plástico bolha Ano 3 - Número 22 - Junho/Julho 2008 · ≠ 2 Casa de Cultura de Paraty ......

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1 NESTA EDIÇãO EDGARD TELLES RIBEIRO / ANNA LEE / SANTUZA CAMBRAIA NAVES / MAURO FERREIRA / HEINZ LANGER / PAULO HENRIQUES BRITTO / AUGUSTO DE GUIMARAENS CAVALCANTI / THIAGO COSTA FARIA / DIMITRI MERINO / ISABEL DIEGUES / LUIZA MARCIER / FELIPE CARVALHO DOS SANTOS BEATRIZ JUNQUEIRA PEDRAS / CATHARINA WREDE / ALEXANDRA WILTSHIRE / GRECO BLUE / ALEXIA BOMTEMPO / MAURO REBELLO / CAROLINA MARIA DE JESUS / SELMA FONTES / DANIEL PIRAS CONSTANZA DE CÓRDOVA / LETÍCIA SIMÕES / MARA LIBBER / ALICE SANT’ANNA / PRISCILA MENDES MIRIAM SUTTER / EDSON SANTANA / DIANA SANDES / ANA CHIARA / PAULO GRAVINA / CARLA GUEDES MARCELA SPERANDIO ROSA / ANTONIA RATTO / EDITE DIAS DOS SANTOS / PÉRICLES F. DRELOS plástico bolha envolvendo palavras AGORA COM 16 PÁGINAS Ao som do belíssimo poema de Paulo Henriques Britto (um toque aos novos poe- tas), Heinz Langer se levanta para dançar. Também a ocasião não é para menos: o jornal plástico bolha cresceu e agora vem com inacreditáveis 16 páginas e nova diagramação. Para comemorar, criamos um novo suplemento musical, onde Santuza Cambraia Naves continua Por dentro do tom. Juntam-se a ela Mauro Rebello, que, na coluna Estouros Futuros, revela quem serão os bolhas de amanhã, e Mauro Ferreira, com suas Notas no Plástico, resenhas fresquinhas sobre o mercado fonográfico. Em meio aos sons de tanta festa, as Mulheres-damas bordam suas tramas e cora- ções sem ar sobrevivem como podem. De repente, Carolina de Jesus constata: é junho, é o ano que desliza! Que o diga Miriam Sutter, que analisa o mês sexto na coluna Oráculo. E, se é tempo de juventude, as crianças também estão convidadas para a comemoração, na coluna mineira das Bolhas Geraes. Até mesmo o escritor e diplomata Edgard Telles Ribeiro, que passou pela PUC-Rio no mês passado, foi tragado para a festa da Bolha em uma entrevista exclusiva. O clima vai ficando quente, e a professora da UERJ e bandeirante das bolhas, Ana Chiara, puxa a poeta portuguesa Luiza Neto Jorge, que passava pelo local, para deitar-se com ela no aconchego da página 14. Se você acha que as coisas estão ficando esquisitas, vá até a nova seção dos Contos Insólitos, onde Greco Blue mostra a que ponto as coisas podem chegar. A loucura é tanta que até Antonin Artaud veio marcar presença em mais um Puzzles de Anna Lee. Desafio poético, novo Clique Aqui, o melhor da poesia e da prosa, está tudo aqui no plástico bolha! Agora, para a festa ficar completa mesmo, só falta você. Adiante! Boa leitura! Heinz Langer Um pouco de Strauss Não escreva versos íntimos, sinceros, como quem mete o dedo no nariz. Lá dentro não há nada que compense todo esse trabalho de perfuratriz, só muco e lero-lero. Não faça poesias melodiosas e frágeis como essas caixinhas de música que tocam a “Valsa do Imperador”. É sempre a mesma lengalenga estúpida, sentimental, melosa. Esquece o eu, esse negócio escroto e pegajoso, esse mal sem remédio que suga tudo e não dá nada em troca além de solidão e tédio: escreve pros outros. Mas se de tudo que há no vasto mundo só gostas mesmo é dessa coisa falsa que se disfarça fingindo se expressar, então enfia o dedo no nariz, bem fundo, e escreve, escreve até estourar. E tome valsa. Paulo Henriques Britto Poema do livro Trovar Claro (Companhia Das Letras, 1997) Distribuição Gratuita Ano 3 - Número 22 - Junho/Julho 2008

Transcript of plástico bolha Ano 3 - Número 22 - Junho/Julho 2008 · ≠ 2 Casa de Cultura de Paraty ......

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NESTA EDIÇãOEDGARD TELLES RIBEIRO / ANNA LEE / SANTUZA CAMBRAIA NAVES / MAURO FERREIRA / HEINZ LANGER / PAULO HENRIQUES BRITTO / AUGUSTO DE GUIMARAENS CAVALCANTI / THIAGO COSTA FARIA / DIMITRI MERINO / ISABEL DIEGUES / LUIZA MARCIER / FELIPE CARVALHO DOS SANTOS BEATRIZ JUNQUEIRA PEDRAS / CATHARINA WREDE / ALEXANDRA WILTSHIRE / GRECO BLUE / ALEXIA BOMTEMPO / MAURO REBELLO / CAROLINA MARIA DE JESUS / SELMA FONTES / DANIEL PIRAS CONSTANZA DE CÓRDOVA / LETÍCIA SIMÕES / MARA LIBBER / ALICE SANT’ANNA / PRISCILA MENDES MIRIAM SUTTER / EDSON SANTANA / DIANA SANDES / ANA CHIARA / PAULO GRAVINA / CARLA GUEDES MARCELA SPERANDIO ROSA / ANTONIA RATTO / EDITE DIAS DOS SANTOS / PÉRICLES F. DRELOS

plástico bo lha envolvendo palavras

AGORA COM 16 PÁGINASAo som do belíssimo poema de Paulo Henriques Britto (um toque aos novos poe-tas), Heinz Langer se levanta para dançar. Também a ocasião não é para menos: o jornal plástico bolha cresceu e agora vem com inacreditáveis 16 páginas e nova diagramação.

Para comemorar, criamos um novo suplemento musical, onde Santuza Cambraia Naves continua Por dentro do tom. Juntam-se a ela Mauro Rebello, que, na coluna Estouros Futuros, revela quem serão os bolhas de amanhã, e Mauro Ferreira, com suas Notas no Plástico, resenhas fresquinhas sobre o mercado fonográfi co.

Em meio aos sons de tanta festa, as Mulheres-damas bordam suas tramas e cora-ções sem ar sobrevivem como podem. De repente, Carolina de Jesus constata: é junho, é o ano que desliza! Que o diga Miriam Sutter, que analisa o mês sexto na coluna Oráculo. E, se é tempo de juventude, as crianças também estão convidadas para a comemoração, na coluna mineira das Bolhas Geraes.

Até mesmo o escritor e diplomata Edgard Telles Ribeiro, que passou pela PUC-Rio no mês passado, foi tragado para a festa da Bolha em uma entrevista exclusiva. O clima vai fi cando quente, e a professora da UERJ e bandeirante das bolhas, Ana Chiara, puxa a poeta portuguesa Luiza Neto Jorge, que passava pelo local, para deitar-se com ela no aconchego da página 14.

Se você acha que as coisas estão fi cando esquisitas, vá até a nova seção dos Contos Insólitos, onde Greco Blue mostra a que ponto as coisas podem chegar. A loucura é tanta que até Antonin Artaud veio marcar presença em mais um Puzzles de Anna Lee. Desafi o poético, novo Clique Aqui, o melhor da poesia e da prosa, está tudo aqui no plástico bolha!

Agora, para a festa fi car completa mesmo, só falta você. Adiante! Boa leitura!

Heinz Langer

Um pouco de StraussNão escreva versos íntimos, sinceros,como quem mete o dedo no nariz.Lá dentro não há nada que compensetodo esse trabalho de perfuratriz,só muco e lero-lero.

Não faça poesias melodiosase frágeis como essas caixinhas de músicaque tocam a “Valsa do Imperador”.É sempre a mesma lengalenga estúpida,sentimental, melosa.

Esquece o eu, esse negócio escrotoe pegajoso, esse mal sem remédioque suga tudo e não dá nada em trocaalém de solidão e tédio:escreve pros outros.

Mas se de tudo que há no vasto mundosó gostas mesmo é dessa coisa falsaque se disfarça fi ngindo se expressar,então enfi a o dedo no nariz, bem fundo,e escreve, escreve até estourar. E tome valsa.

Paulo Henriques BrittoPoema do livro Trovar Claro (Companhia Das Letras, 1997)

Distribuição Gratuita Ano 3 - Número 22 - Junho/Julho 2008

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Casa de Cultura de Paraty

A Casa de Cultura de Paraty é um local dedicado à cultura e à arte. Loca-lizado no Centro Histórico da cidade, o espaço conta com auditório, sala de exposição, loja de artesanato e café, mas é na livraria onde os visitantes e moradores de Paraty podem encontrar a mais nova cara da literatura fora da Flip: o plástico bolha. Podem conferir: Rua Dona Geralda, 177, Centro — Paraty/RJ.

Botequim Honesto

O plástico bolha atravessa a ponte para aumentar ainda mais o sorriso dos moradores de Niterói, que, para ler o jornal, não precisam mais vir ao Rio. Basta pegá-lo no Botequim Honesto! Localizado no bucólico e aprazível Jardim Icaraí, o bar conta com um ambiente confortável e um atendimento diferenciado. Aproveitem a leitura entre uma cervejinha e ou-tra. O endereço é Rua Ministro Otávio Kelly, 483, Icaraí — Niterói/RJ.

