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Enviado por camilassouza, junho 2012 | 207 Páginas (51698 Palavras) | 8 Consultas| | |
O Que é Justiça
O que é Justiça
A JUSTIÇA, O DIREITO E A POLÍTICA NO ESPELHO A CIÊNCIA
HANS KELSEN
Resumo elaborado em Junho/2010
I. O QUE É JUSTIÇA? 2
II. A IDÉIA DE JUSTIÇA NAS SAGRADAS ESCRITURAS 11
III. A JUSTIÇA PLATÔNICA 20
IV. A DOUTRINA DA JUSTIÇA DE ARISTÓTELES 26
V. A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL PERANTE O TRIBUNAL DA CIÊNCIA
30
VI. UMA TEORIA “DINÂMICA” DO DIREITO NATURAL 36
VII. JUÍZOS DE VALOR NA CIÊNCIA DO DIREITO 43
VIII. O DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL ESPECÍFICA 47
IX. POR QUE A LEI DEVE SER OBEDECIDA? 51
X. A TEORIA PURA DO DIREITO E A JURISPRUDÊNCIA ANALÍTICA 54
XI. DIREITO, ESTADO E JUSTIÇA NA TEORIA PURA DO DIREITO 59
XII. CAUSALIDADE E RETRIBUIÇÃO 62
XIII. CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO 65
XIV. CIÊNCIA E POLÍTICA 68
O QUE É JUSTIÇA? A JUSTIÇA, O DIREITO E A POLÍTICA NO ESPELHO A
647 Páginas agosto de 2012
129 Páginas novembro de 2012
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CIÊNCIA
Hans Kelsen
I. O QUE É JUSTIÇA?
O autor introduz o ensaio com Jesus de Nazaré, durante o seu
julgamento, que perante um pretor romano admite ser rei e diz “vim ao
mundo para dar testemunho da verdade”; Ao que Pilatos perguntou: “O
Que é verdade?” Jesus não responde, pois dar testemunho da verdade
não era a sua missão de rei messiânico, pois nascera para dar
testemunho de justiça, justiça aquela que Ele desejava concretizar no
reino de Deus, e por ela morrer na cruz.
Assim, do questionamento de Pilatos emergia uma outra questão – O
que é justiça? Essa questão, de Platão a Kant, foi discutida com a paixão
que nenhuma outra suscitou, muito embora continue até hoje sem
resposta. Assim, o resignado sabe que o homem nunca encontrará uma
resposta definitiva, apenas deverá saber perguntar melhor o que ela
signifique.
A JUSTIÇA COMO UM PROBLEMA DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DE
INTERESSES OU DE VALORES
1. A justiça é, inicialmente, uma característica possível, mas não
necessária à ordem social. É virtude do homem e encontra-se em
segundo plano. O homem é justo quando seu comportamento
corresponde a uma ordem dada como justa. Mas o que é uma ordem
justa? É a ordem que regula o comportamento dos homens e contenta
a todos, de modo a encontrarem a felicidade. O eterno anseio por
justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. Justiça é a felicidade
social. Platão identifica justiça e felicidade: o justo é feliz e o injusto,
infeliz. Se a justiça é felicidade, o que é felicidade?
2. Ao se entender felicidade como o sentimento subjetivo que cada um
compreende para si mesmo, é impossível se falar em ordem social justa,
pois jamais se proporcionará felicidade a todos, sendo inevitável que a
felicidade de um pode entrar em conflito com a felicidade do outro.
Exemplos: 2 (dois) homens amam uma mesma mulher e ambos
acreditam que o seu amor é a sua fonte de felicidade. Como ela
somente pode pertencer a um deles, a felicidade de um culminará na
infelicidade do outro. Sob esse prisma, jamais haverá ordem social que
possa solucionar um problema de forma justa, ou seja, da maneira que
todos os homens possam ser igualmente felizes.
A sentença salomônica, do sábio rei Salomão, que mandou dividir uma
criança ao meio para entregar cada metade à uma das mães que a
reivindicava, para realmente entregá-la à mãe que abdicasse do seu
direito (comprovando, assim, verdadeiramente amá-la, segundo o rei) é
justa somente se uma das mulheres amar a criança. Se ambas as
mulheres a amarem, e por isso abdicarem do seu direito, o litígio
permanecerá pendente, e ainda que a criança seja adjudicada por uma
das partes, a decisão não será justa, pois uma das partes sairá infeliz.
Da mesma forma, a escolha de um dentre dois homens de igual
capacidade para comandar um exército, tendo sido escolhido o mais
165 Páginas março de 2013
111 Páginas maio de 2013
126 Páginas julho de 2013
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capacidade para comandar um exército, tendo sido escolhido o mais
adequado o de boa aparência e que demonstra uma personalidade
forte, demonstra que não há ordem social que possa compensar
totalmente as injustiças da natureza.
3. Se justiça é felicidade, a ordem social é impossível, enquanto justiça
significar felicidade individual. A ordem social justa é impossível ainda
que procure proporcionar, ao menos, a maior felicidade do maior
número de pessoas possível. (definição de justiça de Jeremy Bentham).
Essa formulação não se aplica se o conceito de felicidade for subjetivo,
um valor subjetivo, com as diferentes concepções de cada indivíduo. A
felicidade capaz de ser garantida pela ordem social é a de sentido
objetivo-coletivo, jamais no sentido subjetivo-individual.
Dessa forma, por felicidade, somente poderemos entender a satisfação
de certas necessidades reconhecidas como tais pela autoridade social –
o legislador – como a necessidade de alimentação, vestuário, moradia e
equivalentes. Tem-se, pois, que a satisfação das necessidades
socialmente reconhecidas é algo diverso do sentido original da palavra
felicidade, que tem natureza altamente subjetiva.
4. O conceito de felicidade deverá sofrer, assim, uma radical
transformação de sentido para tornar-se uma categoria social: a
felicidade da justiça. Tal qual o conceito de liberdade, para se tornar um
princípio social; o conceito de liberdade é freqüentemente identificado
com o de justiça, na medida em que uma ordem social é considerada
justa se garantir a liberdade individual. A verdadeira liberdade (de
qualquer jugo, de qualquer tipo de governo) é incompatível com todo o
ordenamento social, sendo que o seu conceito não pode conservar o
significado negativo da existência livre de governo; deve, pois, aceitar
uma forma especial de governo: liberdade deve significar governo pela
maioria, se necessário contra a minoria.
Da mesma forma, o conceito de justiça transforma-se de princípio que
garante a felicidade individual de todos em ordem social que protege
determinados interesses, reconhecidos como dignos dessa proteção
pela maioria dos subordinados a essa ordem.
5. Mas quais os interesses humanos que têm esse valor e qual é a
hierarquia desses valores? É essa a questão que coloca quando surgem
conflitos de interesses. Somente onde há tais conflitos é que a justiça se
torna um problema, pois onde não há conflitos de interesses não há
necessidade de justiça. Um conflito de interesses somente se apresenta
quando um interesse só pode ser satisfeito a custa de outro, ou seja,
quando dois valores se contrapõem e não é possível a concretização de
ambos. Assim, deve-se decidir qual dos interesses é o maior, o mais
elevado. O problema de valores é, antes de tudo, o problema dos
conflitos de valores. Tal problema não é solucionado com meios do
conhecimento racional, mas é determinado por fatores emocionais e
possui, portanto, caráter subjetivo. Significa dizer que o juízo de valor só
é válido para o sujeito que julga, sendo portanto relativo.
HIERARQUIA DE VALORES
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HIERARQUIA DE VALORES
6. De acordo com determinada convicção ética, a vida humana é o valor
maior. Em decorrência dessa concepção, é absolutamente proibido
matar um ser humano. Tal concepção ética é contrária , mas igualmente
ética, à daqueles cuja convicção de que o interesse e a honra da nação
são um valor maior, tendo o indivíduo, por essa concepção, o dever
ético de sacrificar a sua própria vida e de matar o inimigo da nação.
Dessa forma, é pura e simplesmente impossível decidir de modo
racional-científico entre os dois juízos, que se fundam em concepções
contraditórias. Em última análise, é o sentimento e a vontade (não a
razão), que são elementos emocionais da atividade consciente que
solucionam o conflito.
7. Igual conflito também é sopesado quando se trata dos valores
liberdade e vida: o suicídio de um escravo ou prisioneiro capturado é
eticamente admissível? A depender de qual concepção ética a ser
adotada, o suicídio poderia ser eticamente válido, ou inválido. É a
questão da hierarquia dos valores vida e liberdade, sendo dela somente
possível extrair uma resposta subjetiva, válida somente para o sujeito
que julga (é juízo de valor). Não é uma constatação válida para todos,
como um juízo de realidade (ex: o fogo queima, os metais se expandem
no calor – são juízos de realidade).
8. Discorre-se de outro conflito de juízo de valores: é preferível que um
povo adote uma chamada economia de planejamento, onde se garanta
segurança econômica para todos na mesma proporção, em troca da
supressão da liberdade individual; ou é preferível a liberdade individual?
Aos que tenham muita autoconfiança, é preferível a liberdade individual,
e aos que sofram de complexo de inferioridade, melhor será a
segurança econômica. Mas qual desses valores é maior: a liberdade
individual ou a segurança? Trata-se novamente de juízo de valor, não
juízo de realidade, que pode ser verificado através da experimentação.
9. Há ainda o conflito de valor do médico que constata ser o paciente
portador de doença incurável que em pouco tempo o levará à morte:
deverá ele contar ao paciente ( valor do apego à verdade) ou mentir
para poupá-lo de sofrimento maior já que está no final de sua vida
(valor da compaixão)? Trata-se novamente de decidir de qual desses
valores é hierarquicamente superior para se saber se a decisão tomada
é ou não ética, que, mais uma vez, é impossível de se saber com base
em considerações racionais-científicas.
10. Platão defende a idéia de que é justo aquele que se comporta de
acordo com a lei, e injusto aquele que se comporta contrariamente à lei.
Somente o justo é feliz, e o injusto é infeliz. “A vida mais justa é mais
bem-aventurada” – disse Platão. Contudo, Platão admite a hipótese de
que, em um ou outro caso, o homem justo possa ser infeliz e o injusto,
feliz. Contudo, continua o filósofo, é absolutamente necessário que os
cidadãos subordinados ao ordenamento legal acreditem na verdade da
afirmação de que somente o justo é feliz, mesmo que tal afirmação não
seja verdadeira; do contrário, ninguém obedecerá às leis. Assim, todo
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seja verdadeira; do contrário, ninguém obedecerá às leis. Assim, todo
governo tem o direito de propagar a idéia de que o homem justo é feliz
e o injusto, infeliz, mesmo que isso seja uma mentira. Dessa forma, a
mentira é extremamente útil, pois garante a obediência às leis. Conclui-
se, pois, que Platão coloca o valor justiça (considerada como legalidade)
como superior ao valor verdade.
11. A resposta à pergunta sobre a hierarquia de valores – como vida e
liberdade; liberdade e igualdade; liberdade e segurança; verdade e
justiça; apego à verdade e compaixão; indivíduo e nação, será
necessariamente diversa, a depender da pessoa que se pergunta, à
verificar qual é o juízo de valor que adota. A resposta terá sempre o
caráter de um juízo de valor subjetivo e, portanto, relativo.
A JUSTIÇA COMO UM PROBLEMA DE JUSTIFICAÇÃO DO COMPORTAMENTO
HUMANO
12. O fato de juízos de valor legítimos serem subjetivos (o que possibilita
a existência de juízos de valor bem diversos), não significa que cada
indivíduo tenha seu próprio sistema de valores. Um sistema de valores
positivo não é uma criação arbitrária de um indivíduo isolado, mas
resultado de uma influência exercida por indivíduos uns sobre os
outros num determinado grupo (tribo, família, clã, casta, profissão) e
sob condições econômicas específicas. Todo sistema de valores,
especialmente uma ordem moral com sua idéia central de justiça, é um
fenômeno social e, conseqüentemente, distinto, conforme a natureza
da sociedade na qual teve origem.
O fato de tais valores serem aceitos por todos os membros de uma
sociedade é perfeitamente compatível com o caráter subjetivo e relativo
dos juízos que mantém esses valores. A unanimidade sobre um juízo de
valor existente entre muitos indivíduos não é absolutamente prova de
que esse juízo seja correto, isto é, objetivamente válido. Como exemplo,
o fato de a maioria dos homens ter acreditado na idade media que o sol
girava em torno da terra não é ou foi prova de que essa crença se
baseia na verdade.
O critério justiça, assim como o de verdade, não é de modo algum a
freqüência com que surgem os juízos de realidade ou de valor. Na
história humana, juízos de valor de aceitação geral foram
freqüentemente suplantados por outros, opostos àqueles em maior ou
menor escala, porém de aceitação igualmente geral. Por exemplo, na
sociedade primitiva considerava-se justa a responsabilização coletiva
(ou responsabilidade hereditária – pecado original) enquanto na
sociedade moderna, é o princípio oposto (responsabilidade individual).
13. Embora não se possa responder racionalmente qual seja o valor
maior, a resposta de uma indagação de qual juízo de valor é o mais
adequado constitui a afirmação de um valor objetivo, ou seja, de uma
norma de valor absoluto. A justificação ou racionalização é uma
singularidade do homem, em razão da sua consciência. É o que talvez
uma das características que o diferencie do animal. O comportamento
exterior do homem não se diferencia muito do comportamento dos
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animais: os peixes grandes devoram os pequenos; contudo, o “peixe
humano”, que assim age igualmente por instinto, procura justificar sua
conduta perante si próprio e a sociedade para aplacar a idéia de que o
seu comportamento para com o semelhante é bom.
14. Sendo o homem racional, procura justificar seu comportamento
racionalmente, através da função razão, mas impelido pelo seu desejo
ou pelo temor. Contudo, tal justificação racional é restrita, somente
podendo se relacionar com um determinado fim a ser atingido. A
relação entre meio e fim coincide com a de causa e efeito e pode,
portanto, ser comprovada com base na experimentação e,
conseqüentemente, de modo científico-racional. Isso pode ser, por
vezes, impossível, quando os meios para realizar determinado fim sejam
de natureza social, pois o estado atual da ciência ainda não permite
uma compreensão clara do nexo de causalidade entre os fenômenos
sociais , bem como não há experiência suficiente que habilite o homem
a afirmar de modo preciso quais os meios mais apropriados para a
realização de determinados fins sociais. Tal questão é vista quando o
legislador enfrenta o dilema de decidir se deve ameaçar o cometimento
de tal crime com pena de morte ou com prisão, para a sua repressão:
deveria conhecer o efeito causado pela ameaça das diversas penas
sobre os homens com tendências a cometer os crimes dos quais se
procura reprimir, o que atualmente é desconhecido. E é por isso que
nem sempre o problema da justiça nem sempre é solucionável de forma
racional. Assim, não se consegue fornecer uma justificação total para a
nossa consciência, pois por meios altamente adequados podem ser
atingidos fins altamente duvidosos. Os fins justificam (ou santificam) os
meios, mas os meios não justificam os fins. E é exatamente a justificação
do fim, daquele fim que não é mais meio para um fim mais alto, o fim
último ou maior, que se constitui a justificação definitiva de nosso
comportamento.
15. Quando um comportamento humano é justificável para
determinado fim, deve-se perguntar também se o fim é igualmente
justificável. Trata-se de se supor se um fim ultimo, um fim maior, que é o
problema efetivo da moral geral e da justiça em particular.
Se o comportamento é justificável somente como meio adequado para
um fim pressuposto, sua justificação também estará condicionada ao
fato de o fim pressuposto ser também justificável. A justificação assim
condicionada, portanto relativa nesse sentido, não exclui a possibilidade
do seu oposto; pois , não sendo justificável o fim último, também não é
meio para alcançá-lo. A democracia é uma forma de regime justa, pois
assegura a liberdade individual. Isso significa que a democracia somente
é justa sob a premissa de a preservação da liberdade individual ser o
fim maior. Se ao invés da liberdade individual for a segurança
econômica o fim maior, e comprovada que ela não pode ser alcançada
em um regime democrático, então uma outra forma de regime, não
mais a democracia, deverá ser aceita como justa. Outros fins exigem
outros meios. Dessa forma, a democracia somente é justificável como
forma de regime relativa e não absolutamente boa.
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forma de regime relativa e não absolutamente boa.
16. Nossa consciência pode não se contentar com uma justificação
assim condicionada. Ela pode exigir uma justificação incondicionada,
absoluta. Assim teremos a consciência tranqüila se justificarmos nosso
comportamento apenas como meio adequado para um fim, cuja
justificação pareça duvidosa. Ela exigirá que justifiquemos nosso
comportamento como fim último, ou, o que dá no mesmo, que a nossa
conduta corresponda a um valor absoluto. Isso é impossível por meios
racionais, pois toda justificação é, por sua natureza, uma justificação
como meio adequado; um fim último não é mais um meio para outro
fim. Se nossa consciência postula valores absolutos, então a nossa
razão não tem condições de suprir tais exigências. O absoluto em geral
e valores absolutos em particular encontram-se além da razão humana,
para a qual só é possível uma solução condicionada e portanto relativa
do problema da justiça como um problema de justificação do
comportamento humano.
17. Contudo, a necessidade de justificação absoluta parece ser mais
forte que qualquer reflexão racional, por isso o homem busca na
religião ou na metafísica essa justificação (justificação absoluta). Isso
significa, todavia, que a justiça desse mundo é deslocada para um outro
mundo, transcendental. Sua concretização se torna a função essencial
de uma autoridade sobre-humana, uma divindade, cujas características
e funções são,por sua natureza, inacessíveis á cognição humana. O
homem deve acreditar na existência de Deus, na existência de uma
justiça absoluta, mas incapaz de compreendê-la, de defini-la
abstratamente.
Os que não conseguem aceitar tal solução metafísica sustentam, para o
problema, a idéia de valores absolutos, aferíveis de modo racional-
científico,iludindo-se, segundo o autor, com a possibilidade de
encontrar valores absolutos que são, na verdade, constituídos por
elementos emocionais. A definição de valores absolutos e definição de
justiça em particular, revelam-se, pois, fórmulas vazias, através das
quais toda e qualquer ordem social pode ser legitimada.
PLATÃO E JESUS
18. Platão é o representante clássico do tipo metafísico, sendo a justiça
o problema central de toda sua filosofia. Desenvolve a famosa doutrina
das idéias, que denomina serem as idéias substâncias transcendentais,
existentes em outro mundo, numa esfera inteligível, inacessível ao
homem perturbado pela sensorialidade. Representam valores
absolutos que, embora devessem ser concretizados no mundo dos
sentidos, nunca o são totalmente. A idéia do Bem absoluto é a idéia
fundamental a qual se subordinam todas as demais e da qual elas
obtêm sua validade. Esta desempenha na filosofia de Platão um papel
idêntico ao de Deus na teologia de qualquer religião. Inclui justiça,
alusiva a quase todos os diálogos de Platão, que procura responder “o
que é justiça?” com a pergunta “o que é bom ou o que é o Bem?”. Em
quase todos os seus diálogos, Platão procura responder essa questão
de forma racional, mas de nenhum deles ocorre um resultado definitivo,
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de forma racional, mas de nenhum deles ocorre um resultado definitivo,
sempre concluindo ser necessário proceder mais análises. O método a
qual freqüentemente Platão menciona em seus diálogos é a dialética,
que é um método específico de pensamento abstrato, livre de toda
representação sensorial e que capacita quem o domina à apreensão
das idéias.
Contudo, ele próprio não se utilizava desse método em seus diálogos.
Sobre a idéia do Bem absoluto, Platão reconhece que ele se encontra
além de todo conhecimento racional e além de todo ato de pensar. É
apreendido por meio de uma vivência mística, conhecida a poucos e
somente por graça divina.
Dessa forma, Platão conclui que não pode haver resposta à questão da
justiça, já que se trata de um mistério de Deus, que confia a sua
resposta – se é que o faz – a poucos escolhidos, que impreterivelmente
não conseguirão transmitir esse conceito aos outros.
19. A filosofia de Platão assemelha-se, nesse aspecto, à pregação de
Jesus, cujo fundamento maior também era a justiça. Jesus refutou o
princípio da retaliação contido no velho testamento, anunciando como
sendo a nova e verdadeira justiça o princípio do amor (retribuição do
mal com o bem, devendo-se amar o malfeitor e até mesmo o inimigo).
Essa justiça encontra-se além de qualquer ordenação possível dentro
de uma realidade social, sendo o amor representado por essa justiça
algo diverso do amor humano, pois é contrário à natureza humana. O
amor pregado por Jesus não é o amor dos homens. É o amor de Deus.
Mas o mais estranho desse amor é compatibilizá-lo com o castigo cruel
e eterno afligido aos pecadores no dia do Juízo Final, sendo também o
temor divino mais profundo que o humano. Essa contradição Jesus não
procurou explicar, o que não seria possível, pois é uma contradição
apenas para a limitada razão humana, não para a razão absoluta de
Deus, inconcebível ao homem. Corrobora isso o ensinamento de Paulo,
primeiro teólogo da religião cristã, ensinando que a filosofia, ou seja, o
conhecimento lógico-racional, não é o caminho para a sabedoria divina,
contida na sabedoria oculta de Deus, sendo essa justiça somente
revelada através da fé. Também admite Paulo que o amor pregado pro
Jesus, sobre a nova justiça, se encontra além do conhecimento racional,
sendo esse um mistério dentre muitos outros mistérios da fé.
AS FÓRMULAS VAZIAS DA JUSTIÇA
20. O tipo racionalista, que procura definir o conceito de justiça, está
representado tanto na sabedoria popular de muitas nações como em
consagrados sistemas filosóficos. Segundo uma das sete sabedorias
gregas, a definição de justiça é “conceder a cada um aquilo que é seu”.
Essa fórmula, apesar de ter sido aceita por muito pensadores
importantes, sobretudo filósofos de direito, é facilmente demonstrável
ser vazia, pois a questão decisiva – o que realmente cada um pode
considerar como sendo “seu” – permanece sem resposta. Assim, tal
princípio somente pode ser aplicado sob a premissa de se ter decidido
previamente essa questão. Assim, essa fórmula “conceder a cada um
aquilo que é seu” pode justificar qualquer ordem social, seja capitalista
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ou socialista, democrática ou autocrática, possibilitando qualquer
ordem social ser dada como justa. Conclui-se que essa fórmula não
define justiça de modo absoluto, pois além de não ter qualquer valor
como definição de justiça (sendo necessário previamente determinar-se
um valor absoluto: definir o que é de cada um), ela possibilita apreciar
como justo valores apenas relativos a uma determinada ordem social,
moral ou jurídica positiva.
21. O mesmo se aplica ao princípio “o bem paga-se com o bem, o mal
com o mal” (princípio da retaliação). Do mesmo modo, essa formulação
necessita prévia elucidação da questão decisiva: o que é o bem e o que
é o mal? Apesar de aparentemente fácil essa definição, a sua resposta
não é, contudo, absolutamente óbvia, uma vez que opiniões sobre o
que é o bem e o que é o mal divergem muito entre os povos distintos e
em épocas diferentes. . O princípio da retaliação expressa somente a
técnica específica do |Direito positivo, que associa o mal do injusto ao
mal da conseqüência do injusto. Mas esse princípio é o qual se baseiam
todas as normas jurídicas positivas, e, por isso, toda ordem jurídica
pode ser justificada como concretização do princípio da retaliação. A
questão da justiça é, porém, aferir se uma ordem jurídica, ao aplicar o
princípio da retaliação, é justa, ou seja, se o fato contra o qual o Direito
reage como algo injusto, opondo-lhe portanto o mal da conseqüência
do injusto, é realmente um mal para a sociedade; e se o mal que o
Direito estabelece como conseqüência do injusto pode ser considerado
como tal. É essa a questão específica, para a qual o princípio da
retaliação não constitui uma resposta.
22. Sendo que retaliação significa retribuir igual com igual, ela é uma das
múltiplas variedades nas quais aparece o princípio da igualdade,
considerado a essência da justiça. Tal princípio parte da premissa de
que todos os homens (tudo aquilo que tem fisionomia humana) são
iguais por natureza, devendo todos eles serem tratados com igualdade.
Tal afirmação é errônea, eis que os homens são bem diferentes, não
existindo realmente duas pessoas iguais. Dessa exigência, somente é
possível aferir que o ordenamento social não deve levar em
consideração determinadas diferenças na concessão de direitos e
imposição de deveres; Apenas algumas diferenças, nunca todas elas,
pois seria absurdo tratar crianças como adultos; idosos como jovens;
loucos como sãos. Quais seriam e não seriam, então, as diferenças a
serem consideradas para tratar igualmente os homens?
A essa questão o princípio da igualdade não oferece resposta,
divergindo igualmente as ordens jurídicas positivas a esse respeito,
muito embora não ignorem tais diferenças para a concessão de direitos
e imposição de deveres. Enquanto numa sociedade concede-se direitos
políticos apenas aos homens (e não às mulheres), outra obrigam
somente aos homens alistar-se no serviço militar. Mas o que é justo?
Aquele que é indiferente perante a religião tenderá á considerar as
diferenças religiosas insignificantes, mas o que tem fé considerará
fundamental a diferença dentre aqueles que compartilhem da sua fé e
todos os demais (infiéis) e entenderá como justo conceder àqueles
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todos os demais (infiéis) e entenderá como justo conceder àqueles
direitos que serão negados estes.
O princípio da igualdade, como todo o direito, deve ser interpretado no
sentido de que somente os iguais deverão ser tratados de forma igual,
significando a sua questão decisiva: o que é igual? Essa questão não é
respondida pelo denominado princípio da igualdade. Portanto, toda e
qualquer diferença poderá ser considerada essencial no tratamento
dos subordinados à lei por uma ordem jurídica positiva e ser, por isso, a
base de um tratamento diferenciado, sem que, com isso, essa ordem
jurídica entre em contradição com o princípio da igualdade sendo,
portanto, esse princípio por demais vazio para determinar o conteúdo
de uma ordem jurídica.
23. O chamado princípio da igualdade perante a lei significa apenas que
a legislação deve ser aplicada de acordo com o seu sentido, não
significando que os órgãos jurídicos devam fazer distinções que a
própria legislação a ser aplicada não o faça (ex: direitos políticos
somente aos homens, não às mulheres; somente à cidadãos, não à
estrangeiros; somente a membros de uma determinada raça ou
religião, não aos das outras). É o princípio da legalidade ou juridicidade,
imanente por natureza a toda ordem jurídica, não importando se essa
ordem é justa ou injusta.
24. A aplicação do princípio da igualdade em relação à produtividade e
renda conduz à exigência: conceder a mesma produtividade igual
participação na renda. Essa é a ordem na qual se fundamenta a ordem
social capitalista, o pretenso direito igual desse sistema econômico (Karl
Marx). Marx diz que se trata de um direito desigual, pois não leva em
consideração a diversidade existente entre os homens no tocante à sua
capacidade de trabalho. . Por isso afirma ser um direito injusto, pois não
leva em consideração a diversidade existente entre os homens no
tocante a sua capacidade de trabalho. é injusto ser considerado igual o
mesmo volume de trabalho realizado por um homem forte e habilidoso
ou por um homem fraco e desajeitado, sendo tal igualdade apenas
aparente, pois se ambos obtiverem a mesma remuneração, receberão
igual por desigual. Igualdade verdadeira e, portanto, justiça verdadeira,
não aparente – conclui Marx – somente poderá ser concretizada numa
economia comunista, onde vale o axioma: cada um conforme suas
capacidades, cada um conforme suas necessidades.
Se esse princípio fosse aplicado a uma economia de produção planejada
(é a estabelecida por uma autoridade central), colocam-se as seguintes
questões: Quais as aptidões de cada um? Para que tipo de trabalho
cada um é capacitado? Qual o volume de trabalho que se pode exigir de
cada pessoa, segundo suas tendências naturais?
É evidente que essas questões não podem ser decididas por cada
indivíduo, de acordo com a sua própria avaliação, mas pelo órgão da
comunidade constituído para tal fim, e de acordo com as normas gerais
estabelecidas pela autoridade social. Quais as necessidades podem ser
satisfeitas? Por certo, somente aquelas para cuja satisfação funcione o
processo de produção planejado, conduzido por uma autoridade
central. E nem mesmo na sociedade comunista do futuro, onde a mão
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central. E nem mesmo na sociedade comunista do futuro, onde a mão
de obra produtiva cresça e todas as fontes de riqueza jorrem com
abundância (Marx), a extensão de sua satisfação poderá ser entregue a
cada um, deve continuar nas mãos da autoridade central. Assim, o
sistema comunista de justiça pressupõe, da mesma forma que a
proposição “a cada um aquilo que é seu” que a resposta às questões
decisivas para a sua aplicação seja dada por uma ordem social positiva.
Embora se trate de uma ordem social determinada, ninguém pode
prever como uma tal ordem, por se realizar num futuro distante, se
realizará, e como serão por ela solucionadas as questões decisivas para
a aplicação do princípio comunista de justiça.
Conclui-se que essa forma proposta por Marx, resumida à norma cada
um conforme suas capacidades, reconhecidas pela ordem social
comunista; a cada um conforme suas necessidades, determinada por
essa ordem visa garantir a satisfação das necessidades do indivíduo , de
forma a existir na sociedade comunista harmonia entre todos os
interesses coletivo e individuais. Portanto, haveria liberdade individual
ilimitada, sendo isso pura utopia que, segundo Marx, será vivenciada no
futuro, tendo como conseqüência a inexistência de conflitos de
interesses, e nesse caso o horizonte muito mais amplo da justiça deverá
ter sido ultrapassado.
25. O axioma denominado regra de ouro “não faças aos outros o que
não queres que te façam” também decorre do princípio da igualdade.
No modo positivo: “o que queres que te façam, faze-o tu também aos
outros”. Em conclusão, ninguém deseja que o outro lhe cause dor, mas
sim que um deseja que o outro lhe cause prazer.
Contudo, se um homem sentir prazer em causar dor ao outro, será um
violador da regra de ouro. Como se comportar contra o violador dessa
regra? É essa a questão da justiça: se ninguém causasse dor a outrem,
somente prazer, não haveria problema algum de justiça. Se, contudo,
aplicarmos a regra de ouro em caso de sua violação, chegaremos à
conseqüência absurda de que não devemos castigar os criminosos, pois
não gostaríamos de ser castigados. Essa interpretação culminaria à
obrigatória conclusão à supressão da moral e do direito que,
certamente, não é a sua intenção. Dessa forma, a regra de ouro deverá
ser entendida no sentido de estabelecer um critério objetivo,
significando: comporte-se perante os outros conforme os outros devem
se comportar perante você, ou seja, comporte-se conforme uma regra
objetiva. Mas como devemos nos comportar? Essa é a questão de
justiça. E a resposta a ela não é dada através da regra de ouro, mas por
ela pressuposta, pelo fato de que é ordem da moral positiva e do direito
positivo que está sendo pressuposta.
KANT
26. Se o critério subjetivo contido no teor da regra de ouro for
substituído por um critério objetivo, por meio de interpretação, a regra
seria a seguinte: comporte-se de acordo com as normas gerais da
ordem social. Essa fórmula tautológica de interpretação da regra de
ouro levou Immanuel Kant à formulação do famoso imperativo
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categórico que é o resultado essencial de sua filosofia da moral e sua
solução para a questão da justiça. Essa formulação diz: aja de acordo
com a máxima que você espera transformar-se em lei geral, ou seja, o
comportamento humano é bom ou justo se for determinado por
normas que o homem, ao agir, pode ou deve esperar que sejam
obrigatórias a todos. Mas quais seriam essas normas? É essa a questão
decisiva da justiça e o modelo do imperativo categórico, conforme os
demais, não dá resposta.
27. Ao se examinar o modelo do imperativo categórico proposto por
Kant, constata-se que a sua aplicação refere-se aos regulamentos d
amoral tradicional e do direito positivo de sua época. Apesar de ser uma
fórmula vazia e compatível com as demais formulações de justiça
(princípio da regra de ouro ou “dar a cada um o que é seu”, a teoria do
imperativo categórico poderá servir de justificação para toda e qualquer
ordem social em geral e para todo e qualquer regulamento em
particular. Essa possibilidade explica porque essas fórmulas, apesar da
sua total falta de conteúdo, ainda hoje são aceitas como respostas
satisfatórias à questão da justiça, e provavelmente ainda o serão no
futuro.
ARISTÓTELES
28. Um outro exemplo bastante significativo de infrutífera tentativa de
se definir o conceito de justiça absoluta através de um método racional-
científico é a Ética de Aristóteles. Trata-se de uma ética de virtude, ou
seja, visa a um sistema de virtudes, entre as quais a justiça é a virtude
máxima, a virtude plena.
Aristóteles afirma ter encontrado um método científico (matemático-
geométrico) para determinar as virtudes, ou seja, para responder à
questão do que seria eticamente bom, pois a virtude é o meio-termo
entre dois extremos, ou seja, dois vícios, um por escassez e o outro por
excesso. Ex: a virtude da coragem, por exemplo, é o meio termo entre o
vício da covardia (escassez de valentia) e o vício da temeridade (excesso
de valentia). Esse é o famoso ensinamento da mesótes. A virtude é o
oposto do vício; se a tendência à mentira é vício, então o apego à
verdade é virtude. A existência de vícios, porém, Aristóteles a pressupõe
como indiscutível; e por vícios entende aqueles que a moral tradicional
de sua época estigmatizava como tais. Conclui-se, portanto, que a ética
da doutrina de mesótes só aparentemente resolve a questão. Persistem
os questionamentos “do que é bom?” e “do que é mau?” , que a ética
aristotélica confia à moral positiva e ao Direito positivo, à ordem social
estabelecida. Portanto, é a ordem social e não a fórmula de mesótes
que determina o que é demais e o que é de menos e com isso também a
virtude, que se encontra a meio caminho entre ambos. Assim, a real
função da fórmula tautológica de mesótes é pressuposta pela ordem
social estabelecida, sendo bom aquilo que está de acordo com a ordem
social vigente.
29. O caráter tautológico da fórmula de mesótes torna-se evidente
quando se aplica à virtude da justiça, sendo (segundo Aristóteles) o
comportamento justo o meio-termo entre praticar o injusto e sofrer o
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comportamento justo o meio-termo entre praticar o injusto e sofrer o
injusto. Assim, a fórmula – a virtude é o meio termo entre dois vícios –
não faz sentido nem mesmo como metáfora, pois o injusto que se
pratica e o injusto que se sofre não são dois vícios ou males: são um
único e mesmo injusto. E a justiça é, simplesmente, o oposto desse
injusto. Conclui-se,pois, que a questão decisiva – o que é injusto – não é
respondida através da fórmula de mesótes , sendo a resposta
pressuposta, considerada pela definição da moral positiva e pelo direito
positivo.
Pelo exposto, conclui-se que o ensinamento de mesótes não visa
determinar a essência da justiça, mas reforçar a validade da ordem
social, estabelecida com base na moral positiva e no direito positivo.
Essa realização, politicamente significativa, protege a ética aristotélica
de uma análise crítica, que evidenciaria a sua falta de valor científico.
O DIREITO NATURAL
30. O tipo metafísico e o tipo racionalista da filosofia do Direito estão
representados na Escola do Direito Natural (Séculos XVII e XVIII, quase
totalmente abandonada no século XIX, mas tornada novamente
influente nos dias atuais). Essa escola afirma existir uma
regulamentação absolutamente justa das relações humanas que parte
da natureza em geral ou da natureza do homem como ser dotado de
razão. A Natureza é apresentada como uma autoridade normativa,
como uma espécie de legislador. Por meio de uma análise da natureza,
podemos encontrar as normas a ela imanentes, que prescrevem a
conduta humana correta, ou seja, justa. Se se supõe que a natureza é
criação divina, então as normas a ela imanentes – o Direito Natural –
são expressão da vontade de Deus. A doutrina do Direito apresentaria,
portanto, um caráter metafísico. Se todavia o direito natural deve ser
deduzido da natureza do homem enquanto ser dotado de razão (o
princípio da justiça pode ser encontrado na razão humana) então
aquela doutrina se reveste de um caráter racionalista. DO ponto de
vista da ciência racional do Direito, o método religioso-científico da
doutrina do Direito natural não entra absolutamente em cogitação.
Entretanto, o método racionalista é sabidamente insustentável. A
natureza como um sistema de fatos, unidos entre si pelo princípio da
causalidade, não é dotada de vontade e não pode, por isso, prescrever
qualquer comportamento humano definido. A partir dos fatos, do que
realmente acontece, não se pode deduzir aquilo que deve ser ou
acontecer, baseando-se em sofisma a tentativa de a doutrina
racionalista tenta deduzir normas do Direito natural como base para o
comportamento humano. Aplica-se o mesmo à tentativa de deduzir tais
normas da razão humana, eis que normas que prescrevem
comportamentos humanos só podem partir de uma vontade, somente
sendo essa vontade humana se excluída da especulação metafísica. A
afirmação de que o homem deve se comportar de determinado modo
só pode ser feita pela razão humana, tendo como premissa um fato de
que, por ato da vontade humana, estabeleceu-se norma que prescreve
tal comportamento. A razão humana pode compreender e descrever,
não prescrever. Encontrar normas para o comportamento humano não
razão é tão ilusório quanto extrair tais normas da natureza.
