Palavra Perdida - Oya Baydar

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PALAVRA PERDIDA OYA BAYDAR Tradução Marco Syrayama de Pinto e Marina Mariz

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Palavra perdida é uma ode à palavra, à língua como meio de compreender o outro, como expressão e forma de unir a humanidade. É uma alusão às nossas crenças, a nossos ideais, a nossas esperanças de um mundo melhor. O enredo, que se desenrola através da vida e da tragédia de um jovem casal, faz alusão à língua curda, cujo uso é restringido a milhões de curdos que habitam o país. A autora demonstra como a perda ou a supressão da palavra representa uma das formas mais cruéis de violência que podem ser imputadas a um indivíduo ou a um povo. Ela fala ainda sobre as formas de violência que grassam no mundo atual, desde a dissecação de cobaias em laboratório, a imposições de nossos valores às crianças a assassinatos e guerras civis. Sua narrativa densa, montada em três planos de histórias e personagens, envolve e arrebata o leitor. Oya Baydar nos leva ao encontro de sua “palavra” e afinal descobrimos o talento desta que já é uma das maiores escritoras da Turquia atual, agora traduzida pela primeira vez para o português.

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PALAVRA PERDIDA

OYA BAYDAR

TraduçãoMarco Syrayama de Pinto

eMarina Mariz

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“Eu procurava uma palavra; ouvi uma voz...“Estava buscando a palavra. A palavra que usei aspera-

mente, que gastei extravagantemente, que assoprei em bolhasde sabão, que dilapidei. Aquela primeira frase com que começa-rei a história, para levá-la adiante e terminá-la. Aquela fraseque seria impossível escrever, que desapareceu na leveza dopensamento fluido, exatamente quando eu senti que a tinha de-preendido... A palavra perdida...

Mas ouvi uma voz. Esqueci a palavra e segui o grito.”O homem que brinca com as palavras, o acrobata da lín-

gua, o mago das palavras.Rótulos de elogios cheios de clichês que estão colados em

seu nome envolvem sua identidade... À pergunta feita somentepelos leitores admirados, bem-intencionados e um tanto ino-centes, pelos zelosos e ambiciosos jornalistas literários e peloscríticos que determinam o destino do que nós escrevemos: “Oque há de novidade no balcão, mestre?”, há sempre uma respos-ta indiferente e fria como gelo, misturada com um riso hipócri-ta: “Há algumas coisas que já estão caminhando, estão bemadiantadas e você verá em breve”.

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Porém há um grande vazio interior: “O improdutivo e hor-rível vazio dos espelhos sem reflexo que se encaram”.

Ficar cansado de lutar consigo mesmo dias e noites sem fimpara poder criar a tão grande e esperada obra através dessafrase polida e vazia que ele ouviu em algum lugar. Debater-se narede de relações chamada “amor” e que deixa para trás somentearrependimentos amargos. Os retornos que são fracassos empequena escala: voltar para casa tendo dentro de si um vazionegro e melancólico; voltar para sua mulher, que sempre estáali, sempre querida, sempre comedida, sempre distante; voltarpara seus antigos companheiros e para o ambiente da literatu-ra com o medo de não saber onde, em qual mundo encontrarnovas pessoas, evitando os sorrisos irônicos escondidos pordetrás das demonstrações elogiosas dizendo: “Nós sabemosquem você é”. Caminhos, países, cidades, hotéis, mares, portos,pessoas, tudo pelo viver. Com a sensação persistente de vazio eestupidez.

Ele estava atrás de uma palavra, a palavra que tinha perdi-do. Ouviu uma voz.

Uma voz que penetrou na opressiva escuridão da noite so-brepondo-se ao barulho da cidade; uma voz que bateu comoondas furiosas nas costas de sonhos e insônias atravessandotempo e espaço como um vento veloz.

“Será que eu a ouvi?”Você consegue ouvir o zumbido, o sussurro, a fala, a músi-

ca, o som e o silêncio da natureza, mas não é capaz de ouvir ogrito. O grito o encobre e o cerca; tornando-se o sexto sentidoque se soma aos cinco outros, ele penetra nas suas células. Édiferente do grito que sua mulher soltou quando deu à luz o seufilho, do último grito inumano do homem que foi esfaqueado aseu lado uma noite, do grito que uma mulher de burca pretasoltou ao mundo abrindo seu peito e rasgando a roupa – não se

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lembra em qual guerra, em qual luta nem onde –, abraçando seufilho morto. O grito sobrepuja a voz, a silencia. Não se consegueouvir o grito, ele o cerca, o arrasta, o puxa para si. O grito...

