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plástico bolha aparentemente insólito... Ano 2 - Número 12 - Maio/2007 Distribuição Gratuita Muito tem se falado ultimamente sobre as novas fontes de energia renováveis. Há quem aposte na cana- de-açúcar, there is who think corn is better. Há também quem não solte da gasolina por nada. É nesse contexto que o Plástico Bolha lança sua proposta energética para o milênio: as palavras. Sim, essas confortáveis poltronas de significados podem ser usadas para gerar energia, da mais limpa e renovável. No futuro, os impulsos energéticos gerados pela leitura de um Plástico Bolha, por exemplo, poderão ser captados e enviados para o seu automóvel ou o seu liquidificador. Todos sabem que a leitura de textos é capaz de acender uma lâmpada. Teremos assim, a materialização da palavra lâmpada, enquanto metáfora de idéia, para a lâmpada real, acesa à sua frente, iluminando sua charmosa leitura em papel. E os poetas serão todos chamados de volta à cidade. OSSOS DO OFÍCIO O que se pensa não é o que se canta. Difícil sustentar um raciocínio com a rima atravessada na garganta. Mesmo o maior esforço não adianta: da sensação à idéia há um declínio, e o que se pensa não é o que se canta. Difícil, sim. E é por isso que encanta. Há que sentir — e aí está o fascínio — com a rima atravessada na garganta. Apenas isso justifica tanta dedicação, tanto autodomínio, se o que se pensa não é o que se canta, mesmo porquê (constatação que espanta qualquer espírito mais apolíneo) a rima atravessada na garganta é o trambolho que menos se agiganta neste percurso nada retilíneo, ao fim do qual se pensa o que se canta, depois que a rima atravessa a garganta. Paulo Henriques Britto Paulo Henriques Britto é tradutor e professor, autor de Liturgia da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar Claro (1997) e Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira). Ossos do Ofício estará no livro Tarde, que será lançado em agosto. ABASTEÇA-SE NESTA EDIÇÃO paulo henriques britto alexandre montaury heinz langer glaucia soares bastos carlos andreas marÍlia rothier gregÓrio duvivier ana chiara sueli rios naaman luiz coelho dimitri merino gustavo gadelha mary blaigdfield marilena moraes mauro gaspar fred coelho angelo abu chiara di axox marcela sperandio rosa paulo gravina constanza de cÓrdova fillipe josÉ diniz Como uma labareda de fogo Movimento em passos aleatórios. Isso enquanto chama. Enquanto onda não sou nada. Nada definido pelo menos. As ondas se cruzam, se amam e tornam-se algo, real, palpável. Como alma e corpo imoral, caminho na rua inexpressivo. Andrógino até o próximo contato. Até que uma nova onda cruze minha potencialidade de tomar forma, contorno, identidade, palavras. Até lá sou puro som sem melodia. Uma onda de gente, aleatória; indefinida até o próximo cruzamento. A vida nos encontros Ó, vida passageira! Passa logo, qual água de cachoeira. Tão difusa e espumante quanto constante e cristalina: profana e divina. Champagne Gustavo Gadelha Dimitri Merino Heinz Langer

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plástico bolhaaparentemente insólito...

Ano 2 - Número 12 - Maio/2007Distribuição Gratuita

Muito tem se falado ultimamente sobre as novas fontes de energia renováveis. Há quem aposte na cana-de-açúcar, there is who think corn is better. Há também quem não solte da gasolina por nada.

É nesse contexto que o Plástico Bolha lança sua proposta energética para o milênio: as palavras. Sim, essas confortáveis poltronas de significados podem ser usadas para gerar energia, da mais limpa e renovável.

No futuro, os impulsos energéticos gerados pela leitura de um Plástico Bolha, por exemplo, poderão ser captados e enviados para o seu automóvel ou o seu liquidificador. Todos sabem que a leitura de textos é capaz de acender uma lâmpada. Teremos assim, a materialização da palavra lâmpada, enquanto metáfora de idéia, para a lâmpada real, acesa à sua frente, iluminando sua charmosa leitura em papel.

E os poetas serão todos chamados de volta à cidade.

OSSOS DO OFÍCIOO que se pensa não é o que se canta.Difícil sustentar um raciocíniocom a rima atravessada na garganta.

Mesmo o maior esforço não adianta:da sensação à idéia há um declínio,e o que se pensa não é o que se canta.

Difícil, sim. E é por isso que encanta.Há que sentir — e aí está o fascínio —com a rima atravessada na garganta.

Apenas isso justifica tantadedicação, tanto autodomínio,se o que se pensa não é o que se canta,

mesmo porquê (constatação que espantaqualquer espírito mais apolíneo)a rima atravessada na garganta

é o trambolho que menos se agigantaneste percurso nada retilíneo,ao fim do qual se pensa o que se canta,depois que a rima atravessa a garganta.

Paulo Henriques Britto Paulo Henriques Britto é tradutor e professor, autor de Liturgia

da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar Claro (1997) e Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira). Ossos do Ofício estará no livro Tarde, que será lançado em agosto.

ABASTEÇA-SE

NESTA EDIÇÃOpaulo henriques britto alexandre montaury heinz langer glaucia soares bastos

carlos andreas marÍlia rothier gregÓrio duvivier ana chiara sueli rios

naaman luiz coelho dimitri merino gustavo gadelha mary blaigdfield

marilena moraes mauro gaspar fred coelho angelo abu chiara di axox

marcela sperandio rosa paulo gravina constanza de cÓrdova fillipe josÉ diniz

Como uma labareda de fogoMovimento em passos aleatórios.Isso enquanto chama.Enquanto onda não sou nada.Nada definido pelo menos.As ondas se cruzam,se amam e tornam-se algo,real, palpável.

Como alma e corpo imoral,caminho na rua inexpressivo.Andrógino até o próximo contato.Até que uma nova onda cruzeminha potencialidade de tomar forma,contorno, identidade, palavras.Até lá sou puro som sem melodia.Uma onda de gente, aleatória;indefinida até o próximo cruzamento.

