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Enviado por camilassouza, junho 2012 | 207 Páginas (51698 Palavras) | 8 Consultas| | |

O Que é Justiça

O que é Justiça

A JUSTIÇA, O DIREITO E A POLÍTICA NO ESPELHO A CIÊNCIA

HANS KELSEN

Resumo elaborado em Junho/2010

I. O QUE É JUSTIÇA? 2

II. A IDÉIA DE JUSTIÇA NAS SAGRADAS ESCRITURAS 11

III. A JUSTIÇA PLATÔNICA 20

IV. A DOUTRINA DA JUSTIÇA DE ARISTÓTELES 26

V. A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL PERANTE O TRIBUNAL DA CIÊNCIA

30

VI. UMA TEORIA “DINÂMICA” DO DIREITO NATURAL 36

VII. JUÍZOS DE VALOR NA CIÊNCIA DO DIREITO 43

VIII. O DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL ESPECÍFICA 47

IX. POR QUE A LEI DEVE SER OBEDECIDA? 51

X. A TEORIA PURA DO DIREITO E A JURISPRUDÊNCIA ANALÍTICA 54

XI. DIREITO, ESTADO E JUSTIÇA NA TEORIA PURA DO DIREITO 59

XII. CAUSALIDADE E RETRIBUIÇÃO 62

XIII. CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO 65

XIV. CIÊNCIA E POLÍTICA 68

O QUE É JUSTIÇA? A JUSTIÇA, O DIREITO E A POLÍTICA NO ESPELHO A

647 Páginas agosto de 2012

129 Páginas novembro de 2012

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CIÊNCIA

Hans Kelsen

I. O QUE É JUSTIÇA?

O autor introduz o ensaio com Jesus de Nazaré, durante o seu

julgamento, que perante um pretor romano admite ser rei e diz “vim ao

mundo para dar testemunho da verdade”; Ao que Pilatos perguntou: “O

Que é verdade?” Jesus não responde, pois dar testemunho da verdade

não era a sua missão de rei messiânico, pois nascera para dar

testemunho de justiça, justiça aquela que Ele desejava concretizar no

reino de Deus, e por ela morrer na cruz.

Assim, do questionamento de Pilatos emergia uma outra questão – O

que é justiça? Essa questão, de Platão a Kant, foi discutida com a paixão

que nenhuma outra suscitou, muito embora continue até hoje sem

resposta. Assim, o resignado sabe que o homem nunca encontrará uma

resposta definitiva, apenas deverá saber perguntar melhor o que ela

signifique.

A JUSTIÇA COMO UM PROBLEMA DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DE

INTERESSES OU DE VALORES

1. A justiça é, inicialmente, uma característica possível, mas não

necessária à ordem social. É virtude do homem e encontra-se em

segundo plano. O homem é justo quando seu comportamento

corresponde a uma ordem dada como justa. Mas o que é uma ordem

justa? É a ordem que regula o comportamento dos homens e contenta

a todos, de modo a encontrarem a felicidade. O eterno anseio por

justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. Justiça é a felicidade

social. Platão identifica justiça e felicidade: o justo é feliz e o injusto,

infeliz. Se a justiça é felicidade, o que é felicidade?

2. Ao se entender felicidade como o sentimento subjetivo que cada um

compreende para si mesmo, é impossível se falar em ordem social justa,

pois jamais se proporcionará felicidade a todos, sendo inevitável que a

felicidade de um pode entrar em conflito com a felicidade do outro.

Exemplos: 2 (dois) homens amam uma mesma mulher e ambos

acreditam que o seu amor é a sua fonte de felicidade. Como ela

somente pode pertencer a um deles, a felicidade de um culminará na

infelicidade do outro. Sob esse prisma, jamais haverá ordem social que

possa solucionar um problema de forma justa, ou seja, da maneira que

todos os homens possam ser igualmente felizes.

A sentença salomônica, do sábio rei Salomão, que mandou dividir uma

criança ao meio para entregar cada metade à uma das mães que a

reivindicava, para realmente entregá-la à mãe que abdicasse do seu

direito (comprovando, assim, verdadeiramente amá-la, segundo o rei) é

justa somente se uma das mulheres amar a criança. Se ambas as

mulheres a amarem, e por isso abdicarem do seu direito, o litígio

permanecerá pendente, e ainda que a criança seja adjudicada por uma

das partes, a decisão não será justa, pois uma das partes sairá infeliz.

Da mesma forma, a escolha de um dentre dois homens de igual

capacidade para comandar um exército, tendo sido escolhido o mais

165 Páginas março de 2013

111 Páginas maio de 2013

126 Páginas julho de 2013

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A Just iça Penal Militar E A Lei 9299/96:

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capacidade para comandar um exército, tendo sido escolhido o mais

adequado o de boa aparência e que demonstra uma personalidade

forte, demonstra que não há ordem social que possa compensar

totalmente as injustiças da natureza.

3. Se justiça é felicidade, a ordem social é impossível, enquanto justiça

significar felicidade individual. A ordem social justa é impossível ainda

que procure proporcionar, ao menos, a maior felicidade do maior

número de pessoas possível. (definição de justiça de Jeremy Bentham).

Essa formulação não se aplica se o conceito de felicidade for subjetivo,

um valor subjetivo, com as diferentes concepções de cada indivíduo. A

felicidade capaz de ser garantida pela ordem social é a de sentido

objetivo-coletivo, jamais no sentido subjetivo-individual.

Dessa forma, por felicidade, somente poderemos entender a satisfação

de certas necessidades reconhecidas como tais pela autoridade social –

o legislador – como a necessidade de alimentação, vestuário, moradia e

equivalentes. Tem-se, pois, que a satisfação das necessidades

socialmente reconhecidas é algo diverso do sentido original da palavra

felicidade, que tem natureza altamente subjetiva.

4. O conceito de felicidade deverá sofrer, assim, uma radical

transformação de sentido para tornar-se uma categoria social: a

felicidade da justiça. Tal qual o conceito de liberdade, para se tornar um

princípio social; o conceito de liberdade é freqüentemente identificado

com o de justiça, na medida em que uma ordem social é considerada

justa se garantir a liberdade individual. A verdadeira liberdade (de

qualquer jugo, de qualquer tipo de governo) é incompatível com todo o

ordenamento social, sendo que o seu conceito não pode conservar o

significado negativo da existência livre de governo; deve, pois, aceitar

uma forma especial de governo: liberdade deve significar governo pela

maioria, se necessário contra a minoria.

Da mesma forma, o conceito de justiça transforma-se de princípio que

garante a felicidade individual de todos em ordem social que protege

determinados interesses, reconhecidos como dignos dessa proteção

pela maioria dos subordinados a essa ordem.

5. Mas quais os interesses humanos que têm esse valor e qual é a

hierarquia desses valores? É essa a questão que coloca quando surgem

conflitos de interesses. Somente onde há tais conflitos é que a justiça se

torna um problema, pois onde não há conflitos de interesses não há

necessidade de justiça. Um conflito de interesses somente se apresenta

quando um interesse só pode ser satisfeito a custa de outro, ou seja,

quando dois valores se contrapõem e não é possível a concretização de

ambos. Assim, deve-se decidir qual dos interesses é o maior, o mais

elevado. O problema de valores é, antes de tudo, o problema dos

conflitos de valores. Tal problema não é solucionado com meios do

conhecimento racional, mas é determinado por fatores emocionais e

possui, portanto, caráter subjetivo. Significa dizer que o juízo de valor só

é válido para o sujeito que julga, sendo portanto relativo.

HIERARQUIA DE VALORES

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HIERARQUIA DE VALORES

6. De acordo com determinada convicção ética, a vida humana é o valor

maior. Em decorrência dessa concepção, é absolutamente proibido

matar um ser humano. Tal concepção ética é contrária , mas igualmente

ética, à daqueles cuja convicção de que o interesse e a honra da nação

são um valor maior, tendo o indivíduo, por essa concepção, o dever

ético de sacrificar a sua própria vida e de matar o inimigo da nação.

Dessa forma, é pura e simplesmente impossível decidir de modo

racional-científico entre os dois juízos, que se fundam em concepções

contraditórias. Em última análise, é o sentimento e a vontade (não a

razão), que são elementos emocionais da atividade consciente que

solucionam o conflito.

7. Igual conflito também é sopesado quando se trata dos valores

liberdade e vida: o suicídio de um escravo ou prisioneiro capturado é

eticamente admissível? A depender de qual concepção ética a ser

adotada, o suicídio poderia ser eticamente válido, ou inválido. É a

questão da hierarquia dos valores vida e liberdade, sendo dela somente

possível extrair uma resposta subjetiva, válida somente para o sujeito

que julga (é juízo de valor). Não é uma constatação válida para todos,

como um juízo de realidade (ex: o fogo queima, os metais se expandem

no calor – são juízos de realidade).

8. Discorre-se de outro conflito de juízo de valores: é preferível que um

povo adote uma chamada economia de planejamento, onde se garanta

segurança econômica para todos na mesma proporção, em troca da

supressão da liberdade individual; ou é preferível a liberdade individual?

Aos que tenham muita autoconfiança, é preferível a liberdade individual,

e aos que sofram de complexo de inferioridade, melhor será a

segurança econômica. Mas qual desses valores é maior: a liberdade

individual ou a segurança? Trata-se novamente de juízo de valor, não

juízo de realidade, que pode ser verificado através da experimentação.

9. Há ainda o conflito de valor do médico que constata ser o paciente

portador de doença incurável que em pouco tempo o levará à morte:

deverá ele contar ao paciente ( valor do apego à verdade) ou mentir

para poupá-lo de sofrimento maior já que está no final de sua vida

(valor da compaixão)? Trata-se novamente de decidir de qual desses

valores é hierarquicamente superior para se saber se a decisão tomada

é ou não ética, que, mais uma vez, é impossível de se saber com base

em considerações racionais-científicas.

10. Platão defende a idéia de que é justo aquele que se comporta de

acordo com a lei, e injusto aquele que se comporta contrariamente à lei.

Somente o justo é feliz, e o injusto é infeliz. “A vida mais justa é mais

bem-aventurada” – disse Platão. Contudo, Platão admite a hipótese de

que, em um ou outro caso, o homem justo possa ser infeliz e o injusto,

feliz. Contudo, continua o filósofo, é absolutamente necessário que os

cidadãos subordinados ao ordenamento legal acreditem na verdade da

afirmação de que somente o justo é feliz, mesmo que tal afirmação não

seja verdadeira; do contrário, ninguém obedecerá às leis. Assim, todo

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seja verdadeira; do contrário, ninguém obedecerá às leis. Assim, todo

governo tem o direito de propagar a idéia de que o homem justo é feliz

e o injusto, infeliz, mesmo que isso seja uma mentira. Dessa forma, a

mentira é extremamente útil, pois garante a obediência às leis. Conclui-

se, pois, que Platão coloca o valor justiça (considerada como legalidade)

como superior ao valor verdade.

11. A resposta à pergunta sobre a hierarquia de valores – como vida e

liberdade; liberdade e igualdade; liberdade e segurança; verdade e

justiça; apego à verdade e compaixão; indivíduo e nação, será

necessariamente diversa, a depender da pessoa que se pergunta, à

verificar qual é o juízo de valor que adota. A resposta terá sempre o

caráter de um juízo de valor subjetivo e, portanto, relativo.

A JUSTIÇA COMO UM PROBLEMA DE JUSTIFICAÇÃO DO COMPORTAMENTO

HUMANO

12. O fato de juízos de valor legítimos serem subjetivos (o que possibilita

a existência de juízos de valor bem diversos), não significa que cada

indivíduo tenha seu próprio sistema de valores. Um sistema de valores

positivo não é uma criação arbitrária de um indivíduo isolado, mas

resultado de uma influência exercida por indivíduos uns sobre os

outros num determinado grupo (tribo, família, clã, casta, profissão) e

sob condições econômicas específicas. Todo sistema de valores,

especialmente uma ordem moral com sua idéia central de justiça, é um

fenômeno social e, conseqüentemente, distinto, conforme a natureza

da sociedade na qual teve origem.

O fato de tais valores serem aceitos por todos os membros de uma

sociedade é perfeitamente compatível com o caráter subjetivo e relativo

dos juízos que mantém esses valores. A unanimidade sobre um juízo de

valor existente entre muitos indivíduos não é absolutamente prova de

que esse juízo seja correto, isto é, objetivamente válido. Como exemplo,

o fato de a maioria dos homens ter acreditado na idade media que o sol

girava em torno da terra não é ou foi prova de que essa crença se

baseia na verdade.

O critério justiça, assim como o de verdade, não é de modo algum a

freqüência com que surgem os juízos de realidade ou de valor. Na

história humana, juízos de valor de aceitação geral foram

freqüentemente suplantados por outros, opostos àqueles em maior ou

menor escala, porém de aceitação igualmente geral. Por exemplo, na

sociedade primitiva considerava-se justa a responsabilização coletiva

(ou responsabilidade hereditária – pecado original) enquanto na

sociedade moderna, é o princípio oposto (responsabilidade individual).

13. Embora não se possa responder racionalmente qual seja o valor

maior, a resposta de uma indagação de qual juízo de valor é o mais

adequado constitui a afirmação de um valor objetivo, ou seja, de uma

norma de valor absoluto. A justificação ou racionalização é uma

singularidade do homem, em razão da sua consciência. É o que talvez

uma das características que o diferencie do animal. O comportamento

exterior do homem não se diferencia muito do comportamento dos

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animais: os peixes grandes devoram os pequenos; contudo, o “peixe

humano”, que assim age igualmente por instinto, procura justificar sua

conduta perante si próprio e a sociedade para aplacar a idéia de que o

seu comportamento para com o semelhante é bom.

14. Sendo o homem racional, procura justificar seu comportamento

racionalmente, através da função razão, mas impelido pelo seu desejo

ou pelo temor. Contudo, tal justificação racional é restrita, somente

podendo se relacionar com um determinado fim a ser atingido. A

relação entre meio e fim coincide com a de causa e efeito e pode,

portanto, ser comprovada com base na experimentação e,

conseqüentemente, de modo científico-racional. Isso pode ser, por

vezes, impossível, quando os meios para realizar determinado fim sejam

de natureza social, pois o estado atual da ciência ainda não permite

uma compreensão clara do nexo de causalidade entre os fenômenos

sociais , bem como não há experiência suficiente que habilite o homem

a afirmar de modo preciso quais os meios mais apropriados para a

realização de determinados fins sociais. Tal questão é vista quando o

legislador enfrenta o dilema de decidir se deve ameaçar o cometimento

de tal crime com pena de morte ou com prisão, para a sua repressão:

deveria conhecer o efeito causado pela ameaça das diversas penas

sobre os homens com tendências a cometer os crimes dos quais se

procura reprimir, o que atualmente é desconhecido. E é por isso que

nem sempre o problema da justiça nem sempre é solucionável de forma

racional. Assim, não se consegue fornecer uma justificação total para a

nossa consciência, pois por meios altamente adequados podem ser

atingidos fins altamente duvidosos. Os fins justificam (ou santificam) os

meios, mas os meios não justificam os fins. E é exatamente a justificação

do fim, daquele fim que não é mais meio para um fim mais alto, o fim

último ou maior, que se constitui a justificação definitiva de nosso

comportamento.

15. Quando um comportamento humano é justificável para

determinado fim, deve-se perguntar também se o fim é igualmente

justificável. Trata-se de se supor se um fim ultimo, um fim maior, que é o

problema efetivo da moral geral e da justiça em particular.

Se o comportamento é justificável somente como meio adequado para

um fim pressuposto, sua justificação também estará condicionada ao

fato de o fim pressuposto ser também justificável. A justificação assim

condicionada, portanto relativa nesse sentido, não exclui a possibilidade

do seu oposto; pois , não sendo justificável o fim último, também não é

meio para alcançá-lo. A democracia é uma forma de regime justa, pois

assegura a liberdade individual. Isso significa que a democracia somente

é justa sob a premissa de a preservação da liberdade individual ser o

fim maior. Se ao invés da liberdade individual for a segurança

econômica o fim maior, e comprovada que ela não pode ser alcançada

em um regime democrático, então uma outra forma de regime, não

mais a democracia, deverá ser aceita como justa. Outros fins exigem

outros meios. Dessa forma, a democracia somente é justificável como

forma de regime relativa e não absolutamente boa.

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forma de regime relativa e não absolutamente boa.

16. Nossa consciência pode não se contentar com uma justificação

assim condicionada. Ela pode exigir uma justificação incondicionada,

absoluta. Assim teremos a consciência tranqüila se justificarmos nosso

comportamento apenas como meio adequado para um fim, cuja

justificação pareça duvidosa. Ela exigirá que justifiquemos nosso

comportamento como fim último, ou, o que dá no mesmo, que a nossa

conduta corresponda a um valor absoluto. Isso é impossível por meios

racionais, pois toda justificação é, por sua natureza, uma justificação

como meio adequado; um fim último não é mais um meio para outro

fim. Se nossa consciência postula valores absolutos, então a nossa

razão não tem condições de suprir tais exigências. O absoluto em geral

e valores absolutos em particular encontram-se além da razão humana,

para a qual só é possível uma solução condicionada e portanto relativa

do problema da justiça como um problema de justificação do

comportamento humano.

17. Contudo, a necessidade de justificação absoluta parece ser mais

forte que qualquer reflexão racional, por isso o homem busca na

religião ou na metafísica essa justificação (justificação absoluta). Isso

significa, todavia, que a justiça desse mundo é deslocada para um outro

mundo, transcendental. Sua concretização se torna a função essencial

de uma autoridade sobre-humana, uma divindade, cujas características

e funções são,por sua natureza, inacessíveis á cognição humana. O

homem deve acreditar na existência de Deus, na existência de uma

justiça absoluta, mas incapaz de compreendê-la, de defini-la

abstratamente.

Os que não conseguem aceitar tal solução metafísica sustentam, para o

problema, a idéia de valores absolutos, aferíveis de modo racional-

científico,iludindo-se, segundo o autor, com a possibilidade de

encontrar valores absolutos que são, na verdade, constituídos por

elementos emocionais. A definição de valores absolutos e definição de

justiça em particular, revelam-se, pois, fórmulas vazias, através das

quais toda e qualquer ordem social pode ser legitimada.

PLATÃO E JESUS

18. Platão é o representante clássico do tipo metafísico, sendo a justiça

o problema central de toda sua filosofia. Desenvolve a famosa doutrina

das idéias, que denomina serem as idéias substâncias transcendentais,

existentes em outro mundo, numa esfera inteligível, inacessível ao

homem perturbado pela sensorialidade. Representam valores

absolutos que, embora devessem ser concretizados no mundo dos

sentidos, nunca o são totalmente. A idéia do Bem absoluto é a idéia

fundamental a qual se subordinam todas as demais e da qual elas

obtêm sua validade. Esta desempenha na filosofia de Platão um papel

idêntico ao de Deus na teologia de qualquer religião. Inclui justiça,

alusiva a quase todos os diálogos de Platão, que procura responder “o

que é justiça?” com a pergunta “o que é bom ou o que é o Bem?”. Em

quase todos os seus diálogos, Platão procura responder essa questão

de forma racional, mas de nenhum deles ocorre um resultado definitivo,

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de forma racional, mas de nenhum deles ocorre um resultado definitivo,

sempre concluindo ser necessário proceder mais análises. O método a

qual freqüentemente Platão menciona em seus diálogos é a dialética,

que é um método específico de pensamento abstrato, livre de toda

representação sensorial e que capacita quem o domina à apreensão

das idéias.

Contudo, ele próprio não se utilizava desse método em seus diálogos.

Sobre a idéia do Bem absoluto, Platão reconhece que ele se encontra

além de todo conhecimento racional e além de todo ato de pensar. É

apreendido por meio de uma vivência mística, conhecida a poucos e

somente por graça divina.

Dessa forma, Platão conclui que não pode haver resposta à questão da

justiça, já que se trata de um mistério de Deus, que confia a sua

resposta – se é que o faz – a poucos escolhidos, que impreterivelmente

não conseguirão transmitir esse conceito aos outros.

19. A filosofia de Platão assemelha-se, nesse aspecto, à pregação de

Jesus, cujo fundamento maior também era a justiça. Jesus refutou o

princípio da retaliação contido no velho testamento, anunciando como

sendo a nova e verdadeira justiça o princípio do amor (retribuição do

mal com o bem, devendo-se amar o malfeitor e até mesmo o inimigo).

Essa justiça encontra-se além de qualquer ordenação possível dentro

de uma realidade social, sendo o amor representado por essa justiça

algo diverso do amor humano, pois é contrário à natureza humana. O

amor pregado por Jesus não é o amor dos homens. É o amor de Deus.

Mas o mais estranho desse amor é compatibilizá-lo com o castigo cruel

e eterno afligido aos pecadores no dia do Juízo Final, sendo também o

temor divino mais profundo que o humano. Essa contradição Jesus não

procurou explicar, o que não seria possível, pois é uma contradição

apenas para a limitada razão humana, não para a razão absoluta de

Deus, inconcebível ao homem. Corrobora isso o ensinamento de Paulo,

primeiro teólogo da religião cristã, ensinando que a filosofia, ou seja, o

conhecimento lógico-racional, não é o caminho para a sabedoria divina,

contida na sabedoria oculta de Deus, sendo essa justiça somente

revelada através da fé. Também admite Paulo que o amor pregado pro

Jesus, sobre a nova justiça, se encontra além do conhecimento racional,

sendo esse um mistério dentre muitos outros mistérios da fé.

AS FÓRMULAS VAZIAS DA JUSTIÇA

20. O tipo racionalista, que procura definir o conceito de justiça, está

representado tanto na sabedoria popular de muitas nações como em

consagrados sistemas filosóficos. Segundo uma das sete sabedorias

gregas, a definição de justiça é “conceder a cada um aquilo que é seu”.

Essa fórmula, apesar de ter sido aceita por muito pensadores

importantes, sobretudo filósofos de direito, é facilmente demonstrável

ser vazia, pois a questão decisiva – o que realmente cada um pode

considerar como sendo “seu” – permanece sem resposta. Assim, tal

princípio somente pode ser aplicado sob a premissa de se ter decidido

previamente essa questão. Assim, essa fórmula “conceder a cada um

aquilo que é seu” pode justificar qualquer ordem social, seja capitalista

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ou socialista, democrática ou autocrática, possibilitando qualquer

ordem social ser dada como justa. Conclui-se que essa fórmula não

define justiça de modo absoluto, pois além de não ter qualquer valor

como definição de justiça (sendo necessário previamente determinar-se

um valor absoluto: definir o que é de cada um), ela possibilita apreciar

como justo valores apenas relativos a uma determinada ordem social,

moral ou jurídica positiva.

21. O mesmo se aplica ao princípio “o bem paga-se com o bem, o mal

com o mal” (princípio da retaliação). Do mesmo modo, essa formulação

necessita prévia elucidação da questão decisiva: o que é o bem e o que

é o mal? Apesar de aparentemente fácil essa definição, a sua resposta

não é, contudo, absolutamente óbvia, uma vez que opiniões sobre o

que é o bem e o que é o mal divergem muito entre os povos distintos e

em épocas diferentes. . O princípio da retaliação expressa somente a

técnica específica do |Direito positivo, que associa o mal do injusto ao

mal da conseqüência do injusto. Mas esse princípio é o qual se baseiam

todas as normas jurídicas positivas, e, por isso, toda ordem jurídica

pode ser justificada como concretização do princípio da retaliação. A

questão da justiça é, porém, aferir se uma ordem jurídica, ao aplicar o

princípio da retaliação, é justa, ou seja, se o fato contra o qual o Direito

reage como algo injusto, opondo-lhe portanto o mal da conseqüência

do injusto, é realmente um mal para a sociedade; e se o mal que o

Direito estabelece como conseqüência do injusto pode ser considerado

como tal. É essa a questão específica, para a qual o princípio da

retaliação não constitui uma resposta.

22. Sendo que retaliação significa retribuir igual com igual, ela é uma das

múltiplas variedades nas quais aparece o princípio da igualdade,

considerado a essência da justiça. Tal princípio parte da premissa de

que todos os homens (tudo aquilo que tem fisionomia humana) são

iguais por natureza, devendo todos eles serem tratados com igualdade.

Tal afirmação é errônea, eis que os homens são bem diferentes, não

existindo realmente duas pessoas iguais. Dessa exigência, somente é

possível aferir que o ordenamento social não deve levar em

consideração determinadas diferenças na concessão de direitos e

imposição de deveres; Apenas algumas diferenças, nunca todas elas,

pois seria absurdo tratar crianças como adultos; idosos como jovens;

loucos como sãos. Quais seriam e não seriam, então, as diferenças a

serem consideradas para tratar igualmente os homens?

A essa questão o princípio da igualdade não oferece resposta,

divergindo igualmente as ordens jurídicas positivas a esse respeito,

muito embora não ignorem tais diferenças para a concessão de direitos

e imposição de deveres. Enquanto numa sociedade concede-se direitos

políticos apenas aos homens (e não às mulheres), outra obrigam

somente aos homens alistar-se no serviço militar. Mas o que é justo?

Aquele que é indiferente perante a religião tenderá á considerar as

diferenças religiosas insignificantes, mas o que tem fé considerará

fundamental a diferença dentre aqueles que compartilhem da sua fé e

todos os demais (infiéis) e entenderá como justo conceder àqueles

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todos os demais (infiéis) e entenderá como justo conceder àqueles

direitos que serão negados estes.

O princípio da igualdade, como todo o direito, deve ser interpretado no

sentido de que somente os iguais deverão ser tratados de forma igual,

significando a sua questão decisiva: o que é igual? Essa questão não é

respondida pelo denominado princípio da igualdade. Portanto, toda e

qualquer diferença poderá ser considerada essencial no tratamento

dos subordinados à lei por uma ordem jurídica positiva e ser, por isso, a

base de um tratamento diferenciado, sem que, com isso, essa ordem

jurídica entre em contradição com o princípio da igualdade sendo,

portanto, esse princípio por demais vazio para determinar o conteúdo

de uma ordem jurídica.

23. O chamado princípio da igualdade perante a lei significa apenas que

a legislação deve ser aplicada de acordo com o seu sentido, não

significando que os órgãos jurídicos devam fazer distinções que a

própria legislação a ser aplicada não o faça (ex: direitos políticos

somente aos homens, não às mulheres; somente à cidadãos, não à

estrangeiros; somente a membros de uma determinada raça ou

religião, não aos das outras). É o princípio da legalidade ou juridicidade,

imanente por natureza a toda ordem jurídica, não importando se essa

ordem é justa ou injusta.

24. A aplicação do princípio da igualdade em relação à produtividade e

renda conduz à exigência: conceder a mesma produtividade igual

participação na renda. Essa é a ordem na qual se fundamenta a ordem

social capitalista, o pretenso direito igual desse sistema econômico (Karl

Marx). Marx diz que se trata de um direito desigual, pois não leva em

consideração a diversidade existente entre os homens no tocante à sua

capacidade de trabalho. . Por isso afirma ser um direito injusto, pois não

leva em consideração a diversidade existente entre os homens no

tocante a sua capacidade de trabalho. é injusto ser considerado igual o

mesmo volume de trabalho realizado por um homem forte e habilidoso

ou por um homem fraco e desajeitado, sendo tal igualdade apenas

aparente, pois se ambos obtiverem a mesma remuneração, receberão

igual por desigual. Igualdade verdadeira e, portanto, justiça verdadeira,

não aparente – conclui Marx – somente poderá ser concretizada numa

economia comunista, onde vale o axioma: cada um conforme suas

capacidades, cada um conforme suas necessidades.

Se esse princípio fosse aplicado a uma economia de produção planejada

(é a estabelecida por uma autoridade central), colocam-se as seguintes

questões: Quais as aptidões de cada um? Para que tipo de trabalho

cada um é capacitado? Qual o volume de trabalho que se pode exigir de

cada pessoa, segundo suas tendências naturais?

É evidente que essas questões não podem ser decididas por cada

indivíduo, de acordo com a sua própria avaliação, mas pelo órgão da

comunidade constituído para tal fim, e de acordo com as normas gerais

estabelecidas pela autoridade social. Quais as necessidades podem ser

satisfeitas? Por certo, somente aquelas para cuja satisfação funcione o

processo de produção planejado, conduzido por uma autoridade

central. E nem mesmo na sociedade comunista do futuro, onde a mão

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central. E nem mesmo na sociedade comunista do futuro, onde a mão

de obra produtiva cresça e todas as fontes de riqueza jorrem com

abundância (Marx), a extensão de sua satisfação poderá ser entregue a

cada um, deve continuar nas mãos da autoridade central. Assim, o

sistema comunista de justiça pressupõe, da mesma forma que a

proposição “a cada um aquilo que é seu” que a resposta às questões

decisivas para a sua aplicação seja dada por uma ordem social positiva.

Embora se trate de uma ordem social determinada, ninguém pode

prever como uma tal ordem, por se realizar num futuro distante, se

realizará, e como serão por ela solucionadas as questões decisivas para

a aplicação do princípio comunista de justiça.

Conclui-se que essa forma proposta por Marx, resumida à norma cada

um conforme suas capacidades, reconhecidas pela ordem social

comunista; a cada um conforme suas necessidades, determinada por

essa ordem visa garantir a satisfação das necessidades do indivíduo , de

forma a existir na sociedade comunista harmonia entre todos os

interesses coletivo e individuais. Portanto, haveria liberdade individual

ilimitada, sendo isso pura utopia que, segundo Marx, será vivenciada no

futuro, tendo como conseqüência a inexistência de conflitos de

interesses, e nesse caso o horizonte muito mais amplo da justiça deverá

ter sido ultrapassado.

25. O axioma denominado regra de ouro “não faças aos outros o que

não queres que te façam” também decorre do princípio da igualdade.

No modo positivo: “o que queres que te façam, faze-o tu também aos

outros”. Em conclusão, ninguém deseja que o outro lhe cause dor, mas

sim que um deseja que o outro lhe cause prazer.

Contudo, se um homem sentir prazer em causar dor ao outro, será um

violador da regra de ouro. Como se comportar contra o violador dessa

regra? É essa a questão da justiça: se ninguém causasse dor a outrem,

somente prazer, não haveria problema algum de justiça. Se, contudo,

aplicarmos a regra de ouro em caso de sua violação, chegaremos à

conseqüência absurda de que não devemos castigar os criminosos, pois

não gostaríamos de ser castigados. Essa interpretação culminaria à

obrigatória conclusão à supressão da moral e do direito que,

certamente, não é a sua intenção. Dessa forma, a regra de ouro deverá

ser entendida no sentido de estabelecer um critério objetivo,

significando: comporte-se perante os outros conforme os outros devem

se comportar perante você, ou seja, comporte-se conforme uma regra

objetiva. Mas como devemos nos comportar? Essa é a questão de

justiça. E a resposta a ela não é dada através da regra de ouro, mas por

ela pressuposta, pelo fato de que é ordem da moral positiva e do direito

positivo que está sendo pressuposta.

KANT

26. Se o critério subjetivo contido no teor da regra de ouro for

substituído por um critério objetivo, por meio de interpretação, a regra

seria a seguinte: comporte-se de acordo com as normas gerais da

ordem social. Essa fórmula tautológica de interpretação da regra de

ouro levou Immanuel Kant à formulação do famoso imperativo

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categórico que é o resultado essencial de sua filosofia da moral e sua

solução para a questão da justiça. Essa formulação diz: aja de acordo

com a máxima que você espera transformar-se em lei geral, ou seja, o

comportamento humano é bom ou justo se for determinado por

normas que o homem, ao agir, pode ou deve esperar que sejam

obrigatórias a todos. Mas quais seriam essas normas? É essa a questão

decisiva da justiça e o modelo do imperativo categórico, conforme os

demais, não dá resposta.

27. Ao se examinar o modelo do imperativo categórico proposto por

Kant, constata-se que a sua aplicação refere-se aos regulamentos d

amoral tradicional e do direito positivo de sua época. Apesar de ser uma

fórmula vazia e compatível com as demais formulações de justiça

(princípio da regra de ouro ou “dar a cada um o que é seu”, a teoria do

imperativo categórico poderá servir de justificação para toda e qualquer

ordem social em geral e para todo e qualquer regulamento em

particular. Essa possibilidade explica porque essas fórmulas, apesar da

sua total falta de conteúdo, ainda hoje são aceitas como respostas

satisfatórias à questão da justiça, e provavelmente ainda o serão no

futuro.

ARISTÓTELES

28. Um outro exemplo bastante significativo de infrutífera tentativa de

se definir o conceito de justiça absoluta através de um método racional-

científico é a Ética de Aristóteles. Trata-se de uma ética de virtude, ou

seja, visa a um sistema de virtudes, entre as quais a justiça é a virtude

máxima, a virtude plena.

Aristóteles afirma ter encontrado um método científico (matemático-

geométrico) para determinar as virtudes, ou seja, para responder à

questão do que seria eticamente bom, pois a virtude é o meio-termo

entre dois extremos, ou seja, dois vícios, um por escassez e o outro por

excesso. Ex: a virtude da coragem, por exemplo, é o meio termo entre o

vício da covardia (escassez de valentia) e o vício da temeridade (excesso

de valentia). Esse é o famoso ensinamento da mesótes. A virtude é o

oposto do vício; se a tendência à mentira é vício, então o apego à

verdade é virtude. A existência de vícios, porém, Aristóteles a pressupõe

como indiscutível; e por vícios entende aqueles que a moral tradicional

de sua época estigmatizava como tais. Conclui-se, portanto, que a ética

da doutrina de mesótes só aparentemente resolve a questão. Persistem

os questionamentos “do que é bom?” e “do que é mau?” , que a ética

aristotélica confia à moral positiva e ao Direito positivo, à ordem social

estabelecida. Portanto, é a ordem social e não a fórmula de mesótes

que determina o que é demais e o que é de menos e com isso também a

virtude, que se encontra a meio caminho entre ambos. Assim, a real

função da fórmula tautológica de mesótes é pressuposta pela ordem

social estabelecida, sendo bom aquilo que está de acordo com a ordem

social vigente.

29. O caráter tautológico da fórmula de mesótes torna-se evidente

quando se aplica à virtude da justiça, sendo (segundo Aristóteles) o

comportamento justo o meio-termo entre praticar o injusto e sofrer o

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comportamento justo o meio-termo entre praticar o injusto e sofrer o

injusto. Assim, a fórmula – a virtude é o meio termo entre dois vícios –

não faz sentido nem mesmo como metáfora, pois o injusto que se

pratica e o injusto que se sofre não são dois vícios ou males: são um

único e mesmo injusto. E a justiça é, simplesmente, o oposto desse

injusto. Conclui-se,pois, que a questão decisiva – o que é injusto – não é

respondida através da fórmula de mesótes , sendo a resposta

pressuposta, considerada pela definição da moral positiva e pelo direito

positivo.

Pelo exposto, conclui-se que o ensinamento de mesótes não visa

determinar a essência da justiça, mas reforçar a validade da ordem

social, estabelecida com base na moral positiva e no direito positivo.

Essa realização, politicamente significativa, protege a ética aristotélica

de uma análise crítica, que evidenciaria a sua falta de valor científico.

O DIREITO NATURAL

30. O tipo metafísico e o tipo racionalista da filosofia do Direito estão

representados na Escola do Direito Natural (Séculos XVII e XVIII, quase

totalmente abandonada no século XIX, mas tornada novamente

influente nos dias atuais). Essa escola afirma existir uma

regulamentação absolutamente justa das relações humanas que parte

da natureza em geral ou da natureza do homem como ser dotado de

razão. A Natureza é apresentada como uma autoridade normativa,

como uma espécie de legislador. Por meio de uma análise da natureza,

podemos encontrar as normas a ela imanentes, que prescrevem a

conduta humana correta, ou seja, justa. Se se supõe que a natureza é

criação divina, então as normas a ela imanentes – o Direito Natural –

são expressão da vontade de Deus. A doutrina do Direito apresentaria,

portanto, um caráter metafísico. Se todavia o direito natural deve ser

deduzido da natureza do homem enquanto ser dotado de razão (o

princípio da justiça pode ser encontrado na razão humana) então

aquela doutrina se reveste de um caráter racionalista. DO ponto de

vista da ciência racional do Direito, o método religioso-científico da

doutrina do Direito natural não entra absolutamente em cogitação.

Entretanto, o método racionalista é sabidamente insustentável. A

natureza como um sistema de fatos, unidos entre si pelo princípio da

causalidade, não é dotada de vontade e não pode, por isso, prescrever

qualquer comportamento humano definido. A partir dos fatos, do que

realmente acontece, não se pode deduzir aquilo que deve ser ou

acontecer, baseando-se em sofisma a tentativa de a doutrina

racionalista tenta deduzir normas do Direito natural como base para o

comportamento humano. Aplica-se o mesmo à tentativa de deduzir tais

normas da razão humana, eis que normas que prescrevem

comportamentos humanos só podem partir de uma vontade, somente

sendo essa vontade humana se excluída da especulação metafísica. A

afirmação de que o homem deve se comportar de determinado modo

só pode ser feita pela razão humana, tendo como premissa um fato de

que, por ato da vontade humana, estabeleceu-se norma que prescreve

tal comportamento. A razão humana pode compreender e descrever,

não prescrever. Encontrar normas para o comportamento humano não

razão é tão ilusório quanto extrair tais normas da natureza.

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razão é tão ilusório quanto extrair tais normas da natureza.

31. Vários adeptos da doutrina do Direito natural deduziram princípios

de justiça extremamente diversos uns dos outros, a partir da natureza

divina, ou os tenham encontrado na natureza humana. Robert Film

(dessa escola) entendeu serem justas a autocracia e a monarquia

absoluta, eis que as únicas formas de governo natural (e por isso

justa).Já John Locke comprova, através do mesmo método, que a

monarquia absoluta jamais pode ser considerada como uma forma de

governo, somente a democracia pode valer como tal, pois apenas ela

corresponde à natureza, e apenas ela, portanto, justa. A maioria dos

jusnaturalistas afirmava que a propriedade individual (com base na

ordem social feudal e capitalista) era um direito natural – portanto

sagrado, inalienável – que a natureza ou razão haviam conferido ao

homem; Por conseguinte, a propriedade coletiva ou a comunhão de

bens , ou seja, o comunismo, eram contra a natureza e a razão e,assim,

injustas. Conclui-se , pois, que os métodos da doutrina do Direito

natural, que se baseiam em um sofisma , pode-se comprovar tudo e,

portanto, nada.

