam. interessa-se por pequenas coisas, como a trajetória da formiga até o formigueiro carregando uma fo-lha três vezes maior que o seu tamanho, ou como a visita do beija-flor, que costuma pousar em seus cabelos brancos. você não sabia? caymmi conversa com os pássaros.

imaginação. “Eu sou escravo de um personagem, eu sou escravo de Dom Quixote de la Mancha” — confidenciou-me certa vez. como millôr gosta de dicionários, ele gosta de enciclopédias. E as lê, de a a z. cultiva a memória. faz palavras cruzadas. E descreve seu dia em agendas há quase quarenta anos (eu que o diga!). é um profundo admirador da tecnologia, mas não chegou ao computador. tem preguiça. Deixa para os mais jovens. seu ídolo é thomas alva Edison, o inventor da lâmpada incan-descente e o precursor do cinematógrafo.

conversar com caymmi é uma arte. E quando isso acontece exige sua total atenção. é detalhista. cinematográfico. pinta o cenário antes de desen-cadear a ação no imaginário do seu interlocutor. é plástico. é um homem informado. sabe tudo o que está acontecendo, lê jornais, revistas e vê televisão, mesmo que para ler tenha de usar, além dos óculos,

Fern

ando

Rab

elo

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mULhErES-DAmAS

ana c.

a poesia

se insiste

se é cisma

(instinto?)

é um passo

na direção

do abismo

(infinito?)

ou então são

dois passos

e um colapso

(suicídio?)

nos casos

de poesia

mais rara

(primitiva?)

ou então coice

patada de pena

porque as asas

(comprimidos?)

estão na cabeça

e não nas pedras

portuguesas.

por lEonarDo marona

sabia sabrina,sentir é sem sentidose solto de saber-se seu

pÃEs antEpastos massas molHospizzas salGaDos DocEs tortas

De volta ao Leblon!

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papéis

o corte no meio

formava um coração.

Era a parte vazia

do papel

por onde passava

o que de mim saía.

a branca borda

me protegia,

cobria o assento

do vaso, não sanguíneo,

a privada mesmo

do banheiro do shopping

(ironicamente limpo e útil).

Leandro Jardim

PArA LEr Em voz ALTApor JoÃo GabriEl D’alincourt Da fonsEca

carta para uma primaquerida minha,

chove muito nesta madrugada (é claro que ainda estou de pé. na verdade acabei de fazer café) e só queria dizer que penso em ti todas as vezes que estalo os dedos porque me lembro de que suas mãos são maiores que as minhas. e também lembro que quase nunca conseguimos ficar em silêncio, e que delícia — acho que só eu sei que você não suporta o silêncio. que pena que fui embora correndo daí, mas é que achei que alguém estivesse me esperando aqui. me enganei e agora quero voltar, quero tanto voltar. penso sempre em você caminhando e carre-gando o seu charme, e desengonço pelas ruas do 5ème, se bem que a esta altura você já deve estar caminhando em knightsbridge, enfim. quando será que te encontro de novo? preciso de ti pra sorrir. um brinde, como aqueles, loucos, com aqueles vinhos de 2 ou 3 euros que só a gente bebia, um brinde querida. saudades sempre.

b.

Isabel Wilker

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neste número a coluna Bolhas Geraes abre espaço para o projeto mulheres Emergentes, um mural poético que enfatiza o feminino nas artes e é coordenado pela poeta tânia Diniz desde 1989. Quem é de minas certamente já ouviu falar no projeto, agora é a vez dos leitores do bolha conhecerem um pouco da poesia que emergiu ao longo destes anos todos de trabalho.

boLhAS GErAES por mulHErEs EmErGEntEs

veleiro noturno flutua.a rede pesca estrelaso mastro roça a lua.

Lívia Tucci

artefato nipônicoa borboleta pousadaou é Deusou é nada

Adélia Prado

luasna lua nova de recurvo brilhoa paixão renovas no meu céu de cio crescentea chama alteia E serpente e sereiame encontro vindo:lua cheia E quando, bacante,mesmo minguante,me prendes a cinturana quadratura de cada mês,a cada vez,desvendas com artea sanguínea facede minha lua escarlate.

Tânia Diniz

DependeÀs vezes sou corda de açooutrascorda de harpaDependeda mão que me alcança.

Zulmira da Silva Pinto

canopeuma multidãode peregrinosatravessa o canaldo meu corpo tudo é preparadopara produzirrelaxamento e prazer eu espero Estrabãocom um jacinto nos cabelos.

Denise Costa Almeida

violoncelono berçoDe seu braçosonsadormecem.Quando despertampara a viagemE aportam estrelas,até anjos estremecem.

Yeda Prates Bernis

vejo no céu trabalho de abelhaslua de mel!

Ana Carol Diniz

bototuas mãos trançamEm meu rostochama e anseiotua voz clamao versoface no espelhotua sede esculpeEm meu corpoa forma do desejo.

Alzira Umbelino

mexer nos papéisDa memória.Desarquivaros sentimentosQue o corponão ignora,rememora.

Lúcia Serra

vigíliavazia velejopelo meu ventreentre o vão e o denteversejo vaga plenaem que (di)vago e velo meu corpotantas vezes(re)velado

Adriana Ferreira Melo

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ontem será amanhãacordou na hora de sempre, foi ao banheiro e depois, para a cozinha, onde preparou uma xícara de café, colocou uma fatia de pão na torradeira, abriu a porta e pegou o jornal. sentou-se então para tomar o café e dar uma olhada rá-pida no jornal. Estranhou a manchete, que parecia ser a mesma da véspera. notou também que todas as notícias da primeira página eram as mesmas do dia anterior. olhou então a data do jornal e verificou que era quarta-feira, ou seja, o entregador havia deixado um jornal do dia anterior. isso nunca havia acontecido antes, mas para tudo existe uma primeira vez. acabou de tomar seu café e saiu para trabalhar, avisando o porteiro do jornal do dia anterior.

chegando ao trabalho, ligou o computador e verificou que as mensagens do correio eletrônico que apareciam como novas ele já havia lido na véspera. achou estranho, mas como de um computador pode-se esperar qualquer coisa não ligou muito para o fato. Quando encontrasse alguém da área de informática, comentaria o fato e certa-mente receberia mais uma explicação sem lógica. seguiu trabalhando até que sua secretária veio avisá-lo que ele estava atrasado para a reunião do comitê, do qual ele era o coordenador. Ele respondeu que a reunião havia sido no dia anterior e ela retrucou que era hoje, quarta-feira, e que era melhor ele se apressar porque já estavam todos na sala de reunião esperando por ele. olhou para o relógio e descobriu que realmente ele marcava quarta-feira. ficou sem entender o que estava acontecendo e resolveu ir para a sala de reuniões.