Barraca das Letras

Maricá, Maricá, o plástico bolha acaba de chegar. Temos o prazer de dis-tribuir o jornal na Barraca da Letras, projeto de inclusão social que divulga a leitura e a cultura de forma simples, prática e popular, promovendo a leitura em todos os níveis por meio da locação de livros e da troca de idéias. Além de ter acesso ao plástico bolha, na Barraca das Letras o leitor pode participar de rodas de leitura e história, saraus poéticos, palestras literárias e esquetes de teatro. Esperamos que todos os leitores aproveitem essa rara oportunidade! A Barraca das Letras fi ca na Praça do Skate — Maricá/RJ; aos fi nais de semana, em funcionamento das 17 às 21 horas.

os ingênuos

mesmo através do turvo e estilhaçado espelho das feras,mesmo através dos mapas litúrgicos,mesmo através das igrejas teleguiadas que me perseguem,qual será o novo desastre?

todo índice é símbolo, tudo é artifício, tudo é caverna.

em todo esse tempo o meu cinema era você.

um dilúvio de cartões postais,me manda uma mensagem de batom para naufrágio,sete segundos de radiação, só os ingênuos não viramesse colírio de óleo diesel, puro aborto luminoso, a rainha de sabá já chegou.

uma mulher acaba de parir um peixerompendo a escuridão de todos os túneis do metrô.

Augusto de Guimaraens Cavalcanti

EDITORESLucas ViriatoPaulo Gravina

EDITORa aSSISTENTEMarilena Moraes

CONSELHO EDITORIaLLuiz CoelhoGregório DuvivierIsabel Diegues

COMISSÃO aVaLIaDORaConstanza de CórdovaCarlos AndreasTomé LavigneNadja VossMauro RebelloIsabel WilkerEdson SantanaManoela FerrariCristiane MendesRoberta Rubinstein

COORDENaÇÃOThiago BentoLucas Viriato

REVISÃOMarilena MoraesRubiane ValérioRafael AnselméGabriel Matos

EQUIPEMárcia BritoBeatriz Pedras

aGRaDECIMENTOSGisela GoldLeonardo MaronaLasana LukataAndrea C. StarkLéo Carnevale

BOLHETIMExtra! Extra! Surto de plástico bolha invade o estado do Rio de Janeiro.

DISTRIBUÍDO no estado do Rio de Janeiro e na cidade de Belo Horizonte / TIRAGEM 8.000 / IMPRESSO na CUT GrafENVIE SEUS TEXTOS PARA [email protected]

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Insônia monstruosa

Se aquele estranho e súbito pressentimento (que mais se parecia com uma indisposição) estivesse correto, se realmente não existissem monstros, então seus maio-res medos se tornariam realidade. Não poder apontar alguém como uma exceção bizarra do que deveria ser um autêntico ser humano, com todas as suas elevadas aspirações morais e o sentimento de altruísmo, não poder dizer que todos os horrores até hoje cometidos — todas as mesquinharias, as mentiras, as traições, o ódio, a violência em seu estado mais instintivo e, o que é pior, em seu estado mais requintado, tudo isso, sem exceção — foram levados a cabo por pessoas desumanas e estranhamente cruéis, mas, muito pelo contrário, por pessoas como ele próprio, feitas todas da mesma substância e sob a mesma moldura, lhe era inadmissível, quase uma ofensa. Não havia senão irmãos ao seu redor, Caim e Abel vivendo no mesmo jardim. Ou todos eram monstros ou nenhum o era. A primeira opção lhe soara inverossímil, posto que jamais havia sido uma pessoa má ou desonesta e, ademais, não poderia desconsiderar assim tão levianamente todos os seus reiterados esforços de ser não somente agradável e útil às outras pessoas, mas também ser um homem bom, em tudo o que essa palavra possa invocar de grandeza e desprendimento. (Não era raro vê-lo distribuindo sorrisos a porteiros e bom-dia aos vizinhos, sendo amável à exaustão.) Absolutamente, ele não poderia ser um monstro; essa era uma opção absurda. Descartou-a. Mas então sobrou-lhe apenas a consideração, não menos assustadora, de que não há monstros. O que, em outras palavras, queria dizer era que havia uma desconcertante comunhão entre aquilo que se reprovava e o reprovador. Não quis (não podia) aceitá-la. Não ser diferente, fundamentalmente diferente da escória do mundo lhe causava calafrios. Desconfi ar que ele mesmo era capaz de se tornar um monstro, já que estruturalmente nada lhe impediria a tanto (aquilo que o faz humano faz humano a todos) era algo intolerável. Tremia só de pensá-lo. E o que lhe fez tremer mais ainda, a ponto de desabar, foi dar-se conta de que não se tratava de transformar-se em um monstro, pois que, em nenhum momento, nem nos melhores nem nos piores, se deixa — não temos esse privilégio — de ser homem. Deu-se conta, fi nalmente, de que Caim era seu irmão de sangue, o caçula, e que por muito pouco não foi ele quem nasceu agarrado ao seu calcanhar. Esta descoberta o arrebentou todo, do início ao fi m. Sem monstros para velar seu sono, suas noites se tornaram insuportáveis.

Thiago Costa Faria

Dia de grilo

Dia novo e nós aquiCheios de idéias.Sei que tem sentido E o vazio passará,Mas agora é ar,Sons, olhos, dispersos.

Estou mais pra montanhas,Coisinhas mudas, ciscos,Vozes d’água, etc...

Um de meus nós Pede lagartixas, grama,Boca e boca,Desminhocar goiabas.

Hoje me sinto desimportante.Formigas memóriasMe dizem nuvens, elefantes,Por isso são gigantes essazinhas.

Eu grilo de dia,Ou a lua noturna ensolarou esta manhã?

Dimitri Merino

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ARTAUD, SILVIANO E AS ÂNCORAS

Antonin Artaud está a bordo do S. S. Albertville no porto de Antuérpia. É dia 10 de janeiro de 1936. Ele deixara Paris de trem no dia anterior, numa manhã recoberta de nuvens cinzentas, baixas e pesadas. Caía uma garoa fi na e incômoda que, de vez em quando, era chicoteada por rajadas de vento, e Artaud sentiu prazer ao olhar para a mala nova de papelão na cor marrom-escuro e pensar que estava partindo. Ele não suportava umidade.

Agora, Artaud está deitado, sonolento, no beliche da cabine de segunda classe, que divide com três companheiros no navio que o levará ao México. De repente, ele tem um sobressalto e pula da cama. A trepidação causada pelo movimento das hélices indica que a viagem começava de fato naquele momento. O navio se afasta do cais. A trepidação aumenta. Artaud sente uma zonzeira que ainda não sabe se é boa ou ruim, mas tem certeza de que não há mais terra fi rme sob seus pés. “Navio e passageiro perderam as âncoras”, afi rma Silviano Santiago em Viagem ao México, no qual evoca a ida do dramaturgo francês à América, em 1936. Foi neste ano que ele nasceu numa cidade do in-terior de Minas Gerais, em fi ns de setembro — e isto é tratado no livro, não na perspectiva simplista de coincidência, mas como uma permissão que os astros deram para Silviano criar seu personagem e fabular um encontro com ele.

Não sei se a viagem de Artaud se deu exatamente como está narrada em Viagem ao México. De qualquer forma, isso pouco importa, não vou me dar o trabalho de checar fatos nas biografi as tradicionais do escritor francês. Os dados desse livro, dos quais me apropriei à minha maneira, me servem.

Silviano Santiago enfatiza o sentido utópico da viagem de Artaud, que queria resgatar o passado mítico da civilização asteca, mas se decepciona diante de uma intelectualidade que inveja o ra-cionalismo da cultura européia. Na verdade, o livro de Silviano é uma espécie de preâmbulo de Viagem ao país dos taraumaras, no qual Artaud narra sua viagem ao México, que começou efe-tivamente depois de ele deixar a capital e rumar para a região dos índios taraumaras, onde expe-rimentou o peiote.

Não vou seguir para a região dos taraumaras, pelo menos não agora. Escolho estar, neste mo-mento, na Universidade do México na companhia de Artaud. Interessam-me as Mensagens revolu-cionárias. Numa de suas palestras, ele afi rmou:

“Eu vim para o México fugido da civilização européia, produto de sete ou oito séculos de cultura burguesa, movido pelo ódio contra essa civilização e essa cultura. Esperava encontrar aqui uma forma vital de cultura e só encontrei o cadáver da cultura da Europa, do qual a própria Europa já começa a se desembaraçar”.

Muito antes disso, em 1925, Artaud escrevera a “Carta aos reitores das universidades euro-péias”: “(...) A Europa cristaliza-se, mumifi ca-se lentamente sob as ataduras das suas fronteiras, das suas fábricas, dos seus tribunais, das suas universidades. (...) a culpa é vossa, reitores presos no laço dos silogismos. Os senhores. fabricam engenheiros, magistrados, médicos, aos quais escapam os verdadeiros mistérios do corpo, as leis cósmicas do ser, falsos sábios, cegos para o além-terra, fi lósofos com a pretensão de recons-tituir o espírito(...)”.

É signifi cativo que durante o Maio de 68 na França, este texto tenha servido como panfl eto revolucionário e sido afi xado na Sorbonne. Falo disto aqui porque neste 2008 se comemoram não só os quarenta anos do movimento francês, mas das manifestações ocorridas em diversos países durante 1968 — um ano-constelação. Se, por um lado, esses eventos não provocaram transformações radicais no cenário político mundial, por outro marcaram profundamente o comportamento e os valores sociais e culturais. A partir de 1968, houve mudanças fundamentais na maneira de enxergar e pensar o mundo. E não há dúvida de que temas levantados há quarenta anos – aliás, mais que isso, em 1925 e 1936, por Artaud — ainda colocam em xeque a sociedade contemporânea.