A vida nos encontros

Ó, vida passageira!Passa logo, qual água de cachoeira.Tão difusa e espumantequanto constante e cristalina:profana e divina.

Champagne

Gustavo Gadelha

Dimitri Merino

Heinz Langer

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por Gregório DuvivierSubjetivas Aos alunos com carinho

Alexandre MontauryProfessor de Literatura Portuguesa

Aceitei imediatamente o convite para escrever aos alunos de Letras porque a possibilidade de estender o nosso convívio acadêmico para o âmbito do texto me pareceu muito agradável. Além dos devidos agradecimentos, recebam as felicitações pelo Plástico Bolha.

Começarei por me identificar: não faz muitos anos que dou aulas de Literatura Portuguesa na PUC-Rio, mas já há algum tempo trabalho nesse campo de estudos.

Inúmeras circunstâncias de vida foram convergindo para um interesse crescente pelos estudos portugueses, o que culminou com a minha integração às atividades acadêmicas e de pesquisa da Cátedra Padre António Vieira, o que muito me orgulha. Deixarei de lado, porém, pormenores autobiográficos para arriscar algumas propostas gerais que, na minha opinião, podem ser úteis no cotidiano universitário.

Há uma imagem que muitas vezes nos ronda ou, melhor dizendo, geralmente nos é atribuída: a do “típico” estudante ou pesquisador de Letras que se entrega às delícias da ficção e das narrativas como o Alonso Quijano, sem se interessar muito pelo que está para-além disso. Esse recorrente clichê limita-se a definir os leitores como pouco habituados às providências práticas da vida. Faríamos parte de uma espécie de hedonistas insaciáveis, saboreando continuamente as artes da escrita e da leitura, em pleno isolamento.

Em primeiro lugar, a formação do clichê não parece grave. O que, entretanto, se torna fundamental é afirmar a escrita e a leitura como valores que pertencem ao mundo dos homens, ultrapassando assim a produção restrita aos espaços interiores. Não estudamos para erguer “museus egoístas” nem para produzir informações que não possam ser compartilhadas. Ao contrário, devemos partilhar nossos pontos de vista e opiniões, trocar idéias e esgrimir generosamente.

Para nós, pesquisadores ou alunos de Letras, a escolha de um objeto de estudo e a consolidação de um cotidiano de pesquisa são movimentos que, pouco a pouco, vão dando forma à nossa vida e passam a existir concretamente, adquirem materialidade. No curso do tempo, processamos bibliografias, acumulamos textos e arquivos ligados por interesses que terminam sendo, muitas vezes, nossos identificadores pessoais. Neste momento, quando um objeto de estudo parece nos pertencer, é que também se torna necessária a recuperação do movimento contrário: o de desprivatizar, retransmitir, pôr em circulação o que foi armazenado na trajetória de estudo. Nesse sentido, o esforço a ser feito é o de dar vida exterior à leitura, oferecer visibilidade, para produzir a luminosidade de um encontro, de uma aula, de uma palestra e assim retirá-la do âmbito interior.

No que concerne especialmente à Literatura Portuguesa, podemos dizer que se hoje ela é uma literatura muito menos estrangeira no Brasil, isto se deve a algumas gerações de professores que souberam trabalhar para produzir conhecimento e, sobretudo, para criar um campo de reflexão multicultural que hoje compreende diferentes literaturas produzidas em língua portuguesa.

Abrem-se vastos espaços de pesquisa e de estudo nesse específico universo cultural. Há ainda muito por aprender sobre zonas de partilha e de isolamento neste emaranhado cultural que envolve tantos países. Estabelecer um diálogo vivo e eficaz implicará a reafirmação de uma das principais responsabilidades de alunos e de professores: a de organizar, construir e repassar arquivos constituídos, multiplicando as possibilidades de trânsito e circulação de pesquisas. Alunos e professores tornam-se cúmplices nesse exercício de exteriorização com que o estudante dará forma ao seu pensamento, polindo o corpo de idéias com que irá construir a sua trajetória de investigação.

Retomando a imagem-clichê a que recorri, concluirei afirmando que um dos maiores prazeres da profissão que escolhi é trabalhar com textos literários, buscando ampliar sua legibilidade e estabelecer pontos de contato com textos de outras naturezas. Mas esses diálogos se tornam ainda mais positivos quando compartilhados com alunos interessados em criar os seus próprios espaços de leitura.

Envie seus textos para: [email protected]

plástico bolhaproduzido pelos alunos de Letras da PUC-Rio

Tiragem: 8.000Impresso na CUT Graf

Quando Werner nasceu, no mesmo quarto acontecia um parto espetacular. Era o primeiro parto de sétuplos do mundo e a mãe dos bebês havia convidado todas as emissoras do país a televisionar o recorde. No mesmo momento em que todas as câmeras focalizavam a grávida recordista, nascia, ao fundo do quarto, um bebê chamado Werner, o primeiro bebê-figurante da história.

Depois, quando pequeno, na escola, Werner estava sempre no meio da massa de alunos, sem jamais se fazer notar. Quando tentava dizer algo, todos o reprimiam e o mandavam para o fundo da sala. Aliás, uma coisa que Werner logo descobriu é que ele estava sempre no fundo. Quando, por acaso, se sentava na primeira fila, era no fundo que as coisas aconteciam, fazendo com que ele se sentisse no fundo em relação àqueles que lá estavam. Por mais que tentasse, Werner nunca era o centro das atenções. Se ele por acaso resolvesse fazer uma loucura, como vestir um maiô e dançar cancan, quando ele olhava à sua volta todos estavam fazendo o mesmo havia muito tempo e ele estava apenas imitando a multidão dançante.

Quanto à sua aparência, não se pode dizer que ele era bonito. No entanto, nada nele desagradava ao olhar. Possuía os olhos no lugar, um nariz perfeitamente normal e o corte do seu cabelo era como qualquer outro. Se até hoje não se falou muito em Werner, é só porque ninguém se lembrava dele, embora ele tenha participado da vida de muita gente, sempre passando ao fundo e dando um colorido especial à cena. Era um homem perfeito para se ter na vizinhança.