ABSOLUTISMO E RELATIVISMO

32. São Vãos os esforços para encontrar, por meios racionais, uma

norma absolutamente válida de comportamento justo, ou seja, uma

norma que exclua a possibilidade de também considerar o

comportamento contrário do justo. A experiência espiritual do passado

demonstra que a razão humana somente consegue compreender

valores relativos. Isso significa que o juízo, por meio do qual algo é

declarado justo, nunca poderá ser emitido com a reivindicação de

excluir a possibilidade de um juízo de valor contrário. Justiça absoluta é

um ideal irracional. Do ponto de vista racional, há somente interesses

humanos, e portanto conflito de interesses. A solução sempre será ou o

sacrifício de um deles para a satisfação do outro, ou promover um

compromisso entre ambos, pois não será possível comprovar que

somente uma, não a outra solução, seja a justa. Se a paz social é

pressuposta como valor maior, a solução de compromisso pode ser

vista como justa. Mas também a justiça da paz é uma justiça relativa,

não absoluta.

33. Qual é a moral da filosofia de justiça relativista? Será que há alguma?

Será que o relativismo não é amoral, ou até imoral, como pensam

alguns? Não é essa a opinião de Kelsen. O princípio da Moral que

fundamenta (ou do qual se pode deduzir) uma doutrina relativista é o

princípio da tolerância: é a exigência de compreender com benevolência

a visão religiosa ou política de outros, mesmo que não a

compartilhemos, e, exatamente porque não a compartilhamos, não

impedir a sua manifestação pacífica.

Obviamente, numa visão de mundo relativista não resulta o direito à

tolerância absoluta, somente à tolerância no âmbito de um

ordenamento jurídico positivo, que garanta a paz entre os submetidos a

essa justiça, proibindo-lhes qualquer uso da violência, porém não lhes

restringindo a manifestação pacífica de opiniões. Os mais altos ideais

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restringindo a manifestação pacífica de opiniões. Os mais altos ideais

morais foram comprometidos pela intolerância daqueles que os

defenderam. Por exemplo, na inquisição espanhola, em defesa da

religião cristã não foram somente queimados os corpos dos hereges,

mas também sacrificados um dos ensinamentos mais notáveis de

Cristo: Não julgueis, para não seres julgado;Pierre Bayle, um dos

grandes libertadores do espírito humano, fazia objeção àqueles que

acreditam poder melhor defender uma ordem religiosa ou política

vigente por meio da intolerância aos heterodoxos: “Toda desordem

surge da intolerância, não da tolerância” ; José II,imperador da Áustria,

nas páginas gloriosas da carta de Tolerância, escreveu “Se a democracia

é uma forma de governo justa, ela só pode significar liberdade, e

liberdade significa tolerância.”

E se a democracia precisar se defender das intrigas antidemocráticas,

será tolerante? Sim, na medida em que não reprimir demonstrações

pacíficas de opiniões antidemocráticas. É exatamente nessa tolerância

que reside a diferença entre democracia e autocracia. Mas é direito de

qualquer governo , mesmo democrático, reprimir com violência e evitar,

pelos meios adequados, tentativas de derrubá-lo com o uso da

violência. O exercício desse direito não entra em contradição nem com

o princípio da democracia, nem com o princípio da tolerância. Contudo,

é difícil traçar um limite claro entre a propagação de certas idéias e a

preparação de uma insurreição revolucionária. Mas a possibilidade de

manter a democracia depende da possibilidade de encontrar tal limite.

34. Significando a democracia liberdade, e liberdade tolerância,

nenhuma outra forma de governo é mais favorável à ciência que a

democracia. A ciência só pode prosperar se for livre; ela será livre não

somente quando o for externamente, ou seja, quando estiver

independente de influências políticas, mas também quando o for

interiormente, quando houver total liberdade no jogo do argumento e

do contra-argumento. Nenhuma doutrina pode ser reprimida em nome

da ciência, pois a alma da ciência é a tolerância.

Kelsen iniciou este ensaio com a questão: O que é Justiça? Conclui que,

agora, ao final, está absolutamente ciente de não tê-la respondido. Aduz

a seu favor, como desculpa, o fato de estar em ótima companhia (faz

implícita menção aos leitores, uma vez que seria mais do que presunção

fazê-los acreditar que conseguiria aquilo que fracassaram os maiores

pensadores).

De fato, Kelsen assume que não sabe se pode dizer o que é justiça, a

justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Conclui que deve

satisfazer-se com a justiça relativa, e só pode declarar o que significa

justiça para si próprio: uma vez que a ciência é a sua profissão e,

portanto, a coisa mais importante em sua vida, trata-se (a justiça)

daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado

dela, a verdade e sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da

democracia e da tolerância .

II. A IDÉIA DE JUSTIÇA NAS SAGRADAS ESCRITURAS

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O CARÁTER TRANSCENDENTAL DA JUSTIÇA DIVINA

Um dos elementos mais importantes da religião cristã é a idéia de que a

justiça é uma qualidade essencial de Deus, como Deus é absoluto, sua

Justiça deve ser justiça absoluta, isto significa eterna e imutável. Apenas

uma religião cuja divindade é tida como justa, pode desempenhar um

papel na vida social

Do ponto de vista da cognição racional, a justiça absoluta de Deus deve

estar necessariamente em conflito com outra qualidade que é a

onipotência. Se Deus é onipotente, nada do que efetivamente acontece

pode ser contra ou sem o seu desejo.

A idéia de justiça divina absoluta deve ser aplicável à vida social dos

homens. Se a justiça divina deve servir como um padrão da justiça que

os homens estão procurando para a regulamentação de suas relações

mútuas, a teologia deve tentar partir de seu ponto inicial que é a

incompreensibilidade da justiça absoluta, para uma posição menos

rígida – a suposição de que a vontade de Deus, embora incompreensível

pela própria natureza, pode não obstante, ser compreendida pelo

homem de uma ou de outra maneira.

A incoerência da posição torna inevitável que este torneio de

pensamento deva, por fim, retornar ao ponto de partida. Como Deus

existe, a justiça absoluta existe, e, assim, como deve acreditar na

existência de Deus, embora seja incapaz de compreender sua natureza,

o homem deve acreditar na existência da justiça absoluta, embora não

possa saber o que ela realmente significa. A justiça é um mistério – um

dos muitos mistérios da fé.

A JUSTIÇA NA REVELAÇÃO DIVINA E NA MORALIDADE CRISTÃ MODERNA

Para a teologia Deus se revela de duas maneiras: nos seus atos e nas

suas palavras. Se Deus criou o universo pode-se concluir que, toda

criação é sua manifestação de vontade. Em assim sendo, é possível

encontrar a resposta para a questão do que é justo e injusto na

natureza, assim como na história. A doutrina do direito natural

fundamenta-se em um pressuposto , a filosofia hegeliana da história do

outro.

Tanto na natureza como na história, vemos ao mesmo tempo, uma luta

impiedosa em que o mais forte destrói o mais fraco, e o auxílio mútuo.

Nem na análise mais cuidadosa da natureza e da história pode fornecer

um critério para distinguir o bem e o mal; e nossa razão nos diz que não

é possível concluir, a partir do que é , o que deve ser.

A outra revelação – a palavra de Deus nas Escrituras – parece ser uma

manifestação muito mais clara de sua justiça. Mas muitas instituições

apresentadas nas escrituras, diretamente aprovada ou ao menos não

reprovadas por Deus ou pelos homens, por ele inspirados como é o

caso da poligamia, da escravidão a vingança do sangue – estão em

franca oposição ao sentimento de justiça dos cristãos modernos .

Como por exemplo, no famoso parecer que justifica pelo direito divino a

bigamia de Filipe de Hesse, declararam que “o que é permitido na lei

mosaica no que concerne ao casamento não é proibido no Novo

Testamento”.

Não apenas no antigo testamento como no novo testamento a

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Não apenas no antigo testamento como no novo testamento a

escravidão é reconhecida como uma instituição legal e justa, embora

também existam prescrições com o objetivo de restringir o direito do

proprietário e, assim atenuar a situação do escravo. No Levítico 25,6, a

escravidão é apresentada como ordenada por Javé ou, pelo menos

como não incompatível com a lei que transmitiu no Monte Sinai por

meio de Moisés.

Embora a lei de Javé exiba uma tendência para restringir a vingança de

sangue, esse costume surge firmemente estabelecido entre os judeus e

reconhecido por Deus.

Há um procedimento diretamente ordenado por Javé, que tem como

objetivo determinar se uma mulher suspeita cometeu ou não adultério.

Nesse rito, mulher suspeita é obrigada a tomar uma “água amarga que

causa maldição” que desempenha o papel decisivo. O sacerdote que

executa o rito põe nessa água um pó que esteja no chão do tabernáculo

então deve fazer a mulher prestar o seguinte juramento “ Se nenhum

homem deitou contigo e se não te voltaste para os atos indecentes

enquanto casada com o teu marido, fica imune a esta água amarga que

traz a maldição, Mas se erraste enquanto casada com o seu marido e te

maculaste com outros homens além do seu marido, então Javé faça de

ti execração e maldição entre o teu povo, fazendo-te ter um ventre

facilmente fertilizado e ao mesmo tempo abortar”; então esta mulher

deve dizer: “Assim seja, assim seja”. Depois o sacerdote deve escrever as

maldições em um pedaço de pergaminho e depois lavá -las nas águas e

a mulher deve beber a água com a tinta em que as maldições foram

escritas. Se ela for inocente a água não lhe fará mal nenhum, porém, se

for culpada, a água terá o efeito indicado na maldição.

É justamente o elemento mágico do rito que é tão repulsivo ao

sentimento religioso, assim como à idéia de devido processo de Direito

que prevalece entre os cristãos modernos. O mesmo é verdadeiro no

que diz respeito à crença em demônios ou “espíritos imundos” que

penetram nos corpos dos homens e causam doenças mentais,

mencionados nos evangelhos. Segundo estes, o próprio Jesus

acreditava na existência desses demônios e usava seu poder divino para

exorcizá-los.

A REVELAÇÃO DAS ESCRITURAS, CONTRATIDÓRIA ENTRE SI.

A revelação das escrituras não apenas está em algumas partes em

oposição direta à moralidade do cristianismo moderno, como também

é contraditória em si, não menos contraditória que a revelação na

criação.

Por exemplo, quanto ao divórcio, o código Deuterômio, que se

apresenta como um ato de legislação divina, contém uma regra: quando

um homem tomar uma mulher e casar -se com ela, se acontecer que ela

não agrade, porque encontrou nela alguma indecência, poderá

escrever-lhe um ato de divórcio e, colocando-o em sua mão, pode

despedi la de sua casa. E quando ela deixar a sua casa, poderá casar-se

com outro.

Mas quando os fariseus perguntaram a Jesus se era legítimo um homem

divorciar se de sua esposa , Jesus respondeu que marido e mulher

tornar-se-ão um, de modo que não mais sejam dois, mas um. O que

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tornar-se-ão um, de modo que não mais sejam dois, mas um. O que

Deus uniu então o homem não separe.

Pode-se concluir não haver muita dúvida que tratam de duas idéias

totalmente diferentes e incompatíveis entre si, constituem a base da lei

divina como o caso do casamento poligâmico e anulável revelado por

Moisés e a lei divina que institui o casamento monogâmico e inviolável

revelado por Jesus.

Há outra contradição no antigo testamento quanto à questão de ser

justa ou não a responsabilidade individual ou coletiva, e

especificamente a hereditária

Todas essas contradições podem ser facilmente explicadas a partir de

um ponto de vista histórico como diferentes etapas de uma evolução

jurídica. Mas uma interpretação histórica é inaplicável caso as escrituras

devam ser tomadas como a revelação da justiça absoluta e, portanto,

imutável de Deus.

REDISTRIBUIÇÃO E AMOR – DIREITO E JUSTIÇA

O antagonismo entre o princípio da redistribuição e o princípio do

amor, entre a regra: paga o mal com o mal e o bem com o bem e a

regra: ama o teu inimigo e paga o mal com o bem, tem íntima ligação

com esse antagonismo de visões totalmente diferentes da relação

existente entre a justiça e o direito positivo. Segundo uma, a justiça e o

Direito são idênticos, segundo a outra, eles podem entrar em conflito.

Nessa metáfora é expressa uma das idéias básicas da teologia judaica

que a relação entre Deus e o homem é constituída por um contrato, a

aliança que Javé firmou com o seu povo. A idéia de que Deus firmou um

contrato com os homens e que assim como a outra parte desse

contrato, está obrigado por ele é muito característica da tendência para

racionalizar o que, por sua própria natureza é irracional – relação entre

Deus e os homens.

Por meio desse contrato, Javé assume a obrigação de proteger seu povo

e Israel a de ser fiel a Javé e obedecer à sua lei. Javé, por ser um deus

zeloso, insiste acertadamente no cumprimento das cláusulas do

contrato pela outra parte. Tal cumprimento da obrigação contratual de

Javé. Mas a violação pelo seu povo autoriza Javé a punir o infrator da

aliança. Essa é a justiça de Javé. A justiça é a qualidade mais essencial e o

princípio dessa justiça é a retribuição.

A JUSTIÇA DE JAVÉ : A RETRIBUIÇÃO

Antes do ensinamento de Jesus era evidente para o povo judeu que

justiça significava retribuição. Como todos os povos primitivos, os

hebreus, nas primeiras etapas de sua evolução, consideram a natureza

como parte da sociedade e, portanto, explicavam os fenômenos em

termos de vida social, isto é, em primeiro lugar, segundo o princípio da

retribuição.

Qualquer evento que o homem primitivo teme é interpretado como

punição; qualquer evento que deseja, como recompensa de uma

autoridade sobre-humana. Essa interpretação personalista e, portanto,

o social da natureza pode fundamentar no animismo, isto é, na crença

de que todas as coisas são animadas, dotadas de alma que nelas

RE LACION AME N T O

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residem; mas também pode ser a conseqüência do verdadeiro

monoteísmo, segundo o qual a natureza é a criação de um deus

onipotente e, portanto, a manifestação de sua justa vontade. O ato

divino da criação, tal como descrito no Gênesis, é um comando de Deus,

e, como Deus é justo, qualquer evento dessa espécie deve ser

interpretado como merecido pelo homem;se for um mal, como punição

por sua má conduta, se for um bem, como recompensa por sua boa

conduta.

O princípio de retribuição como essência da Justiça de Javé é expresso

por Moises nesta breve fórmula “ vede, hoje estou colocando diante de

vós uma benção e uma maldição: uma benção se obedecerdes aos

mandamentos de Javé, vosso Deus, que vos dou vosso Deus, e se vos

desviardes do caminho que vos estou apontando hoje, e correrdes

atrás de deuses estranhos que não conheceis” ( Deuteronômio11,26 ss.)

Como em quase todas as religiões, a punição e a recompensa não têm a

mesma importância. A punição está em primeiro plano, recompensa em

último, nesse sistema de justiça, especialmente se tiver de ser aplicada,

não diretamente por Deus, de uma maneira transcendental, mas por

homens, na forma de sanções socialmente organizadas.

Que a justiça como retribuição signifique em primeiro lugar punição é a

conseqüência do fato de ser a ameaça de punição por conduta

indesejável – não promessa de recompensa pela conduta contrária – a

técnica específica do direito positivo; e a idéia de justiça sempre reflete

mais ou menos a realidade social tal como manifestada no Direito

positivo.

VINGA-TE MAS AMA AO PRÓXIMO

“Deves amar ao próximo como a um de vós” É um mandamento de

solidariedade nacional e perfeitamente compatível com o princípio da

retribuição.

Essa sentença é precedida pelo mandamento “não deves vingar-te nem

guardar rancor dos membros de tua raça” A proibição geral vingança

certamente está em contradição com a instituição da vingança de

sangue reconhecida em outras partes da Escritura, mas é perfeitamente

compatível com o jus talionis.

Mas essas manifestações esporádicas de uma moralidade do perdão

não são características do Antigo Testamento, que é dominado pela

justiça do igual por igual.

Tratam apenas de princípios políticos que não tem nenhuma relação

com a regra de JUSTIÇA.

A REJEIÇÃO DO PRINCÍPIO DA RETRIBUIÇÃO POR JESUS: A NOVA JUSTIÇA

DO AMOR

Kelsen neste subtópico trata da opisição da “doutrina”pregada por

Jesus em face ao Direito positivado. Para tanto, dividiu o tema em

tópicos comentando sobre o princípio d amor, o que pensava Jesus em

relação a família, aos impostos, ao direito de propriedade, o direito do

homem julgar o próprio homem, relacionando ao tema, diversas

passagens bíblicas, conforme passo a explanar.

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O PRINCÍPIO DO AMOR EM OPOSIÇÃO AO DIREITO POSITIVO

Jesus no Sermão da Montanha diz: “Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por

olho e dente por dente’. Mas eu voz digo: não resistais à Injúria; mas, se

te baterem na face direita, oferece a outra face e se alguém quiser

demanda contigo por tua túnica, dá-lhe também o manto. E se alguém

te forçar a andar uma milha, anda duas milhas com ele”. (Mateus 5,38s).

Menciona que a essência do direito positivo está em resistir o prejuízo,

de aplicar o “mal pelo mal” e portanto a sanção tem a mesma natureza

do delito, pois se pratica o mal a alguém que tenha realizado o mal,

inclusive pelo emprego da força; sendo o Estado a organização dessa

força, substituindo o indivíduo prejudicado pelo mal causado. Mas Jesus

ao contrário ensina não julgar para não ser julgado, perdoe para que

seja perdoado. Jesus recusa-se ao direito positivo, pois rejeita o

princípio de se pagar o mal praticado com outro mal praticado ao

causador do mal.

A contrário, prega que devemos amar nossos inimigos e perseguidores,

pois se amamos apenas quem nos ama, não praticamos mérito algum.

Portanto, em vez da Justiça da Retribuição (o mal pelo mal praticado),

devemos aplicar o amor, que não faz nenhuma distinção entre o

malfeitor e o que cumpre a lei, entre o que é bom e o que é mal. Para

ele, a punição do malfeitor provida pelo Direito e pelo Juiz, não pode

estar em conformidade com a justiça divina, a nova justiça: o amor de

Deus.

Kelsen reconhece tratar-se de uma doutrina revolucionária, porque

incompatível com o direito e talvez além da natureza humana, alerta

que o amor de Deus é justiça num sentido transcendental, acima da

idéia racional do homem. Faz uma crítica do ponto de vista da razão

humana, dizendo que a doutrina de Jesus não é a solução do problema

da Justiça na condição de técnica social para a regulamentação das

relações humanas, pois implica a solicitação de abandonar o desejo de

justiça tal como concebido pelo homem.

A DOUTRINA DE JESUS SOBRE A FAMÍLIA

Kelsen e as passagens bíblicas deixam evidentes que Jesus não

respeitou certas prescrições virtuais, exemplos; alimentação (Marcos

7,20); a limpeza (Mateus 15,3ss 20); ao jejum (Marcos 2,18); ao sábado

(Mateus 12,10; Marcos 2,23; Lucas 6,5; 14,1; João 5,10; 9,14). Declarou

ainda o divórcio (que era permitido pela Lei) um crime equivalente ao

adultério, mas pregava que era melhor não casar fundamentando em

diversas razões tais como: “alguns são incapazes de casar-se porque

assim nasceram, alguns porque os homens assim os fizeram e, outros

que assim se fizeram pelo Reino de Deus. Que aceite quem puder.”

(Mateus 19,3).

Trouxe ainda outros ditos de Jesus que equivalem a um não

reconhecimento familiar “Se alguém vier a mm sem odiar o pai e a mãe

e a esposa e filhos e irmãos e irmãs, e a sua própria vida, não poderá

ser meu discípulo.” (Lucas 14,26) e não reconhecia uma das mais

sagradas obrigações de um filho, enterrar o pai morto “Ele disse a outro

‘Segue-me’. Mas ele disse ‘Deixa-me primeiro enterrar meu pai’. Jesus

disse a ele, ‘Que os mortos enterrem seus mortos; tu deves partir e

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disse a ele, ‘Que os mortos enterrem seus mortos; tu deves partir e

espalhar a notícia do Reino de Deus.” (Lucas 9,59).

Seus seguidores não podiam nem ao menos chamar pai ao progenitor

“Não deveis chamar ninguém da terra vossa de pai, pois tendes apenas

um pai, vosso pai celestial” (Mateus 23,9). Reconhecia que seus

ensinamentos poderia sim ter o efeito de dissolver a família (Mateus

10,20). Não lamentava esse efeito (dissolução da família) e até mesmo o

declarava como seu propósito. “Não pensais que vim trazer paz à terra.

Não vim para trazer a paz ma uma espada.

Pois vim para voltar o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e

a nora contra sua sogra, e os inimigos do homem estarão em sua

própria casa. Ninguém que ama o pai e a mãe do que a mim é digno de

mim.” (Mateus 10,34).

Mateus, Marcos e Lucas relatam que Jesus ignorava qualquer relação

com a mãe e os irmãos. Lhe disseram “Tua mãe e teu irmão chamam

por ti lá fora. Ele respondeu, ‘Quem são minha mãe e meus irmãos?’. E

olhando para as pessoas a sua volta respondeu: ‘Aqui estão minha mãe

e meus irmãos. Quem quer que faça a vontade de Deus é meu irmão e

minha mãe’”. (Marcos 3,31; Mateus 12,48 e Lucas 8,19).

O ENSINAMENTO DE JESUS SOBRE OS IMPOSTOS

Kelsen no tocante aos impostos que deveriam ser pagos, leciona que os

ensinamentos de Jesus eram ao menos contrário a Lei existente. Certa

vez indagado sobre pagar o tributo ao imperador Jesus ao solicitar um

denário aos seus seguidores teria-os indagado sobre a efégie e otítulo

ali representados no que tange sua titularidade e, eles lhe disseram

“são do imperador”. E Jesus disse “Pagai ao imperador o que pertence

ao imperador e pagai a Deus o que pertence a Deus.” (Marcos 12,14). Na

verdade Jesus não disse que era certo pagar o tributo ao imperador. Até

reconhecia a marca da propriedade do Imperador, a moeda pertencia

ao imperador, mas isso não tem nada a ver com a obrigação de se

pagar tributo.

Aliás a acusação a qual foi levado a Pilatos era: “Eis um homem que

encontramos desviando nossa nação e proibindo o pagamento de

impostos ao Imperador.”.

Kelsen comenta que tal acusação talvez não fosse infundada, vez que

Jesus acreditava e se considerava Rei Messiânico de Israel e, acreditava

que o Reino de Deus havia chegado, não reconhecendo a autoridade do

Estado romano, que era incompatível com o reino davídico. Então como

poderia acreditar que era certo pagar impostos ao Imperador?

O ENSINAMENTO DE JESUS SOBRE A PROPRIEDADE

É altamente significativo. Assim como a família, a propriedade é

incompatível com seguir Cristo. Proibiu os seguidores de carregar

dinheiro consigo.

Ensina Kelsen “Nem a propriedade nem qualquer tipo de consideração

tem lugar nessa doutrina.”. A bíblia relata vários casos de seguidores

que abandonaram tudo o que tinham para segui-lo, como os irmãos

pescadores Pedro e André onde Jesus disse-lhes: “Vinde e segue-me e

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farei de vós pescadores de homens.”. Jesus menciona ainda que

ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo, o dinheiro

é para ele – mammon – o próprio diabo. Então distinguiu o rico do

pobre, para este relatou a certeza da felicidade no Reino do Céu,

enquanto para aquele (o rico) relatou em um de seus ensinamentos “É

mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um

homem rico entrar no Reino de Deus.”.

Jesus não é contrário apenas ao dinheiro, mas sim a qualquer tipo de

economia. Essa postura antieconômica de Jesus é o resultado de sua

idéia do Reino de Deus, o qual, em sua opinião, era iminente. Pois, no

Reino de Deus, nenhum trabalho é necessário já que Deus alimentará,

vestirá e abrigará diretamente seu povo.

O ENSINAMENTO DE JESUS SOBRE O DIREITO DO HOMEM DE JULGAR O

HOMEM

Trata-se do conflito mais evidente entre o ensinamento de Jesus e a Lei

judaica; o de não mais julgar outras pessoas’. A bíblia relata que alguém

na multidão lhe disse: “Mestre diga a meu irmão que me dê a minha

parte de nossa herança”. E ele disse: “Quem me fez juízo ou arbitro de

vossos negócios?” (Lucas 12,13).

Existe ainda o famoso caso da mulher surpreendida em adultério, onde

lhe disseram “Na lei Moisés ordena que apedrejemos.”. Pressionado

Jesus responde: “Quem não tiver pecado dentre vós, que atire a

primeira pedra.”.

Tais respostas estão em conformidade com o novo princípio de justiça

proclamado – não retribuição, mais sim o amor. E se não há mais

retribuição então o direito positivo não é mais aplicado.

Importante ressaltar que não obstante o tudo dito, na sentença

seguinte, o antagonismo entre o amor de Deus e o julgamento é, de

certo modo, atenuado, pois evidentemente é incompatível com a função

de Jesus como Messias e juiz no juízo final, punindo os pecadores e

recompensando os justos.

A IDÉIA MESSIÂNICA

Kelsen alerta que considerarmos Jesus o pregador da nova justiça do

amor, ou seja, o Messias e Juiz do mundo constitui uma contradição

insuperável na doutrina da justiça. E seus discípulos certamente

acreditavam nele como o Messias.

O REINO DE DEUS COMO REINO DE JUSTIÇA NESTE MUNDO

A idéia do Reino de Deus era o centro do ensinamento de Jesus.

Prevalecia entre os judeus a vinda de um mundo de perfeita justiça e

felicidade. A crença de um segundo paraíso, neste mesmo mundo tendo

a Palestina como Terra Santa e compreendendo todo o mundo, onde a

paz e a prosperidade reinarão, o solo será fútil, a morte não mais

ameaçará a humanidade. Tal paraíso no livro de Enoque é chamado de

Jardim da Justiça (Enoque 32,3; 77,3). Há passagens bíblicas que

descrevem com riqueza de detalhes como será tal paraíso (Isaías 29,18).

O Reino de Deus, pelo menos originariamente era imaginado como uma

comunidade estabelecida nesta terra. Uma organização política do povo

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comunidade estabelecida nesta terra. Uma organização política do povo

Judeu e mesmo na metade do século I a.C., de modo geral pensava-se

no Messias como ser humano, porém havia também a concepção do

Messias como ser-sobre-humano, vindo do céu.

NENHUMA CRENÇA NA IMORTALIDADE DA ALMA

A missão do Messias era realizar a Justiça neste mundo. Essa justiça não

era concebida como retribuição exercida em outro mundo sobre as

almas imateriais e imortais dos homens após a morte. Entre os judeus

da Palestina prevalecia a idéia de que corpo e alma estão

inseparavelmente ligados, de tal modo que uma alma vivendo sem seu

corpo era-lhes estranhas.

A crença de que a alma pode existir sem seu corpo não fora ensinada

em nenhuma parte do antigo testamento. Antes quando se fala na alma,

refere-se ao homem vivo.

No antigo testamento prevalecia a idéia de que os mortos existem no

Xeol (Números 16,33), um lugar de escuridão e pó onde ficam

“dormindo”. O Xeol é a generalização do túmulo.

Nas escrituras não existe nenhuma relação entre Deus e a terra dos

mortos, o Xeol não tem nada haver com a justiça, nesta terra de

esquecimentos não há diferenças entre o justo e o injusto, há um único

destino para todos. A justiça de Deus não é dada a conhecer no Xeol

(Salmos 88,12).

A CRENÇA NA RESSURREIÇÃO DOS MORTOS

Embora não houvesse nenhuma idéia de justiça no Xeol, havia, não

obstante, uma crença na justiça de Deus a ser realizada após a morte. A

crença não estava na imortalidade da alma, mas sim na ressurreição

dos mortos a ser realizada neste mundo, pelo juízo final que inaugura o

reino messiânico.

Primeiramente a idéia era de que somente os justos ressuscitariam do

Xeol, posteriormente passou a acreditar que todos se ergueriam para

que fossem julgados pelo Juízo final.

Como a esperança pela libertação nacional desempenhava um papel

decisivo na crença da vinda do Messias e, consequentemente o Reino de

Deus era concebido como uma restauração do reino darídico – um

reino sobre essa terra, apenas a ressurreição do corpo podia ajustar-se

a esse esquema. A espiritualização da crença na ressurreição e no Reino

de Deus é uma transformação posterior.

O JUÍZO FINAL

Considerava-se que esse julgamento era dirigido não apenas contra os

pagãos e os inimigos e supressores de Israel, mas sim um julgamento

individual de todos os vivos e dos mortos ressuscitados. Um julgamento

universal de toda a humanidade. Tem o verdadeiro caráter de um

processo judicial.

Todos serão julgados exatamente de acordo com os feitos que

cometeram em vida. Segundo uma versão, o próprio Javé seria juiz,

segundo outra, o Messias exercerá este ofício, recompensando os

justos com a vida eterna e feliz e os injustos com a dor eterna no Hades.

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A SEPARAÇÃO DA CRENÇA ESCATOLÓGICA E DA IDÉIA MESSIÂNICA

Originariamente, a crença na ressurreição e no Reino Messiânico

inaugurados pelo juízo final, coincide com a crença escatológica como

crença em um mundo futuro. Posteriormente, surgiram outras idéias

que levaram a uma separação das duas. O desejo de justiça necessitava

que a crença em uma retribuição fosse estabelecida imediatamente

após a morte. No tempo entre a morte e a ressurreição supunha-se que

o destino dos justos e dos injustos não fosse o mesmo (felicidade aos

primeiros e estado de dor aos segundos). Para tanto, para alguns o Xeol

era dividido em compartimentos, de tormento para os injustos e

conforto para os justos. Para outros, os justos vão imediatamente após

a morte para o céu.

A retribuição exercida imediatamente após a morte podia ter apenas

um caráter provisório enquanto existisse a crença no juízo final e na

ressurreição. Contudo, existia uma tendência crescente de que este

paraíso messiânico era apenas uma etapa provisória para se alcançar a

felicidade definitiva. Tal estado transcendental de bem-aventurança,

esperado após o período messiânico, não poderia referir-se a vida física

do paraíso messiânico. Pressupunha a crença na imortalidade da alma

influenciada pela filosofia grega.

Por derradeiro, os judeus para quem Jesus pregou ainda acreditavam

na ressurreição dos mortos e no paraíso messiânico como etapa final.

A IDÉIA QUE JESUS TEM DO REINO DE DEUS

Não é possível separar no ensino de Jesus a esfera messiânica e a esfera

escatológica (parte da teologia que trata do fim dos tempos). O mundo

futuro de justiça coincide com o reino messiânico. Jesus apresenta a

visão de que a era presente é de injustiça e de que a nova era (do Reino

de Deus) trará justiça pela inversão completa das presentes relações

sociais.

O princípio da inversão se verifica nas afirmações de que “muitos que

hoje são os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros”

(Marcos 10, 31). Ou em “bem-aventurados sois vós, que sois pobres,

pois o reino de Deus é vosso (...) mas ai de vós, que sois ricos, pois

tivestes vosso conforto!” (Lucas, 6, 10). Este princípio da inversão é

inteiramente oposto ao mandamento “ama os teus inimigos e ora pelos

que te perseguem”; é uma aplicação da lei da retribuição. É uma justiça

do ressentimento, não a justiça do amor de Deus.

A idéia de retribuição no ensinamento de Jesus. Os Evangelhos atribuem

a Jesus alguns feitos e ditos que não estão inteiramente em

conformidade com seu mandamento de não resistir ao mal e amar o

inimigo. Segundo Mateus, por exemplo, Jesus havia chamado os fariseus

de “hipócritas”, “serpentes”.

Mesmo quando prega a nova justiça do amor em oposição à antiga

justiça da retribuição, Jesus nem sempre se emancipa desta. O amor de

Deus não deve esperar nenhuma recompensa (Lucas, 6, 32), mas Jesus

também diz “se amardes apenas aqueles que vos amam, que

recompensa podeis esperar? “. É o próprio princípio da retribuição que

Jesus aplica ao dizer “todo aquele que me reconhecer perante os

homens eu reconhecerei perante meu Pai no céu (Mateus 10, 32). Jesus

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homens eu reconhecerei perante meu Pai no céu (Mateus 10, 32). Jesus

ensinou “deveis sempre tratar os outros como gostaríeis que eles vos

tratassem. É o princípio da retribuição: igual por igual.

O ensinamento de Jesus sobre o juízo final. Verifica-se a retributividade

especialmente no julgamento no fim da era injusta e no início da era

justa que é anunciado por João Batista, assim como pelo próprio Jesus.

Este é um dia marcado pela retribuição e pelo castigo cruel. “E quem

fala contra o Filho do Homem será perdoado, mas quem fala contra o

Espírito Santo não pode ser perdoado, neste mundo ou no mundo por

vir” (Mateus 12, 24 ss.)

O Reino de Deus está no meio de vós. A afirmação de Jesus de que o

“Reino de Deus alcançou-vos” implica que, na sua opinião, o Reino de

Deus já chegou, de que seus arautos já podem ser vistos. Quando os

fariseus lhe perguntaram quando viria o reino de Deus, ele respondeu

“O Reino de Deus está no meio de nós (Lucas, 17, 21). Essa opinião de

que o reino de Deus está iminente, ou melhor, está presente, é

conseqüência inevitável da crença de que ele é o Messias, cuja missão é

estabelecer esse reino de justiça na terra.

O Reino de Deus como realização de Justiça na terra. Não pode haver

dúvida de que o reino de Deus, tal como descrito nos Evangelhos

Sinópticos, era imaginado, em conformidade com a tradição judaica,

como uma comunidade terrena de homens vivendo fisicamente. Jesus

fala repetidamente em comer e beber no Reino de Deus.

O entendimento de que o Reino de Deus imaginado por Jesus ou por

seus seguidores era uma organização política terrena, resulta do fato de

que acreditavam nele como o rei messiânico de Israel, o profetizado

governante do rei davídico restaurado. Como o rei legítimo deve

descender de Davi, os Evangelhos tentam provar sua descendência,

apesar do próprio Jesus declarar que o Messias não tem que ser o filho

de Davi (Mateus 22, 45). Eles o provam pela ascendência de seu pai José,

marido de sua mãe, Maria, embora, ao mesmo tempo afirmem que

Maria o concebeu pela influência do Espírito Santo. Jesus também, não

rejeitou a crença dos discípulos de que ele era o Messias, rei de Israel.

Ele finalmente admitiu ao sumo sacerdote, assim como a Pilatos, que

era o Messias e o rei de Israel. E foi com base nessa afirmação que foi

condenado à morte.

Por outro lado, é verdade, conforme o autor do Evangelho segundo São

João, Jesus disse a Pilatos “meu reino não é deste mundo” (João 18, 36).

Mas essa declaração não significa – como às vezes se interpreta – que

seu reino está além do seu mundo, que não tem nada a ver com o

domínio deste mundo real. Significa apenas que seu reino origina-se no

céu e que será estabelecido neste mundo por uma intervenção direta e

miraculosa de Deus.

Qualquer tentativa de interpretar o Reino de Deus no ensinamento de

Jesus como um domínio meramente espiritual é incompatível com o

fato de que um elemento essencial desse ensinamento era a crença na

ressurreição. A ressurreição é um elemento essencial no ensinamento

de Jesus sobre o Reino de Deus não apenas porque esse reino é uma

comunidade de seres vivos vivendo nesse mundo, mas acima de tudo,

porque o juízo final, com o qual tem início esse reino, é um julgamento

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“dos vivos e dos mortos” (Atos 10, 42). Como nessa era má muitos

morreram sem a punição ou a recompensa que mereciam, eles devem

ser erguer-se dos mortos para serem trazidos à justiça no dia do juízo

final.

Para levar a cabo o julgamento, o Messias, o Filho do Homem, descerá

do céu sobre as nuvens. É significativo que o Reino de Deus venha do

céu para a terra e não que os homens vão – após a morte – para o reino

do céu. Essa é a idéia expressa na oração, “venha nós ao vosso reino,

seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu” (Mateus 6, 10)

Como haverá o céu sobre a terra, o antagonismo deste mundo

imperfeito e de um outro mundo, perfeito, acabará. O Reino de Deus, tal

como estabelecido após o juízo final, é um mundo perfeito e isso

significa, em primeiro lugar, um mundo absolutamente justo e, neste

aspecto, um mundo sobre-humano sobre esta terra.

É muito característico do Reino de Deus que o dualismo de uma esfera

humana empírica e uma esfera divina transcendental seja abolido. Os

que vivem no reino verão Deus; e isso significa: experimentarão a justiça

absoluta.

A justiça do juízo final: a retribuição. Contudo, a justiça a ser realizada

pelo juízo final nada mais é que a retribuição: o castigo impiedoso dos

maus, a recompensa generosa para os bons; e a punição está em

primeiro plano. Jesus anuncia o juízo final como “os dias de vingança”

(Lucas, 21, 22). O julgamento é a execução da justiça da retribuição. O

“castigo eterno” dessa retribuição divina é inteiramente coerente com o

Deus de vingança do Antigo Testamento, mas incompatível com a nova

justiça, o amor de Deus no Sermão da Montanha.

Foram muitas as tentativas de eliminar as contradições do ensinamento

de Jesus por meio de interpretações mais ou menos artificiais. O

método mais bem-sucedido é diferenciar os ditos autênticos e não-

autênticos de Jesus com base em uma análise histórico-crítica das

fontes. Assim, por exemplo, a passagem decisiva em Mateus 25, 31, em

que Jesus é apresentado como Juiz do juízo final, sentenciando os

malfeitores ao fogo eterno, foi declarada como uma elaboração de

Mateus. Tal método histórico-crítico, porém, não é compatível com o

conceito do Novo Testamento como revelação divina. Por esse método

pode-se reconstruir um sistema de moralidade mais ou menos

coerente no ensinamento de Jesus, mas não se pode eliminar o fato de

que o Novo Testamento contém idéias de justiça contraditórias. Isso é

especialmente verdadeiro no que diz respeito à relação existente entre

os Evangelhos Sinópticos e as Epístolas de Paulo.

O ENSINAMENTO DE JESUS COMPARADO COM O ENSINAMENTO DE

PAULO

A rejeição de Paulo da lei judaica. Foi muitas vezes enfatizado que há

uma diferença entre o ensinamento de Jesus e o de Paulo. Essa

diferença é evidente no que diz respeito à idéia de justiça e de sua

relação com o direito positivo. Quanto à Lei Judaica, Paulo vai muito

mais adiante que Jesus, que tentou sustentar a aparência – pelo menos

em princípio – de que não era contra a Lei. Mas Paulo declarou

abertamente “agora a Lei não se aplica mais a nós” (Romanos 7, 6). “que

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abertamente “agora a Lei não se aplica mais a nós” (Romanos 7, 6). “que

ninguém é aceito por Deus como justo por obedecer à Lei é evidente,

pois o justo terá vida por causa de sua fé, e a Lei não tem nada a ver

com a fé” (Gálatas 3, 10 ss).