Os passageiros com cara, roupa e cheiro do povo dos ôni-bus da Anatólia que partem depois da meia-noite. A ordem fal-sa e sem gosto dos terminais de ônibus das cidades grandes, quepretendem imitar a elegância e o luxo dos aeroportos, sua con-fusa efervescência. Anúncios com uma voz relaxada com finaisdas palavras que se prolongam como um chiclete e com entona-ções erradas: “Atenção, prezados senhores, seu ônibus está pron-to para partir na plataforma dezessete!”. Os vendedores de ke-

bab, frutas secas, lanches, raspadinha, camelôs de livrosreligiosos, fitas cassete e CDs, as lojas de doces e de helva, ostoaletes cujos pisos sempre estão molhados, descargas quebra-das, pias entupidas, privadas que cheiram a urina. O frescordas noites de junho, a melancolia amarela que se espalha atra-vés das luzes pálidas, as salas de espera que ficam cada vezmais vazias, as plataformas cada vez mais silenciosas.

Faltava mais de meia hora para seu ônibus partir. Parapassar o tempo, ele estava olhando os passageiros que corriampara lá e para cá, as pessoas que vinham se despedir de seusentes queridos, as crianças pedintes vendendo lenços de papelou chicletes, vendedores de fitas cassete e de frutas secas e amultidão a seu redor. De repente, enquanto bebia seu drinqueno bar de um hotel que frequentava há tempos, bem antes de tervirado moda – para dizer a verdade ele tinha bebido mais doque devia –, sentiu que não podia aguentar essa cidade nem umdia mais e decidiu cancelar dois compromissos que tinha no diaseguinte e voltar de ônibus para Istambul naquela noite mesmo.

Estava comprando uma garrafa de água e um maço de ci-garros no Quiosque da Capital, que ficava na esquina de um dosportões que abriam para as plataformas, quando percebeu que

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estava repetindo como um refrão a frase: “O Quiosque da Capi-tal, o Quiosque da Capital”. Às vezes uma palavra, uma fraseou um verso ficava rodando na sua cabeça como um disco ris-cado; especialmente quando sua mente estava enevoada peloálcool. Foi quando compreendeu o sentido da palavra que esta-va repetindo – capital, a cidade-cabeça. “E onde estão as cida-des-pés? As cidades também têm cabeça e pés. Mas será que acabeça e os pés nunca mudarão? Devem mudar? Como mudam?Por que eu... por que uma vida inteira nós...? O que uma vidainteira? Ou melhor, ‘uma juventude inteira’...” O esforço todoera para transformar os pés em cabeça ou as cabeças em pés?“Será que posso fazer um texto com esta pergunta absurda dequarenta anos atrás?”

“As perguntas e incertezas que tivemos e repetimos como orefrão das nossas vidas sem sentido por tantas gerações, masnunca conseguimos respondê-las, resolvê-las! E especialmentea palavra ‘incerteza’ que usamos com ou sem necessidade todahora... Você deve usar palavras assim para que o consideremum intelectual. Mas não, não sairá nenhuma obra útil daqui.Não sai nada mais de mim. O que de bom saiu até agora? Sejasincero, pelo menos consigo. Não deveria ser tão cruel. Talveznão seja aquilo que pensam de mim, mas não sou ‘ninguém’tampouco. Droga! Minha mente está confusa, não está clara. Ointerior da minha cabeça está como ‘o improdutivo e horrívelvazio dos espelhos sem reflexo que se encaram’. Não devo bebertanto. Meu cérebro está ficando mole como uma esponja. Só queroque o ônibus chegue, que eu encontre o meu assento e durma.Em memória dos bons e velhos tempos quando éramos jovens einocentes, quando viajar de avião era algo impensável, já quenão cabia no nosso magro orçamento de estudante nem no esti-lo de vida de um revolucionário – uma passagem de avião valiao mesmo que um salário mínimo! Que vergonha! Como quero

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dormir profundamente encostando a minha cabeça no cheiran-do a suor.”

Se não tivesse notado a mulher do chapéu estranho que esta-va sentada num banco da plataforma 8 enquanto ele esperava otroco em frente ao Quiosque da Capital, não teria se dirigido paralá. O chapéu de cor clara e com abas largas atraiu a sua atençãomais uma vez enquanto colocava a garrafa de água num dosbolsos externos da sua maleta. Deixou-se levar pela estranha for-ça de atração dos objetos e caminhou na direção da plataforma 8.