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razão é tão ilusório quanto extrair tais normas da natureza.
31. Vários adeptos da doutrina do Direito natural deduziram princípios
de justiça extremamente diversos uns dos outros, a partir da natureza
divina, ou os tenham encontrado na natureza humana. Robert Film
(dessa escola) entendeu serem justas a autocracia e a monarquia
absoluta, eis que as únicas formas de governo natural (e por isso
justa).Já John Locke comprova, através do mesmo método, que a
monarquia absoluta jamais pode ser considerada como uma forma de
governo, somente a democracia pode valer como tal, pois apenas ela
corresponde à natureza, e apenas ela, portanto, justa. A maioria dos
jusnaturalistas afirmava que a propriedade individual (com base na
ordem social feudal e capitalista) era um direito natural – portanto
sagrado, inalienável – que a natureza ou razão haviam conferido ao
homem; Por conseguinte, a propriedade coletiva ou a comunhão de
bens , ou seja, o comunismo, eram contra a natureza e a razão e,assim,
injustas. Conclui-se , pois, que os métodos da doutrina do Direito
natural, que se baseiam em um sofisma , pode-se comprovar tudo e,
portanto, nada.
ABSOLUTISMO E RELATIVISMO
32. São Vãos os esforços para encontrar, por meios racionais, uma
norma absolutamente válida de comportamento justo, ou seja, uma
norma que exclua a possibilidade de também considerar o
comportamento contrário do justo. A experiência espiritual do passado
demonstra que a razão humana somente consegue compreender
valores relativos. Isso significa que o juízo, por meio do qual algo é
declarado justo, nunca poderá ser emitido com a reivindicação de
excluir a possibilidade de um juízo de valor contrário. Justiça absoluta é
um ideal irracional. Do ponto de vista racional, há somente interesses
humanos, e portanto conflito de interesses. A solução sempre será ou o
sacrifício de um deles para a satisfação do outro, ou promover um
compromisso entre ambos, pois não será possível comprovar que
somente uma, não a outra solução, seja a justa. Se a paz social é
pressuposta como valor maior, a solução de compromisso pode ser
vista como justa. Mas também a justiça da paz é uma justiça relativa,
não absoluta.
33. Qual é a moral da filosofia de justiça relativista? Será que há alguma?
Será que o relativismo não é amoral, ou até imoral, como pensam
alguns? Não é essa a opinião de Kelsen. O princípio da Moral que
fundamenta (ou do qual se pode deduzir) uma doutrina relativista é o
princípio da tolerância: é a exigência de compreender com benevolência
a visão religiosa ou política de outros, mesmo que não a
compartilhemos, e, exatamente porque não a compartilhamos, não
impedir a sua manifestação pacífica.
Obviamente, numa visão de mundo relativista não resulta o direito à
tolerância absoluta, somente à tolerância no âmbito de um
ordenamento jurídico positivo, que garanta a paz entre os submetidos a
essa justiça, proibindo-lhes qualquer uso da violência, porém não lhes
restringindo a manifestação pacífica de opiniões. Os mais altos ideais
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restringindo a manifestação pacífica de opiniões. Os mais altos ideais
morais foram comprometidos pela intolerância daqueles que os
defenderam. Por exemplo, na inquisição espanhola, em defesa da
religião cristã não foram somente queimados os corpos dos hereges,
mas também sacrificados um dos ensinamentos mais notáveis de
Cristo: Não julgueis, para não seres julgado;Pierre Bayle, um dos
grandes libertadores do espírito humano, fazia objeção àqueles que
acreditam poder melhor defender uma ordem religiosa ou política
vigente por meio da intolerância aos heterodoxos: “Toda desordem
surge da intolerância, não da tolerância” ; José II,imperador da Áustria,
nas páginas gloriosas da carta de Tolerância, escreveu “Se a democracia
é uma forma de governo justa, ela só pode significar liberdade, e
liberdade significa tolerância.”
E se a democracia precisar se defender das intrigas antidemocráticas,
será tolerante? Sim, na medida em que não reprimir demonstrações
pacíficas de opiniões antidemocráticas. É exatamente nessa tolerância
que reside a diferença entre democracia e autocracia. Mas é direito de
qualquer governo , mesmo democrático, reprimir com violência e evitar,
pelos meios adequados, tentativas de derrubá-lo com o uso da
violência. O exercício desse direito não entra em contradição nem com
o princípio da democracia, nem com o princípio da tolerância. Contudo,
é difícil traçar um limite claro entre a propagação de certas idéias e a
preparação de uma insurreição revolucionária. Mas a possibilidade de
manter a democracia depende da possibilidade de encontrar tal limite.
34. Significando a democracia liberdade, e liberdade tolerância,
nenhuma outra forma de governo é mais favorável à ciência que a
democracia. A ciência só pode prosperar se for livre; ela será livre não
somente quando o for externamente, ou seja, quando estiver
independente de influências políticas, mas também quando o for
interiormente, quando houver total liberdade no jogo do argumento e
do contra-argumento. Nenhuma doutrina pode ser reprimida em nome
da ciência, pois a alma da ciência é a tolerância.
Kelsen iniciou este ensaio com a questão: O que é Justiça? Conclui que,
agora, ao final, está absolutamente ciente de não tê-la respondido. Aduz
a seu favor, como desculpa, o fato de estar em ótima companhia (faz
implícita menção aos leitores, uma vez que seria mais do que presunção
fazê-los acreditar que conseguiria aquilo que fracassaram os maiores
pensadores).
De fato, Kelsen assume que não sabe se pode dizer o que é justiça, a
justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Conclui que deve
satisfazer-se com a justiça relativa, e só pode declarar o que significa
justiça para si próprio: uma vez que a ciência é a sua profissão e,
portanto, a coisa mais importante em sua vida, trata-se (a justiça)
daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado
dela, a verdade e sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da
democracia e da tolerância .
II. A IDÉIA DE JUSTIÇA NAS SAGRADAS ESCRITURAS
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O CARÁTER TRANSCENDENTAL DA JUSTIÇA DIVINA
Um dos elementos mais importantes da religião cristã é a idéia de que a
justiça é uma qualidade essencial de Deus, como Deus é absoluto, sua
Justiça deve ser justiça absoluta, isto significa eterna e imutável. Apenas
uma religião cuja divindade é tida como justa, pode desempenhar um
papel na vida social
Do ponto de vista da cognição racional, a justiça absoluta de Deus deve
estar necessariamente em conflito com outra qualidade que é a
onipotência. Se Deus é onipotente, nada do que efetivamente acontece
pode ser contra ou sem o seu desejo.
A idéia de justiça divina absoluta deve ser aplicável à vida social dos
homens. Se a justiça divina deve servir como um padrão da justiça que
os homens estão procurando para a regulamentação de suas relações
mútuas, a teologia deve tentar partir de seu ponto inicial que é a
incompreensibilidade da justiça absoluta, para uma posição menos
rígida – a suposição de que a vontade de Deus, embora incompreensível
pela própria natureza, pode não obstante, ser compreendida pelo
homem de uma ou de outra maneira.
A incoerência da posição torna inevitável que este torneio de
pensamento deva, por fim, retornar ao ponto de partida. Como Deus
existe, a justiça absoluta existe, e, assim, como deve acreditar na
existência de Deus, embora seja incapaz de compreender sua natureza,
o homem deve acreditar na existência da justiça absoluta, embora não
possa saber o que ela realmente significa. A justiça é um mistério – um
dos muitos mistérios da fé.
A JUSTIÇA NA REVELAÇÃO DIVINA E NA MORALIDADE CRISTÃ MODERNA
Para a teologia Deus se revela de duas maneiras: nos seus atos e nas
suas palavras. Se Deus criou o universo pode-se concluir que, toda
criação é sua manifestação de vontade. Em assim sendo, é possível
encontrar a resposta para a questão do que é justo e injusto na
natureza, assim como na história. A doutrina do direito natural
fundamenta-se em um pressuposto , a filosofia hegeliana da história do
outro.
Tanto na natureza como na história, vemos ao mesmo tempo, uma luta
impiedosa em que o mais forte destrói o mais fraco, e o auxílio mútuo.
Nem na análise mais cuidadosa da natureza e da história pode fornecer
um critério para distinguir o bem e o mal; e nossa razão nos diz que não
é possível concluir, a partir do que é , o que deve ser.
A outra revelação – a palavra de Deus nas Escrituras – parece ser uma
manifestação muito mais clara de sua justiça. Mas muitas instituições
apresentadas nas escrituras, diretamente aprovada ou ao menos não
reprovadas por Deus ou pelos homens, por ele inspirados como é o
caso da poligamia, da escravidão a vingança do sangue – estão em
franca oposição ao sentimento de justiça dos cristãos modernos .
Como por exemplo, no famoso parecer que justifica pelo direito divino a
bigamia de Filipe de Hesse, declararam que “o que é permitido na lei
mosaica no que concerne ao casamento não é proibido no Novo
Testamento”.
Não apenas no antigo testamento como no novo testamento a
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Não apenas no antigo testamento como no novo testamento a
escravidão é reconhecida como uma instituição legal e justa, embora
também existam prescrições com o objetivo de restringir o direito do
proprietário e, assim atenuar a situação do escravo. No Levítico 25,6, a
escravidão é apresentada como ordenada por Javé ou, pelo menos
como não incompatível com a lei que transmitiu no Monte Sinai por
meio de Moisés.
Embora a lei de Javé exiba uma tendência para restringir a vingança de
sangue, esse costume surge firmemente estabelecido entre os judeus e
reconhecido por Deus.
Há um procedimento diretamente ordenado por Javé, que tem como
objetivo determinar se uma mulher suspeita cometeu ou não adultério.
Nesse rito, mulher suspeita é obrigada a tomar uma “água amarga que
causa maldição” que desempenha o papel decisivo. O sacerdote que
executa o rito põe nessa água um pó que esteja no chão do tabernáculo
então deve fazer a mulher prestar o seguinte juramento “ Se nenhum
homem deitou contigo e se não te voltaste para os atos indecentes
enquanto casada com o teu marido, fica imune a esta água amarga que
traz a maldição, Mas se erraste enquanto casada com o seu marido e te
maculaste com outros homens além do seu marido, então Javé faça de
ti execração e maldição entre o teu povo, fazendo-te ter um ventre
facilmente fertilizado e ao mesmo tempo abortar”; então esta mulher
deve dizer: “Assim seja, assim seja”. Depois o sacerdote deve escrever as
maldições em um pedaço de pergaminho e depois lavá -las nas águas e
a mulher deve beber a água com a tinta em que as maldições foram
escritas. Se ela for inocente a água não lhe fará mal nenhum, porém, se
for culpada, a água terá o efeito indicado na maldição.
É justamente o elemento mágico do rito que é tão repulsivo ao
sentimento religioso, assim como à idéia de devido processo de Direito
que prevalece entre os cristãos modernos. O mesmo é verdadeiro no
que diz respeito à crença em demônios ou “espíritos imundos” que
penetram nos corpos dos homens e causam doenças mentais,
mencionados nos evangelhos. Segundo estes, o próprio Jesus
acreditava na existência desses demônios e usava seu poder divino para
exorcizá-los.
A REVELAÇÃO DAS ESCRITURAS, CONTRATIDÓRIA ENTRE SI.
A revelação das escrituras não apenas está em algumas partes em
oposição direta à moralidade do cristianismo moderno, como também
é contraditória em si, não menos contraditória que a revelação na
criação.
Por exemplo, quanto ao divórcio, o código Deuterômio, que se
apresenta como um ato de legislação divina, contém uma regra: quando
um homem tomar uma mulher e casar -se com ela, se acontecer que ela
não agrade, porque encontrou nela alguma indecência, poderá
escrever-lhe um ato de divórcio e, colocando-o em sua mão, pode
despedi la de sua casa. E quando ela deixar a sua casa, poderá casar-se
com outro.
Mas quando os fariseus perguntaram a Jesus se era legítimo um homem
divorciar se de sua esposa , Jesus respondeu que marido e mulher
tornar-se-ão um, de modo que não mais sejam dois, mas um. O que
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tornar-se-ão um, de modo que não mais sejam dois, mas um. O que
Deus uniu então o homem não separe.
Pode-se concluir não haver muita dúvida que tratam de duas idéias
totalmente diferentes e incompatíveis entre si, constituem a base da lei
divina como o caso do casamento poligâmico e anulável revelado por
Moisés e a lei divina que institui o casamento monogâmico e inviolável
revelado por Jesus.
Há outra contradição no antigo testamento quanto à questão de ser
justa ou não a responsabilidade individual ou coletiva, e
especificamente a hereditária
Todas essas contradições podem ser facilmente explicadas a partir de
um ponto de vista histórico como diferentes etapas de uma evolução
jurídica. Mas uma interpretação histórica é inaplicável caso as escrituras
devam ser tomadas como a revelação da justiça absoluta e, portanto,
imutável de Deus.
REDISTRIBUIÇÃO E AMOR – DIREITO E JUSTIÇA
O antagonismo entre o princípio da redistribuição e o princípio do
amor, entre a regra: paga o mal com o mal e o bem com o bem e a
regra: ama o teu inimigo e paga o mal com o bem, tem íntima ligação
com esse antagonismo de visões totalmente diferentes da relação
existente entre a justiça e o direito positivo. Segundo uma, a justiça e o
Direito são idênticos, segundo a outra, eles podem entrar em conflito.
Nessa metáfora é expressa uma das idéias básicas da teologia judaica
que a relação entre Deus e o homem é constituída por um contrato, a
aliança que Javé firmou com o seu povo. A idéia de que Deus firmou um
contrato com os homens e que assim como a outra parte desse
contrato, está obrigado por ele é muito característica da tendência para
racionalizar o que, por sua própria natureza é irracional – relação entre
Deus e os homens.
Por meio desse contrato, Javé assume a obrigação de proteger seu povo
e Israel a de ser fiel a Javé e obedecer à sua lei. Javé, por ser um deus
zeloso, insiste acertadamente no cumprimento das cláusulas do
contrato pela outra parte. Tal cumprimento da obrigação contratual de
Javé. Mas a violação pelo seu povo autoriza Javé a punir o infrator da
aliança. Essa é a justiça de Javé. A justiça é a qualidade mais essencial e o
princípio dessa justiça é a retribuição.
A JUSTIÇA DE JAVÉ : A RETRIBUIÇÃO
Antes do ensinamento de Jesus era evidente para o povo judeu que
justiça significava retribuição. Como todos os povos primitivos, os
hebreus, nas primeiras etapas de sua evolução, consideram a natureza
como parte da sociedade e, portanto, explicavam os fenômenos em
termos de vida social, isto é, em primeiro lugar, segundo o princípio da
retribuição.
Qualquer evento que o homem primitivo teme é interpretado como
punição; qualquer evento que deseja, como recompensa de uma
autoridade sobre-humana. Essa interpretação personalista e, portanto,
o social da natureza pode fundamentar no animismo, isto é, na crença
de que todas as coisas são animadas, dotadas de alma que nelas
RE LACION AME N T O
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residem; mas também pode ser a conseqüência do verdadeiro
monoteísmo, segundo o qual a natureza é a criação de um deus
onipotente e, portanto, a manifestação de sua justa vontade. O ato
divino da criação, tal como descrito no Gênesis, é um comando de Deus,
e, como Deus é justo, qualquer evento dessa espécie deve ser
interpretado como merecido pelo homem;se for um mal, como punição
por sua má conduta, se for um bem, como recompensa por sua boa
conduta.
O princípio de retribuição como essência da Justiça de Javé é expresso
por Moises nesta breve fórmula “ vede, hoje estou colocando diante de
vós uma benção e uma maldição: uma benção se obedecerdes aos
mandamentos de Javé, vosso Deus, que vos dou vosso Deus, e se vos
desviardes do caminho que vos estou apontando hoje, e correrdes
atrás de deuses estranhos que não conheceis” ( Deuteronômio11,26 ss.)
Como em quase todas as religiões, a punição e a recompensa não têm a
mesma importância. A punição está em primeiro plano, recompensa em
último, nesse sistema de justiça, especialmente se tiver de ser aplicada,
não diretamente por Deus, de uma maneira transcendental, mas por
homens, na forma de sanções socialmente organizadas.
Que a justiça como retribuição signifique em primeiro lugar punição é a
conseqüência do fato de ser a ameaça de punição por conduta
indesejável – não promessa de recompensa pela conduta contrária – a
técnica específica do direito positivo; e a idéia de justiça sempre reflete
mais ou menos a realidade social tal como manifestada no Direito
positivo.
VINGA-TE MAS AMA AO PRÓXIMO
“Deves amar ao próximo como a um de vós” É um mandamento de
solidariedade nacional e perfeitamente compatível com o princípio da
retribuição.
Essa sentença é precedida pelo mandamento “não deves vingar-te nem
guardar rancor dos membros de tua raça” A proibição geral vingança
certamente está em contradição com a instituição da vingança de
sangue reconhecida em outras partes da Escritura, mas é perfeitamente
compatível com o jus talionis.
Mas essas manifestações esporádicas de uma moralidade do perdão
não são características do Antigo Testamento, que é dominado pela
justiça do igual por igual.
Tratam apenas de princípios políticos que não tem nenhuma relação
com a regra de JUSTIÇA.
A REJEIÇÃO DO PRINCÍPIO DA RETRIBUIÇÃO POR JESUS: A NOVA JUSTIÇA
DO AMOR
Kelsen neste subtópico trata da opisição da “doutrina”pregada por
Jesus em face ao Direito positivado. Para tanto, dividiu o tema em
tópicos comentando sobre o princípio d amor, o que pensava Jesus em
relação a família, aos impostos, ao direito de propriedade, o direito do
homem julgar o próprio homem, relacionando ao tema, diversas
passagens bíblicas, conforme passo a explanar.
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O PRINCÍPIO DO AMOR EM OPOSIÇÃO AO DIREITO POSITIVO
Jesus no Sermão da Montanha diz: “Ouvistes o que foi dito: ‘Olho por
olho e dente por dente’. Mas eu voz digo: não resistais à Injúria; mas, se
te baterem na face direita, oferece a outra face e se alguém quiser
demanda contigo por tua túnica, dá-lhe também o manto. E se alguém
te forçar a andar uma milha, anda duas milhas com ele”. (Mateus 5,38s).
Menciona que a essência do direito positivo está em resistir o prejuízo,
de aplicar o “mal pelo mal” e portanto a sanção tem a mesma natureza
do delito, pois se pratica o mal a alguém que tenha realizado o mal,
inclusive pelo emprego da força; sendo o Estado a organização dessa
força, substituindo o indivíduo prejudicado pelo mal causado. Mas Jesus
ao contrário ensina não julgar para não ser julgado, perdoe para que
seja perdoado. Jesus recusa-se ao direito positivo, pois rejeita o
princípio de se pagar o mal praticado com outro mal praticado ao
causador do mal.
A contrário, prega que devemos amar nossos inimigos e perseguidores,
pois se amamos apenas quem nos ama, não praticamos mérito algum.
Portanto, em vez da Justiça da Retribuição (o mal pelo mal praticado),
devemos aplicar o amor, que não faz nenhuma distinção entre o
malfeitor e o que cumpre a lei, entre o que é bom e o que é mal. Para
ele, a punição do malfeitor provida pelo Direito e pelo Juiz, não pode
estar em conformidade com a justiça divina, a nova justiça: o amor de
Deus.
Kelsen reconhece tratar-se de uma doutrina revolucionária, porque
incompatível com o direito e talvez além da natureza humana, alerta
que o amor de Deus é justiça num sentido transcendental, acima da
idéia racional do homem. Faz uma crítica do ponto de vista da razão
humana, dizendo que a doutrina de Jesus não é a solução do problema
da Justiça na condição de técnica social para a regulamentação das
relações humanas, pois implica a solicitação de abandonar o desejo de
justiça tal como concebido pelo homem.
A DOUTRINA DE JESUS SOBRE A FAMÍLIA
Kelsen e as passagens bíblicas deixam evidentes que Jesus não
respeitou certas prescrições virtuais, exemplos; alimentação (Marcos
7,20); a limpeza (Mateus 15,3ss 20); ao jejum (Marcos 2,18); ao sábado
(Mateus 12,10; Marcos 2,23; Lucas 6,5; 14,1; João 5,10; 9,14). Declarou
ainda o divórcio (que era permitido pela Lei) um crime equivalente ao
adultério, mas pregava que era melhor não casar fundamentando em
diversas razões tais como: “alguns são incapazes de casar-se porque
assim nasceram, alguns porque os homens assim os fizeram e, outros
que assim se fizeram pelo Reino de Deus. Que aceite quem puder.”
(Mateus 19,3).
Trouxe ainda outros ditos de Jesus que equivalem a um não
reconhecimento familiar “Se alguém vier a mm sem odiar o pai e a mãe
e a esposa e filhos e irmãos e irmãs, e a sua própria vida, não poderá
ser meu discípulo.” (Lucas 14,26) e não reconhecia uma das mais
sagradas obrigações de um filho, enterrar o pai morto “Ele disse a outro
‘Segue-me’. Mas ele disse ‘Deixa-me primeiro enterrar meu pai’. Jesus
disse a ele, ‘Que os mortos enterrem seus mortos; tu deves partir e
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disse a ele, ‘Que os mortos enterrem seus mortos; tu deves partir e
espalhar a notícia do Reino de Deus.” (Lucas 9,59).
Seus seguidores não podiam nem ao menos chamar pai ao progenitor
“Não deveis chamar ninguém da terra vossa de pai, pois tendes apenas
um pai, vosso pai celestial” (Mateus 23,9). Reconhecia que seus
ensinamentos poderia sim ter o efeito de dissolver a família (Mateus
10,20). Não lamentava esse efeito (dissolução da família) e até mesmo o
declarava como seu propósito. “Não pensais que vim trazer paz à terra.
Não vim para trazer a paz ma uma espada.
Pois vim para voltar o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e
a nora contra sua sogra, e os inimigos do homem estarão em sua
própria casa. Ninguém que ama o pai e a mãe do que a mim é digno de
mim.” (Mateus 10,34).
Mateus, Marcos e Lucas relatam que Jesus ignorava qualquer relação
com a mãe e os irmãos. Lhe disseram “Tua mãe e teu irmão chamam
por ti lá fora. Ele respondeu, ‘Quem são minha mãe e meus irmãos?’. E
olhando para as pessoas a sua volta respondeu: ‘Aqui estão minha mãe
e meus irmãos. Quem quer que faça a vontade de Deus é meu irmão e
minha mãe’”. (Marcos 3,31; Mateus 12,48 e Lucas 8,19).
O ENSINAMENTO DE JESUS SOBRE OS IMPOSTOS
Kelsen no tocante aos impostos que deveriam ser pagos, leciona que os
ensinamentos de Jesus eram ao menos contrário a Lei existente. Certa
vez indagado sobre pagar o tributo ao imperador Jesus ao solicitar um
denário aos seus seguidores teria-os indagado sobre a efégie e otítulo
ali representados no que tange sua titularidade e, eles lhe disseram
“são do imperador”. E Jesus disse “Pagai ao imperador o que pertence
ao imperador e pagai a Deus o que pertence a Deus.” (Marcos 12,14). Na
verdade Jesus não disse que era certo pagar o tributo ao imperador. Até
reconhecia a marca da propriedade do Imperador, a moeda pertencia
ao imperador, mas isso não tem nada a ver com a obrigação de se
pagar tributo.
Aliás a acusação a qual foi levado a Pilatos era: “Eis um homem que
encontramos desviando nossa nação e proibindo o pagamento de
impostos ao Imperador.”.
Kelsen comenta que tal acusação talvez não fosse infundada, vez que
Jesus acreditava e se considerava Rei Messiânico de Israel e, acreditava
que o Reino de Deus havia chegado, não reconhecendo a autoridade do
Estado romano, que era incompatível com o reino davídico. Então como
poderia acreditar que era certo pagar impostos ao Imperador?
O ENSINAMENTO DE JESUS SOBRE A PROPRIEDADE
É altamente significativo. Assim como a família, a propriedade é
incompatível com seguir Cristo. Proibiu os seguidores de carregar
dinheiro consigo.
Ensina Kelsen “Nem a propriedade nem qualquer tipo de consideração
tem lugar nessa doutrina.”. A bíblia relata vários casos de seguidores
que abandonaram tudo o que tinham para segui-lo, como os irmãos
pescadores Pedro e André onde Jesus disse-lhes: “Vinde e segue-me e
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farei de vós pescadores de homens.”. Jesus menciona ainda que
ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo, o dinheiro
é para ele – mammon – o próprio diabo. Então distinguiu o rico do
pobre, para este relatou a certeza da felicidade no Reino do Céu,
enquanto para aquele (o rico) relatou em um de seus ensinamentos “É
mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um
homem rico entrar no Reino de Deus.”.
Jesus não é contrário apenas ao dinheiro, mas sim a qualquer tipo de
economia. Essa postura antieconômica de Jesus é o resultado de sua
idéia do Reino de Deus, o qual, em sua opinião, era iminente. Pois, no
Reino de Deus, nenhum trabalho é necessário já que Deus alimentará,
vestirá e abrigará diretamente seu povo.
O ENSINAMENTO DE JESUS SOBRE O DIREITO DO HOMEM DE JULGAR O
HOMEM
Trata-se do conflito mais evidente entre o ensinamento de Jesus e a Lei
judaica; o de não mais julgar outras pessoas’. A bíblia relata que alguém
na multidão lhe disse: “Mestre diga a meu irmão que me dê a minha
parte de nossa herança”. E ele disse: “Quem me fez juízo ou arbitro de
vossos negócios?” (Lucas 12,13).
Existe ainda o famoso caso da mulher surpreendida em adultério, onde
lhe disseram “Na lei Moisés ordena que apedrejemos.”. Pressionado
Jesus responde: “Quem não tiver pecado dentre vós, que atire a
primeira pedra.”.
Tais respostas estão em conformidade com o novo princípio de justiça
proclamado – não retribuição, mais sim o amor. E se não há mais
retribuição então o direito positivo não é mais aplicado.
Importante ressaltar que não obstante o tudo dito, na sentença
seguinte, o antagonismo entre o amor de Deus e o julgamento é, de
certo modo, atenuado, pois evidentemente é incompatível com a função
de Jesus como Messias e juiz no juízo final, punindo os pecadores e
recompensando os justos.
A IDÉIA MESSIÂNICA
Kelsen alerta que considerarmos Jesus o pregador da nova justiça do
amor, ou seja, o Messias e Juiz do mundo constitui uma contradição
insuperável na doutrina da justiça. E seus discípulos certamente
acreditavam nele como o Messias.
O REINO DE DEUS COMO REINO DE JUSTIÇA NESTE MUNDO
A idéia do Reino de Deus era o centro do ensinamento de Jesus.
Prevalecia entre os judeus a vinda de um mundo de perfeita justiça e
felicidade. A crença de um segundo paraíso, neste mesmo mundo tendo
a Palestina como Terra Santa e compreendendo todo o mundo, onde a
paz e a prosperidade reinarão, o solo será fútil, a morte não mais
ameaçará a humanidade. Tal paraíso no livro de Enoque é chamado de
Jardim da Justiça (Enoque 32,3; 77,3). Há passagens bíblicas que
descrevem com riqueza de detalhes como será tal paraíso (Isaías 29,18).
O Reino de Deus, pelo menos originariamente era imaginado como uma
comunidade estabelecida nesta terra. Uma organização política do povo
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comunidade estabelecida nesta terra. Uma organização política do povo
Judeu e mesmo na metade do século I a.C., de modo geral pensava-se
no Messias como ser humano, porém havia também a concepção do
Messias como ser-sobre-humano, vindo do céu.
NENHUMA CRENÇA NA IMORTALIDADE DA ALMA
A missão do Messias era realizar a Justiça neste mundo. Essa justiça não
era concebida como retribuição exercida em outro mundo sobre as
almas imateriais e imortais dos homens após a morte. Entre os judeus
da Palestina prevalecia a idéia de que corpo e alma estão
inseparavelmente ligados, de tal modo que uma alma vivendo sem seu
corpo era-lhes estranhas.
A crença de que a alma pode existir sem seu corpo não fora ensinada
em nenhuma parte do antigo testamento. Antes quando se fala na alma,
refere-se ao homem vivo.
No antigo testamento prevalecia a idéia de que os mortos existem no
Xeol (Números 16,33), um lugar de escuridão e pó onde ficam
“dormindo”. O Xeol é a generalização do túmulo.
Nas escrituras não existe nenhuma relação entre Deus e a terra dos
mortos, o Xeol não tem nada haver com a justiça, nesta terra de
esquecimentos não há diferenças entre o justo e o injusto, há um único
destino para todos. A justiça de Deus não é dada a conhecer no Xeol
(Salmos 88,12).
A CRENÇA NA RESSURREIÇÃO DOS MORTOS
Embora não houvesse nenhuma idéia de justiça no Xeol, havia, não
obstante, uma crença na justiça de Deus a ser realizada após a morte. A
crença não estava na imortalidade da alma, mas sim na ressurreição
dos mortos a ser realizada neste mundo, pelo juízo final que inaugura o
reino messiânico.
Primeiramente a idéia era de que somente os justos ressuscitariam do
Xeol, posteriormente passou a acreditar que todos se ergueriam para
que fossem julgados pelo Juízo final.
Como a esperança pela libertação nacional desempenhava um papel
decisivo na crença da vinda do Messias e, consequentemente o Reino de
Deus era concebido como uma restauração do reino darídico – um
reino sobre essa terra, apenas a ressurreição do corpo podia ajustar-se
a esse esquema. A espiritualização da crença na ressurreição e no Reino
de Deus é uma transformação posterior.
O JUÍZO FINAL
Considerava-se que esse julgamento era dirigido não apenas contra os
pagãos e os inimigos e supressores de Israel, mas sim um julgamento
individual de todos os vivos e dos mortos ressuscitados. Um julgamento
universal de toda a humanidade. Tem o verdadeiro caráter de um
processo judicial.
Todos serão julgados exatamente de acordo com os feitos que
cometeram em vida. Segundo uma versão, o próprio Javé seria juiz,
segundo outra, o Messias exercerá este ofício, recompensando os
justos com a vida eterna e feliz e os injustos com a dor eterna no Hades.
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A SEPARAÇÃO DA CRENÇA ESCATOLÓGICA E DA IDÉIA MESSIÂNICA
Originariamente, a crença na ressurreição e no Reino Messiânico
inaugurados pelo juízo final, coincide com a crença escatológica como
crença em um mundo futuro. Posteriormente, surgiram outras idéias
que levaram a uma separação das duas. O desejo de justiça necessitava
que a crença em uma retribuição fosse estabelecida imediatamente
após a morte. No tempo entre a morte e a ressurreição supunha-se que
o destino dos justos e dos injustos não fosse o mesmo (felicidade aos
primeiros e estado de dor aos segundos). Para tanto, para alguns o Xeol
era dividido em compartimentos, de tormento para os injustos e
conforto para os justos. Para outros, os justos vão imediatamente após
a morte para o céu.
A retribuição exercida imediatamente após a morte podia ter apenas
um caráter provisório enquanto existisse a crença no juízo final e na
ressurreição. Contudo, existia uma tendência crescente de que este
paraíso messiânico era apenas uma etapa provisória para se alcançar a
felicidade definitiva. Tal estado transcendental de bem-aventurança,
esperado após o período messiânico, não poderia referir-se a vida física
do paraíso messiânico. Pressupunha a crença na imortalidade da alma
influenciada pela filosofia grega.
Por derradeiro, os judeus para quem Jesus pregou ainda acreditavam
na ressurreição dos mortos e no paraíso messiânico como etapa final.
A IDÉIA QUE JESUS TEM DO REINO DE DEUS
Não é possível separar no ensino de Jesus a esfera messiânica e a esfera
escatológica (parte da teologia que trata do fim dos tempos). O mundo
futuro de justiça coincide com o reino messiânico. Jesus apresenta a
visão de que a era presente é de injustiça e de que a nova era (do Reino
de Deus) trará justiça pela inversão completa das presentes relações
sociais.
O princípio da inversão se verifica nas afirmações de que “muitos que
hoje são os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros”
(Marcos 10, 31). Ou em “bem-aventurados sois vós, que sois pobres,
pois o reino de Deus é vosso (...) mas ai de vós, que sois ricos, pois
tivestes vosso conforto!” (Lucas, 6, 10). Este princípio da inversão é
inteiramente oposto ao mandamento “ama os teus inimigos e ora pelos
que te perseguem”; é uma aplicação da lei da retribuição. É uma justiça
do ressentimento, não a justiça do amor de Deus.
A idéia de retribuição no ensinamento de Jesus. Os Evangelhos atribuem
a Jesus alguns feitos e ditos que não estão inteiramente em
conformidade com seu mandamento de não resistir ao mal e amar o
inimigo. Segundo Mateus, por exemplo, Jesus havia chamado os fariseus
de “hipócritas”, “serpentes”.
Mesmo quando prega a nova justiça do amor em oposição à antiga
justiça da retribuição, Jesus nem sempre se emancipa desta. O amor de
Deus não deve esperar nenhuma recompensa (Lucas, 6, 32), mas Jesus
também diz “se amardes apenas aqueles que vos amam, que
recompensa podeis esperar? “. É o próprio princípio da retribuição que
Jesus aplica ao dizer “todo aquele que me reconhecer perante os
homens eu reconhecerei perante meu Pai no céu (Mateus 10, 32). Jesus
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homens eu reconhecerei perante meu Pai no céu (Mateus 10, 32). Jesus
ensinou “deveis sempre tratar os outros como gostaríeis que eles vos
tratassem. É o princípio da retribuição: igual por igual.
O ensinamento de Jesus sobre o juízo final. Verifica-se a retributividade
especialmente no julgamento no fim da era injusta e no início da era
justa que é anunciado por João Batista, assim como pelo próprio Jesus.
Este é um dia marcado pela retribuição e pelo castigo cruel. “E quem
fala contra o Filho do Homem será perdoado, mas quem fala contra o
Espírito Santo não pode ser perdoado, neste mundo ou no mundo por
vir” (Mateus 12, 24 ss.)
O Reino de Deus está no meio de vós. A afirmação de Jesus de que o
“Reino de Deus alcançou-vos” implica que, na sua opinião, o Reino de
Deus já chegou, de que seus arautos já podem ser vistos. Quando os
fariseus lhe perguntaram quando viria o reino de Deus, ele respondeu
“O Reino de Deus está no meio de nós (Lucas, 17, 21). Essa opinião de
que o reino de Deus está iminente, ou melhor, está presente, é
conseqüência inevitável da crença de que ele é o Messias, cuja missão é
estabelecer esse reino de justiça na terra.
O Reino de Deus como realização de Justiça na terra. Não pode haver
dúvida de que o reino de Deus, tal como descrito nos Evangelhos
Sinópticos, era imaginado, em conformidade com a tradição judaica,
como uma comunidade terrena de homens vivendo fisicamente. Jesus
fala repetidamente em comer e beber no Reino de Deus.
O entendimento de que o Reino de Deus imaginado por Jesus ou por
seus seguidores era uma organização política terrena, resulta do fato de
que acreditavam nele como o rei messiânico de Israel, o profetizado
governante do rei davídico restaurado. Como o rei legítimo deve
descender de Davi, os Evangelhos tentam provar sua descendência,
apesar do próprio Jesus declarar que o Messias não tem que ser o filho
de Davi (Mateus 22, 45). Eles o provam pela ascendência de seu pai José,
marido de sua mãe, Maria, embora, ao mesmo tempo afirmem que
Maria o concebeu pela influência do Espírito Santo. Jesus também, não
rejeitou a crença dos discípulos de que ele era o Messias, rei de Israel.
Ele finalmente admitiu ao sumo sacerdote, assim como a Pilatos, que
era o Messias e o rei de Israel. E foi com base nessa afirmação que foi
condenado à morte.
Por outro lado, é verdade, conforme o autor do Evangelho segundo São
João, Jesus disse a Pilatos “meu reino não é deste mundo” (João 18, 36).
Mas essa declaração não significa – como às vezes se interpreta – que
seu reino está além do seu mundo, que não tem nada a ver com o
domínio deste mundo real. Significa apenas que seu reino origina-se no
céu e que será estabelecido neste mundo por uma intervenção direta e
miraculosa de Deus.
Qualquer tentativa de interpretar o Reino de Deus no ensinamento de
Jesus como um domínio meramente espiritual é incompatível com o
fato de que um elemento essencial desse ensinamento era a crença na
ressurreição. A ressurreição é um elemento essencial no ensinamento
de Jesus sobre o Reino de Deus não apenas porque esse reino é uma
comunidade de seres vivos vivendo nesse mundo, mas acima de tudo,
porque o juízo final, com o qual tem início esse reino, é um julgamento
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“dos vivos e dos mortos” (Atos 10, 42). Como nessa era má muitos
morreram sem a punição ou a recompensa que mereciam, eles devem
ser erguer-se dos mortos para serem trazidos à justiça no dia do juízo
final.