ao entrar na sala, verificou que sua secretária estava falando sério; todos os membros do comitê estavam ali sentados esperando por ele. achou que deveria ser al-guma brincadeira e decidiu colaborar. sentou-se e abriu a pasta com a pauta com os itens que seriam discutidos e notou que todas as anotações que ele havia feito na véspera haviam sumido. se fosse uma brincadeira, já estavam indo longe demais; e como explicar o caso do jornal e da data no seu relógio? Deu seguimento à reu-nião e notou que tudo transcorria exatamente como na véspera; as sugestões, as discussões e os apartes eram os mesmos. Era como se fosse um replay da reunião anterior. Estava confuso e não sabia o que pensar.

terminada a reunião, voltou para sua sala e verificou que o relógio do seu computador também marcava quarta-feira. Estava convencido que o dia era realmente quarta-feira e ele estava vivendo pela segunda vez aquele dia. lembrou-se de que na primeira quarta-feira havia preparado um importante relatório e enviado para um cliente. não encontrou qualquer cópia e registro do relatório nem na pasta do cliente nem nas correspondências enviadas. foi obrigado a refazer o relatório e enviá-lo novamente. pas-sou o resto do dia sem saber exatamente o que fazer e não sentiu ânimo para comentar o que estava se passando.

Em casa, não notou nada diferente na sua família; todos agiam como se fosse uma quarta-feira como todas as outras. Durante o jantar seu filho lembrou do jogo do time deles que ia ser televisionado. Eles haviam assistido

CoNToS iNSÓLiToS

ao jogo na véspera e vibraram muito com a vitória por 2 a 1. resolveu não contar para o filho o resultado do jogo, até porque não sabia como explicar o que estava aconte-cendo, e assistiram novamente ao jogo que transcorreu exatamente como no dia anterior. Era como se fosse um videoteipe e não um jogo ao vivo. lembrou-se então de um filme em que o personagem vivia sempre o mesmo dia, mas aquilo era ficção e não aconteceria com ele na vida real. mesmo assim, foi dormir preocupado.

acordou antes da hora no dia seguinte, levantou-se rapidamente e foi direto pegar o jornal. não acreditou no que viu: o jornal era de terça-feira e a primeira página estampava a foto do enterro de um famoso cantor que havia morrido em acidente de carro no fim de semana anterior. a notícia havia tomado conta de toda a mídia e o enterro havia sido na segunda-feira. sentou-se na cadeira da cozinha e ficou ali por algum tempo tentando encontrar uma explicação para tudo aquilo.

foi quando sua mulher entrou na cozinha e ele perguntou assim que a viu. “Que dia é hoje?” Ela respondeu pronta-mente: “antes de qualquer coisa, bom dia; hoje é terça-feira e não se esqueça de ligar para sua irmã para dar os para-béns pelo aniversário dela. não chegue muito tarde porque hoje vamos jantar na casa dela para comemorar”.

vestiu-se e foi para o trabalho, preocupado com o que encontraria. chegando lá, constatou que tudo que havia feito nas duas quartas-feiras e na terça-feira havia sumido. verificou também que em cima de sua mesa estava a pasta de um cliente que ele tinha certeza que não deixara ali na véspera. lembrou-se então de que na última terça-feira teve uma reunião com aquele cliente e, pelo visto, teria que ter novamente. não lhe restava outra opção senão refazer o trabalho dos últimos dois dias. o que estava acontecendo com ele, fosse o que fosse, estava começando a irritá-lo.

À noite comemorou pela segunda vez na semana o aniversário da irmã e, ao voltar para casa, pouco antes da meia-noite, resolveu fazer um teste. ficou sozinho na sala, olhando para o relógio; quando deu meia-noite, sentiu tudo apagar em sua volta, como se a energia de seu corpo tivesse sido desligada, até que, em fração de segundos, viu-se deitado na cama, lendo o jornal de domingo. olhou assustado em volta e checou o relógio na mesa de cabeceira que marcava zero hora de segunda-feira. sentiu vontade de chorar; aquele pesadelo ia continuar.

E a vida continuou assim para ele, sempre andando para trás no tempo. sua semana começava numa sexta-feira e terminava num sábado. via-se obrigado a refazer tu-do que já havia feito antes. aos poucos foi perdendo o interesse pelo que fazia já que, além de estar fazendo novamente, não tinha como verificar o resultado de suas ações. acordava sempre com a esperança de aquilo tudo terminar e sua vida voltar ao normal, mas à medida que constatava que continuava retrocedendo no tempo foi

ficando deprimido. De que adiantava viver se não sentia prazer no que fazia? Descobriu que era um homem sem futuro e passou então a reconhecer o valor exato dessa palavra. tudo que se faz na vida, se faz com a intenção de tirar algum proveito no futuro; e se o futuro dele era o passado... pensou em se aproveitar daquela situação já que tinha condições de voltar ao passado. poderia, por exemplo, sabendo o resultado da loteria, apostar e ficar milionário. mas de que adiantaria, se ele nunca poderia usufruir o dinheiro do prêmio? De que adiantaria assistir a um jogo de futebol, se ele já sabia de antemão o resultado? o campeonato para ele começava com o anúncio do time campeão e terminava na primeira roda-da. a angústia foi tomando conta dele, que já não tinha mais prazer em viver nem esperanças de retornar à vida normal. outro ponto que o incomodava é que todos em volta não notavam qualquer mudança nas suas atitudes e agiam como se ele estivesse normal. Descobrir o que estava acontecendo tornou-se uma obsessão.

tudo havia começado naquela quarta-feira, e ele fez então um esforço para se lembrar de tudo que havia se passado naquele dia. no trabalho, havia participado da tal reunião pela manhã e, à tarde, preparado o relatório; nada de anormal. Em seguida, lembrou-se muito bem de por que e quando começaram a viver novamente o dia anterior. À noite, após o jantar com a família, assistiu com o filho ao jogo do seu time. com esforço, foi se lem-brando do que se passou após o jogo e, finalmente, tudo ficou claro. Havia passado mal após o segundo gol do seu time, suando frio, com falta de ar e uma dor no peito. ao terminar o jogo, entrou no banheiro pensando em lavar o rosto, quando se sentiu sem forças e caiu no chão. tentou pedir socorro, mas sua voz não saiu da garganta. ficou por algum tempo caído no chão do banheiro até ouvir vozes em volta, mas tudo muito longe. no início sentiu frio, mas depois se sentiu bem, livre de qualquer sensação de dor e incômodo.