Sim, isto é um convite (não uma carta). Um con-vite para uma viagem a bordo do S. S. Albertville, na qual certamente navio e passageiros perderão suas âncoras.

PUZZLES por aNNa LEE

Leidriadne

Como é forte essa leiQue me explica o que eu já seiE me unifi ca em não-sonhar

Como é forte essa leiQue trasborda de mentiraFaz do oposto a minha miraE me impede de prever

Como é minha essa leiQue nasceu do meu mormaçoE faz de mim meu próprio inverso

Como é minha essa leiQue me obriga a ser doisPõe em mim o próprio serQue eu matei quando nasci

Péricles F. Drelos

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000

Coração sem arPreso no peitoDorArranhado e amarradoPulsa a forçaDor

Entre a perfeição e o erro. Entre a iluminação (nir-vana) e o samsara junkie (nossas vidas do dia-a-dia). Entre o já sabe tudo e o não sabe nada. Entre a exata força e a exaustão da força. Impossível re-conciliação. Caminhar descalço sobre as pedras?

Entre o choro e o não se importar ou, simplesmente, limpar as lágrimas, lavar o rosto e olhar. Em meio à comunicação com os outros e não conseguir fa-lar — palavra sufoca a garganta, engasga e abafa o coração. No choque da adaptação protocolar ao mundo com a ruptura completa de suas amarras. Este é o meu lugar (último que virou primeiro ou o primeiro que virou último). Entre a clareza e a obscuridade.

MULHERES-DAMASpor ISaBEL DIEGUES

O bordado da espera

Entre os dedos longos fi osescorregam desfi andoo tecido a ser traçadoa espera retocando

Desenhado à luz do diao traçado a ser tecidoas mãos ágeis decidindo desfazer o seu destino

Costurando dia a diaà espera faz-se o mantotentando frear o tempoao novelo aprisionando

Quando a tarde traz a noiteo sol carrega consigoa extrema ponta do fi oe assim desfaz o tecido

Sol-carretel anoiteceenrola o fi o ao novelo o tempo pára e concedeespaço espera enlevo

E com a manhã seguintedesponta a ponta do fi osol traz de volta o caminhodo bordado do tecido

Ela ao tecer incansável isola o corpo no manto constrói um fosso um abismo pretendentes afastando

E enquanto borda a memóriana direção do maridoele recolhe as pegadasreconstruindo o caminho

E passam longos os diastrama traçado tecidoà espera do encontrodesaprisionar o tempo

e tece o manto mais uma vezcomo se fora a primeira vez

(SOBRE)VIVêNCIAS

Luiza Marcier

por FELIPE CaRVaLHO DOS SaNTOS

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101Eu, meu pai e o ator Jim Carrey viajávamos há horas em uma minivan. Jim Carrey dirigia a mini-van. Ninguém pediu que ele dirigisse, nós até nos oferecemos para revezar, mas ele recusou e fi cou de cara emburrada. O clima estava tenso, eu e meu pai estávamos constrangidos. Daí, o Jim Carrey per-guntou se nós fumaríamos um baseado. É claro que nós fumaríamos, nós adoraríamos fumar, nós tí-nhamos o fumo. O problema é que nós pensamos que ele era um policial à paisana. Nós pensamos que ele fosse um policial, mas ele só estava com um fi gurino. Saber que aquele policial era o ator Jim Carrey nos deixou muito tranqüilos. Ele era uma pessoa muito agradável. Sabe todas aquelas caretas que ele faz em seus fi lmes? Ele realmente sabe fazê-las, não é nenhum dublê, como meu amigo Marcos sempre insistiu em dizer. Então nós chegamos na festa que Clint Eastwood nos havia convidado, mas quem tinha alugado o hotel àquela noite foi a Xuxa. Clint certamente escreveu errado no convite. Clint nunca daria uma mancada dessas comigo. Certa-mente não. Eu não me aborreci porque fi quei horas conversando com o empresário Edson Arantes do Nascimento, enquanto o jogador Pelé dava investi-das contra a anfi triã. O empresário Edson Arantes

A bienal do Livro de BH pelo olhar de uma menininha de 3 anos e meio

O que será uma buenu do livro que a vovó e a Tia Ana estão me convidando para ir visitar? O livro já conheço e é meu grande amigo desde que era pequenina, porque agora já sou glande. Me explicam que é um lugar cheio de livros e onde eu poderei pegar os que eu quiser para ler. Parecido com a biblioteca em que a vovó trabalha.

No caminho, fi co ansiosa: já chegamos? Mas está muito longe! Por que está demorando? Afi nal o carro parou. O lugar é muito grande e cheio de gente. Isso me deixa um pouco assustada, mas nada que um colinho aconchegante não resolva. E como tem criança! Estão todas alegres e ani-madas, e eu fi co também.

As novidades começam a chegar. Logo no começo encontro muitos livros novos. Algumas histórias eu já conheço, mas a capa e os desenhos são di-ferentes. Conta para mim, Tia Ana, a historinha da Cigarra e da Formiga. Mas tem a da Raposa e das Uvas; eu quero ouvir essa. Gosto muito de ouvir as fábulas, mas algumas palavras são meio difíceis e logo começo a me distrair. Que bom! Vovó achou o livrinho da família do Trully, meu cachorro. Ah! Esse está bem mais fácil e eu quero esse. Você compra para mim, vovó?!

Com a sacolinha no braço, vejo um pipoqueiro. Lá vem minha tia com um saco de pipocas, e eu adoro pipoca. Pena que atrás dela estou vendo um coelho gigante. Quero voltar. Vovó me explica que é um moço fantasiado de coelho, mas eu não gosto. Prefi ro os coelhinhos pequenos, que posso segurar no colo.

Damos meia volta e saímos em busca de mais novidades. Em cada loja encontro mesinhas com livros e cadeirinhas do meu tamanho, onde posso sentar e folhear os livros: do gatinho, do cachor-rinho, da Arca de Noé, do Charlie e da Lola...

De repente vejo uns fantoches. Tem do Chapeu-zinho Vermelho... Será que tem do Lobo Mau? Achamos. Como adoro contar as historinhas que conheço, vovó me pergunta se quero um fantoche. Prefi ro do Chapeuzinho porque na minha casa não tem fl oresta, então não posso levar o do Lo-bo Mau. Junto com o fantoche, ganhei livrinhos dos animais selvagens — do tucano, da cobra, do rinoceronte, do tubarão... Depois foram dez revistinhas para colorir.

Depois de um tempo, com algumas sacolas e o cansaço chegando, pedi para voltar para casa. No carro mesmo já começamos a ler uns livrinhos.

Segunda-feira, quando eu for para a escola, vou contar, na rodinha, para todo mundo como foi boa a buenu do livro!

A 1ª Bienal do Livro de Belo Horizonte aconteceu de 15 a 25 de maio de 2008. Em onze dias, 225 mil pessoas passaram pelo local — das quais 28 mil, pela visitação escolar e 197 mil, público em geral. Nesse pequeno conto, narro a bienal pelos olhos de minha neta, porque o evento teve como principal participante o público infantil. Longe das pretensões literárias, espero que este texto sirva como uma recordação para minha neta, recordação esta que compartilho com os leitores do jornal.

Meu sentimento tem que cabernuma caixa silábica e tortoo ritmo é dividido em doispalavras e bordas todas tortaspara descrever o que não posso.

Alexandra Wiltshire

Drama

Olhou a navalha com espanto fez queia segurar o pranto mas num grito agudocaiu na calçada dura com o vestido sujo de lama e o rosto triste de choro cegando os olhos com as mãos trêmulas em lábios de súplicas erguendo a cabeça para ver o que era: apenas o amolador de facas.

Catharina Wrede

BOLHAS GERAES

CONTOS INSÓLITOS

por GRECO BLUE

por BEaTRIZ PEDRaS

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nheiro feminino e realizar minha cota de travessu-ra ali mesmo. Ninguém na festa se importava com nada, tinha cinco mil trezentos e cinqüenta e sete convidados, e mil e setecentos e vinte e nove pene-tras, além, é claro, de quinhentos e quarenta e dois serventes, e por volta de vinte e dois banheiros fe-mininos. Todos estavam muito entretidos assistindo ao violonista e fi lho do cão Robert Johnson tocar suas composições inéditas ao piano. Eu disse para minha garota que não tinha intenção de machucá-la, eu só queria parar num tablóide fazendo traqui-nagem ao lado de um Rolling Stone, prometi que eu seria educado e a amaria pra sempre, do fundo do meu coração. Naquele momento eu amava mui-to aquela mulher e torcia pra que ela me amasse também. Eu perguntei seu nome e ela respondeu que era Rebeca. Rebeca tinha cabelos ruivos natu-rais, algo entre o fogo e a cenoura, pele branca como a neve, mas muito longe da palidez e falta de saúde, e seu corpo era algo realmente muito especial para receber qualquer tipo de comentário. E eu amava muito ela. Eu rasguei toda sua roupa, dei-xando Rebeca totalmente nua, e amando muito ela. Eu beijei seu corpo todo, e entrei em Rebeca. Horas depois que suas lágrimas de humilhação já se ha-viam transformado em lágrimas de prazer e que todos os músculos de seu corpo já se haviam con-torcido junto ao meu, ela disse que me amava tam-bém. Eu me ajoelhei, tirei o buquê e o anel da cartola e pedi que Rebeca se casasse comigo. Ela disse que também me amava, mas que estava noiva de um mezzo-baiano que cantava na melhor banda do país, uma com um nome muito ruim, alguma coisa sobre a cor azul. Eu perguntei se ele já a havia feito sentir-se tão bem assim, e ela disse que isso não estava em questão e que o ponto principal era que ela deveria ser fi el a sua palavra. Eu fi quei pos-suído por ira, joguei Rebeca no vaso sanitário, puxei a descarga e, enquanto ela descia rodopiando rumo ao esgoto, eu gargalhava e urrava que ela não era nada pra mim e que eu aceitaria a Madonna de volta! Eu saí do banheiro bufando, perguntando por Ronnie, exigindo que ele me encontrasse. Cru-zei com meu pai, que agora bebia algum Johnnie Walker, e ele me disse que tinha conhecido as mu-lheres de seus sonhos e que assinou um contrato de casamento com as nove mulheres do grupo bonitas e arrumadas que nós lhe demos de presente. Ele disse também que tinha visto o guitarrista Ronnie Wood fugindo num Jaguar que não lhe pertencia e que arrancou da garagem, derrubando o portão e seguindo pela rodovia a uns cento e vinte quilôme-tros por hora. Eu xinguei Ron com as mãos para o céu e disse que, como meu melhor amigo, ele não poderia ter feito uma coisa dessas! Nessa hora, barulho de freadas de carro e rodopios de hélice de helicóptero invadiram a casa, misturados com for-tes luzes de canhões de busca. Foi aí que o Batalhão de Operações Especiais da polícia adentrou a casa, regido pelo ator Jim Carrey, que era seguido pela