Contudo, a “Lei” contra a qual Paulo erguia sua voz eram antes as

disposições rituais do código judaico. Pois ele reconhecia e confirmava,

de acordo com a vontade de Deus, as principais instituições jurídicas do

Direito positivo de seu tempo: a família baseada no casamento, a

propriedade baseada no trabalho e o governo firmemente estabelecido

no Estado.

O ensinamento de Paulo quanto ao casamento e à propriedade. A visão

de Paulo sobre o casamento traz uma contradição, pois em certas

passagens o afirma como o menor de dois males (seria bom para o

homem ser solteiro, porém haveria tanta imoralidade que a união com

uma esposa seria algo necessário); contudo o declara como instituição

tão sagrada quanto a relação entre Cristo e a Igreja.

A contraposição entre Jesus e Paulo se acentua em certos temas. O

primeiro ensinou: “renuncia a tua profissão, não trabalheis para

satisfazer às necessidades de teu corpo, pois Deus cuidará de ti”. Como

depois da morte de Jesus, os novos cristãos acreditassem que o Reino

de Deus estava próximo, havia certo perigo de que os crentes

considerassem o trabalho supérfluo, o que poderia causar sérias

dificuldades políticas. Assim, Paulo ensinou “Se alguém se recusar a

trabalhar não lhe dês comida”.

O próprio Paulo ganhava o sustento fazendo tendas, ao passo que

Jesus, quando se tornou pregador, parece ter deixado de exercer a

profissão de carpinteiro. Jesus ordenou que seus discípulos não

carregassem dinheiro em seus bolsos; mas Paulo fez coletas

organizadas de dinheiro para o “Povo de Deus”, isto é, para a

comunidade dos primeiros cristãos em Jerusalém.

Jesus ensinou que um homem rico não poderia entrar no Reino de

Deus, mas Paulo apenas pedia que os ricos desse mundo fossem

também ricos em generosidade, acumulando um valioso tesouro para o

seu futuro. Paulo até mesmo reconheceu a escravidão como instituição

jurídica não incompatível com a nova justiça do amor.

O ensinamento de Paulo sobre a autoridade estabelecida. Jesus não

pregava que se pagassem impostos e não reconhecia nenhuma

autoridade terrena, mas Paulo ordenou expressamente aos cristãos

que “pagassem impostos aos homens autorizados a recebê-lo”. As

autoridades existentes do Império Romano – que para Jesus eram o

reino de Satanás – são agentes de Deus. Assim: “o homem que faz o

certo não tem que temer os magistrados, como tem o malfeitor. Se não

queres temer as autoridades, faz o certo e eles te recomendarão por

fazê-lo pois são agentes de Deus para fazer-te bem.

Paulo traz uma aplicação do princípio: a cada um o seu, segundo a lei

existente. A doutrina de Paulo não implica apenas um reconhecimento

sem reservas do Direito positivo do Império Romano e da autoridade

estabelecida desse Estado; é a justificação mais elevada possível de

qualquer Direito positivo e de qualquer autoridade de Estado

estabelecida, e, portanto, do princípio da retribuição como uma

manifestação da vontade de Deus.

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manifestação da vontade de Deus.

A IDÉIA MÍSTICA DE JUSTIÇA DE PAULO

A interpretação de Paulo da justiça do amor. Após insistir na obediência

incondicional à lei do Estado e de, assim, reconhecer a retribuição como

o princípio da justiça, Paulo afirma: “não devas nada a ninguém – exceto

o deve do amor mútuo, pois quem quer que ame seus semelhantes,

satisfaz plenamente à Lei.”

Paulo questiona se esse amor é compatível com a Lei baseada no

princípio da retribuição: “É errado em Deus – estou usando termos

humanos comuns – infligir castigo?” E responde: “de maneira nenhuma!

Pois como ele poderia julgar o mundo?“ (Romanos 3, 5). Nas cartas de

Paulo, a vingança, a raiva e a ira de Deus não são mencionadas menos

vezes que o amor de Deus.

Paulo repete o ensinamento de Jesus: “não pagueis o mal com o mal”,

“não te vingues”; mas acrescenta, “deixa espaço para a ira de Deus, pois

a Escritura diz, ‘A vingança a mim, eu me vingarei, diz o Senhor’”

(Romanos 12, 17 ss). E, imediatamente após proclamar a justiça do

amor, ele apresenta sua doutrina de que as autoridades estabelecidas

do Estado são instituídas por Deus e, assim, deve ser considerada a

vontade de Deus que os malfeitores sejam punidos por essas

autoridades.

A espiritualização do Reino de Deus no ensinamento de Paulo. Ao

contrário de Jesus, Paulo, ao reconhecer a autoridade legal do Império

Romano, não podia sustentar a crença no Reino de Deus como

restauração do Estado judeu estabelecido neste mundo. O Reino de

Deus tinha de ser transformado em uma ideologia puramente religiosa

e apolítica por meio de sua transferência desse mundo para um mundo

transcendental, de modo que parecesse inofensivo para a polícia

romana. Essa espiritualização do reino de Deus e, especialmente, do

elemento mais essencial, a ressurreição dos mortos, é a contribuição

mais importante de Paulo à crença cristã.

Paulo ao explicar a ressurreição diz que existe um corpo físico, mas

também um espiritual; mas que não é o espírito que vem primeiro, mas

o físico, e então o espiritual. Não é um corpo físico, mas um corpo

espiritual que é erguido dos mortos, então a destruição da morte

significa a imortalidade da alma e então “o reino de Deus não é uma

questão do que comemos ou bebemos, mas da justiça, da paz e da

felicidade por meio da posse do Espírito Santo” (Romanos 14, 17).

Justiça: o segredo da fé. A tentativa de Paulo espiritualizar o Reino de

Deus certamente não é causada apenas pela intenção de evitar um

conflito direto com as autoridades romanas. Está intimamente ligada a

uma tendência geral dos sentimentos religiosos de Paulo, sua inclinação

para o irracionalismo e o misticismo. Ele estava inteiramente consciente

da contradição entre o princípio da retribuição e o princípio do amor.

Mas tal contradição existe apenas do ponto de vista da compreensão

humana; é relevante apenas dentro da sabedoria deste mundo, não

dentro da sabedoria misteriosa de Deus.

A sabedoria de Deus – o que implica a sua justiça – é um mistério e a fé,

nada a mais além da fé, permite-nos apreender essa justiça. Paulo

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afirma que apenas a fé ensina pelo amor e que esse está além da

compreensão humana. Por esse motivo, a justiça do amor permanece

um segredo.

O resultado final do ensinamento de Paulo, que é a base da teologia

Cristã da justiça, pode ser formulado da seguinte maneira: existe uma

justiça humana, relativa, que é idêntica ao Direito positivo, e uma justiça

absoluta, divina, que é o segredo da fé. Portanto, não existe nessa

teologia nenhuma resposta à questão do que é justiça, uma questão da

razão humana que se refere a um ideal que não é necessariamente

idêntico a todo Direito positivo e que pode ser realizado neste mundo.

III. A JUSTIÇA PLATÔNICA

PARTE I

A marca da filosofia platônica é um dualismo radical. Não é um, mas são

dois os mundos que Platão enxerga, quando, com os olhos da alma,

contempla um domínio transcendente, sem espaço nem tempo, da

IDÉIA, da coisa-em-si, da realidade absoluta, verdadeira, do ser sereno, e

quando a este domínio transcendente ele opõe a esfera espaço-

temporal da percepção sensória – uma esfera de DEVIR EM

MOVIMENTO, que ele considera ser apenas um domínio da semelhança

ilusória, um domínio em que a realidade é um não-ser.

Esse dualismo protéico, multiforme é, na análise final e no seu sentido

mais primitivo, a oposição entre o bem e o mal.

Na filosofia platônica, o ético mantém uma posição de importância

inequivocamente primordial. É apenas na esfera da ética que o

pensamento puro, libertado de toda experiência sensorial, é possível.

Esse pensamento é, pela sua própria natureza, voltado para o ideal

ético.

O objetivo que Platão se esforça em alcançar a partir dos pontos de

vista mais diversos e com a maior energia, da primeira à última de suas

obras, é o bem absoluto. O bem, contudo, é inconcebível separado do

mal. Se o bem deve ser o objeto da cognição, então a cognição deve

também reconhecer o mal; e isso é verdade na filosofia platônica, que

não é - de nenhuma maneira- uma doutrina do bem como geralmente é

apresentada, mas uma especulação sobre o bem e o mal.

A idéia do bem na representação platônica destaca-se mais claramente

que a concepção do mal; as reflexões concernentes ao bem são

desenvolvidas com mais força e clareza que aquelas que têm o mal

como seu objeto.

Apenas em um período tardio de sua criatividade o mal se tornou uma

realidade, um ser para Platão, e isso só depois de forçado a atribuir ao

DEVIR, o representante do mal no dualismo ontológico, originalmente

desqualificado na condição de não-ser, uma espécie de existência ou ser

real. É por isso que a concepção original do dualismo platônico sustenta

que apenas o mundo da IDÉIA, que é o MUNDO DO BEM, participa da

existência real, ao passo que o MUNDO DAS COISAS, do DEVIR, deve ser

considerado como não-ser (esse mundo empírico da realidade sensória,

perceptível, o mundo temporal dos eventos concretos, é o mundo do

mal, na medida em que está em oposição ao mundo do bem).

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mal, na medida em que está em oposição ao mundo do bem).

O pensamento que se volta para o verdadeiro ser deve ser colocado

acima da percepção sensorial dessa aparência de ser; a ética deve ter

precedência sobre a ciência natural, para que o bem, o que deve ser,

possa ser afirmado como realmente sendo.

A visão estabelecida pela cognição científica, voltada para a realidade da

experiência sensória, isto é, para uma explicação do mundo, é

radicalmente invertida pela visão ética, voltada para o valor e a

justificação do mundo.

Em geral, o processo de tornar relativa essa oposição fundamental de

bem e mal é uma das pontes por sobre as quais o pensamento humano

passa da ética para a ciência natural. O ponto decisivo nesse processo é

esse: não apenas o bem, mas também o mal é concebido como ser,

como realidade; consequentemente, a realidade empírica é percebida

não apenas como mal, mas também como bem, como uma mistura de

bem e mal.

Na concepção platônica original da estrutura do mundo, encontra-se

claramente presente uma inclinação para tornar absoluto esse

dualismo fundamental de bem e mal. Entre os dois mundos em que se

divide todo o universo, Platão pressupõe uma oposição implacável.

Por outro lado, há indícios na doutrina platônica de uma tendência para

tornar relativos esses opostos. Assim, vê-se na sua obra um dualismo

empedernido, que não tolera pontes por sobre as quais a cognição

possa passar de um mundo para o outro, e um profundo pessimismo,

que nega esse mundo e a possibilidade de conhecê-lo, para afirmar

aquele outro mundo em ser e saber.

É extremo porque nega a possibilidade da ciência empírica e proclama

como único objeto de cognição verdadeira o que se encontra além da

experiência. Ao mesmo tempo, ele está obviamente tentando preencher

de alguma maneira o abismo entre os dois mundos por meio da

introdução de um meio-termo – um mediador para a oposição

implacável desses produtos da especulação dualista.

PARTE II

A atividade intelectual dos grandes moralistas está enraizada na sua

vida pessoal num grau muito maior do que nos outros pensadores,

porque toda especulação sobre o bem e o mal origina-se de uma

experiência moral profunda.

O curso da vida de Platão é determinado essencialmente pela paixão do

amor, do Eros platônico. A imagem da vida de Platão que se pode ver a

partir dos documentos deixados por ele não retrata a natureza fria,

contemplativa de um erudito que se contenta em olhar o mundo

meramente como um objeto de conhecimento. Antes, surge um espírito

sacudido pelas mais violentas paixões, um espírito humano em que vive,

em íntima e inextricável união com seu Eros, uma vontade indômita de

poder, de poder sobre homens.

Seu objetivo era formar homens e reformar sua comunidade. Assim,

não há nada com o qual seus pensamentos mais se preocupem do que

com a educação e o Estado.

A paixão pedagógica e política de Platão têm sua origem em seu Eros.

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A paixão pedagógica e política de Platão têm sua origem em seu Eros.

Esse Eros é a fonte dinâmica da filosofia platônica e é a natureza do Eros

que determina a relação pessoal de Platão com a sociedade em geral e

com a sociedade democrática de Atenas em particular. Do mesmo

modo, é a explicação de sua fuga do próprio mundo que ele deseja

dominar, para melhor modela-lo segundo o seu desejo.

Esse Eros, o amor pelos jovens, coloca Platão em oposição à sociedade,

pois não surge nele como expansão e enriquecimento da vida sexual

normal. A natureza de Platão exclui a vida sexual normal. Via de regra,

os que amavam belos jovens tinham também uma esposa e um filho em

casa, como Sócrates; mas nenhuma mulher desempenhou qualquer

papel na vida de Platão. O casamento, que era envolto por um halo de

santidade pela religião grega, e a família, que era um elemento

fundamental do Estado grego, permaneceram estranhos a Platão, que

passou a vida em um círculo de homens.

Sentia-se incapaz de cumprir o mais importante dever patriótico: o

dever de prover o Estado de novos cidadãos, gerando filhos legítimos; e

isso deve ter sido tanto mais doloroso porque sua postura intelectual

voltava-se contra o declínio moral da época e tinha como objetivo o

restabelecimento da moralidade ancestral.

Fora do domínio da cultura dórica, especialmente em Atenas, a

pederastia era vista com desprezo; Aristóteles estigmatizou-a na sua

“Ética a Nicômaco” como um vício antinatural. Mesmo o direito penal

ateniense exibe uma nítida tendência de oposição à pederastia.

Em “O Banquete e Fedro”, Platão defende o seu Eros que ama meninos

contra a visão oficial, confessando-o ele próprio, embora apenas na sua

forma espiritualizada. Mas esse Eros foi caracterizado pelo velho Platão,

em sua última obra, como perigoso para o Estado, como a fonte de

inúmeros males tanto para os indivíduos como para Estados inteiros.

Isso foi escrito indubitavelmente em uma época em que Platão se

libertara da tirania desse Eros.

Como jovem e como homem, ele evitou o conflito aberto apenas por

meio do esforço que fez logo desde o início, com energia inigualável e

grande força moral, para espiritualizar esse Eros. Platão explica a visão

do amor por meninos como o primeiro passo no caminho do

conhecimento do bem. Ele despe seu Eros da sensualidade que é a sua

própria natureza, sublimando-o completamente sob a pressão das

visões sociais e de suas próprias convicções morais.

É em “O banquete” que o filósofo justifica seu Eros, assim justificando-se

ao mesmo tempo justificando o próprio mundo. Á questão de Sócrtates

quanto à real natureza de Eros, Platão faz com que a profetisa Diotima

responda: “Ele é um grande espírito e, como todos os espíritos, é

intermediário entre o divino e o mortal (...) o medidor que cobre o

abismo que os divide e, portanto, nele tudo é unido”. O que

originalmente dividiu o mundo platônico agora une-o novamente. Eros

produziu a separação; Eros é responsável pela reunião.

Com isso, o dualismo platônico assume um viés otimista. Com a

tendência de tornar relativa a oposição entre bem e mal, a filosofia

platônica volta sua atenção para este mundo e almeja um mundo

unificado que abranja a natureza. A natureza que ele compreende não

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será considerada meramente a partir de um ponto de vista ético, isto é,

como algo que DEVE SER ou NÃO DEVE SER, mas será concebida como

algo que É, porque não é mais concebida como absolutamente má e,

portanto, como NÃO-SER, mas como participante – em diferentes graus

– do ser real. Essa nova direção o reconduz à sociedade e ao Estado.

Platão afirma repetidamente que o Eros que ama meninos, se é

espiritualizado, é uma forma procriadora. Por intermédio da profetisa

ele faz saber que os mais belos filhos propagados pelo seu Eros

espiritual incluem não apenas a poesia e as obras de escultura, mas

também as artes da ordem social, das constituições, das leis e das

obras da justiça. Esses são, pois, os filhos que seu Eros desejava: as

melhores leis, a ordem justa do Estado, a educação correta da

juventude.

Revela-se aqui de maneira mais clara a conexão íntima que existia entre

o Eros platônico e sua vontade de poder sobre homens, entre suas

paixões eróticas e pedagógicas.

PARTE III

O estudo recente de Platão abalou a crença de que ele era um filósofo

teórico que tinha como objetivo o estabelecimento de uma ciência

rigorosa. Hoje, sabe-se que Platão era por temperamento mais um

político que um teórico.

Considerando que a sua vontade política ética era inteiramente fundada

na metafísica, e, consequentemente, expressa em uma ideologia

religiosa declarada, suas obras dão a impressão não tanto de um

sistema erudito de ciência moral, mas de uma profecia do Estado ideal.

Na sua obra “Epístola VII”, Platão confessa que seu real desejo, da

juventude em diante, foi a política, e que esperou toda a sua vida pelo

momento oportuno para agir. O seu desejo mais ardente é o domínio

do Estado. Para ele, o poder deve residir na única filosofia verdadeira,

na única que conduz ao conhecimento da justiça e torna legítima a

pretensão de domínio: a filosofia platônica.

A Academia que Platão fundou logo após seu retorno da primeira

viagem que fez para a Sicília (Academia Platônica) foi especialmente

incentivada pelos círculos aristocráticos. Consistia em uma comunidade

fundada na religião platônica e no Eros platônico. É particularmente na

função política da Academia, no seu caráter como preparação para a

vocação estadista, que se reconhece o seu objeto primário. As

tendências decidiamente antidemocráticas e aristocráticas da Academia

fizeram dela um baluarte do pensamento reacionário: mas ela não era

apenas o centro de educação de polícos conservadores – era,

igualmente, o centro da atividade política.

A postura da Academia Platônica correspondia à posição intelectual

fundamental de Platão, para quem a educação era a compensação para

a política e a escola a virtual célula do Estado ideal. Voltava-se nem tanto

para a ciência exata como para a especulação ética e mística. Assim, foi

a escola corretamente denominada “seita metafísica”.

Platão recorre mais e mais a mitos quando deseja explicar o que

considera essencial. Nenhum homem de ciência faria isso. Ele descobre

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considera essencial. Nenhum homem de ciência faria isso. Ele descobre

algo mais elevado e mais importante que a teoria exata junto ao seu

coração e, ao tentar dar-lhe expressão, fala mais com palavras

proféticas obscuras, como um vidente do mundo além, do que como

um cientista do mundo.

Há um significado profundo no fato peculiar de Platão nunca surgir

como o representante das opiniões desenvidas nas obras que levam o

seu nome; ele apresenta essas visões por meio da pessoa de Sócrates,

depois por meio de outro, o Estranho Ateniense. Esse é o verdadeiro

motivo da escolha dos diálogos. Sem dúvida essa forma literária atraía

sua natureza dividida, dilacerada como era por um conflito trágico.

Ora, quem poderia sentir mais agudamente que Platão a necessidade

de dar ao adversário, além de a si mesmo, uma oportunidade de falar?

Ele tinha esse adversário no próprio peito, e apenas permitindo que

falasse podia livrar-se desse conflito interior.

Assim, descobriu nesse tipo de apresentação uma escapatória possível

da necessidade de identificar-se com qualquer teoria.

Platão é, pois, um poeta no sentido de que se preocupa pouco com o

que dizem seus personagens; se suas declarações são mais ou menos

verdadeiras é questão de pouca importância para ele. Aquilo a que

Platão dá suprema importância é o efeito produzido por essas falar. Ele

é realmente um dramaturgo, exceto pelo fato de o efeito por ele

desejado não ser estético, mas de natureza religiosa e moral.

A ciência, para Platão, assim como para os pitagóricos, é apenas um

meio para um fim.

Conhecer o mundo, seja como natureza, seja como sociedade, é um fim

inteiramente diverso daquele de determinar o mundo pela vontade, de

formá-lo ou reformá-lo, de educá-lo ou dominá-lo. É uma lei vital de

todo conhecimento puro que ele seja desenvolvido por si só. Essa lei

aplica-se especialmente às ciências sociais, pois quando essas ciências

são colocadas a serviço da política elas não mais servem o ideal de

verdade objetiva, mas devem tornar-se uma ideologia de poder.

Quão grande era a tendência da filosofia platônica nessa direção é

indicado pela concepção de verdade de Platão, a verdade platônica, tão

característica que, juntamente com o amor platônico, pode ser tomada

como elemento essencial do pensamento platônico.

PARTE IV

Platão diz que no Estado ideal (que é o Estado governado pela filosofia

platônica), o governo deve usar algumas fraudes e engodos para o

“bem-estar dos governados”.

Exemplo (regulamentação estatal do controle de natalidade): os casais

selecionados sob orientação estatal para o propósito de propagação

devem ser enganados para que não se considerem meramente

instrumentos nas mãos do governo. Devem acreditar que o destino

(por meio de sorteio) designou-os uma para o outro.

O interesse do Estado, para Platão, está acima de tudo em importância

– até mesmo acima da própria verdade. “Os fins justificam os meios”

destaca-se claramente como um princípio da teoria política platônica; e

essa máxima é uma consequência direta da primazia assumida pela

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essa máxima é uma consequência direta da primazia assumida pela

vontade sobre o conhecimento, da justiça, sobre a verdade.

No diálogo “As Leis”, Platão faz um grande número de propostas

surpreendentes. Para engendrar e garantir uma postura adequada por

parte dos cidadãos, propõe dividi-los em três coros: um para meninos,

outro para jovens e um para velhos. Será exigido desses coros que

cantem as canções prescritas pelo governo, que devem incorporar

ensinamentos úteis ao Estado – acima de tudo, devem proclamar o

ensinamento de que a justiça conduz à felicidade e a injustiça à

infelicidade. Assim, a crença na verdade desse ensinamento é

propagada.

É concebível que haverá oposição a esse programa da parte dos velhos,

pois com o avançar dos anos é natural que sintam relutância para

cantar e dançar. Assim, será necessário providenciar para que os

membros do terceiro coro sejam induzidos à embriaguez, sob a direção

de um funcionário do governo, assim eles podem ser manejados

facilmente como crianças.

Platão formula o famoso símile dos homens como fantoches nas mãos

da divindade, do operador divino do espetáculo de fantoches. De modo

similar, o governo, que é o representante da divindade, pode manipular

os fios enquanto se mantém tão invisível quanto pode. A única

justificatica desse procedimento é que isso contribui para os melhores

interesses do homem e apenas desse modo a justiça pode realizar-se.

Platão faz outras propostas que visam obrigar a ciência, a poesia e a

religião, na sua função de produtoras de ideologia, a servir o Estado.

Talvez não seja surpreendente descobrir que Platão como político ou

teórico da política adote uma posição similar à do pragmatismo, que

declara que o que é útil para o Estado e, portanto, constitui a justiça,

constitui igualmente a verdade.

Não se pode, porém, escapar à impressão ocasional de que Platão, em

sua capacidade de epistemologista e psicólogo, está fazendo a ressalva

de uma possível dualidade da verdade, embora não diga diretamente.

De que outra maneira podemos explicar o fato de desenvolver, por um

lado, sua teoria das idéias com uma pronunciada tendência monoteísta

e, ao mesmo tempo, afirmar a religião oficial do povo, que, com sua

multiplicidade de deuses, era inteiramente incompatível com esse

monoteísmo?

A inclinação é, antes, admitir que Platão estava bem consciente dessas

contradições em sua doutrina, que elas representavam para ele graus

diferentes de verdade, análogos aos diferentes graus do Eros. Ele

considerava, assim, a verdade político-religiosa mais importante e,

portanto, ela ocupa uma posição de primazia diante da verdade

racional.

PARTE V

Os diálogos escritos por Platão na juventude, enquanto ainda estava

sob a influência de Sócrates, nos quais trata direta ou indiretamente do

problema da justiça, perdem-se em uma análise estéril de conceitos, em

tautologias vazias.

Característico desse período inicial de Platão é o “Trasímaco”, obra

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Característico desse período inicial de Platão é o “Trasímaco”, obra

provalmente iniciada antes da primeira viagem de Platão à Siracusa.

Não foi inteiramente completada, mas incorporou-se posteriormente

ao primeiro livro de “A República”. Essa seção finalmente se encerra

com a declaração de Sócrates de que, para ele, o resultado de toda a

discussão é meramente a informação de que ele não sabe nada, pois a

questão real e decisiva quanto à essência da justiça não foi discutida. Na

medida em que não se sabe o que é justo, não se pode decidir se o justo

é ou não uma virtude ou se o homem justo é ou não feliz.

Quando Platão deixou incompleto o se “Trasímaco”, encontrava-se no

momento decisivo da sua vida, às vésperas de uma viagem à Itália

meridional, onde se familiarizou com a metafísica política e religiosa da

escola pitagórica. Esse pitagorismo tornou-se um novo guia, um guia ao

qual permaneceu fiel durante todo o resto da vida. Ele acreditada ter

encontrado no Pitagorismo a resposta para a questão mais premente: o

mistério da justiça.

A essência da doutrina pitagórica é a crença de que após a morte a alma

do homem será punida pelo mal e recompensada pelo bem. Essa

metafísica de um mundo futuro de almas, ou da metempsicose, indica

uma doutrina de justiça cuja essência é a retribuição.

Essa é a doutrina apresentada por Platão no diálogo “Górgias”. As

principais teses morais dessa obra são que é melhor sofrer a injustiça

que cometê-la, e que é melhor submeter-se à punição jurídica que

escapar dela.

Essa crença profética, de que a justiça é a retribução no outro mundo,

dominou a obra de Platão desse ponto até a sua morte.

A ligação íntima entre as doutrinas platônicas da alma e da justiça é

óbvia, não apenas no fato de ele sempre apresentar uma em conjunção

com a outra, especialmente na sua obra principal sobre a doutrina da

alma, “Fédon”, mas igualmente nas modificações pelas quais passa a

doutrina da alma.

A crença na concretização da justiça no outro mundo compele à

concepção de uma existência futura da alma; a necessidade de uma

cognição da natureza da justiça conduz à concepção de uma

preexistência da alma, à teoria do conhecimento como reminiscência do

que foi visto pela alma no outro mundo, antes de seu nascimento nesse

mundo. E aí se encontra o germe da doutrina das idéias. O que a alma

viu na sua preexistência são idéias e, acima de tudo, a idéia de justiça.

Poderia parecer que, com a fórmula da retribuição, Platão teria dado

resposta à natureza da justiça. Entretanto, essa resposta é apenas uma

resposta aparente; ela não oferece nenhuma informação real quanto à

natureza da justiça. Fundamentalmente ela revela apenas a função

concreta do direito positivo, que meramente vincula o mal do delito ao

mal da sanção como sua consequência. Ela reflete apenas a estrutura

externa da ordem social existente, que é uma ordem coercitiva. Essa

ordem é justificada pela representação do mecanismo de culpa e

punição como um caso especial de um princípio geral que – como

vontade da divindade – é a lei da retribuição.

Considerado por si mesmo, o conceito de retribuição é tão vazio quanto

o de igualdade, que é geralmente considerada a característica da

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justiça. Na verdade, a retribuição é ela própria uma fórmula de

igualdade, já que não faz nada mais além de que o bem será para os

bons, o mal para os maus, o semelhante para os semelhantes. Mas o

que é o bem, o que é exatamente a natureza desse bem do qual o mal

deve ser a negação? A questão quanto à natureza da justiça resume-se à

questão quanto à natureza do bem.

O bem é, assim, a substância da justiça, e por esse motivo Platão

identifica-os frequentemente. Então, a justiça, na medida em que se

refere a assuntos terrenos, é o Estado, que funciona como o aparelho

coercitivo da retribução. É o Estado que deve garantir o triunfo do bem

sobre o mal neste mundo.

Portanto, parece que a obra chamada "A República" tem como objetivo

fornecer uma resposta para a questão da substância da justiça. O seu

ponto central está na explicação do problema do bem, e é por esse

motivo que a culminância dessa obra sobre o Estado é a teoria das

idéias, a maior das quais parece ser a idéia do bem.

O que é realmente o bem, porém, não se descobre nesse diálogo, que

se restringe à afirmação de que o bem existe. Assim, a construção do

Estado ideal que Platão delineia em "A República" não é uma solução

dos problemas materiais referentes à natureza da justiça. É um

equívoco supor que o relato platônico do Estado verdadeiro ofereça o

plano acabado de uma ordem estatal.

Na vida da sociedade, ele exibe apenas as condições de organização sob

as quais a vida presumivelmente irá se moldar para os fins da justiça,

mas não explica essa vida justamente regulada, nem indica a

multiplicidade das normas que regulam as relações humanas e que

constituem elas próprias a essência da justiça. Não se encontra

nenhuma norma geral para regulamentação da vida do povo, que se

submete às duas classes reinantes (filósofos e guerreiros). Tudo é

deixado às decisões individuais do governo, que é composto de

filósofos, que, por causa de sua educação, conhecem e, portanto,

querem o bem. Mas em que consiste esse bem que deve realizar-se no

governo? Qual é a substância dos atos de governar? Apenas da resposta

a essas perguntas pode-se apreender a natureza da justiça.

O próprio Platão diz que a descrição da divisão tripartite do organismo

social como constituição do verdadeiro Estado não deverá, de nenhuma

maneira, ser considerada uma resposta à questão da natureza da

justiça. Isso demonstra a peculiaridade de seu método, o adiamento

contínuo da solução de problemas.

Platão tem consciência desde o início de que a tentativa de alcançar a

natureza da justiça por meio de uma analogia entre Estado e indivíduo

não será bem-sucedida, pelo menos não completamente. É realmente

esse o caso. Depois de estabelecido o paralelo e encontradas as três

partes da alma que correspondem às três partes do Estado, poder-se-ia

crer que a resposta à questão da justiça é óbvia, embora não

particularmente significativa. Essa resposta seria que as três partes da

alma (racional, espiritual e aquela onde residem os apetites) cada uma

delas exercerá a sua própria função e nenhuma outra. Segue-se, assim,

uma comparação da justiça com o bem-estar da alma, o que nada mais

exprime além da constituição correta da alma, e, portanto, não

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exprime além da constituição correta da alma, e, portanto, não

esclarece a analogia entre as constituições da alma e do Estado. Após se

desviar um tanto longamente do tema devido, Sócrates retorna a sua

observação de que, na verdade, é necessário um caminho mais longo e

detalhado para que se compreenda a natureza da justiça. Assim, em

uma etapa de certo modo avançada do diálogo (presente no livro "A

República"), o conhecimento que foi até então alcançado quanto à

natureza da justiça é novamente negado.

Mal uma resposta para a questão parece ter sido encontrada, a posição

atingida é abandonada; o resultado obtido é rejeitado como inexato ou

errôneo, e o fim é novamente adiado. Platão deixou a natureza do bem

em si nesse estado insatisfatório não apenas para o presente, mas para

a eternidade, e não apenas em "A República", mas em todos os outros

diálogos. Ele nunca responde à questão.

Esse método tem como propósito a elevação do objeto da discussão, a

justiça, a um grau de divindade, para que a questão quanto à sua

natureza essencial possa ser evitada.

O bem é e é o mais elevado entre todos. O que é, e do que é composto,

qual é o seu critério, como pode ser reconhecido nas atividades

humanas ou na ordem social, e, portanto, qual é a sua natureza decisiva

para a teoria e a prática social - essas questões permanecem sem

resposta. O filósofo que governa no Estado ideal conhece o bem. Os

outros devem se contentar em adorar e obedecer.

Considerando o que Platão disse em "O banquete", em "Fedro" e,

especialmente, na "Epístola VII", deve-se representar a visão da idéia

suprema do bem como um ato intuitivo de súbita iluminação que

ocorre em um momento de êxtase.

O conhecimento interior é possível apenas para uma pequena elite,

talvez apenas para uma única pessoa escolhida por Deus. Tal pessoa é

elevada acima dos outros homens porque sua experiência particular o

aproxima da divindade. Essa experiência religiosa derivada de um

sentido interior tão raro não pode ser expressa racionalmente em

conceitos como pode a experiência dos outros sentidos; tampouco

pode ser comunicada a outros. Aqui, torna-se evidente que Platão não

pode oferecer nenhuma resposta à questão do bem absoluto.

Assim, podemos compreender a afirmação paradoxal de Platão na

"Epístola VII" de que não há escritos seus sobre essas questões, nem

haverá, pois isso não admite expressão verbal como outros estudos.

O segredo da justiça não pode ser revelado, nem mesmo nas leis do

melhor dos legisladores. A conclusão final da sabedoria platônica, a

resposta oferecida à questão formulada vezes e vezes ao longo dos

diálogos, ou seja, a questão da natureza da justiça, é esta: trata-se de

um mistério divino.

Na verdade, o ensinamento de Platão é um misticismo genuíno em seu

ponto mais decisivo, pois a visão do ser supremo é inexprimível - é uma

experiência que não é comunicável, e não o produto da consideração

racional. Quem viu o bem, o escolhido, o objeto da graça, é isolado dos

muitos que não contemplaram nem poderão jamais contemplar essa

visão. Justamente no ponto da filosofia de Platão em que se espera uma

solução objetiva, surge uma mera fórmula para a salvação pessoal.

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solução objetiva, surge uma mera fórmula para a salvação pessoal.

Como filósofo governante tem um conhecimento do bem divino e é o

possuidor exclusivo desse segredo, ele é inteiramente diferente dos

outros homens. A massa do povo, que não tem nenhum direito político,

não tem outra escolha, senão acreditar na sabadoria e na graça do

governante. Essa crença é o fundamento da obediência incondicional

dos sujeitos sobre a qual a autoridade do Estado platônico repousa. O

misticismo platônico, a mais completa expressão do irracional, é a

justificação da sua doutrina política anti-democrática; é a ideologia de

todas as autocracias.

IV. A DOUTRINA DA JUSTIÇA DE ARISTÓTELES

I

Aristóteles tenta desenvolver, na Ética, sua filosofia moral. Partindo de

uma filosofia fundamental da realidade e do ser, que apresenta uma

filosofia geral em suas determinações mais gerais do ser.

Preocupa-se com a realidade das propriedades e relações do ser como

tal, ocupa-se daquilo que é e não daquilo que deve ser. Porém, faz a

ressalva de que a ciência dos princípios e das causas iniciais do que é

coincide com o que deve ser.

Após, abandona este dualismo e estuda a finalidade das ações. Toda

ação deve ter como objetivo o bem; seja o bem em particular, ou o Bem

supremo; este último como um bem geral, que é definido pela ciência

dos princípios e das causas iniciais. E, desenvolve um estudo sobre a

ética ligada ao bem.

A filosofia da natureza fundamental do ser é estudada por Aristóteles

como o objetivo de definir o bem absoluto que todas as ações devem

estar voltadas, e, este bem absoluto é a causa e o fim de todas as ações

que se concretiza em Deus. Deus é um conceito a ser estudado que se

divide no antagonismo de móvel (o domínio da natureza), e imóvel

(teologia ou como o conhecimento de Deus). A teologia como metafísica

coloca-se acima de todas as ciências.

“A metafísica aristotélica exibe uma clara tendência de personificar seu

primeiro princípio, apresentado como motor imóvel e o bem absoluto.

A vida, a felicidade e a atividade são atribuídas a ele...” O autor se refere

ao pensamento que Aristóteles passou a desenvolver para explicar o

bem absoluto (o bem imóvel). Aristóteles refletia da seguinte maneira:

um motor ou uma força inicial com uma força em si mesmo, movimenta

os demais motores ou forças, que ganham força somente a partir da

força inicial, a força inicial que compreende o bem absoluto que gerará

os demais movimentos e transformará as demais coisas. Assim é Deus

em relação aos seres, compreende um bem absoluto, e como já dito,

tem a vida, a felicidade e a atividade e possui esses elementos sempre,

enquanto possuímos esses elementos por alguns momentos.

Ainda afirma, que Deus pensaria somente em coisas divinas que são

boas, e por isso pensaria somente Nele mesmo o tempo todo, o que

equivale a uma tautologia (redundância) vazia.

Há três versões da ética para Aristóteles: Ética a Nicômaco, a Ética a

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Eudemo e a Grande Ética. Aristóteles inicia a sua ética afirmando “o bem

é aquilo a que todas as coisas visam”, o que é quase idêntica a tese

principal da Metafísica “o fim para o qual se faz cada ação é o bem, o

bem em cada caso particular e, em geral, o bem supremo em toda a

natureza”, porém a metafísica defende que bem: “é o bem para o

homem”.

Platão defende a idéia de que há um bem absoluto em outro mundo. Já

Aristóteles rejeita a idéia de Platão para a ética e afirma ”o bem não é

um termo geral que corresponde a uma única idéia”. E ainda, Aristóteles

afirma que se o bem é algo que existe e é separadamente absoluto

então nunca será alcançado pelo homem, porém este bem que se

busca agora está ao alcance do homem, que será buscado

instintivamente e dificilmente será retirado dele.

Desenvolvendo o pensamento sobre o bem Supremo afirma que este

Bem é a felicidade que parecerá uma verdade incontestável, da qual só

se pode confirmar com um relato explicito. E o autor afirma que a

felicidade pode ser identificada como uma virtude.

Seu ponto de partida é o desejo humano, e afirma; A felicidade buscada

pelo homem é o estado inalcançável de satisfação completa de todos os

desejos da mente. Essa felicidade é atingida como uma recompensa

pela virtude. Se você é virtuoso e se conduz como se deve conduzir

então será feliz. E, por fim coloca que a verdadeira felicidade nada mais

é do que a própria virtude, desde que seja uma virtude voltada para o

bem. Se a virtude for do homem mau a felicidade será apenas aparente,

enganadora e falsa.

Ele rejeita a idéia de que a virtude é o objetivo da vida, pois até

dormindo se pode ter virtude, e nesse sentido não se pode afirmar que

o homem virtuoso sofra menores ou maiores infelicidades e infortúnios.

Conclui afirmando que é evidente que a felicidade é concebida como

consequência ou recompensa da virtude e não como sinônimo ou

formas de sentimentos idênticos.

“Nossa definição concorda com a descrição do homem feliz como

aquele que ‘vive bem’ ou ‘faz bem’; pois ela virtualmente identificou a

felicidade com uma forma de boa vida ou bem fazer.” E a partir desta

definição Aristóteles concorda “com os que pronunciam ser a felicidade

virtude, ou alguma virtude particular” e faz a seguinte declaração:

“nenhum homem supremamente feliz pode tornar-se infeliz. Pois ele

nunca cometerá ações odiosas ou vis, já que sustentamos que um

homem verdadeiramente bom e sábio suportará todos os tipos de

destino com decoro e sempre atuará da maneira mais nobre que as

circunstâncias permitirem.” Por fim Aristóteles retoma a primeira

definição de felicidade como: “certa atividade da alma em conformidade

com a virtude perfeita”.