ao recordar tudo aquilo, descobriu finalmente o que acontecera: ele havia morrido naquela noite de quarta-feira, no chão frio do banheiro. a descoberta, ao invés de assustá-lo, trouxe-lhe uma paz interior muito grande. o que se passava devia ser o caminho natural após a morte. Ele estaria vivendo a segunda metade de sua passagem por esse mundo, como se alguém estivesse rebobinando o filme da vida. sua missão dali para frente não seria mais de realizar algo, de deixar sua marca no mundo, mas sim de participar como mero espectador. não estava vivendo para mudar o que já havia feito na vida, mas sim para refletir. Era uma chance de repensar seus atos; de rever tudo que havia feito de bom e de ruim, seus erros e acertos, suas alegrias e tristezas. reencontraria pessoas queridas que já haviam partido e de quem sentia saudades. veria seus filhos novamente crianças e sentiria uma vez mais a alegria de vê-los nascer. seria jovem outra vez e poderia rever seus amigos de infância. voltaria a ser menino até chegar ao útero materno, quando cairia o pano do último ato da sua existência.

Fabio Bastos

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Em 1994, tom Jobim grava em seu último álbum, Antonio Brasi-leiro, a canção “piano na mangueira”. parceria com chico buarque, sua letra diz, trinta anos após o período da bossa nova, que o morro veio chamar o compositor e que ele aceita o convite. no carnaval de 1992, Jobim foi tema do enredo da Estação primeira de mangueira na avenida.

o que eu gostaria de destacar na letra de chico buarque é uma ressalva. Ele diz, na voz em primeira pessoa de tom, que, mesmo que sua música não seja de levantar poeira, ela pode entrar no barracão. Essa deferência ao universo do carnaval e das escolas de samba é, ao mesmo tempo, uma demarcação de espaços da cidade. afinal, o piano (que está na rua, na zona sul) precisa subir o morro, chegar ao coração da escola (e do samba?) para que finalmente tom realize os versos proféticos de vinicius em

“o morro não tem vez”: “quando derem vez ao morro, toda ci-dade vai sambar”. se toda a cidade não samba, ao menos tom e sua música sambam em perfeita harmonia. o interessante é que a ressalva da música que não é de levantar poeira faz uma alusão direta às composições de tom, cuja marca camerística e apolínea não estão diretamente relacionadas ao universo popular e dionisíaco do carnaval, sintetizados na imagem do barracão. chico nos fala, de certa forma, que o piano sempre esteve distante das ladeiras sonoras das favelas cariocas.

Essa subida tardia do piano de Jobim até a mangueira é talvez uma pista para entendermos por que alguns dos principais nomes e movimentos da música popular brasileira passaram ao largo da questão da mestiçagem e da negritude em sua história. a distância entre as classes sociais cariocas — resumi-das esquematicamente no binômio morro/asfalto — sempre foi, de algum jeito, uma força-motriz de nossa música popular. força ativada tanto para o bem quanto para o mal. Em um movimento pendular, ora músicos ricos e pobres, brancos e negros, espontâneos e acadêmicos se reúnem criativamente, ora se afastam radicalmente.

nos anos modernistas das décadas de 1920 e 1930, por exemplo, o pêndulo pendeu decisivamente para o lado da integração das partes, nos dando compositores como noel rosa e assis valente, lamartine babo e ismael silva, ary barroso e Geraldo pereira, propiciando a expansão da cultura das escolas de samba e a invenção de uma linguagem carioca, mestiça e popular. Já no período desenvolvimentista da bossa nova, da poesia concreta e de JK, quando as cidades e sua modernidade urbano-industrial passaram a ser o foco dos projetos nacionais, a música popular definiu claramente as fronteiras entre uma música sofisticada, classe média, moderna e branca e uma música folclórica, brega, popularesca, nordestina e pobre. a aversão ao samba-canção, às batucadas dos sambões e aos ritmos nordestinos — do baião ao forró — era uma das marcas da juventude dourada carioca que criou e ratificou a bossa nova.

é claro que a bossa nova entrou para a história como o ritmo que incorporou e modernizou de forma definitiva o samba e suas contribuições melódicas, harmônicas e líricas na música popular brasileira. o samba da bossa nova, porém, é um samba de piano e violão, em que a grande invenção era justamente

o enxugamento da parte percussiva ao mínimo. uma das prin-cipais contribuições africanas para o samba, isto é, sua base rítmica, de batucada e pressão, foi desmontada e deslocada por grandes como Jobim e João Gilberto, em direção a um novo formato, conciso e distante dos barracões das Escolas ou dos terreiros e das rodas.

baden powell e vinicius de moraes foram uns dos poucos mú-sicos que atuaram nos anos 1960 a abordar a questão racial e a presença da cultura negra e mestiça na música popular de seu tempo. Em seus antológicos Afrosambas (1966), eles revertem ra-dicalmente o tratamento antipercussivo da bossa nova e injetam atabaques e agogôs em quase todas suas canções sobre orixás, sobre a negritude, sobre a bahia e nos demais temas ligados a esse universo. vale registrar que, ao longo de sua carreira, tom Jobim não gravou trabalhos parecidos, dedicados ao estudo desses ritmos — mesmo gravando canções de pixinguinha e ary barroso. tom dialogava com radamés Gnatalli e villa lobos, e não com os sambistas tradicionais. é por isso que a subida de seu piano ao morro é quase um acerto de contas entre o ma-estro e o mundo do samba que ele tanto prezou e divulgou ao longo de sua vida — mas não ao longo de sua música.

Os Afrosambas foram gravados em um período quando o país se encontrava na transição do pêndulo descrito mais acima. Durante a primeira metade da década de 1960, os músicos envolvidos com a bossa nova iniciaram divisões ideológicas a respeito do papel do músico popular frente às questões políticas e sociais que os rodeavam. Durante os anos de funcionamento dos cpcs da unE (1961-1964), carlos lyra, nara leão, vinicius de moraes e outros se aproximaram dos sambistas ditos de raiz, como zé Ketti, cartola, nelson cavaquinho, ismael silva e passaram a divulgar seus trabalhos — principalmente nara leão. foi a época áurea do espetáculo Opinião (1964), do bar zicartola e dos textos e livros como Música popular: um tema em debate (1966), de José ramos tinhorão; um momento em que se acusavam formalmente de colonizados e alienados (acu-sações estéticas e políticas) os compositores da bossa nova que permaneciam alheios — ao menos musicalmente — a esse universo autêntico do samba.