do Nascimento é realmente um cara muito legal, mas cheio de manias, entende? O legal foi saber do seu ponto de vista muito peculiar sobre as questões do Sudão nos dias de hoje. O empresário começou a me encher um pouco o saco, e eu resolvi me jun-tar ao guitarrista Ronnie Wood e ao bailarino Jean Claude Van Dame, que estavam se embebedando e agarrando modelos em começo de carreira con-tratadas para a fi guração da festa. O bailarino nos abandonou logo que foi convidado para um ména-ge com a anfi triã e o maior jogador de futebol de todos os tempos. Ronnie me convidou para dar um teco, eu disse que estava bem assim, mas que o acompanharia até o banheiro. Quando o guitarris-ta saiu de sua cabine, sugeriu que nós invadíssemos o banheiro feminino. Meu pai, que nessa hora usava o urinol coletivo, disse que aquilo era uma idéia terrível, mas Ronnie falou que ele estava com-pletamente ultrapassado e fora de moda. Eu disse que talvez fosse uma boa idéia ouvir meu pai, mas Ron gemeu “Hmmm.... oooooh” e completou que eu poderia ouvir meu pai ou ir parar nos tablóides com um Rolling Stone, e aquilo foi o sufi ciente para me convencer. Nós pegamos a tubulação de gás, já que atravessar o corredor era óbvio demais. Viramos à esquerda logo que passamos pela big band de ratos cegos, e o guitarrista rolante falou

“É aqui!”. Nós pedimos um delivery de armamentos pesados — que chegava em 14 minutos ou seu pe-dido grátis! Eu comecei a jogar as bombinhas de fumaça, enquanto meu novo melhor amigo de todos, o guitarrista Ronnie Wood, soltava os morcegos programados para enroscar em cabelos femininos. Depois que todas estavam imobilizadas por nossas feras e em nossas miras a laser, nós as separamos em grupos: um com mulheres bonitas bem-arru-madas, um com mulheres bonitas deselegantes e outro com todos os tipos de mulheres feias que lá se encontravam. As mulheres bonitas e deselegantes foram levadas ao paredão, onde seriam tortutadas e executadas por Bill Wyman & John Entwistle. As mulheres feias em geral foram vendidas como es-crava a Don Quixote, que havia sido contratado para fazer mágica para uma coleção de bebês de proveta. Nessa hora, meu pai entrou no banheiro com uma taça de champanhe para comentar que no grupo de mulheres feias, em geral, havia muitas jeitosinhas que não mereciam ser dispensadas e que havia um pastel de tofu delicioso que deveríamos experimentar. Nós demos algumas das bonitas e arrumadas a ele de presente, a fi m de que ele as levasse para tomar champanhe, comer tofu e fazer uma orgia. Das restantes, algumas foram entregues ao Hulk para que ele desse uma morte rápida a elas, e as duas com ar mais esnobe e olhar mais arro-gante fi caram para serem estupradas por mim e Ronnie. Ronnie levou sua nova acompanhante para o bosque, pois lá ele se sentia mais à vontade e dizia que seu sangue circulava melhor ao ar livre. Já eu resolvi simplesmente trancar a porta do ba-

banda do colégio militar. Jim Carrey empunhou o megafone e declarou ordem de prisão a todos na-quela festa. Eu perguntei do que aquilo se tratava, se era uma pegadinha ou se o fi lme estava sendo rodado lá e eu não tinha sido informado. Ele me disse que, na verdade, ele sempre foi um militar interpretando um ator civil e que eu não poderia mais chamá-lo de Jim, e sim de gal. James Eugene Carrey e que eu seria preso por formação de qua-drilha, aliciação de menores e por muitos outros motivos que ele preferia não citar para não agredir os ouvidos dos muito inocentes ali presentes. Gal. James Eugene Carrey ainda sussurrou ao meu ou-vido que tinha pego Ronnie numa blitz, mas que, para sair limpo, disse tudo sobre mim. Maldito Ronnie! Ele me disse, ainda, que sabia tudo sobre Rebeca e que eu ia fritar na cadeira elétrica. Eu berrei que ele não sabia nada sobre Rebeca e que se soubesse estava errado, pois nós nos amávamos e nós iríamos nos casar. Ele riu de mim, me chamou de lunático e disse que iria gozar nas calças quando me visse queimando na cadeira elétrica. Eu preci-sava de Rebeca do meu lado. Só ela realmente me conheceu e me entendeu bem o sufi ciente para me apoiar nesse momento de tensão e desespero e, oh, como eu amo essa mulher! Com um tapa atrás da orelha, eu parei de pensar em minha amada e voltei para a realidade. Olhei em minha volta, tentando solucionar o problema, e vi que aquele cão amigável que ajudava o Sebastião a solucionar a história sem fi m, bebia um martíni e conversava com algumas modelos. Eu berrei pra ele que dava cem pratas pra ele me tirar dali bem depressa. Ele respondeu “Fe-chado!”. Eu pulei na garupa dele, joguei uns cana-pés em sua boca, fi z um carinho atrás da orelha e disse que não lembrava seu nome, se ele não se importava de chamá-lo de Totó, que era o nome mais comum dado aos cães na minha terra natal. Ele disse que era uma honra trabalhar comigo e que, por mais cem pratas, eu rodava com ele à vontade, por tempo indeterminado. Então nós fomos até a estação de esgoto mais próxima, buscamos Rebeca, e eu disse a ela como eu estava arrependido e que ela era mulher da minha vida. Rebeca disse que me perdoava e que nunca havia deixado de me amar. Nós nos beijamos. Um beijo demorado e molhado, com um abraço apertado e muito amor. Rebeca subiu na garupa do nosso amigo Totó, me agarrou pela cintura e nós partimos para Las Vegas, onde eu comecei minha grande carreira como cover de Elvis Presley gordo e fui feliz para sempre — com Totó, como meu empresário e Rebeca, preparando pratos fantásticos e deixando tudo arrumado para quando eu chegar em casa exausto banquetear, satisfazê-la e ter boas noites de sono e nunca me lembrar que um dia eu não tive essa mulher ou que eu já fui traído pelo novo guitarrista dos Rolling Stones.

de Operações Especiais da polícia adentrou a casa, regido pelo ator Jim Carrey, que era seguido pela

≠ 8

Entrando na conversa sobre o fi m da canção (2)No artigo anterior, eu havia argumentado que a canção tropicalista não é mais o artefato completo, totalmente contido na unidade música-letra, que fora a canção bossa-nova, pois ela só se completa com elementos externos — arranjo, interpretação, até mesmo capa de disco. Retomo, neste número, o tema da desconstrução da canção pelos músicos tropicalistas a partir de um outro viés, referente ao uso de procedimentos intertextuais. Citam-se, além de composições que fazem parte do cancio-neiro nacional e estrangeiro, os mais diferentes elementos de tradições culturais também distintas, provenientes tanto do universo pop, como também da “alta cultura”. As citações aparecem na própria forma de estruturar a canção, nos arranjos inusita-dos de Rogério Duprat para o LP Tropicália (1968) e até mesmo nas performances do grupo.

As canções-citações se criam a partir de músicas já consagradas pela tradição do nosso cancioneiro. Tomo como paradigmática do gênero “Paisagem útil”, de Caetano Veloso (LP Caetano Veloso, 1968), que me dedico a analisar nesta coluna. O título inverte o sentido de “Inútil paisagem”, composição de Tom Jobim e Aloísio de Oliveira, de 1964. “Inútil paisagem” é prenhe de subjetivi-dade, dando voz a um sujeito lírico que se sente só. Vejamos a letra:

Mas pra quêPra que tanto céuPra que tanto mar,Pra quê?De que serve esta onda que quebraE o vento da tardeDe que serve a tardeInútil paisagem?Pode serQue não venhas maisQue não voltes nunca maisDe que servem as fl ores que nascemPelo caminhoSe o meu caminhoSozinho é nadaÉ nadaÉ nada

A inversão completa, entretanto, dá-se apenas no título, pois “Paisagem útil”, de maneira inusitada, reúne os espíritos solar e noir, alternando poética e musicalmente a melancolia presente em “Inútil paisagem” com a celebração do cotidiano. A canção se inicia com a plena positividade da estrofe

Olhos abertos em vento Sobre o espaço do aterro Sobre o espaço sobre o mar

“Paisagem útil” surpreende o ouvinte habituado com a tradição poética construtivista ao lidar com temas concretos — objetos e informações que povoam o espaço modernizado do Aterro do Flamengo, como os automóveis “que parecem voar” e a “lua oval da Esso” — de maneira introspectiva, fazendo jus, dessa maneira, à concepção de “Inútil paisagem”. Mas, se a interioridade de “Inútil paisagem” é cantada a partir do estilo musical da bossa nova, com instrumentação e interpretação pequena, “Pai-sagem útil” é uma marcha-rancho que recorre a um arranjo exuberante com cordas e metais.