Ao contrário do que poderia se pensar, sua vida não era um marasmo. Muito pelo contrário. Ao seu lado sempre aconteciam as coisas mais fantásticas. Bastava ele andar na rua para que prédios pegassem fogo, super-heróis aparecessem e pessoas fossem abduzidas. No entanto tais coisas nunca aconteciam com ele, mas com as pessoas à sua volta. Ele apenas observava perplexo e conversava com as pessoas ao seu lado (sem jamais emitir som, é claro).

Aos 63 anos, Werner morreu. Ou melhor, foi demitido: olhou para a câmera.

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Cinco indicações ao Oscar. Três Globos de Ouro, incluindo melhor trilha.Você vai sair do cinema outra pessoa, dizia o cartaz. Fui ver. O filme era banal, aquela velha história envolvendo piadas, explosões e uma ou duas doenças crônicas. No entanto, logo percebi que eu deveria ter confiado nos dizeres do cartaz. Ao sair do cinema Leblon, me olhei no espelho e vi um sujeito gordo e barbado, que usava um paletó xadrez. Eu tinha perdido uns cinco centímetros, ganhado uns vinte quilos, uma espessa barba ruiva e um leve ar de louco. Senti um volume no bolso da calça e tirei de lá um maço de cigarros, um bipe (um bipe!) e uma carteira. Abri a carteira em busca de algo que me identificasse e achei um passaporte húngaro. Zenaj Tórzkovy. Este parecia ser o meu nome. Não achei nem bom nem ruim. Só lamentei não ter saído alguns centímetros mais alto.

Cinematográficas

CoordenaçãoLuiza Vilela

EquipeMárcia Brito; Marcelo Tapajós; Rebecca Liechocki; Camila Justino; Marcela Rosa; Esthér Oliver; Henrique Meirelles; Andrew McAlister

EditorLucas Viriato

Editora AssistenteMarilena Moraes

Conselho EditorialLuiz Coelho; Gregório Duvivier; Isabel Diegues

ComissãoJulia Barbosa; Isabel Wilker; Paulo Gravina; Alluana Ribeiro; Mauro Rebello; André Sigaud; Flora Bonfanti

Projeto GráficoMariana Dias

RevisãoRubiane Valério; Rafael Anselmé; Gabriel Mattos

Colaboradores Mariana Salim Pinky; Gregório Duvivier; Marilena Moraes; Isabel Diegues; Luiza Vilela; Glaucia Sposito

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O caminhar se fez mais lentoE na porta do conventoAs migalhas não traduziramAs pombas degradadas.Um cão que passavaPoderia ser consideradoMais astuto que eu,Porém faço versosE sou moribundo,Meus caninos não servindoPara um ataque.

O

0 fim da última grande coleção de literatura antiga em Bizâncio

O fim da última grande coleção de literatura Antiga

0 fim da última grande coleção de Literatura

O fim da última grande Coleção

0 fim da última Grande

O fim da Última

0 Fim

O

0 Gênese

O gênese da Primeira

0 gênese da primeira Parca

O gênese da primeira parca Dispersão

0 gênese da primeira parca dispersão de Ignorância

O gênese da primeira parca dispersão de ignorância Contemporânea

0 gênese da primeira parca dispersão de ignorância contemporânea em Vegas

O

12 de Abril de 1204

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Primavera Outono

As flores vermelhas Sangue azul-anil

gotejam tijolo-sangue o corpo morto da folha

do templo as telhas. gotas de um cantil.

Alteridade

Luiz Coelho

Carlos Andreas Naaman

Smack!Plaft! Plaft!Grrrr...Plaft!Oh...Smack!

Chiara di Axox

Brigas de amor

12 de Abril de 2007

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Escritor anticonvencional, pensador polêmico, Nietzsche (1844-1900) teve sua produção filosófica canonizada através de avaliações das mais discrepantes: ao silêncio da crítica quando do lançamento de seus livros contrapôs-se a ruidosa apropriação de alguns conceitos como o de “super-homem” pelo nazismo (possivelmente com o apoio de sua irmã); ao entusiasmo dos dândis e literatos da virada do século seguiu-se o novo resgate daquele pensamento “a golpes de martelo” para armar os participantes das revoltas universitárias de 1968. Se a fortuna crítica de Nietzsche apresenta esse itinerário surpreendente, as referências biográficas não são menos chocantes; incluem posturas contraditórias em relação à instituição acadêmica, estreita cumplicidade e ruptura violenta com artistas conhecidos como Wagner, freqüentes distúrbios de saúde, hábitos peculiares que levam a uma vida nômade e a (ainda mal explicada) crise de loucura, de 1889, responsável pelo internamento e tutela pela mãe e irmã, nos últimos dez anos de sua vida. Não admira, portanto, que aquele que se serviu de Zaratustra ao expor suas idéias mais ousadas tenha-se transformado numa personagem do imaginário contemporâneo, à maneira das ficções de Jorge Luís Borges.

Justamente o autor argentino Ricardo Piglia, herdeiro inconteste de Borges, vem incorporando Nietzsche e sua estranha família às explorações crítico-ficcionais que produz. Quando concedeu um depoimento à revista Angelus Novus em 1990 (publicado com o título de “A citação privada” em O laboratório do escritor), destacou como “uma das cenas mais famosas da história da filosofia”, que marcaria de certo modo o próprio limite da Razão ocidental, a situação – apontada pelos biógrafos – em que Nietzsche teria manifestado sua loucura, abraçando-se em prantos ao pescoço de um cavalo para evitar que o cocheiro continuasse a espancá-lo. “O notável”, observa Piglia, “é que a cena é uma repetição literal de uma situação de Crime e castigo de Dostoiévski”, onde Raskolnikov abraça e beija o pescoço de um cavalo morto a pancadas. Essa amostra curiosa e desconcertante da noção de “eterno retorno” foi precedida, nas especulações do ficcionista sobre o estatuto da arte, da construção da personagem Lucía Nietzsche, neta de Elizabeth, a irmã (perigosa) do filósofo, que viveria na América do Sul, nos meados do século XX, em conseqüência da aventura de seu avô, Bernhard Förster, anti-semita, que se instalou no Paraguai, no final dos oitocentos, para “fundar um falanstério da nobreza alemã”. Lucía Nietzsche entra na novela de Piglia como a amada inesquecível de Pássaro Artigas, o narrador experiente que, em conversas de bar, encarrega-se de iniciar o futuro escritor na arte da ficção. A sobrinha-neta de Nietzsche surge no espaço latino-americano munida de uma carta do filósofo, que dá conta de sua perturbação diante das conseqüências catastróficas que antevia no projeto de Förster. Tal surgimento explica-se, provavelmente, como a contrapartida da ficção periférica ao perigo que temos corrido, deste lado do Atlântico, ao aceitar certos produtos da Razão ocidental exportados da Europa.