Esse breve acerto de contas entre os músicos ditos de classe média e os sambistas populares (pobres e negros em sua maioria), mesmo assim, não transforma substancialmente as fronteiras entre classes e cores no tecido da música popular brasileira. basta pensarmos que o movimento musical que marcaria o país de forma tão intensa quanto a bossa nova — o tropicalismo — também não tematizou a questão racial ou a cultura mestiça brasileira como valor positivo e identitário. apesar de seus membros serem baianos e paulistas, mulatos, brancos e negros, o brasil moderno, urbano, caótico e desi-gual era maior como tema de crítica e pesquisa do que essas questões. caetano celebra a mulata e a bossa nova, carmem miranda, iracema e ipanema, mas não celebra orixás ou a cul-tura africana como vinicius e baden celebraram. Gil narra as complexidades da vida capitalista no terceiro mundo, a morte e a geleia geral, o misticismo da contracultura ou o surgimen-to de uma cultura eletrônica, porém não reflete criticamente

Por DENTro Do Tom por santuza cambraia navEs

o mestiço e o negro na música brasileirao negro (3) - convidado frederico oliveira coelho

sobre sua condição étnica em suas canções — reflexão que viria com força total quase dez anos depois, em trabalhos como Refavela e Realce.

o tropicalismo, em todas suas manifestações públicas, tam-bém foi um movimento em que as bases étnicas da nossa música e da nossa cultura ficaram em segundo plano, ou melhor, em um plano silencioso. é interessante pensarmos em trabalhos posteriores de Gil e caetano dedicados por completo a esses temas, como os referidos de Gil e o em-blemático Noites do Norte, de caetano. ao contrário de chico buarque — ou até mesmo de João Gilberto —, o samba não esteve sempre no centro do interesse estético dos tropica-listas. Durante o período do movimento (1967-1969), não há um só samba composto por eles a não ser “aquele abraço”, de Gil. caetano e Gil seriam depois exímios compositores de samba, mas no período tropicalista tinham mais interesse na cultura negra norte-americana do que na cultura negra brasileira. E isso, claro, não é acusação ou tentativa de crítica aos seus trabalhos, mas uma forma de constatarmos certos traços de uma relação (in)tensa entre a música popular bra-sileira e a questão racial.

tom Jobim nunca precisou fazer uma música cujo tema fosse explicitamente sua opinião ou visão particular sobre a questão racial brasileira, seus dilemas, derrotas e vitórias. suas canções de inspiração impressionista e eruditas conseguem sintetizar em seus acordes e melodias um imaginário sonoro do que podemos chamar aqui de ser brasileiro. E todos entendem isso, seja qual for sua etnia, sua tradição cultural, sua história de vida e de bolso. é por isso que, em “piano da mangueira”, vale a pena ressaltarmos a felicidade poética de chico buarque quando mostra a conciliação — não de uma briga, mas de uma distân-cia histórica — entre o piano do compositor mais brasileiro e os morros e as favelas do rio de Janeiro. Espaços por excelência do que muitos chamam de raízes ou tradição da música po-pular, os morros e as favelas eram distantes na vida cotidiana dos compositores da bossa nova ou dos músicos tropicalistas. Era justamente essa distância cotidiana que críticos como José ramos tinhorão usavam como arma para acusar tais músicos de ladrões do verdadeiro samba, o que era feito não nas areias de copacabana, mas sim nas ruelas do buraco Quente e do pendura saia.

seja em copacabana seja na mangueira, o que precisa ficar registrado é que a música popular brasileira e a questão da mestiçagem e da cultura negra demoraram muitos anos para serem vistas como elementos de um mesmo universo criativo. a bossa nova e o tropicalismo foram momentos fundamentais na constituição de um imaginário e de um cancioneiro popular e nacional, mas deixaram de lado algumas das matrizes étnicas e culturais que formam hoje em dia a variedade desse imagi-nário e desse cancioneiro. na década de 1970, essas matrizes foram incorporadas de forma definitiva — seja na ampliação da base étnica da canção popular, seja na penetração maciça dos lemas e dos estilos do Black Power norte-americano e do reggae jamaicano, no âmbito da cultura pop brasileira. mas aí já são outras histórias e outras canções.

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ilessi segue tradições da mPb no belo ‘Brigador’

afirma paulo césar pinheiro, em texto feito para o encarte do primeiro álbum de ilessi, Brigador, que a cantora carioca começa bem. Embora suspeito, já que é um dos compositores da parceria celebrada no disco, pinheiro tem razão ao listar adjetivos como afinada, segura e corajosa quando se refere à intérprete diplomada pela professora amélia rabello na Escola portátil (rJ). De fato, ilessi se mostra afinada, segura e corajosa ao abordar a obra (bela e ainda pouco ouvida), composta por paulo pinheiro, em parceria com o bandolinista pedro amorim, convidado afetivo do samba Julgamento. Já no afro-samba que abre e dá título ao ótimo cD, gravado em 2007 mas circunstancialmente lançado somente neste ano (de 2009), em que estão sendo festejados os 60 anos de pinheiro, as qualidades vocais de ilessi saltam aos ouvidos com seu timbre, que evoca ligeiramente o de maria rita. Entre o suingue nordestino de “barraqueiro de caruaru” e a melancolia de “ponto de punhal” (choro no qual a aluna já profissional dueta com a professora amélia rabello, ao som da flauta chorosa de marcelo bernardes), a voz de ilessi realça a poesia lírica da canção “olhos azuis”, se embrenha pelos campo na toada “a pena do sabiá” (faixa em que a viola de João lyra acentua o clima ruralista) e sustenta bem o tom camerísti-co de “serena”, valsa-canção que conta com o piano e o arranjo de cristóvão bastos (nas demais faixas, os bons arranjos são de luis barcelos, produtor do cD, ao lado da própria ilessi). no fim, tudo acaba em samba. “sestrosa” tem balanço buliçoso que evoca as rodas baianas. “linha de caboclo” — o tema veloz que maria bethânia acabou tendo a primazia de apresentar no recém-editado álbum Encanteria — reforça o elo afro de amorim e pinheiro. Já “a sina do negro” destila o orgulho da raça no compasso majestoso de um samba-enredo. todo gravado à moda tradicional, sem concessão aos sons eletrôni-cos que adornam a atual música brasileira, Brigador segue tradições da mpb e põe a promissora ilessi na briga pelo título de intérprete de um dos melhores discos deste ano de 2009.