A mulher é baixa, gordinha e velha. Deve ter mais de 70anos de idade. Ela está usando calças velhas de cor clara quedescem até abaixo dos joelhos. Chamam-se bermudas? Na suacabeça, um chapéu velho de palha com abas largas e uma fitaverde, em suas mãos, luvas brancas. Deve ser uma professoraaposentada que decidiu morar em Bodrum ou a mulher de umburocrata que passa metade do ano em estâncias balneárias.Ela lembra um pouco sua mãe. Elas pintam tecidos, fazem bati-que e tentam desenhar nas horas em que não estão jogando car-tas. Elas também mostram interesse pela arte e pela literatura.A maioria delas são mulheres insuportáveis com atitude elitis-ta, sabichonas e com jeitinho de professora. São mulheres queacreditam no absoluto das suas verdades, começam a falar coma frase “Nós somos filhas da geração republicana”; quando veemuma mulher coberta, viram um touro enraivecido, se entriste-cem e dizem: “Nem o Atatürk1 conseguiu educar esse povo!”,pronunciando a palavra “povo” de forma pedante. “Talvez es-teja sendo injusto com a pobre mulher por tê-la comparadocom minha mãe em razão da discordância entre nós, e meu paie aquele grupo elitista que adora ser o dono da verdade.”

1 Atatürk foi o primeiro presidente da Turquia republicana. (N. T.)

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A mulher velha fala sem parar. Ele olha ao seu redor paraver com quem ela está falando, mas não vê ninguém.

– Não é verdade, meu senhor?Ela pergunta isso com um sotaque de estrangeira e entona-

ção estranha, mas com bastante gentileza.“Será que ela me reconheceu? Só pode ser isso. Até deve ter

participado da minha noite de autógrafos. Só Deus sabe.” O sen-timento de satisfação e orgulho de si lambe docemente a suaalma. A satisfação que vem da fama, o prazer que surge da con-sideração. Portanto, ele faz o papel do cara que não dá impor-tância à fama, que superou essas coisas vãs e está satisfeito comos elogios e um pouco cansado de tudo. Ele não responde à per-gunta, faz que não a ouviu, nem quer falar com ninguém. Sóquer que o ônibus chegue para poder dormir. Ele se lembra dosdias em que fazia a via-sacra entre Istambul e Ancara nos ôni-bus noturnos baratos, não só pelo amor, mas também pela re-volução. Eram os dias de juventude, dias de inexperiência e ino-cência, eram dias maravilhosos.

A mulher não vai desistir até conseguir uma resposta. Elefica com raiva de si mesmo. “Fui muito imbecil de vir até aqui sópor causa de um chapéu ridículo. Eu me sinto obrigado a pare-cer interessado em objetos desde que aquele crítico jovem quegosta de dizer palavras importantes falou: ‘Ele é um escritor queconsegue sentir a magia dos objetos e colocá-la em palavras’. Éum chapéu afinal, é o chapéu de uma mulher brega!...” Ele lutaconsigo: “Por que vim para cá, por que procurei encrenca?”.

– O senhor também estava lá. Estávamos em Varsóvia. Não,acho que estávamos em Budapeste. A criança estava do meulado quando embarcamos no navio. Eu não quis deixar a cidade,eles me forçaram. Eu lhe digo que a criança estava do meu lado.O senhor a viu. Diga-lhes que a viu. Eles vão acreditar no senhor.

“Será que devo responder?” A sua mente está confusa, seus

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pensamentos são inconsistentes. Quando ele bebe sozinho, per-de o controle. Na verdade tem tantos amigos antigos e novosnesta cidade que se quisesse poderia ligar para um deles parabeberem juntos. Qualquer um dos seus amigos novos ficariafascinado por aparecer em algum lugar com o escritor ÖmerEren. Os antigos... não se pode saber sua reação, talvez já o te-nham eliminado da lista, “ou talvez fiquem muito felizes quan-do eu ligar”. Porém não tem como saber... “Tenho muitos conhe-cidos, mas sobraram poucos amigos verdadeiros. Eu literalmenteenterrei muitos deles. Não no sentido figurado, mas de verdade,enterrei muitos deles, os melhores.”