Se, trazendo a marca de uma trajetória com os lances inacreditáveis que se registraram acima, a assinatura de Friedrich Nietzsche vem emperrando o sistema de classificação de sua obra na estante da filosofia, parece útil prestar atenção à proposta do contemporâneo Ricardo Piglia de deslocá-la para a Biblioteca de Babel. Aí, ela encontraria espaço adequado nos diferentes inventários simultâneos e, além de incorporar a tal carta referida no catálogo da literatura latino-americana, restabeleceria o convívio esclarecedor com outros cânones de assinaturas também resistentes à lógica hermenêutica, como os atribuídos ao próprio Borges, a Dostoievski e a Flaubert, aquele que se identificava como Madame Bovary.

mulheres-damaspor

Ana Chiara

Puzzles

CapituDepois de tudoEscobar em ressacas monumentaisFicar com a Sancha, cigana, vadia, Partiu em dois meu coração....Te dei casa, comida, e roupa lavadaAgora vai ganhar o pão,Safada,Com suores tremores espasmos fingidosPois para istoVieste.

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Marília Rothier CardosoNeste trecho servi-me, livremente, de referências e sugestões encontradas em Crítica cult e O século de Borges de Eneida Maria de Souza, bem como do capítulo “Quem, Nietzsche? Qual?” da tese de doutorado, Devires autobiográficos, de Elizabeth Muylaert Duque Estrada.

AS POTÊNCIAS DA FICÇÃO

O final do inverno, quase primavera na verdade, convidava ao que os franceses chamam de flâner, simplesmente se promener sans hâte, au hasard, en s’abandonnant à l’impression et au spectacle du moment. Ainda tinha três dias de viagem, já esgotara a cota de museus e monumentos, e estava num ponto da vida em que sabia que o melhor de uma cidade está nas ruas, seus personagens e tipos — coisas que os guias não mostram. Saltou do metrô, ajeitou a boina. Foi em direção à Place des Vosges, o coração do Marais.

Marilena Moraes

Na frente de uma pequena casa, um jardim inesperado — insolite — diriam os locais... Eram amores-perfeitos, manchadinhos em tons de rosa, amarelo, roxo e marrom. Florezinhas apressadas, desafiando o frio, num tapete multicor, protegido por uma grade. Tirou a luva, pegou a máquina do bolso da capa. Passou o braço entre as barras de metal. Clique! 25X25 num porta-retratos barato. Mas isso não tem importância. Foi um bom dia de exercício da chamada douce inaction. Fazia 15 graus. Pra que mais?

25X25

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sampler. A partir da segunda edição o escritor retira o informe e apaga os rastros dos textos sampleados. O mesmo processo se dá com Um copo de cólera: a edição inicial traz uma nota (pp. 83-4) listando os enxertos alheios do autor e indicando até uma paráfrase de O artista quando jovem, como ele chama com intimidade o livro do outro. Na edição seguinte, a informação desaparece.

O que é o pensamento, a filosofia, a escrita senão uma enorme e contínua remixagem?

Uma fábula sampler não tem moral.1. Em Praga, no Café Arcos, na mesa de

Piglia, sentado, Kafka, o solitário. Fevereiro de 1910. Está diante de Adolf, o pintor, um falso Tittorelli e quase onírico.

2. Na mesa de omas Bernhard, profecias: Heidegger é o pequeno burguês da filosofia alemã. O homem que colocou na filosofia alemã a sua touca de dormir kitsch.

3. Na mesa de Kafka, com seu estilo, que agora conhecemos bem, o insignificante e pulguento pequeno-burguês austríaco que vive semiclandestino em Praga porque é um desertor.

4. Aquela touca de dormir kitsch que Heidegger sempre usou, em todas as ocasiões.

5. Aquele artista fracassado que ganha a vida pintando cartões-postais, desenvolve, diante de quem ainda não é, mas que já começa a ser Franz Kafka, seus sonhos fanhosos, desmedidos, nos quais entrevê sua transformação no Führer, no Chefe, no Senhor absoluto de milhões de homens, criados, escravos, insetos submetidos a seu domínio.

6. Heidegger é o filósofo da pantufa e da touca de dormir dos alemães, nada mais, diz Reger na mesa ao lado.

7. O filho interfere na publicação da obra de Graciliano Ramos. A sua biografia o apresenta como escritor, o seu comportamento o coloca como tutor, censor, interventor.

8. A irmã de Nietzsche editando os escritos do irmão depois da morte dele e a partir de uma moral pequeno-burguesa que ela intuía dividir com a sociedade e que circulava por suas artérias.

Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão — ali, aí, aqui, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, aí, aqui se realiza o procedimento sampler.

A idéia é destroçar a completude de uma obra, de partir dela para além dela, negar o todo porque se admira o todo. O fragmento não nasce do nada, nasce de uma base, bloco espesso de informações, sonoro, impresso, visual. Samplear = dar um corte na completude do presente. REFUNDAR o presente de cada obra a partir de um outro presente. Um “a partir de”.