NoTAS No PLáSTiCo por mauro fErrEira

Para ler mais notas musicais, acesse http://blogdomauroferreira.blogspot.com

as apostasao Leonardo Gandolfi

um pardalruinadode regressode las vegas, ou qualqueroutro povoado de roletas;este poema se posta à tua frentee te adversa — quieto. Já

o desafio quete coloco — trato-meduma terceira separação — é, senão claro, bem menos tortuoso — descobrirao pássaro que,parado (lentes fundas) à tua frente, dá de asas — alguma ternura, vexada que seja. acho

que não sei transbordarpara lá

Ismar Tirelli Netopoema do cajueiroo cajueiro se esparramae acaricia o chãocom dedos retorcidos de desejo.não há delicadeza no desenhoou na textura de suas folhasmas parasitas laboriosasaplicam refinados arranjos floraisem seus galhos rugosos.

não é tempo de frutosnem cabem ninhosem sua fronde sem aconchegosmas há sempre passarinhose amantes eternosem sua sombra.

sábio é o cajueiroimpassível a assistirà passagem das floresdos frutosdos pássarose dos apaixonados.

Carlos AA. de Sá

Pedro Sá azeita rock-samba de ronei e os Ladrões de bicicleta

ronei Jorge e os ladrões de bicicleta é um grupo da bahia que cruza samba com rock sem fazer exatamente samba-rock. o fato de pedro sá — o guitarrista que é a alma da bandacê — ser o produtor do segundo álbum da banda já informa muito a respeito de Frascos comprimidos compressas. pedro sá não toca no dis-co, porém azeita o rock-samba de ronei Jorge. a guitarra roqueira que conduz o ritmo do samba “você sabe dessas coi-sas” (Nega) evoca a guitarra tocada por pedro em Zii e Zie, cuja ambiência tam-bém está refletida de alguma maneira no instrumental da balada “a respeito do sono”. Enfim, o cD tem lá seus encantos próprios — apesar de o repertório nem sempre ser inspirado — e vai contentar os fãs da sonoridade indie de ronei Jor-ge e dos ladrões.

a cidade em rewindsentado decostas no trema cidadevai em rewind –

todo caminhoé de volta.telhados ediagonais

rasgam o céucinza de sãopaulo, traçam

minha voltado tietêpro paraíso.

Miguel Del Castillo

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Defesa do Amor de Cleo e Tonimote: para ambos, o suicídio não foi pecado, mas castigo.

o que seria o suspirosem ter por quem suspirar?

contra a solidão conspiroa favor de suplicaro perdão para o casalQue junto permaneceuno pecado mais mortal.

conhecemos prometeucujo fogo tem trazidonão só a sabedoriapara humanos mais franzinos,mas também a orgiapara os mais desinibidos.

Já diante dos seus olhossenhores do júri, eu rogo:lembrem de cleo como era,Que maldição ser tão bela!concedam o seu perdão,Que toni já tem sofridoDe embriaguez de paixão:

Enquanto trocavam beijosEra um colar com calorlínguas loucas de tremor,seios duros como seixosapertados contra o peitomuito antes de no leitoconsumarem seu amor.

para as criaturas digo:não há pior castigo!

como pena alternativaQue eles juntos permaneçamcomo os dois eram em vidapois que ambos só mereçamo veneno que os matou.

pior pecado seria viver como quem nunca amou.

Renan Mendonça Ferreira Downtown – bloco 21 – sala 226 – barra da tijuca – rJtelefone: (21) 3982-2324 - [email protected]

yoga Karana – Hatha yoga – yoga para Gestantes meditação mântrica – alinhamento Energético reiki – cromoterapia – massagem ayurvédica

aromaterapia – palestras mensais Gratuitas

olhares

é notável a presença do rato em cima dos li-vros. Ele é grande, robusto, cinza e fedorento. o gato, oculto em sombras, observa sua presa com seus olhos vis e brilhantes. um homem chega, puxa a cadeira e se senta diante do ani-mal cinzento e dos livros. o roedor, assustado, foge; o predador, decepcionado, vai embora; o recém-chegado, entediado, apanha um li-vro e lê. logo mais, dorme. o dia amanhece e o cão observa o galo cantar.

Bruno Papito Nascimento

Anu

Wilmar Silva

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nesta edição, nossos astutos

leitores foram convidados a

enviar seus haicais ou poeminhas

curtos. veja aqui treze dos

selecionados. para a próxima

edição, o Desafio é enviar um

poema inspirado em um filme. o

resultado: em breve num plástico

bolha perto de você!

DESAFio PoéTiCo

veja outros Desafios poéticos em nosso site: www.jornalplasticobolha.com.br

Envie seus poemas para [email protected]

súbito, sentide longe um forte aroma...Dama-da-noite!

Yara Shimada

ontem choreihoje chorinhoamanhã chope

Jovino Machado

além da fronteiracontinua sempre o mesmoo verde sumindo

Marcos Queiroz

versinhos

whisky com guaranátequila com limãoseu copo eu aceitovocê eu não quero não

Luciana Mutti

brisa

assopro de invernona flor de maracujá.Desgostos eternos.

Franklin Pacífico

navalhas

no mundo paredenunca chove nem navalhasninguém sente sede

Felipe Ribeiro

brincando de nada

saltita no lago a pedra depois submerge dois olhos no vago

Octávio Roggiero Neto

seu corpo no meurecheio de nóscafé da manhã

Leonardo J. Melo

mas que frio no pé!o menino descalçodepois do xixi

Taiyo Omura

no morro só hábem lá no topo um péDe jequitibá

Luisa Noronha

haicai de verão

de infinitas lágrimase farelo de polvilhosão feitas as praias

Lucas Viriato

poeminha sujo

me lamba, se lambuzeme abra com cuidadoQue eu sou só uma lataDe leite condensado.

Daisy Miller

bovarismo

De tanto lerficou com l.E.r.

Nicole O’Hara

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Passar(o)

na massa do trânsitopor entre as buzinas de atrasoum passarinho imperturbávelpousado no teto de um ônibusà procura do tempo

Chiara di Axox

o objectivo é tentar conciliar a vida mental com a minha vida prática. Em caso de dú-vida contactar o nº 960043006. as manhãs e as tardes estão por conta da Dona rita. a senhora, que dorme durante a noite, fica-va toda contente se fosse lá dizer-lhe olá, entregar-lhe esta carta de recomendação para se manter acordada. Há frustrações que se sente que ninguém percebe.