Num certo ponto do desenvolvimento da música, natureza e cultura do Aterro são contempladas —

O céu vai longe do OuteiroO céu vai longe da GlóriaO céu vai longe suspensoEm luzes de luas mortasLuzes de uma nova auroraQue mantém a grama nova E o dia sempre nascendo

— para em seguida comentar o cenário urbano povoado de transeuntes com um destino certo —

“Quem vai ao cinema/ quem vai ao teatro/ Quem vai ao trabalho/ quem vai descansar” —, de ar-tistas — “Quem canta/ quem canta/ Quem pensa na vida” — e fl anêurs — “Quem olha a avenida/ quem espera voltar”. Neste trecho, Caetano alude a

Chico Buarque, não apenas por lhe imitar o modo de cantar, mas também pela sucessão de versos iniciados por “quem”, os quais trazem à lembran-ça várias passagens de canções de Chico: “Quem canta comigo/ canta o meu refrão” (“Meu refrão”),

“Estou vendendo um realejo/ Quem vai levar? / Quem vai levar?” (“Realejo”) e, é claro, “Quem te viu, quem te vê”.

Logo depois, também de maneira inesperada, no intervalo que prepara o próximo tema, ouvem-se acordes de bossa-nova que introduzem a passagem poética “Os automóveis parecem voar”. A marcha-rancho é retomada em seqüência e, como que prepa-rando a introdução do tema lunar, Caetano começa a cantar como um intérprete de boleros, soltando a voz e pronunciando os erres à maneira de Nelson Gonçalves, na seguinte passagem:

Mas já se acende e fl utua No alto do céu uma lua Oval, vermelha e azul No alto do céu do Rio

O tom intimista retorna com a estrofe fi nal, que substitui, entretanto, o espírito cool e sofi sticado de “Inútil paisagem” por um registro kitsch, porém triste, lembrando um circo retratado por Fellini:

Uma lua oval da Esso Comove e ilumina o beijo Dos pobres tristes felizes Corações amantes do nosso Brasil

POR DENTRO DO TOM por SaNTUZa CaMBRaIa NaVES

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Baleiro desmembra ‘Coração’ em dois volumes

O próximo CD de inéditas de Zeca Baleiro, O Co-ração do Homem-Bomba, vai ser duplo, mas fi cará desmembrado em dois volumes que serão vendidos em edições avulsas. Já em fase fi nal de mixagem, o primeiro volume tem seu lançamento agendado para 25 de julho. O segundo deverá chegar às lo-jas somente em novembro, mas a gravadora MZA Music autorizou o artista a disponibilizar algumas faixas já em setembro.

Dominguinhos e Domenico no álbum de Camelo

Dominguinhos, Clara Sverner e o grupo paulista Hurtmold — além de Domenico Lancellotti — estão entre os convidados do primeiro disco-solo de Marcelo Camelo. Programado para o segundo semestre de 2008, o lançamento do álbum vai ser acompanhado por uma turnê nacional, que começa no fi m do ano. Camelo vem formatando, desde dezembro de 2007, seu primeiro trabalho após o recesso por tempo indeterminado do quarteto Los Hermanos. A conferir.

Tributo a Noel sai em CD e DVD pelo selo MP,B

Na noite de 5 de dezembro de 2007, um elenco de cantores — integrado por Diogo Nogueira, João Bosco, Maurício Pessoa, Moska, Ney Matogros-so, Roberta Sá, Rodrigo Maranhão e Zé Renato, entre outros — subiu ao palco da casa Vivo Rio, no Rio de Janeiro, para festejar Noel Rosa (1910

- 1937). Intitulado Acervo Noel Rosa, o show foi gravado ao vivo para gerar CD e DVD que chegam às lojas no fi m de julho de 2008 pelo selo MP,B (Maior Prazer, Brasil), com distribuição da major Universal Music. Os intérpretes revivem clássicos do cancioneiro do Poeta da Vila. Roberta Sá, por exemplo, canta O X do Problema, samba lançado por Noel em 1936. Ney Matogrosso interpreta duas músicas. Entre elas, Último Desejo. Já Diogo Nogueira recorda Conversa de Botequim. Todos os astros foram acompanhados pelo grupo de samba Anjos da Lua.

Para ler mais notas musicais acesse http://blogdomauroferreira.blogspot.com

ALEXIA BOMTEMPO

Trinta minutos nos pilotis da PUC com a simpática Alexia Bomtempo, que lança seu primeiro disco, Astrolábio, pela gravadora EMI, foram sufi cientes para conhecer um pouco melhor essa simpática cantora, apontada por muitos como um dos novos talentos da MPB.

Filha de pai brasileiro e mãe americana, Alexia nasceu nos EUA e veio para o Brasil aos 7 anos de idade. Entre idas e vindas, Alexia que estudava canto lírico na Plymouth State University, em New Hampshire, conheceu em 2005 no Rio de Janeiro o produtor Dadi Carvalho — ex-novos baianos, com quem passou a compor e a gravar algumas canções. Em poucos meses de parceria, se deram conta de que tinham um disco praticamente pronto em mãos. O contato com a gravadora EMI surgiu no fi nal das gravações, em 2006.

Astrolábio “é um disco de encontros, encontros felizes, a começar pelo produtor Dadi”, declara o músico Domenico Lancellotti no release da cantora. O álbum contém — além das ótimas parcerias de Dadi e Alexia, como “Para dormir mais tarde”,

“Nuvem d´água” e “Cromologia”, co-assinadas também por Pierre Aderne, belíssimas releituras das músicas “Leãozinho”, de Caetano Veloso, e

“Roxanne”, de Sting.

No papo, Alexia chamou atenção para a revitali-zação do samba e para a importância da Lapa, o bairro com maior abertura para o gênero. Sobre o mercado fonográfi co, internet, e mídias alternati-vas, Alexia, que diz nunca ter baixado uma música, assume que fazer parte do casting de uma grande gravadora tem lá suas vantagens, mas diz que qualquer artista pode divulgar seu trabalho pela internet, apoiado ou não por um selo ou gravadora. Ela destaca a ferramenta myspace como um ótimo espaço para a difusão de músicas e para o trabalho de marketing de bandas independentes. Sobre a crescente utilização das novas mídias digitais, como o brasileiro SMD — semi metalic disc, e os cards coolnex — pequenos cartões personalizados que

permitem o acesso online ao álbum ou música de uma banda, Alexia revela com humor: “Achei que o CD fosse virar o pen drive; o pen drive numa caixinha bonitinha”.

Alexia foi uma das convidadas brasileiras do festival South by southwest (Texas, 2008), onde também cantaram Marcelo D2 e Pierre Aderne. Em agosto, ela estará no Festival Sudoeste, em Portugal, ao lado de destaques da música inter-nacional.

Encantado, despedi-me de Alexia com a certeza de ter conhecido uma grande artista. Além de ser dona de uma técnica vocal impecável, a moça é linda e muito simpática. Em casa, escutei todo o álbum e vi que não tinha perguntado sobre o título do disco, Astrolábio. Àquela altura, já não importava mais.

Para saber mais sobre a cantora, acesse www.myspace.com/alexiabomtempo

NOTAS NO PLÁSTICO

fUTUROS ESTOUROS

por MaURO FERREIRa

por MaURO REBELLO

Divulgação

≠ 10

1 de junho é o início do mês. É o ano que deslisa. E a gente vendo os amigos morrer e outros nascer. (...) É treis e meia da manhã. Não posso durmir. Chegou o tal Vitor, o homem mais feio da favela. O representante do bicho papão. Tão feio, e tem duas mulheres. Ambas vivem juntas no mesmo barraco. Quando êle veio residir na favela veio demonstrando valentia. Dizia:

— Eu fui vacinado com o sangue do Lampeão!

Dia 1 de janeiro de 1958 êle disse-me que ia quebrar-me a cara. Mas eu lhe ensinei que a é a e b é b. Êle é de ferro e eu sou de aço. Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrisaveis. Êle deixou de aborrecer-me porque eu chamei a radio patrulha para êle, e êle fi cou 4 horas detido. Quando êle saiu andou dizendo que ia matar-me. Então o Adalberto disse-lhe:

— É o pior negocio que você vai fazer. Porque se você não matá-la ela é quem te mata. Eu tenho uma habilidade que não vou relatar aqui, porque isto há de defender-me. Quem vive na favela deve procurar isolar-se, viver só. O Vitor está tocando radio. Pen-so: hoje é domingo e nós podíamos dormir até as 8. Mas aqui não há consideração mutua.

Eu nada tenho que dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa. Queria que eu estudasse para professora. Foi as contingências da vida que lhe impossibilitou de concretizar o seu sonho. Mas ela formou o meu caráter, ensinando-me a gostar dos humildes e fracos. É porisso que eu tenho dó dos favelados. Se bem que aqui tem pessoas dignas de desprêso, pessoas de espírito perverso. Esta noite a Dona Amélia e o seu companheiro brigaram. Ela disse-lhe que êle está com ela por causa do dinheiro que ela lhe dá. Só se ouvia a voz de Dona Amélia que demonstrava prazer na polemica. Ela teve vários fi lhos. Distribuio todos. Tem dois fi lhos moços que ela não os quer em casa. Pretere os fi lhos e prefere os homens.

O homem entra pela porta. O fi lho é raiz do co-ração.