Para levar a cabo o julgamento, o Messias, o Filho do Homem, descerá
do céu sobre as nuvens. É significativo que o Reino de Deus venha do
céu para a terra e não que os homens vão – após a morte – para o reino
do céu. Essa é a idéia expressa na oração, “venha nós ao vosso reino,
seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu” (Mateus 6, 10)
Como haverá o céu sobre a terra, o antagonismo deste mundo
imperfeito e de um outro mundo, perfeito, acabará. O Reino de Deus, tal
como estabelecido após o juízo final, é um mundo perfeito e isso
significa, em primeiro lugar, um mundo absolutamente justo e, neste
aspecto, um mundo sobre-humano sobre esta terra.
É muito característico do Reino de Deus que o dualismo de uma esfera
humana empírica e uma esfera divina transcendental seja abolido. Os
que vivem no reino verão Deus; e isso significa: experimentarão a justiça
absoluta.
A justiça do juízo final: a retribuição. Contudo, a justiça a ser realizada
pelo juízo final nada mais é que a retribuição: o castigo impiedoso dos
maus, a recompensa generosa para os bons; e a punição está em
primeiro plano. Jesus anuncia o juízo final como “os dias de vingança”
(Lucas, 21, 22). O julgamento é a execução da justiça da retribuição. O
“castigo eterno” dessa retribuição divina é inteiramente coerente com o
Deus de vingança do Antigo Testamento, mas incompatível com a nova
justiça, o amor de Deus no Sermão da Montanha.
Foram muitas as tentativas de eliminar as contradições do ensinamento
de Jesus por meio de interpretações mais ou menos artificiais. O
método mais bem-sucedido é diferenciar os ditos autênticos e não-
autênticos de Jesus com base em uma análise histórico-crítica das
fontes. Assim, por exemplo, a passagem decisiva em Mateus 25, 31, em
que Jesus é apresentado como Juiz do juízo final, sentenciando os
malfeitores ao fogo eterno, foi declarada como uma elaboração de
Mateus. Tal método histórico-crítico, porém, não é compatível com o
conceito do Novo Testamento como revelação divina. Por esse método
pode-se reconstruir um sistema de moralidade mais ou menos
coerente no ensinamento de Jesus, mas não se pode eliminar o fato de
que o Novo Testamento contém idéias de justiça contraditórias. Isso é
especialmente verdadeiro no que diz respeito à relação existente entre
os Evangelhos Sinópticos e as Epístolas de Paulo.
O ENSINAMENTO DE JESUS COMPARADO COM O ENSINAMENTO DE
PAULO
A rejeição de Paulo da lei judaica. Foi muitas vezes enfatizado que há
uma diferença entre o ensinamento de Jesus e o de Paulo. Essa
diferença é evidente no que diz respeito à idéia de justiça e de sua
relação com o direito positivo. Quanto à Lei Judaica, Paulo vai muito
mais adiante que Jesus, que tentou sustentar a aparência – pelo menos
em princípio – de que não era contra a Lei. Mas Paulo declarou
abertamente “agora a Lei não se aplica mais a nós” (Romanos 7, 6). “que
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abertamente “agora a Lei não se aplica mais a nós” (Romanos 7, 6). “que
ninguém é aceito por Deus como justo por obedecer à Lei é evidente,
pois o justo terá vida por causa de sua fé, e a Lei não tem nada a ver
com a fé” (Gálatas 3, 10 ss).
Contudo, a “Lei” contra a qual Paulo erguia sua voz eram antes as
disposições rituais do código judaico. Pois ele reconhecia e confirmava,
de acordo com a vontade de Deus, as principais instituições jurídicas do
Direito positivo de seu tempo: a família baseada no casamento, a
propriedade baseada no trabalho e o governo firmemente estabelecido
no Estado.
O ensinamento de Paulo quanto ao casamento e à propriedade. A visão
de Paulo sobre o casamento traz uma contradição, pois em certas
passagens o afirma como o menor de dois males (seria bom para o
homem ser solteiro, porém haveria tanta imoralidade que a união com
uma esposa seria algo necessário); contudo o declara como instituição
tão sagrada quanto a relação entre Cristo e a Igreja.
A contraposição entre Jesus e Paulo se acentua em certos temas. O
primeiro ensinou: “renuncia a tua profissão, não trabalheis para
satisfazer às necessidades de teu corpo, pois Deus cuidará de ti”. Como
depois da morte de Jesus, os novos cristãos acreditassem que o Reino
de Deus estava próximo, havia certo perigo de que os crentes
considerassem o trabalho supérfluo, o que poderia causar sérias
dificuldades políticas. Assim, Paulo ensinou “Se alguém se recusar a
trabalhar não lhe dês comida”.
O próprio Paulo ganhava o sustento fazendo tendas, ao passo que
Jesus, quando se tornou pregador, parece ter deixado de exercer a
profissão de carpinteiro. Jesus ordenou que seus discípulos não
carregassem dinheiro em seus bolsos; mas Paulo fez coletas
organizadas de dinheiro para o “Povo de Deus”, isto é, para a
comunidade dos primeiros cristãos em Jerusalém.
Jesus ensinou que um homem rico não poderia entrar no Reino de
Deus, mas Paulo apenas pedia que os ricos desse mundo fossem
também ricos em generosidade, acumulando um valioso tesouro para o
seu futuro. Paulo até mesmo reconheceu a escravidão como instituição
jurídica não incompatível com a nova justiça do amor.
O ensinamento de Paulo sobre a autoridade estabelecida. Jesus não
pregava que se pagassem impostos e não reconhecia nenhuma
autoridade terrena, mas Paulo ordenou expressamente aos cristãos
que “pagassem impostos aos homens autorizados a recebê-lo”. As
autoridades existentes do Império Romano – que para Jesus eram o
reino de Satanás – são agentes de Deus. Assim: “o homem que faz o
certo não tem que temer os magistrados, como tem o malfeitor. Se não
queres temer as autoridades, faz o certo e eles te recomendarão por
fazê-lo pois são agentes de Deus para fazer-te bem.
Paulo traz uma aplicação do princípio: a cada um o seu, segundo a lei
existente. A doutrina de Paulo não implica apenas um reconhecimento
sem reservas do Direito positivo do Império Romano e da autoridade
estabelecida desse Estado; é a justificação mais elevada possível de
qualquer Direito positivo e de qualquer autoridade de Estado
estabelecida, e, portanto, do princípio da retribuição como uma
manifestação da vontade de Deus.
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manifestação da vontade de Deus.
A IDÉIA MÍSTICA DE JUSTIÇA DE PAULO
A interpretação de Paulo da justiça do amor. Após insistir na obediência
incondicional à lei do Estado e de, assim, reconhecer a retribuição como
o princípio da justiça, Paulo afirma: “não devas nada a ninguém – exceto
o deve do amor mútuo, pois quem quer que ame seus semelhantes,
satisfaz plenamente à Lei.”
Paulo questiona se esse amor é compatível com a Lei baseada no
princípio da retribuição: “É errado em Deus – estou usando termos
humanos comuns – infligir castigo?” E responde: “de maneira nenhuma!
Pois como ele poderia julgar o mundo?“ (Romanos 3, 5). Nas cartas de
Paulo, a vingança, a raiva e a ira de Deus não são mencionadas menos
vezes que o amor de Deus.
Paulo repete o ensinamento de Jesus: “não pagueis o mal com o mal”,
“não te vingues”; mas acrescenta, “deixa espaço para a ira de Deus, pois
a Escritura diz, ‘A vingança a mim, eu me vingarei, diz o Senhor’”
(Romanos 12, 17 ss). E, imediatamente após proclamar a justiça do
amor, ele apresenta sua doutrina de que as autoridades estabelecidas
do Estado são instituídas por Deus e, assim, deve ser considerada a
vontade de Deus que os malfeitores sejam punidos por essas
autoridades.
A espiritualização do Reino de Deus no ensinamento de Paulo. Ao
contrário de Jesus, Paulo, ao reconhecer a autoridade legal do Império
Romano, não podia sustentar a crença no Reino de Deus como
restauração do Estado judeu estabelecido neste mundo. O Reino de
Deus tinha de ser transformado em uma ideologia puramente religiosa
e apolítica por meio de sua transferência desse mundo para um mundo
transcendental, de modo que parecesse inofensivo para a polícia
romana. Essa espiritualização do reino de Deus e, especialmente, do
elemento mais essencial, a ressurreição dos mortos, é a contribuição
mais importante de Paulo à crença cristã.
Paulo ao explicar a ressurreição diz que existe um corpo físico, mas
também um espiritual; mas que não é o espírito que vem primeiro, mas
o físico, e então o espiritual. Não é um corpo físico, mas um corpo
espiritual que é erguido dos mortos, então a destruição da morte
significa a imortalidade da alma e então “o reino de Deus não é uma
questão do que comemos ou bebemos, mas da justiça, da paz e da
felicidade por meio da posse do Espírito Santo” (Romanos 14, 17).
Justiça: o segredo da fé. A tentativa de Paulo espiritualizar o Reino de
Deus certamente não é causada apenas pela intenção de evitar um
conflito direto com as autoridades romanas. Está intimamente ligada a
uma tendência geral dos sentimentos religiosos de Paulo, sua inclinação
para o irracionalismo e o misticismo. Ele estava inteiramente consciente
da contradição entre o princípio da retribuição e o princípio do amor.
Mas tal contradição existe apenas do ponto de vista da compreensão
humana; é relevante apenas dentro da sabedoria deste mundo, não
dentro da sabedoria misteriosa de Deus.
A sabedoria de Deus – o que implica a sua justiça – é um mistério e a fé,
nada a mais além da fé, permite-nos apreender essa justiça. Paulo
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afirma que apenas a fé ensina pelo amor e que esse está além da
compreensão humana. Por esse motivo, a justiça do amor permanece
um segredo.
O resultado final do ensinamento de Paulo, que é a base da teologia
Cristã da justiça, pode ser formulado da seguinte maneira: existe uma
justiça humana, relativa, que é idêntica ao Direito positivo, e uma justiça
absoluta, divina, que é o segredo da fé. Portanto, não existe nessa
teologia nenhuma resposta à questão do que é justiça, uma questão da
razão humana que se refere a um ideal que não é necessariamente
idêntico a todo Direito positivo e que pode ser realizado neste mundo.
III. A JUSTIÇA PLATÔNICA
PARTE I
A marca da filosofia platônica é um dualismo radical. Não é um, mas são
dois os mundos que Platão enxerga, quando, com os olhos da alma,
contempla um domínio transcendente, sem espaço nem tempo, da
IDÉIA, da coisa-em-si, da realidade absoluta, verdadeira, do ser sereno, e
quando a este domínio transcendente ele opõe a esfera espaço-
temporal da percepção sensória – uma esfera de DEVIR EM
MOVIMENTO, que ele considera ser apenas um domínio da semelhança
ilusória, um domínio em que a realidade é um não-ser.
Esse dualismo protéico, multiforme é, na análise final e no seu sentido
mais primitivo, a oposição entre o bem e o mal.
Na filosofia platônica, o ético mantém uma posição de importância
inequivocamente primordial. É apenas na esfera da ética que o
pensamento puro, libertado de toda experiência sensorial, é possível.
Esse pensamento é, pela sua própria natureza, voltado para o ideal
ético.
O objetivo que Platão se esforça em alcançar a partir dos pontos de
vista mais diversos e com a maior energia, da primeira à última de suas
obras, é o bem absoluto. O bem, contudo, é inconcebível separado do
mal. Se o bem deve ser o objeto da cognição, então a cognição deve
também reconhecer o mal; e isso é verdade na filosofia platônica, que
não é - de nenhuma maneira- uma doutrina do bem como geralmente é
apresentada, mas uma especulação sobre o bem e o mal.
A idéia do bem na representação platônica destaca-se mais claramente
que a concepção do mal; as reflexões concernentes ao bem são
desenvolvidas com mais força e clareza que aquelas que têm o mal
como seu objeto.
Apenas em um período tardio de sua criatividade o mal se tornou uma
realidade, um ser para Platão, e isso só depois de forçado a atribuir ao
DEVIR, o representante do mal no dualismo ontológico, originalmente
desqualificado na condição de não-ser, uma espécie de existência ou ser
real. É por isso que a concepção original do dualismo platônico sustenta
que apenas o mundo da IDÉIA, que é o MUNDO DO BEM, participa da
existência real, ao passo que o MUNDO DAS COISAS, do DEVIR, deve ser
considerado como não-ser (esse mundo empírico da realidade sensória,
perceptível, o mundo temporal dos eventos concretos, é o mundo do
mal, na medida em que está em oposição ao mundo do bem).
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mal, na medida em que está em oposição ao mundo do bem).
O pensamento que se volta para o verdadeiro ser deve ser colocado
acima da percepção sensorial dessa aparência de ser; a ética deve ter
precedência sobre a ciência natural, para que o bem, o que deve ser,
possa ser afirmado como realmente sendo.
A visão estabelecida pela cognição científica, voltada para a realidade da
experiência sensória, isto é, para uma explicação do mundo, é
radicalmente invertida pela visão ética, voltada para o valor e a
justificação do mundo.
Em geral, o processo de tornar relativa essa oposição fundamental de
bem e mal é uma das pontes por sobre as quais o pensamento humano
passa da ética para a ciência natural. O ponto decisivo nesse processo é
esse: não apenas o bem, mas também o mal é concebido como ser,
como realidade; consequentemente, a realidade empírica é percebida
não apenas como mal, mas também como bem, como uma mistura de
bem e mal.
Na concepção platônica original da estrutura do mundo, encontra-se
claramente presente uma inclinação para tornar absoluto esse
dualismo fundamental de bem e mal. Entre os dois mundos em que se
divide todo o universo, Platão pressupõe uma oposição implacável.
Por outro lado, há indícios na doutrina platônica de uma tendência para
tornar relativos esses opostos. Assim, vê-se na sua obra um dualismo
empedernido, que não tolera pontes por sobre as quais a cognição
possa passar de um mundo para o outro, e um profundo pessimismo,
que nega esse mundo e a possibilidade de conhecê-lo, para afirmar
aquele outro mundo em ser e saber.
É extremo porque nega a possibilidade da ciência empírica e proclama
como único objeto de cognição verdadeira o que se encontra além da
experiência. Ao mesmo tempo, ele está obviamente tentando preencher
de alguma maneira o abismo entre os dois mundos por meio da
introdução de um meio-termo – um mediador para a oposição
implacável desses produtos da especulação dualista.
PARTE II
A atividade intelectual dos grandes moralistas está enraizada na sua
vida pessoal num grau muito maior do que nos outros pensadores,
porque toda especulação sobre o bem e o mal origina-se de uma
experiência moral profunda.
O curso da vida de Platão é determinado essencialmente pela paixão do
amor, do Eros platônico. A imagem da vida de Platão que se pode ver a
partir dos documentos deixados por ele não retrata a natureza fria,
contemplativa de um erudito que se contenta em olhar o mundo
meramente como um objeto de conhecimento. Antes, surge um espírito
sacudido pelas mais violentas paixões, um espírito humano em que vive,
em íntima e inextricável união com seu Eros, uma vontade indômita de
poder, de poder sobre homens.
Seu objetivo era formar homens e reformar sua comunidade. Assim,
não há nada com o qual seus pensamentos mais se preocupem do que
com a educação e o Estado.
A paixão pedagógica e política de Platão têm sua origem em seu Eros.
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A paixão pedagógica e política de Platão têm sua origem em seu Eros.
Esse Eros é a fonte dinâmica da filosofia platônica e é a natureza do Eros
que determina a relação pessoal de Platão com a sociedade em geral e
com a sociedade democrática de Atenas em particular. Do mesmo
modo, é a explicação de sua fuga do próprio mundo que ele deseja
dominar, para melhor modela-lo segundo o seu desejo.
Esse Eros, o amor pelos jovens, coloca Platão em oposição à sociedade,
pois não surge nele como expansão e enriquecimento da vida sexual
normal. A natureza de Platão exclui a vida sexual normal. Via de regra,
os que amavam belos jovens tinham também uma esposa e um filho em
casa, como Sócrates; mas nenhuma mulher desempenhou qualquer
papel na vida de Platão. O casamento, que era envolto por um halo de
santidade pela religião grega, e a família, que era um elemento
fundamental do Estado grego, permaneceram estranhos a Platão, que
passou a vida em um círculo de homens.
Sentia-se incapaz de cumprir o mais importante dever patriótico: o
dever de prover o Estado de novos cidadãos, gerando filhos legítimos; e
isso deve ter sido tanto mais doloroso porque sua postura intelectual
voltava-se contra o declínio moral da época e tinha como objetivo o
restabelecimento da moralidade ancestral.
Fora do domínio da cultura dórica, especialmente em Atenas, a
pederastia era vista com desprezo; Aristóteles estigmatizou-a na sua
“Ética a Nicômaco” como um vício antinatural. Mesmo o direito penal
ateniense exibe uma nítida tendência de oposição à pederastia.
Em “O Banquete e Fedro”, Platão defende o seu Eros que ama meninos
contra a visão oficial, confessando-o ele próprio, embora apenas na sua
forma espiritualizada. Mas esse Eros foi caracterizado pelo velho Platão,
em sua última obra, como perigoso para o Estado, como a fonte de
inúmeros males tanto para os indivíduos como para Estados inteiros.
Isso foi escrito indubitavelmente em uma época em que Platão se
libertara da tirania desse Eros.
Como jovem e como homem, ele evitou o conflito aberto apenas por
meio do esforço que fez logo desde o início, com energia inigualável e
grande força moral, para espiritualizar esse Eros. Platão explica a visão
do amor por meninos como o primeiro passo no caminho do
conhecimento do bem. Ele despe seu Eros da sensualidade que é a sua
própria natureza, sublimando-o completamente sob a pressão das
visões sociais e de suas próprias convicções morais.
É em “O banquete” que o filósofo justifica seu Eros, assim justificando-se
ao mesmo tempo justificando o próprio mundo. Á questão de Sócrtates
quanto à real natureza de Eros, Platão faz com que a profetisa Diotima
responda: “Ele é um grande espírito e, como todos os espíritos, é
intermediário entre o divino e o mortal (...) o medidor que cobre o
abismo que os divide e, portanto, nele tudo é unido”. O que
originalmente dividiu o mundo platônico agora une-o novamente. Eros
produziu a separação; Eros é responsável pela reunião.
Com isso, o dualismo platônico assume um viés otimista. Com a
tendência de tornar relativa a oposição entre bem e mal, a filosofia
platônica volta sua atenção para este mundo e almeja um mundo
unificado que abranja a natureza. A natureza que ele compreende não
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será considerada meramente a partir de um ponto de vista ético, isto é,
como algo que DEVE SER ou NÃO DEVE SER, mas será concebida como
algo que É, porque não é mais concebida como absolutamente má e,
portanto, como NÃO-SER, mas como participante – em diferentes graus
– do ser real. Essa nova direção o reconduz à sociedade e ao Estado.
Platão afirma repetidamente que o Eros que ama meninos, se é
espiritualizado, é uma forma procriadora. Por intermédio da profetisa
ele faz saber que os mais belos filhos propagados pelo seu Eros
espiritual incluem não apenas a poesia e as obras de escultura, mas
também as artes da ordem social, das constituições, das leis e das
obras da justiça. Esses são, pois, os filhos que seu Eros desejava: as
melhores leis, a ordem justa do Estado, a educação correta da
juventude.
Revela-se aqui de maneira mais clara a conexão íntima que existia entre
o Eros platônico e sua vontade de poder sobre homens, entre suas
paixões eróticas e pedagógicas.
PARTE III
O estudo recente de Platão abalou a crença de que ele era um filósofo
teórico que tinha como objetivo o estabelecimento de uma ciência
rigorosa. Hoje, sabe-se que Platão era por temperamento mais um
político que um teórico.
Considerando que a sua vontade política ética era inteiramente fundada
na metafísica, e, consequentemente, expressa em uma ideologia
religiosa declarada, suas obras dão a impressão não tanto de um
sistema erudito de ciência moral, mas de uma profecia do Estado ideal.
Na sua obra “Epístola VII”, Platão confessa que seu real desejo, da
juventude em diante, foi a política, e que esperou toda a sua vida pelo
momento oportuno para agir. O seu desejo mais ardente é o domínio
do Estado. Para ele, o poder deve residir na única filosofia verdadeira,
na única que conduz ao conhecimento da justiça e torna legítima a
pretensão de domínio: a filosofia platônica.
A Academia que Platão fundou logo após seu retorno da primeira
viagem que fez para a Sicília (Academia Platônica) foi especialmente
incentivada pelos círculos aristocráticos. Consistia em uma comunidade
fundada na religião platônica e no Eros platônico. É particularmente na
função política da Academia, no seu caráter como preparação para a
vocação estadista, que se reconhece o seu objeto primário. As
tendências decidiamente antidemocráticas e aristocráticas da Academia
fizeram dela um baluarte do pensamento reacionário: mas ela não era
apenas o centro de educação de polícos conservadores – era,
igualmente, o centro da atividade política.
A postura da Academia Platônica correspondia à posição intelectual
fundamental de Platão, para quem a educação era a compensação para
a política e a escola a virtual célula do Estado ideal. Voltava-se nem tanto
para a ciência exata como para a especulação ética e mística. Assim, foi
a escola corretamente denominada “seita metafísica”.
Platão recorre mais e mais a mitos quando deseja explicar o que
considera essencial. Nenhum homem de ciência faria isso. Ele descobre
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considera essencial. Nenhum homem de ciência faria isso. Ele descobre
algo mais elevado e mais importante que a teoria exata junto ao seu
coração e, ao tentar dar-lhe expressão, fala mais com palavras
proféticas obscuras, como um vidente do mundo além, do que como
um cientista do mundo.
Há um significado profundo no fato peculiar de Platão nunca surgir
como o representante das opiniões desenvidas nas obras que levam o
seu nome; ele apresenta essas visões por meio da pessoa de Sócrates,
depois por meio de outro, o Estranho Ateniense. Esse é o verdadeiro
motivo da escolha dos diálogos. Sem dúvida essa forma literária atraía
sua natureza dividida, dilacerada como era por um conflito trágico.
Ora, quem poderia sentir mais agudamente que Platão a necessidade
de dar ao adversário, além de a si mesmo, uma oportunidade de falar?
Ele tinha esse adversário no próprio peito, e apenas permitindo que
falasse podia livrar-se desse conflito interior.
Assim, descobriu nesse tipo de apresentação uma escapatória possível
da necessidade de identificar-se com qualquer teoria.
Platão é, pois, um poeta no sentido de que se preocupa pouco com o
que dizem seus personagens; se suas declarações são mais ou menos
verdadeiras é questão de pouca importância para ele. Aquilo a que
Platão dá suprema importância é o efeito produzido por essas falar. Ele
é realmente um dramaturgo, exceto pelo fato de o efeito por ele
desejado não ser estético, mas de natureza religiosa e moral.
A ciência, para Platão, assim como para os pitagóricos, é apenas um
meio para um fim.
Conhecer o mundo, seja como natureza, seja como sociedade, é um fim
inteiramente diverso daquele de determinar o mundo pela vontade, de
formá-lo ou reformá-lo, de educá-lo ou dominá-lo. É uma lei vital de
todo conhecimento puro que ele seja desenvolvido por si só. Essa lei
aplica-se especialmente às ciências sociais, pois quando essas ciências
são colocadas a serviço da política elas não mais servem o ideal de
verdade objetiva, mas devem tornar-se uma ideologia de poder.
Quão grande era a tendência da filosofia platônica nessa direção é
indicado pela concepção de verdade de Platão, a verdade platônica, tão
característica que, juntamente com o amor platônico, pode ser tomada
como elemento essencial do pensamento platônico.
PARTE IV
Platão diz que no Estado ideal (que é o Estado governado pela filosofia
platônica), o governo deve usar algumas fraudes e engodos para o
“bem-estar dos governados”.
Exemplo (regulamentação estatal do controle de natalidade): os casais
selecionados sob orientação estatal para o propósito de propagação
devem ser enganados para que não se considerem meramente
instrumentos nas mãos do governo. Devem acreditar que o destino
(por meio de sorteio) designou-os uma para o outro.
O interesse do Estado, para Platão, está acima de tudo em importância
– até mesmo acima da própria verdade. “Os fins justificam os meios”
destaca-se claramente como um princípio da teoria política platônica; e
essa máxima é uma consequência direta da primazia assumida pela
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essa máxima é uma consequência direta da primazia assumida pela
vontade sobre o conhecimento, da justiça, sobre a verdade.
No diálogo “As Leis”, Platão faz um grande número de propostas
surpreendentes. Para engendrar e garantir uma postura adequada por
parte dos cidadãos, propõe dividi-los em três coros: um para meninos,
outro para jovens e um para velhos. Será exigido desses coros que
cantem as canções prescritas pelo governo, que devem incorporar
ensinamentos úteis ao Estado – acima de tudo, devem proclamar o
ensinamento de que a justiça conduz à felicidade e a injustiça à
infelicidade. Assim, a crença na verdade desse ensinamento é
propagada.
É concebível que haverá oposição a esse programa da parte dos velhos,
pois com o avançar dos anos é natural que sintam relutância para
cantar e dançar. Assim, será necessário providenciar para que os
membros do terceiro coro sejam induzidos à embriaguez, sob a direção
de um funcionário do governo, assim eles podem ser manejados
facilmente como crianças.
Platão formula o famoso símile dos homens como fantoches nas mãos
da divindade, do operador divino do espetáculo de fantoches. De modo
similar, o governo, que é o representante da divindade, pode manipular
os fios enquanto se mantém tão invisível quanto pode. A única
justificatica desse procedimento é que isso contribui para os melhores
interesses do homem e apenas desse modo a justiça pode realizar-se.
Platão faz outras propostas que visam obrigar a ciência, a poesia e a
religião, na sua função de produtoras de ideologia, a servir o Estado.
Talvez não seja surpreendente descobrir que Platão como político ou
teórico da política adote uma posição similar à do pragmatismo, que
declara que o que é útil para o Estado e, portanto, constitui a justiça,
constitui igualmente a verdade.
Não se pode, porém, escapar à impressão ocasional de que Platão, em
sua capacidade de epistemologista e psicólogo, está fazendo a ressalva
de uma possível dualidade da verdade, embora não diga diretamente.
De que outra maneira podemos explicar o fato de desenvolver, por um
lado, sua teoria das idéias com uma pronunciada tendência monoteísta
e, ao mesmo tempo, afirmar a religião oficial do povo, que, com sua
multiplicidade de deuses, era inteiramente incompatível com esse
monoteísmo?
A inclinação é, antes, admitir que Platão estava bem consciente dessas
contradições em sua doutrina, que elas representavam para ele graus
diferentes de verdade, análogos aos diferentes graus do Eros. Ele
considerava, assim, a verdade político-religiosa mais importante e,
portanto, ela ocupa uma posição de primazia diante da verdade
racional.
PARTE V
Os diálogos escritos por Platão na juventude, enquanto ainda estava
sob a influência de Sócrates, nos quais trata direta ou indiretamente do
problema da justiça, perdem-se em uma análise estéril de conceitos, em
tautologias vazias.
Característico desse período inicial de Platão é o “Trasímaco”, obra
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Característico desse período inicial de Platão é o “Trasímaco”, obra
provalmente iniciada antes da primeira viagem de Platão à Siracusa.
Não foi inteiramente completada, mas incorporou-se posteriormente
ao primeiro livro de “A República”. Essa seção finalmente se encerra
com a declaração de Sócrates de que, para ele, o resultado de toda a
discussão é meramente a informação de que ele não sabe nada, pois a
questão real e decisiva quanto à essência da justiça não foi discutida. Na
medida em que não se sabe o que é justo, não se pode decidir se o justo
é ou não uma virtude ou se o homem justo é ou não feliz.
Quando Platão deixou incompleto o se “Trasímaco”, encontrava-se no
momento decisivo da sua vida, às vésperas de uma viagem à Itália
meridional, onde se familiarizou com a metafísica política e religiosa da
escola pitagórica. Esse pitagorismo tornou-se um novo guia, um guia ao
qual permaneceu fiel durante todo o resto da vida. Ele acreditada ter
encontrado no Pitagorismo a resposta para a questão mais premente: o
mistério da justiça.
A essência da doutrina pitagórica é a crença de que após a morte a alma
do homem será punida pelo mal e recompensada pelo bem. Essa
metafísica de um mundo futuro de almas, ou da metempsicose, indica
uma doutrina de justiça cuja essência é a retribuição.
Essa é a doutrina apresentada por Platão no diálogo “Górgias”. As
principais teses morais dessa obra são que é melhor sofrer a injustiça
que cometê-la, e que é melhor submeter-se à punição jurídica que
escapar dela.
Essa crença profética, de que a justiça é a retribução no outro mundo,
dominou a obra de Platão desse ponto até a sua morte.
A ligação íntima entre as doutrinas platônicas da alma e da justiça é
óbvia, não apenas no fato de ele sempre apresentar uma em conjunção
com a outra, especialmente na sua obra principal sobre a doutrina da
alma, “Fédon”, mas igualmente nas modificações pelas quais passa a
doutrina da alma.
A crença na concretização da justiça no outro mundo compele à
concepção de uma existência futura da alma; a necessidade de uma
cognição da natureza da justiça conduz à concepção de uma
preexistência da alma, à teoria do conhecimento como reminiscência do
que foi visto pela alma no outro mundo, antes de seu nascimento nesse
mundo. E aí se encontra o germe da doutrina das idéias. O que a alma
viu na sua preexistência são idéias e, acima de tudo, a idéia de justiça.
Poderia parecer que, com a fórmula da retribuição, Platão teria dado
resposta à natureza da justiça. Entretanto, essa resposta é apenas uma
resposta aparente; ela não oferece nenhuma informação real quanto à
natureza da justiça. Fundamentalmente ela revela apenas a função
concreta do direito positivo, que meramente vincula o mal do delito ao
mal da sanção como sua consequência. Ela reflete apenas a estrutura
externa da ordem social existente, que é uma ordem coercitiva. Essa
ordem é justificada pela representação do mecanismo de culpa e
punição como um caso especial de um princípio geral que – como
vontade da divindade – é a lei da retribuição.
Considerado por si mesmo, o conceito de retribuição é tão vazio quanto
o de igualdade, que é geralmente considerada a característica da
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justiça. Na verdade, a retribuição é ela própria uma fórmula de
igualdade, já que não faz nada mais além de que o bem será para os
bons, o mal para os maus, o semelhante para os semelhantes. Mas o
que é o bem, o que é exatamente a natureza desse bem do qual o mal
deve ser a negação? A questão quanto à natureza da justiça resume-se à
questão quanto à natureza do bem.
O bem é, assim, a substância da justiça, e por esse motivo Platão
identifica-os frequentemente. Então, a justiça, na medida em que se
refere a assuntos terrenos, é o Estado, que funciona como o aparelho
coercitivo da retribução. É o Estado que deve garantir o triunfo do bem
sobre o mal neste mundo.
Portanto, parece que a obra chamada "A República" tem como objetivo
fornecer uma resposta para a questão da substância da justiça. O seu
ponto central está na explicação do problema do bem, e é por esse
motivo que a culminância dessa obra sobre o Estado é a teoria das
idéias, a maior das quais parece ser a idéia do bem.
O que é realmente o bem, porém, não se descobre nesse diálogo, que
se restringe à afirmação de que o bem existe. Assim, a construção do
Estado ideal que Platão delineia em "A República" não é uma solução
dos problemas materiais referentes à natureza da justiça. É um
equívoco supor que o relato platônico do Estado verdadeiro ofereça o
plano acabado de uma ordem estatal.
Na vida da sociedade, ele exibe apenas as condições de organização sob
as quais a vida presumivelmente irá se moldar para os fins da justiça,
mas não explica essa vida justamente regulada, nem indica a
multiplicidade das normas que regulam as relações humanas e que
constituem elas próprias a essência da justiça. Não se encontra
nenhuma norma geral para regulamentação da vida do povo, que se
submete às duas classes reinantes (filósofos e guerreiros). Tudo é
deixado às decisões individuais do governo, que é composto de
filósofos, que, por causa de sua educação, conhecem e, portanto,
querem o bem. Mas em que consiste esse bem que deve realizar-se no
governo? Qual é a substância dos atos de governar? Apenas da resposta
a essas perguntas pode-se apreender a natureza da justiça.
O próprio Platão diz que a descrição da divisão tripartite do organismo
social como constituição do verdadeiro Estado não deverá, de nenhuma
maneira, ser considerada uma resposta à questão da natureza da
justiça. Isso demonstra a peculiaridade de seu método, o adiamento
contínuo da solução de problemas.
Platão tem consciência desde o início de que a tentativa de alcançar a
natureza da justiça por meio de uma analogia entre Estado e indivíduo
não será bem-sucedida, pelo menos não completamente. É realmente
esse o caso. Depois de estabelecido o paralelo e encontradas as três
partes da alma que correspondem às três partes do Estado, poder-se-ia
crer que a resposta à questão da justiça é óbvia, embora não
particularmente significativa. Essa resposta seria que as três partes da
alma (racional, espiritual e aquela onde residem os apetites) cada uma
delas exercerá a sua própria função e nenhuma outra. Segue-se, assim,
uma comparação da justiça com o bem-estar da alma, o que nada mais
exprime além da constituição correta da alma, e, portanto, não
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exprime além da constituição correta da alma, e, portanto, não
esclarece a analogia entre as constituições da alma e do Estado. Após se
desviar um tanto longamente do tema devido, Sócrates retorna a sua
observação de que, na verdade, é necessário um caminho mais longo e
detalhado para que se compreenda a natureza da justiça. Assim, em
uma etapa de certo modo avançada do diálogo (presente no livro "A
República"), o conhecimento que foi até então alcançado quanto à
natureza da justiça é novamente negado.
Mal uma resposta para a questão parece ter sido encontrada, a posição
atingida é abandonada; o resultado obtido é rejeitado como inexato ou
errôneo, e o fim é novamente adiado. Platão deixou a natureza do bem
em si nesse estado insatisfatório não apenas para o presente, mas para
a eternidade, e não apenas em "A República", mas em todos os outros
diálogos. Ele nunca responde à questão.
Esse método tem como propósito a elevação do objeto da discussão, a
justiça, a um grau de divindade, para que a questão quanto à sua
natureza essencial possa ser evitada.
O bem é e é o mais elevado entre todos. O que é, e do que é composto,
qual é o seu critério, como pode ser reconhecido nas atividades
humanas ou na ordem social, e, portanto, qual é a sua natureza decisiva
para a teoria e a prática social - essas questões permanecem sem
resposta. O filósofo que governa no Estado ideal conhece o bem. Os
outros devem se contentar em adorar e obedecer.
Considerando o que Platão disse em "O banquete", em "Fedro" e,
especialmente, na "Epístola VII", deve-se representar a visão da idéia
suprema do bem como um ato intuitivo de súbita iluminação que
ocorre em um momento de êxtase.
O conhecimento interior é possível apenas para uma pequena elite,
talvez apenas para uma única pessoa escolhida por Deus. Tal pessoa é
elevada acima dos outros homens porque sua experiência particular o
aproxima da divindade. Essa experiência religiosa derivada de um
sentido interior tão raro não pode ser expressa racionalmente em
conceitos como pode a experiência dos outros sentidos; tampouco
pode ser comunicada a outros. Aqui, torna-se evidente que Platão não
pode oferecer nenhuma resposta à questão do bem absoluto.
Assim, podemos compreender a afirmação paradoxal de Platão na
"Epístola VII" de que não há escritos seus sobre essas questões, nem
haverá, pois isso não admite expressão verbal como outros estudos.
O segredo da justiça não pode ser revelado, nem mesmo nas leis do
melhor dos legisladores. A conclusão final da sabedoria platônica, a
resposta oferecida à questão formulada vezes e vezes ao longo dos
diálogos, ou seja, a questão da natureza da justiça, é esta: trata-se de
um mistério divino.
Na verdade, o ensinamento de Platão é um misticismo genuíno em seu
ponto mais decisivo, pois a visão do ser supremo é inexprimível - é uma
experiência que não é comunicável, e não o produto da consideração
racional. Quem viu o bem, o escolhido, o objeto da graça, é isolado dos
muitos que não contemplaram nem poderão jamais contemplar essa
visão. Justamente no ponto da filosofia de Platão em que se espera uma
solução objetiva, surge uma mera fórmula para a salvação pessoal.
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solução objetiva, surge uma mera fórmula para a salvação pessoal.
Como filósofo governante tem um conhecimento do bem divino e é o
possuidor exclusivo desse segredo, ele é inteiramente diferente dos
outros homens. A massa do povo, que não tem nenhum direito político,
não tem outra escolha, senão acreditar na sabadoria e na graça do
governante. Essa crença é o fundamento da obediência incondicional
dos sujeitos sobre a qual a autoridade do Estado platônico repousa. O
misticismo platônico, a mais completa expressão do irracional, é a
justificação da sua doutrina política anti-democrática; é a ideologia de
todas as autocracias.
IV. A DOUTRINA DA JUSTIÇA DE ARISTÓTELES
I
Aristóteles tenta desenvolver, na Ética, sua filosofia moral. Partindo de
uma filosofia fundamental da realidade e do ser, que apresenta uma
filosofia geral em suas determinações mais gerais do ser.
Preocupa-se com a realidade das propriedades e relações do ser como
tal, ocupa-se daquilo que é e não daquilo que deve ser. Porém, faz a
ressalva de que a ciência dos princípios e das causas iniciais do que é
coincide com o que deve ser.