Rita Brás

por antonio mattoso

Exibido em 2008 e agora disponível em DvD, O mistério do samba, documentário dirigido por ca-rolina Jabor e lula buarque de Hollanda, pretende resgatar o samba carioca de oswaldo cruz por sua melhor representação, a velha Guarda da portela. o documentário se constitui a partir de duas fontes: tanto de imagens de arquivo — isto é, fotografias e filmes quanto de imagens e depoimentos captados pelos próprios diretores. Desde 1998 marisa mon-te, para produzir o cD Tudo azul da velha Guarda (Emi, 1999), inicia sua pesquisa conversando com seus componentes, ouvindo e redescobrindo seus sambas, até 2007, quando foram feitas as últimas tomadas, em uma roda de samba na portelinha, em oswaldo cruz. no filme, essa pesquisa funciona como um singelo enredo, organizando a narrativa e o material filmado, porém não é senão um pretexto para aflorar, a nosso ver, suas principais questões: a memória e a inspiração de seus compositores. o filme conta ainda com a participação de paulinho da viola e zeca pagodinho, que possuem vínculos afetivos e efetivos com a velha Guarda. paulinho produziu o primeiro registro fonográfico da velha Guarda, o antológico Passado de glória (rGE, 1970); zeca, por outro lado, afirma que sua referência de samba bom ocorreu no terreiro da tia Doca.

a primeira palavra dita no filme é antigamente, en-quanto a câmera percorre pelo bairro, em uma de suas casas está inscrito 1927. coincidentemente foi nos anos vinte que o samba, então um ritmo novo, foi levado do Estácio para oswaldo cruz e que a portela foi fundada, tendo se originado dos blocos do bairro. Desfilou primeiramente com o nome vai como pode entre 1932 e 1934, adotando em 1935 o nome Grêmio recreativo Escola de samba portela. Desde o início do filme, fica caracterizado o afastamento temporal evo-cado pela palavra antigamente e trará de volta esse passado a memória viva dos componentes da velha Guarda, daqueles que conviveram com os fundadores e puderam, portanto, compartilhar do tempo forte da fundação da escola trará de volta esse passado. Eloquentes, nesse sentido, são os depoimentos de seu Jair do cavaquinho, dizendo que originalmente a portela não saía com bateria, mas com trombone, clarinete, flauta, violão, cavaquinho e violino — e também o depoimento de tia Eunice. Ensinando o miudinho às crianças, ela afirma que aprendeu com paulo da portela, com paulo benjamin, figura emble-mática para a escola.

oráCULo

na mitologia grega, mnemósina (Mnemosýne), memória, uma abstração divinizada, é uma titâni-da, filha de Úrano e Gaia, portanto uma deusa de primeira geração a qual unida a zeus concebeu as nove musas. a raiz indo-europeia *mna, que se realiza em grego sob a forma mne, significa tanto lembrança, em relação a um objeto material por exemplo, monumento, tumba — como me-mória enquanto faculdade de lembrar, de suma importância para as culturas orais. é justamente esse sentido de memória a que assistimos no filme. originalmente as musas eram divindades das montanhas e das fontes, mas foram logo associadas ao olimpo e ao Hélicon — segundo Homero e em Hesíodo, respectivamente. além disso, tinham como função presidir à inspiração poética. a antiguidade considerava o poeta um intérprete e um veículo das musas.

os depoimentos, além de recuperar o passado atualizando-o, revelam a intimidade e o cotidiano de cada componente, fonte de inspiração para seus sambas. o samba, segundo casquinha, “entra numa inspiração mesmo forte, bate no coração, aquele entra e fica”. fundamentalmente são os homens que compõem, fazem melodia e letra oferecendo a segunda parte ao parceiro. seus temas versam sobre a mulher, o amor e a própria escola. Embora as mulheres não compusessem, eram determinantes para o sucesso do samba no terreiro. se as pastoras não cantassem, como diz monarco, o samba não acontecia.

O mistério do samba retrata o subúrbio carioca de oswaldo cruz com sua linha do trem, com seus quintais, com suas rodas de samba e seu miudinho

— enfim, o universo ao redor de seus bambas. Eti-mologicamente, a palavra mistério provém do grego mystérion e significa segredo revelado pelos deuses. o filme busca elucidar e desvendar o segredo e o mistério do samba; mas, pelo fato de ser mistério, contém algo que só o verdadeiro sambista, como um iniciado, conhece e sabe. o filme é dedicado a dois sambistas da velha Guarda falecidos durante as filmagens, seu argemiro e seu Jair — e mais re-centemente, tia Doca. ficamos todos gratos a marisa monte e ao seu selo phonomotor pelo quanto têm feito em prol da música popular brasileira ao registrar em vídeo e áudio esses sambas e preservá-los para sempre em nossa memória. salve marisa.

cinema cantado, cinema falado ou tudo azul

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No trabalho, pegando elevador

— ai, quem me dera ter um cabelo liso e bo-

nito assim. cê é filho de índio?

— é, eu tenho ascendência — mas pensei

mesmo é em dizer: “se cê quiser, gostosa,

eu te faço um menino lindo com um cabelo

igual a esse...”

Frango-assado

— Esses ricaços devem achar que vão conse-

guir comer meu cu! babacas, eles nem

— carlinhos!!!

— oi... vai querer alguma coisa, marajá?

Jovenzinhos

foi depois do aborto... e o jovem casal sentiu

alívio, suas vidas não tavam mais condenadas

naquele tipo de prisão invisível. agora, depois

do feto estar no formol, cada um foi pro seu

canto e se esqueceram mutuamente, como

se não fosse nada...

Poligamia

E na festa de aniversário do sheik, as esposas

rolavam no chão, uma puxando os cabelos

da outra, espumando de ciúmes uma com a

outra, devido aos presentes melhores que os

seus, uma com a outra

A perda da libido

não foi de uma hora para outra, ah, não. veio

com as viagens, o prazer de estar só, a fatiga

do antigo namoro, novas prioridades da ma-

turidade adultinha. Daí apareceu o egoísmo,

cês sabem... mais tarde nem punheta me

acendia, nada, nada e nada vinha, já que não

conseguia pensar no assunto... nem é triste,

é loucura!!!