É quatro horas. Eu já fi z o almôço — hoje foi almôço. Tinha arroz, feijão e repolho e lingüiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguem. Quando vejo meus fi lhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está ao alcance do favelado, fi co sorrindo atôa. Como se eu estivesse assistindo um espetaculo deslumbrante. Lavei as roupas e o barracão. Agora vou ler e escrever. Vejo os jovens jogando bola. E êles correm pelo campo demonstrando energia. Penso: se êles tomassem leite puro e comessem carne...

2 de junho Amanheceu fazendo frio. Acendi o fogo e mandei o João ir comprar pão e café. O pão, o Chico do Mercadinho cortou um pedaço.

Eu chinguei o Chico de ordinário, cachorro, eu queria ser um raio para cortar-lhe em mil pedaços. O pão não deu e os meninos não levaram lanche.

...De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua. (...) O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefi ro viver só para o meu ideal. Êle deu-me 50 cruzeiros e eu paguei a costureira. Um vestido que fez para a Vera. A Dona Alice veiu queixar-se que o senhor Alexandre estava lhe insultando por causa de 65 cruzeiros. Pensei: ah! O dinheiro! Que faz morte, que faz odio criar raiz.

Trechos do diário da moradora da favela do Canindé, São Paulo, catadora de lixo e mãe de três fi lhos.

QUARTO DE DESPEJO por CaROLINa MaRIa DE JESUS

Olhos Meus

Para a adorável Ângela Perriconi, mulher generosa, sábia e sensível,

referência de ser humano e de profi ssional.

O sol que brilhava lá fora? Quantas saudades sinto. As crianças já não brincam como antes; agora elas trocam fraldas.

A respiração é lenta para uma mulher que desaprendeu a viver. Lembranças breves e eternas me fazem companhia. Não, não me equivoquei: tudo é breve e eterno aos olhos em suas primeiras descobertas.

Na moldura o traje permanece alinhado. Retrato da época em que eu me vestia. Havia bolas coloridas no salão, excitação dentro do vestido, beleza e música.Eu brilhava em olhos alheios. Todas tínhamos o mesmo penteado, penteado de mulher. Imitar os homens, só mesmo em segredo.

Saudades? Quantas sinto de fi car observando minha mãe conversar. Ela parecia saborear as palavras. Eu queria saber falar como ela e ser um ponto de partida na vida de alguém.

Quantas saudades sinto das meias compridas, das fi tas nos cabelos e do abraço do vento. Hoje, o vento apenas me cumprimenta.

Saudades sinto do tempo amigo, das risadas compartilhadas, da alegria inocente e da alma intocável. A inocência e a alegria são o que há de mais preciosos em um Ser. Quando profanados perde-se a poesia cabível a eles. O tempo ora amigo

— ora o pior dos inimigos — me faz crer:

Não somos o que desejamos, mas o que a vida nos permite ser. É, o tempo passa com a mesma velocidade que o vento.

Quantas saudades sinto do sol que brilhava lá fora.

Selma Fontes

≠ 11

Nesta edição, nossos queridos

poetas foram desafi ados a escrever

sobre localidades, colocando em

versos seus bairros, suas cidades.

Chegaram poemas de todos os

lugares: do Rio de Janeiro, de Belo

Horizonte e até mesmo de Paquetá.

Para o próximo número, convidamos

os leitores para escreverem um

poema sobre o mais batido de todos

os temas: o amor. Aproveitem o dia

dos namorados para dar inspiração e

mãos à obra! Basta enviar seu poema

para [email protected],

estamos aguardando.

Cosme Velho

uma mulher carrega sua televisãono colo como se fosse um bebêum homem desce de muletaspela porta da frente, um jovemanota exclamações para si mesmoem um caderno (terminaro trabalho hoje sem falta!!!!!!)uma turista enroladaem uma canga azul não passou protetorsolar, a cobradora altivaconversa com doishomens que esticam pescoçode ganso para assistir ao balanço de seusbrincos, o ônibus atravessadesembestado o rebouças no fi mde tarde, alguns escutam músicapoucos lêem, uma menina brincacom os cabelos, saímos do túnele fl utuamos numa lagoa de céurosa rabiscadocom duas ou três nuvens

Alice Sant’anna

Laranjeiras

às vezes,muitas vezes,temo a loucura que aparece em noites de domingodentro deste apartamentofracamente iluminado.

o calor é meu mais fi el amantee divido com ele um cigarro,o último da noite,que acabou o dinheiroe a esperança.

Letícia Simões

DESAfIO POÉTICO

Copacabana

Segunda quase terçafi to meus pés de calçadas inóspitas:latejam buzinas ponteiros, entranhasque choram pois trocam verõespor noites céus encobertosde cinzas - etérea eterna angústia, palidezdos vazios olhares, olheirasde medo aziadas retinas meencaram: as minhas doentesinsones febris, refl etidas nastuas -- doentes, insonesfebris.

Constanza de Córdova

Paquetá

Paquetá é um paraísoE o paraíso é meu lugarPaquetá é um sorrisoque a ilha oferece ao mar

Paquetá é Moreninhabicicletaé amar

Mas o que fascina mesmo essa ilhaé o luar de Paquetá

Mara Libber

Minas

Cidades de MinasCidades de Belos HorizontesSabará, cidade dos contosSete Lagoas, cidade dos encantosOuro Preto, cidade da nobrezaDiamantina, cidade de extrema beleza.

Cidades de MinasCidades de respectividadesBelo Horizonte, cidade do mineirodo pão de queijo, do movimento,da multidão e da simplicidade.

Priscila Mendes

≠ 12

O MÊS DE JUNHO

JUNHO, etimologicamente, provém do latim Iunius mensis, o mês de Juno. Luno, -onis — em português, Juno — era a deusa itálica, cujas características originais se perderam nos tempos devido ao sincretismo Juno-Hera. Segundo Oví-dio (Fastos, VI, 1-100), a origem do nome Iuno pode estar relacionado com iuuenis, “jovem”, cujo sentido na língua latina é “o que está entre o adulescens e o senex, logo “aquele que está na força da idade” — o que significa, outrossim, “na idade própria para o casamento e a procriação”. Sem dúvida, este valor semântico confirma-se na principal interferência da deusa latina na vida dos mortais e, sobretudo, na das mulheres: presidir aos matrimônios e aos partos. Sob estas faces, recebia, respectivamente, os epítetos de Juno Pronuba e Juno Lucina (< lux, lucis, “luz”, e daí, “dar à luz”). Esses epítetos caracterizam Juno como uma deusa essencialmente feminil, pois o verbo nubere, “casar”, presente em Pro-nuba, só era usado para designar o casamento da mulher.

Vale lembrar que, sob o epíteto de Moneta (< do verbo moneo, monere, “advertir”, “fazer lembrar”), Juno, “aquela que adverte”, velava pelo tesouro do Estado, que era guardado em seu templo. Mas a associação com a atividade monetária deve-se à lenda histórica de que os gansos do santuário de Juno teriam dado o sinal da invasão gaulesa de 390 a.C., o que permitiu aos romanos defender a Arx, a Cidadela do Capitolino, dos inimigos. Mais tarde, com a cunhagem de moedas (< moneta < Moneta), esse templo de Juno passou a ser chamado de Casa da Moeda. De moneta advém nosso vocábulo “moeda”, por sonorização da consoante surda –t- em posição intervocálica na sonora –d- e pela síncope da nasal –n- em posição intervocálica. Como o humor é fundamental, se Juno era a deusa das mulheres, e sob o aspecto Moneta é aquela que, primordialmente, faz lembrar, mas também aquela que vela sobre as moedas, não é de estranhar que, na economia doméstica, as mulheres sejam, na maioria das vezes, aquelas

a “contar as moedas”. Mas, como se diz, esse costume também “faz parte” da lei (nómos) da casa (oíkos), cujas origens também se perderam nos meandros do tempo.

Voltando ao mês, na Europa, é em junho que acontece o solstício de verão, quando, no dia 22, o hesmisfério norte está mais voltado para o Sol, de maneira que recebe mais luz, marcando, assim, o início do verão nesse hemisfério. Mes-mo por isso, o mês de junho era a época do ano em que diferentes povos antigos (celtas, bascos, egípcios, persas, sumérios, etc.) promoviam ritu-ais propiciatórios de fertilidade para estimular o crescimento da vegetação, a fartura das colheitas e a benção das chuvas.

Sob a perspectiva de uma cultura ainda essencial-mente agrária, pode-se dizer, pois, que junho é o mês a assinalar simbolicamente a potencialidade plena da vida, assim como o binômio Iuno-iuuenis assinala “aquilo ou aquele que está na força da vida” e — assim, talvez — resgatar a significação itálica original da deusa romana, e desvestí-la do seu quase exclusivo e ridículo atributo de “esposa ciumenta de Júpiter”, advindo do sincretismo cultural entre as divindades latinas e as helênicas (Zeus-Hera).

Hoje em dia, junho é marcado principalmente pelas festas juninas, em homenagem a São João Batista (dia 24), mas também a Santo Antônio (dia 13), a São Pedro (29) e a São Marçal (30). E ainda, mais em função de um fator monetá-rio e comercial e absolutamente não religioso, comemora-se, coladinho ao dia de Santo Antônio, folcloricamente conhecido como o “Santo Casa-menteiro”, o dia dos namorados (12).

Capelinha de melãoÉ de São JoãoÉ de cravo, é de rosaÉ de manjericão … Feliz junho a todos!

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Encontrei o belo,Iluminado num corpo de mulherVinha ele,Com palavras que eram calmantes,E o corpo luz profana,Exalando idéias,Almejando ser o que não era.

Edson Santana

Um pedaço de corpo estendidocercado de medo por todos os lados.as águas dos meus sonhos são profundas,já não tenho pernas, e o fôlego me foi tomado.