Após, abandona este dualismo e estuda a finalidade das ações. Toda
ação deve ter como objetivo o bem; seja o bem em particular, ou o Bem
supremo; este último como um bem geral, que é definido pela ciência
dos princípios e das causas iniciais. E, desenvolve um estudo sobre a
ética ligada ao bem.
A filosofia da natureza fundamental do ser é estudada por Aristóteles
como o objetivo de definir o bem absoluto que todas as ações devem
estar voltadas, e, este bem absoluto é a causa e o fim de todas as ações
que se concretiza em Deus. Deus é um conceito a ser estudado que se
divide no antagonismo de móvel (o domínio da natureza), e imóvel
(teologia ou como o conhecimento de Deus). A teologia como metafísica
coloca-se acima de todas as ciências.
“A metafísica aristotélica exibe uma clara tendência de personificar seu
primeiro princípio, apresentado como motor imóvel e o bem absoluto.
A vida, a felicidade e a atividade são atribuídas a ele...” O autor se refere
ao pensamento que Aristóteles passou a desenvolver para explicar o
bem absoluto (o bem imóvel). Aristóteles refletia da seguinte maneira:
um motor ou uma força inicial com uma força em si mesmo, movimenta
os demais motores ou forças, que ganham força somente a partir da
força inicial, a força inicial que compreende o bem absoluto que gerará
os demais movimentos e transformará as demais coisas. Assim é Deus
em relação aos seres, compreende um bem absoluto, e como já dito,
tem a vida, a felicidade e a atividade e possui esses elementos sempre,
enquanto possuímos esses elementos por alguns momentos.
Ainda afirma, que Deus pensaria somente em coisas divinas que são
boas, e por isso pensaria somente Nele mesmo o tempo todo, o que
equivale a uma tautologia (redundância) vazia.
Há três versões da ética para Aristóteles: Ética a Nicômaco, a Ética a
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Eudemo e a Grande Ética. Aristóteles inicia a sua ética afirmando “o bem
é aquilo a que todas as coisas visam”, o que é quase idêntica a tese
principal da Metafísica “o fim para o qual se faz cada ação é o bem, o
bem em cada caso particular e, em geral, o bem supremo em toda a
natureza”, porém a metafísica defende que bem: “é o bem para o
homem”.
Platão defende a idéia de que há um bem absoluto em outro mundo. Já
Aristóteles rejeita a idéia de Platão para a ética e afirma ”o bem não é
um termo geral que corresponde a uma única idéia”. E ainda, Aristóteles
afirma que se o bem é algo que existe e é separadamente absoluto
então nunca será alcançado pelo homem, porém este bem que se
busca agora está ao alcance do homem, que será buscado
instintivamente e dificilmente será retirado dele.
Desenvolvendo o pensamento sobre o bem Supremo afirma que este
Bem é a felicidade que parecerá uma verdade incontestável, da qual só
se pode confirmar com um relato explicito. E o autor afirma que a
felicidade pode ser identificada como uma virtude.
Seu ponto de partida é o desejo humano, e afirma; A felicidade buscada
pelo homem é o estado inalcançável de satisfação completa de todos os
desejos da mente. Essa felicidade é atingida como uma recompensa
pela virtude. Se você é virtuoso e se conduz como se deve conduzir
então será feliz. E, por fim coloca que a verdadeira felicidade nada mais
é do que a própria virtude, desde que seja uma virtude voltada para o
bem. Se a virtude for do homem mau a felicidade será apenas aparente,
enganadora e falsa.
Ele rejeita a idéia de que a virtude é o objetivo da vida, pois até
dormindo se pode ter virtude, e nesse sentido não se pode afirmar que
o homem virtuoso sofra menores ou maiores infelicidades e infortúnios.
Conclui afirmando que é evidente que a felicidade é concebida como
consequência ou recompensa da virtude e não como sinônimo ou
formas de sentimentos idênticos.
“Nossa definição concorda com a descrição do homem feliz como
aquele que ‘vive bem’ ou ‘faz bem’; pois ela virtualmente identificou a
felicidade com uma forma de boa vida ou bem fazer.” E a partir desta
definição Aristóteles concorda “com os que pronunciam ser a felicidade
virtude, ou alguma virtude particular” e faz a seguinte declaração:
“nenhum homem supremamente feliz pode tornar-se infeliz. Pois ele
nunca cometerá ações odiosas ou vis, já que sustentamos que um
homem verdadeiramente bom e sábio suportará todos os tipos de
destino com decoro e sempre atuará da maneira mais nobre que as
circunstâncias permitirem.” Por fim Aristóteles retoma a primeira
definição de felicidade como: “certa atividade da alma em conformidade
com a virtude perfeita”.
II
“Assim, o bem, o valor moral, é humanizado; é apresentado como a
virtude do homem. Consequentemente, a Ética de Aristóteles almeja um
sistema de virtudes humanas, entre as quais a justiça é a ‘principal das
virtudes’, a ‘virtude perfeita’”
A Ética não pode ser afirmada com exatidão,e o autor reescreve um
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A Ética não pode ser afirmada com exatidão,e o autor reescreve um
pensamento de Aristóteles: “devemos ficar satisfeitos se, lidando com
sujeitos e partindo de premissas assim incertas (como os conceitos de
bem e justiça), conseguirmos apresentar um tosco esboço da verdade
(...)”
Aristóteles tem a famosa Doutrina do Meio (mesótes) em que ele tenta
aplicar uma analogia matemática-geométrica para solucionar o
problema da ética, definindo o que é virtude. E faz considerações
importantes sobre a virtude: “A virtude é um estado médio entre dois
extremos, que são vícios, um o do excesso, o outro o da deficiência. ‘A
virtude é um estado médio no sentido de que almeja atingir o meio (...) o
excesso e a deficiência são marca do vício, e a observância do meio uma
marca de virtude’.” E depois ele explica que o excesso e a deficiência
destroem a perfeição, ao passo que a observação do meio a preserva,e
só assim para se ter uma obra perfeita.
E para utilizar um calculo matemático-geométrico transforma a
qualidade em quantidade e parte de um ponto comum. E explica a
aplicabilidade deste sistema quanto ao valor moral: “Ora, de todas as
coisas que são contínuas e divisíveis, é possível tomar a maior parte ou
a menor parte, ou uma parte igual, a essas partes podem ser maiores,
menores e iguais de acordo com a própria coisa ou relativamente a nós,
sendo a parte igual a um meio entre o excesso e a deficiência...” Porém
ele afirma um pouco depois que é muito difícil descobrir o ponto médio
de qualquer coisa.
E afirma: “a quantificação do valor moral, o esquema tripartite de
‘muito’, ‘médio’, ‘pouco’, a pressuposição essencial de um método
matemático-geométrico para determinar o bem é uma falácia. No
domínio dos valores morais não há quantidades mensuráveis como no
domínio da realidade enquanto objeto da ciência natural.”
Parte deste ponto para chegar a conclusão de como deve ser a norma e
os atos em conformidade com ela, com o seguinte raciocínio: “A
afirmação de que uma conduta humana definida é boa ou má, certa ou
errada, justa ou injusta, virtuosa ou viciosa, pressupõe a assunção de
que algo deve ser feito. A afirmação de que algo deve ser feito é uma
norma. É uma maneira de expressar a idéia de que algo é um fim, não
um meio para um fim. É um julgamento de valor.” E este juízo de valor
que dará ensejo a norma. A conduta do homem que está de acordo
com a norma, se diz que ele obedece a norma. E ainda ressalta que uma
conduta não pode ser muito ou pouco conforme a norma, ou a conduta
está em conformidade ou não está em conformidade. Porém afirma que
há três graus ou “quantidades” de desconformidade: excesso, meio,
deficiência; que não se refere a qualidade do valor moral, mas sim a
uma realidade psíquica.
“Ele é compelido a modificar sua teoria do meio dizendo que a virtude é
‘a observância do meio’ apenas ‘no que diz respeito à sua essência e à
definição que formula o seu ser original’, mas, ‘no tocante à excelência e
à correção, é um extremo’.” E as vezes não se tem a conduta como
equivalente a qualquer das extremidades.
E, portanto, abandona a doutrina do meio (tripartite: dois extremos e
um ponto médio da conduta) e inicia a teoria bipartite (bem e mau,
certo e errado, conformidade e não conformidade.
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certo e errado, conformidade e não conformidade.
A doutrina do meio deixa a impressão de que a conduta ou está de
acordo com a norma ou não está de acordo, porém não leva em conta
que no sistema há várias normas e que muitas vezes a conduta está
inteiramente de acordo com uma norma, mas em conflito com outra
norma, para ter a conformidade com a norma observa-se a aplicação do
princípio da proporcionalidade.
E desse modo fazendo uma analogia pode-se afirmar que a virtude é a
disposição dos homens que em conformidade com a ordem moral. Esse
é o verdadeiro significado da afirmação de que a virtude é a observância
do meio relativo ao homem.
A mesótes pretende estabelecer de modo peremptório o valor moral,
mas deixa este ônus para a autoridade da moralidade positiva e do
direito positivo (ordem estabelecida) definir o valor da moral.
III
Este terceiro tópico discorre sobre a justiça e segundo ele a principal
das virtudes.
“No que diz respeito à justiça e à injustiça (dikaiosýne e adikía) temos de
investigar de que espécie de ações elas precisamente se ocupam, em
que sentido a justiça é a observância de um meio e quais são os
extremos entre os quais o que é justo é um meio. Nossa indagação
pode seguir o mesmo procedimento que as nossas investigações
precedentes”.
E coloca dois conceitos de justiça: a legitimidade e a igualdade. Coloca a
legitimidade como um conceito mais amplo (genérico) e a igualdade
como um conceito mais restrito (especifico). E completa a idéia com o
seguinte raciocínio “Vimos que o violador da lei é injusto e o homem
respeitador da lei é justo. É claro, portanto, que todas as coisas
legítimas são justas em um sentido da palavra, pois o que é legítimo é
decidido pela legislação, e as diversas decisões da legislação chamamos
regras de justiça.” E completa: “Ora todos os pronunciamentos do
Direito visam ou ao interesse de uma classe dominante determinada
pela excelência, ou de outra maneira semelhante; de tal modo que, em
um dos seus sentidos o termo justo é aplicado em qualquer coisa que
produz e preserva a felicidade, ou as partes componentes da felicidade,
da comunidade política.” E por fim o autor coloca: o que equivale a um
glorificação incondicional do direito positivo.
A justiça da igualdade é dividida em dois tipos a distributiva e a
corretiva.
A justiça distributiva é aquela aplicada para distribuição de riqueza,
honra e bens divisíveis (justiça social). Visa a justiça social, tem o
objetivo de implementar a isonomia com a aplicação do princípio da
proporcionalidade, se concede a tutela social de igual modo aos
indivíduos que se encontrem socialmente iguais, sendo irrelevante as
características do indivíduo. Por conseguinte a indivíduos em iguais
situações devem ser concedidos direitos idênticos, sendo esta regra
justa em qualquer situação. E, finaliza com o princípio suum cuique, a
cada um o seu, ou a cada um o que lhe é devido.
Já a justiça corretiva é exercida pelo juiz ao solucionar lides. É a
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retribuição pelo ato, visa recompor a igualdade de direitos, através dos
princípios da reciprocidade e da proporcionalidade. E coloca “o juiz
ideal, é por assim dizer, a justiça personificada”. E divide as transações
em voluntárias (civil) e involuntárias (criminal). A justiça corretiva exige
que o serviço e o contra serviço que constituem a permuta sejam iguais.
A mesma igualdade prevalecerá entre crime e punição. Porém se
pergunta qual a retribuição (para o contra serviço) ou qual a punição
(para o crime) adequada? Ele tenta responder com uma formula
matemática-geométrica: “O injusto sendo aqui o desigual, o juiz esforça-
se para igualar (a desigualdade) (...) o juiz esforça-se para torná-las (as
duas partes da linha) iguais por meio da pena ou perda que impõe,
subtraindo o ganho.”
A igualdade se restaura observando-se que o igual é uma média pela
proporção aritmética entre o maior e o menor. A igualdade deve
prevalecer entre a retribuição ou punição. “Serviço e serviço de
retribuição têm de ser igualados, já que, em si, não são e não podem ser
iguais, no sentido de que duas metades de uma linha o são, assim como
o crime e a punição não podem ser iguais nesse sentido. É por isso que
Aristóteles é finalmente obrigado a renunciar a sua fórmula
matemática, segundo a qual a ‘igualdade’ é estabelecida pela justiça
corretiva.”
E defende que a existência do Estado depende da aplicação da
reciprocidade proporcional, o que deve ser aplicado também para a
justiça corretiva, de modo que deve haver a reciprocidade da justiça na
base da proporção e não na base da igualdade. De forma que a punição
será igual ao crime e a recompensa igual ao mérito. A retribuição vem
dos instintos mais primitivos do homem o desejo de vingança. O que é
justiça, portanto, fica sem resposta, e utiliza o princípio novamente
“cada um o seu”.
Para aplicação da teoria do meio ele faz as seguintes ponderações: “A
justiça é um modo de observar o meio, embora não da mesma maneira
que as outras virtudes.” E o autor explica: “Dizer que a justiça é um meio
entre cometer e sofrer injustiça é uma expressão figurada do
julgamento de que a justiça não é injustiça, nem a injustiça que é
cometida nem a injustiça que é sofrida, as quais porém são ambas a
mesma e única injustiça.” Partindo deste raciocínio Aristóteles tenta
buscar uma idéia mais substancial de paz, e prefere que os legisladores
busquem a paz e não a justiça, pois onde a paz prevalece não há
necessidade de justiça. De forma que a paz tem a sua identificação de
justiça com Direito.
A justiça: “é uma função do Estado. Pois o Direito é a ordem política; e o
Direito determina o que é justo”. A justiça será aplicada pelo Estado, que
estabelecerá uma ordem jurídica, e fará determinações gerais de quem
e o que é igual. “Esse é o princípio da justiça no sentido de legitimidade
ou no sentido de igualdade; essa é a igualdade perante o direito” essa
igualdade é mantida por normas gerais, que será aplicada a casos
particulares.
Deve-se racionalizar a idéia de justiça como valor objetivo, de modo que
o valor moral de justiça seja substituído pelo valor lógico de não-
contradição. Todos os pensamentos sobre justiça tentam buscar uma
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contradição. Todos os pensamentos sobre justiça tentam buscar uma
definição do que é justo.
A ordem social é que deve justificar a validade do Direito positivo. Como
Aurélio Agostinho, um bispo, que viveu na época do Império Romano
numa época que o cristianismo não exercia o domínio, faz as seguintes
afirmações: “Onde não há justiça verdadeira não pode haver direito.
Pois o que é feito pelo direito é feito justamente, e o que é feito
injustamente não pode ser feito pelo direito. Pois as invenções injustas
dos homens não devem ser consideradas nem chamadas de leis;”.
Ainda afirma Agustinho “A justiça é a virtude que dá a cada um o que lhe
é devido”, e por conseqüência de seu raciocínio no Império Romano
nunca houve direito. Porém essa fórmula não deve ser levada por
absoluta, pois nega a existência de um Estado que organizou a maior
parte da humanidade civilizada, e nega um direito que é a matriz de
todo o direito moderno.
V. A DOUTRINA DO DIREITO NATURAL PERANTE O TRIBUNAL DA CIÊNCIA
I
O Direito natural tenta solucionar o conflito entre o certo e o errado das
condutas humanas (natureza do homem, da sociedade e das coisas),
conforme o que seria, respectivamente, natural ou antinatural. Parte,
para isso, da consideração de que a natureza é o legislador supremo.
Personifica a natureza e subordina o homem à autoridade desta.
A doutrina do Direito natural pode ter um caráter mais ou menos
religioso em fases evolutivas:
- 1ª fase - animismo, onde os seres naturais são considerados
animados, podendo prejudicar ou proteger o homem. A adoração se
direciona à natureza;
- 2ª fase - monoteísmo, a natureza, criada por Deus, é manifestação de
sua vontade justa e toda-poderosa.
Grotius, Hobbes e Puffendorf elaboram raciocínio para justificar as
características do Direito natural como inato e imutável, pois
decorrente de Deus. Paralelamente, o Direito posto pelo homem é
apenas temporário e mutável.
Grotius – define a lei da natureza como um ditame da própria natureza
racional por meio do qual certos atos são proibidos ou prescritos “pelo
autor da natureza, Deus”. Afirma, ainda, que a lei da natureza, que
procede das “características essenciais implantadas no homem, pode
ser corretamente atribuída a Deus, porque Ele desejou que tais traços
existissem em nós”
Hobbes – declara que a lei da natureza é um ditame da razão, mas os
ditames da razão são “conclusões ou teoremas quanto ao que conduz à
conservação e à defesa de si mesmos, ao passo que a lei propriamente
dita é a palavra do que, por direito, tem domínio sobre os outros. Mas,
se considerarmos os mesmos teoremas, tais como expressos na
palavra de Deus, que, por direito, comanda todas as coisas, então serão
adequadamente denominados leis”.
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adequadamente denominados leis”.
Puffendorf – acompanhando Hobbes, diz que se os ditames da razão –
os princípios do Direito natural – devem ter a força do Direito, a
obrigação do Direito natural provém de Deus.
Kelsen critica a diferença essencial entre as “leis da ciência” e a “moral e
o Direito”. Na ciência, os fenômenos se relacionam por causa e efeito: o
calor dilata o corpo metálico. Já na ética e no Direito e na moral, tem-se
que “se A existe, B deve existir”: se um homem está necessitado, seus
semelhantes devem assisti-lo; se um homem comete assassinato, deve
ser punido. É a diferença entre a causalidade – leis da ciência – e a
normatividade – na moral e no Direito.
O juízo de valor é exercido a partir da norma pressuposta. Se em
conformidade a esta, a conduta será positiva, boa ou correta; do
contrário será negativa, má ou errônea. “Não existe nenhuma inferência
lógica a partir do “é” para o “deve ser” da realidade natural para o valor
moral ou jurídico.”
A diversidade existente entre os sistemas morais/jurídicos varia
conforme a vontade de seu autor – priorizando bem estar individual ou
coletivo, liberdade social ou segurança social – tornando os valores
relativos, conforme a ordem jurídica ou moral local. Diversamente, o
sistema de direito natural é único, pois a autoridade que emite as
normas/valores é única, absoluta e transcendental: Deus, cujos valores
são absolutos.
No entanto, o Direito natural toma as regras deduzidas da natureza
como regras do Direito, concebendo a natureza como parte da
sociedade. Conclui, então, que “perante o tribunal da ciência, a doutrina
do Direito natural não tem nenhuma chance. Mas pode negar a
competência desse tribunal recorrendo ao seu caráter religioso.“
II
O dualismo Direito natural e Direito positivo traz outro conflito em si. Se
a natureza humana é a fonte do Direito natural, ela deve ser
fundamentalmente boa. Mas, por outro lado, a necessidade do Direito
positivo funda-se exatamente na maldade do homem, que é de sua
natureza. Hobbes e Pufendorf não caem nesse conflito, pois admitem o
homem como mau e entendem o Direito positivo fixado pelo Estado,
como autorização formalista dada pelo Direito natural. É a natureza
ideal do homem que é deduzida do Direito natural.
III
A validade do Direito positivo ocorre na medida de sua correspondência
com o Direito natural. A admissão entre os autores da possibilidade ou
não de conflito entre esses direitos revela uma inferioridade do
primeiro em relação ao segundo.
Hobbes sustenta impossível a contrariedade do Direito positivo com a
lei da natureza: isto porque o conteúdo do Direito positivo é fixado pelo
representante da nação, ou mesmo da interpretação por este.
Tratando-se de pessoa única – o monarca-, dificilmente haverá
contradição entre as leis. Esse Direito será simultaneamente o positivo
e o natural.(Identificação do Direito positivo com o Direito natural).
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e o natural.(Identificação do Direito positivo com o Direito natural).
A maioria dos autores que defende o Direito natural não nega a
possibilidade do conflito entre o Direito natural e positivo; mas tentam
provar que ocorrerá apenas excepcionalmente.
Pufendorf rejeita a impossibilidade das leis civis oporem-se às naturais.
Mas esta lei contrária ao Direito natural dificilmente seria aprovada, a
não ser que o fim fosse a destruição do Estado. O conflito é
teoricamente possível, mas praticamente excluído. Para Pufendorf os
princípios gerais do Direito natural estão incorporados ao Direito
positivo.
Com as divergências entre os autores acerca da “lei da natureza”,
verifica-se a necessidade de “uma medida comum do que deve ser
chamado certo e errado”. Seria a correta razão, o que deve ser
entendido como a razão de alguns homens que detém o poder
soberano.
É o que afirma Hobbes: o Direito não decorre da autoridade dos
autores de filosofia moral, mas sim daquela ideia que foi adotada pelo
poder soberano e incorporada ao Direito civil, por exemplo.
“Isto significa que, se um indivíduo considera que uma regra do Direito
positivo é contrária ao Direito natural, não é a opinião do indivíduo
particular, mas a opinião da autoridade competente do Estado que
prevalece. Ao discutir se um tirano pode ou não ser chamado à ordem
pelo povo, Puffendorf “ diz que : “a presunção de justiça coloca-se
sempre ao lado do príncipe”. Ou seja, a presunção que sempre existe é
de que o Direito positivo é o Direito natural.
Outra forma de alcançar a identificação entre o Direito positivo e o
natural é a definição de justiça aceita pela maioria dos seguidores do
Direito natural: a cada um o seu. Para Hobbes isso pressupõe a
existência de um Direito positivo definindo o que é de cada um e,
conseqüentemente, onde não há comunidade nada é injusto. A
definição de Pufendorf de justiça sob o Direito natural é a “vontade
perpétua de dar a cada homem o que lhe é devido”. Acrescenta que algo
só é devido a alguém com base em um direito perfeito se houver a
possibilidade de mover uma ação num tribunal humano.
Ou seja, a justiça definida com o sentido de Direito natural é possível
apenas sob o Direito positivo.
Embora Pufendorf critique Hobbes, ambos entendem a relação
essencial entre o Direito positivo e natural, como a justificação do
primeiro pelo segundo.
Outro princípio do Direito natural é a restrição ao direito de resistência,
quando se admite o conflito entre o Direito natural e o positivo. Para
Hobbes essa restrição se dá em decorrência do poder do soberano ter
sido conferido pelos próprios homens (lei da natureza). Para Grotius,
que admite que se a ordem for contrária à lei da natureza ou
mandamentos de Deus não deverá ser cumprida, afirma que à ordem
injusta do soberano deve-se antes lhe suportar que lhe resistir pela
força. Pufendorf, que, ao contrário de Hobbes, entende que o soberano
pode causar dano ao cidadão, afirma que, em consideração à nobreza
da posição do príncipe e seus outros benefícios, no interesse dos
concidadãos e de todo o Estado, deve preferir a sua fuga ou
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abrigamento em outro Estado. Admite a defesa pela força, mas não a
permissão aos demais cidadãos de abandonar a obediência.
Locke aprofunda a questão da desobediência/resistência: admite o
direito de resistência quando o uso da força pelo governo for injusta e
ilegítima (contrária ao Direito natural e ao Direito positivo). Surge a
questão da competência para decidir essa questão quando os homens
estão ordenados em uma comunidade. Para tanto, apresenta dois
pareceres:
“Portanto, sempre que algum número de homens estiver unido em
sociedade, de tal maneira que todos tenham renunciado a seu poder
executivo da lei da natureza e os cedido ao público, ali e só ali haverá
uma sociedade política ou civil.[...] E isso tira os homens de um estado
de natureza para um estado de nação estabelecendo um juiz sobre a
terra, com autoridade para determinar todas as controvérsias e reparar
os danos que possam acontecer a qualquer membro da comunidade;
esse juiz é o legislativo ou o magistrado por ele nomeado.”
“Quem julgará se o príncipe ou o legislativo agem contrariamente ao
seu encargo? Isso, talvez, homens mal-intencionados e facciosos podem
propagar entre o povo quando o príncipe apenas faz uso de sua devida
prerrogativa. A isso respondo: o povo julgará. Pois quem julgará se o
seu encarregado ou o deputado age bem e em conformidade com o
encargo que nele repousa, senão aquele que o nomeia e deve , por tê-lo
nomeado, deter ainda um poder de livrar-se dele quando não cumprir
seu encargo? Se isso é razoável em casos particulares de homens
particulares, por que seria de outro modo nos de maior importância,
em que o bem-estar de milhões está envolvido, e em que também o
mal, se não evitado, é maior e a reparação é muito difícil, cara e
perigosa?”
Para Kant, a resistência de parte do povo ao poder legislativo supremo
do Estado não é legítima em nenhum caso, especialmente se o poder
estiver corporificado em um monarca individual.
Para Kelsen. a prerrogativa de interpretação do Direito natural pelas
autoridades estabelecidas pelo Direito positivo e a ausência do direito
de resistência desnatura o Direito natural. Isto porque a função do
Direito natural não era enfraquecer a autoridade do Direito positivo,
mas sim fortalecê-lo. O caráter da doutrina do Direito natural é
conservador. A adaptação do Direito positivo à tendência reformadora
do direito no campo internacional decorre não do Direito natural de
forma automática, mas sim do resultado de ato da autoridade
legisladora. Assim, doutrinadores como Benedito Winkler eram
contrários à inovações no campo do Direito, pois o Direito natural e
também o positivo, jubet bona, provê o bem.
IV
Cada doutrina de Direito natural estabelece princípios, muitas vezes
contraditórios entre si.
Hobbes – “o poder do governo estabelecido em conformidade com o
Direito natural é, pela sua própria natureza, absoluto, isto é, ilimitado.”
Contrariamente,
Locke – o poder supremo em toda a nação não pode ser arbitrário, pois,
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Locke – o poder supremo em toda a nação não pode ser arbitrário, pois,
resultando do poder cedido pelas pessoas em seu estado de natureza,
não pode ser transferido em maior grau do que estes possuíam. Seria
colocarem-se em estado pior que o de natureza.
A monarquia absoluta é contrária à natureza; todos os homens são
livres, iguais e independentes por natureza, não podendo ser tirado
desse estado sem o seu consentimento. “Assim, aquilo que inicia e
efetivamente constitui alguma sociedade política nada mais é que o
consentimento de certo número de homens livres, capazes de maioria
para unirem-se e incorporarem-se em tal sociedade”.
Rosseau – a renúncia á liberdade equivale à renúncia a ser homem; tal
renúncia é incompatível com a natureza do homem – incabível a
autoridade absoluta e a obediência ilimitada.
Filmer – usando o raciocínio de Hobbes, opõe-se a ele: prova que a
democracia é contrária à lei da natureza, pois impossível a concessão de
autoridade suprema para todo o povo; tampouco o princípio da maioria
é capaz de sujeitar toda a multidão. “Deus sempre governou seu povo
apenas pela monarquia”.
Problema atual é o princípio da propriedade privada e a justiça do
sistema jurídico e econômico fundamentado nesse princípio. Só se tem
conseguido defender o sistema capitalista pelo Direito natural (de
Grotius a Kant). Opõe-se a isso o fato de a Igreja considerar que Deus
deu todas as coisas para todos os homens em comum. Grotius
considera que isso somente ocorreu num primeiro momento quando o
homem vivia de modo simples e inocente. Posteriormente, o homem se
degenerou e a propriedade primitiva comum também foi abandonada.
Tentando deduzir o direito da propriedade privada a partir da natureza,
RICHARD CUMBERLAND escreve que não se pode sujeitar as coisas às
vontades contrárias de vários homens ao mesmo tempo. Assim, e
especialmente em se tratando dos homens responsáveis por promover
o bem comum, deve-se lhes outorgar a propriedade das coisas e dos
trabalhos das pessoas com exclusão das outras, pelo menos por algum
tempo, na medida em que isto é necessário para promover o bem
público.
Esse direito de propriedade individual também vem acompanhado do
direito de sua inviolabilidade.
A distribuição de bens estabelecida em conformidade com o Direito
natural pela lei positiva da propriedade é justa; ela assegura a maior
felicidade possível. Conseqüentemente, qualquer tentativa de mudá-la e
substituí-la por outro sistema econômico é contrária à lei natural e,
portanto, injusta.
Locke argumenta que um dos propósitos essenciais do Estado (Direito
positivo) é proteger o direito de propriedade, estabelecido pelo Direito
natural. Posiciona o direito de propriedade além do poder do Estado –
daí a limitação deste. Com base no direito de propriedade estabelece o
primeiro limitador do poder do Estado: o general tem poder de vida e
morte sobre o soldado, mas não pode apoderar-se dos seus bens
(propriedade mais valiosa que a vida).
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(propriedade mais valiosa que a vida).
Todavia, embora no raciocínio de Locke se veja uma sólida
argumentação no combate ao comunismo, outros doutrinadores do
Direito natural também indicam que a propriedade privada é contrária
às leis da natureza e fonte de todos os males sociais (Código da
Natureza - Morelly – 1755 – Paris – o comunismo é o único sistema
ditado pela natureza).
Para Morelly, a lei da sociabilidade significa que a natureza distribuiu as
faculdades humanas entre os indivíduos, mas a propriedade
permaneceu indivisa, assim ninguém é proprietário exclusivo. A divisão
da propriedade, dos produtos da natureza é uma monstruosidade do
legislador. Considera a lei da natureza com caráter inteiramente
religioso.
V
A influência da doutrina do Direito natural apesar de todas as suas
contradições decorre da necessidade de justificação.
A sociologia e a filosofia, embora se oponham à doutrina do Direito
natural, também utilizam a inferência do “é” para o “deve ser”.
Os destaques da sociologia no século XIX são Auguste Comte – Cours de
philosophie positive - e Herbert Spencer – Principles of Sociology. Suas
obras são “caracterizadas por confundirem a descrição e a explicação
da vida social concreta com a proclamação de postulados normativos,
de enunciados sobre a realidade social e de juízos políticos de valor”.
Ambos os autores partem da suposição de que a vida social dos
homens é determinada por leis causais e sob a influência da teoria da
evolução orgânica (Lamarck e Darwin). Chegam à teoria fundamental da
evolução que indicaria o progresso permanente da humanidade
(permitindo explicação do passado, presente e previsão do futuro). Em
ambos o estágio mais elevado coincide com o ideal político, dedução
esta que parte da lei fundamental da evolução progressiva, tal qual se
deduz a lei correta da natureza no Direito natural. A suposição que a
evolução social é progressiva implica que um valor social é imanente à
realidade social (pressuposto característico do Direito natural). Mas um
valor não pode ser imanente à realidade, pois é altamente subjetivo e
não objetivamente averiguável como a realidade. O resultado atingido
por Comte é diferente do atingido por Spencer como efeito necessário
da evolução.
Para Comte três são os “estádios” sucessivos da evolução: o teológico, o
metafísico e o positivo. Importa apenas o terceiro estágio, resultado
necessário da evolução social e Estado ideal da sociedade. Seus
aspectos lembram em muito os aspectos da República de Platão,
principalmente por partir do dualismo fundamental de vida especulativa
– atividades filosóficas ou científicas e estéticas ou poéticas – e a vida
prática – atividade industrial. Comte supõe como lei fundamental a
prioridade do mais simples sobre o mais especial e complexo, prevendo
que no futuro haverá uma prevalência da vida especulativa sobre a vida
ativa. A autoridade do governo político – governo temporal - se
preocupará predominantemente com a vida ativa, enquanto a
autoridade espiritual se incumbirá predominantemente da educação
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moral e intelectual. Compreende assim que a diferença entre a função
do capitalista e do trabalhador se deve ao fato de a primeira ser mais
abstrata e geral, enquanto a segunda é mais concreta. Daí que, chegar-
se-á a compreender que a relação de subordinação do trabalhador ao
capitalista não é por abuso da força ou riqueza e sim decorrente da
divergência entre a natureza das funções. A subordinação é, portanto,
tão arbitrária quanto mutável.
“A sociedade futura não se fundamentará – como afirmam os
seguidores da doutrina do Direito natural- na ideia de direitos, mas no
princípio do dever.” Os direitos de um resultarão dos deveres dos
outros para com ele. Não haverá distinção entre função pública e
privada”
Comte é vago quanto ao sistema econômico na sociedade futura, mas
admite os capitalistas como depositários da riqueza da sociedade. A
autoridade especulativa terá a função de árbitro nos conflitos, devido a
seu valor superior e de imparcialidade. Espera também a paz mundial e
o estabelecimento de uma república européia ou ocidental como
decorrência da evolução social determinada pela lei fundamental da
evolução.
“A humanidade encontra-se agora no limiar da vida plenamente
positiva, cujos elementos estão todos preparados e apenas à espera de
sua coordenação para formar um novo sistema social, mais homogêneo
e mais estável do que a humanidade até hoje experimentou.”
Spencer também parte da lei da evolução progressiva. Classifica as
sociedades em simples, compostas, duplamente compostas e
triplamente compostas. Também podem ser agrupadas como
militantes ou industriais.
Militantes: na sua forma desenvolvida é organizada sobre o princípio da
cooperação compulsória; caracterizado pelo poder central despótico e
pelo controle político ilimitado da conduta pessoal; os membros
existem para o benefício do todo; a sujeição absoluta à autoridade é a
virtude suprema e a resistência a ela é um crime.
Industriais: na sua forma desenvolvida é organizada sob o princípio da
cooperação voluntária; caracterizada por um poder central democrático
ou representativo e pela limitação do controle político sobre a conduta
pessoal; a vontade dos cidadãos é suprema, o agente governante existe
apenas para executar sua vontade. O poder regulador além de
subordinado tem alcance restrito. Resistir ao governo irresponsável e
aos excessos do governo responsável é DEVER. Há tendência a
desobediência pelas minorias de legislação quando interfere de certas
maneiras, bem como a desobediência às leis iníquas pode causar sua
abolição.
A transição do tipo militante para o tipo industrial representa a da
escravidão para a liberdade, da autocracia para a democracia, do
estatismo para o liberalismo político e econômico. É esta a ética
evolucionista de Spencer.
Ele parece considerar que a vida humana é o fim último. Assim, se a
ação humana é boa, ela é apta a conseguir a preservação da vida – é a
evolução tendendo para a autopreservação.
Elabora três etapas da evolução: autopreservação, preservação da prole
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Elabora três etapas da evolução: autopreservação, preservação da prole
e preservação dos semelhantes. E a “conduta boa” surge daquela que
cumpre todas as três classes de fins ao mesmo tempo.
“A evolução foi um erro?” – frase característica da ética sociológica
evolucionista.
Spencer responde que não foi um erro.
Junto com o pressuposto da vida humana como valor supremo da sua
filosofia moral, coloca a liberdade individual. Assim, a vida humana
correta deve ser preservada, ou seja, quando a vida estiver em
conformidade com a “lei da liberdade igual”. Esta lei se resume em:
“todo homem é livre para fazer o que quiser, contanto que não infrinja a
igual liberdade de algum outro homem.” E, como o homem não é livre
porque como parte da natureza está vinculado à lei da causalidade, a
“liberdade igual” de Spencer pode se restringir apenas à liberdade
moral-política (deduz como o Direito natural, da realidade natural e
social, normas moral-políticas.)
Do direito igual de liberdade Spencer deduz direitos concretos, tais
como o direito à integridade física, o direito ao livre movimento e,
especialmente, o direito à propriedade individual, que, como Spencer
expressamente declara, implica que o comunismo é uma “violação da
justiça.” Para ele a função do Estado e do seu Direito positivo é apenas
manter os direitos estabelecidos pela natureza.
“O caráter de Direito natural desse tipo de sociologia é evidente. A lei da
natureza é ou implica uma norma social. Essa sociologia permite a
Comte justificar um programa político altamente coletivista, e a
Spencer, um programa político radicalmente individualista.”
VI
Principais representantes da filosofia da história no século XIX: G.W.F.
Hegel e Karl Marx.
Hegel diz que a razão governa o mundo e esta razão implica a
moralidade, ”cujas leis são o Racional Essencial”. A história do mundo é
o “curso necessário racional do Espírito do Mundo”. Ou seja, o “Espírito
do Mundo” é a personificação da razão. Desse modo, a história é a
realização da vontade do Espírito do Mundo, e as ações do Estado e dos
indivíduos são os instrumentos e os meios daquele para alcançar seu
objeto.
A idéia de Hegel de que a razão dirige o mundo é uma idéia de aplicação
da “verdade religiosa”, pois é a consideração de que o plano racional
absoluto do mundo é controlado pela “Divina Providência”. É, portanto,
uma teologia da história.
Deus é imanente e transcende ao mundo, e como sua vontade é boa a
realidade deve ser considerada perfeita.
Sua tese de que o que acontece e aconteceu é essencialmente obra de
Deus é resumida em “o Real é racional e o racional é Real”. Real é
racional: tudo o que existe é o racional.
O julgamento de uma fase da história ou de um evento como melhor ou
pior que outro, considerando que Deus é imanente ao mundo e,
portanto, tudo é necessariamente bom, perde seu valor, seu significado.