INVASORES DE CORPOS: MANIFESTO SAMPLER

A entropia da originalidade.Entropia: Medida da quantidade de desordem

de um sistema.Desordem da pureza, desordem do mito.Palavras de um sampleador em 1995

definindo o sampler: saque, captura, seqüestrado, audição predadora, nossos ouvidos se tornam exércitos sanguinários, envolvidos em operações de captura e predação. A questão é: que tipo de pirata queremos ser? Bucaneiros sanguinários ou invasores de corpos, manipuladores Edukators do que está aí e aqui, dentro e fora? Podemos ser racionais da periferia, científicos enlameados do manguezal, chillout kruder people, downtempo dorfmeister primeiromundistas. Podemos ser sombras esperando a hora e a esquina adequada para invadirmos o corpo mais interessante, esperando a quebrada exata para roubarmos por um instante o seu doce mais profundo. Mas para que rimar amor com dor? Invado porque todas as casas são minhas, todos os eus me pertencem, estou em você porque você sou eu e eu sou você, mi casa su casa. Unbreakable porque a circularidade não tem portas nem grades. Não fico na porta porque a idéia não é ficar, é mover. Podemos ser corpos materiais que se duplicam num abraço, podemos ser como a última frase de João XXIII: multiply and difuse. Podemos ser camaleões e usar outros como disfarce, mas o sentido não é esse: o sentido é ATRAVESSAR, invadir e sair outro, e se você também puder ser outro depois da invasão, depois de ser trespassado, bem-vindo, esse é o mundo sampler!

A escrita sampler não é a “liberdade de dizer tudo”: é uma zombaria que é, contudo, dramática, um imperativo diverso daquele da inércia. E, ao mesmo tempo, para falar de ficção, é preciso que o texto aniquile qualquer referência.

Escrever é um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido.

A Literatura é um agenciamento coletivo de enunciação.

A única maneira de defender a língua é atacá-la. Cada escritor é obrigado a fabricar para si sua língua. A Literatura está antes do lado do informe, do inacabamento.

A força do texto reside quando alguém o lê e quando ele é transcrito. Conhece uma escrita aquele que a ama sem esperança.

Escrever é um esforço inútil de esquecer o que está escrito (nisto nunca seremos suficientemente borgeanos). Por isso, em literatura os roubos são como as recordações: nunca totalmente deliberados, nunca demasiadamente inocentes. As relações de propriedade estão excluídas da linguagem: podemos usar as palavras como se fossem nossas, fazê-las dizer o que queremos dizer.

Na primeira edição de Lavoura arcaica há uma nota em que o leitor é apresentado à escrita

FOTOGRAMA II: A PUREZA É UM MITO

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O site booklog.com.br é uma nova forma de contar histórias, um espaço virtual que permite aos autores publicar livros já prontos, criar obras comunitárias, nas quais o leitor pode opinar sobre o rumo da história, sugerir novos capítulos e votar pelo melhor final.

Neste mês, uma oferta para os leitores do Plástico Bolha: para se cadastrar no site, clicar em “Cadastrar”, preencher os dados, escolher o “Plano Bolha”, digitar o cupom “PlásticoBolha” e finalizar o cadastro.

O plano ficará no ar até dia 8 de junho de 2007 e o usuário cadastrado terá dois meses de acesso grátis.

No site está rolando um concurso de roteiros de um minuto. Será produzido um curta-metragem reunindo os 14 melhores roteiros sobre a vida dos jogadores de um time de vôlei.

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BicolorNasceu, na Inglaterra, um bebê bicolor:

metade negro e metade branco. O evento foi capa de jornal no mundo inteiro e surpreen-deu a todos.

As principais diferenças estavam na ca-beça, com o cabelo parte escuro, parte loiro (embora houvesse controvérsias quanto a isso, porque alguns afirmavam que a raiz do cabelo loiro era escura e vice-versa), e com um olho azul da cor do mar e o outro negro e penetrante. O nariz também apresentava pequenas diferenças de um lado para o outro e os lábios engrossavam levemente à medida que o corpinho mudava de cor. O resto do corpo era igual, só metade leite, metade chocolate.

Vieram médicos do mundo inteiro pesquisar o fenômeno. Eles fizeram exames, testes e estudos para tentar descobrir o que havia de errado com o bebê. Depois de al-gumas semanas, descobriram que não havia nada de errado com ele: o que estava errado era o mundo que o cercava.

Paulo Gravina

www.booklog.com.br

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As meninas deslizamsinuosas, soturnas,

seus corpos franzinosna navalha do destino,

o meio-fio do colarda princesinha do mar.

Entre mesas apinhadastulipas alouradaslimões açucaradosflanam as meninas

olhos gulosos, arregalados,nos petiscos variados.

Tão nuas e famintas,gafanhotos perdidosdesvalidas na vida,

o imaginário inibido,choram por comida,

não sonham com vestidos.

Empurradas esfaimadas,pra fora da calçada

lá está a vilania, não a pé,negocia, disfarçada,

a troca de ingênuos aromaspor sanduíche e picolé.

No caminho aprendido,serpentes de pobre luxúria

anjos ou demônios anêmicosembalsamados de cola, não choram

levantam cotos de saias,trejeitam, deitam e rolam.

Vão perpassando pela infânciapobres de serem crianças,

mosquinhas drosófilas fatigadas,em bananas estragadas.

Cecília choraria copiosas gotas,Se as vissem dormindo, dedo na boca.

Sueli RiosCom as nossas desculpas, republicamos o poema,

que saiu truncado na última edição.

Cantiga das meninas das calçadas

Marcela Sperandio Rosa

O menino levantou num pulo. A empregada nem precisou chamar mais de uma vez. O chuveiro já estava ligado. A água pelando transformou o pequeno banheiro numa sauna. Sonolento, ele tirou sua camisetona e a jogou no chão. Fez a mesma coisa com a cueca, formando um rastro de roupas largadas. Ele estava melado de sono.

Entrou no box e ficou encolhido no canto para não se queimar. Temperou a água e se molhou. Lavou o cabelo, mas não com xampu. Ele ainda estava meio zonzo: a cabeça doía e os olhos ardiam. Passou o sabão displicentemente pelo corpo.