Olho pro céusorrindoe peço asas que substituam meus braços partidos.

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O site do Instituto Camões traz o que há de mais novo e mais antigo no mundo dos falantes da lín-gua portuguesa. Ali se encontram notícias, datas de exposições e atividades culturais, além de concursos, bolsas e cursos que o Instituto oferece.

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No site dos poetas “Os Sete Novos”, o leitor pode conhecer um pouco melhor esse curioso grupo de poetas e artistas. Augusto de Guimaraens, Domingos Guimaraens e Mariano Marovatto mostram um pouco de sua poesia, seus clipes e fotos, além de um link para o blog dos Sete Novos com os textos mais recentes do trio.

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A VELA PERFUMADA

Olhava para mim. Parecia entender o que se passava comigo e pedia-me para que a tirasse do lugar e a transportasse para qualquer outro, com ca-ra de desespero, amarela, porque há muito tempo já sentira a indiferença, o descaso da vida e que sozinha não sobreviveria. Queria morrer! Era o início do desfecho de uma vida. Em poucas horas, em que o mundo nada sabia de sua existência e em que apenas o perfume alastrava-se nele como uma dissipação de algo profundo, se dava o fi m. Deveria fl amejar, então, a pequenina chama e que, esvaindo, cresceria e choraria lágrimas densas e porosas, chegaria à sua fi nitude; um destino antevisto e incontrolável. Queria mesmo era morrer! Sentia-se útil ao morrer sobre um belo tapete vermelho bordado, com fl ores vermelhas e laços ainda mais vermelhos e folhas verdes, com um fi no fi o dourado ao lado do rústico ainda verde vaso árabe, que a assistia, envolvendo um majestoso antúrio branco onde as cores dissimulavam um belo quadro, sem nada entender. Lágrimas pesadas espessas e esbranquiçadas grudam no tapete, deixando a marca última e defi nitiva de sua existência fl ébil. Frágil, com a potente chama incandescente e forte, impregna nas paredes do castelo o seu calor fi nal e fi nito; atribui à sua fantasia de brilho e de luz, espetáculo de um pôr do sol, através das portas e janelas do pequeno palácio, claustrofóbica, em metros quadrados e, entre cultura e sabedoria, apinhadas em, ainda, centímetros milimétricos quadrados junto aos guardas, Quixote, cavalheiros, trabalhadores, mendi-gos e pajés que a admiram e prostram-se, certamente ofuscados, diante de tanta beleza instantânea da luz, aos girassóis da Rússia.

Duas horas se passaram. O processo da agonia é antiantagônico. Três cen-tímetros e meio de matéria e cento e vinte minutos de pura incandescência iniciam o processo de morte; e o príncipe, cego, insiste em viver na escuridão duplamente. Sente, por segundos, um diferente e delicioso aroma no ar, sem se dar conta de que a chama defi nha e agoniza a vela, num processo lento da perda do brilho da sua luz que, lentamente, o seu último pôr do sol ainda mais vermelho, esbranquiçadas e frias e sem perfume jaz no rez-de-chaussée, como nuvens, pairando, sobre o oceano num fi m de dia.

O castelo está às escuras. O príncipe tateia emaranhado pela vida e o momento se fez imperceptível! A ruptura da inércia fez-se obediência, tes-temunho e introspecção.

Edite Dias dos Santos

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Deitar com Luiza Neto Jorge, como seria? Seria gas-to? Dispêndio? Frio na espinha? Seria vertigem de cair? Como seria cair na cama com Luiza Neto Jor-ge? Cair de boca na poesia? Deitar com Luiza numa caminha, leitura pânica, pouca farinha? Aprenderia a vertigem de cair? O poema me ensinaria?

Como seria deitar e dormir com Luiza Neto Jorge? Seria provar nosso eco, nós duas, águas impuras irrompendo noutra língua? Ato de cair como nos poemas de Luiza tudo descamba, descai, desmoro-na? Verbo, língua, em que impera o declive... Deitar com Luiza como cai o som, como o pingo cai, como da sombra cai a sombra, o assombro? Seria provar da palavra o peso, a textura, a densidade? Deixar o vocábulo solto na força de sua própria gravidade e daí como seria? Deitar e dormir com Luiza, provar desta arma antiaérea artesanal, a palavra estranha, familiar, rodopio sobre si mesma, giro próprio, espetacular?

Seria deitar minha pouca boca nesta língua ou-tra, língua rolada, legendada, seixos estrangeiros, rolling stones? Como seria deitar com Luiza, essa prima, essa portuguesinha? Atravessar um oceano lingüístico, atravessar a língua da mãe, a deslíngua do português, minha língua na língua de Luiza, como seria? Qual sotaque? Qual arritmia?

Deitar com Luiza como subir pelas paredes, osga invertebrada, cauda de serpente, língua que toca o palato, aversão, nojo, bicho repelente, poema que se contorce sobre a areia quente? Como seria provar destes nomes, destes verbos, desta contracorrente? Deitar com Luiza Neto Jorge, cosida à garganta dela, pronunciar, coagular a palavra, palavra intensa, em suspensão, arco histérico, descolada da página, profanação: coágulo de pássaros, coágulo de luz, coágulo de leite, coágulo de sangue, coágulos nos dedos, coágulo nos ossos, coágulo dos sentidos, coágulo da dor, baba quente, substância viva, ma-téria encarnada, cicatriz aguda, página que agora re-escrevo, página inscrita no meu próprio corpo, garfo niquelado, tridente? Como seria desafiar meu sotaque, meu jeito? Provar da minha parente?

Deitar com Luiza, passar uma Noite Invertebrada, descobrir os Dezanove Recantos. Poderia? E de-pois? A Terra (ficaria pra sempre) Imóvel, pasma, assustada, com nossos corpos embolados na Quarta Dimensão...? Como haveria de ser, como seria? Nós duas, nós desatados, “eros frenético” como de

Luiza, o Jorge , outro poeta, diria? Um corpo [...] assim movido e assinalado às avessas, é um corpo em estado de alarme...

Deitar com Luiza que ritmo teria? A música brava dos dela poemas, imagens surrealistas, o verbo desengatado, casas, casas, casas, asas, asas, fuma-ça? Como seria? Um duelo agudíssimo entre duas fêmeas? Como seria? Feminino que inscreve, escreve, Jesus me carregue e o diabo releve, em bolhas de ar, respiração difícil, verso que pende, imprensa, subleva? Deitar com Luiza e sentir, a cabeça muito pesada e o pescoço finíssimo, flor da metáfora sobre haste delicada... ?

Reescrever no corpo dela a mini-biografia, revisitá-la em filmes, traduções, como seria?

Seria o respirar difícil da sua asma, sua alma, sua pouca saúde? Deitar com ela numa tenda de oxigê-nio, irrespirável moradia? Deitar com Luiza e ter um filho com ela? Teria nome de rei, dinastia dos Dinis, seria príncipe, navegador, bicha, poeta, bailarino? E depois, como seria?

Com Luiza Neto Jorge aprenderia o amor a qualquer preço? Repetiria tudo? The same old shit’, discurso abismado do suicida no lago? Toda tralha acumu-lada no rio caudaloso da poesia? Ferida narcísica doendo, remoendo: eu e ela, cara dupla no espelho? Pagaria o alto custo do amor desonesto (feito) de marés ambulantes, amor barato, baratinho fumado, amor fraco, fósforo riscado, fútil, frívolo, descartá-vel, amor teatro, delivery, usou, jogou fora, bruma lírica, gloss, gel, glitter, adereço, brinco na orelha, pingente... ? (Não esqueço)... Deitaria, com Luiza? Repetiria a ralação amorosa, abandono, asfixia, sofrimento, luto e melancolia; trabalho analítico, overdose de porcaria? Com Luiza iria até o fim deste endereço: caixa postal violada, dor de corno, ameaças, chantagem histérica? (Estremeço...)

Ou seria com Luiza difícil poema de amor? Fendas no ar que respiro, magma, pó entornado, odor de pedra, maresia, ventos e pânico na baía? De que jeito deitaria com Luiza? Faria do amor punhal entre os olhos? Quem de nós gritaria primeiro: “Eu te amo... Não, não te amo mais... Desejo-te...Não te desejo mais”? Deitaria com Luiza na cama exígua do amor difícil, do difícil do amor, celebraríamos um secreto pacto, um pacto do amor eterno, pacto de vida e morte, pacto sagrado, luz cega, favo in-tumescido, tenebrosa fruta? Suicídio?

Ou deitar com Luiza, motor íntimo, seria aprender o ódio? Desejo febril de acabar logo com a coisa, diálogo tenso? Com ela experimentaria ser assassi-nada em pleno verão? Numa tarde fria? Assassinaria o amor? E depois como seria? Sairia tonta e cega, deceparia cabeças, cometeria carnificina?

Deitar com um So-Neto Jorge, em sítios perdidos no tempo, em tresleituras históricas, sem desculpas, nem culpa, sem pretender dizer o “que quer que fosse”, deitaria, à noite, na noite das palavras, no escuro poema apontado contra o peito, e todo o sentido comum se esvairia? Seria deitar e escorrer na língua em cal viva de Luiza? Deitaria com Luiza para perder o chão político, perder o solo da his-tória, noutra história redivivo? Como seria isso? Com Luiza escorregar pelo monumento Camões, línguas bífidas, nós duas, lambendo-lhe o corpo em ciclópico acto, tempos superpostos, tempos feitos de qual tempo? Eu e Luiza a deitar no verso atem-poral? Nós duas, além de nós duas, a pique, à toda, eu-toda, ela-toda, nosso dente enfiado na língua do rei dos poetas? Como seria revisitar trepidantes, trêmulas as ruínas, os restos, a erosão dos espaços conquistados, do império assombroso, do rosto de quem se encobre, do sonho para sempre adiado? Visitaríamos o canto nove, ou nos proibiriam? Sopro de búzio, areia fina, falharíamos, sem saber nos perdoar? Perderíamos as guerras na África, granadas, minas, pernas arrancadas? Eu seria sua menina? Arrebentaria em feias feridas minha boca, meu sexo, meu reto? Chegaríamos ao fadado fim? Instrumentos desses danos? Provaria dela a pimen-ta ardente, a seca flor, a noz, o negro cravo, a rica canela? Trocaríamos com outras aquáticas donzelas, beijos lascivos em brando movimento? Subiríamos aos montes Idálios, usando nossas coisas para ser-mos somente amadas, desconcerto do mundo, desejo que queima e não consume?