II

“Assim, o bem, o valor moral, é humanizado; é apresentado como a

virtude do homem. Consequentemente, a Ética de Aristóteles almeja um

sistema de virtudes humanas, entre as quais a justiça é a ‘principal das

virtudes’, a ‘virtude perfeita’”

A Ética não pode ser afirmada com exatidão,e o autor reescreve um

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A Ética não pode ser afirmada com exatidão,e o autor reescreve um

pensamento de Aristóteles: “devemos ficar satisfeitos se, lidando com

sujeitos e partindo de premissas assim incertas (como os conceitos de

bem e justiça), conseguirmos apresentar um tosco esboço da verdade

(...)”

Aristóteles tem a famosa Doutrina do Meio (mesótes) em que ele tenta

aplicar uma analogia matemática-geométrica para solucionar o

problema da ética, definindo o que é virtude. E faz considerações

importantes sobre a virtude: “A virtude é um estado médio entre dois

extremos, que são vícios, um o do excesso, o outro o da deficiência. ‘A

virtude é um estado médio no sentido de que almeja atingir o meio (...) o

excesso e a deficiência são marca do vício, e a observância do meio uma

marca de virtude’.” E depois ele explica que o excesso e a deficiência

destroem a perfeição, ao passo que a observação do meio a preserva,e

só assim para se ter uma obra perfeita.

E para utilizar um calculo matemático-geométrico transforma a

qualidade em quantidade e parte de um ponto comum. E explica a

aplicabilidade deste sistema quanto ao valor moral: “Ora, de todas as

coisas que são contínuas e divisíveis, é possível tomar a maior parte ou

a menor parte, ou uma parte igual, a essas partes podem ser maiores,

menores e iguais de acordo com a própria coisa ou relativamente a nós,

sendo a parte igual a um meio entre o excesso e a deficiência...” Porém

ele afirma um pouco depois que é muito difícil descobrir o ponto médio

de qualquer coisa.

E afirma: “a quantificação do valor moral, o esquema tripartite de

‘muito’, ‘médio’, ‘pouco’, a pressuposição essencial de um método

matemático-geométrico para determinar o bem é uma falácia. No

domínio dos valores morais não há quantidades mensuráveis como no

domínio da realidade enquanto objeto da ciência natural.”

Parte deste ponto para chegar a conclusão de como deve ser a norma e

os atos em conformidade com ela, com o seguinte raciocínio: “A

afirmação de que uma conduta humana definida é boa ou má, certa ou

errada, justa ou injusta, virtuosa ou viciosa, pressupõe a assunção de

que algo deve ser feito. A afirmação de que algo deve ser feito é uma

norma. É uma maneira de expressar a idéia de que algo é um fim, não

um meio para um fim. É um julgamento de valor.” E este juízo de valor

que dará ensejo a norma. A conduta do homem que está de acordo

com a norma, se diz que ele obedece a norma. E ainda ressalta que uma

conduta não pode ser muito ou pouco conforme a norma, ou a conduta

está em conformidade ou não está em conformidade. Porém afirma que

há três graus ou “quantidades” de desconformidade: excesso, meio,

deficiência; que não se refere a qualidade do valor moral, mas sim a

uma realidade psíquica.

“Ele é compelido a modificar sua teoria do meio dizendo que a virtude é

‘a observância do meio’ apenas ‘no que diz respeito à sua essência e à

definição que formula o seu ser original’, mas, ‘no tocante à excelência e

à correção, é um extremo’.” E as vezes não se tem a conduta como

equivalente a qualquer das extremidades.

E, portanto, abandona a doutrina do meio (tripartite: dois extremos e

um ponto médio da conduta) e inicia a teoria bipartite (bem e mau,

certo e errado, conformidade e não conformidade.

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certo e errado, conformidade e não conformidade.

A doutrina do meio deixa a impressão de que a conduta ou está de

acordo com a norma ou não está de acordo, porém não leva em conta

que no sistema há várias normas e que muitas vezes a conduta está

inteiramente de acordo com uma norma, mas em conflito com outra

norma, para ter a conformidade com a norma observa-se a aplicação do

princípio da proporcionalidade.

E desse modo fazendo uma analogia pode-se afirmar que a virtude é a

disposição dos homens que em conformidade com a ordem moral. Esse

é o verdadeiro significado da afirmação de que a virtude é a observância

do meio relativo ao homem.

A mesótes pretende estabelecer de modo peremptório o valor moral,

mas deixa este ônus para a autoridade da moralidade positiva e do

direito positivo (ordem estabelecida) definir o valor da moral.

III

Este terceiro tópico discorre sobre a justiça e segundo ele a principal

das virtudes.

“No que diz respeito à justiça e à injustiça (dikaiosýne e adikía) temos de

investigar de que espécie de ações elas precisamente se ocupam, em

que sentido a justiça é a observância de um meio e quais são os

extremos entre os quais o que é justo é um meio. Nossa indagação

pode seguir o mesmo procedimento que as nossas investigações

precedentes”.

E coloca dois conceitos de justiça: a legitimidade e a igualdade. Coloca a

legitimidade como um conceito mais amplo (genérico) e a igualdade

como um conceito mais restrito (especifico). E completa a idéia com o

seguinte raciocínio “Vimos que o violador da lei é injusto e o homem

respeitador da lei é justo. É claro, portanto, que todas as coisas

legítimas são justas em um sentido da palavra, pois o que é legítimo é

decidido pela legislação, e as diversas decisões da legislação chamamos

regras de justiça.” E completa: “Ora todos os pronunciamentos do

Direito visam ou ao interesse de uma classe dominante determinada

pela excelência, ou de outra maneira semelhante; de tal modo que, em

um dos seus sentidos o termo justo é aplicado em qualquer coisa que

produz e preserva a felicidade, ou as partes componentes da felicidade,

da comunidade política.” E por fim o autor coloca: o que equivale a um

glorificação incondicional do direito positivo.

A justiça da igualdade é dividida em dois tipos a distributiva e a

corretiva.

A justiça distributiva é aquela aplicada para distribuição de riqueza,

honra e bens divisíveis (justiça social). Visa a justiça social, tem o

objetivo de implementar a isonomia com a aplicação do princípio da

proporcionalidade, se concede a tutela social de igual modo aos

indivíduos que se encontrem socialmente iguais, sendo irrelevante as

características do indivíduo. Por conseguinte a indivíduos em iguais

situações devem ser concedidos direitos idênticos, sendo esta regra

justa em qualquer situação. E, finaliza com o princípio suum cuique, a

cada um o seu, ou a cada um o que lhe é devido.

Já a justiça corretiva é exercida pelo juiz ao solucionar lides. É a

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retribuição pelo ato, visa recompor a igualdade de direitos, através dos

princípios da reciprocidade e da proporcionalidade. E coloca “o juiz

ideal, é por assim dizer, a justiça personificada”. E divide as transações

em voluntárias (civil) e involuntárias (criminal). A justiça corretiva exige

que o serviço e o contra serviço que constituem a permuta sejam iguais.

A mesma igualdade prevalecerá entre crime e punição. Porém se

pergunta qual a retribuição (para o contra serviço) ou qual a punição

(para o crime) adequada? Ele tenta responder com uma formula

matemática-geométrica: “O injusto sendo aqui o desigual, o juiz esforça-

se para igualar (a desigualdade) (...) o juiz esforça-se para torná-las (as

duas partes da linha) iguais por meio da pena ou perda que impõe,

subtraindo o ganho.”

A igualdade se restaura observando-se que o igual é uma média pela

proporção aritmética entre o maior e o menor. A igualdade deve

prevalecer entre a retribuição ou punição. “Serviço e serviço de

retribuição têm de ser igualados, já que, em si, não são e não podem ser

iguais, no sentido de que duas metades de uma linha o são, assim como

o crime e a punição não podem ser iguais nesse sentido. É por isso que

Aristóteles é finalmente obrigado a renunciar a sua fórmula

matemática, segundo a qual a ‘igualdade’ é estabelecida pela justiça

corretiva.”

E defende que a existência do Estado depende da aplicação da

reciprocidade proporcional, o que deve ser aplicado também para a

justiça corretiva, de modo que deve haver a reciprocidade da justiça na

base da proporção e não na base da igualdade. De forma que a punição

será igual ao crime e a recompensa igual ao mérito. A retribuição vem

dos instintos mais primitivos do homem o desejo de vingança. O que é

justiça, portanto, fica sem resposta, e utiliza o princípio novamente

“cada um o seu”.

Para aplicação da teoria do meio ele faz as seguintes ponderações: “A

justiça é um modo de observar o meio, embora não da mesma maneira

que as outras virtudes.” E o autor explica: “Dizer que a justiça é um meio

entre cometer e sofrer injustiça é uma expressão figurada do

julgamento de que a justiça não é injustiça, nem a injustiça que é

cometida nem a injustiça que é sofrida, as quais porém são ambas a

mesma e única injustiça.” Partindo deste raciocínio Aristóteles tenta

buscar uma idéia mais substancial de paz, e prefere que os legisladores

busquem a paz e não a justiça, pois onde a paz prevalece não há

necessidade de justiça. De forma que a paz tem a sua identificação de

justiça com Direito.

A justiça: “é uma função do Estado. Pois o Direito é a ordem política; e o

Direito determina o que é justo”. A justiça será aplicada pelo Estado, que

estabelecerá uma ordem jurídica, e fará determinações gerais de quem

e o que é igual. “Esse é o princípio da justiça no sentido de legitimidade

ou no sentido de igualdade; essa é a igualdade perante o direito” essa

igualdade é mantida por normas gerais, que será aplicada a casos

particulares.

Deve-se racionalizar a idéia de justiça como valor objetivo, de modo que

o valor moral de justiça seja substituído pelo valor lógico de não-

contradição. Todos os pensamentos sobre justiça tentam buscar uma

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contradição. Todos os pensamentos sobre justiça tentam buscar uma

definição do que é justo.

A ordem social é que deve justificar a validade do Direito positivo. Como

Aurélio Agostinho, um bispo, que viveu na época do Império Romano

numa época que o cristianismo não exercia o domínio, faz as seguintes

afirmações: “Onde não há justiça verdadeira não pode haver direito.

Pois o que é feito pelo direito é feito justamente, e o que é feito

injustamente não pode ser feito pelo direito. Pois as invenções injustas

dos homens não devem ser consideradas nem chamadas de leis;”.

Ainda afirma Agustinho “A justiça é a virtude que dá a cada um o que lhe

é devido”, e por conseqüência de seu raciocínio no Império Romano

nunca houve direito. Porém essa fórmula não deve ser levada por

absoluta, pois nega a existência de um Estado que organizou a maior

parte da humanidade civilizada, e nega um direito que é a matriz de

todo o direito moderno.

V. A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL PERANTE O TRIBUNAL DA CIÊNCIA

I

O Direito natural tenta solucionar o conflito entre o certo e o errado das

condutas humanas (natureza do homem, da sociedade e das coisas),

conforme o que seria, respectivamente, natural ou antinatural. Parte,

para isso, da consideração de que a natureza é o legislador supremo.

Personifica a natureza e subordina o homem à autoridade desta.

A doutrina do Direito natural pode ter um caráter mais ou menos

religioso em fases evolutivas:

- 1ª fase - animismo, onde os seres naturais são considerados

animados, podendo prejudicar ou proteger o homem. A adoração se

direciona à natureza;

- 2ª fase - monoteísmo, a natureza, criada por Deus, é manifestação de

sua vontade justa e toda-poderosa.

Grotius, Hobbes e Puffendorf elaboram raciocínio para justificar as

características do Direito natural como inato e imutável, pois

decorrente de Deus. Paralelamente, o Direito posto pelo homem é

apenas temporário e mutável.

Grotius – define a lei da natureza como um ditame da própria natureza

racional por meio do qual certos atos são proibidos ou prescritos “pelo

autor da natureza, Deus”. Afirma, ainda, que a lei da natureza, que

procede das “características essenciais implantadas no homem, pode

ser corretamente atribuída a Deus, porque Ele desejou que tais traços

existissem em nós”

Hobbes – declara que a lei da natureza é um ditame da razão, mas os

ditames da razão são “conclusões ou teoremas quanto ao que conduz à

conservação e à defesa de si mesmos, ao passo que a lei propriamente

dita é a palavra do que, por direito, tem domínio sobre os outros. Mas,

se considerarmos os mesmos teoremas, tais como expressos na

palavra de Deus, que, por direito, comanda todas as coisas, então serão

adequadamente denominados leis”.

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adequadamente denominados leis”.

Puffendorf – acompanhando Hobbes, diz que se os ditames da razão –

os princípios do Direito natural – devem ter a força do Direito, a

obrigação do Direito natural provém de Deus.

Kelsen critica a diferença essencial entre as “leis da ciência” e a “moral e

o Direito”. Na ciência, os fenômenos se relacionam por causa e efeito: o

calor dilata o corpo metálico. Já na ética e no Direito e na moral, tem-se

que “se A existe, B deve existir”: se um homem está necessitado, seus

semelhantes devem assisti-lo; se um homem comete assassinato, deve

ser punido. É a diferença entre a causalidade – leis da ciência – e a

normatividade – na moral e no Direito.

O juízo de valor é exercido a partir da norma pressuposta. Se em

conformidade a esta, a conduta será positiva, boa ou correta; do

contrário será negativa, má ou errônea. “Não existe nenhuma inferência

lógica a partir do “é” para o “deve ser” da realidade natural para o valor

moral ou jurídico.”

A diversidade existente entre os sistemas morais/jurídicos varia

conforme a vontade de seu autor – priorizando bem estar individual ou

coletivo, liberdade social ou segurança social – tornando os valores

relativos, conforme a ordem jurídica ou moral local. Diversamente, o

sistema de direito natural é único, pois a autoridade que emite as

normas/valores é única, absoluta e transcendental: Deus, cujos valores

são absolutos.

No entanto, o Direito natural toma as regras deduzidas da natureza

como regras do Direito, concebendo a natureza como parte da

sociedade. Conclui, então, que “perante o tribunal da ciência, a doutrina

do Direito natural não tem nenhuma chance. Mas pode negar a

competência desse tribunal recorrendo ao seu caráter religioso.“

II

O dualismo Direito natural e Direito positivo traz outro conflito em si. Se

a natureza humana é a fonte do Direito natural, ela deve ser

fundamentalmente boa. Mas, por outro lado, a necessidade do Direito

positivo funda-se exatamente na maldade do homem, que é de sua

natureza. Hobbes e Pufendorf não caem nesse conflito, pois admitem o

homem como mau e entendem o Direito positivo fixado pelo Estado,

como autorização formalista dada pelo Direito natural. É a natureza

ideal do homem que é deduzida do Direito natural.

III

A validade do Direito positivo ocorre na medida de sua correspondência

com o Direito natural. A admissão entre os autores da possibilidade ou

não de conflito entre esses direitos revela uma inferioridade do

primeiro em relação ao segundo.

Hobbes sustenta impossível a contrariedade do Direito positivo com a

lei da natureza: isto porque o conteúdo do Direito positivo é fixado pelo

representante da nação, ou mesmo da interpretação por este.

Tratando-se de pessoa única – o monarca-, dificilmente haverá

contradição entre as leis. Esse Direito será simultaneamente o positivo

e o natural.(Identificação do Direito positivo com o Direito natural).

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e o natural.(Identificação do Direito positivo com o Direito natural).

A maioria dos autores que defende o Direito natural não nega a

possibilidade do conflito entre o Direito natural e positivo; mas tentam

provar que ocorrerá apenas excepcionalmente.

Pufendorf rejeita a impossibilidade das leis civis oporem-se às naturais.

Mas esta lei contrária ao Direito natural dificilmente seria aprovada, a

não ser que o fim fosse a destruição do Estado. O conflito é

teoricamente possível, mas praticamente excluído. Para Pufendorf os

princípios gerais do Direito natural estão incorporados ao Direito

positivo.

Com as divergências entre os autores acerca da “lei da natureza”,

verifica-se a necessidade de “uma medida comum do que deve ser

chamado certo e errado”. Seria a correta razão, o que deve ser

entendido como a razão de alguns homens que detém o poder

soberano.

É o que afirma Hobbes: o Direito não decorre da autoridade dos

autores de filosofia moral, mas sim daquela ideia que foi adotada pelo

poder soberano e incorporada ao Direito civil, por exemplo.

“Isto significa que, se um indivíduo considera que uma regra do Direito

positivo é contrária ao Direito natural, não é a opinião do indivíduo

particular, mas a opinião da autoridade competente do Estado que

prevalece. Ao discutir se um tirano pode ou não ser chamado à ordem

pelo povo, Puffendorf “ diz que : “a presunção de justiça coloca-se

sempre ao lado do príncipe”. Ou seja, a presunção que sempre existe é

de que o Direito positivo é o Direito natural.

Outra forma de alcançar a identificação entre o Direito positivo e o

natural é a definição de justiça aceita pela maioria dos seguidores do

Direito natural: a cada um o seu. Para Hobbes isso pressupõe a

existência de um Direito positivo definindo o que é de cada um e,

conseqüentemente, onde não há comunidade nada é injusto. A

definição de Pufendorf de justiça sob o Direito natural é a “vontade

perpétua de dar a cada homem o que lhe é devido”. Acrescenta que algo

só é devido a alguém com base em um direito perfeito se houver a

possibilidade de mover uma ação num tribunal humano.

Ou seja, a justiça definida com o sentido de Direito natural é possível

apenas sob o Direito positivo.

Embora Pufendorf critique Hobbes, ambos entendem a relação

essencial entre o Direito positivo e natural, como a justificação do

primeiro pelo segundo.

Outro princípio do Direito natural é a restrição ao direito de resistência,

quando se admite o conflito entre o Direito natural e o positivo. Para

Hobbes essa restrição se dá em decorrência do poder do soberano ter

sido conferido pelos próprios homens (lei da natureza). Para Grotius,

que admite que se a ordem for contrária à lei da natureza ou

mandamentos de Deus não deverá ser cumprida, afirma que à ordem

injusta do soberano deve-se antes lhe suportar que lhe resistir pela

força. Pufendorf, que, ao contrário de Hobbes, entende que o soberano

pode causar dano ao cidadão, afirma que, em consideração à nobreza

da posição do príncipe e seus outros benefícios, no interesse dos

concidadãos e de todo o Estado, deve preferir a sua fuga ou

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abrigamento em outro Estado. Admite a defesa pela força, mas não a

permissão aos demais cidadãos de abandonar a obediência.

Locke aprofunda a questão da desobediência/resistência: admite o

direito de resistência quando o uso da força pelo governo for injusta e

ilegítima (contrária ao Direito natural e ao Direito positivo). Surge a

questão da competência para decidir essa questão quando os homens

estão ordenados em uma comunidade. Para tanto, apresenta dois

pareceres:

“Portanto, sempre que algum número de homens estiver unido em

sociedade, de tal maneira que todos tenham renunciado a seu poder

executivo da lei da natureza e os cedido ao público, ali e só ali haverá

uma sociedade política ou civil.[...] E isso tira os homens de um estado

de natureza para um estado de nação estabelecendo um juiz sobre a

terra, com autoridade para determinar todas as controvérsias e reparar

os danos que possam acontecer a qualquer membro da comunidade;

esse juiz é o legislativo ou o magistrado por ele nomeado.”

“Quem julgará se o príncipe ou o legislativo agem contrariamente ao

seu encargo? Isso, talvez, homens mal-intencionados e facciosos podem

propagar entre o povo quando o príncipe apenas faz uso de sua devida

prerrogativa. A isso respondo: o povo julgará. Pois quem julgará se o

seu encarregado ou o deputado age bem e em conformidade com o

encargo que nele repousa, senão aquele que o nomeia e deve , por tê-lo

nomeado, deter ainda um poder de livrar-se dele quando não cumprir

seu encargo? Se isso é razoável em casos particulares de homens

particulares, por que seria de outro modo nos de maior importância,

em que o bem-estar de milhões está envolvido, e em que também o

mal, se não evitado, é maior e a reparação é muito difícil, cara e

perigosa?”

Para Kant, a resistência de parte do povo ao poder legislativo supremo

do Estado não é legítima em nenhum caso, especialmente se o poder

estiver corporificado em um monarca individual.

Para Kelsen. a prerrogativa de interpretação do Direito natural pelas

autoridades estabelecidas pelo Direito positivo e a ausência do direito

de resistência desnatura o Direito natural. Isto porque a função do

Direito natural não era enfraquecer a autoridade do Direito positivo,

mas sim fortalecê-lo. O caráter da doutrina do Direito natural é

conservador. A adaptação do Direito positivo à tendência reformadora

do direito no campo internacional decorre não do Direito natural de

forma automática, mas sim do resultado de ato da autoridade

legisladora. Assim, doutrinadores como Benedito Winkler eram

contrários à inovações no campo do Direito, pois o Direito natural e

também o positivo, jubet bona, provê o bem.

IV

Cada doutrina de Direito natural estabelece princípios, muitas vezes

contraditórios entre si.

Hobbes – “o poder do governo estabelecido em conformidade com o

Direito natural é, pela sua própria natureza, absoluto, isto é, ilimitado.”

Contrariamente,

Locke – o poder supremo em toda a nação não pode ser arbitrário, pois,

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Locke – o poder supremo em toda a nação não pode ser arbitrário, pois,

resultando do poder cedido pelas pessoas em seu estado de natureza,

não pode ser transferido em maior grau do que estes possuíam. Seria

colocarem-se em estado pior que o de natureza.

A monarquia absoluta é contrária à natureza; todos os homens são

livres, iguais e independentes por natureza, não podendo ser tirado

desse estado sem o seu consentimento. “Assim, aquilo que inicia e

efetivamente constitui alguma sociedade política nada mais é que o

consentimento de certo número de homens livres, capazes de maioria

para unirem-se e incorporarem-se em tal sociedade”.

Rosseau – a renúncia á liberdade equivale à renúncia a ser homem; tal

renúncia é incompatível com a natureza do homem – incabível a

autoridade absoluta e a obediência ilimitada.

Filmer – usando o raciocínio de Hobbes, opõe-se a ele: prova que a

democracia é contrária à lei da natureza, pois impossível a concessão de

autoridade suprema para todo o povo; tampouco o princípio da maioria

é capaz de sujeitar toda a multidão. “Deus sempre governou seu povo

apenas pela monarquia”.

Problema atual é o princípio da propriedade privada e a justiça do

sistema jurídico e econômico fundamentado nesse princípio. Só se tem

conseguido defender o sistema capitalista pelo Direito natural (de

Grotius a Kant). Opõe-se a isso o fato de a Igreja considerar que Deus

deu todas as coisas para todos os homens em comum. Grotius

considera que isso somente ocorreu num primeiro momento quando o

homem vivia de modo simples e inocente. Posteriormente, o homem se

degenerou e a propriedade primitiva comum também foi abandonada.

Tentando deduzir o direito da propriedade privada a partir da natureza,

RICHARD CUMBERLAND escreve que não se pode sujeitar as coisas às

vontades contrárias de vários homens ao mesmo tempo. Assim, e

especialmente em se tratando dos homens responsáveis por promover

o bem comum, deve-se lhes outorgar a propriedade das coisas e dos

trabalhos das pessoas com exclusão das outras, pelo menos por algum

tempo, na medida em que isto é necessário para promover o bem

público.

Esse direito de propriedade individual também vem acompanhado do

direito de sua inviolabilidade.

A distribuição de bens estabelecida em conformidade com o Direito

natural pela lei positiva da propriedade é justa; ela assegura a maior

felicidade possível. Conseqüentemente, qualquer tentativa de mudá-la e

substituí-la por outro sistema econômico é contrária à lei natural e,

portanto, injusta.

Locke argumenta que um dos propósitos essenciais do Estado (Direito

positivo) é proteger o direito de propriedade, estabelecido pelo Direito

natural. Posiciona o direito de propriedade além do poder do Estado –

daí a limitação deste. Com base no direito de propriedade estabelece o

primeiro limitador do poder do Estado: o general tem poder de vida e

morte sobre o soldado, mas não pode apoderar-se dos seus bens

(propriedade mais valiosa que a vida).

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(propriedade mais valiosa que a vida).

Todavia, embora no raciocínio de Locke se veja uma sólida

argumentação no combate ao comunismo, outros doutrinadores do

Direito natural também indicam que a propriedade privada é contrária

às leis da natureza e fonte de todos os males sociais (Código da

Natureza - Morelly – 1755 – Paris – o comunismo é o único sistema

ditado pela natureza).

Para Morelly, a lei da sociabilidade significa que a natureza distribuiu as

faculdades humanas entre os indivíduos, mas a propriedade

permaneceu indivisa, assim ninguém é proprietário exclusivo. A divisão

da propriedade, dos produtos da natureza é uma monstruosidade do

legislador. Considera a lei da natureza com caráter inteiramente

religioso.

V

A influência da doutrina do Direito natural apesar de todas as suas

contradições decorre da necessidade de justificação.

A sociologia e a filosofia, embora se oponham à doutrina do Direito

natural, também utilizam a inferência do “é” para o “deve ser”.

Os destaques da sociologia no século XIX são Auguste Comte – Cours de

philosophie positive - e Herbert Spencer – Principles of Sociology. Suas

obras são “caracterizadas por confundirem a descrição e a explicação

da vida social concreta com a proclamação de postulados normativos,

de enunciados sobre a realidade social e de juízos políticos de valor”.

Ambos os autores partem da suposição de que a vida social dos

homens é determinada por leis causais e sob a influência da teoria da

evolução orgânica (Lamarck e Darwin). Chegam à teoria fundamental da

evolução que indicaria o progresso permanente da humanidade

(permitindo explicação do passado, presente e previsão do futuro). Em

ambos o estágio mais elevado coincide com o ideal político, dedução

esta que parte da lei fundamental da evolução progressiva, tal qual se

deduz a lei correta da natureza no Direito natural. A suposição que a

evolução social é progressiva implica que um valor social é imanente à

realidade social (pressuposto característico do Direito natural). Mas um

valor não pode ser imanente à realidade, pois é altamente subjetivo e

não objetivamente averiguável como a realidade. O resultado atingido

por Comte é diferente do atingido por Spencer como efeito necessário

da evolução.

Para Comte três são os “estádios” sucessivos da evolução: o teológico, o

metafísico e o positivo. Importa apenas o terceiro estágio, resultado

necessário da evolução social e Estado ideal da sociedade. Seus

aspectos lembram em muito os aspectos da República de Platão,

principalmente por partir do dualismo fundamental de vida especulativa

– atividades filosóficas ou científicas e estéticas ou poéticas – e a vida

prática – atividade industrial. Comte supõe como lei fundamental a

prioridade do mais simples sobre o mais especial e complexo, prevendo

que no futuro haverá uma prevalência da vida especulativa sobre a vida

ativa. A autoridade do governo político – governo temporal - se

preocupará predominantemente com a vida ativa, enquanto a

autoridade espiritual se incumbirá predominantemente da educação

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moral e intelectual. Compreende assim que a diferença entre a função

do capitalista e do trabalhador se deve ao fato de a primeira ser mais

abstrata e geral, enquanto a segunda é mais concreta. Daí que, chegar-

se-á a compreender que a relação de subordinação do trabalhador ao

capitalista não é por abuso da força ou riqueza e sim decorrente da

divergência entre a natureza das funções. A subordinação é, portanto,

tão arbitrária quanto mutável.

“A sociedade futura não se fundamentará – como afirmam os

seguidores da doutrina do Direito natural- na ideia de direitos, mas no

princípio do dever.” Os direitos de um resultarão dos deveres dos

outros para com ele. Não haverá distinção entre função pública e

privada”

Comte é vago quanto ao sistema econômico na sociedade futura, mas

admite os capitalistas como depositários da riqueza da sociedade. A

autoridade especulativa terá a função de árbitro nos conflitos, devido a

seu valor superior e de imparcialidade. Espera também a paz mundial e

o estabelecimento de uma república européia ou ocidental como

decorrência da evolução social determinada pela lei fundamental da

evolução.

“A humanidade encontra-se agora no limiar da vida plenamente

positiva, cujos elementos estão todos preparados e apenas à espera de

sua coordenação para formar um novo sistema social, mais homogêneo

e mais estável do que a humanidade até hoje experimentou.”

Spencer também parte da lei da evolução progressiva. Classifica as

sociedades em simples, compostas, duplamente compostas e

triplamente compostas. Também podem ser agrupadas como

militantes ou industriais.

Militantes: na sua forma desenvolvida é organizada sobre o princípio da

cooperação compulsória; caracterizado pelo poder central despótico e

pelo controle político ilimitado da conduta pessoal; os membros

existem para o benefício do todo; a sujeição absoluta à autoridade é a

virtude suprema e a resistência a ela é um crime.

Industriais: na sua forma desenvolvida é organizada sob o princípio da

cooperação voluntária; caracterizada por um poder central democrático

ou representativo e pela limitação do controle político sobre a conduta

pessoal; a vontade dos cidadãos é suprema, o agente governante existe

apenas para executar sua vontade. O poder regulador além de

subordinado tem alcance restrito. Resistir ao governo irresponsável e

aos excessos do governo responsável é DEVER. Há tendência a

desobediência pelas minorias de legislação quando interfere de certas

maneiras, bem como a desobediência às leis iníquas pode causar sua

abolição.

A transição do tipo militante para o tipo industrial representa a da

escravidão para a liberdade, da autocracia para a democracia, do

estatismo para o liberalismo político e econômico. É esta a ética

evolucionista de Spencer.

Ele parece considerar que a vida humana é o fim último. Assim, se a

ação humana é boa, ela é apta a conseguir a preservação da vida – é a

evolução tendendo para a autopreservação.

Elabora três etapas da evolução: autopreservação, preservação da prole

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Elabora três etapas da evolução: autopreservação, preservação da prole

e preservação dos semelhantes. E a “conduta boa” surge daquela que

cumpre todas as três classes de fins ao mesmo tempo.

“A evolução foi um erro?” – frase característica da ética sociológica

evolucionista.

Spencer responde que não foi um erro.

Junto com o pressuposto da vida humana como valor supremo da sua

filosofia moral, coloca a liberdade individual. Assim, a vida humana

correta deve ser preservada, ou seja, quando a vida estiver em

conformidade com a “lei da liberdade igual”. Esta lei se resume em:

“todo homem é livre para fazer o que quiser, contanto que não infrinja a

igual liberdade de algum outro homem.” E, como o homem não é livre

porque como parte da natureza está vinculado à lei da causalidade, a

“liberdade igual” de Spencer pode se restringir apenas à liberdade

moral-política (deduz como o Direito natural, da realidade natural e

social, normas moral-políticas.)

Do direito igual de liberdade Spencer deduz direitos concretos, tais

como o direito à integridade física, o direito ao livre movimento e,

especialmente, o direito à propriedade individual, que, como Spencer

expressamente declara, implica que o comunismo é uma “violação da

justiça.” Para ele a função do Estado e do seu Direito positivo é apenas

manter os direitos estabelecidos pela natureza.

“O caráter de Direito natural desse tipo de sociologia é evidente. A lei da

natureza é ou implica uma norma social. Essa sociologia permite a

Comte justificar um programa político altamente coletivista, e a

Spencer, um programa político radicalmente individualista.”

VI

Principais representantes da filosofia da história no século XIX: G.W.F.

Hegel e Karl Marx.

Hegel diz que a razão governa o mundo e esta razão implica a

moralidade, ”cujas leis são o Racional Essencial”. A história do mundo é

o “curso necessário racional do Espírito do Mundo”. Ou seja, o “Espírito

do Mundo” é a personificação da razão. Desse modo, a história é a

realização da vontade do Espírito do Mundo, e as ações do Estado e dos

indivíduos são os instrumentos e os meios daquele para alcançar seu

objeto.

A idéia de Hegel de que a razão dirige o mundo é uma idéia de aplicação

da “verdade religiosa”, pois é a consideração de que o plano racional

absoluto do mundo é controlado pela “Divina Providência”. É, portanto,

uma teologia da história.

Deus é imanente e transcende ao mundo, e como sua vontade é boa a

realidade deve ser considerada perfeita.

Sua tese de que o que acontece e aconteceu é essencialmente obra de

Deus é resumida em “o Real é racional e o racional é Real”. Real é

racional: tudo o que existe é o racional.

O julgamento de uma fase da história ou de um evento como melhor ou

pior que outro, considerando que Deus é imanente ao mundo e,

portanto, tudo é necessariamente bom, perde seu valor, seu significado.

Mas para a teologia na sua condição ética importa distinguir o bem do

mal. E para a filosofia da história a diferenciação das fases históricas é

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mal. E para a filosofia da história a diferenciação das fases históricas é

essencial. E, como a teologia utiliza o diabo como um contra-deus na

interpretação ética do mundo, a filosofia da história de Hegel consegue

o mesmo resultado pela suposição da realidade que não é perfeita

(manifestada na história), mas que está a caminho da perfeição. “A

história do mundo é a realização progressiva da Razão. Esse progresso

que é o trajeto do Espírito do Mundo, é um progresso necessário, pois a

Razão como “Soberana” do mundo é dotada de “poder infinito”.”

Hegel demonstra que sua filosofia da história é uma teologia da história

ao tentar solucionar o problema central desta: como o criador

onipotente e absolutamente bom do mundo pode ordenar ou permitir

o mal na natureza e na sociedade. Daí chamar sua tese de “teodicéia” –

justificação dos caminhos de Deus. Conclui então que “a história do

mundo é a realização do Espírito do Mundo” e que “esta é a verdadeira

Teodicéia, a Justificação de Deus na História.”

O conflito na Teodicéia ocorre entre a ideia de que a vontade de Deus é

absolutamente boa e onipotente. Se a lógica for considerada, uma das

duas proposições não é verdadeira; ou a contradição não pode ser

excluída. Para reconciliar sua teologia da história com a ciência

racionalista, Hegel inventa a lógica sintética da dialética. Assim, elimina a

lei da contradição – que impossibilitaria duas proposições contrárias de

serem verdadeiras. Tenta fazer crer que a presença da contradição não

é um defeito do pensamento, que ela é parte do pensamento

especulativo. Do mesmo modo que as forças opostas da natureza ou da

sociedade determinam um terceiro movimento, a contradição também

é que move o pensamento (lei do pensamento e, ao mesmo tempo, dos

fatos). Hegel incide na mesma falácia do Direito natural que conclui o

“dever ser” a partir do “ser”.

De sua filosofia: tudo o que existe é racional e o Estado é absolutamente

racional. O Estado é a idéia ética ou espírito ético realizado, tem direito

supremo sobre o indivíduo, e este existe apenas por meio do Estado. O

indivíduo tem sua verdade, sua existência real e sua condição ética

apenas sendo membro do Estado. Segundo a visão religiosa do mundo

a natureza é uma manifestação (inconsciente) de Deus; para Hegel o

Estado é a manifestação consciente de Deus.

O racionalismo entende que o Estado existe apenas na mente dos

indivíduos que adaptam sua conduta à ordem social, que chamamos de

Estado; Hegel entende o Estado como algo mais que a realidade

objetiva, pois é a realização do espírito absoluto no domínio da

consciência. “A nação como Estado é o espírito (divino)

substantivamente realizado e diretamente real. Portanto, é o poder

absoluto sobre a terra”.

Define, ainda, que a história do mundo como revelação da

autoconsciência do Espírito do Mundo ou como a realização progressiva

da razão, exibe quatro “estádios” ou épocas sucessivas, e que em cada

época uma nação definida é dominante: império oriental, depois o

grego, depois o romano, seguido pelo germânico. Este último

(germânico?) será a unidade do divino e do humano; a verdade objetiva

reconciliada com a liberdade. Dá-se o nome de princípio nórdico a

reconciliação e a evolução de todas as contradições que se dará neste

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último período (germânico)

Decorre da filosofia da história de Hegel o materialismo histórico de

Marx. Este utiliza a lógica dialética de Hegel como instrumento. Todavia,

conforme Marx, Hegel entende o processo de pensamento como um

sujeito independente, em que o mundo real é apenas sua forma

externa. Já Marx entende a idéia como é o mundo material refletido pela

mente humana.

Assim, Hegel é um idealista, Marx um materialista. Ambos

compreendem a dialética como evolução a partir da contradição, esta

inerente á realidade social. Essa contradição é fundamental em Marx.

Quanto ao valor, também Marx entende este como inerente à realidade,

mas não identifica pensar e ser, pois para ele a dialética apenas “reflete”

os processos dialéticos na realidade. Esse método “deve ser usado para

conhecer a dialética da sociedade. Mas, ao rejeitar a identificação

hegeliana de pensar e ser, Marx priva-se da única possibilidade de

justificar - tanto quanto isso é possível – sua identificação falaciosa da

relação de forças opostas na natureza e na sociedade com a

contradição lógica”.

Kelsen diz da futilidade do método dialético, pois possibilita a Hegel

louvar o Estado e a Marx amaldiçoá-lo. Marx, juntamente com Friedrich

Engels, critica o Estado por considera-lo um maquinismo coercitivo, cuja

função é manter o domínio de um grupo – grupo que em a posse dos

meios de produção domina o outro que não tem a posse dos bens de

capital. O Estado é uma organização coercitiva com o propósito de

manter a repressão de uma classe por outra. Com estabelecimento do

socialismo – abolição da propriedade privada e a socialização dos meios

de produção – o sistema capitalista e o Estado como instituição social

desaparecerá. Ele crê que a sociedade comunista do futuro será uma

sociedade sem Estado, a ordem social será mantida sem a força, pois

será do interesse de todos. Esta condição ideal da humanidade, embora

não ocorra sem revolução, é “inevitável porque é o resultado necessário

da lei da evolução histórica, do processo dialético da história”.

“As explicações precedentes demonstram que a doutrina do Direito

natural, quer apresente seus resultados como deduções a partir de

uma lei da natureza em termos da jurisprudência, quer como deduções

a partir de uma lei da evolução em termos da sociologia ou da história,

opera com um método logicamente errado, por meio do qual os juízos

de valor mais contraditórios podem ser, e efetivamente foram,

justificados. Do ponto de vista da ciência, isto é, do ponto de vista de

uma busca da verdade, tal método é inteiramente destituído de valor.

Mas, do ponto de vista da política, como um instrumento intelectual na

luta pela realização de interesses, a doutrina do Direito natural pode ser

considerada útil. Em seu diálogo, As leis, Platão distingue mentiras que

são permissíveis e mentiras que não o são. Mentiras são permissíveis se

forem úteis ao governo: assim, ao governo é permitido fazer o povo crer

que apenas o homem justo pode ser feliz, mesmo que isso seja uma

mentira. Pois, se é uma mentira, é uma mentira útil: ela assegura a

obediência à lei: “Nenhum legislador digno de seu sal poderia encontrar

mentira mais útil que esta ou mais eficaz no persuadir todos os homens

a agir com justiça”. Que a doutrina do Direito natural, como pretende,

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a agir com justiça”. Que a doutrina do Direito natural, como pretende,

seja capaz de determinar de modo objetivo o que é justo, é uma

mentira; mas quem considera útil pode usá-la como uma mentira útil”.