Mas para a teologia na sua condição ética importa distinguir o bem do
mal. E para a filosofia da história a diferenciação das fases históricas é
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mal. E para a filosofia da história a diferenciação das fases históricas é
essencial. E, como a teologia utiliza o diabo como um contra-deus na
interpretação ética do mundo, a filosofia da história de Hegel consegue
o mesmo resultado pela suposição da realidade que não é perfeita
(manifestada na história), mas que está a caminho da perfeição. “A
história do mundo é a realização progressiva da Razão. Esse progresso
que é o trajeto do Espírito do Mundo, é um progresso necessário, pois a
Razão como “Soberana” do mundo é dotada de “poder infinito”.”
Hegel demonstra que sua filosofia da história é uma teologia da história
ao tentar solucionar o problema central desta: como o criador
onipotente e absolutamente bom do mundo pode ordenar ou permitir
o mal na natureza e na sociedade. Daí chamar sua tese de “teodicéia” –
justificação dos caminhos de Deus. Conclui então que “a história do
mundo é a realização do Espírito do Mundo” e que “esta é a verdadeira
Teodicéia, a Justificação de Deus na História.”
O conflito na Teodicéia ocorre entre a ideia de que a vontade de Deus é
absolutamente boa e onipotente. Se a lógica for considerada, uma das
duas proposições não é verdadeira; ou a contradição não pode ser
excluída. Para reconciliar sua teologia da história com a ciência
racionalista, Hegel inventa a lógica sintética da dialética. Assim, elimina a
lei da contradição – que impossibilitaria duas proposições contrárias de
serem verdadeiras. Tenta fazer crer que a presença da contradição não
é um defeito do pensamento, que ela é parte do pensamento
especulativo. Do mesmo modo que as forças opostas da natureza ou da
sociedade determinam um terceiro movimento, a contradição também
é que move o pensamento (lei do pensamento e, ao mesmo tempo, dos
fatos). Hegel incide na mesma falácia do Direito natural que conclui o
“dever ser” a partir do “ser”.
De sua filosofia: tudo o que existe é racional e o Estado é absolutamente
racional. O Estado é a idéia ética ou espírito ético realizado, tem direito
supremo sobre o indivíduo, e este existe apenas por meio do Estado. O
indivíduo tem sua verdade, sua existência real e sua condição ética
apenas sendo membro do Estado. Segundo a visão religiosa do mundo
a natureza é uma manifestação (inconsciente) de Deus; para Hegel o
Estado é a manifestação consciente de Deus.
O racionalismo entende que o Estado existe apenas na mente dos
indivíduos que adaptam sua conduta à ordem social, que chamamos de
Estado; Hegel entende o Estado como algo mais que a realidade
objetiva, pois é a realização do espírito absoluto no domínio da
consciência. “A nação como Estado é o espírito (divino)
substantivamente realizado e diretamente real. Portanto, é o poder
absoluto sobre a terra”.
Define, ainda, que a história do mundo como revelação da
autoconsciência do Espírito do Mundo ou como a realização progressiva
da razão, exibe quatro “estádios” ou épocas sucessivas, e que em cada
época uma nação definida é dominante: império oriental, depois o
grego, depois o romano, seguido pelo germânico. Este último
(germânico?) será a unidade do divino e do humano; a verdade objetiva
reconciliada com a liberdade. Dá-se o nome de princípio nórdico a
reconciliação e a evolução de todas as contradições que se dará neste
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último período (germânico)
Decorre da filosofia da história de Hegel o materialismo histórico de
Marx. Este utiliza a lógica dialética de Hegel como instrumento. Todavia,
conforme Marx, Hegel entende o processo de pensamento como um
sujeito independente, em que o mundo real é apenas sua forma
externa. Já Marx entende a idéia como é o mundo material refletido pela
mente humana.
Assim, Hegel é um idealista, Marx um materialista. Ambos
compreendem a dialética como evolução a partir da contradição, esta
inerente á realidade social. Essa contradição é fundamental em Marx.
Quanto ao valor, também Marx entende este como inerente à realidade,
mas não identifica pensar e ser, pois para ele a dialética apenas “reflete”
os processos dialéticos na realidade. Esse método “deve ser usado para
conhecer a dialética da sociedade. Mas, ao rejeitar a identificação
hegeliana de pensar e ser, Marx priva-se da única possibilidade de
justificar - tanto quanto isso é possível – sua identificação falaciosa da
relação de forças opostas na natureza e na sociedade com a
contradição lógica”.
Kelsen diz da futilidade do método dialético, pois possibilita a Hegel
louvar o Estado e a Marx amaldiçoá-lo. Marx, juntamente com Friedrich
Engels, critica o Estado por considera-lo um maquinismo coercitivo, cuja
função é manter o domínio de um grupo – grupo que em a posse dos
meios de produção domina o outro que não tem a posse dos bens de
capital. O Estado é uma organização coercitiva com o propósito de
manter a repressão de uma classe por outra. Com estabelecimento do
socialismo – abolição da propriedade privada e a socialização dos meios
de produção – o sistema capitalista e o Estado como instituição social
desaparecerá. Ele crê que a sociedade comunista do futuro será uma
sociedade sem Estado, a ordem social será mantida sem a força, pois
será do interesse de todos. Esta condição ideal da humanidade, embora
não ocorra sem revolução, é “inevitável porque é o resultado necessário
da lei da evolução histórica, do processo dialético da história”.
“As explicações precedentes demonstram que a doutrina do Direito
natural, quer apresente seus resultados como deduções a partir de
uma lei da natureza em termos da jurisprudência, quer como deduções
a partir de uma lei da evolução em termos da sociologia ou da história,
opera com um método logicamente errado, por meio do qual os juízos
de valor mais contraditórios podem ser, e efetivamente foram,
justificados. Do ponto de vista da ciência, isto é, do ponto de vista de
uma busca da verdade, tal método é inteiramente destituído de valor.
Mas, do ponto de vista da política, como um instrumento intelectual na
luta pela realização de interesses, a doutrina do Direito natural pode ser
considerada útil. Em seu diálogo, As leis, Platão distingue mentiras que
são permissíveis e mentiras que não o são. Mentiras são permissíveis se
forem úteis ao governo: assim, ao governo é permitido fazer o povo crer
que apenas o homem justo pode ser feliz, mesmo que isso seja uma
mentira. Pois, se é uma mentira, é uma mentira útil: ela assegura a
obediência à lei: “Nenhum legislador digno de seu sal poderia encontrar
mentira mais útil que esta ou mais eficaz no persuadir todos os homens
a agir com justiça”. Que a doutrina do Direito natural, como pretende,
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a agir com justiça”. Que a doutrina do Direito natural, como pretende,
seja capaz de determinar de modo objetivo o que é justo, é uma
mentira; mas quem considera útil pode usá-la como uma mentira útil”.
VI. UMA TEORIA “DINÂMICA” DO DIREITO NATURAL
I
A situação intelectual de nosso tempo, resultante das experiências
abaladoras das duas guerras mundiais, é caracterizada no campo da
filosofia social por um renascimento da doutrina do Direito Natural,
dirigida contra o positivismo relativista que prevaleceu durante a
segunda parte do século XIX e a primeira década do século XX. O
elemento essencial da doutrina, que afirma deduzir princípios de justiça
da natureza em geral e da natureza do homem em particular, é a sua
visão monista da relação entre realidade e valor (fatos e normas, o “ser”
e o “dever ser”). Ela sustenta que a realidade e o valor não são – como
presume o positivismo dualista – duas esferas separadas, mas que o
valor é imanente à realidade.
Para a doutrina do Direito Natural, os juízos de valor – juízos que se
referem a esses valores imanentes – são tão objetivos, isto é, verificáveis
por meio da experiência, quanto os julgamentos sobre a realidade. O
positivismo, por outro lado, supõe que os juízos de valor são subjetivos
e, portanto, apenas relativos, porque não são uma descrição de fatos,
mas, em última análise, a expressão de desejos e medos. A doutrina do
Direito Natural perdura e sucumbe com a suposição de que o valor é
imanente à realidade.
Em estudo intitulado “Plato’s Modern Enemies and the Theory of
Natural Law”, John Wild entende como “Direito Natural”, em
conformidade com a doutrina tradicional, “um padrão universal de
ação, aplicável a todos os homens em todas as partes, exigido pela
própria natureza humana para a sua plenitude”. A teoria do Direito
Natural, segundo Wild, é “uma tradição realista da filosofia,
radicalmente empírica em sua metodologia”.
Essa doutrina sustenta “que as entidades naturais estão em um estado
incompleto ou de potência e que tendem sempre para alguma coisa de
que carecem”. Ela se fundamenta em uma “visão dinâmica da existência”
que se opõe ao atomismo lógico, o qual considera a existência “como
composta exclusivamente de unidades plenamente determinadas e
atuais”.
A visão de que a realidade ou a existência está “em fluxo” não pode ser
rejeitada e, de fato, não é rejeitada por uma filosofia positivista.
Contudo, do ponto de vista de uma ciência objetiva da natureza, a
afirmação de que a realidade está em fluxo nada mais pode significar a
não ser que a realidade encontra-se em um estado de mudança
permanente. Interpretar a mudança de um estado para outro como a
realização de uma “tendência” é muito problemático. Pois “tendência” é
um termo ambíguo. Pode significar algo como “intenção” ou
“propósito”, isto é, pode implicar uma visão teleológica ou normativa,
inteiramente incompatível com uma ciência cuja função é a descrição e
a explicação objetiva de fatos. Em tal ciência, “tendência” pode significar
apenas a causa provável de mudanças futuras em fenômenos
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apenas a causa provável de mudanças futuras em fenômenos
observados.
Uma tendência, que nada mais é do que uma mudança provável de um
fenômeno observado, não “exige” nada. A expansão previsível de um
corpo metálico aquecido não é exigida pelo corpo aquecido; tampouco
o desenvolvimento de um fruto é exigido pela flor ou o desenvolvimento
de um ser humano pelo embrião. Todos esses fenômenos são apenas
mudanças regulares e, portanto, previsíveis. A visão de que uma
tendência, isto é – do ponto de vista de uma ciência objetiva da natureza
-, uma mudança previsível de um fenômeno observado, “exige” sua
realização ou sua plenitude equivale à visão de que uma causa exige o
seu efeito. Isto é, apesar da afirmação de Wild no sentido contrário, uma
interpretação teleológica ou normativa da natureza.
Caso aceita a visão de que existem na natureza tendências imanentes
que exigem sua própria realização, então se a mudança esperada pelo
observador não se produziu, isto é, se a entidade em questão toma um
estado diferente do esperado, esse estado também deve ser
considerado a “realização” de uma tendência. Do ponto de vista de uma
ciência objetiva da natureza, que descreve e explica o que é (sem
pressupor uma norma que prescreva o que deve ser), não há motivo
para avaliar uma realização como boa e a outra como má. Se as flores
de uma macieira não se desenvolverem como espera o jardineiro, mas
tornarem-se produtos não comestíveis, estes, para o botânico, serão o
efeito necessário de certas causas, exatamente como a mais doce maçã,
e, portanto, a realização de uma tendência que é tão “natural” ou
“existencial” como a que tem como realização a fruta comestível.
O fato de que uma mudança esperada é o curso normal de mudança
significa apenas que é regular, isto é, em conformidade com uma regra
que descreve a conduta atual de entidades existentes. Identificar o
curso normal de uma mudança com a bondade apóia-se na falácia de
confundir dois significados inteiramente diferentes do termo “normal”:
conformidade com uma regra que descreve a conduta efetiva de
entidades, e conformidade com uma regra que prescreve uma conduta
definida de entidades, isto é, uma norma. Trata-se de confusão
característica de todas as doutrinas do Direito natural – a confusão
entre a lei da natureza e a lei moral. Que a mudança esperada seja boa e
a anormal seja má são juízos de valor que não podem ser obtidos em
uma ciência que descreve e explica a realidade. Esses juízos expressam
a relação de uma coisa com as exigências que não são imanentes a essa
coisa, mas criadas por homens, e que, caso se refiram ao estado ou à
conduta do homem, são apresentadas como normas.
II
A diferenciação entre o bem e o mal, impossível em uma descrição e
explicação da realidade, é essencial a uma doutrina do Direito natural,
que tem em vista normas que regulam a conduta humana. Se tentar
encontrar essas normas em fatos e – como a doutrina dinâmica do
Direito natural – em “tendências” imanentes à realidade, ela deve
diferenciar tendências boas e más, ou qualificar a realização de certas
tendências como boa, e a sua não-realização como má. Ela deve
projetar na realidade o valor que pressupõe. É justamente isto que a
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projetar na realidade o valor que pressupõe. É justamente isto que a
teoria dinâmica do Direito natural está fazendo. A “tese mais
fundamental” envolvida nessa teoria é que valor e existência, embora
distintos, estão estreitamente “interligados”.
Wild diz: “Se os valores não existem de alguma maneira, a reflexão ética
é muito barulho por nada”. Portanto, existir, segundo a teoria dinâmica
do Direito natural, significa o mesmo que ser um “fato” -, os valores têm
de existir da mesma maneira que os fatos. Os principais argumentos
que Wild apresenta a favor de sua tese, de que os valores são fatos, são,
em primeiro lugar, que lutamos para a sua “realização”.
A teoria dualista não nega que os valores podem ser realizados, mas
isto significa apenas que ocorreu um fato, que, na opinião do
observador, está em conformidade com um valor ou uma norma
prescrita por ele como válida. Não significa que o fato seja o valor ou a
norma, ou que o valor ou a norma sejam um fato de qualquer tipo.
O segundo argumento é a afirmação de que, se os valores não “existem”
de alguma maneira, a reflexão ética é muito barulho por nada, isto é,
que o dualismo relativista de existência e valor torna a “ética” e a
“justificação moral” impossíveis; isto conduz ao “niilismo moral”, ou seja:
se os valores não são fatos, não há valores em geral e valores morais
em particular, e, portanto, nenhuma ordem moral é possível.
Este argumento seria insustentável mesmo se fosse verdade que não
pode haver valores morais ou uma ordem moral, se os valores não
forem fatos. O positivismo relativista e dualista não afirma que não
existam valores, ou que não exista uma ordem moral, mas apenas que
os valores em que os homens realmente crêem não são valores
absolutos, mas relativos, e que não existe uma, mas que existem muitas
ordens morais diferentes, sob cuja validade efetiva os homens de fato
vivem e sempre viveram.
Há uma ligação essencial entre o conceito de “valor” de o de “norma”.
Uma norma constitui um valor. Da afirmação de que uma norma
“existe” não decorre que ela exista como um fato e, portanto, esteja
encerrada na realidade. A afirmação significa apenas que uma norma é
válida, que foi criada por um ato humano, e isso significa que a norma é
o significado específico de um ato humano. Esse ato existe como fato e
pode ser descrito por um enunciado de “ser”; mas seu significado de
que algo deve ocorrer não é um fato. Só pode ser descrito por um
enunciado de “dever ser”.
A visão de que os valores são imanentes à realidade ou de que as
normas não feitas por homens estão encerradas na existência
fundamenta-se, consciente ou inconscientemente, em uma
interpretação teológica do mundo; ou seja, se as normas não são feitas
por um ser humano, então teriam sido feitas por Deus, o mesmo que
fez a realidade.
III
Então surge o problema de como distinguir bem e mal como fatos
existentes. Para solucionar esse problema, Wild introduz o conceito de
“plenitude”.
A informação de que algo, se for “completado”, é bom, e, se não for
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completado, se for privado de algo, é mau, é tautológica pois, no
conceito de “plenitude”, o valor do bem e, no de privação, o valor do
mal, já estão implícitos.
Do ponto de vista da mera da mera descrição e explicação da realidade,
todas as entidades são completas tal como são, e, se o estado concreto
no qual uma entidade no curso de sua mudança existe é interpretado
como um estado de não plenitude ou privação, todas as entidades são
sempre incompletas ou “privadas” de algo. Uma criança é incompleta
porque ainda não é um homem, e um homem é incompleto porque
ainda não é velho, e um velho é incompleto porque ainda não está
morto.
Então existe não apenas uma tendência para a vida, mas também uma
tendência para a morte; e se – como a teoria dinâmica do Direito
natural supõe – a realização de uma tendência é boa, a realização de
uma tendência para a morte é tão boa quanto a realização de uma
tendência para a vida. Então é impossível fundar em tendências
imanentes à existência a norma fundamental que, como veremos mais
tarde, a teoria dinâmica do Direito natural pressupõe, a saber, que a
vida deve ser preservada e promovida. Se o valor (ou desvalor) é
imanente à existência, todas as coisas existentes são boas ou todas são
más. Então é impossível distinguir na existência o bem e o mal, porque
tanto um como outro coincidem com a existência. Tal distinção é
possível apenas se for pressuposta uma norma que prescreva o que
deve ser. Apenas então é possível julgar que uma entidade é completa,
isto é, que é o que deve ser; ou que é incompleta, privada de algo, isto é,
que não é como deve ser. A teoria dinâmica do Direito natural não
consegue superar essa dificuldade.
Até agora a teoria dinâmica do Direito natural não produziu nada além
da asserção de que existem, na natureza humana, assim como em
todas as entidades finitas, tendências para a plenitude, o
preenchimento ou a perfeição, isto é, a tese fundamental de sua visão
dinâmica de mundo, a qual projeta na realidade as normas que
pressupõe. Esta projeção torna-se evidente pelo fato de que Wild, com
base em nada mais além da asserção infundada de que existem
“tendência aperfeiçoadoras” na natureza humana, chega à conclusão:
“Quando assim compreendidas e expressas em proposições universais,
essas tendências são normas ou leis morais”.
Segundo a teoria dinâmica do Direito natural, o juízo de que uma
entidade encontra-se em estado saudável ou doentio é um enunciado
sobre um fato observável, experimentado e, ao mesmo tempo, um juízo
de valor.
O juízo de que uma entidade viva encontra-se em um estado correto ou
saudável pode, realmente, referir-se a um mero fato, o fato de que as
funções vitais dessa entidade não estão impedidas. Se esse juízo implica
a idéia de que o estado correto ou saudável é bom, ele assume o
caráter de um juízo de valor, e tal juízo de valor só é possível se o sujeito
que julga pressupõe uma norma exigindo que esse estado correto deva
ser. O estado correto de uma cobra venenosa é bom para a cobra, se
pressupomos que ela quer viver; mas, para os homens que destroem a
vida desses seres para salvar a sua própria, ele é mau. Os homens
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vida desses seres para salvar a sua própria, ele é mau. Os homens
pressupõem a norma de que a vida humana deva ser preservada.
O caráter bom ou mau de um estado não é, como sua saúde ou sua
enfermidade, um fato observável, experimentado; é a conformidade ou
não conformidade com uma norma pressuposta pelo observador.
Uma identificação correta com bondade é especialmente impossível se
bondade significar valor moral, e trata-se de um valor moral almejado
pela doutrina do Direito natural. Os valores morais aplicam-se apenas à
conduta humana; e os termos “correto” e “incorreto” referem-se – na
linguagem usual – antes a estados biológicos que a ações humanas. Se
aplicados a ações humanas, podemos talvez dizer que, se um homem,
por meio de sua conduta, preserva sua vida, sua conduta é correta. A
correção de sua conduta é um fato observável; é o efeito dessa conduta.
Mas a resposta à questão de ser boa ou má essa conduta correta
depende das normas que pressupomos, não pode ser descoberta pela
observação e análise da conduta.
A identificação do fato do caráter sadio com o valor moral da bondade,
apesar da afirmação de Wild em sentido contrário, é a projeção de um
valor subjetivo na realidade objetiva.
IV
Para sustentar o parecer de que a distinção entre um estado sadio e um
estado doentio prova que os valores do bem e do mal são imanentes à
realidade é introduzida a distinção entre tendências essenciais e
tendências não essenciais ou acidentais. Isso não é coerente pois, em
uma de suas versões, a teoria dinâmica do Direito natural conhece
apenas um tipo de tendência: a tendência para a plenitude.
Segundo a teoria dinâmica do Direito natural, não existem tendências
para o “incorreto”. O mal é o resultado do fato de que uma tendência é
“deformada” ou “distorcida” e, portanto, permanece em estado
privativo ou incompleto. Contudo, na medida em que essa doutrina não
responde à questão de como distinguir, por meio de uma observação
imparcial, fatos distorcidos (e, como tais, maus) de tendências não
distorcidas (e, como tais, boas), ela não fornece esse “padrão estável e
universal”.
Esse padrão é fornecida pela distinção mencionada acima, que
desempenha um papel decisivo na teoria dinâmica do Direito natural, a
distinção entre tendências “essenciais” ou “naturais” e, que se
conformam à natureza do homem, e tendências que não são essenciais
ou naturais, mas acidentais. Apenas aquelas constituem, segundo a
teoria dinâmica do Direito natural, “o que é comumente designado lei
moral”, e, consequentemente, são chamadas “direitos”. Essa distinção
não é compatível com a visão de que “o que existe sempre contém em
germe tendências para o correto”, embora essas tendências possam
ser impedidas de atingir o seu objetivo por serem deformadas ou
distorcidas.
Wild posteriormente caracteriza as tendências essenciais, isto é,
naturais, de tal maneira que elas podem ser consideradas inerentes
apenas aos seres humanos. Ele diz que existem duas características
distintivas de uma tendência natural ou essencial: “primeiro, ela é
compartilhada por todos os membros da espécie; segundo, sua
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compartilhada por todos os membros da espécie; segundo, sua
realização, pelo menos até certo grau, é exigida para o viver da vida
humana. Assim, a necessidade de alimento é uma tendência natural; o
desejo de torturar outros homens não é”. “O padrão de ação
universalmente exigido para o viver da vida humana é essencial. É o
padrão do Direito natural”.
Na verdade, segundo a teoria dinâmica do Direito natural, as tendências
que existem na natureza humana manifestam-se em desejos, em
“desejos naturais”, que essa teoria distingue de “apetites acidentais”. A
necessidade de alimento é uma tendência essencial ou natural porque é
um desejo natural, em contraposição ao desejo de torturar outros
homens, que não é uma tendência natural porque – segundo a teoria
dinâmica do Direito natural – não é compartilhada por todos os
membros da espécie humana.
É claro que pode existir uma “necessidade” de alguma coisa, isto é, que
alguma coisa possa ser, segundo nosso conhecimento, necessária à
preservação da vida humana, sem que o homem sinta um desejo dela.
Mas isso é diferente de um impulso efetivamente sentido,
compartilhado por todos os seres humanos.
Se as normas do Direito natural têm de ser fundamentadas em desejos
naturais, isto é, desejos compartilhados por todos os seres humanos,
não é possível estabelecer um sistema de normas naturais
regulamentando a vida social dos homens. Pois não há outro desejo
natural compartilhado por todos os homens que não o alimento. A
necessidade de educação certamente não se baseia em um desejo
efetivamente sentido por todos os homens e certamente não é
necessária para preservar a vida do homem.
Se o desejo de alimento é uma “tendência”, então o desejo de torturar
outros homens também é uma tendência, embora uma tendência que
não é compartilhada por todos os homens. Isto está em conflito aberto
com a visão de que existem tendências para o correto e que o mal
consiste no fato de que uma tendência – voltada para o correto – é
deformada ou distorcida. O desejo de torturar outros homens não pode
ser concebido como uma tendência para o correto deformada ou
distorcida. Além disso, as tendências constitutivas da natureza humana
que são desejos evidentemente são diferentes das tendências
imanentes à natureza de outras entidades que não os seres humanos,
as tendências que um físico pode prever a partir do conhecimento da
estrutura dessas entidades. Então, o termo “tendência” é usado com
dois significados totalmente diversos. Se esse não for o caso, as
tendências, que a teoria dinâmica do Direito natural supõe existir na
parte da natureza que não é humana, devem ser também desejos ou
algo similar a desejos; e, então, sua implicação teleológica não pode ser
negada.
V
A norma pressuposta pela teoria dinâmica do Direito natural é a norma
de que a vida humana deve ser vivida, ou, mais precisamente
formulado, que a vida humana deve ser preservada e promovida. Isso
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implica que a vida humana, a vida de todo ser humano, é o valor
supremo.
Wild afirma que a distinção entre o que é essencial e o que é acidental
consiste em “separar os traços que estão necessariamente envolvidos
na existência da coisa ou da relação daqueles que são meramente
extrínsecos e acidentais”. Contudo, se uma tendência constitutiva da
existência humana é essencial na medida em que sua realização é
exigida caso a vida humana tenha de ser vivida, isto é, na medida em
que se conforma à norma pressuposta de que a vida humana deve ser
preservada e promovida, então o termo “essencial” tem outro
significado que não o de um traço necessariamente implicado na
existência de uma coisa. Se “essencial” significa necessariamente
implicado na existência de uma coisa, então, do ponto de vista de uma
descrição e explicação imparcial das coisas, não existem traços
implicados na existência de uma coisa concreta que sejam
necessariamente implicados.
O significado de uma definição não é – como o de uma norma – que
uma coisa deve ter alguns traços, mas apenas que, se ela não tem os
traços envolvidos na definição, não é a coisa definida. A conduta
humana pode estar em conflito com a tendência essencial, isto é, o
homem pode violar a norma de que a vida humana deve ser preservada
e promovida se, por exemplo, um homem cometer suicídio ou
assassinato; mas ele continua a ser um ser humano. Se, porém, um ser
carece dos traços implicados na definição de “ser humano”, ele não é
um ser humano.
Conseqüentemente, uma tendência que constitui a existência humana é
essencial ou natural apenas porque a sua realização está em
conformidade com a norma pressuposta de que a vida humana deve
ser preservada e promovida, e não porque está necessariamente
implicada na existência de um ser humano.
VI
“Obrigação” é um conceito fundamental de qualquer teoria jurídica ou
moral. A afirmação de que uma norma ou obrigação é “compulsória”
para o indivíduo significa que ele deve conduzir-se como a norma
prescreve. É importante distinguir tão claramente quanto possível entre
obrigação no sentido normativo do termo e o fato de que um indivíduo
tem a idéia de uma norma ou obrigação, de que essa idéia tem certa
influência motivadora sobre ele e, finalmente, leva a uma conduta em
conformidade com a norma.
É costumeiro caracterizar o caráter obrigatório de uma obrigação,
assim como o efeito motivador que a idéia de norma tem na mente de
um indivíduo, como uma “necessidade”. O termo “necessitar” é usado
com dois significados diferentes. O primeiro significado expressa uma
relação normativa, o segundo uma relação causal. A mesma
ambigüidade prevalece no termo “compulsório”. Que uma obrigação
seja compulsória pra um indivíduo pode significar não apenas que o
indivíduo deve conduzir-se em conformidade com a obrigação, mas
também que a idéia da obrigação tem um efeito motivador sobre ele.
Todas as tentativas de fundamentar a obrigação no fato baseiam-se na
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Todas as tentativas de fundamentar a obrigação no fato baseiam-se na
confusão de obrigação no seu sentido normativo com a idéia que um
indivíduo tem de uma obrigação e o efeito motivador dessa idéia.
A teoria da obrigação de Wild é um exemplo típico dessa confusão. Ele
tem consciência do significado normativo específico do termo,
reconhece que esse conceito expressa o “caráter de dever”, que o
“dever ser” não é idêntico ao “ser” e que um não pode ser inferido do
outro. Contudo, ele caracteriza a obrigação como um “sentimento
humano” e afirma que a “obrigação” “é claramente um impulso, ou
tendência, factual, que nos liga existencialmente ou nos impele a certos
valores”. Isso significa que ele reduz o “dever ser” ao “ser”.
É evidente que somos “fisicamente impelidos ou obrigados” apenas pela
idéia apenas pela idéia que temos em nossa mente de uma obrigação,
que pode ser um “impulso”, isto é, um motivo mais ou menos eficaz e,
como tal, um fato psicológico, um “sentimento” que pode “impelir-nos”
em certa direção, especialmente para cumprirmos a obrigação de que
temos uma idéia e, assim, realizarmos um valor. Mas certamente não é
o “caráter de dever” que nos impele ou obriga fisicamente, pois isso
pode ser apenas o efeito de um fato existente, e o “caráter de dever”
não é um enunciado sobre um fato existente.
Para Wild, “a obrigação parece ser um tipo de necessidade que obriga e
compele”. Segundo essa teoria, a obrigação moral é o resultado da
“transformação do apetite bruto”, cujos dois passos são “o
reconhecimento racional das necessidades naturais” e do “”valor
universal que satisfará a necessidade”.
Do fato de que um homem sente uma necessidade urgente que ele
sabe ser compartilhada por todos os homens e necessária à
preservação e promoção da vida humana e de que, além disso, conhece
o valor que satisfará a necessidade, decorre – segundo a teoria
dinâmica do Direito natural – que ele está moralmente obrigado, isto é,
deve realizar esse valor. Trata-se de uma conclusão a partir do que é
para o que deve ser feito.
Essa falácia poderia ser evitada se a teoria dinâmica afirmasse a
seguinte norma fundamental do Direito natural: os homens devem
conduzir-se de certa maneira se sentirem uma necessidade urgente que
sabem ser compartilhada por todos os homens e que sua satisfação é
necessária para a preservação e a promoção da vida humana, e, se
sabem, além disso, que essa conduta constitui a satisfação dessa
necessidade. É evidente que nenhuma ordem moral pode ser
fundamentada em tal norma. O fato de que um homem, por causa de
sua ignorância, não sabe ou não se importa se a necessidade que sente
é compartilhada por todos os homens, ou o fato de que ele está errado
quanto ao valor que satisfará adequadamente a essa necessidade, não
podem livrá-lo da obrigação moral em questão.
Ainda mais importante: a necessidade de alimento é a única que satisfaz
às exigências da teoria dinâmica. A necessidade de educação, a outra
necessidade apontada por essa teoria, não é compartilhada por todos
os homens nem necessária à preservação da vida humana. Aplicada à
necessidade de alimento – ou à “tendência de fome”, a teoria dinâmica
conduz ao resultado absurdo de uma obrigação moral de comer e
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conduz ao resultado absurdo de uma obrigação moral de comer e
beber. Pois comer e beber são o valor universal que satisfará a essa
necessidade. Comer e beber podem ser um direito natural, mas não
uma obrigação.
O direito de um indivíduo de conduzir-se de certa maneira é
condicionado pela obrigação de outro ou de todos de não impedir o
primeiro ou de capacitá-lo a exercer o seu direito. Uma teoria moral
pode afirmar a obrigação de não privar o homem do meio de satisfazer
sua necessidade de alimento ou – como afirma a doutrina socialista – a
obrigação de garantir a todos uma satisfação perfeita dessa
necessidade. Essas obrigações, porém, não decorrem do fato de que a
necessidade de alimento é comum a todos os homens, mas decorre
exclusivamente do pressuposto de que a satisfação dessa necessidade
é “exigida para o viver da vida humana”. Isto, tal como assinalado, só
pode significar: a partir de uma norma pressuposta pela teoria moral
que afirma essas obrigações, que exige que a vida humana deva ser
preservada e promovida.
VII
Essa norma não pode ser fundada sobre fatos experimentados e
observáveis. Não se pode provar que uma tendência – no sentido de
mudança ou desejo previsível – para a preservação e a promoção da
vida em geral ou da vida humana em particular seja imanente à
natureza em geral ou à natureza humana em particular. É perfeitamente
possível que o desenvolvimento cósmico conduza a uma total
destruição da vida, especialmente da vida humana. Assim, a suposição
de uma tendência cósmica à destruição da vida não está excluída.
No que diz respeito à vida humana, há realmente um fato que pode ser
interpretado como uma tendência para a preservação e a promoção da
vida humana. É o instinto de autopreservação. Contudo, trata-se de
uma tendência para a preservação e a promoção da própria vida, e a
realização, plenitude ou conclusão dessa tendência só é possível à custa
da preservação e da promoção da vida de outros seres. A necessidade
de alimento, reconhecida pela teoria dinâmica do Direito natural como
tendência essencial ou natural, dita a destruição da vida de plantas e
animais. Além disso, há situações em que a vida de um ser humano só
pode ser preservada com sacrifício da vida de outro ser humano,
mesmo que tal conduta não seja necessária para preservar ou
promover a própria vida.
Se uma doutrina do Direito natural afirma que preservar ou promover a
própria vida à custa da preservação e promoção da vida de outros seres
humanos é contra a natureza do homem, ele não se refere à natureza
humana tal como ela realmente é, mas à natureza humana tal como
deveria ser em conformidade com uma norma pressuposta. Ela não
infere uma norma a partir da natureza real, mas infere uma natureza
ideal a partir de uma norma pressuposta.
O ponto decisivo é que essa tendência está voltada para a preservação
e a promoção da própria vida, é a expressão do egoísmo, ao passo que
todas as ordens morais, isto é, sociais, especialmente uma ordem moral
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que afirma ser lei natural e, portanto, válida sempre e em toda parte,
estão voltadas contra o egoísmo do homem, sua tendência para
satisfazer aos próprios interesses à custa dos interesses dos outros.
Elas tentam restringir essa tendência: estão fundamentadas no
princípio do altruísmo. A necessidade de alimento – o principal exemplo
de uma tendência natural sobre a qual a teoria dinâmica do Direito
natural afirma fundamentar as normas desse Direito – é, como tal,
moralmente indiferente. O que conta é apenas como essa necessidade
ou desejo de um indivíduo é satisfeito em relação com a mesma
necessidade ou desejo dos outros indivíduos, e, nesse contexto, essa
tendência “natural” não é uma base possível para normas naturais.
Se as normas naturais estão “encerradas” na existência, como afirma a
teoria dinâmica do Direito natural, essas normas devem ter encontrado
expressão em ordens morais ou jurídicas positivas, isto é, ordens
sociais que efetivamente existem ou existiram, no sentido de que suas
normas são ou foram eficazes, isto é, geralmente aplicadas e
obedecidas por homens vivendo sob essas ordens. Mas a norma
fundamental pressuposta pela teoria dinâmica do Direito natural, a
saber, que a vida humana deve ser vivida, ou, o que dá no mesmo, que a
vida de todo ser humano deve ser preservada e promovida, nunca foi
reconhecida por nenhum sistema moral ou jurídico positivo. A norma
implica a idéia de que a vida humana, a vida de todo ser humano, é o
valor supremo. Certamente não é essa a idéia de moralidade cristã, que
considera a vida, isto é, a vida do homem neste mundo, como má, e
apenas a existência transcendental em outro mundo como boa. Os
sistemas morais ou jurídicos efetivamente estabelecidos entre vários
povos não consideram e não consideraram a vida de todos os seres
humanos como igualmente valiosa. O mesmo se aplica à escravidão,
justificada por filósofos como uma instituição natural e justa, e aos
sistemas morais que estão na base das ordens jurídicas positivas de
nosso tempo que reconhecem a guerra como ação legítima e, portanto,
não pressupõem que a vida de seres humanos pertencentes ao inimigo
deva ser preservada e promovida.
Se todas essas ordens sociais são ou foram realmente eficazes, como
poderiam ser consideradas contra a natureza humana, se a natureza for
tomada efetivamente como é e como se manifesta na vida social dos
homens?
Uma filosofia “realista” e “empírica”, como a teoria dinâmica do Direito
natural afirma ser, certamente não está em condições de negar que a
realidade social é uma manifestação da natureza humana, e a realidade
social é o Direito positivo, não um Direito natural imaginário.
VII. JUÍZOS DE VALOR NA CIÊNCIA DO DIREITO
Na teoria do Direito encontramos dois tipos de juízos que são
considerados juízos de valor. Um refere-se à conduta dos sujeitos do
Direito e qualifica essa conduta como lícita ou ilícita (VALORES DE
DIREITO). O outro se refere ao próprio Direito ou à atividade do
legislador que cria o Direito, sendo o seu produto justo ou injusto
(VALORES DE JUSTIÇA). A atividade do juiz também pode ser considerada
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(VALORES DE JUSTIÇA). A atividade do juiz também pode ser considerada
justa ou injusta, mas apenas na medida em que ele atua na condição de
criador de Direito. Na medida em que apenas aplica o direito, sua
conduta é qualificável como lícita ou ilícita, exatamente como a conduta
dos que estão sujeitos ao Direito.
Esses dois tipos de juízos implicam que certo objeto tem valor
afirmativo ou negativo, que é “valorável”.
Qual o significado desses juízos? O que eles afirmam?
A questão só pode ser respondida analisando-se o que os envolvidos
com o Direito – legisladores, juízes, advogados, partes e juristas –
querem realmente dizer quando emitem tais juízos.
Quanto aos juízos que atribuem à qualidade de “lícita” ou “ilícita” a certa
conduta humana, podem ser verdadeiros ou falsos.
Como o direito se manifesta na forma de uma ordem jurídica positiva, a
mesma conduta pode ser lícita relativamente a tal ordem jurídica e
ilícita relativamente à outra.
“Norma” é uma regra que determina ou proíbe certa conduta é o “dever
ser”.
II
Segundo uma teoria amplamente aceita, todo valor é função de um
interesse, significa que alguém está afirmativa ou negativamente
interessado no objeto. Um valor existe quando um fato psíquico existe,
se esse deixar de existir, o valor desaparece ou se modifica.
O interesse pode ser da pessoa que faz o juízo ou de alguma outra. O
juízo não é o “dever ser”, mas o “ser”.
O juízo de valor afirma que alguém valora um objeto.
Nessa teoria, o valor e a realidade (existência) não são opostos.
São opostos, porém, se o juízo de valor afirma uma relação entre o
objeto valorado e uma norma, “dever ser”, cuja existência é pressuposta
pela pessoa que emite o valor.