Deitaria com Luiza em trânsito, trânsidas, num mar de acrílico, mergulharíamos juntas no osci-lante orgulho português feito de desejo, aventura, conquista e fracasso? Ricto agudíssimo, desafio, tropeço, trompaço, em costas africanas, chicote e sangue? Viríamos nós duas, heroínas incandescentes, indecentes, do outro lado do tempo, possuídas por outrens, matrizes ferradas, ventrílocas loucas, bocas abertas, ondas do mar que comeu a terra, comeu os filhos, comeu as naus, boca escancarada, frenesi convulsivo, pulsos abertos?

DEITAR COM LUIZA NETO JORGE por aNa CHIaRa

(a lei da gravidade da palavra: o coágulo; a tresleitura histórica; difícil poema de amor/amor difícil; a transubstancialização do verbo em corpo: encarnação)

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A literatura da concórdia

EDGARD TELLES RIBEIRO é diplomata e escritor. Publicou alguns livros de contos e os romances “O Criado-Mudo”, “Branco Como o Arco-Íris” e o seu último, “Um Livro em Fuga”. Em uma passagem pela PUC-Rio, no mês de Maio, o plástico bolha aproveitou para entrevistá-lo. Nesta conversa, Edgard fala sobre o lançamento do novo romance e sobre o que há de verdade por trás de suas histórias.

Sua obra trabalha muito com a infância e também com experiências sensoriais relativas à memória. Há aí alguma tentativa de reviver o passado?Não se trata de opção muito consciente, nem creio que boa parte de meus livros trafegue por essa via; mas não resta dúvida que o filão do passado, como seus ecos de lembranças e associações, acaba representando terreno fértil para a criação literária. Não chegaria a afirmar que se trata de “reviver” o passado; mas que tal sugerir que pode se tratar de “namorá-lo”?

Há, na sua obra, uma forte combinação de elementos narrativos e descritivos e, sempre, uma mistura de ações e sensações. Qual é o ponto de partida para as suas histórias?Varia muito, de romance para romance, de conto para conto. Por vezes, é algo que testemunhei, pelo menos em parte, e que depois adaptei ou redimensionei; em outros caso, leio algo (jornal, livro, ou revista) que me leva a imaginar um cenário paralelo (ao que vi) e daí parto em vereda própria. Por fim, por vezes ganho uma história de presente (o núcleo narrativo de meu primeiro romance, “O Criado-Mudo”). A questão de “ganhar uma história de presente” ocorreu comigo e deu origem ao Criado-Mudo, meu primeiro roman-ce, cujo núcleo básico (que fica esclarecido logo nas primeiras páginas do livro), me foi contado por uma senhora que gostava muito de mim e que sabia que eu, um dia, faria bom uso da história... (Levei 20 anos com a história na cabeça até começar a escrever um texto que pensava em dar para um cineasta filmar — texto esse que acabou crescendo, crescendo, crescendo — e se transformando no romance.).

Você está relançando agora seu livro de estréia, “O Criado-Mudo”. Algo mudou no Edgard daquela época para o Edgard de hoje? Passaram-se 18 anos e trinta quilos... Graças aos 18 anos, espero ter amadurecido; quanto aos quilos, re-chearam bons momentos literários (recorro muito a cenas de almoços e jantares em meus livros...).

Você declarou, em entrevista recente, que vivemos em um mundo onde não há mais clareza na distinção entre o bem e o mal. Diante disso, qual seria o papel do escritor hoje?Trabalhar essas fronteiras imprecisas, fazendo correla-ções que ajudem os leitores a enriquecer suas próprias visões do mundo. E viajar com eles pelo tempo, relem-brando momentos do passado que possam iluminar o futuro.

Você considera a diplomacia como porta de entrada para sua literatura ou a literatura como uma necessidade para sua atuação como diplomata? Em outras palavras, você acha que é um escritor-diplomata ou um diplomata-escritor?

Essas minhas duas carreiras evoluem de forma muito harmoniosa e se enriquecem mutuamente. Tenho muita sorte, graças à carreira diplomática, de ter acesso a outras culturas, outros mundos. Dessas encruzilhadas, nascem idéias e, por vezes, histórias. Por outro lado, depois que comecei a escrever (e a publicar...), passei a relativizar muitas das pressões que sofria em meu dia-a-dia como diplomata, um pouco como se o ato de escrever me proporcionasse um recuo de observador.

Você poderia comentar o seu novo romance, “Um Livro em Fuga”, em termos ficcionais e autobiográficos?Trata-se de uma obra sobre perdas, que se entrelaçam como em uma fuga bachiana, com seus temas e con-trapontos: a perda da mulher amada (por força de um casamento que se desfez), a perda das ilusões (face a um mundo globalizado e crescentemente imbecilizado), a perda de valores de todo tipo (entre eles intelectuais, particularmente no domínio da literatura). Mas essa espécie de costura de perdas acaba também se abrin-do para a esperança — mesmo porque o que seria do artista sem ela...?

O que você tem lido hoje em dia? Poderia deixar uma mensagem final para nossos leitores e os aspirantes a escritor? Ando relendo, muito mais do que lendo. Pode ser uma fase. Mas andei revisitando Flaubert, Camus e Borges, para ficar neste último ano. Tenho achado enorme graça em comparar minhas reações atuais (às obras primas desses escritores) às impressões de juventude dessas mesma obras. Conselho para quem quer escre-ver? Delicado, isso... Mas vá lá: não se preocupe em escrever uma OBRA. Faça uma frase. E depois outra. Encerrado o primeiro parágrafo, faça o segundo. Se houver tranquilidade nesse exercício, e se não surgirem autocobranças muito excessivas, é bem possível que o (eventual) prazer em escrever “passe” para o leitor.

Como seria deitar e, dormir com Luiza? Crime escuro? Quebrar os membros no verso que se parte? Quebrar os dentes na palavra? Ficar acor-dada e atenta? Perder o sono pra sempre? Olho aberto grudado à porta, porta estreita, porta que aporta, cão noturno, sexo desperto, grão e lume? Sexo facho, sexo fácil, sexo sexo sexo, sexo in-seguro, assobio, membros inertes, notas agudas, som estridente.

Para Luiza, flor exótica, abriria meu sexo, entre-gar-me-ia? Entregaria meu ouro, meu grão, minha alegria? Generosidade e escravatura, eu e ela, nós duas, mortas na cama, assim seria?

Deitar-me-ia, eu com Luiza, sobre tantos outros corpos, corpos que proliferam em outros corpos, demais corpos, corpos demais, saídos da sua boca aberta em pasmo, substâncias soltas, corpos den-sos, feitos de sonho e de morte? Como seria então? Como seria dormir com Luiza Neto Jorge, esfregar meu corpo no corpo dela aceso, corpo dolorido, carne ardida, corpo intenso, mais denso que o denso, corpo apodrecendo na doença, arco teso de espasmos, corpo de cheiros, salsugem, corpo insurrecto que se diz em estado de de-com-po-si-ção, sulco do universo? Corpo ímpio, Desinferno número II? Afinal, como seria deitar com Luiza Neto Jorge, sanguessugas sobre a pele, incêndio na minha cintura, na parte de baixo da barriga, no púbis, entre as pernas? Como seria deitar e dormir com Luiza, sobre ela? Seria roubo, con-tração, homenagem póstuma, repuxo na perna, consagração?

ENTREVISTA por PaULO GRaVINa

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Café com maçãs e cigarros

O homem de neanderthal degusta a carne de carneiro que capturou mais cedo no mercado bem refrigerado.

O homem de neanderthal cozinhou sozinho com diversas ervas o carneiro e deu para sua esposa um punhado para experimentar.

A esposa do homem de neanderthal usa botas de couro negro, batom vermelho, e prende suas enormes madeixas louras de uma maneira encantadora.

Pensamentos do próprio homem de neanderthal.

O homem de neanderthal se perde nos fios dourados cuidadosamente trançados por mãos imortais.

Marcela Sperandio Rosa

Tentativa de poeta

Riscava as primeiras rimasComo quem arriscava os primeiros passos.E rabiscando de leve, redondo e lentoCompunha, em pronto, de certo,

Versos tolos.

E regendo assim as palavrasLibertando-as de minha sã loucuraMinha escrita, hoje, é eterna procura:Nada de termos exatos ou

Versos inteiros.

Dentre caudalosos rios fonéticosEscolho em tantos somente poucos;Profanar temas herméticos, em meu dever de poeta;Na proeminência de meus

Versos ocos.

Meus desvarios lógicos, frenéticosEm minha tentativa de compor versos poéticos,Assemelho-me a crônicos, insanos, insensatos, léxicos. Tomado por inteiro de meus

Versos loucos.

Carla Guedes

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Reflexivo

Eu não tinha este rosto senão o esboçoo risco

Eu não tinha lábios nem barrigatodas as artes do meu corpo eram tuas e eu não sabia

Eu não viahavia óleos meu contorno escorria

até que entre teu olho reflexivobem-me-vi e não era tarde

Antonia Ratto