VI. UMA TEORIA “DINÂMICA” DO DIREITO NATURAL

I

A situação intelectual de nosso tempo, resultante das experiências

abaladoras das duas guerras mundiais, é caracterizada no campo da

filosofia social por um renascimento da doutrina do Direito Natural,

dirigida contra o positivismo relativista que prevaleceu durante a

segunda parte do século XIX e a primeira década do século XX. O

elemento essencial da doutrina, que afirma deduzir princípios de justiça

da natureza em geral e da natureza do homem em particular, é a sua

visão monista da relação entre realidade e valor (fatos e normas, o “ser”

e o “dever ser”). Ela sustenta que a realidade e o valor não são – como

presume o positivismo dualista – duas esferas separadas, mas que o

valor é imanente à realidade.

Para a doutrina do Direito Natural, os juízos de valor – juízos que se

referem a esses valores imanentes – são tão objetivos, isto é, verificáveis

por meio da experiência, quanto os julgamentos sobre a realidade. O

positivismo, por outro lado, supõe que os juízos de valor são subjetivos

e, portanto, apenas relativos, porque não são uma descrição de fatos,

mas, em última análise, a expressão de desejos e medos. A doutrina do

Direito Natural perdura e sucumbe com a suposição de que o valor é

imanente à realidade.

Em estudo intitulado “Plato’s Modern Enemies and the Theory of

Natural Law”, John Wild entende como “Direito Natural”, em

conformidade com a doutrina tradicional, “um padrão universal de

ação, aplicável a todos os homens em todas as partes, exigido pela

própria natureza humana para a sua plenitude”. A teoria do Direito

Natural, segundo Wild, é “uma tradição realista da filosofia,

radicalmente empírica em sua metodologia”.

Essa doutrina sustenta “que as entidades naturais estão em um estado

incompleto ou de potência e que tendem sempre para alguma coisa de

que carecem”. Ela se fundamenta em uma “visão dinâmica da existência”

que se opõe ao atomismo lógico, o qual considera a existência “como

composta exclusivamente de unidades plenamente determinadas e

atuais”.

A visão de que a realidade ou a existência está “em fluxo” não pode ser

rejeitada e, de fato, não é rejeitada por uma filosofia positivista.

Contudo, do ponto de vista de uma ciência objetiva da natureza, a

afirmação de que a realidade está em fluxo nada mais pode significar a

não ser que a realidade encontra-se em um estado de mudança

permanente. Interpretar a mudança de um estado para outro como a

realização de uma “tendência” é muito problemático. Pois “tendência” é

um termo ambíguo. Pode significar algo como “intenção” ou

“propósito”, isto é, pode implicar uma visão teleológica ou normativa,

inteiramente incompatível com uma ciência cuja função é a descrição e

a explicação objetiva de fatos. Em tal ciência, “tendência” pode significar

apenas a causa provável de mudanças futuras em fenômenos

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apenas a causa provável de mudanças futuras em fenômenos

observados.

Uma tendência, que nada mais é do que uma mudança provável de um

fenômeno observado, não “exige” nada. A expansão previsível de um

corpo metálico aquecido não é exigida pelo corpo aquecido; tampouco

o desenvolvimento de um fruto é exigido pela flor ou o desenvolvimento

de um ser humano pelo embrião. Todos esses fenômenos são apenas

mudanças regulares e, portanto, previsíveis. A visão de que uma

tendência, isto é – do ponto de vista de uma ciência objetiva da natureza

-, uma mudança previsível de um fenômeno observado, “exige” sua

realização ou sua plenitude equivale à visão de que uma causa exige o

seu efeito. Isto é, apesar da afirmação de Wild no sentido contrário, uma

interpretação teleológica ou normativa da natureza.

Caso aceita a visão de que existem na natureza tendências imanentes

que exigem sua própria realização, então se a mudança esperada pelo

observador não se produziu, isto é, se a entidade em questão toma um

estado diferente do esperado, esse estado também deve ser

considerado a “realização” de uma tendência. Do ponto de vista de uma

ciência objetiva da natureza, que descreve e explica o que é (sem

pressupor uma norma que prescreva o que deve ser), não há motivo

para avaliar uma realização como boa e a outra como má. Se as flores

de uma macieira não se desenvolverem como espera o jardineiro, mas

tornarem-se produtos não comestíveis, estes, para o botânico, serão o

efeito necessário de certas causas, exatamente como a mais doce maçã,

e, portanto, a realização de uma tendência que é tão “natural” ou

“existencial” como a que tem como realização a fruta comestível.

O fato de que uma mudança esperada é o curso normal de mudança

significa apenas que é regular, isto é, em conformidade com uma regra

que descreve a conduta atual de entidades existentes. Identificar o

curso normal de uma mudança com a bondade apóia-se na falácia de

confundir dois significados inteiramente diferentes do termo “normal”:

conformidade com uma regra que descreve a conduta efetiva de

entidades, e conformidade com uma regra que prescreve uma conduta

definida de entidades, isto é, uma norma. Trata-se de confusão

característica de todas as doutrinas do Direito natural – a confusão

entre a lei da natureza e a lei moral. Que a mudança esperada seja boa e

a anormal seja má são juízos de valor que não podem ser obtidos em

uma ciência que descreve e explica a realidade. Esses juízos expressam

a relação de uma coisa com as exigências que não são imanentes a essa

coisa, mas criadas por homens, e que, caso se refiram ao estado ou à

conduta do homem, são apresentadas como normas.

II

A diferenciação entre o bem e o mal, impossível em uma descrição e

explicação da realidade, é essencial a uma doutrina do Direito natural,

que tem em vista normas que regulam a conduta humana. Se tentar

encontrar essas normas em fatos e – como a doutrina dinâmica do

Direito natural – em “tendências” imanentes à realidade, ela deve

diferenciar tendências boas e más, ou qualificar a realização de certas

tendências como boa, e a sua não-realização como má. Ela deve

projetar na realidade o valor que pressupõe. É justamente isto que a

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projetar na realidade o valor que pressupõe. É justamente isto que a

teoria dinâmica do Direito natural está fazendo. A “tese mais

fundamental” envolvida nessa teoria é que valor e existência, embora

distintos, estão estreitamente “interligados”.

Wild diz: “Se os valores não existem de alguma maneira, a reflexão ética

é muito barulho por nada”. Portanto, existir, segundo a teoria dinâmica

do Direito natural, significa o mesmo que ser um “fato” -, os valores têm

de existir da mesma maneira que os fatos. Os principais argumentos

que Wild apresenta a favor de sua tese, de que os valores são fatos, são,

em primeiro lugar, que lutamos para a sua “realização”.

A teoria dualista não nega que os valores podem ser realizados, mas

isto significa apenas que ocorreu um fato, que, na opinião do

observador, está em conformidade com um valor ou uma norma

prescrita por ele como válida. Não significa que o fato seja o valor ou a

norma, ou que o valor ou a norma sejam um fato de qualquer tipo.

O segundo argumento é a afirmação de que, se os valores não “existem”

de alguma maneira, a reflexão ética é muito barulho por nada, isto é,

que o dualismo relativista de existência e valor torna a “ética” e a

“justificação moral” impossíveis; isto conduz ao “niilismo moral”, ou seja:

se os valores não são fatos, não há valores em geral e valores morais

em particular, e, portanto, nenhuma ordem moral é possível.

Este argumento seria insustentável mesmo se fosse verdade que não

pode haver valores morais ou uma ordem moral, se os valores não

forem fatos. O positivismo relativista e dualista não afirma que não

existam valores, ou que não exista uma ordem moral, mas apenas que

os valores em que os homens realmente crêem não são valores

absolutos, mas relativos, e que não existe uma, mas que existem muitas

ordens morais diferentes, sob cuja validade efetiva os homens de fato

vivem e sempre viveram.

Há uma ligação essencial entre o conceito de “valor” de o de “norma”.

Uma norma constitui um valor. Da afirmação de que uma norma

“existe” não decorre que ela exista como um fato e, portanto, esteja

encerrada na realidade. A afirmação significa apenas que uma norma é

válida, que foi criada por um ato humano, e isso significa que a norma é

o significado específico de um ato humano. Esse ato existe como fato e

pode ser descrito por um enunciado de “ser”; mas seu significado de

que algo deve ocorrer não é um fato. Só pode ser descrito por um

enunciado de “dever ser”.

A visão de que os valores são imanentes à realidade ou de que as

normas não feitas por homens estão encerradas na existência

fundamenta-se, consciente ou inconscientemente, em uma

interpretação teológica do mundo; ou seja, se as normas não são feitas

por um ser humano, então teriam sido feitas por Deus, o mesmo que

fez a realidade.

III

Então surge o problema de como distinguir bem e mal como fatos

existentes. Para solucionar esse problema, Wild introduz o conceito de

“plenitude”.

A informação de que algo, se for “completado”, é bom, e, se não for

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completado, se for privado de algo, é mau, é tautológica pois, no

conceito de “plenitude”, o valor do bem e, no de privação, o valor do

mal, já estão implícitos.

Do ponto de vista da mera da mera descrição e explicação da realidade,

todas as entidades são completas tal como são, e, se o estado concreto

no qual uma entidade no curso de sua mudança existe é interpretado

como um estado de não plenitude ou privação, todas as entidades são

sempre incompletas ou “privadas” de algo. Uma criança é incompleta

porque ainda não é um homem, e um homem é incompleto porque

ainda não é velho, e um velho é incompleto porque ainda não está

morto.

Então existe não apenas uma tendência para a vida, mas também uma

tendência para a morte; e se – como a teoria dinâmica do Direito

natural supõe – a realização de uma tendência é boa, a realização de

uma tendência para a morte é tão boa quanto a realização de uma

tendência para a vida. Então é impossível fundar em tendências

imanentes à existência a norma fundamental que, como veremos mais

tarde, a teoria dinâmica do Direito natural pressupõe, a saber, que a

vida deve ser preservada e promovida. Se o valor (ou desvalor) é

imanente à existência, todas as coisas existentes são boas ou todas são

más. Então é impossível distinguir na existência o bem e o mal, porque

tanto um como outro coincidem com a existência. Tal distinção é

possível apenas se for pressuposta uma norma que prescreva o que

deve ser. Apenas então é possível julgar que uma entidade é completa,

isto é, que é o que deve ser; ou que é incompleta, privada de algo, isto é,

que não é como deve ser. A teoria dinâmica do Direito natural não

consegue superar essa dificuldade.

Até agora a teoria dinâmica do Direito natural não produziu nada além

da asserção de que existem, na natureza humana, assim como em

todas as entidades finitas, tendências para a plenitude, o

preenchimento ou a perfeição, isto é, a tese fundamental de sua visão

dinâmica de mundo, a qual projeta na realidade as normas que

pressupõe. Esta projeção torna-se evidente pelo fato de que Wild, com

base em nada mais além da asserção infundada de que existem

“tendência aperfeiçoadoras” na natureza humana, chega à conclusão:

“Quando assim compreendidas e expressas em proposições universais,

essas tendências são normas ou leis morais”.

Segundo a teoria dinâmica do Direito natural, o juízo de que uma

entidade encontra-se em estado saudável ou doentio é um enunciado

sobre um fato observável, experimentado e, ao mesmo tempo, um juízo

de valor.

O juízo de que uma entidade viva encontra-se em um estado correto ou

saudável pode, realmente, referir-se a um mero fato, o fato de que as

funções vitais dessa entidade não estão impedidas. Se esse juízo implica

a idéia de que o estado correto ou saudável é bom, ele assume o

caráter de um juízo de valor, e tal juízo de valor só é possível se o sujeito

que julga pressupõe uma norma exigindo que esse estado correto deva

ser. O estado correto de uma cobra venenosa é bom para a cobra, se

pressupomos que ela quer viver; mas, para os homens que destroem a

vida desses seres para salvar a sua própria, ele é mau. Os homens

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vida desses seres para salvar a sua própria, ele é mau. Os homens

pressupõem a norma de que a vida humana deva ser preservada.

O caráter bom ou mau de um estado não é, como sua saúde ou sua

enfermidade, um fato observável, experimentado; é a conformidade ou

não conformidade com uma norma pressuposta pelo observador.

Uma identificação correta com bondade é especialmente impossível se

bondade significar valor moral, e trata-se de um valor moral almejado

pela doutrina do Direito natural. Os valores morais aplicam-se apenas à

conduta humana; e os termos “correto” e “incorreto” referem-se – na

linguagem usual – antes a estados biológicos que a ações humanas. Se

aplicados a ações humanas, podemos talvez dizer que, se um homem,

por meio de sua conduta, preserva sua vida, sua conduta é correta. A

correção de sua conduta é um fato observável; é o efeito dessa conduta.

Mas a resposta à questão de ser boa ou má essa conduta correta

depende das normas que pressupomos, não pode ser descoberta pela

observação e análise da conduta.

A identificação do fato do caráter sadio com o valor moral da bondade,

apesar da afirmação de Wild em sentido contrário, é a projeção de um

valor subjetivo na realidade objetiva.

IV

Para sustentar o parecer de que a distinção entre um estado sadio e um

estado doentio prova que os valores do bem e do mal são imanentes à

realidade é introduzida a distinção entre tendências essenciais e

tendências não essenciais ou acidentais. Isso não é coerente pois, em

uma de suas versões, a teoria dinâmica do Direito natural conhece

apenas um tipo de tendência: a tendência para a plenitude.

Segundo a teoria dinâmica do Direito natural, não existem tendências

para o “incorreto”. O mal é o resultado do fato de que uma tendência é

“deformada” ou “distorcida” e, portanto, permanece em estado

privativo ou incompleto. Contudo, na medida em que essa doutrina não

responde à questão de como distinguir, por meio de uma observação

imparcial, fatos distorcidos (e, como tais, maus) de tendências não

distorcidas (e, como tais, boas), ela não fornece esse “padrão estável e

universal”.

Esse padrão é fornecida pela distinção mencionada acima, que

desempenha um papel decisivo na teoria dinâmica do Direito natural, a

distinção entre tendências “essenciais” ou “naturais” e, que se

conformam à natureza do homem, e tendências que não são essenciais

ou naturais, mas acidentais. Apenas aquelas constituem, segundo a

teoria dinâmica do Direito natural, “o que é comumente designado lei

moral”, e, consequentemente, são chamadas “direitos”. Essa distinção

não é compatível com a visão de que “o que existe sempre contém em

germe tendências para o correto”, embora essas tendências possam

ser impedidas de atingir o seu objetivo por serem deformadas ou

distorcidas.

Wild posteriormente caracteriza as tendências essenciais, isto é,

naturais, de tal maneira que elas podem ser consideradas inerentes

apenas aos seres humanos. Ele diz que existem duas características

distintivas de uma tendência natural ou essencial: “primeiro, ela é

compartilhada por todos os membros da espécie; segundo, sua

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compartilhada por todos os membros da espécie; segundo, sua

realização, pelo menos até certo grau, é exigida para o viver da vida

humana. Assim, a necessidade de alimento é uma tendência natural; o

desejo de torturar outros homens não é”. “O padrão de ação

universalmente exigido para o viver da vida humana é essencial. É o

padrão do Direito natural”.

Na verdade, segundo a teoria dinâmica do Direito natural, as tendências

que existem na natureza humana manifestam-se em desejos, em

“desejos naturais”, que essa teoria distingue de “apetites acidentais”. A

necessidade de alimento é uma tendência essencial ou natural porque é

um desejo natural, em contraposição ao desejo de torturar outros

homens, que não é uma tendência natural porque – segundo a teoria

dinâmica do Direito natural – não é compartilhada por todos os

membros da espécie humana.

É claro que pode existir uma “necessidade” de alguma coisa, isto é, que

alguma coisa possa ser, segundo nosso conhecimento, necessária à

preservação da vida humana, sem que o homem sinta um desejo dela.

Mas isso é diferente de um impulso efetivamente sentido,

compartilhado por todos os seres humanos.

Se as normas do Direito natural têm de ser fundamentadas em desejos

naturais, isto é, desejos compartilhados por todos os seres humanos,

não é possível estabelecer um sistema de normas naturais

regulamentando a vida social dos homens. Pois não há outro desejo

natural compartilhado por todos os homens que não o alimento. A

necessidade de educação certamente não se baseia em um desejo

efetivamente sentido por todos os homens e certamente não é

necessária para preservar a vida do homem.

Se o desejo de alimento é uma “tendência”, então o desejo de torturar

outros homens também é uma tendência, embora uma tendência que

não é compartilhada por todos os homens. Isto está em conflito aberto

com a visão de que existem tendências para o correto e que o mal

consiste no fato de que uma tendência – voltada para o correto – é

deformada ou distorcida. O desejo de torturar outros homens não pode

ser concebido como uma tendência para o correto deformada ou

distorcida. Além disso, as tendências constitutivas da natureza humana

que são desejos evidentemente são diferentes das tendências

imanentes à natureza de outras entidades que não os seres humanos,

as tendências que um físico pode prever a partir do conhecimento da

estrutura dessas entidades. Então, o termo “tendência” é usado com

dois significados totalmente diversos. Se esse não for o caso, as

tendências, que a teoria dinâmica do Direito natural supõe existir na

parte da natureza que não é humana, devem ser também desejos ou

algo similar a desejos; e, então, sua implicação teleológica não pode ser

negada.

V

A norma pressuposta pela teoria dinâmica do Direito natural é a norma

de que a vida humana deve ser vivida, ou, mais precisamente

formulado, que a vida humana deve ser preservada e promovida. Isso

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implica que a vida humana, a vida de todo ser humano, é o valor

supremo.

Wild afirma que a distinção entre o que é essencial e o que é acidental

consiste em “separar os traços que estão necessariamente envolvidos

na existência da coisa ou da relação daqueles que são meramente

extrínsecos e acidentais”. Contudo, se uma tendência constitutiva da

existência humana é essencial na medida em que sua realização é

exigida caso a vida humana tenha de ser vivida, isto é, na medida em

que se conforma à norma pressuposta de que a vida humana deve ser

preservada e promovida, então o termo “essencial” tem outro

significado que não o de um traço necessariamente implicado na

existência de uma coisa. Se “essencial” significa necessariamente

implicado na existência de uma coisa, então, do ponto de vista de uma

descrição e explicação imparcial das coisas, não existem traços

implicados na existência de uma coisa concreta que sejam

necessariamente implicados.

O significado de uma definição não é – como o de uma norma – que

uma coisa deve ter alguns traços, mas apenas que, se ela não tem os

traços envolvidos na definição, não é a coisa definida. A conduta

humana pode estar em conflito com a tendência essencial, isto é, o

homem pode violar a norma de que a vida humana deve ser preservada

e promovida se, por exemplo, um homem cometer suicídio ou

assassinato; mas ele continua a ser um ser humano. Se, porém, um ser

carece dos traços implicados na definição de “ser humano”, ele não é

um ser humano.

Conseqüentemente, uma tendência que constitui a existência humana é

essencial ou natural apenas porque a sua realização está em

conformidade com a norma pressuposta de que a vida humana deve

ser preservada e promovida, e não porque está necessariamente

implicada na existência de um ser humano.

VI

“Obrigação” é um conceito fundamental de qualquer teoria jurídica ou

moral. A afirmação de que uma norma ou obrigação é “compulsória”

para o indivíduo significa que ele deve conduzir-se como a norma

prescreve. É importante distinguir tão claramente quanto possível entre

obrigação no sentido normativo do termo e o fato de que um indivíduo

tem a idéia de uma norma ou obrigação, de que essa idéia tem certa

influência motivadora sobre ele e, finalmente, leva a uma conduta em

conformidade com a norma.

É costumeiro caracterizar o caráter obrigatório de uma obrigação,

assim como o efeito motivador que a idéia de norma tem na mente de

um indivíduo, como uma “necessidade”. O termo “necessitar” é usado

com dois significados diferentes. O primeiro significado expressa uma

relação normativa, o segundo uma relação causal. A mesma

ambigüidade prevalece no termo “compulsório”. Que uma obrigação

seja compulsória pra um indivíduo pode significar não apenas que o

indivíduo deve conduzir-se em conformidade com a obrigação, mas

também que a idéia da obrigação tem um efeito motivador sobre ele.

Todas as tentativas de fundamentar a obrigação no fato baseiam-se na

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Todas as tentativas de fundamentar a obrigação no fato baseiam-se na

confusão de obrigação no seu sentido normativo com a idéia que um

indivíduo tem de uma obrigação e o efeito motivador dessa idéia.

A teoria da obrigação de Wild é um exemplo típico dessa confusão. Ele

tem consciência do significado normativo específico do termo,

reconhece que esse conceito expressa o “caráter de dever”, que o

“dever ser” não é idêntico ao “ser” e que um não pode ser inferido do

outro. Contudo, ele caracteriza a obrigação como um “sentimento

humano” e afirma que a “obrigação” “é claramente um impulso, ou

tendência, factual, que nos liga existencialmente ou nos impele a certos

valores”. Isso significa que ele reduz o “dever ser” ao “ser”.

É evidente que somos “fisicamente impelidos ou obrigados” apenas pela

idéia apenas pela idéia que temos em nossa mente de uma obrigação,

que pode ser um “impulso”, isto é, um motivo mais ou menos eficaz e,

como tal, um fato psicológico, um “sentimento” que pode “impelir-nos”

em certa direção, especialmente para cumprirmos a obrigação de que

temos uma idéia e, assim, realizarmos um valor. Mas certamente não é

o “caráter de dever” que nos impele ou obriga fisicamente, pois isso

pode ser apenas o efeito de um fato existente, e o “caráter de dever”

não é um enunciado sobre um fato existente.

Para Wild, “a obrigação parece ser um tipo de necessidade que obriga e

compele”. Segundo essa teoria, a obrigação moral é o resultado da

“transformação do apetite bruto”, cujos dois passos são “o

reconhecimento racional das necessidades naturais” e do “”valor

universal que satisfará a necessidade”.

Do fato de que um homem sente uma necessidade urgente que ele

sabe ser compartilhada por todos os homens e necessária à

preservação e promoção da vida humana e de que, além disso, conhece

o valor que satisfará a necessidade, decorre – segundo a teoria

dinâmica do Direito natural – que ele está moralmente obrigado, isto é,

deve realizar esse valor. Trata-se de uma conclusão a partir do que é

para o que deve ser feito.

Essa falácia poderia ser evitada se a teoria dinâmica afirmasse a

seguinte norma fundamental do Direito natural: os homens devem

conduzir-se de certa maneira se sentirem uma necessidade urgente que

sabem ser compartilhada por todos os homens e que sua satisfação é

necessária para a preservação e a promoção da vida humana, e, se

sabem, além disso, que essa conduta constitui a satisfação dessa

necessidade. É evidente que nenhuma ordem moral pode ser

fundamentada em tal norma. O fato de que um homem, por causa de

sua ignorância, não sabe ou não se importa se a necessidade que sente

é compartilhada por todos os homens, ou o fato de que ele está errado

quanto ao valor que satisfará adequadamente a essa necessidade, não

podem livrá-lo da obrigação moral em questão.

Ainda mais importante: a necessidade de alimento é a única que satisfaz

às exigências da teoria dinâmica. A necessidade de educação, a outra

necessidade apontada por essa teoria, não é compartilhada por todos

os homens nem necessária à preservação da vida humana. Aplicada à

necessidade de alimento – ou à “tendência de fome”, a teoria dinâmica

conduz ao resultado absurdo de uma obrigação moral de comer e

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conduz ao resultado absurdo de uma obrigação moral de comer e

beber. Pois comer e beber são o valor universal que satisfará a essa

necessidade. Comer e beber podem ser um direito natural, mas não

uma obrigação.

O direito de um indivíduo de conduzir-se de certa maneira é

condicionado pela obrigação de outro ou de todos de não impedir o

primeiro ou de capacitá-lo a exercer o seu direito. Uma teoria moral

pode afirmar a obrigação de não privar o homem do meio de satisfazer

sua necessidade de alimento ou – como afirma a doutrina socialista – a

obrigação de garantir a todos uma satisfação perfeita dessa

necessidade. Essas obrigações, porém, não decorrem do fato de que a

necessidade de alimento é comum a todos os homens, mas decorre

exclusivamente do pressuposto de que a satisfação dessa necessidade

é “exigida para o viver da vida humana”. Isto, tal como assinalado, só

pode significar: a partir de uma norma pressuposta pela teoria moral

que afirma essas obrigações, que exige que a vida humana deva ser

preservada e promovida.

VII

Essa norma não pode ser fundada sobre fatos experimentados e

observáveis. Não se pode provar que uma tendência – no sentido de

mudança ou desejo previsível – para a preservação e a promoção da

vida em geral ou da vida humana em particular seja imanente à

natureza em geral ou à natureza humana em particular. É perfeitamente

possível que o desenvolvimento cósmico conduza a uma total

destruição da vida, especialmente da vida humana. Assim, a suposição

de uma tendência cósmica à destruição da vida não está excluída.

No que diz respeito à vida humana, há realmente um fato que pode ser

interpretado como uma tendência para a preservação e a promoção da

vida humana. É o instinto de autopreservação. Contudo, trata-se de

uma tendência para a preservação e a promoção da própria vida, e a

realização, plenitude ou conclusão dessa tendência só é possível à custa

da preservação e da promoção da vida de outros seres. A necessidade

de alimento, reconhecida pela teoria dinâmica do Direito natural como

tendência essencial ou natural, dita a destruição da vida de plantas e

animais. Além disso, há situações em que a vida de um ser humano só

pode ser preservada com sacrifício da vida de outro ser humano,

mesmo que tal conduta não seja necessária para preservar ou

promover a própria vida.

Se uma doutrina do Direito natural afirma que preservar ou promover a

própria vida à custa da preservação e promoção da vida de outros seres

humanos é contra a natureza do homem, ele não se refere à natureza

humana tal como ela realmente é, mas à natureza humana tal como

deveria ser em conformidade com uma norma pressuposta. Ela não

infere uma norma a partir da natureza real, mas infere uma natureza

ideal a partir de uma norma pressuposta.

O ponto decisivo é que essa tendência está voltada para a preservação

e a promoção da própria vida, é a expressão do egoísmo, ao passo que

todas as ordens morais, isto é, sociais, especialmente uma ordem moral

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que afirma ser lei natural e, portanto, válida sempre e em toda parte,

estão voltadas contra o egoísmo do homem, sua tendência para

satisfazer aos próprios interesses à custa dos interesses dos outros.

Elas tentam restringir essa tendência: estão fundamentadas no

princípio do altruísmo. A necessidade de alimento – o principal exemplo

de uma tendência natural sobre a qual a teoria dinâmica do Direito

natural afirma fundamentar as normas desse Direito – é, como tal,

moralmente indiferente. O que conta é apenas como essa necessidade

ou desejo de um indivíduo é satisfeito em relação com a mesma

necessidade ou desejo dos outros indivíduos, e, nesse contexto, essa

tendência “natural” não é uma base possível para normas naturais.

Se as normas naturais estão “encerradas” na existência, como afirma a

teoria dinâmica do Direito natural, essas normas devem ter encontrado

expressão em ordens morais ou jurídicas positivas, isto é, ordens

sociais que efetivamente existem ou existiram, no sentido de que suas

normas são ou foram eficazes, isto é, geralmente aplicadas e

obedecidas por homens vivendo sob essas ordens. Mas a norma

fundamental pressuposta pela teoria dinâmica do Direito natural, a

saber, que a vida humana deve ser vivida, ou, o que dá no mesmo, que a

vida de todo ser humano deve ser preservada e promovida, nunca foi

reconhecida por nenhum sistema moral ou jurídico positivo. A norma

implica a idéia de que a vida humana, a vida de todo ser humano, é o

valor supremo. Certamente não é essa a idéia de moralidade cristã, que

considera a vida, isto é, a vida do homem neste mundo, como má, e

apenas a existência transcendental em outro mundo como boa. Os

sistemas morais ou jurídicos efetivamente estabelecidos entre vários

povos não consideram e não consideraram a vida de todos os seres

humanos como igualmente valiosa. O mesmo se aplica à escravidão,

justificada por filósofos como uma instituição natural e justa, e aos

sistemas morais que estão na base das ordens jurídicas positivas de

nosso tempo que reconhecem a guerra como ação legítima e, portanto,

não pressupõem que a vida de seres humanos pertencentes ao inimigo

deva ser preservada e promovida.

Se todas essas ordens sociais são ou foram realmente eficazes, como

poderiam ser consideradas contra a natureza humana, se a natureza for

tomada efetivamente como é e como se manifesta na vida social dos

homens?

Uma filosofia “realista” e “empírica”, como a teoria dinâmica do Direito

natural afirma ser, certamente não está em condições de negar que a

realidade social é uma manifestação da natureza humana, e a realidade

social é o Direito positivo, não um Direito natural imaginário.

VII. JUÍZOS DE VALOR NA CIÊNCIA DO DIREITO

Na teoria do Direito encontramos dois tipos de juízos que são

considerados juízos de valor. Um refere-se à conduta dos sujeitos do

Direito e qualifica essa conduta como lícita ou ilícita (VALORES DE

DIREITO). O outro se refere ao próprio Direito ou à atividade do

legislador que cria o Direito, sendo o seu produto justo ou injusto

(VALORES DE JUSTIÇA). A atividade do juiz também pode ser considerada

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(VALORES DE JUSTIÇA). A atividade do juiz também pode ser considerada

justa ou injusta, mas apenas na medida em que ele atua na condição de

criador de Direito. Na medida em que apenas aplica o direito, sua

conduta é qualificável como lícita ou ilícita, exatamente como a conduta

dos que estão sujeitos ao Direito.

Esses dois tipos de juízos implicam que certo objeto tem valor

afirmativo ou negativo, que é “valorável”.

Qual o significado desses juízos? O que eles afirmam?

A questão só pode ser respondida analisando-se o que os envolvidos

com o Direito – legisladores, juízes, advogados, partes e juristas –

querem realmente dizer quando emitem tais juízos.

Quanto aos juízos que atribuem à qualidade de “lícita” ou “ilícita” a certa

conduta humana, podem ser verdadeiros ou falsos.

Como o direito se manifesta na forma de uma ordem jurídica positiva, a

mesma conduta pode ser lícita relativamente a tal ordem jurídica e

ilícita relativamente à outra.

“Norma” é uma regra que determina ou proíbe certa conduta é o “dever

ser”.

II

Segundo uma teoria amplamente aceita, todo valor é função de um

interesse, significa que alguém está afirmativa ou negativamente

interessado no objeto. Um valor existe quando um fato psíquico existe,

se esse deixar de existir, o valor desaparece ou se modifica.

O interesse pode ser da pessoa que faz o juízo ou de alguma outra. O

juízo não é o “dever ser”, mas o “ser”.

O juízo de valor afirma que alguém valora um objeto.

Nessa teoria, o valor e a realidade (existência) não são opostos.

São opostos, porém, se o juízo de valor afirma uma relação entre o

objeto valorado e uma norma, “dever ser”, cuja existência é pressuposta

pela pessoa que emite o valor.

Nessa teoria normativa, a significação do juízo de que uma pessoa se

conduz lícita ou ilicitamente é que ela se conduz ou não segundo a

norma.

O valor é um “dever ser”. Apenas se concebemos o valor como uma

relação entre objeto e uma norma faz sentido traçar uma distinção

entre juízos de valor e juízos de fato.

A decisão do parlamento é um evento natural, um fato da realidade

natural que ocorre em certo tempo e em certo lugar do mundo. É uma

vontade coletiva voltada para um mesmo fim. Não é necessário decidir,

por enquanto, se essa interpretação psicológica é correta ou não,

somente que é evento natural, que enuncia que certos indivíduos

querem tal decisão. A teoria do interesse, assim, seria aplicável também

aos juízos jurídicos de valor e aos valores de direito. Descobriremos,

porém, que tal interpretação dos valores de direito não pode ser

cogitada.

III

A aplicação da teoria do interesse aos valores de Direito é o resultado

de uma identificação falaciosa (enganosa) da norma jurídica com o ato

por meio do qual é criada. A norma e o ato que cria a norma são duas

entidades que devem ser mantidas separadas, para obter uma

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entidades que devem ser mantidas separadas, para obter uma

descrição satisfatória do fenômeno do Direito.

A expressão direito “positivo” significa que o Direito é um complexo de

normas “firmadas” ou criadas por certos atos, ao passo que o Direito

“natural” não é criado por ninguém, ele existe independente da vontade,

sendo descoberto por meio do exame da natureza.

Entre o ato criador da norma e o seu significado (isto é, a norma criada

por esse ato) prevalece um tipo de paralelismo similar ao que existe

entre os pensamentos e sentimentos. A norma não é possível sem o ato

do criador, mas os dois são entidades diferentes. O ato criador é a

conditio sine qua non da norma, mas não é a sua conditio per quam.

O criador da norma pode não existir mais e a norma continua a existir.

Um jurista desejoso de encontrar esse momento não investiga o estado

de espírito dos que criaram a norma, isso não importa, mas o conteúdo

da norma que eles criaram.

IV

Supondo que o ato criador de norma é um ato de quem tem o

conteúdo da norma como objeto, a teoria de valor do interesse parece

encontrar pelo menos uma aplicação indireta aos valores do Direito. A

afirmação de licitude ou ilicitude de uma conduta, não pode ser

interpretada como significando que a conduta é ou não é efetivamente

desejada por certas pessoas. Mas talvez possa ser interpretada como

significando que a conduta correspondeu ou não a uma norma que foi

criada por um ato de vontade que tem conteúdo da norma como

objeto.

A decisão parlamentar por meio da qual, segundo a constituição, uma

lei é promulgada não é, de maneira nenhuma, uma “vontade coletiva”.

Ela seria apenas se uma lei não pudesse ser constitucionalmente

promulgada sem que a vontade se desse por maioria absoluta,

contudo, isso não é o que acontece, sendo necessária apenas a maioria

simples, o que demonstra que a minoria não tinha vontade que aquela

determinada lei fosse promulgada. Muitas vezes aqueles que conhecem

o conteúdo da Lei e querem não estão entre aqueles cuja vontade é

decisiva segundo a constituição.

Ainda, uma Lei é expressa em palavras, que em sua interpretação, pode

sofrer diferentes interpretações diversas daquela desejada pelo

legislador. A objeção de que uma norma é sempre criada por ato de

vontade, que tem o conteúdo da norma como seu objeto, é uma óbvia

ficção. Mas, para que possamos afirmar a “existência” de uma norma,

deve sempre existir um fato que “cria” a norma.

V

Que o fato criador de norma não é necessariamente um ato de vontade

que tem o conteúdo da norma como seu objeto é evidente no caso em

que a criação de uma norma se de por um costume. Uma norma de

direito consuetudinário nasce não da vontade do parlamento, mas sim

de condutas costumeiramente tomadas por um grupo social. Os atos

que dão origem a uma norma jurídica não tem o conteúdo dessa norma

como objeto. Aqui o fato não é idêntico à norma, assim como o fato de

que o parlamento aprova um projeto de lei é diferente da norma

correspondente à qual dá origem. A regra de “ser”, que afirma que as

pessoas efetivamente se conduzem de certa maneira, não é a mesma

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pessoas efetivamente se conduzem de certa maneira, não é a mesma

norma de “dever ser”, que estipula que devem conduzi-se dessa

maneira.

A norma pressuposta transforma o costume em um fato criador da

norma, assim como a constituição dá poder legislativo ao parlamento.

VI

O motivo para a validade de uma norma oferece a resposta à questão:

por que uma pessoa deve conduzir-se como a norma prescreve?

Porque a “validade” de uma norma é o seu modo específico de

existência, porque o motivo para a validade de uma norma é também o

fundamento de sua existência. A série de motivos para a validade de

uma norma não é infinita como a série de causas de um efeito. Deve

existir uma razão final, uma norma fundamental, que é fonte de validade

de todas as normas pertencentes a certa ordem jurídica. Embora a

existência de toda norma jurídica seja condicionada por certo fato, não

é um fato, mas uma norma o motivo pelo qual todas as normas do

sistema existem. Isso demonstra que uma norma não é idêntica a seu

fato condicionador.

VII

Os juízos de valor ao domínio do Direito em que as normas devem sua

existência a atos legislativos têm a mesma conclusão de quando elas

são criadas pelo costume, onde somente pode ser base de um juízo de

valor uma norma jurídica, independente de sua natureza, se do

parlamento ou dos costumes, se positivada por pessoas consideradas

autoridades. É o que faz a diferença entre os membros de um corpo

legislativo e os membros de uma quadrilha. A norma legal criada pelo

legislador pressupõe as normas da constituição e, do mesmo modo, o

juízo de valor de que uma conduta é lícita ou ilícita – porque se

conforma ou não a um estatuto – pressupões um juízo de valor

estabelecendo ser a função do legislador uma função legal.

O ato que cria uma constituição de onde todas as outras normas vão

derivar deve igualmente ser qualificado por uma norma, uma norma

não pode receber sua validade de mais nada, a não ser de outra norma.

Um “dever ser” deriva de outro “dever ser”; nunca é conseqüência de

um mero “ser”.

Essa pode ser uma constituição prévia, ou ainda caso seja a primeira

das primeiras, que ainda não é uma norma de direito positivo, ela pode

ser chamada de uma norma hipotética. Essa norma fundamental é à

base de todos os juízos jurídicos de valor possíveis na estrutura jurídica

de um Estado dado.

VIII

A ordem de um Estado é, assim, um sistema hierárquico de normas

legais. O nível mais baixo é composto de normas individuais criadas

pelos órgãos aplicadores de Direito, especialmente os tribunais. Essas

normas individuais são dependentes dos estatutos, que são normas

gerais criadas pelo legislador, e das regras do Direito consuetudinário,

que formam o nível superior seguinte da ordem jurídica, que por sua

vez dependem da constituição escrita ou não escrita, não importa,

sendo essa o nível mais elevado de uma ordem jurídica nacional. Então,

as normas da constituição, não recebem sua validade de alguma norma

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jurídica positiva, mas de uma norma pressuposta pelo pensamento

jurídico, a norma fundamental hipotética. A validade de uma

constituição só é admitida se essa for emenda, caso seja a primeira

constituição histórica do Estado em questão a presunção é de que a

constituição é legal.

IX

O juízo de valor de que a criação da primeira constituição é legal

significa que os indivíduos que a criaram foram autorizados a tanto por

certa norma. É uma norma pressuposta no pensamento jurídico para

sustentar a “existência” de quaisquer outras normas.

A explicação para a criação originária da constituição pode ser

metafísica, remontada à vontade de Deus, sendo esse comando uma

norma transcendental já que escapa ao âmbito da experiência humana,

mas “positiva”, já que – segundo a crença religiosa - foi criada pelo ato

de uma vontade sobre-humana, ou se assim nos recusarmos a aceitar,

somos forçados a deter-nos na norma que foi apresentada aqui como a

norma fundamenta hipotética.