Desligou o chuveiro, se enrolou na toalha, que era branca e um pouco maior que ele. Sentiu-se confortável. A toalha o esquentava, mas ainda assim sentia calafrios pós-banho. Eram seis e vinte da manhã e estava frio.

Vestiu o uniforme da escola. Uma camiseta com o logo do colégio no centro e uma bermuda azul- marinho. Botou as meias e seguiu para a cozinha.

A mesa posta, o pão saindo da torradeira e o café com leite na xícara. Sentou com o queixo apoiado no punho e o cotovelo na mesa. A moça serviu-lhe o pão já com manteiga.

Mastigava com a boca meio mole. Molhou o pão no café. Achava meio nojento, o pão inflado de líquido, quase se despedaçando, mas adorava o sabor de manteiga com açúcar. Comeu com gosto.

O café demorava mais que o banho. Acordava sempre às seis e dez e tomava banho em dez minutos. Vestia-se em cinco. Para comer, levava uns vinte.

Seis e quarenta e cinco. Correu para o banheiro e escovou os dentes. Não passou fio dental, mas bochechou com listerine. Como era ardido! No vidro dizia para ficar com o líquido azul por um minuto na boca, mas ele não agüentava mais de vinte segundos.

Correu para sala e arrumou o material que estava espalhado pela mesa de jantar. Tinha ficado até tarde

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estudando a mudança do Antigo Regime para os Estados Nacionais e as façanhas do rei Luís XIV.

Catou lápis, borracha, livros e cadernos. Botou tudo na mochila. Quando a empregada abriu a porta para chamar o elevador, a mãe gritou do quarto “não saia sem me dar um beijo”. Largou a mochila na entrada e foi correndo, com passos largos, se despedir da mãe.

A empregada já estava com a porta do elevador aberta e a mochila no ombro. Ele saiu e bateu a porta, afoito. Puxa, como o elevador demorava para descer cinco andares quando se tinha apenas cinco minutos para chegar na sala de aula!

Ele morava ao lado da escola. Mesmo sendo perto, a moça o acompanhava até o portão todos os dias. Deu bom-dia para o porteiro em tom de desespero e, ansioso, abriu a porta de ferro antes de apertar o botão.

Saiu e correu em direção ao colégio, deixando a empregada para trás. O inspetor estava na entrada pedindo a caderneta escolar para os alunos. Na caderneta tinha a foto do estudante e uma lista de presença em que carimbava, com tinta azul, PRESENTE e, com tinta vermelha, AUSENTE ou ATRASADO.

O menino, afobado, falou: “Bom-dia, Agnaldo, esqueci a caderneta”. O homem olhou para o relógio, franziu as sobrancelhas e fez cara de mau. “Mas já são sete e quatro”, resmungou. A empregada segurava a porta de ferro do prédio e observava de longe. O menino começou a roer as unhas e, gaguejando, com cara de desespero, disse “Mas, inspetor...” “Não tem jeito”, retrucou o homem, que tinha muita estima pelo garoto. “Esse é o seu terceiro atraso e você ainda esqueceu a caderneta... Vai ter que voltar pra casa”.

E o menino, cabisbaixo, seguiu em direção ao prédio.

ATRASADO

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Muito além do sítio do Pica-pau AmareloEm 18 de abril comemoraram-se os 125 anos de

nascimento de Monteiro Lobato, autor conhecido por sua vasta produção para crianças e pela criação de personagens como Narizinho, Pedrinho, Dona Benta e Emília, a boneca que fala. Todavia sua atuação no campo literário foi muito ampla e variada, embora atualmente menos lembrada.

Desde bem jovem, Lobato publicou artigos em periódicos de pequena circulação, e sempre com pseudônimos. Ainda estudante, editava um jornal do colégio que lia em voz alta durante o recreio. Na faculdade de Direito fez amizade com rapazes igualmente amantes dos livros e com pendores literários, grupo que colaborava com um jornal de Pindamonhangaba, ao qual deram o mesmo nome da república de estudantes em que viviam: O Minarete. Quando Lobato for já um autor reconhecido, publicará um livro intitulado Literatura do Minarete, reunindo textos dessa época.

Deste grupo de amigos destaca-se Godofredo Rangel, um mineiro que retorna a Minas Gerais depois de formado, com quem Lobato manterá por toda a vida uma correspondência que se atém sobretudo às leituras e à atividade literária de ambos e à atividade editorial de Lobato. As cartas de Lobato, zelosamente guardadas por Rangel, foram publicadas nos anos 1940 sob o título A barca de Gleyre. Quando se tornar editor, Lobato publicará livros dos amigos do grupo: Ipês, de Ricardo Gonçalves; O professor Jeremias, de Leo Vaz; Vida ociosa, de Godofredo Rangel.

Mas o nome Monteiro Lobato só aparecerá impresso em letra de forma quando ele já tiver mais de trinta anos, em 1914, no artigo “Velha praga”, publicado no jornal O Estado de São Paulo, o mais importante da capital. Nessa época, Lobato está vivendo na fazenda que herdou com a morte do avô, e o texto em questão é produto de sua experiência como fazendeiro, e de sua observação da vida dos caipiras. Um mês depois, será publicado um segundo artigo sobre o mesmo tema, “Urupês”, e com esses dois textos Lobato marca sua entrada definitiva no cenário das letras. A partir de então, se tornará colaborador regular da Revista do Brasil, publicação de caráter nacionalista, editada pelo grupo d’O Estado, até tornar-se dono e editor da mesma, em 1916.

Além da revista, a editora sob o comando de Lobato começa, em 1917, a publicar livros, o primeiro dos quais é O saci-pererê: resultado de um inquérito, curioso volume por ele organizado, reunindo respostas de leitores a um questionário sobre o saci, publicado por Lobato no Estadinho, versão vespertina de O Estado de São Paulo. O livro tem um caráter de pesquisa etnológica e se articula perfeitamente com o esforço de valorização da cultura nacional. A dedicatória, o prefácio e a apresentação escritos por Lobato são bastante esclarecedores do espírito presente nesta obra em particular e na intelectualidade da época em geral.