Nessa teoria normativa, a significação do juízo de que uma pessoa se
conduz lícita ou ilicitamente é que ela se conduz ou não segundo a
norma.
O valor é um “dever ser”. Apenas se concebemos o valor como uma
relação entre objeto e uma norma faz sentido traçar uma distinção
entre juízos de valor e juízos de fato.
A decisão do parlamento é um evento natural, um fato da realidade
natural que ocorre em certo tempo e em certo lugar do mundo. É uma
vontade coletiva voltada para um mesmo fim. Não é necessário decidir,
por enquanto, se essa interpretação psicológica é correta ou não,
somente que é evento natural, que enuncia que certos indivíduos
querem tal decisão. A teoria do interesse, assim, seria aplicável também
aos juízos jurídicos de valor e aos valores de direito. Descobriremos,
porém, que tal interpretação dos valores de direito não pode ser
cogitada.
III
A aplicação da teoria do interesse aos valores de Direito é o resultado
de uma identificação falaciosa (enganosa) da norma jurídica com o ato
por meio do qual é criada. A norma e o ato que cria a norma são duas
entidades que devem ser mantidas separadas, para obter uma
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entidades que devem ser mantidas separadas, para obter uma
descrição satisfatória do fenômeno do Direito.
A expressão direito “positivo” significa que o Direito é um complexo de
normas “firmadas” ou criadas por certos atos, ao passo que o Direito
“natural” não é criado por ninguém, ele existe independente da vontade,
sendo descoberto por meio do exame da natureza.
Entre o ato criador da norma e o seu significado (isto é, a norma criada
por esse ato) prevalece um tipo de paralelismo similar ao que existe
entre os pensamentos e sentimentos. A norma não é possível sem o ato
do criador, mas os dois são entidades diferentes. O ato criador é a
conditio sine qua non da norma, mas não é a sua conditio per quam.
O criador da norma pode não existir mais e a norma continua a existir.
Um jurista desejoso de encontrar esse momento não investiga o estado
de espírito dos que criaram a norma, isso não importa, mas o conteúdo
da norma que eles criaram.
IV
Supondo que o ato criador de norma é um ato de quem tem o
conteúdo da norma como objeto, a teoria de valor do interesse parece
encontrar pelo menos uma aplicação indireta aos valores do Direito. A
afirmação de licitude ou ilicitude de uma conduta, não pode ser
interpretada como significando que a conduta é ou não é efetivamente
desejada por certas pessoas. Mas talvez possa ser interpretada como
significando que a conduta correspondeu ou não a uma norma que foi
criada por um ato de vontade que tem conteúdo da norma como
objeto.
A decisão parlamentar por meio da qual, segundo a constituição, uma
lei é promulgada não é, de maneira nenhuma, uma “vontade coletiva”.
Ela seria apenas se uma lei não pudesse ser constitucionalmente
promulgada sem que a vontade se desse por maioria absoluta,
contudo, isso não é o que acontece, sendo necessária apenas a maioria
simples, o que demonstra que a minoria não tinha vontade que aquela
determinada lei fosse promulgada. Muitas vezes aqueles que conhecem
o conteúdo da Lei e querem não estão entre aqueles cuja vontade é
decisiva segundo a constituição.
Ainda, uma Lei é expressa em palavras, que em sua interpretação, pode
sofrer diferentes interpretações diversas daquela desejada pelo
legislador. A objeção de que uma norma é sempre criada por ato de
vontade, que tem o conteúdo da norma como seu objeto, é uma óbvia
ficção. Mas, para que possamos afirmar a “existência” de uma norma,
deve sempre existir um fato que “cria” a norma.
V
Que o fato criador de norma não é necessariamente um ato de vontade
que tem o conteúdo da norma como seu objeto é evidente no caso em
que a criação de uma norma se de por um costume. Uma norma de
direito consuetudinário nasce não da vontade do parlamento, mas sim
de condutas costumeiramente tomadas por um grupo social. Os atos
que dão origem a uma norma jurídica não tem o conteúdo dessa norma
como objeto. Aqui o fato não é idêntico à norma, assim como o fato de
que o parlamento aprova um projeto de lei é diferente da norma
correspondente à qual dá origem. A regra de “ser”, que afirma que as
pessoas efetivamente se conduzem de certa maneira, não é a mesma
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pessoas efetivamente se conduzem de certa maneira, não é a mesma
norma de “dever ser”, que estipula que devem conduzi-se dessa
maneira.
A norma pressuposta transforma o costume em um fato criador da
norma, assim como a constituição dá poder legislativo ao parlamento.
VI
O motivo para a validade de uma norma oferece a resposta à questão:
por que uma pessoa deve conduzir-se como a norma prescreve?
Porque a “validade” de uma norma é o seu modo específico de
existência, porque o motivo para a validade de uma norma é também o
fundamento de sua existência. A série de motivos para a validade de
uma norma não é infinita como a série de causas de um efeito. Deve
existir uma razão final, uma norma fundamental, que é fonte de validade
de todas as normas pertencentes a certa ordem jurídica. Embora a
existência de toda norma jurídica seja condicionada por certo fato, não
é um fato, mas uma norma o motivo pelo qual todas as normas do
sistema existem. Isso demonstra que uma norma não é idêntica a seu
fato condicionador.
VII
Os juízos de valor ao domínio do Direito em que as normas devem sua
existência a atos legislativos têm a mesma conclusão de quando elas
são criadas pelo costume, onde somente pode ser base de um juízo de
valor uma norma jurídica, independente de sua natureza, se do
parlamento ou dos costumes, se positivada por pessoas consideradas
autoridades. É o que faz a diferença entre os membros de um corpo
legislativo e os membros de uma quadrilha. A norma legal criada pelo
legislador pressupõe as normas da constituição e, do mesmo modo, o
juízo de valor de que uma conduta é lícita ou ilícita – porque se
conforma ou não a um estatuto – pressupões um juízo de valor
estabelecendo ser a função do legislador uma função legal.
O ato que cria uma constituição de onde todas as outras normas vão
derivar deve igualmente ser qualificado por uma norma, uma norma
não pode receber sua validade de mais nada, a não ser de outra norma.
Um “dever ser” deriva de outro “dever ser”; nunca é conseqüência de
um mero “ser”.
Essa pode ser uma constituição prévia, ou ainda caso seja a primeira
das primeiras, que ainda não é uma norma de direito positivo, ela pode
ser chamada de uma norma hipotética. Essa norma fundamental é à
base de todos os juízos jurídicos de valor possíveis na estrutura jurídica
de um Estado dado.
VIII
A ordem de um Estado é, assim, um sistema hierárquico de normas
legais. O nível mais baixo é composto de normas individuais criadas
pelos órgãos aplicadores de Direito, especialmente os tribunais. Essas
normas individuais são dependentes dos estatutos, que são normas
gerais criadas pelo legislador, e das regras do Direito consuetudinário,
que formam o nível superior seguinte da ordem jurídica, que por sua
vez dependem da constituição escrita ou não escrita, não importa,
sendo essa o nível mais elevado de uma ordem jurídica nacional. Então,
as normas da constituição, não recebem sua validade de alguma norma
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jurídica positiva, mas de uma norma pressuposta pelo pensamento
jurídico, a norma fundamental hipotética. A validade de uma
constituição só é admitida se essa for emenda, caso seja a primeira
constituição histórica do Estado em questão a presunção é de que a
constituição é legal.
IX
O juízo de valor de que a criação da primeira constituição é legal
significa que os indivíduos que a criaram foram autorizados a tanto por
certa norma. É uma norma pressuposta no pensamento jurídico para
sustentar a “existência” de quaisquer outras normas.
A explicação para a criação originária da constituição pode ser
metafísica, remontada à vontade de Deus, sendo esse comando uma
norma transcendental já que escapa ao âmbito da experiência humana,
mas “positiva”, já que – segundo a crença religiosa - foi criada pelo ato
de uma vontade sobre-humana, ou se assim nos recusarmos a aceitar,
somos forçados a deter-nos na norma que foi apresentada aqui como a
norma fundamenta hipotética.
X
Uma análise do pensamento jurídico demonstra que os juristas
consideram válida uma constituição apenas quando a ordem jurídica
nela fundamenta é eficaz. Ser “eficaz” significa que os órgãos e sujeitos
dessa ordem, de um modo geral, conduzem-se de acordo com as
normas da ordem.
A revolução consiste no fato de que uma constituição é substituída por
outra, não em conformidade com suas próprias cláusulas, mas pela
força. Na visão dos juristas o que priva a antiga constituição de sua
validade, de sua existência legal, é precisamente o fato de que ela
perdeu sua eficácia, isto é, que deixou de corresponder à norma
fundamental geral que estabelece o princípio da eficácia. O governo que
é levado ao poder pela revolução e que promulga a nova constituição é
uma autoridade legitima apenas quando é capaz de tornar eficaz a nova
ordem.
XI
O princípio da eficácia refere-se essencialmente à ordem jurídica como
um todo, não à norma jurídica isolada.
Assim, a existência de uma norma jurídica positiva pressupõe: (1) a
eficácia da ordem jurídica total à qual pertence à norma; (2) a presença
de um fato que cria a norma; (3) a ausência de alguma norma que a
“anule”.
A existência de uma norma, a sua validade, é diferente da existência de
um fato.
A eficácia é um fato objetivamente verificável. Na medida em que tal
verificação dos juízos jurídicos de valor é possível, o valore de Direito é
um valor objetivo.
XII
O valor de Direito, tal como concebido pela teoria normativa, é objetivo
também em outro sentido. Segundo essa teoria, um objeto valorável é
valorável para todos, Já segundo a teoria do interesse, um objeto é
valorável apenas para uma pessoa interessada nele, que deseja ou quer
ou não quer esse objeto. Assim, se é norma é criada “para todos” .
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ou não quer esse objeto. Assim, se é norma é criada “para todos” .
Essa objetividade de valores de Direito é limitada apenas na medida em
que sua existência implica a existência (isto é, a validade, o “dever ser”)
de uma norma jurídica, e esta por sua vez, depende da pressuposição
da norma fundamental. Pressupondo a norma fundamental, podem
submeter a uma prova objetiva os juízos jurídicos de valor baseados na
norma fundamental pressuposta. Mas não há nenhuma necessidade de
pressupor a norma fundamental.
XIII
Esse é o motivo por que é possível sustentar que a ideia de uma norma,
um “dever ser”, é meramente ideológica. Um conceito ideológico é um
conceito que cumpre outra função além da de descrever e explicar a
realidade.
Se o sistema de normas jurídicas é uma ideologia, é uma ideologia
paralela a uma realidade definida. Essa realidade consiste na eficácia do
sistema como um todo e nos fatos que constituem a criação ou a
anulação de normas particulares, pode ser denominada uma realidade
social, a designação “social” pressupõe que esta realidade é
interpretada à luz de uma ideologia normativa. Essa realidade social
muitas vezes opõe-se ao Direito, como “poder” opõe-se a norma. Nesse
sentido o Direito pode ser considerado como ideologia específica de
dado poder histórico. Esse poder geralmente é identificado com o
Estado. Diz-se que o Estado é o poder “por trás” do Direito. Esse
dualismo é muitas vezes uma realidade social e de uma ideologia
condicionada e determinada por essa realidade.
XIV
O valor de justiça não é da mesma natureza que o valor do Direito.
As normas que são efetivamente usadas como padrões de justiça
variam de individuo para individuo e muitas vezes são irreconciliáveis.
Por exemplo, enquanto o liberal considera a liberdade como ideal de
justiça, o socialista vê o ideal na igualdade.
É impossível determinar a norma de justiça de modo exclusivo. Ela é, em
última análise, uma expressão do interesse do indivíduo que pronuncia
uma instituição social como justa ou injusta.
Não há um padrão exclusivo de justiça: o que encontramos
efetivamente é muito ideal diferente e muitas vezes, conflitante.
Existe, porém, um Direito positivo. Seu conteúdo pode ser averiguado
sem ambigüidade por um método objetivo. As normas de Direito
positivo corresponde certa realidade social, mas não às normas de
justiça. Nesse sentido, o valor do Direito é objetivo, ao passo que o valor
da justiça é subjetivo. E isso se aplica mesmo que às vezes em grande
número de pessoas tenha o mesmo ideal de justiça.
Esta investigação dos juízos de valor que surgem na ciência do Direito
parece estabelecer os seguintes resultados.
(1) O valor não é necessariamente uma relação com o interesse. O valor
Também pode consistir em uma relação com uma norma.
(2) O conceito de uma norma (um “dever ser”) é indispensável à
descrição de certos fenômenos. Não tem nenhuma implicação
metafísica.
(3) O significado de uma norma é um “dever ser” em contraposição a um
“ser”.
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“ser”.
(4) Um valor é subjetivo se seu objetivo é valorável apenas para os que
estão interessados nesse objeto. Um valor é objetivo se o seu valor
objeto for valorável para todos.
VIII. O DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL ESPECÍFICA
A essência da técnica jurídica (p. 225)
A técnica social da motivação direta e indireta
A sociedade é o ordenamento da convivência de indivíduos. Essa
convivência constitui – em si – um fenômeno biológico, mas se torna um
fenômeno social pelo fato de ser regulamentada. A ordem social,
constituída pelo complexo de normas, determina como o indivíduo deve
conduzir-se em relação aos outros (conduta recíproca dos indivíduos).
Podem-se distinguir vários tipos ideais de ordens, conforme a maneira
como a conduta socialmente desejada é ocasionada, a depender de sua
motivação, que pode ser indireta ou direta. Um dos motivos para a
conduta está na motivação indireta por meio de normas com sanção,
com a aplicação do princípio da retribuição (princípio de recompensa
ou punição), consistente em associar a conduta em conformidade com
a ordem com a promessa de vantagem; e a conduta contrária à ordem
com a ameaça de uma desvantagem.
Outro motivo, raramente encontrado em forma pura, advém da
motivação direta por meio de normas sem sanção, cuja atração direta
dos indivíduos pela conduta, simplesmente por estar decretada pela
norma, acarreta a conduta em conformidade com a norma, por
obediência voluntária. Esclarece-se que nenhuma norma gera essa
suficiente atração aos indivíduos e que toda conduta social vem
acompanhada de um juízo de valor, que implica uma sanção de ordem
(reação do grupo referente à aprovação ou à reprovação da conduta
pelos seus semelhantes). Logo, a diferença é que certas ordens sociais
prevêem sanções definidas, outras, por outro lado, têm sanções
derivadas da reação automática da comunidade, não expressamente
provida pela ordem.
As sanções providas pela ordem social podem ter caráter
transcendental (religioso) ou social-imanente (social-organizada). As de
caráter transcendental são aplicadas por autoridade sobre-humana,
desta forma, a retribuição emana da divindade, que mantém a ordem
social primitiva por sanções religiosas. Nos primórdios do
desenvolvimento religioso, o homem primitivo associa os seus deuses
com as almas dos mortos. Sem o dualismo Aqui e Além, a retribuição é
realizada no Aqui (morte, doença, má sorte na caça).
As sanções socialmente imanentes (ou socialmente organizadas) devem
ser cumpridas pelos indivíduos segundo dispositivos da ordem social. A
vingança de sangue, entre grupos, é a mais primitiva delas, em que se
reage contra o prejuízo considerado injustificado por um membro de
um grupo estranho. A alma do assassinado compele os parentes a se
vingarem. Por medo de uma sanção imposta pelas almas dos mortos, a
sanção socialmente organizada é garantida por uma sanção
transcendental.
Posteriormente, o desenvolvimento religioso passa-se a considerar a
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divindade em outro plano (Além), e a retribuição divina é adiada para o
Além (céu ou inferno). A ordem social perde seu caráter puramente
religioso, servindo este como suplemento e apoio da ordem social.
Nas duas sanções típicas (punição e recompensa), ganha primazia o
medo do castigo, que se sobrepõe à expectativa de recompensa, cuja
significação é secundária. A técnica da recompensa se desenvolve nas
relações privadas entre indivíduos. A técnica da punição é o método de
ocasionar a conduta socialmente desejada, pela ameaça e a aplicação
de um mal pela conduta contrária. Nesta ordem coercitiva, cuja eficácia
repousa nas medidas de coerção, o mal, quando constitui sanção
socialmente organizada, é aplicado pela privação de posses contra a
vontade do possuidor (não obrigatoriamente com força física, somente
quando há resistência).
Esta ordem coercitiva contrasta com a ordem que prevê sanções
recompensa e a ordem que não executa nenhuma sanção (pela técnica
da motivação direta). Para essas duas últimas ordens, a eficácia repousa
na obediência voluntária. Note-se que a obediência voluntária é, ela
própria, uma forma de motivação, de coerção, e, portanto, não é
liberdade, mas coerção no sentido psicológico (e não no sentido de
privação involuntária de posses).
O Direito como ordem coercitiva que monopoliza o uso da força (p. 230)
Há um elemento comum entre as diversas ordens jurídicas (diferentes
em seu teor e vigentes em diferentes épocas e povos), que justifica o
uso da palavra “Direito” como conceito provido de importante
significado social. Refere-se à técnica social específica de uma ordem
coercitiva , que, apesar das enormes diferenças entre comunidades, é
essencialmente a mesma para todos.
Ordens sociais que perseguem o mesmo objetivo, mas por meios
diversos:
Quadro comparativo
Ordens sociais Medida à conduta contrária Previsão e Caráter Aplicador
1) Direito Medida de coerção prevista na ordem jurídica Provida pela
ordem jurídica e socialmente organizada. ATO da comunidade jurídica
Outro homem, designado pela ordem jurídica (agente da comunidade
social)
2) Moral Reprovação moral Não provida pela ordem moral e não
socialmente organizada Seus semelhantes
3) Religião Castigo (= doença ou morte do pecador) Provida pela ordem
religiosa, não socialmente organizadas, de caráter transcendental. ATO
da autoridade sobre-humana Autoridade sobre-humana (mais eficaz)
O Direito não exclui o uso da força, mas o proíbe nas relações entre
indivíduos. Como o ordenamento promove a paz e pacifica a sociedade,
o Direito autoriza o emprego da força apenas por certos indivíduos e
apenas sob certas circunstâncias, a contrario sensu, para todas as
demais circunstâncias não autorizadas, ele é proibido. Por esse motivo,
o Direito é uma organização da força e faz de seu uso um monopólio da
comunidade, porque apenas o indivíduo, autorizado pela ordem
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comunidade, porque apenas o indivíduo, autorizado pela ordem
jurídica, pode aplicar a medida coercitiva, atuando como órgão dessa
ordem ou da comunidade por ela constituída. Assim, o Direito provê
uma paz relativa, porque admite o emprego da força mesmo que
reservadamente; não provendo uma paz absoluta, cuja condição é a
ausência absoluta de força (estado de anarquia).
Não há um estado de Direito, o qual é essencialmente um estado de
paz. A intervenção da força (medida de coerção) é permitida como
sanção, como reação da comunidade à proibida intervenção forçosa de
um indivíduo nas esferas de interesse alheias, quando a conduta de
abster-se havia sido induzida pelo Direito, por sua técnica social. Desta
forma, protegem-se as esferas de interesses do indivíduo pela ordem
social.
A ideia de uma comunidade sem força
A pergunta central desse tópico é: O Direito é inevitável ou não?
Suposições: a coercibilidade talvez derive do conteúdo peculiar de certa
ordem jurídica, ou talvez não houvesse a necessidade de prever
medidas coercitivas porque os indivíduos não teriam motivos para a
conduta contrária e houvesse motivação direta, por obediência
voluntária.
Faz-se um paralelo com a necessidade do Estado, que também é uma
ordem coercitiva. A história confirmou o brocardo: ubi societas ubi jus,
porque não houve comunidade que não fosse legal, constituída pelo
direito como ordem coercitiva.
A doutrina do anarquismo teórico, pensada e desejada por otimistas e
sonhadores políticos, prevê uma “sociedade livre” de qualquer coerção,
na qual não há nenhuma lei (Direito positivo) e nenhum Estado. A
ordem natural é JUSTA (faz todos os homens felizes), visto que conta
com a obediência voluntária de todos os sujeitos – porque
corresponderia à natureza do homem, e suas relações recíprocas
exigiram apenas o que eles desejassem, não havendo necessidade de
compelir as pessoas à sua própria felicidade.
Essa realidade é vista como ilusão, porque, se possível, já teria sido
realizada. Partindo do conhecimento da natureza humana (provida de
impulso de agressão inato ao homem) e da impossibilidade da
felicidade de todos os homens (diante de incompatibilidades de
vontades), considera-se muito improvável uma ordem natural e justa,
reconhecida de imediato por todos e de pronta obediência, que possa
escapar do risco de ser violada, mesmo que ela assegurasse todas as
vantagens desejadas pelos homens. Supor a satisfação geral é partir de
um pressuposto utópico: de que o homem é bom por natureza.
A doutrina do socialismo marxista representou essa ideia politicamente
com mais sucesso, ao considerar supérfluo o mecanismo de coerção
(Estado e Direito), se fosse abolida a propriedade privada e socializados
os meios de produção, levando à cessação dos conflitos de classes. Os
anarquistas previam a extinção imediata do Estado, já os marxistas
admitiam a extinção do Estado capitalista, substituído pelo Estado
proletário, caminhando para desaparecimento gradual do Estado.
A economia planejada socialista – para o grau mais elevado de
produtividade – exige um caráter autoritário, gerido por um gigantesco
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produtividade – exige um caráter autoritário, gerido por um gigantesco
corpo administrativo hierarquicamente organizado, com tendências
totalitárias, limitando a liberdade do indivíduo mais severamente. Este
Estado deve contar com perturbações da parte de seus cidadãos,
mesmo que não seja por necessidades econômicas, mas por outras
necessidades (desejo de prestígio, libido, sentimentos religiosos).
Mesmo no socialismo, há necessidade do Direito, pelo uso de suas
medidas de coerção quando não houver obediência voluntária de seus
sujeitos em todos os sentidos. Não se pode esperar que medidas
preventivas possam ser tão eficazes a ponto de tornar as medidas
repressivas inteiramente supérfluas.
A evolução da técnica jurídica
Diferenciação da relação dinâmica entre a criação e a aplicação do
direito
A relação fundamental da estática do Direito (em estado de repouso) é a
estabelecida pela norma jurídica entre delito e sanção, em que a ordem
jurídica vincula uma sanção a uma conduta, denominada delito, para
induzir a conduta oposta, que não invocará sanção.
Na perspectiva do Direito em seu movimento específico e no processo
da criação do Direito, observa-se que Direito regulamenta a sua própria
criação, exigindo, para que a norma pertença à ordem jurídica, que ela
passe a existir de uma certa maneira, estipulada por norma da própria
ordem.
O Direto Natural não precisa ser criado pelo ato do homem, apenas
reconhecido por ele como Direito emanado da natureza. Por outro lado,
o Direito positivo não tem apenas de ser criado, mas deve ser aplicado.
Há dois métodos de criar Direito: 1. Costume (conduta similar e repetida
do sujeito); 2. Legislação (ato consciente de um órgão especial
estabelecido para o propósito de criar Direito).
A dinâmica típica do Direito está na progressão entre a criação e sua
aplicaçã, que pode ser dividida em etapas: (i) a criação de uma norma
geral abstrata, (ii) a criação da norma individual decretando a sanção
pelo tribunal (no caso concreto); (iii) execução da norma individual
(aplicação da sanção).
No sistema primitivo, a dinâmica era dividida em apenas duas etapas (i)
e (iii), sob a técnica da iniciativa individual, porque a norma geral era
aplicada diretamente ao caso concreto, sem uma norma individual
decretada por um órgão, já que próprio sujeito levava a cabo a sanção.
Com o desenvolvimento dos tribunais, a norma individual decretada (ii)
se insere entre a norma geral (i) e a execução da sanção (iii).
O processo de criação das normas gerais também tende desenvolver-
se, havendo hierarquia de normas gerais e individuais (etapas:
constituição → estatutos com base na constituição → decretos com
base nos estatutos → regulamentos com base nos decretos →→→→→
grau mais baixo: execução da medida concreta).
Diferenciação da relação estática entre delito e sanção
Diferenciação da sanção: Direito Criminal e Direito civil.
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Originalmente havia apenas a sanção penal, entendida como punição.
Depois surgiu a execução civil, pela privação coercitiva da propriedade
para compensar o dano ilicitamente causado. Como semelhança:
ambas as sanções garantem a conduta desejada pela mesma técnica
social, qual seja a reação contra o delito na forma de um ato de coerção
como sanção.
Quadro comparativo de distinções
Sanções Propósito Uso da propriedade tomada à força Processo judicial
Forma
Civil Reparação do dano causado Devolvida ao sujeito ilegalmente
prejudicado Iniciado por exigência de um sujeito específico.
Processo contencioso Disputa entre duas partes.
Princípio da propriedade privada
Penal Retribuição ou prevenção* Cabe à comunidade jurídica Iniciado ex
officio (exigência do órgão da comunidade) Disputa entre um órgão da
comunidade e o infrator.
* A distinção é relativa, porque a civil tem uma função preventiva,
mesmo que secundariamente.
Diferenciação da sanção: responsabilidade coletiva e responsabilidade
individual.
O princípio da responsabilidade individual consiste na técnica jurídica
mais refinada em que apenas aquele que comete o delito deve ser
responsável pelo delito, contra quem a sanção será dirigida. Por outro
lado, o princípio da responsabilidade coletiva dirige a sanção ao próprio
indivíduo que comete o delito e a todos os membros do grupo social a
qual ele pertence.
No direito primitivo, o indivíduo é identificado como elemento integral
de seu grupo, ele não é auto-suficiente. Os méritos e deméritos
individuais são dirigidos a todo o grupo. A responsabilidade coletiva é
um elemento típico do estado de justiça que ainda subsiste o princípio
da iniciativa individual, sendo que a vingança de sangue é dirigida contra
a pessoa que cometeu o feito e toda sua família. O desenvolvimento
técnico do direito progride da responsabilidade coletiva para a
individual.
Diferenciação do delito: responsabilidade absoluta e culpabilidade
Responsabilidade absoluta responsabiliza por um resultado
socialmente prejudicial ocasionado pela conduta do indivíduo, sem
levar em conta se ele agiu com intenção ou negligência. No caso de
culpabilidade, deve-se existir também uma ligação mental específica
(intenção, negligência, culpa).
Nas ordens jurídicas primitivas, o caso da culpabilidade é desconhecido.
O desenvolvimento técnico do Direito evolui da responsabilidade
absoluta para a culpabilidade, como regra geral, pois existem
importantes exceções nas ordens jurídicas modernas (ex.
responsabilidade das pessoas jurídicas).
A centralização
O direito primitivo é descentralizado, porquanto todas as funções de
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O direito primitivo é descentralizado, porquanto todas as funções de
criação e de aplicação do direito são executadas por todos os sujeitos.
Com o desenvolvimento do Direito, a centralização da função de
aplicação da sanção precede a centralização da função de criação do
Direito. No Direito consuetudinário, ainda não havia órgãos legislativos
especiais (as normas gerais eram criadas pela colaboração de todos os
indivíduos sujeitos à ordem jurídica: método descentralizado de criar
Direito), mas a aplicação do Direito era centralizada pela função
exclusiva dos órgãos especiais (juízes, órgãos especiais diferentes e
independentes das partes em conflito).
Diante deste panorama, reconhece-se que não existem, no domínio do
Direito, fatos absolutos (“fatos em si”). Qualquer opinião quanto à
existência de um fato (opinião subjetiva), tal como determinado pela
ordem jurídica, é irrelevante do ponto de vista jurídico. A existência do
fato está condicionada à opinião autêntica (opinião da autoridade
instituída pela ordem jurídica) e só assim, pelo processo prescrito, a
ordem jurídica vincula certa punição a um fato.
Para o desenvolvimento técnico do Direito, nenhum outro passo foi tão
importante quanto o estabelecimento de tribunais, porque possibilitou
a aplicação do Direito a todos os casos.
Os tribunais atuavam como tribunais de arbitragem (tentar um acordo,
decidir se houve delito, autorizar a parte a executar a sanção).
Posteriormente, há centralização da execução, por um órgão da
comunidade jurídica, o que dependia de uma administração poderosa.
A centralização da função judicial e da administração, mesmo sem um
órgão legislativo, transforma uma comunidade primitiva em Estado, que
é uma ordem jurídica centralizada.
Nas relações intertribais, o primeiro órgão central foi o chefe, que
posteriormente surge como juiz e não legislador. No início do
desenvolvimento, as funções judiciais e legislativas ficam em primeiro
plano. Recentemente vê-se o Estado judicial transformado em Estado
administrativo, com o crescente número de leis administrativas. A
administração indireta (técnica do Estado liberal-capitalista) utiliza a
mesma técnica do judiciário, ao induzir, por meio da ameaça de uma
sanção, a conduta do cidadão considerada desejável pela
administração. Diferencia-se da administração direta (técnica do Estado
socialista), que é voltada para os órgãos públicos e se distingue da
atividade judicial.
O capítulo finaliza com uma análise do Direito internacional, associando
sua estrutura com as características do direito primitivo, porque
radicalmente descentralizado, com criação das normas pelos costumes,
ausência de órgão especial para aplicação das normas, iniciativa
individual da parte dos sujeitos, responsabilidade coletiva e
responsabilidade absoluta, mas com a peculiaridade de ter pessoas
jurídicas como sujeitos – os Estados. Está progredindo o
desenvolvimento técnico do Direito internacional e, à medida que a
obrigação e a autorização direta dos indivíduos e a centralização
aumentam, a fronteira entre Direito nacional e Direito internacional
tende a desaparecer, aproximando-se à idéia de Estado mundial.
IX. POR QUE A LEI DEVE SER OBEDECIDA?
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IX. POR QUE A LEI DEVE SER OBEDECIDA?
I
Qual é o motivo para a validade do Direito? Para avaliar as diversas
respostas a esta pergunta certos termos devem ser esclarecidos. Por
“Direito” entenda-se Direito positivo – nacional ou internacional. Por
“validade” entenda-se a força obrigatória da lei – a idéia de que ela deve
ser obedecida pelas pessoas cuja conduta regulamenta. A questão é por
que essas pessoas devem obedecer à lei.
II
Uma resposta freqüentemente aceita é que os homens devem
obedecer ao Direito positivo porque e na medida em que ele se
conforma aos princípios da moral. Os princípios morais que se referem
às atividades humanas criadoras e aplicadoras de Direito constituem o
ideal de justiça; segundo este ponto de vista, então, o motivo para a
validade do Direito é a sua justiça. À questão de como esses princípios
morais devem ser determinados, a resposta típica é que eles são, por
assim dizer, imanentes à natureza.
Os pontos de vistas precedentes constituem a doutrina do Direito
natural, que concebe a natureza como uma autoridade legisladora.
Mesmo se aceito que as normas que regulamentam a conduta humana
podem ser deduzidas da natureza, surge a questão de por que os
homens devem obedecer a essas normas. Para esta questão adicional a
doutrina do Direito natural não tem nenhuma resposta. A doutrina
simplesmente pressupõe – talvez como evidente – que os homens
devem obedecer aos comandos da natureza. Esta é a hipótese
fundamental dessa doutrina, a sua norma fundamental, seu motivo
para a validade do direito.
Contudo, essa hipótese fundamental não pode ser aceita por uma
teoria do Direito positivo porque é impossível deduzir a partir da
natureza normas que regulamentem a conduta humana. As normas são
a expressão de uma vontade, e a natureza não tem nenhuma vontade.
Há outro motivo. A doutrina do Direito natural de que o Direito positivo
é válido porque se conforma à justiça conduz a um ou outro dos
seguintes resultados – ambos inaceitáveis para uma teoria do Direito
positivo:
(a) Se todo Direito positivo for considerado válido, todo o Direito
positivo – segunda a doutrina do Direito natural – deve ser considerado
justo, em conformidade com o Direito natural. Desse modo, todo o
Direito feito pelo homem pode ser justificado se for dotado de
autoridade sobre-humana. Se, porém, todo o Direito for justo, então
Direito e justiça são idênticos; e, então, dizer que o Direito é válido
porque é justo equivale a dizer: o motivo para a validade da lei é a lei; a
lei deve ser obedecida porque a lei deve ser obedecida.
(b) Se o Direito é identificado como justiça e o Direito positivo com o
Direito natural, os conceitos de justiça ou de Direito natural tornam-se
sem sentido. Eles têm sentido apenas se existir um antagonismo
possível entre justiça e Direito natural, de um alado, e Direito positivo,
de outro. Na verdade, representantes destacados da doutrina do
Direito natural proclamaram, em nome da justiça ou do Direito natural,
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Direito natural proclamaram, em nome da justiça ou do Direito natural,
princípios que não apenas se contradizem mutuamente, mas que estão
em oposição direta a muitas ordens jurídicas positivas. Todos esses
princípios representam os juízos de valor altamente subjetivos de seus
diversos autores sobre o que consideram justo ou natural. Por
exemplo, se a propriedade individual é um Direito natural, como
declaram alguns autores, então a ordem jurídica de um Estado
comunista não é válida e não passa de uma organização de bandidos.
Mas, se a propriedade jurídica for contrária à natureza, como afirmam
alguns autores, a ordem jurídica de um Estado capitalista não tem
nenhuma chance de ser reconhecida como um Direito válido, a que
seus cidadãos devam obedecer.
Dizer, portanto, que o Direito positivo é válido porque é justo não é uma
resposta para nossa pergunta. A doutrina do Direito natural não
responde à questão de por que o Direito positivo é válido, mas sim à
questão, totalmente diferente, de por que o Direito natural é válido. È a
norma pressuposta de que os homens devem obedecer aos comandos
da natureza. É a sua norma fundamental.
III
Há outra doutrina – a teologia cristã – que oferece uma resposta para
nossa questão. Os homens devem obedecer a qualquer Direito positivo
porque sua obediência é ordenada por Deus, cujos representantes são
as autoridades legislativas. Elas são autorizadas por Deus a produzir
Direito, e, conseqüentemente, esse Direito deve ser considerado não
meramente como um Direito feito por homens mas como um Direito
que tem origem na vontade de Deus. Em última análise, a obediência do
homem é devida a Deus e não ao Direito positivo como tal.
Contudo, a afirmação de que os homens devem obedecer ao Direito
positivo porque Deus assim ordena não é uma resposta final à questão
de por que o Direito positivo é válido. Pois, mesmo se for tido como
certo o fato de que Deus emite esse mandamento, surge a questão de
por que os homens devem obedecer aos mandamentos de Deus. Os
homens devem obedecer ao Direito positivo porque os homens devem
obedecer aos mandamentos de Deus, que ordenou a obediência ao
Direito positivo. Que os homens devem obedecer aos mandamentos de
Deus é uma norma que não pode ser apresentada como emitida por
Deus. Pois, se a autoridade emite uma norma prescrevendo que um
indivíduo deve obedecer à ordem de outro indivíduo, essa norma
implica autorizar o outro indivíduo a emitir a ordem, e o indivíduo
autorizado por essa norma está sujeito a ela exatamente como o
indivíduo obrigado a obedecer. Portanto, uma autoridade que emite tal
norma teria de ser considerada superior a ambos. Deus não pode
autorizar uma norma autorizando Deus a emitir ordens, porque Deus é
ordem suprema. Conseqüentemente, a norma de que os homens
devem obedecer aos mandamentos de Deus não pode ser uma norma
emitida por uma autoridade; pode ser apenas uma norma pressuposta
pela teologia, sua hipótese metafísica, sua norma fundamental. É –
segundo essa doutrina teológica – o motivo para a validade do Direito.
A resposta que a teologia cristã dá a nossa questão, assim como a
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resposta à doutrina do Direito natural, encontra o motivo para a
validade do Direito em uma ordem superior, colocada acima do Direito
positivo – em uma ordem divina ou natural. Segundo ambas as
doutrinas, o Direito positivo em si não tem nenhuma validade.
IV
Esta análise das duas doutrinas demonstra, primeiro, que suas
hipóteses não são aceitáveis por uma ciência do Direito positivo.
Segundo, deve-se supor que o Direito positivo é uma ordem suprema,
soberana.
Essa ordem é caracterizada por uma estrutura hierárquica. Seu
fundamento á a constituição escrita ou não-escrita, sobre a qual
repousam os estatutos decretados pelos legisladores. Devemos
obedecer às decisões de um juiz ou administrador, em última análise,
porque devemos obedecer à constituição. Se perguntarmos por que
devemos obedecer às normas da constituição existente, podemos ser
remetidos a uma constituição mais antiga, que foi substituída de
maneira constitucional pela constituição existente; dessa maneira,
chegamos à primeira constituição histórica. À questão de por que
devemos obedecer às suas cláusulas, uma ciência do Direito só pode
responder: a norma de que devemos obedecer às estipulações da
primeira constituição histórica só deve ser pressuposta como hipótese
como hipótese se a ordem coercitiva, estabelecida com fundamento
nela e efetivamente obedecida e aplicada por aqueles cuja conduta
regulamenta, for considerada uma ordem válida, obrigatória para esses
indivíduos, se as relações entre esses indivíduos forem interpretadas
como deveres, direitos e responsabilidades legais, não como meras
relações de poder; e se for possível distinguir o que é legalmente certo e
legalmente errado, em especial o uso legítimo e ilegítimo da força.