X

Uma análise do pensamento jurídico demonstra que os juristas

consideram válida uma constituição apenas quando a ordem jurídica

nela fundamenta é eficaz. Ser “eficaz” significa que os órgãos e sujeitos

dessa ordem, de um modo geral, conduzem-se de acordo com as

normas da ordem.

A revolução consiste no fato de que uma constituição é substituída por

outra, não em conformidade com suas próprias cláusulas, mas pela

força. Na visão dos juristas o que priva a antiga constituição de sua

validade, de sua existência legal, é precisamente o fato de que ela

perdeu sua eficácia, isto é, que deixou de corresponder à norma

fundamental geral que estabelece o princípio da eficácia. O governo que

é levado ao poder pela revolução e que promulga a nova constituição é

uma autoridade legitima apenas quando é capaz de tornar eficaz a nova

ordem.

XI

O princípio da eficácia refere-se essencialmente à ordem jurídica como

um todo, não à norma jurídica isolada.

Assim, a existência de uma norma jurídica positiva pressupõe: (1) a

eficácia da ordem jurídica total à qual pertence à norma; (2) a presença

de um fato que cria a norma; (3) a ausência de alguma norma que a

“anule”.

A existência de uma norma, a sua validade, é diferente da existência de

um fato.

A eficácia é um fato objetivamente verificável. Na medida em que tal

verificação dos juízos jurídicos de valor é possível, o valore de Direito é

um valor objetivo.

XII

O valor de Direito, tal como concebido pela teoria normativa, é objetivo

também em outro sentido. Segundo essa teoria, um objeto valorável é

valorável para todos, Já segundo a teoria do interesse, um objeto é

valorável apenas para uma pessoa interessada nele, que deseja ou quer

ou não quer esse objeto. Assim, se é norma é criada “para todos” .

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ou não quer esse objeto. Assim, se é norma é criada “para todos” .

Essa objetividade de valores de Direito é limitada apenas na medida em

que sua existência implica a existência (isto é, a validade, o “dever ser”)

de uma norma jurídica, e esta por sua vez, depende da pressuposição

da norma fundamental. Pressupondo a norma fundamental, podem

submeter a uma prova objetiva os juízos jurídicos de valor baseados na

norma fundamental pressuposta. Mas não há nenhuma necessidade de

pressupor a norma fundamental.

XIII

Esse é o motivo por que é possível sustentar que a ideia de uma norma,

um “dever ser”, é meramente ideológica. Um conceito ideológico é um

conceito que cumpre outra função além da de descrever e explicar a

realidade.

Se o sistema de normas jurídicas é uma ideologia, é uma ideologia

paralela a uma realidade definida. Essa realidade consiste na eficácia do

sistema como um todo e nos fatos que constituem a criação ou a

anulação de normas particulares, pode ser denominada uma realidade

social, a designação “social” pressupõe que esta realidade é

interpretada à luz de uma ideologia normativa. Essa realidade social

muitas vezes opõe-se ao Direito, como “poder” opõe-se a norma. Nesse

sentido o Direito pode ser considerado como ideologia específica de

dado poder histórico. Esse poder geralmente é identificado com o

Estado. Diz-se que o Estado é o poder “por trás” do Direito. Esse

dualismo é muitas vezes uma realidade social e de uma ideologia

condicionada e determinada por essa realidade.

XIV

O valor de justiça não é da mesma natureza que o valor do Direito.

As normas que são efetivamente usadas como padrões de justiça

variam de individuo para individuo e muitas vezes são irreconciliáveis.

Por exemplo, enquanto o liberal considera a liberdade como ideal de

justiça, o socialista vê o ideal na igualdade.

É impossível determinar a norma de justiça de modo exclusivo. Ela é, em

última análise, uma expressão do interesse do indivíduo que pronuncia

uma instituição social como justa ou injusta.

Não há um padrão exclusivo de justiça: o que encontramos

efetivamente é muito ideal diferente e muitas vezes, conflitante.

Existe, porém, um Direito positivo. Seu conteúdo pode ser averiguado

sem ambigüidade por um método objetivo. As normas de Direito

positivo corresponde certa realidade social, mas não às normas de

justiça. Nesse sentido, o valor do Direito é objetivo, ao passo que o valor

da justiça é subjetivo. E isso se aplica mesmo que às vezes em grande

número de pessoas tenha o mesmo ideal de justiça.

Esta investigação dos juízos de valor que surgem na ciência do Direito

parece estabelecer os seguintes resultados.

(1) O valor não é necessariamente uma relação com o interesse. O valor

Também pode consistir em uma relação com uma norma.

(2) O conceito de uma norma (um “dever ser”) é indispensável à

descrição de certos fenômenos. Não tem nenhuma implicação

metafísica.

(3) O significado de uma norma é um “dever ser” em contraposição a um

“ser”.

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“ser”.

(4) Um valor é subjetivo se seu objetivo é valorável apenas para os que

estão interessados nesse objeto. Um valor é objetivo se o seu valor

objeto for valorável para todos.

VIII. O DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL ESPECÍFICA

A essência da técnica jurídica (p. 225)

A técnica social da motivação direta e indireta

A sociedade é o ordenamento da convivência de indivíduos. Essa

convivência constitui – em si – um fenômeno biológico, mas se torna um

fenômeno social pelo fato de ser regulamentada. A ordem social,

constituída pelo complexo de normas, determina como o indivíduo deve

conduzir-se em relação aos outros (conduta recíproca dos indivíduos).

Podem-se distinguir vários tipos ideais de ordens, conforme a maneira

como a conduta socialmente desejada é ocasionada, a depender de sua

motivação, que pode ser indireta ou direta. Um dos motivos para a

conduta está na motivação indireta por meio de normas com sanção,

com a aplicação do princípio da retribuição (princípio de recompensa

ou punição), consistente em associar a conduta em conformidade com

a ordem com a promessa de vantagem; e a conduta contrária à ordem

com a ameaça de uma desvantagem.

Outro motivo, raramente encontrado em forma pura, advém da

motivação direta por meio de normas sem sanção, cuja atração direta

dos indivíduos pela conduta, simplesmente por estar decretada pela

norma, acarreta a conduta em conformidade com a norma, por

obediência voluntária. Esclarece-se que nenhuma norma gera essa

suficiente atração aos indivíduos e que toda conduta social vem

acompanhada de um juízo de valor, que implica uma sanção de ordem

(reação do grupo referente à aprovação ou à reprovação da conduta

pelos seus semelhantes). Logo, a diferença é que certas ordens sociais

prevêem sanções definidas, outras, por outro lado, têm sanções

derivadas da reação automática da comunidade, não expressamente

provida pela ordem.

As sanções providas pela ordem social podem ter caráter

transcendental (religioso) ou social-imanente (social-organizada). As de

caráter transcendental são aplicadas por autoridade sobre-humana,

desta forma, a retribuição emana da divindade, que mantém a ordem

social primitiva por sanções religiosas. Nos primórdios do

desenvolvimento religioso, o homem primitivo associa os seus deuses

com as almas dos mortos. Sem o dualismo Aqui e Além, a retribuição é

realizada no Aqui (morte, doença, má sorte na caça).

As sanções socialmente imanentes (ou socialmente organizadas) devem

ser cumpridas pelos indivíduos segundo dispositivos da ordem social. A

vingança de sangue, entre grupos, é a mais primitiva delas, em que se

reage contra o prejuízo considerado injustificado por um membro de

um grupo estranho. A alma do assassinado compele os parentes a se

vingarem. Por medo de uma sanção imposta pelas almas dos mortos, a

sanção socialmente organizada é garantida por uma sanção

transcendental.

Posteriormente, o desenvolvimento religioso passa-se a considerar a

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divindade em outro plano (Além), e a retribuição divina é adiada para o

Além (céu ou inferno). A ordem social perde seu caráter puramente

religioso, servindo este como suplemento e apoio da ordem social.

Nas duas sanções típicas (punição e recompensa), ganha primazia o

medo do castigo, que se sobrepõe à expectativa de recompensa, cuja

significação é secundária. A técnica da recompensa se desenvolve nas

relações privadas entre indivíduos. A técnica da punição é o método de

ocasionar a conduta socialmente desejada, pela ameaça e a aplicação

de um mal pela conduta contrária. Nesta ordem coercitiva, cuja eficácia

repousa nas medidas de coerção, o mal, quando constitui sanção

socialmente organizada, é aplicado pela privação de posses contra a

vontade do possuidor (não obrigatoriamente com força física, somente

quando há resistência).

Esta ordem coercitiva contrasta com a ordem que prevê sanções

recompensa e a ordem que não executa nenhuma sanção (pela técnica

da motivação direta). Para essas duas últimas ordens, a eficácia repousa

na obediência voluntária. Note-se que a obediência voluntária é, ela

própria, uma forma de motivação, de coerção, e, portanto, não é

liberdade, mas coerção no sentido psicológico (e não no sentido de

privação involuntária de posses).

O Direito como ordem coercitiva que monopoliza o uso da força (p. 230)

Há um elemento comum entre as diversas ordens jurídicas (diferentes

em seu teor e vigentes em diferentes épocas e povos), que justifica o

uso da palavra “Direito” como conceito provido de importante

significado social. Refere-se à técnica social específica de uma ordem

coercitiva , que, apesar das enormes diferenças entre comunidades, é

essencialmente a mesma para todos.

Ordens sociais que perseguem o mesmo objetivo, mas por meios

diversos:

Quadro comparativo

Ordens sociais Medida à conduta contrária Previsão e Caráter Aplicador

1) Direito Medida de coerção prevista na ordem jurídica Provida pela

ordem jurídica e socialmente organizada. ATO da comunidade jurídica

Outro homem, designado pela ordem jurídica (agente da comunidade

social)

2) Moral Reprovação moral Não provida pela ordem moral e não

socialmente organizada Seus semelhantes

3) Religião Castigo (= doença ou morte do pecador) Provida pela ordem

religiosa, não socialmente organizadas, de caráter transcendental. ATO

da autoridade sobre-humana Autoridade sobre-humana (mais eficaz)

O Direito não exclui o uso da força, mas o proíbe nas relações entre

indivíduos. Como o ordenamento promove a paz e pacifica a sociedade,

o Direito autoriza o emprego da força apenas por certos indivíduos e

apenas sob certas circunstâncias, a contrario sensu, para todas as

demais circunstâncias não autorizadas, ele é proibido. Por esse motivo,

o Direito é uma organização da força e faz de seu uso um monopólio da

comunidade, porque apenas o indivíduo, autorizado pela ordem

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comunidade, porque apenas o indivíduo, autorizado pela ordem

jurídica, pode aplicar a medida coercitiva, atuando como órgão dessa

ordem ou da comunidade por ela constituída. Assim, o Direito provê

uma paz relativa, porque admite o emprego da força mesmo que

reservadamente; não provendo uma paz absoluta, cuja condição é a

ausência absoluta de força (estado de anarquia).

Não há um estado de Direito, o qual é essencialmente um estado de

paz. A intervenção da força (medida de coerção) é permitida como

sanção, como reação da comunidade à proibida intervenção forçosa de

um indivíduo nas esferas de interesse alheias, quando a conduta de

abster-se havia sido induzida pelo Direito, por sua técnica social. Desta

forma, protegem-se as esferas de interesses do indivíduo pela ordem

social.

A ideia de uma comunidade sem força

A pergunta central desse tópico é: O Direito é inevitável ou não?

Suposições: a coercibilidade talvez derive do conteúdo peculiar de certa

ordem jurídica, ou talvez não houvesse a necessidade de prever

medidas coercitivas porque os indivíduos não teriam motivos para a

conduta contrária e houvesse motivação direta, por obediência

voluntária.

Faz-se um paralelo com a necessidade do Estado, que também é uma

ordem coercitiva. A história confirmou o brocardo: ubi societas ubi jus,

porque não houve comunidade que não fosse legal, constituída pelo

direito como ordem coercitiva.

A doutrina do anarquismo teórico, pensada e desejada por otimistas e

sonhadores políticos, prevê uma “sociedade livre” de qualquer coerção,

na qual não há nenhuma lei (Direito positivo) e nenhum Estado. A

ordem natural é JUSTA (faz todos os homens felizes), visto que conta

com a obediência voluntária de todos os sujeitos – porque

corresponderia à natureza do homem, e suas relações recíprocas

exigiram apenas o que eles desejassem, não havendo necessidade de

compelir as pessoas à sua própria felicidade.

Essa realidade é vista como ilusão, porque, se possível, já teria sido

realizada. Partindo do conhecimento da natureza humana (provida de

impulso de agressão inato ao homem) e da impossibilidade da

felicidade de todos os homens (diante de incompatibilidades de

vontades), considera-se muito improvável uma ordem natural e justa,

reconhecida de imediato por todos e de pronta obediência, que possa

escapar do risco de ser violada, mesmo que ela assegurasse todas as

vantagens desejadas pelos homens. Supor a satisfação geral é partir de

um pressuposto utópico: de que o homem é bom por natureza.

A doutrina do socialismo marxista representou essa ideia politicamente

com mais sucesso, ao considerar supérfluo o mecanismo de coerção

(Estado e Direito), se fosse abolida a propriedade privada e socializados

os meios de produção, levando à cessação dos conflitos de classes. Os

anarquistas previam a extinção imediata do Estado, já os marxistas

admitiam a extinção do Estado capitalista, substituído pelo Estado

proletário, caminhando para desaparecimento gradual do Estado.

A economia planejada socialista – para o grau mais elevado de

produtividade – exige um caráter autoritário, gerido por um gigantesco

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produtividade – exige um caráter autoritário, gerido por um gigantesco

corpo administrativo hierarquicamente organizado, com tendências

totalitárias, limitando a liberdade do indivíduo mais severamente. Este

Estado deve contar com perturbações da parte de seus cidadãos,

mesmo que não seja por necessidades econômicas, mas por outras

necessidades (desejo de prestígio, libido, sentimentos religiosos).

Mesmo no socialismo, há necessidade do Direito, pelo uso de suas

medidas de coerção quando não houver obediência voluntária de seus

sujeitos em todos os sentidos. Não se pode esperar que medidas

preventivas possam ser tão eficazes a ponto de tornar as medidas

repressivas inteiramente supérfluas.

A evolução da técnica jurídica

Diferenciação da relação dinâmica entre a criação e a aplicação do

direito

A relação fundamental da estática do Direito (em estado de repouso) é a

estabelecida pela norma jurídica entre delito e sanção, em que a ordem

jurídica vincula uma sanção a uma conduta, denominada delito, para

induzir a conduta oposta, que não invocará sanção.

Na perspectiva do Direito em seu movimento específico e no processo

da criação do Direito, observa-se que Direito regulamenta a sua própria

criação, exigindo, para que a norma pertença à ordem jurídica, que ela

passe a existir de uma certa maneira, estipulada por norma da própria

ordem.

O Direto Natural não precisa ser criado pelo ato do homem, apenas

reconhecido por ele como Direito emanado da natureza. Por outro lado,

o Direito positivo não tem apenas de ser criado, mas deve ser aplicado.

Há dois métodos de criar Direito: 1. Costume (conduta similar e repetida

do sujeito); 2. Legislação (ato consciente de um órgão especial

estabelecido para o propósito de criar Direito).

A dinâmica típica do Direito está na progressão entre a criação e sua

aplicaçã, que pode ser dividida em etapas: (i) a criação de uma norma

geral abstrata, (ii) a criação da norma individual decretando a sanção

pelo tribunal (no caso concreto); (iii) execução da norma individual

(aplicação da sanção).

No sistema primitivo, a dinâmica era dividida em apenas duas etapas (i)

e (iii), sob a técnica da iniciativa individual, porque a norma geral era

aplicada diretamente ao caso concreto, sem uma norma individual

decretada por um órgão, já que próprio sujeito levava a cabo a sanção.

Com o desenvolvimento dos tribunais, a norma individual decretada (ii)

se insere entre a norma geral (i) e a execução da sanção (iii).

O processo de criação das normas gerais também tende desenvolver-

se, havendo hierarquia de normas gerais e individuais (etapas:

constituição → estatutos com base na constituição → decretos com

base nos estatutos → regulamentos com base nos decretos →→→→→

grau mais baixo: execução da medida concreta).

Diferenciação da relação estática entre delito e sanção

Diferenciação da sanção: Direito Criminal e Direito civil.

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Originalmente havia apenas a sanção penal, entendida como punição.

Depois surgiu a execução civil, pela privação coercitiva da propriedade

para compensar o dano ilicitamente causado. Como semelhança:

ambas as sanções garantem a conduta desejada pela mesma técnica

social, qual seja a reação contra o delito na forma de um ato de coerção

como sanção.

Quadro comparativo de distinções

Sanções Propósito Uso da propriedade tomada à força Processo judicial

Forma

Civil Reparação do dano causado Devolvida ao sujeito ilegalmente

prejudicado Iniciado por exigência de um sujeito específico.

Processo contencioso Disputa entre duas partes.

Princípio da propriedade privada

Penal Retribuição ou prevenção* Cabe à comunidade jurídica Iniciado ex

officio (exigência do órgão da comunidade) Disputa entre um órgão da

comunidade e o infrator.

* A distinção é relativa, porque a civil tem uma função preventiva,

mesmo que secundariamente.

Diferenciação da sanção: responsabilidade coletiva e responsabilidade

individual.

O princípio da responsabilidade individual consiste na técnica jurídica

mais refinada em que apenas aquele que comete o delito deve ser

responsável pelo delito, contra quem a sanção será dirigida. Por outro

lado, o princípio da responsabilidade coletiva dirige a sanção ao próprio

indivíduo que comete o delito e a todos os membros do grupo social a

qual ele pertence.

No direito primitivo, o indivíduo é identificado como elemento integral

de seu grupo, ele não é auto-suficiente. Os méritos e deméritos

individuais são dirigidos a todo o grupo. A responsabilidade coletiva é

um elemento típico do estado de justiça que ainda subsiste o princípio

da iniciativa individual, sendo que a vingança de sangue é dirigida contra

a pessoa que cometeu o feito e toda sua família. O desenvolvimento

técnico do direito progride da responsabilidade coletiva para a

individual.

Diferenciação do delito: responsabilidade absoluta e culpabilidade

Responsabilidade absoluta responsabiliza por um resultado

socialmente prejudicial ocasionado pela conduta do indivíduo, sem

levar em conta se ele agiu com intenção ou negligência. No caso de

culpabilidade, deve-se existir também uma ligação mental específica

(intenção, negligência, culpa).

Nas ordens jurídicas primitivas, o caso da culpabilidade é desconhecido.

O desenvolvimento técnico do Direito evolui da responsabilidade

absoluta para a culpabilidade, como regra geral, pois existem

importantes exceções nas ordens jurídicas modernas (ex.

responsabilidade das pessoas jurídicas).

A centralização

O direito primitivo é descentralizado, porquanto todas as funções de

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O direito primitivo é descentralizado, porquanto todas as funções de

criação e de aplicação do direito são executadas por todos os sujeitos.

Com o desenvolvimento do Direito, a centralização da função de

aplicação da sanção precede a centralização da função de criação do

Direito. No Direito consuetudinário, ainda não havia órgãos legislativos

especiais (as normas gerais eram criadas pela colaboração de todos os

indivíduos sujeitos à ordem jurídica: método descentralizado de criar

Direito), mas a aplicação do Direito era centralizada pela função

exclusiva dos órgãos especiais (juízes, órgãos especiais diferentes e

independentes das partes em conflito).

Diante deste panorama, reconhece-se que não existem, no domínio do

Direito, fatos absolutos (“fatos em si”). Qualquer opinião quanto à

existência de um fato (opinião subjetiva), tal como determinado pela

ordem jurídica, é irrelevante do ponto de vista jurídico. A existência do

fato está condicionada à opinião autêntica (opinião da autoridade

instituída pela ordem jurídica) e só assim, pelo processo prescrito, a

ordem jurídica vincula certa punição a um fato.

Para o desenvolvimento técnico do Direito, nenhum outro passo foi tão

importante quanto o estabelecimento de tribunais, porque possibilitou

a aplicação do Direito a todos os casos.

Os tribunais atuavam como tribunais de arbitragem (tentar um acordo,

decidir se houve delito, autorizar a parte a executar a sanção).

Posteriormente, há centralização da execução, por um órgão da

comunidade jurídica, o que dependia de uma administração poderosa.

A centralização da função judicial e da administração, mesmo sem um

órgão legislativo, transforma uma comunidade primitiva em Estado, que

é uma ordem jurídica centralizada.

Nas relações intertribais, o primeiro órgão central foi o chefe, que

posteriormente surge como juiz e não legislador. No início do

desenvolvimento, as funções judiciais e legislativas ficam em primeiro

plano. Recentemente vê-se o Estado judicial transformado em Estado

administrativo, com o crescente número de leis administrativas. A

administração indireta (técnica do Estado liberal-capitalista) utiliza a

mesma técnica do judiciário, ao induzir, por meio da ameaça de uma

sanção, a conduta do cidadão considerada desejável pela

administração. Diferencia-se da administração direta (técnica do Estado

socialista), que é voltada para os órgãos públicos e se distingue da

atividade judicial.

O capítulo finaliza com uma análise do Direito internacional, associando

sua estrutura com as características do direito primitivo, porque

radicalmente descentralizado, com criação das normas pelos costumes,

ausência de órgão especial para aplicação das normas, iniciativa

individual da parte dos sujeitos, responsabilidade coletiva e

responsabilidade absoluta, mas com a peculiaridade de ter pessoas

jurídicas como sujeitos – os Estados. Está progredindo o

desenvolvimento técnico do Direito internacional e, à medida que a

obrigação e a autorização direta dos indivíduos e a centralização

aumentam, a fronteira entre Direito nacional e Direito internacional

tende a desaparecer, aproximando-se à idéia de Estado mundial.

IX. POR QUE A LEI DEVE SER OBEDECIDA?

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IX. POR QUE A LEI DEVE SER OBEDECIDA?

I

Qual é o motivo para a validade do Direito? Para avaliar as diversas

respostas a esta pergunta certos termos devem ser esclarecidos. Por

“Direito” entenda-se Direito positivo – nacional ou internacional. Por

“validade” entenda-se a força obrigatória da lei – a idéia de que ela deve

ser obedecida pelas pessoas cuja conduta regulamenta. A questão é por

que essas pessoas devem obedecer à lei.

II

Uma resposta freqüentemente aceita é que os homens devem

obedecer ao Direito positivo porque e na medida em que ele se

conforma aos princípios da moral. Os princípios morais que se referem

às atividades humanas criadoras e aplicadoras de Direito constituem o

ideal de justiça; segundo este ponto de vista, então, o motivo para a

validade do Direito é a sua justiça. À questão de como esses princípios

morais devem ser determinados, a resposta típica é que eles são, por

assim dizer, imanentes à natureza.

Os pontos de vistas precedentes constituem a doutrina do Direito

natural, que concebe a natureza como uma autoridade legisladora.

Mesmo se aceito que as normas que regulamentam a conduta humana

podem ser deduzidas da natureza, surge a questão de por que os

homens devem obedecer a essas normas. Para esta questão adicional a

doutrina do Direito natural não tem nenhuma resposta. A doutrina

simplesmente pressupõe – talvez como evidente – que os homens

devem obedecer aos comandos da natureza. Esta é a hipótese

fundamental dessa doutrina, a sua norma fundamental, seu motivo

para a validade do direito.

Contudo, essa hipótese fundamental não pode ser aceita por uma

teoria do Direito positivo porque é impossível deduzir a partir da

natureza normas que regulamentem a conduta humana. As normas são

a expressão de uma vontade, e a natureza não tem nenhuma vontade.

Há outro motivo. A doutrina do Direito natural de que o Direito positivo

é válido porque se conforma à justiça conduz a um ou outro dos

seguintes resultados – ambos inaceitáveis para uma teoria do Direito

positivo:

(a) Se todo Direito positivo for considerado válido, todo o Direito

positivo – segunda a doutrina do Direito natural – deve ser considerado

justo, em conformidade com o Direito natural. Desse modo, todo o

Direito feito pelo homem pode ser justificado se for dotado de

autoridade sobre-humana. Se, porém, todo o Direito for justo, então

Direito e justiça são idênticos; e, então, dizer que o Direito é válido

porque é justo equivale a dizer: o motivo para a validade da lei é a lei; a

lei deve ser obedecida porque a lei deve ser obedecida.

(b) Se o Direito é identificado como justiça e o Direito positivo com o

Direito natural, os conceitos de justiça ou de Direito natural tornam-se

sem sentido. Eles têm sentido apenas se existir um antagonismo

possível entre justiça e Direito natural, de um alado, e Direito positivo,

de outro. Na verdade, representantes destacados da doutrina do

Direito natural proclamaram, em nome da justiça ou do Direito natural,

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Direito natural proclamaram, em nome da justiça ou do Direito natural,

princípios que não apenas se contradizem mutuamente, mas que estão

em oposição direta a muitas ordens jurídicas positivas. Todos esses

princípios representam os juízos de valor altamente subjetivos de seus

diversos autores sobre o que consideram justo ou natural. Por

exemplo, se a propriedade individual é um Direito natural, como

declaram alguns autores, então a ordem jurídica de um Estado

comunista não é válida e não passa de uma organização de bandidos.

Mas, se a propriedade jurídica for contrária à natureza, como afirmam

alguns autores, a ordem jurídica de um Estado capitalista não tem

nenhuma chance de ser reconhecida como um Direito válido, a que

seus cidadãos devam obedecer.

Dizer, portanto, que o Direito positivo é válido porque é justo não é uma

resposta para nossa pergunta. A doutrina do Direito natural não

responde à questão de por que o Direito positivo é válido, mas sim à

questão, totalmente diferente, de por que o Direito natural é válido. È a

norma pressuposta de que os homens devem obedecer aos comandos

da natureza. É a sua norma fundamental.

III

Há outra doutrina – a teologia cristã – que oferece uma resposta para

nossa questão. Os homens devem obedecer a qualquer Direito positivo

porque sua obediência é ordenada por Deus, cujos representantes são

as autoridades legislativas. Elas são autorizadas por Deus a produzir

Direito, e, conseqüentemente, esse Direito deve ser considerado não

meramente como um Direito feito por homens mas como um Direito

que tem origem na vontade de Deus. Em última análise, a obediência do

homem é devida a Deus e não ao Direito positivo como tal.

Contudo, a afirmação de que os homens devem obedecer ao Direito

positivo porque Deus assim ordena não é uma resposta final à questão

de por que o Direito positivo é válido. Pois, mesmo se for tido como

certo o fato de que Deus emite esse mandamento, surge a questão de

por que os homens devem obedecer aos mandamentos de Deus. Os

homens devem obedecer ao Direito positivo porque os homens devem

obedecer aos mandamentos de Deus, que ordenou a obediência ao

Direito positivo. Que os homens devem obedecer aos mandamentos de

Deus é uma norma que não pode ser apresentada como emitida por

Deus. Pois, se a autoridade emite uma norma prescrevendo que um

indivíduo deve obedecer à ordem de outro indivíduo, essa norma

implica autorizar o outro indivíduo a emitir a ordem, e o indivíduo

autorizado por essa norma está sujeito a ela exatamente como o

indivíduo obrigado a obedecer. Portanto, uma autoridade que emite tal

norma teria de ser considerada superior a ambos. Deus não pode

autorizar uma norma autorizando Deus a emitir ordens, porque Deus é

ordem suprema. Conseqüentemente, a norma de que os homens

devem obedecer aos mandamentos de Deus não pode ser uma norma

emitida por uma autoridade; pode ser apenas uma norma pressuposta

pela teologia, sua hipótese metafísica, sua norma fundamental. É –

segundo essa doutrina teológica – o motivo para a validade do Direito.

A resposta que a teologia cristã dá a nossa questão, assim como a

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resposta à doutrina do Direito natural, encontra o motivo para a

validade do Direito em uma ordem superior, colocada acima do Direito

positivo – em uma ordem divina ou natural. Segundo ambas as

doutrinas, o Direito positivo em si não tem nenhuma validade.

IV

Esta análise das duas doutrinas demonstra, primeiro, que suas

hipóteses não são aceitáveis por uma ciência do Direito positivo.

Segundo, deve-se supor que o Direito positivo é uma ordem suprema,

soberana.

Essa ordem é caracterizada por uma estrutura hierárquica. Seu

fundamento á a constituição escrita ou não-escrita, sobre a qual

repousam os estatutos decretados pelos legisladores. Devemos

obedecer às decisões de um juiz ou administrador, em última análise,

porque devemos obedecer à constituição. Se perguntarmos por que

devemos obedecer às normas da constituição existente, podemos ser

remetidos a uma constituição mais antiga, que foi substituída de

maneira constitucional pela constituição existente; dessa maneira,

chegamos à primeira constituição histórica. À questão de por que

devemos obedecer às suas cláusulas, uma ciência do Direito só pode

responder: a norma de que devemos obedecer às estipulações da

primeira constituição histórica só deve ser pressuposta como hipótese

como hipótese se a ordem coercitiva, estabelecida com fundamento

nela e efetivamente obedecida e aplicada por aqueles cuja conduta

regulamenta, for considerada uma ordem válida, obrigatória para esses

indivíduos, se as relações entre esses indivíduos forem interpretadas

como deveres, direitos e responsabilidades legais, não como meras

relações de poder; e se for possível distinguir o que é legalmente certo e

legalmente errado, em especial o uso legítimo e ilegítimo da força.

Essa é a norma fundamental de uma ordem jurídica positiva, a razão

final para a sua validade, vista do prisma de uma ciência do Direito

positivo. É a razão conclusiva para a validade do Direito positivo,

porque, a partir desse prisma, é impossível supor que a natureza ou

Deus ordenem a obediência à primeira constituição histórica, que os

pais da constituição foram autorizados a estabelecê-la pela natureza ou

Deus. A norma fundamental de que devemos obedecer às disposições

da primeira constituição histórica não é criada pela autoridade jurídica,

isto é, não é uma norma positiva criada em conformidade com a

constituição; é uma norma que – como nos diz a ciência do Direito

positivo – pressupomos como hipótese quando consideramos a ordem

coercitiva que regulamenta efetivamente a conduta humana no

território de um Estado como uma ordem normativa obrigatória para

seus habitantes. Esse pressuposto não é um produto da livre

imaginação. É a aplicação do princípio geral da eficácia, que, como

princípio normativo, desempenha um importante papel no domínio do

Direito.

Assim o positivismo jurídico responde à questão por que o Direito é

válido, reportando-se a uma hipótese que pode ou não ser aceita – em

outras palavras, justificando a obediência à lei apenas

condicionalmente. Contudo, neste aspecto, não há nenhuma diferença

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condicionalmente. Contudo, neste aspecto, não há nenhuma diferença

entre o positivismo jurídico, por um lado, e a doutrina do Direito natural

ou da teologia, por outro. O motivo para a validade do Direito, segundo

os três, é uma norma fundamental hipotética. Assim como a norma

fundamental do positivismo jurídico não é emitida pela autoridade

jurídica, mas pressuposta no pensamento jurídico, as normas

fundamentais da doutrina do Direito natural e da teologia cristã não são

emitidas pela natureza ou por Deus, mas pressupostas como hipóteses

por essas doutrinas. Conseqüentemente, essas doutrinas também

podem justificar a obediência à lei apenas condicionalmente. A única

diferença é que a validade para a qual a norma fundamental do

positivismo jurídico fornece o motivo é a validade imanente do Direito

positivo, ao passo que a validade para a qual a norma fundamental da

doutrina do Direito natural ou da teologia cristã fornece o motivo é a

validade de uma ordem natural ou divina.

V

A questão quanto ao motivo da validade do Direito foi restringida nas

considerações anteriores ao Direito nacional.

O Direito internacional é composto de normas do Direito

consuetudinário e do Direito convencional – sendo este último o Direito

criado por tratados com base no Direito consuetudinário. Portanto, o

motivo para a validade do Direito internacional, a sua norma

fundamental, é uma norma que institui o costume como fato criador do

Direito – a norma de que os Estados devem conduzir-se como os

Estados costumeiramente se conduzem nas suas relações mútuas.

A norma que autoriza o costume do Estado a criar Direito obrigatório

para os Estados só pode ser uma norma pressuposta pelos que

interpretam as relações mútuas dos Estados, não como meras relações

de poder, mas como relações jurídicas, na condição de obrigações,

direitos e responsabilidades; por aqueles, novamente, que consideram

os atos dos Estados como legais ou ilegais, isto é, como relações

regulamentadas por uma ordem jurídica válida. É uma hipótese – a

condição – sob a qual tal interpretação é possível. Essa hipótese, a

norma fundamental do Direito internacional, é, em última análise,

também o motivo da validade das ordens jurídicas nacionais.

X. A TEORIA PURA DO DIREITO E A JURISPRUDÊNCIA ANALÍTICA

A Teoria do Direito e a Filosofia da Justiça

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – uma teoria

geral do Direito, não se tratando de uma apresentação de uma ordem

jurídica especial. Procura-se, com esta teoria, descobrir a natureza do

próprio Direito, e determinar sua estrutura e suas formas típicas,

independentemente do conteúdo variável que apresenta em diferentes

épocas e entre diferentes povos. Deve-se responder à questão do que é

o Direito, não do que deve ser. Enquanto esta questão é política, a

teoria pura do Direito é ciência.

Esta teoria é chamada “pura” por procurar excluir da cognição do

Direito positivo todos os elementos estranhos a este.

A jurisprudência, ciência específica do Direito, deve, segundo Kelsen, ser

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A jurisprudência, ciência específica do Direito, deve, segundo Kelsen, ser

distinguida tanto da filosofia da justiça quanto da sociologia (cognição

da realidade social). A Teoria Pura do Direito não busca responder à

questão de se dado Direito justo ou não. Tampouco se considera

competente para responder o que constitui a própria justiça. Tais

questões não podem ser respondidas cientificamente, logo não são

objetos da presente teoria. No entanto, a libertação do conceito de

Direito da idéia de justiça é difícil porque eles são constantemente

confundidos no pensamento político e na linguagem comum.

Jurisprudência normativa e sociológica

O objeto da Teoria Pura do Direito é o Direito positivo, ou seja, é uma

ordem por meio da qual a conduta humana é regulamentada de uma

maneira específica por normas que dispõem como os homens devem

conduzir-se.

A jurisprudência vê o Direito como um sistema de normas gerais e

individuais, sendo seu objeto justamente essas normas e jamais a

conduta efetiva dos indivíduos. A jurisprudência considera uma norma

jurídica válida apenas se ela pertencer a uma ordem jurídica que, de

modo geral, é eficaz, isto é, se os indivíduos cuja conduta é

regulamentada pela ordem jurídica efetivamente se conduzirem, de

modo geral, como deveriam conduzir-se segundo a ordem jurídica.

Assim, se uma ordem jurídica perdesse sua eficácia, suas normas

seriam inválidas.

É possível, contudo, que uma ordem jurídica seja eficaz como um todo,

sendo considerada válida, mas que uma norma particular, embora

válida, não seja eficaz em um caso concreto por não ter sido obedecida

ou aplicada, embora devesse sê-lo. A diferença entre a validade e a

eficácia consiste no “dever ser” presente no conceito da primeira.

A jurisprudência apresenta, com base em normas jurídicas válidas,

proposições que têm um sentido puramente descritivo. Essas

proposições são enunciados que descrevem o “dever ser” da norma

jurídica. Estes enunciados são chamados de Regras de Direito, em

contraposição às normas jurídicas, emitidas pela autoridade jurídica.

A regra de Direito, apresentada pela jurisprudência, é assim como a lei

da natureza, um julgamento hipotético que vincula uma conseqüência

específica a uma condição específica. Entretanto, enquanto a ciência

natural descreve seu objeto – a natureza – em proposições de ser, a

jurisprudência descreve seu objeto – o Direito – em enunciados de

dever ser.

Esta jurisprudência, que pode ser considerada uma jurisprudência

normativa do Direito, por ter uma visão especificamente jurídica do

mesmo, diverge de outra, a sociológica. Esta descreve os fenômenos do

direito não em proposições que afirmam como os homens devem

conduzir-se, mas em proposições que dizem como eles efetivamente se

conduzem. Essas regras da vertente sociológica jurisprudencial

proporcionam o meio de prever os acontecimentos futuros na

comunidade jurídica, a conduta futura a ser caracterizada como lei.

Desse modo, enquanto a jurisprudência normativa determina como os

tribunais deveriam decidir em conformidade com as normas jurídicas

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em vigor, a sociológica determina como eles decidem e como

provavelmente decidirão. Observa-se que contanto que a ordem

jurídica seja eficaz como um todo, existe a maior probabilidade de que

os tribunais efetivamente decidam como deveriam decidir.

A Teoria Pura do Direito não nega a validade de tal jurisprudência

sociológica, mas a nega como única ciência do Direito. Admite-se que

ambas as jurisprudências andam lado a lado, tratando cada uma de

problemas diferentes. Enquanto a normativa trata da validade do

Direito, a sociológica trata de sua eficácia.

Ressalta-se que a possibilidade de previsão do funcionamento jurídico

pela jurisprudência sociológica é diretamente proporcional ao grau em

que esse funcionamento foi descrito pela jurisprudência normativa.

A sociologia do Direito não apenas tem a função de descrever e prever,

se possível, as condutas efetivas dos indivíduos que criam a lei, aplicam-

na, e obedecem-lhe, mas também deve explicá-la causalmente. Para tal,

deve investigar as ideologias pelas quais os homens são influenciados

em suas atividades criadoras e aplicadoras de lei. Entre essas ideologias

a idéia de justiça desempenha um papel decisivo, sendo uma das

tarefas mais importantes da sociologia do Direito.

O conceito de norma

Considerando que a Teoria Pura do Direito limita-se à cognição do

Direito positivo, sua orientação é em boa parte a mesma da

jurisprudência analítica, descrita na obra anglo-americana de Johhn

Austin. Contudo, divergem em alguns pontos, especialmente no que diz

respeito ao conceito central da jurisprudência, a norma. A

jurisprudência analítica não emprega esse conceito e ignora a distinção

entre ser e dever ser, que é o fundamento do conceito da norma. Para

ela, lei é sinônimo de regra, de comando, sendo este a expressão da

vontade de um indivíduo dirigida à conduta de outro indivíduo. Assim,

um comando consiste no desejo dirigido à conduta de outra pessoa e

na sua expressão de uma ou de outra maneira (querer + sua

expressão).

Acontece que as regras jurídicas que constituem o Direito não são

efetivamente comandos. Isso porque elas são válidas e obrigam

indivíduos mesmo quando a vontade pelas quais foram criadas há

muito deixaram de existir .