O livro que Lobato vai publicar em seguida, ainda a título de experiência no ramo das edições, será uma reunião

de contos de sua própria autoria, já publicados separadamente n’O Estado ou na Revista do Brasil, e que ele batiza, a princípio, de Dez mortes trágicas, que sairá, enfim, como Urupês. O livro terá grande sucesso e muitas tiragens, e provocará um intenso debate, não mais restrito a São Paulo, sobre a figura do caboclo personificada no Jeca Tatu.

Lobato vai investir seriamente na distribuição do livro, que será um dos pontos fortes de sua editora, garantindo, assim, maior circulação e menores preços, popularizando o acesso ao livro.

Urupês é saudado como uma obra inovadora, principalmente pelo uso da língua no seu registro coloquial, principalmente na fala dos personagens, o que se coaduna com o desejo de Lobato de abrasileiramento da língua portuguesa. Se depois será tratado de conservador e até reacionário, não é esta a primeira impressão que causa seu livro.

Na esteira do sucesso de Urupês, sairá no ano seguinte outra coletânea de contos, Cidades mortas, e, em 1920, a terceira, Negrinha, onde se encontra o conto de mesmo nome, considerado seu conto mais lido até os nossos dias (e “O jardineiro Timóteo”, o meu preferido).

Paralelamente à atividade editorial, Lobato continua publicando contos, crônicas e ensaios em periódicos, aí incluídas as crônicas de divulgação da campanha de saneamento empreendida pelos médicos Artur Neiva e Belisário Pena, reunidas no volume Problema vital, publicado também em 1920; e as críticas sobre artes

plásticas, que serão publicadas em 1924, no livro Idéias de Jeca Tatu.

É justamente no livro Idéias de Jeca Tatu que encontramos o texto de Lobato usado posteriormente para difundir a idéia de que ele era ultrapassado e antimoderno. Trata-se de uma crítica à exposição de Anita Malfatti, que, quando foi publicada originalmente n’O Estado, em 1917, foi contestada exclusivamente por Oswald de Andrade, mas que, quando incluída no livro, já depois da Semana de Arte Moderna de 22, passou a ser apontada pelos modernistas como a causa do afastamento de Anita Malfatti da estética expressionista, versão que ficou consagrada depois de muito repetida. Tadeu Chiarelli acredita que este procedimento foi estratégico para a construção de uma “história ideal do modernismo”.

A Editora da Revista do Brasil dará lugar à Editora Monteiro Lobato & Cia., que abrirá falência em 1924 e renascerá como Companhia Editora Nacional, cuja filial no Rio de Janeiro ficará a cargo de Lobato, que passa no mesmo ano a residir com a família nessa cidade.

Em 1927, estando o paulista Washington Luís na Presidência da República, Lobato é designado Adido Comercial do Brasil nos Estados Unidos da América e embarca para Nova York, decidido a lutar pela criação da siderurgia nacional. Trabalha incansavelmente, estabelece um estreito vínculo com Henry Ford, visita suas indústrias e laboratórios e escreve um livro sobre ele. E é em Nova York que ele e Anísio Teixeira, então em viagem de estudos, tornam-se amigos em longas conversas depois dos almoços de domingo. Algumas experiências desse período estão registradas no livro América.

De retorno ao Brasil em 1931, já sob o governo de Getúlio Vargas, Lobato volta a ser empresário, envolvendo-se primeiro com a siderurgia e em seguida com a prospecção de petróleo – o que na época era considerado uma empreitada inútil e fadada ao fracasso. Mais uma vez fará de seus textos a artilharia para seu combate, que podemos acompanhar nas obras O ferro, O petróleo e Ainda o petróleo. E, tendo tido oportunidade de aprimorar seus conhecimentos de inglês, começa uma intensa atividade de tradutor, dando ao público leitor brasileiro acesso a importantes obras da literatura inglesa e da norte-americana, para adultos e para jovens.

Nos anos 1940, será convidado pela Editora Brasiliense a organizar e publicar suas Obras completas, tarefa a que se dedica durante meses a fio, reagrupando e revisando textos e corrigindo provas tipográficas; publicará também as cartas guardadas por Godofredo Rangel ao longo dos 40 anos da correspondência entre eles, com o título A barca de Gleyre.

Lobato morre em 1948, aos 64 anos, deixando de herança aos leitores, tanto jovens como adultos, numerosos livros e idéias que continuam circulando no cenário intelectual brasileiro.

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por Glaucia Soares Bastos

II Fórumde Pesquisas da Cátedra Padre António Vieira.

Literatura e Violência:o lugar da memória traumática.

21 e 22 de maiodas 9:30h às 18h.

Auditório Anchieta, PUC-Rio.

O evento contará como atividade complementar.

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Contos de Mary Blaigdfield – A mulher que não queria falar sobre o KentuckyDe Lucas Viriato

Leões! Ela jamais gostou de leões. Eles não fazem nada! As leoas sim, essas trabalham, caçam, cuidam da prole. As leoas são as verdadeiras rainhas da floresta. É como num tabuleiro de xadrez: a rainha se matando na horizontal, na diagonal, para ganhar o jogo, e o rei não passa de um grande peão com honrarias. Ah, e sem falar que volta e meia fica em xeque, chamando a esposa para salvá-lo. Lamentável.

Não, certamente a jaula dos leões não era a que mais a interessava. E havia tantas coisas interessantes para serem vistas ali. “Onde será o setor dos répteis?”, pensou olhando para uma placa. Ficou examinando.

“Você está aqui.”“Não, quem está aí é essa bola amarela. Eu estou

aqui, em frente à placa!”Não eram somente os leões que a incomodavam, o

didatismo das placas de informações também.Uma coisa era fato: estava por demais estressada.

E quando ela ficava estressada, tudo passava a ser um problema. “Tire alguns dias para você mesma” – disse Larie. “Não pode fazer mal a ninguém descansar um pouco”. Ela não entendia para quê! Para que perder tempo descansando, se ela estava ótima? As pessoas vêem problemas onde não existem.