Essa é a norma fundamental de uma ordem jurídica positiva, a razão
final para a sua validade, vista do prisma de uma ciência do Direito
positivo. É a razão conclusiva para a validade do Direito positivo,
porque, a partir desse prisma, é impossível supor que a natureza ou
Deus ordenem a obediência à primeira constituição histórica, que os
pais da constituição foram autorizados a estabelecê-la pela natureza ou
Deus. A norma fundamental de que devemos obedecer às disposições
da primeira constituição histórica não é criada pela autoridade jurídica,
isto é, não é uma norma positiva criada em conformidade com a
constituição; é uma norma que – como nos diz a ciência do Direito
positivo – pressupomos como hipótese quando consideramos a ordem
coercitiva que regulamenta efetivamente a conduta humana no
território de um Estado como uma ordem normativa obrigatória para
seus habitantes. Esse pressuposto não é um produto da livre
imaginação. É a aplicação do princípio geral da eficácia, que, como
princípio normativo, desempenha um importante papel no domínio do
Direito.
Assim o positivismo jurídico responde à questão por que o Direito é
válido, reportando-se a uma hipótese que pode ou não ser aceita – em
outras palavras, justificando a obediência à lei apenas
condicionalmente. Contudo, neste aspecto, não há nenhuma diferença
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condicionalmente. Contudo, neste aspecto, não há nenhuma diferença
entre o positivismo jurídico, por um lado, e a doutrina do Direito natural
ou da teologia, por outro. O motivo para a validade do Direito, segundo
os três, é uma norma fundamental hipotética. Assim como a norma
fundamental do positivismo jurídico não é emitida pela autoridade
jurídica, mas pressuposta no pensamento jurídico, as normas
fundamentais da doutrina do Direito natural e da teologia cristã não são
emitidas pela natureza ou por Deus, mas pressupostas como hipóteses
por essas doutrinas. Conseqüentemente, essas doutrinas também
podem justificar a obediência à lei apenas condicionalmente. A única
diferença é que a validade para a qual a norma fundamental do
positivismo jurídico fornece o motivo é a validade imanente do Direito
positivo, ao passo que a validade para a qual a norma fundamental da
doutrina do Direito natural ou da teologia cristã fornece o motivo é a
validade de uma ordem natural ou divina.
V
A questão quanto ao motivo da validade do Direito foi restringida nas
considerações anteriores ao Direito nacional.
O Direito internacional é composto de normas do Direito
consuetudinário e do Direito convencional – sendo este último o Direito
criado por tratados com base no Direito consuetudinário. Portanto, o
motivo para a validade do Direito internacional, a sua norma
fundamental, é uma norma que institui o costume como fato criador do
Direito – a norma de que os Estados devem conduzir-se como os
Estados costumeiramente se conduzem nas suas relações mútuas.
A norma que autoriza o costume do Estado a criar Direito obrigatório
para os Estados só pode ser uma norma pressuposta pelos que
interpretam as relações mútuas dos Estados, não como meras relações
de poder, mas como relações jurídicas, na condição de obrigações,
direitos e responsabilidades; por aqueles, novamente, que consideram
os atos dos Estados como legais ou ilegais, isto é, como relações
regulamentadas por uma ordem jurídica válida. É uma hipótese – a
condição – sob a qual tal interpretação é possível. Essa hipótese, a
norma fundamental do Direito internacional, é, em última análise,
também o motivo da validade das ordens jurídicas nacionais.
X. A TEORIA PURA DO DIREITO E A JURISPRUDÊNCIA ANALÍTICA
A Teoria do Direito e a Filosofia da Justiça
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – uma teoria
geral do Direito, não se tratando de uma apresentação de uma ordem
jurídica especial. Procura-se, com esta teoria, descobrir a natureza do
próprio Direito, e determinar sua estrutura e suas formas típicas,
independentemente do conteúdo variável que apresenta em diferentes
épocas e entre diferentes povos. Deve-se responder à questão do que é
o Direito, não do que deve ser. Enquanto esta questão é política, a
teoria pura do Direito é ciência.
Esta teoria é chamada “pura” por procurar excluir da cognição do
Direito positivo todos os elementos estranhos a este.
A jurisprudência, ciência específica do Direito, deve, segundo Kelsen, ser
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A jurisprudência, ciência específica do Direito, deve, segundo Kelsen, ser
distinguida tanto da filosofia da justiça quanto da sociologia (cognição
da realidade social). A Teoria Pura do Direito não busca responder à
questão de se dado Direito justo ou não. Tampouco se considera
competente para responder o que constitui a própria justiça. Tais
questões não podem ser respondidas cientificamente, logo não são
objetos da presente teoria. No entanto, a libertação do conceito de
Direito da idéia de justiça é difícil porque eles são constantemente
confundidos no pensamento político e na linguagem comum.
Jurisprudência normativa e sociológica
O objeto da Teoria Pura do Direito é o Direito positivo, ou seja, é uma
ordem por meio da qual a conduta humana é regulamentada de uma
maneira específica por normas que dispõem como os homens devem
conduzir-se.
A jurisprudência vê o Direito como um sistema de normas gerais e
individuais, sendo seu objeto justamente essas normas e jamais a
conduta efetiva dos indivíduos. A jurisprudência considera uma norma
jurídica válida apenas se ela pertencer a uma ordem jurídica que, de
modo geral, é eficaz, isto é, se os indivíduos cuja conduta é
regulamentada pela ordem jurídica efetivamente se conduzirem, de
modo geral, como deveriam conduzir-se segundo a ordem jurídica.
Assim, se uma ordem jurídica perdesse sua eficácia, suas normas
seriam inválidas.
É possível, contudo, que uma ordem jurídica seja eficaz como um todo,
sendo considerada válida, mas que uma norma particular, embora
válida, não seja eficaz em um caso concreto por não ter sido obedecida
ou aplicada, embora devesse sê-lo. A diferença entre a validade e a
eficácia consiste no “dever ser” presente no conceito da primeira.
A jurisprudência apresenta, com base em normas jurídicas válidas,
proposições que têm um sentido puramente descritivo. Essas
proposições são enunciados que descrevem o “dever ser” da norma
jurídica. Estes enunciados são chamados de Regras de Direito, em
contraposição às normas jurídicas, emitidas pela autoridade jurídica.
A regra de Direito, apresentada pela jurisprudência, é assim como a lei
da natureza, um julgamento hipotético que vincula uma conseqüência
específica a uma condição específica. Entretanto, enquanto a ciência
natural descreve seu objeto – a natureza – em proposições de ser, a
jurisprudência descreve seu objeto – o Direito – em enunciados de
dever ser.
Esta jurisprudência, que pode ser considerada uma jurisprudência
normativa do Direito, por ter uma visão especificamente jurídica do
mesmo, diverge de outra, a sociológica. Esta descreve os fenômenos do
direito não em proposições que afirmam como os homens devem
conduzir-se, mas em proposições que dizem como eles efetivamente se
conduzem. Essas regras da vertente sociológica jurisprudencial
proporcionam o meio de prever os acontecimentos futuros na
comunidade jurídica, a conduta futura a ser caracterizada como lei.
Desse modo, enquanto a jurisprudência normativa determina como os
tribunais deveriam decidir em conformidade com as normas jurídicas
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em vigor, a sociológica determina como eles decidem e como
provavelmente decidirão. Observa-se que contanto que a ordem
jurídica seja eficaz como um todo, existe a maior probabilidade de que
os tribunais efetivamente decidam como deveriam decidir.
A Teoria Pura do Direito não nega a validade de tal jurisprudência
sociológica, mas a nega como única ciência do Direito. Admite-se que
ambas as jurisprudências andam lado a lado, tratando cada uma de
problemas diferentes. Enquanto a normativa trata da validade do
Direito, a sociológica trata de sua eficácia.
Ressalta-se que a possibilidade de previsão do funcionamento jurídico
pela jurisprudência sociológica é diretamente proporcional ao grau em
que esse funcionamento foi descrito pela jurisprudência normativa.
A sociologia do Direito não apenas tem a função de descrever e prever,
se possível, as condutas efetivas dos indivíduos que criam a lei, aplicam-
na, e obedecem-lhe, mas também deve explicá-la causalmente. Para tal,
deve investigar as ideologias pelas quais os homens são influenciados
em suas atividades criadoras e aplicadoras de lei. Entre essas ideologias
a idéia de justiça desempenha um papel decisivo, sendo uma das
tarefas mais importantes da sociologia do Direito.
O conceito de norma
Considerando que a Teoria Pura do Direito limita-se à cognição do
Direito positivo, sua orientação é em boa parte a mesma da
jurisprudência analítica, descrita na obra anglo-americana de Johhn
Austin. Contudo, divergem em alguns pontos, especialmente no que diz
respeito ao conceito central da jurisprudência, a norma. A
jurisprudência analítica não emprega esse conceito e ignora a distinção
entre ser e dever ser, que é o fundamento do conceito da norma. Para
ela, lei é sinônimo de regra, de comando, sendo este a expressão da
vontade de um indivíduo dirigida à conduta de outro indivíduo. Assim,
um comando consiste no desejo dirigido à conduta de outra pessoa e
na sua expressão de uma ou de outra maneira (querer + sua
expressão).
Acontece que as regras jurídicas que constituem o Direito não são
efetivamente comandos. Isso porque elas são válidas e obrigam
indivíduos mesmo quando a vontade pelas quais foram criadas há
muito deixaram de existir .
Kelsen afirma, então, que dizer que uma lei particular é um comando,
uma ‘vontade’ do legislador só pode ser tomado como uma expressão
figurado. Isso porque a conduta humana é decretada, provida ou
prescrita por uma regra de Direito sem nenhum ato psíquico de
vontade. A lei seria, portanto, um comando “despsicologizado”. O
homem deve conduzir-se conforme a lei. Nisto reside a importância do
conceito de dever ser, e revela a necessidade do conceito de norma
(regra que afirma que um indivíduo deve conduzir-se de certa maneira,
mas não afirma que tal conduta é a vontade efetiva de alguém).
Pode-se reconhecer, no entanto, um comando como sinônimo de
norma quando o mesmo tem força obrigatória.
O elemento da coerção
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O elemento da coerção
Nesse aspecto, convergem a Teoria Pura do Direito e a jurisprudência
analítica ao considerarem a coerção como elemento essencial do
Direito.
A lei, conforme a jurisprudência analítica, seria uma regra
“forçosamente aplicada” por uma autoridade dada, e o meio pelo qual o
Direito “força” a obediência de indivíduos consiste na aplicação de
sanções em caso de desobediência. Essa coerção seria psíquica.
Obedecer-se-ia pelo temor da sanção.
Entretanto, explica Kelsen, de um ponto de vista de um método
estritamente analítico, esta formulação não é correta. Os indivíduos
podem ser impelidos a respeitar a norma por outros motivos, morais
ou religiosos, por exemplo, podendo ser estes ainda mais importantes
que o medo da sanção do Direito.
Assim, a coerção psíquica não é um elemento específico do Direito,
estando a questão quanto aos motivos da conduta legítima fora do
objetivo da cognição voltada apenas para o conteúdo da ordem jurídica.
Neste caso, se está diante de um problema da jurisprudência
sociológica e não da analítica ou normativa. Esta pode apenas afirmar
que o Direito estabelece medidas coercitivas como sanções, que são
dirigidas, sob condições definidas, contra indivíduos definidos. Assim,
não é a coerção psíquica decorrente da idéia que os homens têm do
Direito, mas as sanções externas que ele prevê que constituem a
essência do Direito.
O Direito não é, como formula John Austin (jurisprudência analítica),
uma regra executada por uma autoridade específica, mas antes uma
norma que estipula uma medida de coerção específica como sanção.
A norma jurídica refere-se à conduta de duas entidade: o cidadão,
contra cujo delito é dirigida a medida coercitiva da sanção, e o órgão
que deve aplicar a medida coercitiva do delito. A função da norma é
vincular a sanção como conseqüência a certas condições, entre as quais
o delito desempenha um papel decisivo. Observada a partir de um
ponto de vista sociológico, a característica essencial do Direito, pela
qual ele se distingue de todos os outros mecanismos sociais, é o fato de
que ele procura ocasionar a conduta socialmente desejada atuando
contra a socialmente indesejada – o delito – por meio de uma sanção. A
jurisprudência analítica leva em consideração apenas o conteúdo da
ordem jurídica e, portanto, apenas a ligação entre delito e sanção.
O sentido, segundo a Teoria Pura do Direito, em que condição e
conseqüência estão ligadas na norma jurídica é o de “dever ser”. Se
alguém rouba, deve ser punido. Dessa maneira, a ciência do Direito
descreve as relações que a norma jurídica, emitida pela autoridade
jurídica estabelece entre delito e sanção. É pelo estabelecimento dessa
relação que a norma jurídica impõe deveres e confere direitos aos
indivíduos sujeitos ao Direito.
O dever jurídico
Inicialmente, salienta Kelsen que a sanção pode ser dirigida não apenas
contra o delinquente, mas contra outros indivíduos: os que se
encontram em uma relação específica com o delinqüente – mesma
família, tribo ou Estado. Há casos, portanto, de responsabilidade
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família, tribo ou Estado. Há casos, portanto, de responsabilidade
individual e coletiva. Um exemplo desta última é a vingança de sangue,
ou vendetta, do Direito primitivo. Tal é o procedimento, mesmo hoje,
afirma Kelsen, no Direito Internacional, cujas sanções (retaliação e
guerra) são dirigidas contra o Estado como entidade – ou seja, contra
cidadãos do Estado cujo órgão violou a lei.
Importante distinguir responsabilidade de dever. A primeira recai sobre
o indivíduo contra o qual a sanção é dirigida, enquanto o último recai
sobre o delinqüente potencial que pode, por meio de sua conduta,
cometer o delito. Normalmente, no Direito moderno, os sujeitos do
dever e da responsabilidade são a mesma pessoa. Mas há a exceção da
responsabilidade coletiva, regra no Direito Internacional.
Na teoria de Austin da jurisprudência analítica essa separação entre
responsabilidade e dever não é feita. Ele parte da suposição de que a
sanção é sempre dirigida contra o indivíduo que comete o delito, não
percebendo a diferença existente entre “ser obrigado a manter certa
conduta” e “ser responsável por certa conduta”.
Segundo Austin, uma norma jurídica é um comando de conduta legal. O
decreto da sanção não surge na norma que obriga o indivíduo. Apenas
se a norma jurídica for caracterizada, como faz a Teoria Pura, como uma
normal pela qual é decretada uma sanção para a conduta ilegal, é que
se pode distinguir o caso em que a sanção é dirigida contra o indivíduo
que age contrariamente ao “comando” da lei, do caso em que a sanção
é dirigida contra alguém que se torna responsável pelo delito cometido
por outrem.
O direito jurídico
Direito pode significar que alguém tem o direito de conduzir-se de certa
maneira, significando que ele não tem o dever de conduzir-se de outra
maneira; ele é livre, nesse aspecto. Mas também direito pode ter um
significado positivo de que alguém é obrigado a conduzir-se de maneira
correspondente. Por exemplo, eu ter o direito de usar um objeto em
meu poder implica o dever de outra pessoa não me pertubar nesse uso.
Todo direito verdadeiro, que não for simples liberdade negativa em
relação a um dever, é composto de um dever para com outro ou vários
outros. Direito, neste sentido é um dever “relativo”.
Neste aspecto, é acertada a jurisprudência analítica. Contudo, ela não
contém nenhum conceito de direito diferente do de dever. Tal direito
existe quando a ordem jurídica confere a uma pessoa a oportunidade
de tornar eficaz o dever de outrem iniciando uma ação judicial e, assim,
aplicando a sanção estipulada para a violação. É apenas nesse caso que
o direito de A à conduta de B deixa de coincidir com o dever de B para
com A. Portanto, a Teoria Pura do Direito restringe o conceito de direito
a essa situação. Apenas nesse caso existe separadamente um direito no
sentido estrito do termo.
A teoria estática e a teoria dinâmica do direito: a hierarquia das normas
A jurisprudência analítica, tal como apresentada por Austin, considera o
Direito um sistema de regras completo e pronto para aplicação, sem
considerar o processo de sua criação. É uma teoria estática do Direito.
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A Teoria Positiva do Direito, a seu turno, reconhece que um estudo da
estática do Direito deve ser complementado por um estudo de sua
dinâmica, do seu processo de criação, até porque, o processo pelo qual
se cria uma norma jurídica é regulamentado por outra norma jurídica.
Na verdade, outras normas geralmente determinam não apenas o
processo de criação, mas também, em maior ou menor grau, o
conteúdo da norma a ser criada. Por exemplo, a liberdade de expressão
não deve ser determinada por estatuto, ou deve ser determinada
apenas de certa maneira.
A diferença entre normas que determinam o modo de criação de outras
normas e aquelas que determinam seu conteúdo é expressa meio de
uma distinção entre Direito “adjetivo” e Direito “substantivo”. As normas
jurídicas que governam a criação de outras são “superiores” a estas,
devendo a ordem jurídica ser analisada de um ponto de vista dinâmico,
com normas de diferentes hierarquias.
Neste sentido funcional, “constituição” designa as normas que
determinam a criação e ocasionalmente, até certo ponto, o conteúdo
das normas jurídicas gerais, que, por usa vez, governam normas
individuais como as decisões judiciais.
A relação entre uma norma de nível superior e uma norma de nível
inferior, entre uma constituição e um estatuo decretado em
conformidade com ela, por exemplo, significa também que na norma
superior encontra-se o motivo para a validade da norma inferior; uma
norma jurídica é válida porque passou a existir da maneira prescrita por
outra norma. Este é o princípio de validade peculiar ao Direito positivo.
O fundamento de validade da constituição é a norma fundamental da
ordem jurídica. Esta norma fundamenta é a responsável pela unidade
da ordem jurídica.
O direito e o estado
Austin refere-se a uma sociedade composta por um soberano e súditos.
Ele diz que “todo Direito criado por juiz é criação do soberano ou do
Estado”, mas Estado, nesse caso, não significa uma sociedade política,
mas o detentor da soberania na sociedade. Como a lei emana do
soberano, este não está sujeito a mesma. Esse conceito de soberano é
sociológico ou político, mas não jurídico – não obstante, é elemento
essencial da jurisprudência de Austin. Contrastante com o método
teórico da jurisprudência analítica, que deriva seus conceitos apenas de
uma analise do Direito Positivo. Percebe-se, portanto, estar ausente na
teoria de Austin um conceito jurídico de Estado.
Já a Teoria Pura do Direito afirma que o Estado não é seus indivíduos; é
a união específica de indivíduos, e essa união é função da ordem que
regulamenta sua conduta recíproca. É uma comunidade política porque
e na medida em que o meio específico pelo qual essa ordem reguladora
busca atingir seu fim é a decretação de medidas de coerção. A ordem
jurídica é ordem coercitiva. O que geralmente é chamado de “ordem
jurídica do Estado” é o próprio Estado.
Direito e Estado são geralmente considerados duas entidades distintas.
Mas se for reconhecido que o Estado é, por sua própria natureza, um
ordenamento da conduta humana, e que a característica essencial
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ordenamento da conduta humana, e que a característica essencial
dessa ordem, a coerção, é ao mesmo tempo o elemento essencial do
Direito, não mais pode prevalecer esse dualismo.
Os homens criam o Direito com base nas próprias normas definidas por
este. Os indivíduos que criam o Direito são órgãos da ordem jurídica ou,
o que equivale à mesma coisa, órgãos do Estado. Eles são órgãos
porque e na medida em que preenchem suas funções de acordo com as
estipulações da ordem jurídica que constitui a comunidade jurídica. Um
indivíduo como órgão do Estado significa que certas ações executadas
por ele são atribuídas ao Estado, à unidade da ordem jurídica .
Caso se resolva o dualismo de Direito e Estado e se reconheça o Estado
como uma ordem jurídica, os chamados elementos do Estado –
território e população – surgem como as referencias territoriais e
pessoais da validade da ordem jurídica nacional. O que Austin designa
como “soberano” surge como órgão supremo da ordem, e a soberania
é, então, não uma característica do indivíduo ou do grupo de indivíduos
que perfazem esse órgão, mas uma característica do próprio Estado.
Ser a soberania uma característica da ordem jurídica nacional significa
que não se presume nenhuma ordem superior a esta.
Direito internacional e direito nacional
A teoria do direito internacional, como teoria do Estado, não existe no
domínio da jurisprudência analítica que admite a validade do Direito
internacional apenas como “moralidade internacional positiva”. Essa é
uma teoria dualista, que diferencia totalmente Direito nacional e Direito
internacional.
Já a Teoria Pura do Direito demonstra que é perfeitamente possível
considerar o Direito internacional como um Direito real, já que contém
todos os elementos essenciais de uma ordem jurídica. Trata-se de uma
ordem coercitiva no mesmo sentido que o Direito nacional: obriga os
Estados a uma conduta mútua definida, visto que estipula sanções
(retaliações e guerra) contra a conduta contrária. Aqui se tem a teoria
monista.
A teoria monista considera o Direito nacional e o internacional como
um sistema de normas, como uma unidade. As opiniões diferem no que
diz respeito a como esse todo é construído. Alguns afirmam que o
Direito internacional é parte do nacional, das normas do direito
nacional que regulamentam a relação do Estado com outros Estados. As
regras que se admite serem Direito internacional podem obrigar um
Estado apenas quando este as recebe e, com isso, incorpora-as à sua
própria ordem jurídica. É a teoria da primazia do Direito nacional,
derivada da idéia de Estado soberano. Sendo isto verdadeiro, para cada
uma das muitas ordens jurídicas nacionais, não há, segundo essa teoria,
um Direito internacional, mas tantas quantas forem as ordens jurídicas
nacionais. Não existe, na verdade, um Direito internacional como tal,
mas apenas o Direito nacional.
A Teoria Pura do Direito defende a primazia do Direito internacional. O
Direito internacional positivo pode ser considerado – caso se renuncie à
suposição da soberania de cada Estado – um sistema de normas
colocado acima das ordens jurídicas nacionais, conferindo-lhes posição
igual e obrigando-as todas a uma ordem jurídica universal.
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igual e obrigando-as todas a uma ordem jurídica universal.
Hoje, afirma Kelsen, a tendência é antes para uma filosofia de valores
universalistas, segundo a qual a comunidade é superior ao indivíduo.
Na esfera das relações internacionais, o parecer de que o Estado é
essencialmente soberano é uma filosofia individualista, baseada na
individualidade do Estado. O dogma da soberania não é o resultado da
análise científica do fenômeno do Estado, mas a suposição de uma
filosofia de valores. Consequentemente, não pode ser contestada
cientificamente.
A análise do Direito internacional positivo feita pela Teoria Pura do
Direito demonstra que suas normas são incompletas e necessitam de
suplementação pelas normas das ordens jurídicas nacionais. Dizer que
o Direito internacional obriga um Estado a certa conduta significa que o
Direito internacional obriga um indivíduo a tal conduta na condição de
órgão desse Estado, mas que o Direito internacional determina
diretamente apenas a conduta, deixando à ordem jurídica nacional a
determinação do indivíduo cuja conduta constitui o conteúdo da
obrigação internacional.
Um princípio geralmente reconhecido do Direito internacional diz que
se for estabelecido um poder que possa assegurar a obediência
permanente à sua ordem coercitiva entre os indivíduos cuja conduta
essa ordem regulamenta, então a comunidade constituída por essa
ordem coercitiva é um Estado no sentido do Direito internacional. A
esfera me que essa ordem é perfeitamente eficaz é o território do
Estado; os indivíduos que vivem no território são o povo do Estado no
sentido do Direito positivo internacional.
Kelsen conclui o ensaio dizendo que assim como é tarefa da ciência
natural descrever seu objeto – a realidade – em um sistema de leis da
natureza, é tarefa da jurisprudência compreender toda lei humana em
um sistema de regras de Direito, o que é ignorado pela jurisprudência
analítica de Austin.
XI. DIREITO, ESTADO E JUSTIÇA NA TEORIA PURA DO DIREITO
I
A Teoria Pura do direito considera uma das principais tarefas libertar a
ciência do direito as relíquias do animismo. Um exemplo tipico da
duplicação animista do conhecimento é o dualismo Direito e Estado.
Não se pode negar que o Direito é uma ordem social, ou seja,ordem
que regulamenta a conduta dos seres humanos. E que ordem é um
conjunto de normas que prescreve certa a conduta humana. Assim
dizer que o proposito do Direito é estabelecer a ordem cria a ilusão de
que são duas coisas – Direito e Ordem. Mas o Direito é a própria ordem.
A ciência do Direito deve definir seu objeto com a seguinte pergunta: o
que é o direito na condição de objeto de uma ciência particular. Deve se
aqui buscar uma caracteristica comum atravês de uma palavra que
consiga designar um objeto, que consigo constituir uma caracteristica
suficientemente significativa. A Teoria Geral do Direito supõe que
coerção é um elemento essencial do Direito. As ordens sociais ao longo
da história estão ligados a idéia de Direito como ordem coercitiva e
ainda que descreve atos coercitivos como sanção. Assim Direito
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ainda que descreve atos coercitivos como sanção. Assim Direito
assumiu esse significado ao longo da história.
O conceito de Direito como ordem coercitiva refere-se ao conteudo das
normas de Direito. Não se pode negar porém que é preciso eficácia
para validade do Direito. Ou seja conformidade da conduta humana ao
Direito. Nenhuma ordem social, nem mesmo a que chamamos
“moralidade” ou “justiça” é considerada válida se não for até certo
ponto eficaz. Porem, a eficacia como condição de validade do Direito
não pode ser confundida com a coerção como elemento essencial do
conceito de Direito.
II
Na relação Direito e estado, diz-se que o Estado é uma comunidade
política que cria ou executa a ordem social chamada Direito. Mas o que
seria comunidade? Comunidade é uma comunidade de interesses,
individuos que tem interesses em comum formam uma sociedade.
Interesses em comum podem ser motivos para se estabelecer uma
comunidade, porém nem todos os individuos que tem interesse em
comum formam sociedade. Sustentar esse conceito seria sustentar o
interesse ideologico, onde o interesse seria preponderante a
comunidade.
A afirmação de que a sociedade chamada “Estado” baseia-se no
interesse comum dos seus sujeitos equivale a doutrina que essa
comunidade esta baseada no consentimento de todos os seus
membros. Como um contrato social . E isso é uma das piores invenções
juridicas inventada pelos juristas romanos. É o mesmo caso da
afirmação de Platão (“As leis”): “apenas o homem justo é feliz, o homem
injusto é infeliz.” E Platão ainda afirma que se for uma mentira, é uma
mentira útil.
Comunidade seria as relações humanas determinadas por uma ordem
regulamentadoras das condutas recíprocas dos envolvidos. Essa ordem
social constitui comunidade. Ser um membro dessa comunidade nada
mais é do que estar sujeito a essa ordem. Para evitar dualismo, nada
melhor do que afirmar que a ordem social é a comunidade e não que
ela constitui a comunidade.
Se o Estado é uma comunidade, é uma comunidade juridica. Ele é uma
ordem juridica que constitui a comunidade. Porem afirmar que o Estado
como ordem social é idêntico ao Direito não é correto. Nem toda ordem
juridica é Estado. A ordem juridica relativamente centralizada sim, é
Estado. E Estado aqui é pessoa atuante, literalmente falando, como a
autoridade, o poder por trás do Direito. Isto é o animismo que a Teoria
Pura do Direito tenta,em vão,eliminar, por ser tautologicamente vazia.
III
A Teoria Pura do Direito limita-se a uma análise da estrutura do Direito
positivo, baseando-se em um estudo comparativo das ordens sociais
existentes e também das que existiram historicamente. Portanto os
estudos da origem do Direito ultrapassam a esfera da teoria. Alguns
pontos são ocupados pela sociologia e história, que exigem metodos
diferentes. A diferença metodologica entre uma analise estrutural do
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Direito e a sociologia e história equipara-se a diferença entre teologia e
sociologia ou história da religião. O objeto da teologia é Deus, tido como
existente; o objeto da sociologia e historia da religão é a crença dos
homens. A Teoria Pura do Direito trata o Direito como sistema de
normas válidas criadas por atos dos seres humanos. Já a sociologia e
história do Direito tenta descrever e explicar o fato de o homem ter
idéias diferentes do Direito em épocas e lugares diferentes, e ainda
conformar ou não sua conduta as idéias. A pureza da Teoria do Direito
propoe uma analise estrutural, adequado ao seu problema espefico,
eliminando problemas que exijam metodos diferentes. Essa pureza é a
exigencia indispensável de evitar esse sincretismo de metodos. Eliminar
esses problemas de metodos diferentes não é negar sua existencia. A
Teoria Pura do Direito nunca pretendeu ser a única ciência. Juntamente
com a sociologia e historia do Direito a analisa estrutural do Direito se
faz necessário para compreender o fenomeno complexo do Direito.
A questão de determinar se a ordem juridica é justa ou injunsta não
pode ser respondida pelos metodos e analise estrutural do Direito
positivo. Isso não implica de que a questão do que é justiça não possa
ser respondida de maneira objetiva. Mas Direito e justiça deveriam ser
considerados dois conceitos diferentes. Se e idéia de justiça tiver função
é a de ser um modelo para a feitura de um bom Direito, e ainda um
criterio para determinar um bom e um mau Direito.
A jurisprudência tradicional tende a identificar Direito e justiça, como
usar o termo Direito no sentido de Direito justo, e ainda dizer que um
Direito positivo não é real se não for justo. Dizer que esse Direito não é
o Direito verdadeiro é quase impossível, uma vez não há critério
objetivo para o termo justiça. O efeito real da identificação
terminologica de Direito e justiça é uma justificação ilicita de qualquer
Direito positivo.
Não existe um critério objetivo de justiça porque essa afirmação de ser
justo ou injusto é um juízo de valor que se refere a um fim absoluto e
esses juízos de valor, pela sua própria natureza são de critério subjetivo,
baseados em elementos emocionais da mente. Juizos de valor definitivo
são atos de preferência; é a escolha de dois valores conflitantes; o
melhor ao invês do bom. É como escolhar entre liberdade e segurança
por exemplo. Alguns se sentem felizes quando livres, outros preferem a
segurança, e assim consideram justo um sistema social que garanta
segurança economica. Assim seus juízos de valores, sobre liberdade e
segurança, e assim sobre justiça baseia-se em seus sentimentos e assim
as idéias de justiça são muito diferentes. Diferentes são os enunciados
sobre a realidade. O enunciado sobre fatos baseia-se nos sentidos
controlados pela razão. Devemos sustentar a diferença evidente entre
juizo de valor e enunciados sobre a realidade. E essa diferença, embora
relativa é consideravel o suficiente para justificar a diferenciação do
juízo sobre o que é justo e o enunciado sobre o que é Direito. Direito
positivo é a lei criada por atos dos seres humanos, no tempo e espaço,
em contraposição a lei natural. A questao sobre o Direito positivo não
depende dos sentimentos dos sujeitos, mas é veridicada por fatos
objetivamente verificáveis ao passo que responder o ser justo do
Direito, depende da função emocional da mente do sujeito.
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Direito, depende da função emocional da mente do sujeito.
A identificação do termo Direito e justiça é um dos elementos
caracteristics da doutrina do Direito natural que apresenta a justiça
como lei natural. O Direito positivo também é lei. E enquanto não for
provado desacordo com a lei natural, e é lei verdadeira. E os
doutrinadores, bastante conservadores, consideram que existe
presunção favoravel a conformidade do Direito positivo ao Direito
natural.
Essa presunção é sustentada pelo dualismo entre Direito positivo e
Direito natural. Os atos dos seres humanos pelo qual a lei é criada, tem
carater constitutivo, mas pelo Direito natural considerados como
meramente declaratorios. Os orgãos reproduzem a lei da natureza, de
Deus, pela razão humana. Não as criam. Pode-se fracassar nessa
descoberta da lei, mas os orgãos das comunidade, responsaveis por
essa descoberta tem a suposição de que de modo geral conseguem
faze-lo com sucesso, caso contrario não haveria lei nenhuma realizada.
A doutrina de um Direito dual ou seja, Direito verdadeiro, criado por
autoridades misteriosas e o Direito positivo que é a reprodução
daquele Direito), surge em varios disfarces. Rousseau em sua distinção
entre vontade geral e vontade de todos. A vontade geral é justa por
estar voltada ao interesse comum dos membros da comunidade. Os
orgaos da comunidade, ao fazerem a lei, tem de estar em conformidade
com a vontade geral. Podem conseguir ou não, mesmo que a vontade
da maioria ou unanime, pode não expressar a vontade geral, e ainda
assim ser aplicada a todos. Como saber se a maioria, a vontade de
todos esta em conformidade ou não com a vontade geral? Não há
resposta na obra de Rousseau.
Outra forma de Direito dual esta na escola histórica
alemã,alegadamente oposta ao Direito natural. A escola alemã sustenta
que o Direito tem origem no espirito do povo. O costume não é fato
criador, é apenas testemunho de um Direito preexistente. Mas o
costume é considerado um testemunho absolutamente confiavel; assim
o Direito consuetudinario é um Direito verdadeiro e ainda preferivel ao
Direito estatuario. O defensor dessa escola do Direito consuetudinário é
Savigny, que sustenta que o povo respeita muito mais “o que não tem
origem visivel e tangivel” do que “o que foi feito diante dos nossos olhos
por homens do nosso tipo”.
Uma doutrina similar é a doutrina da solidariedade social, defendida
por Leon Duguit. Nessa doutrina o legislativo e judiciario não criam o
Direito, apenas constatam e aplicam um Direito preexistente, que tem
origem na solidariedade social. A autoridade chamada solidariedade
social nada mais é do que a vontade geral de Rousseau, ou o espírito do
povo, da escola alemã. A questão decisiva é: o Direito positivo para ser
obrigatorio deve conformar-se ao Direito objetivo que é criado pela
solidariedade social e assim essa doutrina deverá decidir em uma caso
concreto se o Direito positivo esta ou não em conformidade com o
Direito objetivo, o Direito justo e verdadeiro. Mas o que é Direito
objetivo, se o sentimento de um homem ou a concepção desse Direito
diferem dos de outros, se o legislador positivo constata como Direito
objetivo regras que conforme os sentimentos e idéias de alguém que
deveria obedecer o Direito positivo, não são Direito objetivo? É
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deveria obedecer o Direito positivo, não são Direito objetivo? É
impossivel que um individualista e um socialista concordem quanto ao
que a solidariedade social exige ou ao quanto o Direito objetivo, o
verdadeiro Direito é. Duguit ignora esse problema porque da como
certo aquilo que ele, a partir do seu ponto de vista individualista
considera ser o Direito é o Direito objetivo por excelência.
Quem é competente para decidir de um Direito positivo está ou não em
conformidade com o Direito objetivo? Duas respostas são possíveis. É
da competencia exclusiva do criador da lei, legislador e juiz decidir essa
questão se houver disputa. O Direito positivo será sempre declarado de
acordo com o Direito bjetivo. A outra possibilidade é de que qualquer
individuo é competente para decidir. O Direito positivo em si não é
imperativo por que são os homens que os emite, e são iguais perante si,
ninguém tem o Direito de comandar outros. A opinião de ser ou não o
Direito positivo em conformidade com o Direito objetivo tem o mesmo
peso se conferido por legislador e juiz, ou por individuos. O que difere a
opinião de o individuo governante do indivíduo governado é que o
primeiro tem o poder de impor sua opinião e tem autoridade maior do
que a opinião dos indivíduos governados. O dualismo Direito positivo e
Direito objetivo o efeito e propósito de justificar um pelo outro.
Esses exemplos visam explicar porque a teoria pura do Direito insiste
em separar o conceito de Direito do conceito de justiça e porque essa
teoria renuncia a qualquer justificação do Direito positivo como espécie
de supra-Direito, deixando essa tarefa a religião ou à metafísica social.
XII. CAUSALIDADE E RETRIBUIÇÃO
Introdução
A física moderna, que é a mais exata de todas as ciências, demonstra
que a antiga noção de que a lei da casualidade determina
absolutamente todos os eventos foi modificada essencialmente. Mas
qual é a fonte, a origem que pretende serem todos os eventos
determinados por uma lei absoluta? Vamos mostrar como a crença na
causalidade surgiu na evolução do pensamento humano.
A causalidade não é uma forma de pensamento que nasce com a
consciência humana (o que Kant chamou de “noção inata”), antes,
houve um período em que a forma de interpretar o mundo não era
causalmente. O pensamento causal é estranho ao homem primitivo,
que interpretavam a natureza por pensamentos sociais, tinha
pensamento animista (personalista), sendo todos os seres governados
pelas mesmas leis, segundo o princípio da retribuição, ou seja, o
homem retribui o bem com o bem, o mal com o mal, sendo retribuído
(punido ou recompensado) segundo atitudes suas ou do grupo ao qual
pertence, é o pensamento que domina por completo o homem
primitivo. Isso é verificado pelas relações históricas desse homem com
os animais, plantas, os objetos e com sua religião/mitos.
Desse modo, é possível que o pensamento científico causal tenha se
desenvolvido a partir do pensamento retributivo, é o que nos mostra a
filosofia natural dos antigos gregos, que teve sua origem nas
concepções míticas e religiosas, que se baseiam na idéia de retribuição.