A voz da mulher estranha interrompe seus pensamentos:– Talvez não acreditem nem no senhor, mas deve falar as-

sim mesmo.É óbvio que a mulher é maluca. Ele puxa pela memória:

quem foram os deportados da Hungria pelo Danúbio em 1956?Eu ouvi essa história no passado. Que droga! Não me lembro denada. Minha memória está mais fraca a cada dia que passa. Nãodevo beber tanto, devo escutar as palavras da minha mulher,não devo exagerar na medida. Elif nunca exagera na medida.Medida? De quê? Medida de quem? As medidas da Elif? Por quê?

– Somente diga-lhes o que viu – repete a mulher, imploran-do. – Diga, meu senhor.

“Dizer o que eu vi? Eu vi alguma coisa? Será que tinha visto?Teria dito o que tinha visto? Será que diria se tivesse visto?”

Ele fica calado. Tem de fugir dali, se livrar dessa mulher.– “A criança virá depois” – eles disseram. – Esperei por anos,

ela não veio. Como pode uma criança do tamanho de um dedoatravessar aquele caminho! Quando o muro foi demolido, a noi-va húngara guardou todos os documentos e os candelabros deprata. Não, talvez os candelabros tenham ficado em Peste. Nãose deve falar pelas costas. Não é verdade, meu senhor?

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Ela levanta do seu lugar e anda na direção de Ömer. Ele querfugir, a mulher o puxa pelo braço. Ele se solta.

– Eu não estava lá. Não sei, eu não sei de nada – diz ele,enquanto tenta fugir, andando de lado como um siri.

– Todo mundo diz “eu não estava lá”, “não sei”. Então quemeram aqueles que estavam lá? Quem os conhece, quem se lembradeles? Quem era aquele que retirou a criança do navio? Pode sera noiva. Ela começou a trabalhar para eles quando meu filho foieliminado por ser traidor. É possível que tenha sido ela quemguardou os candelabros de prata. Eu não quis sair do leste. Eu iaesperar lá, eu não ia deixar a criança. Ela poderia me encontrarlá, poderia. Ela não conhece este lugar, não consegue encontrarninguém aqui.

A mulher volta para seu lugar resmungando. Ele nem con-segue ouvir nem entender mais o que ela está dizendo. Sente-sealiviado por ter se livrado daquela louca. Ele anda devagarzi-nho na direção da outra plataforma para que ela não perceba evenha atrás dele. “O filho eliminado, a criança perdida, o rio, anoiva húngara, os candelabros, os outros, o leste, o muro... Aspalavras que voam no ar e o furacão do século as leva para juntodas pessoas. O que tudo isso tem a ver com essa mulher gordi-nha e comum? E por que não teria? Ninguém carrega as suasexperiências no corpo, nas roupas nem no rosto. As pessoas ascarregam no coração, na consciência e na loucura.”

As palavras da mulher estranha se perdem em meio aosgritos, aos slogans, aos refrões de hinos conhecidos e ao barulhoque ele não sabe de onde vem.

Ele olha na direção do barulho. Um ônibus, cujos vidrosestão decorados com bandeiras vermelhas com lua e estrela depapel e com uma grande bandeira na frente e uma longa faixa dolado com a frase “O melhor soldado é o nosso soldado”, se apro-xima da plataforma 3. Trinta ou quarenta garotos estão mar-

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chando para o ônibus carregando nos ombros outros garotosjovens como eles; com penugens de bigodes, bochechas rosadasde tanto entusiasmo, fazendo o símbolo do grupo Lobo Cinzentocom a mão, seus rostos sérios parecendo mais contraídos sob apálida luz amarela e com olhos extasiados com a mágica da pró-pria voz. É uma das cerimônias tradicionais e usuais de despedi-da dos jovens que vão para o exército. Tudo tem a maldita nor-malidade da rotina do dia a dia. Tudo está num círculo assustadorde impotência e absurdo que magoa cada vez um pouco mais.

“Um terminal de ônibus à noite – antigamente se chamavagaragem de ônibus –; através do rio Danúbio, de barco, quemsabe por que e onde, uma mulher que fugiu e sempre está fugin-do –, será que era a Segunda Guerra Mundial ou a resistênciahúngara? – E a criança? Será que ela realmente existiu? Aqui háoutras crianças gritando ‘Ame-o ou deixe-o’, ‘Morte ao separa-tista’, ‘A bandeira não descerá, a pátria não será dividida’, ‘Omelhor soldado é o nosso soldado’, crianças que rasgam suasgargantas à noite. Elas são crianças de outro lugar, de outrotempo, de outra causa. São as crianças que sempre têm o mesmopapel – de figurantes – em todas as tragédias representadas emtodos os palcos do mundo...