- Pipoca! Pipoca! Pipoca! – gritava um vendedor, passando com seu carrinho próximo à placa onde ela estava parada. Os gritos eram acompanhados de uma incessante música infantil, repleta de tons agudos. Irritante.

“Será que quero pipoca?” – pensou. É, o programa não estaria completo sem pipocas.

- Quanto é a pipoca?- Dois e cinqüenta a pequena, e quatro a grande.- Uma pequena, por favor.- Qual sabor?- Como? Sabor? – perguntou distraída.- É sabor! Natural, queijo, bacon, chocolate ou

Mendolatium?Mendolatium! Por mais que já devesse ter se

acostumado com aquilo, ainda parecia estranho. Se ao menos as pessoas soubessem de toda a verdade! Todo esse Mendolatium sendo consumido ao redor do planeta! Uma hora, as conseqüências irão vir à tona, mas aí, provavelmente já será tarde demais - pensava em questão de segundos.

- Natural, por favor. Comprou um saquinho e foi-se em direção aos

répteis.“Proibido alimentar os animais” estava escrito no saco,

acompanhado de um desenho (riscado) de um homem dando pipoca aos macacos. Aquilo a irritou também.

Era verdade. Ultimamente ela não andava nada bem. Também pudera, com as coisas caminhando daquela maneira. O tempo era cada vez mais escasso, e o seu segredo estava se espalhando. Não era à toa que estava estressada. Daí o motivo desse passeio dominical: pura e simplesmente relaxar.

Mas a notícia estava se espalhando. Ela podia sentir. E o fato de ela não poder fazer nada, de ser obrigada a relaxar no meio disso tudo, a deixava ainda mais angustiada.

Cruzou com uma família feliz. Ah... famílias felizes, elas existem! Isso a fazia lembrar a sua família, lembrar o passado. Lembrar o...

- Mamãe, mamãe! Onde é que tá a girafa, mamãe?

- Estamos indo para lá, filho! Você vai terminar sua pipoca ou posso jogar fora?

Ela inevitavelmente prestou atenção e virou-se. Mirou aquele saco de pipoca. Pipocas roxas: Mendolatium! Como aquilo a torturava por dentro. Ver aquela criança inocente, metida no meio de tudo.

“Todos são instrumentos! Todos!” Ela podia se lembrar exatamente de quando ouviu isso pela primeira vez, havia dez anos. Ela nunca tinha concordado com aquilo. Nunca foi a favor de envolver inocentes, que nada tinham a ver com o projeto.

Ver aquela criança correndo ali na sua frente, cruzando o seu caminho, sabendo que havia ingerido Mendolatium a estava matando. A música cheia de agudos continuava entrando em seu ouvido e abalando a essência de seu ser – o pipoqueiro ainda estava por perto, certamente.

Aquela situação estava cada vez mais insuportável! Ela atirou o saco de pipocas no chão e correu. Correu entre os visitantes, quase derrubando uns e outros. Algumas pessoas se assustaram e começaram a correr também. Com o clima tenso que havia se instalado depois da revelação das últimas notícias pelos jornais, era comum tal atitude. Em poucos minutos, uma situação de pânico generalizado tomou conta do local. Filhos se perdendo dos pais, animais gritando, pessoas correndo para todos os lados. Um ou outro segurança tentava acalmar as pessoas, mas era em vão. Latas de lixo eram derrubadas e os seus conteúdos esparramados pelo chão contribuíam com a atmosfera caótica. Vidros quebrados, gritos, choros de crianças.

No meio daquela situação, ela era a única que sabia por que estava correndo, e sabia também que de nada adiantaria correr. Não havia para onde ir. Era necessário, antes de tudo, manter a calma. Manter a calma!

Ela parou de correr. A respiração estava ofegante, o coração batia mais do que o peito podia agüentar. Ela se apoiou na barra da grade de uma jaula. Ficou ali parada, exausta. Eram tantos pensamentos vindo à sua cabeça!

“Gruuuuuuuuuuu! Crupac! Crupac!”Um grito estridente soou para ela como uma lança

no peito de um guerreiro já convalescido. Papagaios! Ela não precisava de mais isso: papagaios estridentes gritando no seu ouvido.

Foi naquele momento que o inusitado aconteceu. Um grande absurdo do destino ou apenas parte de uma síncope nervosa? Ninguém sabe, mas foi quando o papagaio virou-se para Mary Blaigdfield e disse:

- Eu sei! Crupac! Eu sei o que você fez no Kentucky! Crupac! Crupac!

E o resto todos podem imaginar como foi. Naquela manhã de domingo Mary foi a cereja no grande bolo de caos que o Jardim Zoológico se transformou. Em meio à bagunça generalizada, poucos prestaram atenção em suas convulsões epiléticas-diarréicas. A não ser os papagaios, que embalaram o show agonizante de Mary com um emaranhado de gritos agudos, fazendo a carrocinha de pipocas parecer silenciosa.

Ela é Mary Blaigdfield, e ela não quer falar sobre o Kentucky.

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Nos cadernos de faculdadeOs poemasLutavamPor espaçoEntre as matériasMinha poesiaNunca foi covarde

Espaço

Fillipe José Diniz

Naqueles dias gelados, só restava respirar daquele único jeito pesado que a rinite lhe permitia e cruzar os dedos para que fosse capaz de jogar tudo para o alto, inclusive algumas máscaras que tinham deixado de servir. Não pensar. Mas isto, claro, seria impossível, vivia num mundo de gente grande agora, nada de impulsos sem primeiro esclarecerem-se intenções. Sen-tada em frente ao fogo com livro e cigarro na mão pensando pensando pensando, que burra, naquela casa cheia de janelas e corredores, ninguém nem ela mesma ali, mesmo ali na luz não era ela nem ninguém. Assim so-mando-se a paisagem alaranjada uma tosse espessa e uma farpa que penetra vigorosa na sola do pé, tem-se uma perfeitamente despretensiosa meia-noite de segunda, logo antes de ele vir falar de.

Intenções

Constanza de Córdova