Kelsen afirma, então, que dizer que uma lei particular é um comando,

uma ‘vontade’ do legislador só pode ser tomado como uma expressão

figurado. Isso porque a conduta humana é decretada, provida ou

prescrita por uma regra de Direito sem nenhum ato psíquico de

vontade. A lei seria, portanto, um comando “despsicologizado”. O

homem deve conduzir-se conforme a lei. Nisto reside a importância do

conceito de dever ser, e revela a necessidade do conceito de norma

(regra que afirma que um indivíduo deve conduzir-se de certa maneira,

mas não afirma que tal conduta é a vontade efetiva de alguém).

Pode-se reconhecer, no entanto, um comando como sinônimo de

norma quando o mesmo tem força obrigatória.

O elemento da coerção

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O elemento da coerção

Nesse aspecto, convergem a Teoria Pura do Direito e a jurisprudência

analítica ao considerarem a coerção como elemento essencial do

Direito.

A lei, conforme a jurisprudência analítica, seria uma regra

“forçosamente aplicada” por uma autoridade dada, e o meio pelo qual o

Direito “força” a obediência de indivíduos consiste na aplicação de

sanções em caso de desobediência. Essa coerção seria psíquica.

Obedecer-se-ia pelo temor da sanção.

Entretanto, explica Kelsen, de um ponto de vista de um método

estritamente analítico, esta formulação não é correta. Os indivíduos

podem ser impelidos a respeitar a norma por outros motivos, morais

ou religiosos, por exemplo, podendo ser estes ainda mais importantes

que o medo da sanção do Direito.

Assim, a coerção psíquica não é um elemento específico do Direito,

estando a questão quanto aos motivos da conduta legítima fora do

objetivo da cognição voltada apenas para o conteúdo da ordem jurídica.

Neste caso, se está diante de um problema da jurisprudência

sociológica e não da analítica ou normativa. Esta pode apenas afirmar

que o Direito estabelece medidas coercitivas como sanções, que são

dirigidas, sob condições definidas, contra indivíduos definidos. Assim,

não é a coerção psíquica decorrente da idéia que os homens têm do

Direito, mas as sanções externas que ele prevê que constituem a

essência do Direito.

O Direito não é, como formula John Austin (jurisprudência analítica),

uma regra executada por uma autoridade específica, mas antes uma

norma que estipula uma medida de coerção específica como sanção.

A norma jurídica refere-se à conduta de duas entidade: o cidadão,

contra cujo delito é dirigida a medida coercitiva da sanção, e o órgão

que deve aplicar a medida coercitiva do delito. A função da norma é

vincular a sanção como conseqüência a certas condições, entre as quais

o delito desempenha um papel decisivo. Observada a partir de um

ponto de vista sociológico, a característica essencial do Direito, pela

qual ele se distingue de todos os outros mecanismos sociais, é o fato de

que ele procura ocasionar a conduta socialmente desejada atuando

contra a socialmente indesejada – o delito – por meio de uma sanção. A

jurisprudência analítica leva em consideração apenas o conteúdo da

ordem jurídica e, portanto, apenas a ligação entre delito e sanção.

O sentido, segundo a Teoria Pura do Direito, em que condição e

conseqüência estão ligadas na norma jurídica é o de “dever ser”. Se

alguém rouba, deve ser punido. Dessa maneira, a ciência do Direito

descreve as relações que a norma jurídica, emitida pela autoridade

jurídica estabelece entre delito e sanção. É pelo estabelecimento dessa

relação que a norma jurídica impõe deveres e confere direitos aos

indivíduos sujeitos ao Direito.

O dever jurídico

Inicialmente, salienta Kelsen que a sanção pode ser dirigida não apenas

contra o delinquente, mas contra outros indivíduos: os que se

encontram em uma relação específica com o delinqüente – mesma

família, tribo ou Estado. Há casos, portanto, de responsabilidade

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família, tribo ou Estado. Há casos, portanto, de responsabilidade

individual e coletiva. Um exemplo desta última é a vingança de sangue,

ou vendetta, do Direito primitivo. Tal é o procedimento, mesmo hoje,

afirma Kelsen, no Direito Internacional, cujas sanções (retaliação e

guerra) são dirigidas contra o Estado como entidade – ou seja, contra

cidadãos do Estado cujo órgão violou a lei.

Importante distinguir responsabilidade de dever. A primeira recai sobre

o indivíduo contra o qual a sanção é dirigida, enquanto o último recai

sobre o delinqüente potencial que pode, por meio de sua conduta,

cometer o delito. Normalmente, no Direito moderno, os sujeitos do

dever e da responsabilidade são a mesma pessoa. Mas há a exceção da

responsabilidade coletiva, regra no Direito Internacional.

Na teoria de Austin da jurisprudência analítica essa separação entre

responsabilidade e dever não é feita. Ele parte da suposição de que a

sanção é sempre dirigida contra o indivíduo que comete o delito, não

percebendo a diferença existente entre “ser obrigado a manter certa

conduta” e “ser responsável por certa conduta”.

Segundo Austin, uma norma jurídica é um comando de conduta legal. O

decreto da sanção não surge na norma que obriga o indivíduo. Apenas

se a norma jurídica for caracterizada, como faz a Teoria Pura, como uma

normal pela qual é decretada uma sanção para a conduta ilegal, é que

se pode distinguir o caso em que a sanção é dirigida contra o indivíduo

que age contrariamente ao “comando” da lei, do caso em que a sanção

é dirigida contra alguém que se torna responsável pelo delito cometido

por outrem.

O direito jurídico

Direito pode significar que alguém tem o direito de conduzir-se de certa

maneira, significando que ele não tem o dever de conduzir-se de outra

maneira; ele é livre, nesse aspecto. Mas também direito pode ter um

significado positivo de que alguém é obrigado a conduzir-se de maneira

correspondente. Por exemplo, eu ter o direito de usar um objeto em

meu poder implica o dever de outra pessoa não me pertubar nesse uso.

Todo direito verdadeiro, que não for simples liberdade negativa em

relação a um dever, é composto de um dever para com outro ou vários

outros. Direito, neste sentido é um dever “relativo”.

Neste aspecto, é acertada a jurisprudência analítica. Contudo, ela não

contém nenhum conceito de direito diferente do de dever. Tal direito

existe quando a ordem jurídica confere a uma pessoa a oportunidade

de tornar eficaz o dever de outrem iniciando uma ação judicial e, assim,

aplicando a sanção estipulada para a violação. É apenas nesse caso que

o direito de A à conduta de B deixa de coincidir com o dever de B para

com A. Portanto, a Teoria Pura do Direito restringe o conceito de direito

a essa situação. Apenas nesse caso existe separadamente um direito no

sentido estrito do termo.

A teoria estática e a teoria dinâmica do direito: a hierarquia das normas

A jurisprudência analítica, tal como apresentada por Austin, considera o

Direito um sistema de regras completo e pronto para aplicação, sem

considerar o processo de sua criação. É uma teoria estática do Direito.

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A Teoria Positiva do Direito, a seu turno, reconhece que um estudo da

estática do Direito deve ser complementado por um estudo de sua

dinâmica, do seu processo de criação, até porque, o processo pelo qual

se cria uma norma jurídica é regulamentado por outra norma jurídica.

Na verdade, outras normas geralmente determinam não apenas o

processo de criação, mas também, em maior ou menor grau, o

conteúdo da norma a ser criada. Por exemplo, a liberdade de expressão

não deve ser determinada por estatuto, ou deve ser determinada

apenas de certa maneira.

A diferença entre normas que determinam o modo de criação de outras

normas e aquelas que determinam seu conteúdo é expressa meio de

uma distinção entre Direito “adjetivo” e Direito “substantivo”. As normas

jurídicas que governam a criação de outras são “superiores” a estas,

devendo a ordem jurídica ser analisada de um ponto de vista dinâmico,

com normas de diferentes hierarquias.

Neste sentido funcional, “constituição” designa as normas que

determinam a criação e ocasionalmente, até certo ponto, o conteúdo

das normas jurídicas gerais, que, por usa vez, governam normas

individuais como as decisões judiciais.

A relação entre uma norma de nível superior e uma norma de nível

inferior, entre uma constituição e um estatuo decretado em

conformidade com ela, por exemplo, significa também que na norma

superior encontra-se o motivo para a validade da norma inferior; uma

norma jurídica é válida porque passou a existir da maneira prescrita por

outra norma. Este é o princípio de validade peculiar ao Direito positivo.

O fundamento de validade da constituição é a norma fundamental da

ordem jurídica. Esta norma fundamenta é a responsável pela unidade

da ordem jurídica.

O direito e o estado

Austin refere-se a uma sociedade composta por um soberano e súditos.

Ele diz que “todo Direito criado por juiz é criação do soberano ou do

Estado”, mas Estado, nesse caso, não significa uma sociedade política,

mas o detentor da soberania na sociedade. Como a lei emana do

soberano, este não está sujeito a mesma. Esse conceito de soberano é

sociológico ou político, mas não jurídico – não obstante, é elemento

essencial da jurisprudência de Austin. Contrastante com o método

teórico da jurisprudência analítica, que deriva seus conceitos apenas de

uma analise do Direito Positivo. Percebe-se, portanto, estar ausente na

teoria de Austin um conceito jurídico de Estado.

Já a Teoria Pura do Direito afirma que o Estado não é seus indivíduos; é

a união específica de indivíduos, e essa união é função da ordem que

regulamenta sua conduta recíproca. É uma comunidade política porque

e na medida em que o meio específico pelo qual essa ordem reguladora

busca atingir seu fim é a decretação de medidas de coerção. A ordem

jurídica é ordem coercitiva. O que geralmente é chamado de “ordem

jurídica do Estado” é o próprio Estado.

Direito e Estado são geralmente considerados duas entidades distintas.

Mas se for reconhecido que o Estado é, por sua própria natureza, um

ordenamento da conduta humana, e que a característica essencial

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ordenamento da conduta humana, e que a característica essencial

dessa ordem, a coerção, é ao mesmo tempo o elemento essencial do

Direito, não mais pode prevalecer esse dualismo.

Os homens criam o Direito com base nas próprias normas definidas por

este. Os indivíduos que criam o Direito são órgãos da ordem jurídica ou,

o que equivale à mesma coisa, órgãos do Estado. Eles são órgãos

porque e na medida em que preenchem suas funções de acordo com as

estipulações da ordem jurídica que constitui a comunidade jurídica. Um

indivíduo como órgão do Estado significa que certas ações executadas

por ele são atribuídas ao Estado, à unidade da ordem jurídica .

Caso se resolva o dualismo de Direito e Estado e se reconheça o Estado

como uma ordem jurídica, os chamados elementos do Estado –

território e população – surgem como as referencias territoriais e

pessoais da validade da ordem jurídica nacional. O que Austin designa

como “soberano” surge como órgão supremo da ordem, e a soberania

é, então, não uma característica do indivíduo ou do grupo de indivíduos

que perfazem esse órgão, mas uma característica do próprio Estado.

Ser a soberania uma característica da ordem jurídica nacional significa

que não se presume nenhuma ordem superior a esta.

Direito internacional e direito nacional

A teoria do direito internacional, como teoria do Estado, não existe no

domínio da jurisprudência analítica que admite a validade do Direito

internacional apenas como “moralidade internacional positiva”. Essa é

uma teoria dualista, que diferencia totalmente Direito nacional e Direito

internacional.

Já a Teoria Pura do Direito demonstra que é perfeitamente possível

considerar o Direito internacional como um Direito real, já que contém

todos os elementos essenciais de uma ordem jurídica. Trata-se de uma

ordem coercitiva no mesmo sentido que o Direito nacional: obriga os

Estados a uma conduta mútua definida, visto que estipula sanções

(retaliações e guerra) contra a conduta contrária. Aqui se tem a teoria

monista.

A teoria monista considera o Direito nacional e o internacional como

um sistema de normas, como uma unidade. As opiniões diferem no que

diz respeito a como esse todo é construído. Alguns afirmam que o

Direito internacional é parte do nacional, das normas do direito

nacional que regulamentam a relação do Estado com outros Estados. As

regras que se admite serem Direito internacional podem obrigar um

Estado apenas quando este as recebe e, com isso, incorpora-as à sua

própria ordem jurídica. É a teoria da primazia do Direito nacional,

derivada da idéia de Estado soberano. Sendo isto verdadeiro, para cada

uma das muitas ordens jurídicas nacionais, não há, segundo essa teoria,

um Direito internacional, mas tantas quantas forem as ordens jurídicas

nacionais. Não existe, na verdade, um Direito internacional como tal,

mas apenas o Direito nacional.

A Teoria Pura do Direito defende a primazia do Direito internacional. O

Direito internacional positivo pode ser considerado – caso se renuncie à

suposição da soberania de cada Estado – um sistema de normas

colocado acima das ordens jurídicas nacionais, conferindo-lhes posição

igual e obrigando-as todas a uma ordem jurídica universal.

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igual e obrigando-as todas a uma ordem jurídica universal.

Hoje, afirma Kelsen, a tendência é antes para uma filosofia de valores

universalistas, segundo a qual a comunidade é superior ao indivíduo.

Na esfera das relações internacionais, o parecer de que o Estado é

essencialmente soberano é uma filosofia individualista, baseada na

individualidade do Estado. O dogma da soberania não é o resultado da

análise científica do fenômeno do Estado, mas a suposição de uma

filosofia de valores. Consequentemente, não pode ser contestada

cientificamente.

A análise do Direito internacional positivo feita pela Teoria Pura do

Direito demonstra que suas normas são incompletas e necessitam de

suplementação pelas normas das ordens jurídicas nacionais. Dizer que

o Direito internacional obriga um Estado a certa conduta significa que o

Direito internacional obriga um indivíduo a tal conduta na condição de

órgão desse Estado, mas que o Direito internacional determina

diretamente apenas a conduta, deixando à ordem jurídica nacional a

determinação do indivíduo cuja conduta constitui o conteúdo da

obrigação internacional.

Um princípio geralmente reconhecido do Direito internacional diz que

se for estabelecido um poder que possa assegurar a obediência

permanente à sua ordem coercitiva entre os indivíduos cuja conduta

essa ordem regulamenta, então a comunidade constituída por essa

ordem coercitiva é um Estado no sentido do Direito internacional. A

esfera me que essa ordem é perfeitamente eficaz é o território do

Estado; os indivíduos que vivem no território são o povo do Estado no

sentido do Direito positivo internacional.

Kelsen conclui o ensaio dizendo que assim como é tarefa da ciência

natural descrever seu objeto – a realidade – em um sistema de leis da

natureza, é tarefa da jurisprudência compreender toda lei humana em

um sistema de regras de Direito, o que é ignorado pela jurisprudência

analítica de Austin.

XI. DIREITO, ESTADO E JUSTIÇA NA TEORIA PURA DO DIREITO

I

A Teoria Pura do direito considera uma das principais tarefas libertar a

ciência do direito as relíquias do animismo. Um exemplo tipico da

duplicação animista do conhecimento é o dualismo Direito e Estado.

Não se pode negar que o Direito é uma ordem social, ou seja,ordem

que regulamenta a conduta dos seres humanos. E que ordem é um

conjunto de normas que prescreve certa a conduta humana. Assim

dizer que o proposito do Direito é estabelecer a ordem cria a ilusão de

que são duas coisas – Direito e Ordem. Mas o Direito é a própria ordem.

A ciência do Direito deve definir seu objeto com a seguinte pergunta: o

que é o direito na condição de objeto de uma ciência particular. Deve se

aqui buscar uma caracteristica comum atravês de uma palavra que

consiga designar um objeto, que consigo constituir uma caracteristica

suficientemente significativa. A Teoria Geral do Direito supõe que

coerção é um elemento essencial do Direito. As ordens sociais ao longo

da história estão ligados a idéia de Direito como ordem coercitiva e

ainda que descreve atos coercitivos como sanção. Assim Direito

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ainda que descreve atos coercitivos como sanção. Assim Direito

assumiu esse significado ao longo da história.

O conceito de Direito como ordem coercitiva refere-se ao conteudo das

normas de Direito. Não se pode negar porém que é preciso eficácia

para validade do Direito. Ou seja conformidade da conduta humana ao

Direito. Nenhuma ordem social, nem mesmo a que chamamos

“moralidade” ou “justiça” é considerada válida se não for até certo

ponto eficaz. Porem, a eficacia como condição de validade do Direito

não pode ser confundida com a coerção como elemento essencial do

conceito de Direito.

II

Na relação Direito e estado, diz-se que o Estado é uma comunidade

política que cria ou executa a ordem social chamada Direito. Mas o que

seria comunidade? Comunidade é uma comunidade de interesses,

individuos que tem interesses em comum formam uma sociedade.

Interesses em comum podem ser motivos para se estabelecer uma

comunidade, porém nem todos os individuos que tem interesse em

comum formam sociedade. Sustentar esse conceito seria sustentar o

interesse ideologico, onde o interesse seria preponderante a

comunidade.

A afirmação de que a sociedade chamada “Estado” baseia-se no

interesse comum dos seus sujeitos equivale a doutrina que essa

comunidade esta baseada no consentimento de todos os seus

membros. Como um contrato social . E isso é uma das piores invenções

juridicas inventada pelos juristas romanos. É o mesmo caso da

afirmação de Platão (“As leis”): “apenas o homem justo é feliz, o homem

injusto é infeliz.” E Platão ainda afirma que se for uma mentira, é uma

mentira útil.

Comunidade seria as relações humanas determinadas por uma ordem

regulamentadoras das condutas recíprocas dos envolvidos. Essa ordem

social constitui comunidade. Ser um membro dessa comunidade nada

mais é do que estar sujeito a essa ordem. Para evitar dualismo, nada

melhor do que afirmar que a ordem social é a comunidade e não que

ela constitui a comunidade.

Se o Estado é uma comunidade, é uma comunidade juridica. Ele é uma

ordem juridica que constitui a comunidade. Porem afirmar que o Estado

como ordem social é idêntico ao Direito não é correto. Nem toda ordem

juridica é Estado. A ordem juridica relativamente centralizada sim, é

Estado. E Estado aqui é pessoa atuante, literalmente falando, como a

autoridade, o poder por trás do Direito. Isto é o animismo que a Teoria

Pura do Direito tenta,em vão,eliminar, por ser tautologicamente vazia.

III

A Teoria Pura do Direito limita-se a uma análise da estrutura do Direito

positivo, baseando-se em um estudo comparativo das ordens sociais

existentes e também das que existiram historicamente. Portanto os

estudos da origem do Direito ultrapassam a esfera da teoria. Alguns

pontos são ocupados pela sociologia e história, que exigem metodos

diferentes. A diferença metodologica entre uma analise estrutural do

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Direito e a sociologia e história equipara-se a diferença entre teologia e

sociologia ou história da religião. O objeto da teologia é Deus, tido como

existente; o objeto da sociologia e historia da religão é a crença dos

homens. A Teoria Pura do Direito trata o Direito como sistema de

normas válidas criadas por atos dos seres humanos. Já a sociologia e

história do Direito tenta descrever e explicar o fato de o homem ter

idéias diferentes do Direito em épocas e lugares diferentes, e ainda

conformar ou não sua conduta as idéias. A pureza da Teoria do Direito

propoe uma analise estrutural, adequado ao seu problema espefico,

eliminando problemas que exijam metodos diferentes. Essa pureza é a

exigencia indispensável de evitar esse sincretismo de metodos. Eliminar

esses problemas de metodos diferentes não é negar sua existencia. A

Teoria Pura do Direito nunca pretendeu ser a única ciência. Juntamente

com a sociologia e historia do Direito a analisa estrutural do Direito se

faz necessário para compreender o fenomeno complexo do Direito.

A questão de determinar se a ordem juridica é justa ou injunsta não

pode ser respondida pelos metodos e analise estrutural do Direito

positivo. Isso não implica de que a questão do que é justiça não possa

ser respondida de maneira objetiva. Mas Direito e justiça deveriam ser

considerados dois conceitos diferentes. Se e idéia de justiça tiver função

é a de ser um modelo para a feitura de um bom Direito, e ainda um

criterio para determinar um bom e um mau Direito.

A jurisprudência tradicional tende a identificar Direito e justiça, como

usar o termo Direito no sentido de Direito justo, e ainda dizer que um

Direito positivo não é real se não for justo. Dizer que esse Direito não é

o Direito verdadeiro é quase impossível, uma vez não há critério

objetivo para o termo justiça. O efeito real da identificação

terminologica de Direito e justiça é uma justificação ilicita de qualquer

Direito positivo.

Não existe um critério objetivo de justiça porque essa afirmação de ser

justo ou injusto é um juízo de valor que se refere a um fim absoluto e

esses juízos de valor, pela sua própria natureza são de critério subjetivo,

baseados em elementos emocionais da mente. Juizos de valor definitivo

são atos de preferência; é a escolha de dois valores conflitantes; o

melhor ao invês do bom. É como escolhar entre liberdade e segurança

por exemplo. Alguns se sentem felizes quando livres, outros preferem a

segurança, e assim consideram justo um sistema social que garanta

segurança economica. Assim seus juízos de valores, sobre liberdade e

segurança, e assim sobre justiça baseia-se em seus sentimentos e assim

as idéias de justiça são muito diferentes. Diferentes são os enunciados

sobre a realidade. O enunciado sobre fatos baseia-se nos sentidos

controlados pela razão. Devemos sustentar a diferença evidente entre

juizo de valor e enunciados sobre a realidade. E essa diferença, embora

relativa é consideravel o suficiente para justificar a diferenciação do

juízo sobre o que é justo e o enunciado sobre o que é Direito. Direito

positivo é a lei criada por atos dos seres humanos, no tempo e espaço,

em contraposição a lei natural. A questao sobre o Direito positivo não

depende dos sentimentos dos sujeitos, mas é veridicada por fatos

objetivamente verificáveis ao passo que responder o ser justo do

Direito, depende da função emocional da mente do sujeito.

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Direito, depende da função emocional da mente do sujeito.

A identificação do termo Direito e justiça é um dos elementos

caracteristics da doutrina do Direito natural que apresenta a justiça

como lei natural. O Direito positivo também é lei. E enquanto não for

provado desacordo com a lei natural, e é lei verdadeira. E os

doutrinadores, bastante conservadores, consideram que existe

presunção favoravel a conformidade do Direito positivo ao Direito

natural.

Essa presunção é sustentada pelo dualismo entre Direito positivo e

Direito natural. Os atos dos seres humanos pelo qual a lei é criada, tem

carater constitutivo, mas pelo Direito natural considerados como

meramente declaratorios. Os orgãos reproduzem a lei da natureza, de

Deus, pela razão humana. Não as criam. Pode-se fracassar nessa

descoberta da lei, mas os orgãos das comunidade, responsaveis por

essa descoberta tem a suposição de que de modo geral conseguem

faze-lo com sucesso, caso contrario não haveria lei nenhuma realizada.

A doutrina de um Direito dual ou seja, Direito verdadeiro, criado por

autoridades misteriosas e o Direito positivo que é a reprodução

daquele Direito), surge em varios disfarces. Rousseau em sua distinção

entre vontade geral e vontade de todos. A vontade geral é justa por

estar voltada ao interesse comum dos membros da comunidade. Os

orgaos da comunidade, ao fazerem a lei, tem de estar em conformidade

com a vontade geral. Podem conseguir ou não, mesmo que a vontade

da maioria ou unanime, pode não expressar a vontade geral, e ainda

assim ser aplicada a todos. Como saber se a maioria, a vontade de

todos esta em conformidade ou não com a vontade geral? Não há

resposta na obra de Rousseau.

Outra forma de Direito dual esta na escola histórica

alemã,alegadamente oposta ao Direito natural. A escola alemã sustenta

que o Direito tem origem no espirito do povo. O costume não é fato

criador, é apenas testemunho de um Direito preexistente. Mas o

costume é considerado um testemunho absolutamente confiavel; assim

o Direito consuetudinario é um Direito verdadeiro e ainda preferivel ao

Direito estatuario. O defensor dessa escola do Direito consuetudinário é

Savigny, que sustenta que o povo respeita muito mais “o que não tem

origem visivel e tangivel” do que “o que foi feito diante dos nossos olhos

por homens do nosso tipo”.

Uma doutrina similar é a doutrina da solidariedade social, defendida

por Leon Duguit. Nessa doutrina o legislativo e judiciario não criam o

Direito, apenas constatam e aplicam um Direito preexistente, que tem

origem na solidariedade social. A autoridade chamada solidariedade

social nada mais é do que a vontade geral de Rousseau, ou o espírito do

povo, da escola alemã. A questão decisiva é: o Direito positivo para ser

obrigatorio deve conformar-se ao Direito objetivo que é criado pela

solidariedade social e assim essa doutrina deverá decidir em uma caso

concreto se o Direito positivo esta ou não em conformidade com o

Direito objetivo, o Direito justo e verdadeiro. Mas o que é Direito

objetivo, se o sentimento de um homem ou a concepção desse Direito

diferem dos de outros, se o legislador positivo constata como Direito

objetivo regras que conforme os sentimentos e idéias de alguém que

deveria obedecer o Direito positivo, não são Direito objetivo? É

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deveria obedecer o Direito positivo, não são Direito objetivo? É

impossivel que um individualista e um socialista concordem quanto ao

que a solidariedade social exige ou ao quanto o Direito objetivo, o

verdadeiro Direito é. Duguit ignora esse problema porque da como

certo aquilo que ele, a partir do seu ponto de vista individualista

considera ser o Direito é o Direito objetivo por excelência.

Quem é competente para decidir de um Direito positivo está ou não em

conformidade com o Direito objetivo? Duas respostas são possíveis. É

da competencia exclusiva do criador da lei, legislador e juiz decidir essa

questão se houver disputa. O Direito positivo será sempre declarado de

acordo com o Direito bjetivo. A outra possibilidade é de que qualquer

individuo é competente para decidir. O Direito positivo em si não é

imperativo por que são os homens que os emite, e são iguais perante si,

ninguém tem o Direito de comandar outros. A opinião de ser ou não o

Direito positivo em conformidade com o Direito objetivo tem o mesmo

peso se conferido por legislador e juiz, ou por individuos. O que difere a

opinião de o individuo governante do indivíduo governado é que o

primeiro tem o poder de impor sua opinião e tem autoridade maior do

que a opinião dos indivíduos governados. O dualismo Direito positivo e

Direito objetivo o efeito e propósito de justificar um pelo outro.

Esses exemplos visam explicar porque a teoria pura do Direito insiste

em separar o conceito de Direito do conceito de justiça e porque essa

teoria renuncia a qualquer justificação do Direito positivo como espécie

de supra-Direito, deixando essa tarefa a religião ou à metafísica social.

XII. CAUSALIDADE E RETRIBUIÇÃO

Introdução

A física moderna, que é a mais exata de todas as ciências, demonstra

que a antiga noção de que a lei da casualidade determina

absolutamente todos os eventos foi modificada essencialmente. Mas

qual é a fonte, a origem que pretende serem todos os eventos

determinados por uma lei absoluta? Vamos mostrar como a crença na

causalidade surgiu na evolução do pensamento humano.

A causalidade não é uma forma de pensamento que nasce com a

consciência humana (o que Kant chamou de “noção inata”), antes,

houve um período em que a forma de interpretar o mundo não era

causalmente. O pensamento causal é estranho ao homem primitivo,

que interpretavam a natureza por pensamentos sociais, tinha

pensamento animista (personalista), sendo todos os seres governados

pelas mesmas leis, segundo o princípio da retribuição, ou seja, o

homem retribui o bem com o bem, o mal com o mal, sendo retribuído

(punido ou recompensado) segundo atitudes suas ou do grupo ao qual

pertence, é o pensamento que domina por completo o homem

primitivo. Isso é verificado pelas relações históricas desse homem com

os animais, plantas, os objetos e com sua religião/mitos.

Desse modo, é possível que o pensamento científico causal tenha se

desenvolvido a partir do pensamento retributivo, é o que nos mostra a

filosofia natural dos antigos gregos, que teve sua origem nas

concepções míticas e religiosas, que se baseiam na idéia de retribuição.

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Parte I

A filosofia natural grega, primeira grande tentativa de concepção

científica da realidade foi afetada pelos valores sociais, vez que foram

tomados como ponto de partida para a explicação causal da realidade.

A natureza, inicialmente, foi explicada pela analogia à sociedade, sendo

o Estado o padrão para a compreensão do universo nessa nascente

ciência natural.

Com a progressividade da especulação, percebe-se um distanciamento

entre a lei do Estado (norma) e a lei da natural (causalidade), tornando-

se princípios totalmente distintos.

Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes buscam um princípio

fundamental que explique a unidade do universo, partindo da visão de

governo monárquica (o “ar” é alma do mundo, a razão primeira dos

acontecimentos e do movimento), razão pela qual diziam que o imã

tinha alma, pois atrai/movimenta o ferro (uma explicação causal com

origem social). Ainda hoje acreditamos nessa explicação causal (a causa

atrai o efeito, assim como o homem ao errar atrai o mal e, por

consequência, a punição). Assim, a ideia de retribuição deu origem à

explicação causal. Com o tempo percebe-se que deve existir uma

igualdade de natureza entre a causa e o efeito. Na peça Agamemnôn

Ésquilo, expressa o pensamento de que é errônea a crença tradicional

de que muita sorte tráz má sorte. É antes o pecado que cria o pecado,

assim como pais originam filhos iguais a si, equiparando, assim, “mal”

com “punição”, “bem” com “recompensa”, numa equiparação qualitativa

e quantitativa (quanto mais mal maior a punição, quanto maior o bem,

maior a recompensa).

A Justiça contém a ideia de retribuição, igualdade e equilíbrio, com base

na balança. O equilíbrio entre os contrários (seco/molhado, calor/frio,

terra/água, fogo/ar) gera justiça, seu desequilíbrio gera injustiça. Essa

ideia é a primeira noção de que uma lei imanente governa todo o

universo é compreendida. É uma primeira tentativa de entender a

causalidade, todavia, é essencialmente a lei da retribuição. A ciência

moderna até hoje vê a relação de causa e efeito de maneira cronológica,

isso em razão de no início o mal (que era a causa) preceder

cronologicamente a punição (que era o efeito).

Heráclito vê a natureza como uma sucessão de opostos, mas ele utiliza

da figura da guerra para explicar as relações causais (A guerra é pai de

tudo e rei de tudo), partindo dessa visão, Heráclito chega na ideia de

logos (que é a razão eterna, universal que governa todas as coisas). Em

seus escritos Heráclito reforçava a ideia de uma lei universal (“A lei

divina prevalece tanto quanto quer, é suficiente para todas as coisas e é

mais forte do que todas as outras coisas”). Essa regra jurídica, projetada

no cosmos, é inviolável porque é considerada como vontade absoluta

de uma divindade. É a ideia de Direito natural, no sentido de ordem

jurídica natural, que é formulada aqui. Anaximandro expressa a ideia

jurídica de retribuição da seguinte forma: ”O sol não ultrapassará suas

medidas, mas, se o fizer, as Fúrias (demônios da vingança grega), as

crias de Dike [Justiça, deusa da retribuição], descobri-lo-ão”. Esse trecho

é interpretado como sendo a inviolabilidade da lei da causalidade, uma

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é interpretado como sendo a inviolabilidade da lei da causalidade, uma

obrigação imposta à natureza por uma regra jurídica, uma necessidade

normativa. O sol poderá até ultrapassar sua medidas, todavia, quando

isso ocorrer, será punido, pois a lei universal, como regra jurídica,

estabelece sanções. Essa norma é uma lei de retribuição e, como tal,

vontade inabalável de uma divindade. Assim, a inviolabilidade da lei

causal, tão contestada na ciência moderna, origina-se da inviolabilidade

que o mito e a filosofia natural. A primeira ciência natural (física)

desenvolve sua lei natural a partir desse princípio de retribuição. A ideia

de retribuição, nas leis que regem o cosmo, foi observado em outros

filósofos (poeta Esquilo em a personagem Prometeu; Empédocles que

teve sua filosofia influenciada por elementos órficos e pitagóricos, com

a ideia de transmigração das almas e metempsicose, podendo a alma

incorporar-se em outros seres, animais ou plantas, razão pela qual

todos estão sujeitos a uma mesma lei, que garante a todos o mesmo

direito de viver). A norma fundamental de toda essa teogonia

(explicação do mudo pelos mitos/deuses) é a proibição de matar, assim,

a natureza torna-se evidentemente uma parte da sociedade, e a lei da

retribuição torna-se, na verdade, uma lei natural. Empédocles ensinava

que uma mesma e única ordem jurídica existe para todas as coisas vivas

e proclamava solenemente que as punições inexpiáveis ameaçam os

que as ferem.

A noção moderna de causalidade está estabelecida nos escritos dos

atomistas (Leucipo e Demócrito) que realizaram a quase completa

separação da lei da causalidade do princípio da retribuição, eliminando

todos os elementos teológicos da interpretação da natureza e

rejeitando causas que são , ao mesmo tempo, fins. A lei universal deixou

de ser uma norma (baseada na retribuição divina) e passou a ser uma

necessidade da natureza (objetiva e impessoal). O sofista Protágoras,

professor de Demócrito, o ensinou que a punição do Estado, pela

norma, tem um propósito claro: contempla o futuro, ou seja, impedir

aquela pessoa particular, e outros que o vêem punido, de fazer mal

novamente. Assim, a lei do Estado, como lei da natureza, é libertada do

mito da retribuição. Demócrito busca nos átomos o fundamento para

explicar a natureza, num esquema de ação e reação (golpes e

contragolpes de átomos), mas essa ideia é análoga ao princípio da

retribuição, que liga uma ação a sua reação específica, a saber, o mal à

punição, o mérito à recompensa. Plínio (analisando os atomistas em sua

obra História Natural) afirma que Demócrito reconhecia apenas duas

divindades: punição e recompensa. Demócrito usa a palavra “causa”

que originalmente significa “culpa”, assim, a causa é responsável pelo

efeito, tal raciocínio tem um elemento normativo que até os dias atuais

acompanha a ciência natural.

Parte II

Na Idade Média, a ideia da existência de um princípio da causalidade

absolutamente válido corria o risco de perder-se, em razão da visão

teleológica de mundo que prevaleceu neste período. Mas Bacon, Galileu

e Kleper retomaram tal ideal, e ele continuou a ser o princípio

predominante, até que em certas esferas da física moderna (física

quântica) ela passou a ser questionada e até mesmo negada.

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quântica) ela passou a ser questionada e até mesmo negada.

Hume foi o primeiro a criticar a ideia de causalidade, de que toda causa

está ligada a determinado efeito. Segundo Hume, nossa mente é levada

pelo costume a esperar que certo fenômeno será sempre

acompanhado no futuro pelo mesmo fenômeno que o acompanhou

regularmente no passado. Contudo, continua o filósofo, nossa mente

não é levada pelo costume a crer que uma exceção está absolutamente

excluída.

Hume é influenciado pela ideia de Direito consuetudinário que

prevalecia na Inglaterra em seu tempo (dizia ele “o costume é o grande

guia da vida humana”), mas o costume não constitui regras sem

exceções, razão pela qual a ligação de causa e efeito, conforme falamos,

deve ter sido originada da ideia de retribuição oriunda da antiga

filosofia grega.

A física moderna também discorda de outra tese causalista, de que o

efeito deve ser igual à causa. Philipp Frank, após analisar as teses de

cientistas causalistas (Robert Mayer e Driesch) diz que é impossível

“simplesmente considerar a energia em geral como a medida da

causalidade”. Nenhum evento é dependente apenas uma causa. Razão

pela qual alguns filósofos abandonaram completamente a noção de

causa e substituíram-na pela de “condições” ou “componentes” de um

evento e a noção de “efeito” foi substituída pela de “resultantes”. A

noção de “causalismo” substituída pela de “condicionalismo”. Critica-se

tal substituição, vez que a noção de causa não é completamente

abandonada, mas apenas modificada, renunciando somente à ideia bi-

partite (ligação entre dois fatos = causa e efeito), para afastar a noção

que se originou da ideia de retribuição. A retribuição realmente é

firmada nessa ideia bipartite, pois que segundo o postulado retributivo

“ninguém deve ser punido duas vezes pelo mesmo fato” (ne bis in idem).

A causalidade também pretendeu abandonar o esquema cronológico

dos elementos causa e feito, assim, conforme alguns postulados

modernos, não existe vinculação cronológica de precedência e sucessão

entre causa e efeito, o que existe é uma vinculação funcional, onde a

causa pode virar efeito e o efeito a causa a depender da dinâmica e

observação dos fenômenos, que podem ser simultâneos.

A lei de Boyle estabelece uma ligação entre pressão e volume de um gás,

que são dois fatos simultâneos, embora por costume possa se dizer que

um elemento é causa do outro, o que em realidade existe é uma

dependência funcional entre os elementos e não cronológica.

Mas o principal golpe conta a lei da causalidade foi desferido pela

mecânica quântica (a mecânica das partículas subatômicas), em razão

do princípio da incerteza de Heisenberg, em síntese, afirma que “a

medição da velocidade de um elétron é tanto mais inexata quanto mais

exata é a medição de sua posição no espaço e vice-versa”, ou seja, saber

a velocidade exata do elétron implica em não saber sua posição, mas

saber sua posição exata, implica em não saber qual sua velocidade

exata. Isso significa que o objeto de observação é modificado pelo

próprio ato de observar, por mais exata que seja essa observação

(quero observar a velocidade, modifico a posição, se quero observar a

posição eu interfiro na velocidade do elétron). Isso torna impossível o

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discernimento do fenômeno causal, pois que o observador, visando

medir só causa e efeito, interferiu no objeto de estudo. Razão pela qual

muitos físicos (Heisenberg e Bohr), diante da incerteza nas observações

causais, recorrem à estatística (probabilidade) não se aplicando a lei

universal de causalidade. Em decorrência disso, muitos filósofos

chegam a afirmar que a natureza não é, como supunha a física clássica,

governada por leis (determinista).

Reichenbach interpreta a crise da física moderna não como uma

questão de substituição da causalidade por leis estatísticas, mas como

uma modificação da noção de causalidade, que caminha da certeza

absoluta (da física clássica) para a probabilidade (da física moderna). A

“probabilidade” causal (ligação provável) seria a substituta da antiga

“necessidade” (ligação necessária).

Mesmo antes do princípio da incerteza, quando usava-se a lei da

causalidade para eventos futuros, utilizava-se da probabilidade, basta

ver as obras de Laplace, que entendia que sendo impossível para a

mente humana considerar todas as forças de um dado momento

futuro, este poderia ser previsto apenas como probabilidade.

A teologia sempre pregou que somente Deus pode prever o futuro.

Transferindo essa ideia emocional para o racional, percebe-se que por

trás dela está nada mais que a noção imemorial de que a lei que

governa o mundo é a vontade de Deus, portanto, uma norma. A norma

determina o que deve acontecer no futuro, a lei natural, ao contrário,

busca no passado a causa para o evento presente. O que podemos ver

no futuro, pela ciência, é mera suposição de que o passado se repetirá.