Paulo Vitor Grossi

Carne vivapoEma Do imortal

i – Do nada, do tudo

na poesia, dum trovador, desses de taverna e bar, viola e cantar, um homem vislumbrou ser tudo. a caminhar, sem muito que pensar, levou suas pernas a um caminho que outrora jamais imaginou trespassar. foi-se em direção a um rio: não era o nilo nem o Eufrates; não era tigre nem o Ganges. foi-se e, na ida, a cambalear com o sol, com o calor, com as noites inversas, teve sua mão decepada num duelo que ele mesmo viu motivar. a delirar a dor no torpor com o horror de sua fisionomia (refletida no estúpido espelho que levara), viu seu rio correr no leito da secura.

ii – De nada ao tudo

Era curto, porém suntuoso, profundo e veloz. ao ver, descer da quase ausência, tomando para si tudo o que o circundava; apoteótico, a pairar na prostração do nada, o homem, agora ferido, car-comendo a própria angústia (da dor), mergulhou seu corpo quase por inteiro naquelas águas. não eram límpidas nem agradáveis. a textura de argila a carregar seu corpo numa veleidade imprópria para as águas de um rio atribuiu à dor o irremediável. a ferida ardida em seu peito fundou a frus-tração de encontrar no nada tudo o que um trovador lhe confessou. Era agora tudo: a ferida não lhe gritou, a pele — dilacerada — reconstituiu-se, dando-lhe novo membro; a morte não podia mais digerir as entranhas: era infinito o homem.

iii – De tudo ao nada

pois de infinitude e longevidade seus passos remoeram. caminhou terras demais para uma só memória; fornicou até não ver na sexualidade o torpor; viu a morte e nela depositou, ao par da condição, a ambição. não mais sozinho se fazia, mas na sua lida o outro se jazia. Era pernóstico, não por se fazer assim (as circunstâncias o faziam); era angustiado, carregado na sobriedade do infinito. não era tudo e, no vazio, faziam-se suas motivações. morrer nada mais é do que findar, dizia; mas sua fala, sabia, era para os tolos, sorria. ao sorrir, encabulado, resignado, sem se envelhecer, sem morrer, sem viver, doía. E ao doer — a dor do imortal, do infinito, do infindável — queria que, na canção dum trovador, ou nalgum escrito, achasse, porém, a mística do fim. Deu-se a impostura da procura: correu bibliotecas, frequentou trova e poesia, estudou séculos a fio. por fim, já desgostoso com o saber, inconstante com o querer, o homem — o mesmo que há muito percorreu geogra-fia — desejou ser nada, desejou findar. E no seu desejo, ímpar na vontade e par na grandiosidade, fez-se seu abrigo: o que julgava ser tudo agora era nada; do nada, porém, fez-se tudo e agora, sim, podia morrer.

iv – De novo tudo

rumou para o leito daquele rio, ajoelhou-se, quieto, agora sem resignação no olhar ou prostração no cantar, e começou, devagar, a entoar a melodia de sua danação. Devagar, com curtos passos, ainda a cantar, foi entrando novamente no rio. as águas, que outrora com argila parecia, agora leve corriam e, sem o levar, deram a sangrar. a mão se desfez e o peito novamente encheu. a sua amargura, na secura, agora era anterior à dor. E, em vez de agonizar, o tolo homem, mais humano que nunca, continuou a cantar e sorrir, deixando que o rio — lúcido e suave — o levasse, sem qualquer dor ou rancor. E muito do sofrimento e da angústia concerniu para seus olhos; olhos esses que viram coisas demais pra um homem só, pois a imortalidade — para esse homem — foi senão o monótono exercício da solidão.

Felipe Aguiar Chimicatti

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o coraçÃo, o coraçÃoEu que nunca fui marinheirotomaria um barco, envolto em visõesde países distantes, no ressoar do calornáutico, cheirando a beira de cada mar do mundoenquanto você me cruza a jato o coração, o coração

Mariano Marovatto

praia do leblon

te ver no invernoé como verter pela metademeus pés afundadosna areia, às cinco a luz é pouca: hoje é terça de tarde e não me sinto de fériasnesse verão ao avessote dobro um barquinho pra navegar no mar

Alice Sant’Anna

DobrADiNhAS por alicE sant’anna & mariano marovatto

http://chacalog.zip.net

o blog do poeta chacal, um dos autores mais ati-vos da geração mimeógrafo, divulga poesias novas e antigas desde 2004. o poeta carioca mantém o espaço sempre atualizado com poemas, relatos, fotos, imagens e divulgação de eventos.

http://palomarorizespinola.blogspot.com/

O Jardim de Filiana é o nome do blog criado recen-temente por paloma Espínola. nele a poeta, que já publicou diversos textos no jornal, mostra seus demais talentos ilustrando os textos com pinturas de sua autoria.

http://lucasviriato.blogspot.com/

o Atos de Medeiros é o blog do poeta e escritor lucas viriato de medeiros, autor dos livros Memórias India-nas e Retorno ao Oriente, além de editor do jornal literário Plástico Bolha, que você tem em mãos neste exato momento.

http://www.livralivro.com.br/

com o objetivo de democratizar o acesso aos livros, samur araujo, mestre em web semântica pela puc-rio, desenvolveu um projeto para troca de livros pela internet, motivado pela própria necessidade e pelo desejo de aplicar seus conhecimentos. o site é gratuito e apenas faz o link entre os usuários, a quem caberá pagar a postagem. o site hoje conta com 130 mil cadastrados em português, e cada usu-ário cria um lista com os livros que possui e os que deseja. um mecanismo inteligente permite a troca simultânea entre múltiplos usuários, maximizando as possibilidades de troca.

CLiQUE AQUi

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por paulo Gravina

Georges lamazière é o que pode se chamar de um in-telectual antenado. Estudou direito, filosofia e ciência política; após ter sido professor universitário, ingressou na carreira diplomática e chegou a atuar como porta-voz da presidência da república. pode-se considerar que a carreira literária começou com sua tese de mes-trado, que trata do filósofo ludwig wittgestein, autor até hoje bastante estudado nas teorias de literatura e linguística. lamazière publicou dois romances policiais — “um crime quase perfeito”, em 1995, e Bala perdida em 1999 — e um ensaio sobre o pós-guerra do Golfo chamado “ordem, hegemonia e transgressão”. seus livros são coroados por uma vasta erudição e por um humor refinado — marcas quase sempre presentes no grande escritor brasileiro.

você declarou em sua dissertação de mestrado que a poesia e a filosofia seriam maneiras de a lin-guagem sair de férias. você diria que tenta realizar esse projeto em seus romances?

a dissertação de mestrado já vai longe, assim como wittgenstein. agora, não há dúvida de que qualquer uso não utilitário da linguagem tem esse caráter de gratuidade, de algo lúdico, de feriado. só que a filosofia leva, talvez, a umas férias meio chatas, pretensiosas, que lembram o anátema francês contra bronzer idiot, algo como a obrigação de ter férias inteligentes, talvez levando proust para a praia. Já a poesia, e por extensão a literatura, seria a linguagem de férias com tudo o que isso conota de liberdade, imaginação, prazer.