“Por que estou aqui? Estou cansado, exausto, e também bê-bado; além disso, perdi a palavra, perdi a habilidade de escre-ver. Não gosto de mim, estou zangado comigo. A ideia de viajarpara Istambul de ônibus não é mais atraente.” É demais tantopara seu corpo que acusa seus 50 anos quanto para sua almacansada. É uma decisão tomada no estado de embriaguez, numanoite horrível bebendo sozinho. “Será que volto para o hotel edurmo?... Amanhã posso ir para Istambul confortavelmente noprimeiro voo que encontrar. Nem precisa ser o primeiro, nãotenho nada urgente mesmo. O que me espera em Istambul alémde Elif? Aliás, ela deve estar ocupada com suas experiências,

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seus alunos, os artigos que escreve para revistas estrangeiras.Esperar é o que as pessoas desocupadas fazem. Elif sempre temmais trabalho do que consegue fazer.”

Não, ele não ouviu o estampido. E, se ouviu, não percebeu.Mas o grito teve a violência de uma deflagração e bateu no seupeito com toda força. Um grito nu e sem nome, sem assunto, semidentidade desceu pelos morros de Çankaya, pelos vinhedos deSeyran, pela Cidadela, pelas ladeiras da cidade. Ele cobriu os bair-ros altos vestidos com a arrogância do governo e da capital, ruasmornas de funcionários públicos de terno e gravata, os barracosque adornam os morros junto com álamos, oleastros e pereiras,as favelas que se aproximam da cidade com passos firmes e silen-ciosos, as ruas com subidas que vão para a Cidadela, as avenidas,as ruas, os pontos de ônibus, as estações de trem e o terminal deônibus. Ele se espalhou pela cidade, acertou o coração de quemestá na sua frente e ecoou. Chegou até a mulher estranha e a Ömer.

Ele foi atraído pelo turbilhão da voz. Por quanto tempogirou naquele redemoinho? Como conseguiu sair? Mas conse-guiu sair mesmo? A mulher chegou bem pertinho dele. Ou foi eleque se aproximou da mulher? Ele ouviu a mulher murmurar“Eles mataram a criança”. E, dentro da sua cabeça, o grito setornou voz, a voz se transformou em palavra, a palavra se tor-nou sentido: A criança! Eles mataram a criança!

Entre as plataformas 2 e 3, no meio do silêncio de morte quede repente se instalou no terminal, uma mulher está no chão. Osangue que escorre lentamente entre suas pernas está deixandomanchas circulares cada vez maiores na sua saia longa de cali-cô. Ela é muito jovem, quase uma criança. Seu rosto iluminadopor luzes sombrias está branco-azulado. Ela está bonita demaispara ser verdade no meio desse pesadelo que acontece agora. Elatenta sorrir enquanto vira sua cabeça para o garoto moreno aseu lado, que está de joelhos. Depois o seu rosto inteiro se contrai

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de dor, seus lábios se mexem, parece querer falar algo, e talvezaté fale. O garoto coloca suavemente a mão debaixo da cabeçadela. Ele pega seu lenço bordado, o passa pelo pescoço dela eenrola os cabelos trigueiros no próprio dedo. Ele acaricia a bar-riga da menina sem parar e, inclinando-se bem perto do seurosto, sussurra algo, palavras de amor...

O silêncio absoluto que para o tempo, o momento de sur-presa e indecisão vivido noutra dimensão deve ter durado mui-to pouco. Dois dos garotos que até a pouco faziam barulho gri-tando slogans e acenando bandeiras turcas junto com bandeirascom vários crescentes estão fugindo e ninguém vai atrás deles.Os passageiros noturnos do terminal, aqueles que vão para oexército e aqueles que se despedem dele, como na última cena deum balé trágico, aproximam-se devagarzinho e formam círcu-los conforme o ritmo do silêncio. Depois uma explosão de vozes,gritos, frases incompletas, perguntas, xingamentos, impreca-ções, lamentações... O jovem que está de joelhos ao lado da víti-ma, sussurra como se tivesse consumido todas as suas forçascom o grito que soltou:

– Vocês atiraram nela, vocês mataram a criança! Vocêsmataram a criança!