Afirmar que a lei da causalidade pode prever o futuro é no fundo

justificar a origem normativa da causalidade.

Malebranche desenvolveu uma teoria na qual diz que com base na

experiência não percebemos nenhuma ligação necessária entre os

fenômenos e nenhuma força causal., o que observamos são sucessões

regulares, que são comandadas por Deus. Nesse ponto Malebranche e

Hume se aproximam, pois que ambas justificam na experiência a

conexão entre causa e efeito que percebemos, todavia, Hume não

justifica direitamente em Deus suas conclusões, antes, procura

desvincular a divindade de suas especulações.

O princípio da causalidade, na ciência moderna, não pode ser validado

como oriundo de uma autoridade metafísica (Deus), mas pode ser

compreendido como um postulado epistemológico dirigido à cognição

(compreensão) humana, apenas para ordenar uma ligação simples

entre os fenômenos observáveis na realidade, como causa e efeito,

admitindo que existem exceções a ele, assim como o fato de que uma

norma jurídica pode ser violada por uma exceção (e por tal não deixa de

ser válida), o que justifica ainda mais sua validade, pois só pode ser

violada porque é válida, assim, apenas uma regra que descreve uma

conduta real pode ter uma exceção. Portanto, quando a ciência natural

descreve a realidade em conformidade com o postulado epistemológico

da causalidade, as chamadas leis da natureza, podem muito bem ter

exceções e ser meras leis de estatísticas de probabilidade. Essa

transformação da noção de causalidade é o último passo no processo

de sua emancipação do princípio de retribuição.

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de sua emancipação do princípio de retribuição.

XIII. CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO

Diante da usual distinção entre ciências naturais e sociais como ciências

que tratam de dois objetos diferentes: natureza e sociedade; eis que é

feita a indagação Kelseniana na investigação sobre ciência jurídica:

Natureza e sociedade são realmente dois objetos distintos?

Considerando o direito como norma, ou seja, como sistema de normas,

e limitando a ciência jurídica ao conhecimento e descrição dessas

normas jurídicas e às relações por estas constituídas, delimita-se o

direito em face da natureza e a ciência jurídica, como ciência normativa,

em face de todas as outras ciências que visam o conhecimento,

informado pela lei da causalidade, de processos reais..

Segundo Kelsen, somente por essa via se alcança um critério seguro de

distinção unívoca de sociedade e natureza e de ciência social e natural.

Para desenvolver essa proposta que possibilita o sentido do princípio

imputação, Kelsen inicia-se a presente discussão.

Dentre as varias definições, a natureza é uma ordem particular de

coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os

outros como causa e efeito, e um exemplo clássico Kelseniano dessa

causalidade é a afirmação de um corpo metálico (ferro) que quando

aquecido, expande-se, dilata, sendo a ligação entre calor e expansão

exemplo de causa e efeito. Se há uma ciência social que é diferente da

ciência natural, ela deve descrever seu objeto diferentemente do

princípio de causalidade, ou melhor, não apenas a partir dele.

A sociedade é uma ordem da conduta humana, e sendo assim, com

essa afirmação da sociedade enquanto ordem normativa se tem claro

que na abordagem em que Kelsen se refere à conduta humana, verifica-

se uma conexão dos atos de conduta humana entre si e com outros

fatos. Nesse sentido, Kelsen anuncia uma relação não apenas formada

de acordo com o princípio da causalidade, mas também com outro

princípio que é totalmente diferente do princípio da causalidade.

Nesse sentido, apenas com a compreensão e aplicação de tal princípio,

a partir da prova de que está presente no pensamento humano e é

aplicado por ciências que têm por objeto a conduta dos homens entre

si enquanto determinada por normas, é que se poderá fundamentar a

diferença da sociedade como uma ordem ou um sistema diferente da

natureza e as ciências que se ocupam da sociedade como diferentes das

ciências naturais.

Logo, a proposta de Kelsen é de que somente quando a sociedade

passa a ser entendida como uma ordem normativa da conduta dos

homens entre si é que ela pode ser concebida como um objeto

diferente da ordem causal da natureza, e do mesmo modo também é

que a ciência social pode ser contraposta à ciência natural.

Enfim, somente quando o direito for uma ordem normativa da conduta

dos homens entre si, pode ele como fenômeno social ser distinguido da

natureza, e assim, a ciência jurídica, enquanto ciência social, ser

separada da ciência da natureza.

Segundo Kelsen, o princípio ordenador da ordem normativa da conduta

dos homens entre si, diferente do princípio da causalidade, é

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dos homens entre si, diferente do princípio da causalidade, é

denominado como princípio da imputação.

A ligação entre delito e sanção é estabelecida por uma prescrição ou

por uma permissão (uma norma), a ciência do Direito descreve seu

objeto por meio de proposições em que o delito está ligado à sanção

pela “cópula” deve; denominando-se essa ligação de imputação, assim, a

idéia de imputação como ligação específica do delito à sanção está

implícita no juízo jurídico de que um indivíduo é, ou não, juridicamente

responsável por sua conduta, ou seja, a sanção é imputada ao delito, e

não causada pelo delito.

Na sua efetiva aplicação no direito, o princípio da imputação, que

embora análogo ao da causalidade distingue-se deste de maneira

essencial. A analogia entre os princípios da imputação e da causalidade

reside na circunstância de que o primeiro tem nas proposições jurídicas

uma função completamente análoga à do princípio da causalidade nas

leis naturais.

Nesse sentido, da mesma maneira que uma lei natural, uma proposição

jurídica liga entre si dois elementos. Assim pode-se dizer que a diferença

que existe é de que a ligação que se exprime na proposição jurídica é

totalmente diferente da lei natural expressa pelo princípio da

causalidade.

Para Kelsen, a ligação da proposição jurídica vem de sua produção por

uma norma estabelecida pela autoridade jurídica, por uma vontade,

enquanto que a ligação de causa e efeito apresentada pela lei natural é

totalmente independente de qualquer intervenção nesse sentido.

A noção de imputação a que Kelsen se refere é a mesma que se opera

com o sentido jurídico de imputabilidade, a de que imputável é aquele

que pode ser punido por sua conduta, aquele que pode ser

responsabilizado por ela. Inimputável, de modo contrário, é aquele que

por ser menor ou doente mental não pode ser punido pela mesma

conduta, não pode ser por ela responsabilizado.

A imputação que se apresenta no conceito de imputabilidade não é a

ligação de uma determinada conduta com a pessoa que assim se

conduz, mas a ligação de uma determinada conduta, de um ilícito, com

uma conseqüência do ilícito. Por isso Kelsen afirma que a conseqüência

do ilícito é imputada ao ilícito, mas não é produzida pelo ilícito, como

sua causa. Por certo, portanto, que a ciência jurídica não busca uma

explicação causal dos fenômenos jurídicos, e em suas proposições

jurídicas que descrevem estes fenômenos ela não aplica o princípio da

causalidade, mas sim o princípio da imputação.

Kelsen diferencia a imputação da causalidade, ressaltando, no entanto,

que as duas partem da mesma proposição: um julgamento hipotético

que liga alguma coisa como condição, a outra coisa como conseqüência.

A diferença é que o princípio da causalidade afirma que se A existe, B

existe (ou existirá), enquanto o princípio da imputação afirma que se A

existe, B deve existir.

Nos dizeres do autor “a diferença entre causalidade e imputação é que a

relação entre a condição, que na lei da natureza é apresentada como

causa, e a conseqüência, que é aqui apresentada como efeito, é

independente de um ato humano ou sobre-humano; ao passo que a

relação entre condição e conseqüência afirmada por uma lei moral,

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relação entre condição e conseqüência afirmada por uma lei moral,

religiosa ou jurídica é estabelecida por atos de seres humanos ou

sobre-humanos. É justamente este significado específico da ligação

entre condição e conseqüência que é expresso pelo termo ‘dever ser’”.

Esse princípio da imputação está na base da interpretação da natureza

pelo homem primitivo que interpreta os fatos que apreende através dos

seus sentidos segundo os mesmos princípios que determinam as

relações com os seus semelhantes, conforme normas sociais, pois é

fato que na consciência dos homens que vivem em sociedade, existe a

representação de normas que regulam a conduta e vinculam os

indivíduos e que, por assim ser, apresentam as normas e sanções mais

antigas da humanidade.

Para Kelsen, as normas mais antigas da humanidade provavelmente são

aquelas que visam a limitar os impulsos sexuais e agressivos. O incesto

e o homicídio são, absolutamente, os crimes mais antigos; como são a

perda da paz e a vingança de sangue, as mais antigas sanções

socialmente organizadas.

E na base dessa sanção está o princípio mais primitivo que determina a

vida social, a norma da retribuição, que compreende a punição como

recompensa, assim, condição e conseqüência estão ligadas não

segundo o principio da causalidade, mas segundo o principio de

imputação, as quais possuem em sua base originária a regra da

retribuição

Para o homem primitivo, aquilo que a ciência moderna denomina como

natureza é uma parte de sua sociedade como ordem normativa, cujos

elementos estão ligados entre si segundo o princípio fundamental da

imputação. Existe na mente do homem primitivo uma necessidade de

explicação de um evento, se considerado prejudicial é interpretado

como punição reta. Em outros termos: eventos prejudiciais são

imputados à conduta errada; eventos vantajosos, à conduta certa.

Nesse sentido, ocorrendo um evento de tal tipo, a pergunta do homem

primitivo não será: qual a causa dele; mas: quem é responsável por ele.

Trata-se de uma interpretação normativa da natureza, e, como a norma

da retribuição, que determina as relações dos homens, é um principio

social especifico, denominando-a de interpretação socionormativa da

natureza.

O mais importante da imputação, no sentido lato da palavra, é a ligação

da conduta humana com o pressuposto sob o qual essa conduta é

prescrita numa norma. Desse modo, toda retribuição é imputação, mas

nem toda imputação é retribuição.

Logo, é grande a probabilidade de que a lei da causalidade tenha

surgido da norma de retribuição, agora de maneira mais evidente,

como resultado de uma transformação do princípio da imputação, em

virtude do qual, na norma de retribuição, a conduta não-reta é ligada à

pena e a conduta reta é ligada ao prêmio.

Dando continuidade à investigação Kelseniana sobre ciência jurídica,

cabe aqui evidenciar algumas diferenças entre o princípio da

causalidade e o princípio da imputação. Ao passo que ambos se

apresentam como juízos hipotéticos nos quais um determinado

pressuposto é ligado com uma determinada conseqüência, revela-se

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sua primeira diferença justamente no sentido da ligação de cada um. O

princípio da causalidade afirma que, quando A é, B é ou será. Já o

princípio da imputação afirma que quando A é B deve-ser.

Outra diferença profundamente importante consiste em que toda a

causa concreta pressupõe como efeito uma outra causa, e todo efeito

concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, de tal

forma que a cadeia de causa e efeito é interminável nos dois sentidos. Já

no princípio da imputação a situação se dá de maneira diferente: o

pressuposto a que é imputada a conseqüência, seja numa lei moral, seja

numa lei jurídica, não é necessariamente uma conseqüência que tenha

de ser atribuída a outro pressuposto, e a conseqüência também não

tem necessariamente de ser outro pressuposto a que se deva atribuir

nova conseqüência.

A terceira diferença é a de que há um ponto terminal na imputação

diferentemente do que ocorre na série causal. Esse ponto terminal da

imputação é inconciliável com a idéia de causalidade.

Conclui-se assim que não se pode aplicar a mesma norma para a

natureza e para a proposição jurídica.

O princípio da causalidade parte da natureza independente da vontade

dos homens, como por exemplo, a erupção de um vulcão, já a

imputação aparece como responsabilização de um ato cometido

através de uma norma jurídica um dever-ser, e tem como conseqüência

a punição.

Enfim, basicamente os dois princípios são diferenciados pela natureza

da conseqüência. Na relação causal (causalidade), o efeito não é a

descrição do estabelecido por ato de vontade dos titulares de

competência jurídica, como pode se verificar nas sanções na relação

normativa.

XIV. CIÊNCIA E POLÍTICA

Realidade e valor

É comum afirmar que a ciência deve ser independente da política. Com

isto, quer-se dizer que a busca da verdade, função essencial da ciência,

não deve ser influenciada por interesses políticos, que são os interesses

envolvidos no estabelecimento e na manutenção de uma ordem social

definida ou de uma instituição particular. A política como arte de

governar, como prática de regulamentar a conduta social dos homens é

uma atividade que necessariamente pressupõe a assunção consciente

ou inconsciente de valores.

A independência da ciência diante da política significa, em última

análise, que o cientista não deve pressupor nenhum valor. Enunciados

científicos são juízos sobre a realidade; por definição, são objetivos e

independentes de desejos e temores de sujeito que julga porque são

verificáveis por meio da experiência. São verdadeiros ou falsos. Juízos de

valor, porém, têm caráter subjetivo porque são baseados, na

personalidade do sujeito que julga, em geral, e no elemento emocional

de sua consciência, em particular.

O princípio de excluir juízos de valor do campo da ciência parece ter

uma exceção. Existe um valor que a ciência deve pressupor- a verdade-

há um juízo de valor que um cientista pode pronunciar legitimamente: o

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há um juízo de valor que um cientista pode pronunciar legitimamente: o

juízo de que algo é verdadeiro ou falso. Contudo, a verdade não é um

valor do mesmo sentido que os valores na base da atividade política

como, por exemplo, a liberdade individual ou a segurança econômica.

Verdade significa conformidade com a realidade, não conformidade

com um valor pressuposto. O juízo de algo é verdadeiro ou falso é a

verificação da existência ou não-existência de um fato, e tal juízo tem um

caráter objetivo na medida em que é independente do desejo ou do

temor do sujeito que julga e verificável pela experiência dos sentidos,

controlados pela razão. Pode-se demonstrar pela experiência que o

enunciado “O ferro é mais pesado que a água” é verdadeiro e que o

enunciado “A água é mais pesada que o ferro” é falso; e um deles é

verdadeiro e outro falso mesmo se o sujeito que julga, por um motivo

ou outro deseja o contrário. Por outro lado, o enunciado de que certa

organização, que garante a liberdade individual, mas não segurança

econômica, é boa não é enunciado sobre um fato, não deve ser

verificado por experimento e não é verdade nem falso.

Juízos sobre valores não contradizem juízos sobre a realidade, na

verdade, apenas se seu significado é tal que não podem contradizer ou

afirmar juízos sobre a realidade é que são juízos no sentido específico

do termo. Nesse sentido, a realidade e valor são sempre duas esferas

diferentes.

Os termos ‘valor’ e ‘juízo de valor’ são frequentemente usados em outro

sentido. Tal é o caso quando e enunciado de que algo é meio adequado

para certo fim é considerado juízo de valor. O enunciado refere-se à

relação entre causa e efeito e, é justamente essa relação entre fatos que

constitui uma realidade específica, a realidade da natureza. A ciência

natural descreve seu objeto como real aplicando o princípio da

causalidade- isto é, por meio de enunciados de que em dada condição,

uma consequencia específica certamente, ou provavelmente ocorrerá.

Esses enunciados são chamados de leis da natureza. O enunciado de

que algo é um meio adequado para um fim é verdadeiro ou falso; para

ser verdadeiro, deve ser verificável pela experiência. O enunciado de

que uma organização comunista é boa significa que é meio adequado

de ocasionar segurança econômica para todos, e se enunciado de que

uma organização comunista é má significa apenas que ela não tem este

resultado. Ambos são juízos sobre a realidade, e, se são classificados

como juízos de valor, tais juízos de valor não são diferentes de juízos

sobre a realidade, mas apenas um tipo especial de tais juízos, e,

portanto, não devem ser excluídos da esfera da ciência. A ciência pode

determinar os meios, mas não pode determinar os fins.

O enunciado de que algo é um fim, não é idêntico ao enunciado de que

um indivíduo, especialmente o sujeito que julga, ou vários indivíduos o

desejam. O segundo é um enunciado sobre um fato sobre o estado de

espírito efetivo dos seres humanos. Se por ‘fim’ designa-se aquilo que

um indivíduo efetivamente deseja, esse termo significa a intenção do

indivíduo, o propósito a que ele está efetivamente visando. Mas, no

sentido específico, o enunciado de que algo é um fim, por exemplo, o

enunciado de que a segurança econômica para todos é o fim da vida

social, expressa a ideia de que algo –deve ser buscado como um fim,

mesmo que não seja efetivamente buscado. Nesse sentido, o conceito

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mesmo que não seja efetivamente buscado. Nesse sentido, o conceito

de ‘fim’ é idêntico ao de ‘fim correto’. Portanto este enunciado (fim

correto) equivale à afirmação de que esse algo é prescrito por uma

norma. Nesse sentido, ‘fim’ significa ‘valor’ e, nesse sentido, uma norma

constitui valor. Em outras palavras, apenas como enunciado sobre o

que deve ser feito, em conformidade com uma norma pressuposta

como válida, é que o enunciado de que algo é um fim é um juízo de valor

no sentido específico do termo, em contraposição a um juízo sobre a

realidade, na condição de enunciado sobre o que é efetivamente é feito

ou provavelmente será feito.

Devemos distinguir um fim, que pode ser considerado um meio para

outro fim, de um fim último, ou, o que dá no mesmo, um valor

constituído por uma norma fundamental, isto é um valor supremo.

Obedecer aos mandamentos de Deus é um fim último- um valor

supremo, o conteúdo de uma norma fundamental. O enunciado de que

a ciência pode determinar o meio, mas não o fim último, equivale ao

enunciado de que a ciência não deve pressupor a validade uma norma

fundamental. Enunciados científicos sobre os meios adequados podem

ser formulados apenas como proposições condicionais: se for

pressuposta como válida a norma fundamental que constitui um fim

último, então é meio adequado.

Juízos sobre fins últimos ou supremos são, apesar de sua pretensão a

uma validade objetivam altamente subjetivos. Assim, eles diferem de

juízos sobre a realidade, que- sedo verificáveis pela experiência e

completamente independentes da personalidade do sujeito que julga,

particularmente de seus desejos e temores- são, pela própria natureza

objetivos. Essa objetividade é uma característica essencial da ciência, e,

por causa, de sua objetividade, a ciência opõe-se à política e deve ser

separada dela, porque a política é uma atividade baseada, em última

análise, em juízos de valor subjetivo.

A ciência da política e a ciência ‘política’

O princípio da objetividade aplica-se à ciência social, assim como à

ciência natural e, em particular, à chamada ciência política. O objeto da

ciência política é a política- a atividade dirigida para o estabelecimento e

a manutenção de uma ordem social, especialmente o Estado. Ao

descrever os fenômenos que estuda, o cientista político deve levar em

consideração os valores que os homens pressupõem em suas

atividades políticas. Mas ao fazê-lo não deve considerar a norma que

constitui o valor como válida, ele não deve aprovar nem desaprovar o

objeto de sua análise, para que seu trabalho não se torne, em vez de

uma ciência da política, uma ciência política, no sentido de um

instrumento da política. Se isso acontece, ela não é uma ciência, mas

uma ideologia política.

A separação de ciência e política, que significa abstenção de juízos de

valor em uma ciência cujo objeto, por assim dizer, está impregnado de

juízos de valor, não é tão paradoxal como parece; é necessário admitir

apenas que verificar o fato de que os homens são, consciente ou

inconscientemente, determinados em suas atividades políticas por

juízos definidos é bem diferente de apoiar esses juízos de valor. Não há

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motivos para diferenciar ciências naturais e sociais no que diz respeito

ao postulado de separar ciência e política.

Os que negam a legitimidade desse postulado no que diz respeito à

ciência política aceitam- pelos menos em parte- um dos princípios mais

característicos da filosofia marxista; o dogma de que a ciência não pode

ser separada da política porque é apenas parte da ‘superestrutura’ de

uma realidade econômica (o que significa, segundo essa filosofia, uma

realidade política) e, consequentemente, nunca é realmente mais do

que um instrumento político. Esse dogma nega a possibilidade de uma

ciência independente.

Embora a ciência deva ser separada da política, a política não necessita

ser separada da ciência. A ciência em geral e a ciência política em

particular podem fornecer os meios adequados, mas, como foi

assinalado, ela não pode determinar os fins últimos da política.

Contudo, admitir que esses fins, baseiam-se em juízos de valor

subjetivos parece muito difícil para aqueles que- por motivos políticos-

procuram uma justificação absoluta do sistema político que tentam

estabelecer ou sustentar. Se não estão dispostos a encontrar tal

justificação na religião, tentam obtê-la na ciência. Também essa

tendência é característica da filosofia marxista, que afirma estabelecer

um socialismo científico. A verdadeira ciência, é claro, recusa-se a ser

substituo da religião e não pode senão destruir a ilusão de que juízos de

valor podem ser derivados da cognição de realidade, de que os valores

são imanentes à realidade, que é o objeto do estudo científico. A visão

de que valor é imanente, à realidade, se sustentada por uma teoria da

sociedade anti-religiosa, antimetafísica, (como, por exemplo, pela

filosofia de Comte ou pela interpretação econômica da história Marx),

não tem nenhum fundamento.

Ciências normativas

O postulado da separação entre ciência e política pressupõe que o

objeto da ciência é a realidade. Existem, porém, ciências, ou disciplinas

geralmente consideradas ciências, como a ética e a jurisprudência, cujo

objeto parece não ser a realidade, mas valores. Elas descrevem normas

que constituem valores, e, nesse sentido, podem ser chamas de ciências

‘normativas’. Para considerá-los ciências, devemos levar em

consideração o fato de que existem dois tipos de normas, assim,

existem dois tipos diferentes de juízos de valor: existem normas

positivas, criadas por atos de indivíduos e normas que não são criadas

nessa maneira, mas são apenas pressupostas na mente dos indivíduos

que atuam e julgam. As normas do Direito positivo podem ser

estabelecidas pelo costume, por atos legislativos, jurisprudenciais, atos

administrativos ou transações jurídicas. Os atos pelos quais são criadas

as normas de um sistema normativo positivo são sempre fatos

manifestados no mundo exterior, perceptíveis aos sentidos.

Dizer que uma norma é criada por um fato é uma figura de linguagem. A

norma é o significado específico do fato, e esse significado,

imperceptível aos nossos sentidos, é resultado de uma interpretação.

Interpretar o significado de um fato como norma é possível apenas sob

condição de pressupormos outra norma que confira a esse fato a

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condição de pressupormos outra norma que confira a esse fato a

qualidade de um fato criador de norma; mas essa outra norma, uma

última análise, não pode ser uma norma positiva.

A diferença entre uma norma positiva e norma não positiva é

particularmente claro no campo do Direito. A primeira constituição

histórica só tem caráter de norma obrigatória se pressupomos uma

norma segundo a qual devemos conduzir-nos tal como os que

estabeleceram a constituição ordenaram que nos conduzíssemos. Se

não supomos que os pais da constituição receberam sua autoridade de

Deus, essa norma é uma norma fundamental. Não foi estabelecida,

como foi a própria constituição pelos atos de seres humanos; ela é

apenas pressuposta pelos que querem interpretar certas relações

humanas como relações jurídicas ou como relações determinadas por

normas jurídicas. Esse pressuposto, porém não é arbitrário. Na

verdade, pressupomos que devemos conduzir-nos como os que

estabeleceram a constituição ordenaram que nos conduzíssemos, se a

ordem jurídica estabelecida com base nessa constituição, for de modo

geral, eficaz. É princípio da eficácia implícito na norma fundamental.

A jurisprudência como ciência do Direito tem normas positivas por

objeto. Apenas o Direito positivo pode ser objeto de uma ciência do

Direito. É o princípio do positivismo jurídico, em oposição à doutrina do

Direito natural, que pretende apresentar normas jurídicas não criadas

por atos de seres humanos, mas deduzidas a partir da natureza.

Deduzir normas a partir da natureza, isto é, considerar a natureza como

legisladora, pressupõe a ideia de que a natureza é criada por Deus e,

assim, é a manifestação de vontade, que é absolutamente boa.

Portanto, a doutrina do Direito natural não é uma ciência, mas uma

metafísica do Direito. O Direito positivo pode ser Direito nacional

(Direito de um Estado, baseado na constituição) ou Direito internacional

(criado pelos costumes). Mas a norma em que a validade de um Direito

positivo se fundamenta é, na verdade, uma norma não-positiva, e o

princípio do positivismo jurídico pode ser sustentado apenas se

restringindo por esse fato. Essa restrição, porém, não abole a oposição

entre positivismo jurídico e a doutrina do Direito natural. A norma

fundamental de uma ordem jurídica positiva- em contraposição às

normas substantivas do Direito natural que prescrevem uma conduta

humana definida como em conformidade com a natureza ( e isso

significa justa) e proíbem uma conduta humana definida com contrária

à natureza ( e isso significa injusta) - tem caráter meramente formal.

Serve como fundamento para qualquer ordem jurídica positiva,

independentemente de sua conformidade ou não-conformidade com o

Direito natural e, tem na ciência do Direito, um caráter meramente

hipotético.

Normas jurídicas positivas podem ser objeto de uma ciência jurídica,

porque a existência- e isso significa a validade- de uma norma positiva é

condicionada pela existência de fatos. Esses fatos são os atos pelos

quais a norma jurídica é criada, como um costume, um ato legislativo,

judicial ou administrativo, uma transação legal, juntamente com a

eficácia da ordem jurídica total à qual pertence a norma. A afirmação de

que certa conduta humana (ou certo ato do Estado) é legal ou ilegal

pode ser verdadeira ou falsa, sendo verificável pela experiência.

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pode ser verdadeira ou falsa, sendo verificável pela experiência.

Tal norma existe apenas se for criada em conformidade com a

constituição que está na base daquele Direito e, essa constituição é

válida apenas se a ordem jurídica sobre ela estabelecida for, de modo

geral, eficaz. São fatos que podem ser verificados pela ciência da

natureza. Portanto, a afirmação de que normas são o objeto da ciência

do Direito não significa que o objeto dessa ciência não seja a realidade.

Significa apenas que esse objeto não é uma realidade natural tal como

descrita pela ciência natural. Mas o objeto da ciência jurídica pode ser

caracterizado como realidade jurídica, tal como descrita pela ciência

jurídica, consistem em fatos que têm- contato que seja pressuposta a

validade da norma fundamental não-positiva- um significado específico:

o significado de normas positivas.

A ciência natural descreve seu objeto como real enunciado que em

certas condições (causas), ocorrem, necessária ou provavelmente

certas conseqüências (seus efeitos). Essas proposições, como foi

assinalado, são as chamadas leis da natureza, que são leis da

causalidade. Os enunciados pelos quais a ciência do Direito descreve

seu objeto não são uma aplicação do princípio da causalidade; eles não

têm significado das leis da natureza, embora tenham a mesma forma

gramatical. Seu significado não é o de que, em certa condição,

determinada consequência ocorre efetivamente, isto é, necessária ou

provavelmente, mas que, sob condição de certa conduta humana, outra

conduta humana deve ocorrer como conseqüência. Esses enunciados

são regras de Direito. Na regra de Direito de que ‘se um homem comete

roubo, outro homem deve punir o ladrão’ a punição não é descrita

como efeito nem o roubo como a causa. O termo ‘dever’ expressa o

significado específico da ligação entre condição e consequência,

estabelecida por uma norma jurídica (uma prescrição ou permissão),

como diferente da ligação entre causa e efeito. Pode ser designada

como ‘imputação’. É necessário lembrar, é claro que, quando o princípio

da imputação é aplicado, e quando se afirma que, sob a condição de

certa conduta, outra conduta deve ocorrer, o termo ‘deve’ não tem seu

significado moral costumeiro, mas significado puramente lógico.

Designa, como a causalidade, uma categoria no sentido da lógica

transcendental de Kant.

A ciência do direito e a política

Se as proposições por meio das quais a ciência do Direito descreve seu

objeto forem chamadas ‘regras de Direito’, devem ser distinguidas das

normas jurídicas descritas por essa ciência. As primeiras são

instrumentos da ciência jurídica, as segundas são funções da

autoridade jurídica. Ao descrever o Direito por meio de regras de

Direito, a ciência do Direito não exerce a função de autoridade social,

que uma função da vontade, mas função da cognição. Embora se possa

considerar que as normas jurídicas emitidas pela autoridade jurídica

constituem valor específico a saber, o valor jurídico, as regras de Direito

não são juízos de valor em nenhum sentido possível do termo, assim

como as leis da natureza por meio das quais a ciência natural descreve

seu objeto não são juízos de valor.

A única norma não-positiva que a ciência do Direito pode levar em

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consideração- não como seu objeto- é norma fundamental da ordem

jurídica que é seu objeto. A função específica da norma fundamental de

uma ordem jurídica positiva, que constitui valor jurídico, é servir como

fonte última do Direito, isto é, como razão da validade da constituição

de uma ordem jurídica; e a constituição é aquela norma jurídica positiva

( ou conjunto de normas) que regulamenta a criação de outras normas

da ordem jurídica. Portanto, a norma fundamental de uma ordem

jurídica positiva, como foi assinalado, tem um caráter meramente

formal; ela não constitui um valor substantivo como, por exemplo, a

norma não-positiva de que os homens deve ser livres, ou de que os

homens devem viver em segurança- que constituem o valor chamado

‘justiça’.

Um Direito positivo pode ser justo ou injusto; a possibilidade de ser

justo ou injusto é uma conseqüência essencial do fato de ser positivo. O

juízo de que algo é legal ou ilegal, como foi assinalado, refere-se

necessariamente a uma ordem jurídica definida, válida para certo

espaço e em certo tempo. O que é legal segundo uma ordem jurídica

pode ser ilegal segundo outra. Nesse sentido, o valor constituído por

normas jurídicas positivas é sempre um valor relativo. Mas a ideia de

justiça, em seu sentido especifico, designa um valor absoluto,

constituído por uma norma não-positiva que se afirma válida em todas

as partes em todos os tempos, uma norma substantiva como um

conteúdo imutável. Mesmo se o enunciado de que alguma coisa é justa

ou injusta significar que ela está ou não em conformidade com uma

norma de uma ordem moral positiva, estabelecida pelo costume ou

pelos comandos de um fundador religioso, ele estará excluído do

campo da ciência do Direito. Pois a validade de tal norma positiva

depende de uma norma fundamental do Direito positivo, que é a única

condição sob a qual a ciência do Direito pode descrever seu objeto

como um conjunto de normas válidas que constituem o valor jurídico

específico.

Outros valores, especialmente o valor da justiça, que é valor específico

segundo o qual o Direito positivo chama ‘valores políticos’, para serem

distinguidos do valor jurídico.

Mas, embora a ciência do Direito possa e deva ser separada da política,

isto é, embora o cientista jurídico deva abster-se de juízos de valor

político, o processo legislativo, que é função da autoridade jurídica, não

pode ser separado da política. Pois essa função é determinada não

apenas pelas normas jurídicas, mas Tb por normas de outro sistema

normativo que, para distingui-las do Direito, são chamadas, como foi

assinalado de ‘políticas’. É uma peculiaridade do Direito de reger sua

própria criação. Assim como a constituição rege a criação dos estatutos

ou institui o costume como fato criador do Direito, estatutos e regras

de Direito consuetudinário regem a criação de normas específicas pelos

tribunais nas jurisprudências. Ao criar uma norma, a autoridade jurídica

aplica uma norma superior que determina a criação e o conteúdo da

norma inferior. Na medida em que sua função criadora de normas é

deixada ao seu arbítrio, a autoridade jurídica pode ser, e efetivamente é,

determinada por outras normas que não as normas jurídicas- e nessa

medida sua função tem um caráter político, ao passo que é uma função

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medida sua função tem um caráter político, ao passo que é uma função

jurídica na medida em que é determinada por normas jurídicas.

Normalmente o órgão legislativo é juridicamente obrigado pela

constituição. É esse caso quando a constituição proíbe ou prescreve

certo conteúdo para essas normas, por exemplo, quando a constituição

proíbe certo conteúdo a restrição da liberdade religiosa. Na medida, em

que a função legislativa é, determinada pela constituição, o legislador

pode ser, e efetivamente é, determinado por princípios políticos,

especialmente pela sua ideia de justiça. Ele pode preferir um conceito a

outro no mesmo campo, pq considera um justo e o outro injusto.

O cientista jurídico não tem escolha de aceitar ou rejeitar o Direito, tal

como estabelecido pelo legislador, com base no seu juízo sobre o que é

justo ou injusto. Ele pode apenas examinar se as normas criadas pelo

órgão legislativo estão ou não em conformidade com as normas

positivas da constituição, e o resultado desse exame é, em ultima

análise, a verificação objetiva de um fato, não um juízo subjetivo de

valor. Mas, mesmo o enunciado do cientista jurídico, de que um

estatuto é ou não constitucional, não tem nenhuma importância

jurídica, pois a questão de se o estatuto é ou não constitucional não

pode ser decidida pela ciência do Direito, mas pela autoridade jurídica a

quem o Direito confere esse poder.

A aplicação do Direito por uma autoridade jurídica, assim como a

descrição do Direito pelo cientista político, implica uma interpretação

do Direito. Interpretar uma norma jurídica é encontrar seu significado. É

uma exigência da técnica jurídica que a norma jurídica seja formulada

tão claramente quanto possível, para que seu significado seja

inquestionável. Por vezes, mais de um significado pode ser encontrado

em uma norma jurídica.

Existem diferentes métodos de interpretação: segundo a intenção do

legislador, interpretação histórica ou lógica e a interpretação restritiva

ou extensiva. Mesmo que um método de interpretação seja obrigatório,

ele pode fornecer significados diferentes e contraditórios. Ao aplicar

uma norma, a autoridade jurídica escolhe em desses significados e,

assim, atribui força de Direito. Isso pode ser chamado uma

interpretação autêntica, embora na linguagem tradicional esse termo

seja usado apenas para designar uma norma jurídica cujo propósito

expresso é interpretar uma norma anterior, não a interpretação

implícita na aplicação da norma. A escolha de um dos vários significados

de uma norma jurídica por uma autoridade jurídica em sua função

aplicadora do Direito é um ato criador do Direito. Na medida em que

essa escolha não é determinada por uma norma superior, é uma função

política. Portanto, a interpretação automática do Direito por uma

autoridade jurídica pode ser caracterizada como interpretação política.

Por outro lado, a tarefa de um cientista jurídico que interpreta um

instrumento jurídico é demonstrar seus possíveis significados e deixar à

autoridade jurídica competente a escolha, segundo princípios políticos,

do que esta autoridade julga mais adequado. Ao mostrar as

possibilidades que a lei a ser aplicada abre à autoridade jurídica, o

cientista jurídico serve cientificamente à função aplicadora de direito; ao

revelar a ambiguidade e assim, a necessidade de melhorar a redação,

serve à função criadora de Direito de maneira científica.

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serve à função criadora de Direito de maneira científica.

Se o cientista jurídico recomenda à autoridade jurídica um dos

diferentes significados de uma norma jurídica, ele tenta influenciar um

processo criador de Direito e exerce uma função política e não

cientifica; se ele apresenta essa interpretação como a única correta,

esta atuando como um político disfarçada de cientista. Portanto a

interpretação cientifica do Direito, que é a interpretação do Direto por

um cientista jurídico pode ser caracterizada como uma interpretação

jurídica – em contraposição à interpretação aplicada a uma autoridade

jurídica. Ao preferir uma das diversas interpretações possíveis, à

exclusão de outras, a segunda pode ser caracterizada como uma

interpretação política.

O “jurídico” e o “político”

A distinção entre uma função jurídica e uma função política como

distinção como uma função determinada por normas jurídicas e uma

função determinada não por normas jurídicas, mas por normas

políticas, é de muitas vezes de considerável importância. Um exemplo

típico é o reconhecimento de uma comunidade ou de um Estado, ou de

um corpo de indivíduos como governo de um Estado. Segundo alguns

autores o reconhecimento tem apenas caráter declaratório, não tem

conseqüências jurídicas. Portanto, uma comunidade é um Estado se

cada um cumprir as exigências do Direito internacional,

independentemente de ser ou não comunidade reconhecida pelos

outros Estados. Segundo outros autores, o reconhecimento tem um

caráter constitutivo, o que significa que tem conseqüências jurídicas

essenciais. Assim, uma comunidade é um Estado apenas quando

reconhecida pelos outros Estados. Mas, na verdade, o reconhecimento

é um ato constitutivo e declaratório, o ato chamado reconhecimento

compreende duas funções: uma função jurídica, que é constitutiva, e

uma função política, que é declaratória.

É frequente a afirmação de que a constituição de um Estado, ou a

constituição de uma comunidade internacional, não é um instrumento

jurídico mas um instrumento político, que, conseqüentemente deve ser

interpretado não juridicamente, mas politicamente. Não pode haver a

menor dúvida que a constituição de um Estado ou tratado constituinte

de uma comunidade internacional são instrumentos jurídicos. A única

questão é se são, ao mesmo tempo instrumentos políticos. Se a

resposta é afirmativa certamente não se fundamenta no conteúdo dos

instrumentos, que, por sua própria natureza, é Direito e nada mais que

Direito. O instrumento em questão pode ser chamado político apenas

no que diz respeito ao propósito do Direito que contém. O propósito

político não priva, em absoluto, o instrumento em caráter jurídico. Não

existe nenhum instrumento jurídico que não tenha um propósito

extrajurídico, porque o Direito, visto a partir de um ponto de vista

teleológico, é sempre um meio e não um fim. Portanto, o propósito

político ou econômico de uma norma jurídica não pode excluir uma

interpretação jurídica, isto é, legal, sobretudo porque uma

interpretação jurídica inclui – como foi assinalado – todas as

interpretações possíveis de uma norma jurídica.

A doutrina de que existem disputas jurídicas, ou política, não passíveis

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19/07/13 O Que é Justiça - Trabalhos de Pesquisa - Camilassouza

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A doutrina de que existem disputas jurídicas, ou política, não passíveis

de decisão judicial em virtude de inaplicabilidade do Direito

internacional existente interpreta erroneamente aquilo que é uma

inadequação do ponto de vista não- jurídico, classificando-o como

impossibilidade jurídica. Seu propósito não é interpretar o Direito de

maneira objetiva, mas justificar a tentativa de excluir a aplicação do

Direito existente, em contradição com seu significado cientificamente

verificável. Assim, essa doutrina não é uma teoria cientifica, mas um

instrumento de política.

O uso equivocado da distinção jurídico e político é um dos meios mais

eficazes, embora não único, empregados para confundir a ciência do

Direito com a política. Evitar a fusão destas duas esferas heterogêneas é

tão essencial para preservação do caráter científico da jurisprudência

quanto é vital a separação de ciência e política para a existência de toda

e qualquer ciência independente.

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