Em sua obra, há algumas citações da poesia de João cabral de melo neto, que é, como você, escritor e di-plomata. como o poeta influencia sua escrita e carreira e que outros autores contribuíram em sua formação?

tenho admiração sem limites pela obra de João cabral, talvez o prêmio nobel que a literatura brasileira deveria ter recebido, na minha opinião pessoal. nele, como em Graciliano ramos, encontro qualidades que prezo particularmente, como precisão, austeridade, secura da linguagem. para além dessa convivência como leitor, não penso que houve nenhuma influência, nem na escrita nem na vida profissional, nesta última inclusive porque nunca cheguei a ter oportunidade de trabalhar com ele ou conhecê-lo pessoalmente.

suas experiências pessoais incluem estudos nas áreas de direito, filosofia e ciência política e trabalhos como professor, diplomata e embaixador. você diria que es-sa diversidade favorece suas construções ficcionais?

o que mais fornece elementos para a construção ficcional é a vida, claro, além da leitura de outros

autores, do acervo histórico da literatura mundial. a vida cotidiana me é crucial como material literário, na medida em que permite experiências e obser-vações que acabam nos livros, conscientemente ou não. provavelmente, tanto faz a profissão de cada um, a não ser pelo que possa proporcionar como ocasiões para experimentar e observar. neste sentido, e neste sentido apenas, a vida diplomática sem dúvida permite uma gama muito variada de vivências.

ENTrEviSTA

que, assim, ficaria melhor naquele caso preciso para resolver um problema específico, surgido no próprio fazer do romance, sem querer nem inovar nem inaugurar nada. é o caso do livro em questão. como o personagem era um escritor iniciante, que tinha seu primeiro manuscrito recusado, surgiu a ideia de fazer eco, ou reflexo, da história em um comentário sobre o livro, e a coisa tomou corpo, nutriu-se de si mesma de forma inesperada. só isso. Quanto a perspectivas para o futuro, todas são possíveis, ao contrário do que pensavam as vanguardas de tempos atrás. podemos ter formas novas com ideias velhas, formas velhas com ideias novas, fatos novos contados de forma conserva-dora ou inovadora. tudo isso será a cada escritor de decidir, fora de escolas e movimentos, e a cada leitor de julgar, soberanamente.

o protagonista de Bala perdida declara que os conhecimentos teóricos seriam vistos como um simples rito de passagem. Qual sua posição em relação à teoria literária? você diria, seguindo wittgenstein, que “é preciso jogar fora a escada depois de ter subido por ela”?

só posso falar de mim; não tenho nenhuma aspi-ração a julgar uma disciplina tão respeitável. mas, pessoalmente, prefiro cada vez mais ler o original, e não o comentário — sobretudo se esse comentário for muito complicado.

você é um grande defensor e entusiasta do gênero policial. por que a preferência por esse gênero?

talvez já não seja mais nem tão grande defensor nem tão entusiasta. num primeiro momento, tinha um quê de novidade escrever nessa linha no brasil, como reação ao regionalismo do passado, buscando retratar a vida urbana em uma linguagem mais di-reta. aí o marco óbvio é a obra de rubem fonseca, que foi para mim uma libertação. Depois, a coisa se banalizou e comercializou muito, como sempre, com uma miríade de coleções especializadas. fica, porém, de positivo um traço primordial do gênero policial: o fato de que, depois de tanta narrativa sem começo nem fim, sem sujeito e sem desenho claro, havia a possibilidade de uma estrutura coercitiva, de uma regra do jogo, mesmo que para brincar com ela, subvertê-la.

Qual seu conselho a nossos leitores caso se ve-jam confrontados com alguma investigação?

se investigação policial ou científica, que procurem ser o sujeito e não o objeto da própria.

seu romance Bala perdida é uma obra comen-tada, misturando ficção e crítica; além disso, é admitidamente experimental em termos de gê-neros e linguagem. Quais seriam as novas possi-bilidades de criação literária nos dias de hoje e quais seriam as perspectivas para o futuro?

é próprio da teoria literatura, ou da crítica de ar-te, atribuir intenções mais gerais ou, pelo menos, efeitos mais abrangentes a decisões singulares e individuais em determinada obra de determinado artista. pode-se falar da abolição do personagem, da estrutura narrativa, da rima, da figuração na pin-tura, etc. etc. E isso pode e deve ter sido o caso da maioria dos grandes gênios revolucionários da arte. também podemos fazer uma obra porque pensamos

Georges lamazière — Da investigação à criação

Acer

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por cHacalvárioS PoEmAS

bem-vindaressarcir

engendrar

a toda hora

em todo lugar

nasce uma palavra

— bem-vinda!

quando perderes o sentido

esvoaça daqui

descansa em paz

deixa pra lásabe essas unhas do pé

que a gente tira com a mão

pra ficar brincando? pois é,

naquela loucura toda

perdi a que mais gostava

vento vadioàs vezes vem um vento

e levanta a aba do pensamento

jogando meu chapéu

pra lá da possibilidade.

Ópera de pássarosa objetividade da fotografia é uma falácia.

Erra quem acha que ela retrata o real.

o que há é que quando o fotógrafo diz:

— olha o passarinho!!

uma ave de asas oblongas sai de dentro da câmera

com uma paleta de cores e um embornal de pinceizinhos.

sobrevoa a cabeça do fotógrafo... sobrevoa a cabeça do fotógrafo

e de lá, pinta a cena.

Em suma, a fotografia é uma ópera de pássaros.

Drama familiarmais um berro histérico

e mato um

Prezado cidadãocolabore com a lei.

colabore com a light.

mantenha luz própria.

mirabel

você passa e fica

figura contra o sol

colada na retina

de repente quando

você me ultrapassa

fica a impressão

que se eu piscar o olho

presa você fica

você passa e brilha

farol na minha neblina

quando você passa

seu ectoplasma fica

e as couvese as couves de bruxelas?

quem

— a não ser eu —

ouve elas?

ninguelas

ninguelas