Essas palavras ecoam longamente: “Vocês mataram a crian-ça, mataram! We zarok kust! We zarok kust!2”.

Depois, pessoas correndo para lá e para cá... Vozes gritando“Alguém foi baleado, ajudem!” Vozes pedindo socorro. O zum-bido que pulsa na cabeça: “Não tem ambulância? Não tem mé-dico?”. Homens correndo com uma maca, bandeiras de papelespalhadas pelo chão, seguranças perplexos... Uma voz levantano meio da multidão agitada: “Mártires não morrem, a pátria

2 “Vocês mataram a criança”, em curdo. (N. T.)

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não se divide”. “Irmãos” tentando pegar os que fogem. Procu-rando, após a algazarra, seguir com a rotina como se nada tives-se acontecido. Um assassinato infame em nome de uma causadesconhecida. A inocência infantil do assassino anônimo. O de-sespero nos olhos e a dor congelada no rosto do garoto grudadona maca onde a menina que fora atingida com uma bala perdidaestá sendo carregada. E as palavras gélidas da mulher velha quenão se desgrudam dele, insensível ao que está acontecendo:

– Eles me forçaram, mas eu não colaborei. Eu sabia quemtinha matado a criança, mas não falei. Fingi acreditar que elanão tinha morrido. E não foi a noiva húngara quem escondeu oscandelabros. Confesso... Eu vi quem matou a criança e quemroubou os candelabros: foi um de nós.

Ele pega a mulher pelos ombros e a sacode de raiva, deses-pero e espanto.

– Que criança, qual criança, sua mulher louca?! Quem vocêviu?

– Tire suas mãos de mim! Aqueles que atiram são sempreos mesmos, assim como aqueles que são baleados. Eu não faleientão, eu não dedurei ninguém. A criança é sempre a mesma, amesma criança. Você atirou nela, eu vi!

Ele empurra a mulher-fantasma rudemente e corre atrásdaqueles que se distanciam com a maca.

Ouve a mulher gritando atrás dele:– Aonde estão indo esses barcos? Diga-me se souber. Onde

eu deveria ter descido, em qual porto? Eu não direi a ninguémque foi o senhor que atirou na criança. Para onde corre este rio?

Um pano sujo está jogado em cima da ferida, os olhos delaestão fechados, seu rosto e corpo estão se contraindo e tremendoao mesmo tempo. A moça ferida geme sem parar como um gati-nho doente. Os gemidos se transformam em soluços profundosde vez em quando. Ömer põe sua mão nas costas do garoto que

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está tentando segurar uma ponta da maca e diz: “Eu sou médico”.Não há sentido em ser honesto e dizer ‘‘sou escritor’’. Quem ligapara um escritor? Nesse momento, o que importa é um médico.

Eles colocam a maca no chão. Ele põe a mão na testa dagarota: está fria como gelo. Para parecer um médico, tenta sen-tir o pulso dela. Ela geme, fazendo com que ele se assuste e parede contar o pulso. De longe se ouve a sirene da ambulância. Ovigia vem junto com o chefe da segurança.

– Você viu o que aconteceu?– Sim, vi, não sei quem atirou, mas deve ser alguém desse

grupo que se despedia dos soldados. Dois homens fugiram. Eusou testemunha.

Verificação da sua identidade, seu endereço... “Sim, ama-nhã passarei na delegacia.”

O rosto do garoto está pálido. Parece que não restou nenhu-ma gota de sangue no seu corpo. Ele tem dificuldade para acharsua identidade. Por um momento, Ömer fica com medo de o ga-roto estar sem identidade e ser levado, criando confusão para ele.“Se precisar eu entro no meio. Conto quem eu sou e salvo o garo-to.” Ele observa que algumas lágrimas escorrem pelas bochechase desaparecem entre os fios da barba de vários dias do garoto.

– Ela vai se salvar – ele diz. – Ela vai se salvar, não se preocupe.Eles tentam fazer um Boletim de Ocorrência na mesma hora.

A menina ferida sangra mais e mais.– A criança era a nossa vida – repete sem parar o garoto. O

resto não lhe importa.Naquele momento, Ömer percebe que a garota ferida está

grávida.– Fique calmo, vamos ver, talvez a criança também se salve.Ele se lembra do sangue escorrendo entre as pernas da moça

e se espalhando pela saia e pelo chão de concreto da plataforma.Nem ele acredita no que fala.