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Parte I
A filosofia natural grega, primeira grande tentativa de concepção
científica da realidade foi afetada pelos valores sociais, vez que foram
tomados como ponto de partida para a explicação causal da realidade.
A natureza, inicialmente, foi explicada pela analogia à sociedade, sendo
o Estado o padrão para a compreensão do universo nessa nascente
ciência natural.
Com a progressividade da especulação, percebe-se um distanciamento
entre a lei do Estado (norma) e a lei da natural (causalidade), tornando-
se princípios totalmente distintos.
Tales de Mileto, Anaximandro e Anaxímenes buscam um princípio
fundamental que explique a unidade do universo, partindo da visão de
governo monárquica (o “ar” é alma do mundo, a razão primeira dos
acontecimentos e do movimento), razão pela qual diziam que o imã
tinha alma, pois atrai/movimenta o ferro (uma explicação causal com
origem social). Ainda hoje acreditamos nessa explicação causal (a causa
atrai o efeito, assim como o homem ao errar atrai o mal e, por
consequência, a punição). Assim, a ideia de retribuição deu origem à
explicação causal. Com o tempo percebe-se que deve existir uma
igualdade de natureza entre a causa e o efeito. Na peça Agamemnôn
Ésquilo, expressa o pensamento de que é errônea a crença tradicional
de que muita sorte tráz má sorte. É antes o pecado que cria o pecado,
assim como pais originam filhos iguais a si, equiparando, assim, “mal”
com “punição”, “bem” com “recompensa”, numa equiparação qualitativa
e quantitativa (quanto mais mal maior a punição, quanto maior o bem,
maior a recompensa).
A Justiça contém a ideia de retribuição, igualdade e equilíbrio, com base
na balança. O equilíbrio entre os contrários (seco/molhado, calor/frio,
terra/água, fogo/ar) gera justiça, seu desequilíbrio gera injustiça. Essa
ideia é a primeira noção de que uma lei imanente governa todo o
universo é compreendida. É uma primeira tentativa de entender a
causalidade, todavia, é essencialmente a lei da retribuição. A ciência
moderna até hoje vê a relação de causa e efeito de maneira cronológica,
isso em razão de no início o mal (que era a causa) preceder
cronologicamente a punição (que era o efeito).
Heráclito vê a natureza como uma sucessão de opostos, mas ele utiliza
da figura da guerra para explicar as relações causais (A guerra é pai de
tudo e rei de tudo), partindo dessa visão, Heráclito chega na ideia de
logos (que é a razão eterna, universal que governa todas as coisas). Em
seus escritos Heráclito reforçava a ideia de uma lei universal (“A lei
divina prevalece tanto quanto quer, é suficiente para todas as coisas e é
mais forte do que todas as outras coisas”). Essa regra jurídica, projetada
no cosmos, é inviolável porque é considerada como vontade absoluta
de uma divindade. É a ideia de Direito natural, no sentido de ordem
jurídica natural, que é formulada aqui. Anaximandro expressa a ideia
jurídica de retribuição da seguinte forma: ”O sol não ultrapassará suas
medidas, mas, se o fizer, as Fúrias (demônios da vingança grega), as
crias de Dike [Justiça, deusa da retribuição], descobri-lo-ão”. Esse trecho
é interpretado como sendo a inviolabilidade da lei da causalidade, uma
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é interpretado como sendo a inviolabilidade da lei da causalidade, uma
obrigação imposta à natureza por uma regra jurídica, uma necessidade
normativa. O sol poderá até ultrapassar sua medidas, todavia, quando
isso ocorrer, será punido, pois a lei universal, como regra jurídica,
estabelece sanções. Essa norma é uma lei de retribuição e, como tal,
vontade inabalável de uma divindade. Assim, a inviolabilidade da lei
causal, tão contestada na ciência moderna, origina-se da inviolabilidade
que o mito e a filosofia natural. A primeira ciência natural (física)
desenvolve sua lei natural a partir desse princípio de retribuição. A ideia
de retribuição, nas leis que regem o cosmo, foi observado em outros
filósofos (poeta Esquilo em a personagem Prometeu; Empédocles que
teve sua filosofia influenciada por elementos órficos e pitagóricos, com
a ideia de transmigração das almas e metempsicose, podendo a alma
incorporar-se em outros seres, animais ou plantas, razão pela qual
todos estão sujeitos a uma mesma lei, que garante a todos o mesmo
direito de viver). A norma fundamental de toda essa teogonia
(explicação do mudo pelos mitos/deuses) é a proibição de matar, assim,
a natureza torna-se evidentemente uma parte da sociedade, e a lei da
retribuição torna-se, na verdade, uma lei natural. Empédocles ensinava
que uma mesma e única ordem jurídica existe para todas as coisas vivas
e proclamava solenemente que as punições inexpiáveis ameaçam os
que as ferem.
A noção moderna de causalidade está estabelecida nos escritos dos
atomistas (Leucipo e Demócrito) que realizaram a quase completa
separação da lei da causalidade do princípio da retribuição, eliminando
todos os elementos teológicos da interpretação da natureza e
rejeitando causas que são , ao mesmo tempo, fins. A lei universal deixou
de ser uma norma (baseada na retribuição divina) e passou a ser uma
necessidade da natureza (objetiva e impessoal). O sofista Protágoras,
professor de Demócrito, o ensinou que a punição do Estado, pela
norma, tem um propósito claro: contempla o futuro, ou seja, impedir
aquela pessoa particular, e outros que o vêem punido, de fazer mal
novamente. Assim, a lei do Estado, como lei da natureza, é libertada do
mito da retribuição. Demócrito busca nos átomos o fundamento para
explicar a natureza, num esquema de ação e reação (golpes e
contragolpes de átomos), mas essa ideia é análoga ao princípio da
retribuição, que liga uma ação a sua reação específica, a saber, o mal à
punição, o mérito à recompensa. Plínio (analisando os atomistas em sua
obra História Natural) afirma que Demócrito reconhecia apenas duas
divindades: punição e recompensa. Demócrito usa a palavra “causa”
que originalmente significa “culpa”, assim, a causa é responsável pelo
efeito, tal raciocínio tem um elemento normativo que até os dias atuais
acompanha a ciência natural.
Parte II
Na Idade Média, a ideia da existência de um princípio da causalidade
absolutamente válido corria o risco de perder-se, em razão da visão
teleológica de mundo que prevaleceu neste período. Mas Bacon, Galileu
e Kleper retomaram tal ideal, e ele continuou a ser o princípio
predominante, até que em certas esferas da física moderna (física
quântica) ela passou a ser questionada e até mesmo negada.
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quântica) ela passou a ser questionada e até mesmo negada.
Hume foi o primeiro a criticar a ideia de causalidade, de que toda causa
está ligada a determinado efeito. Segundo Hume, nossa mente é levada
pelo costume a esperar que certo fenômeno será sempre
acompanhado no futuro pelo mesmo fenômeno que o acompanhou
regularmente no passado. Contudo, continua o filósofo, nossa mente
não é levada pelo costume a crer que uma exceção está absolutamente
excluída.
Hume é influenciado pela ideia de Direito consuetudinário que
prevalecia na Inglaterra em seu tempo (dizia ele “o costume é o grande
guia da vida humana”), mas o costume não constitui regras sem
exceções, razão pela qual a ligação de causa e efeito, conforme falamos,
deve ter sido originada da ideia de retribuição oriunda da antiga
filosofia grega.
A física moderna também discorda de outra tese causalista, de que o
efeito deve ser igual à causa. Philipp Frank, após analisar as teses de
cientistas causalistas (Robert Mayer e Driesch) diz que é impossível
“simplesmente considerar a energia em geral como a medida da
causalidade”. Nenhum evento é dependente apenas uma causa. Razão
pela qual alguns filósofos abandonaram completamente a noção de
causa e substituíram-na pela de “condições” ou “componentes” de um
evento e a noção de “efeito” foi substituída pela de “resultantes”. A
noção de “causalismo” substituída pela de “condicionalismo”. Critica-se
tal substituição, vez que a noção de causa não é completamente
abandonada, mas apenas modificada, renunciando somente à ideia bi-
partite (ligação entre dois fatos = causa e efeito), para afastar a noção
que se originou da ideia de retribuição. A retribuição realmente é
firmada nessa ideia bipartite, pois que segundo o postulado retributivo
“ninguém deve ser punido duas vezes pelo mesmo fato” (ne bis in idem).
A causalidade também pretendeu abandonar o esquema cronológico
dos elementos causa e feito, assim, conforme alguns postulados
modernos, não existe vinculação cronológica de precedência e sucessão
entre causa e efeito, o que existe é uma vinculação funcional, onde a
causa pode virar efeito e o efeito a causa a depender da dinâmica e
observação dos fenômenos, que podem ser simultâneos.
A lei de Boyle estabelece uma ligação entre pressão e volume de um gás,
que são dois fatos simultâneos, embora por costume possa se dizer que
um elemento é causa do outro, o que em realidade existe é uma
dependência funcional entre os elementos e não cronológica.
Mas o principal golpe conta a lei da causalidade foi desferido pela
mecânica quântica (a mecânica das partículas subatômicas), em razão
do princípio da incerteza de Heisenberg, em síntese, afirma que “a
medição da velocidade de um elétron é tanto mais inexata quanto mais
exata é a medição de sua posição no espaço e vice-versa”, ou seja, saber
a velocidade exata do elétron implica em não saber sua posição, mas
saber sua posição exata, implica em não saber qual sua velocidade
exata. Isso significa que o objeto de observação é modificado pelo
próprio ato de observar, por mais exata que seja essa observação
(quero observar a velocidade, modifico a posição, se quero observar a
posição eu interfiro na velocidade do elétron). Isso torna impossível o
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discernimento do fenômeno causal, pois que o observador, visando
medir só causa e efeito, interferiu no objeto de estudo. Razão pela qual
muitos físicos (Heisenberg e Bohr), diante da incerteza nas observações
causais, recorrem à estatística (probabilidade) não se aplicando a lei
universal de causalidade. Em decorrência disso, muitos filósofos
chegam a afirmar que a natureza não é, como supunha a física clássica,
governada por leis (determinista).
Reichenbach interpreta a crise da física moderna não como uma
questão de substituição da causalidade por leis estatísticas, mas como
uma modificação da noção de causalidade, que caminha da certeza
absoluta (da física clássica) para a probabilidade (da física moderna). A
“probabilidade” causal (ligação provável) seria a substituta da antiga
“necessidade” (ligação necessária).
Mesmo antes do princípio da incerteza, quando usava-se a lei da
causalidade para eventos futuros, utilizava-se da probabilidade, basta
ver as obras de Laplace, que entendia que sendo impossível para a
mente humana considerar todas as forças de um dado momento
futuro, este poderia ser previsto apenas como probabilidade.
A teologia sempre pregou que somente Deus pode prever o futuro.
Transferindo essa ideia emocional para o racional, percebe-se que por
trás dela está nada mais que a noção imemorial de que a lei que
governa o mundo é a vontade de Deus, portanto, uma norma. A norma
determina o que deve acontecer no futuro, a lei natural, ao contrário,
busca no passado a causa para o evento presente. O que podemos ver
no futuro, pela ciência, é mera suposição de que o passado se repetirá.
Afirmar que a lei da causalidade pode prever o futuro é no fundo
justificar a origem normativa da causalidade.
Malebranche desenvolveu uma teoria na qual diz que com base na
experiência não percebemos nenhuma ligação necessária entre os
fenômenos e nenhuma força causal., o que observamos são sucessões
regulares, que são comandadas por Deus. Nesse ponto Malebranche e
Hume se aproximam, pois que ambas justificam na experiência a
conexão entre causa e efeito que percebemos, todavia, Hume não
justifica direitamente em Deus suas conclusões, antes, procura
desvincular a divindade de suas especulações.
O princípio da causalidade, na ciência moderna, não pode ser validado
como oriundo de uma autoridade metafísica (Deus), mas pode ser
compreendido como um postulado epistemológico dirigido à cognição
(compreensão) humana, apenas para ordenar uma ligação simples
entre os fenômenos observáveis na realidade, como causa e efeito,
admitindo que existem exceções a ele, assim como o fato de que uma
norma jurídica pode ser violada por uma exceção (e por tal não deixa de
ser válida), o que justifica ainda mais sua validade, pois só pode ser
violada porque é válida, assim, apenas uma regra que descreve uma
conduta real pode ter uma exceção. Portanto, quando a ciência natural
descreve a realidade em conformidade com o postulado epistemológico
da causalidade, as chamadas leis da natureza, podem muito bem ter
exceções e ser meras leis de estatísticas de probabilidade. Essa
transformação da noção de causalidade é o último passo no processo
de sua emancipação do princípio de retribuição.
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de sua emancipação do princípio de retribuição.
XIII. CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO
Diante da usual distinção entre ciências naturais e sociais como ciências
que tratam de dois objetos diferentes: natureza e sociedade; eis que é
feita a indagação Kelseniana na investigação sobre ciência jurídica:
Natureza e sociedade são realmente dois objetos distintos?
Considerando o direito como norma, ou seja, como sistema de normas,
e limitando a ciência jurídica ao conhecimento e descrição dessas
normas jurídicas e às relações por estas constituídas, delimita-se o
direito em face da natureza e a ciência jurídica, como ciência normativa,
em face de todas as outras ciências que visam o conhecimento,
informado pela lei da causalidade, de processos reais..
Segundo Kelsen, somente por essa via se alcança um critério seguro de
distinção unívoca de sociedade e natureza e de ciência social e natural.
Para desenvolver essa proposta que possibilita o sentido do princípio
imputação, Kelsen inicia-se a presente discussão.
Dentre as varias definições, a natureza é uma ordem particular de
coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os
outros como causa e efeito, e um exemplo clássico Kelseniano dessa
causalidade é a afirmação de um corpo metálico (ferro) que quando
aquecido, expande-se, dilata, sendo a ligação entre calor e expansão
exemplo de causa e efeito. Se há uma ciência social que é diferente da
ciência natural, ela deve descrever seu objeto diferentemente do
princípio de causalidade, ou melhor, não apenas a partir dele.
A sociedade é uma ordem da conduta humana, e sendo assim, com
essa afirmação da sociedade enquanto ordem normativa se tem claro
que na abordagem em que Kelsen se refere à conduta humana, verifica-
se uma conexão dos atos de conduta humana entre si e com outros
fatos. Nesse sentido, Kelsen anuncia uma relação não apenas formada
de acordo com o princípio da causalidade, mas também com outro
princípio que é totalmente diferente do princípio da causalidade.
Nesse sentido, apenas com a compreensão e aplicação de tal princípio,
a partir da prova de que está presente no pensamento humano e é
aplicado por ciências que têm por objeto a conduta dos homens entre
si enquanto determinada por normas, é que se poderá fundamentar a
diferença da sociedade como uma ordem ou um sistema diferente da
natureza e as ciências que se ocupam da sociedade como diferentes das
ciências naturais.
Logo, a proposta de Kelsen é de que somente quando a sociedade
passa a ser entendida como uma ordem normativa da conduta dos
homens entre si é que ela pode ser concebida como um objeto
diferente da ordem causal da natureza, e do mesmo modo também é
que a ciência social pode ser contraposta à ciência natural.
Enfim, somente quando o direito for uma ordem normativa da conduta
dos homens entre si, pode ele como fenômeno social ser distinguido da
natureza, e assim, a ciência jurídica, enquanto ciência social, ser
separada da ciência da natureza.
Segundo Kelsen, o princípio ordenador da ordem normativa da conduta
dos homens entre si, diferente do princípio da causalidade, é
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dos homens entre si, diferente do princípio da causalidade, é
denominado como princípio da imputação.
A ligação entre delito e sanção é estabelecida por uma prescrição ou
por uma permissão (uma norma), a ciência do Direito descreve seu
objeto por meio de proposições em que o delito está ligado à sanção
pela “cópula” deve; denominando-se essa ligação de imputação, assim, a
idéia de imputação como ligação específica do delito à sanção está
implícita no juízo jurídico de que um indivíduo é, ou não, juridicamente
responsável por sua conduta, ou seja, a sanção é imputada ao delito, e
não causada pelo delito.
Na sua efetiva aplicação no direito, o princípio da imputação, que
embora análogo ao da causalidade distingue-se deste de maneira
essencial. A analogia entre os princípios da imputação e da causalidade
reside na circunstância de que o primeiro tem nas proposições jurídicas
uma função completamente análoga à do princípio da causalidade nas
leis naturais.
Nesse sentido, da mesma maneira que uma lei natural, uma proposição
jurídica liga entre si dois elementos. Assim pode-se dizer que a diferença
que existe é de que a ligação que se exprime na proposição jurídica é
totalmente diferente da lei natural expressa pelo princípio da
causalidade.
Para Kelsen, a ligação da proposição jurídica vem de sua produção por
uma norma estabelecida pela autoridade jurídica, por uma vontade,
enquanto que a ligação de causa e efeito apresentada pela lei natural é
totalmente independente de qualquer intervenção nesse sentido.
A noção de imputação a que Kelsen se refere é a mesma que se opera
com o sentido jurídico de imputabilidade, a de que imputável é aquele
que pode ser punido por sua conduta, aquele que pode ser
responsabilizado por ela. Inimputável, de modo contrário, é aquele que
por ser menor ou doente mental não pode ser punido pela mesma
conduta, não pode ser por ela responsabilizado.
A imputação que se apresenta no conceito de imputabilidade não é a
ligação de uma determinada conduta com a pessoa que assim se
conduz, mas a ligação de uma determinada conduta, de um ilícito, com
uma conseqüência do ilícito. Por isso Kelsen afirma que a conseqüência
do ilícito é imputada ao ilícito, mas não é produzida pelo ilícito, como
sua causa. Por certo, portanto, que a ciência jurídica não busca uma
explicação causal dos fenômenos jurídicos, e em suas proposições
jurídicas que descrevem estes fenômenos ela não aplica o princípio da
causalidade, mas sim o princípio da imputação.
Kelsen diferencia a imputação da causalidade, ressaltando, no entanto,
que as duas partem da mesma proposição: um julgamento hipotético
que liga alguma coisa como condição, a outra coisa como conseqüência.
A diferença é que o princípio da causalidade afirma que se A existe, B
existe (ou existirá), enquanto o princípio da imputação afirma que se A
existe, B deve existir.
Nos dizeres do autor “a diferença entre causalidade e imputação é que a
relação entre a condição, que na lei da natureza é apresentada como
causa, e a conseqüência, que é aqui apresentada como efeito, é
independente de um ato humano ou sobre-humano; ao passo que a
relação entre condição e conseqüência afirmada por uma lei moral,
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relação entre condição e conseqüência afirmada por uma lei moral,
religiosa ou jurídica é estabelecida por atos de seres humanos ou
sobre-humanos. É justamente este significado específico da ligação
entre condição e conseqüência que é expresso pelo termo ‘dever ser’”.
Esse princípio da imputação está na base da interpretação da natureza
pelo homem primitivo que interpreta os fatos que apreende através dos
seus sentidos segundo os mesmos princípios que determinam as
relações com os seus semelhantes, conforme normas sociais, pois é
fato que na consciência dos homens que vivem em sociedade, existe a
representação de normas que regulam a conduta e vinculam os
indivíduos e que, por assim ser, apresentam as normas e sanções mais
antigas da humanidade.
Para Kelsen, as normas mais antigas da humanidade provavelmente são
aquelas que visam a limitar os impulsos sexuais e agressivos. O incesto
e o homicídio são, absolutamente, os crimes mais antigos; como são a
perda da paz e a vingança de sangue, as mais antigas sanções
socialmente organizadas.
E na base dessa sanção está o princípio mais primitivo que determina a
vida social, a norma da retribuição, que compreende a punição como
recompensa, assim, condição e conseqüência estão ligadas não
segundo o principio da causalidade, mas segundo o principio de
imputação, as quais possuem em sua base originária a regra da
retribuição
Para o homem primitivo, aquilo que a ciência moderna denomina como
natureza é uma parte de sua sociedade como ordem normativa, cujos
elementos estão ligados entre si segundo o princípio fundamental da
imputação. Existe na mente do homem primitivo uma necessidade de
explicação de um evento, se considerado prejudicial é interpretado
como punição reta. Em outros termos: eventos prejudiciais são
imputados à conduta errada; eventos vantajosos, à conduta certa.
Nesse sentido, ocorrendo um evento de tal tipo, a pergunta do homem
primitivo não será: qual a causa dele; mas: quem é responsável por ele.
Trata-se de uma interpretação normativa da natureza, e, como a norma
da retribuição, que determina as relações dos homens, é um principio
social especifico, denominando-a de interpretação socionormativa da
natureza.
O mais importante da imputação, no sentido lato da palavra, é a ligação
da conduta humana com o pressuposto sob o qual essa conduta é
prescrita numa norma. Desse modo, toda retribuição é imputação, mas
nem toda imputação é retribuição.
Logo, é grande a probabilidade de que a lei da causalidade tenha
surgido da norma de retribuição, agora de maneira mais evidente,
como resultado de uma transformação do princípio da imputação, em
virtude do qual, na norma de retribuição, a conduta não-reta é ligada à
pena e a conduta reta é ligada ao prêmio.
Dando continuidade à investigação Kelseniana sobre ciência jurídica,
cabe aqui evidenciar algumas diferenças entre o princípio da
causalidade e o princípio da imputação. Ao passo que ambos se
apresentam como juízos hipotéticos nos quais um determinado
pressuposto é ligado com uma determinada conseqüência, revela-se
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sua primeira diferença justamente no sentido da ligação de cada um. O
princípio da causalidade afirma que, quando A é, B é ou será. Já o
princípio da imputação afirma que quando A é B deve-ser.
Outra diferença profundamente importante consiste em que toda a
causa concreta pressupõe como efeito uma outra causa, e todo efeito
concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, de tal
forma que a cadeia de causa e efeito é interminável nos dois sentidos. Já
no princípio da imputação a situação se dá de maneira diferente: o
pressuposto a que é imputada a conseqüência, seja numa lei moral, seja
numa lei jurídica, não é necessariamente uma conseqüência que tenha
de ser atribuída a outro pressuposto, e a conseqüência também não
tem necessariamente de ser outro pressuposto a que se deva atribuir
nova conseqüência.
A terceira diferença é a de que há um ponto terminal na imputação
diferentemente do que ocorre na série causal. Esse ponto terminal da
imputação é inconciliável com a idéia de causalidade.
Conclui-se assim que não se pode aplicar a mesma norma para a
natureza e para a proposição jurídica.
O princípio da causalidade parte da natureza independente da vontade
dos homens, como por exemplo, a erupção de um vulcão, já a
imputação aparece como responsabilização de um ato cometido
através de uma norma jurídica um dever-ser, e tem como conseqüência
a punição.
Enfim, basicamente os dois princípios são diferenciados pela natureza
da conseqüência. Na relação causal (causalidade), o efeito não é a
descrição do estabelecido por ato de vontade dos titulares de
competência jurídica, como pode se verificar nas sanções na relação
normativa.
XIV. CIÊNCIA E POLÍTICA
Realidade e valor
É comum afirmar que a ciência deve ser independente da política. Com
isto, quer-se dizer que a busca da verdade, função essencial da ciência,
não deve ser influenciada por interesses políticos, que são os interesses
envolvidos no estabelecimento e na manutenção de uma ordem social
definida ou de uma instituição particular. A política como arte de
governar, como prática de regulamentar a conduta social dos homens é
uma atividade que necessariamente pressupõe a assunção consciente
ou inconsciente de valores.
A independência da ciência diante da política significa, em última
análise, que o cientista não deve pressupor nenhum valor. Enunciados
científicos são juízos sobre a realidade; por definição, são objetivos e
independentes de desejos e temores de sujeito que julga porque são
verificáveis por meio da experiência. São verdadeiros ou falsos. Juízos de
valor, porém, têm caráter subjetivo porque são baseados, na
personalidade do sujeito que julga, em geral, e no elemento emocional
de sua consciência, em particular.
O princípio de excluir juízos de valor do campo da ciência parece ter
uma exceção. Existe um valor que a ciência deve pressupor- a verdade-
há um juízo de valor que um cientista pode pronunciar legitimamente: o
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há um juízo de valor que um cientista pode pronunciar legitimamente: o
juízo de que algo é verdadeiro ou falso. Contudo, a verdade não é um
valor do mesmo sentido que os valores na base da atividade política
como, por exemplo, a liberdade individual ou a segurança econômica.
Verdade significa conformidade com a realidade, não conformidade
com um valor pressuposto. O juízo de algo é verdadeiro ou falso é a
verificação da existência ou não-existência de um fato, e tal juízo tem um
caráter objetivo na medida em que é independente do desejo ou do
temor do sujeito que julga e verificável pela experiência dos sentidos,
controlados pela razão. Pode-se demonstrar pela experiência que o
enunciado “O ferro é mais pesado que a água” é verdadeiro e que o
enunciado “A água é mais pesada que o ferro” é falso; e um deles é
verdadeiro e outro falso mesmo se o sujeito que julga, por um motivo
ou outro deseja o contrário. Por outro lado, o enunciado de que certa
organização, que garante a liberdade individual, mas não segurança
econômica, é boa não é enunciado sobre um fato, não deve ser
verificado por experimento e não é verdade nem falso.
Juízos sobre valores não contradizem juízos sobre a realidade, na
verdade, apenas se seu significado é tal que não podem contradizer ou
afirmar juízos sobre a realidade é que são juízos no sentido específico
do termo. Nesse sentido, a realidade e valor são sempre duas esferas
diferentes.
Os termos ‘valor’ e ‘juízo de valor’ são frequentemente usados em outro
sentido. Tal é o caso quando e enunciado de que algo é meio adequado
para certo fim é considerado juízo de valor. O enunciado refere-se à
relação entre causa e efeito e, é justamente essa relação entre fatos que
constitui uma realidade específica, a realidade da natureza. A ciência
natural descreve seu objeto como real aplicando o princípio da
causalidade- isto é, por meio de enunciados de que em dada condição,
uma consequencia específica certamente, ou provavelmente ocorrerá.
Esses enunciados são chamados de leis da natureza. O enunciado de
que algo é um meio adequado para um fim é verdadeiro ou falso; para
ser verdadeiro, deve ser verificável pela experiência. O enunciado de
que uma organização comunista é boa significa que é meio adequado
de ocasionar segurança econômica para todos, e se enunciado de que
uma organização comunista é má significa apenas que ela não tem este
resultado. Ambos são juízos sobre a realidade, e, se são classificados
como juízos de valor, tais juízos de valor não são diferentes de juízos
sobre a realidade, mas apenas um tipo especial de tais juízos, e,
portanto, não devem ser excluídos da esfera da ciência. A ciência pode
determinar os meios, mas não pode determinar os fins.
O enunciado de que algo é um fim, não é idêntico ao enunciado de que
um indivíduo, especialmente o sujeito que julga, ou vários indivíduos o
desejam. O segundo é um enunciado sobre um fato sobre o estado de
espírito efetivo dos seres humanos. Se por ‘fim’ designa-se aquilo que
um indivíduo efetivamente deseja, esse termo significa a intenção do
indivíduo, o propósito a que ele está efetivamente visando. Mas, no
sentido específico, o enunciado de que algo é um fim, por exemplo, o
enunciado de que a segurança econômica para todos é o fim da vida
social, expressa a ideia de que algo –deve ser buscado como um fim,
mesmo que não seja efetivamente buscado. Nesse sentido, o conceito
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mesmo que não seja efetivamente buscado. Nesse sentido, o conceito
de ‘fim’ é idêntico ao de ‘fim correto’. Portanto este enunciado (fim
correto) equivale à afirmação de que esse algo é prescrito por uma
norma. Nesse sentido, ‘fim’ significa ‘valor’ e, nesse sentido, uma norma
constitui valor. Em outras palavras, apenas como enunciado sobre o
que deve ser feito, em conformidade com uma norma pressuposta
como válida, é que o enunciado de que algo é um fim é um juízo de valor
no sentido específico do termo, em contraposição a um juízo sobre a
realidade, na condição de enunciado sobre o que é efetivamente é feito
ou provavelmente será feito.
Devemos distinguir um fim, que pode ser considerado um meio para
outro fim, de um fim último, ou, o que dá no mesmo, um valor
constituído por uma norma fundamental, isto é um valor supremo.
Obedecer aos mandamentos de Deus é um fim último- um valor
supremo, o conteúdo de uma norma fundamental. O enunciado de que
a ciência pode determinar o meio, mas não o fim último, equivale ao
enunciado de que a ciência não deve pressupor a validade uma norma
fundamental. Enunciados científicos sobre os meios adequados podem
ser formulados apenas como proposições condicionais: se for
pressuposta como válida a norma fundamental que constitui um fim
último, então é meio adequado.
Juízos sobre fins últimos ou supremos são, apesar de sua pretensão a
uma validade objetivam altamente subjetivos. Assim, eles diferem de
juízos sobre a realidade, que- sedo verificáveis pela experiência e
completamente independentes da personalidade do sujeito que julga,
particularmente de seus desejos e temores- são, pela própria natureza
objetivos. Essa objetividade é uma característica essencial da ciência, e,
por causa, de sua objetividade, a ciência opõe-se à política e deve ser
separada dela, porque a política é uma atividade baseada, em última
análise, em juízos de valor subjetivo.
A ciência da política e a ciência ‘política’
O princípio da objetividade aplica-se à ciência social, assim como à
ciência natural e, em particular, à chamada ciência política. O objeto da
ciência política é a política- a atividade dirigida para o estabelecimento e
a manutenção de uma ordem social, especialmente o Estado. Ao
descrever os fenômenos que estuda, o cientista político deve levar em
consideração os valores que os homens pressupõem em suas
atividades políticas. Mas ao fazê-lo não deve considerar a norma que
constitui o valor como válida, ele não deve aprovar nem desaprovar o
objeto de sua análise, para que seu trabalho não se torne, em vez de
uma ciência da política, uma ciência política, no sentido de um
instrumento da política. Se isso acontece, ela não é uma ciência, mas
uma ideologia política.
A separação de ciência e política, que significa abstenção de juízos de
valor em uma ciência cujo objeto, por assim dizer, está impregnado de
juízos de valor, não é tão paradoxal como parece; é necessário admitir
apenas que verificar o fato de que os homens são, consciente ou
inconscientemente, determinados em suas atividades políticas por
juízos definidos é bem diferente de apoiar esses juízos de valor. Não há
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motivos para diferenciar ciências naturais e sociais no que diz respeito
ao postulado de separar ciência e política.
Os que negam a legitimidade desse postulado no que diz respeito à
ciência política aceitam- pelos menos em parte- um dos princípios mais
característicos da filosofia marxista; o dogma de que a ciência não pode
ser separada da política porque é apenas parte da ‘superestrutura’ de
uma realidade econômica (o que significa, segundo essa filosofia, uma
realidade política) e, consequentemente, nunca é realmente mais do
que um instrumento político. Esse dogma nega a possibilidade de uma
ciência independente.
Embora a ciência deva ser separada da política, a política não necessita
ser separada da ciência. A ciência em geral e a ciência política em
particular podem fornecer os meios adequados, mas, como foi
assinalado, ela não pode determinar os fins últimos da política.
Contudo, admitir que esses fins, baseiam-se em juízos de valor
subjetivos parece muito difícil para aqueles que- por motivos políticos-
procuram uma justificação absoluta do sistema político que tentam
estabelecer ou sustentar. Se não estão dispostos a encontrar tal
justificação na religião, tentam obtê-la na ciência. Também essa
tendência é característica da filosofia marxista, que afirma estabelecer
um socialismo científico. A verdadeira ciência, é claro, recusa-se a ser
substituo da religião e não pode senão destruir a ilusão de que juízos de
valor podem ser derivados da cognição de realidade, de que os valores
são imanentes à realidade, que é o objeto do estudo científico. A visão
de que valor é imanente, à realidade, se sustentada por uma teoria da
sociedade anti-religiosa, antimetafísica, (como, por exemplo, pela
filosofia de Comte ou pela interpretação econômica da história Marx),
não tem nenhum fundamento.
Ciências normativas
O postulado da separação entre ciência e política pressupõe que o
objeto da ciência é a realidade. Existem, porém, ciências, ou disciplinas
geralmente consideradas ciências, como a ética e a jurisprudência, cujo
objeto parece não ser a realidade, mas valores. Elas descrevem normas
que constituem valores, e, nesse sentido, podem ser chamas de ciências
‘normativas’. Para considerá-los ciências, devemos levar em
consideração o fato de que existem dois tipos de normas, assim,
existem dois tipos diferentes de juízos de valor: existem normas
positivas, criadas por atos de indivíduos e normas que não são criadas
nessa maneira, mas são apenas pressupostas na mente dos indivíduos
que atuam e julgam. As normas do Direito positivo podem ser
estabelecidas pelo costume, por atos legislativos, jurisprudenciais, atos
administrativos ou transações jurídicas. Os atos pelos quais são criadas
as normas de um sistema normativo positivo são sempre fatos
manifestados no mundo exterior, perceptíveis aos sentidos.
Dizer que uma norma é criada por um fato é uma figura de linguagem. A
norma é o significado específico do fato, e esse significado,
imperceptível aos nossos sentidos, é resultado de uma interpretação.
Interpretar o significado de um fato como norma é possível apenas sob
condição de pressupormos outra norma que confira a esse fato a
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condição de pressupormos outra norma que confira a esse fato a
qualidade de um fato criador de norma; mas essa outra norma, uma
última análise, não pode ser uma norma positiva.
A diferença entre uma norma positiva e norma não positiva é
particularmente claro no campo do Direito. A primeira constituição
histórica só tem caráter de norma obrigatória se pressupomos uma
norma segundo a qual devemos conduzir-nos tal como os que
estabeleceram a constituição ordenaram que nos conduzíssemos. Se
não supomos que os pais da constituição receberam sua autoridade de
Deus, essa norma é uma norma fundamental. Não foi estabelecida,
como foi a própria constituição pelos atos de seres humanos; ela é
apenas pressuposta pelos que querem interpretar certas relações
humanas como relações jurídicas ou como relações determinadas por
normas jurídicas. Esse pressuposto, porém não é arbitrário. Na
verdade, pressupomos que devemos conduzir-nos como os que
estabeleceram a constituição ordenaram que nos conduzíssemos, se a
ordem jurídica estabelecida com base nessa constituição, for de modo
geral, eficaz. É princípio da eficácia implícito na norma fundamental.
A jurisprudência como ciência do Direito tem normas positivas por
objeto. Apenas o Direito positivo pode ser objeto de uma ciência do
Direito. É o princípio do positivismo jurídico, em oposição à doutrina do
Direito natural, que pretende apresentar normas jurídicas não criadas
por atos de seres humanos, mas deduzidas a partir da natureza.
Deduzir normas a partir da natureza, isto é, considerar a natureza como
legisladora, pressupõe a ideia de que a natureza é criada por Deus e,
assim, é a manifestação de vontade, que é absolutamente boa.
Portanto, a doutrina do Direito natural não é uma ciência, mas uma
metafísica do Direito. O Direito positivo pode ser Direito nacional
(Direito de um Estado, baseado na constituição) ou Direito internacional
(criado pelos costumes). Mas a norma em que a validade de um Direito
positivo se fundamenta é, na verdade, uma norma não-positiva, e o
princípio do positivismo jurídico pode ser sustentado apenas se
restringindo por esse fato. Essa restrição, porém, não abole a oposição
entre positivismo jurídico e a doutrina do Direito natural. A norma
fundamental de uma ordem jurídica positiva- em contraposição às
normas substantivas do Direito natural que prescrevem uma conduta
humana definida como em conformidade com a natureza ( e isso
significa justa) e proíbem uma conduta humana definida com contrária
à natureza ( e isso significa injusta) - tem caráter meramente formal.
Serve como fundamento para qualquer ordem jurídica positiva,
independentemente de sua conformidade ou não-conformidade com o
Direito natural e, tem na ciência do Direito, um caráter meramente
hipotético.
Normas jurídicas positivas podem ser objeto de uma ciência jurídica,
porque a existência- e isso significa a validade- de uma norma positiva é
condicionada pela existência de fatos. Esses fatos são os atos pelos
quais a norma jurídica é criada, como um costume, um ato legislativo,
judicial ou administrativo, uma transação legal, juntamente com a
eficácia da ordem jurídica total à qual pertence a norma. A afirmação de
que certa conduta humana (ou certo ato do Estado) é legal ou ilegal
pode ser verdadeira ou falsa, sendo verificável pela experiência.
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pode ser verdadeira ou falsa, sendo verificável pela experiência.
Tal norma existe apenas se for criada em conformidade com a
constituição que está na base daquele Direito e, essa constituição é
válida apenas se a ordem jurídica sobre ela estabelecida for, de modo
geral, eficaz. São fatos que podem ser verificados pela ciência da
natureza. Portanto, a afirmação de que normas são o objeto da ciência
do Direito não significa que o objeto dessa ciência não seja a realidade.
Significa apenas que esse objeto não é uma realidade natural tal como
descrita pela ciência natural. Mas o objeto da ciência jurídica pode ser
caracterizado como realidade jurídica, tal como descrita pela ciência
jurídica, consistem em fatos que têm- contato que seja pressuposta a
validade da norma fundamental não-positiva- um significado específico:
o significado de normas positivas.
A ciência natural descreve seu objeto como real enunciado que em
certas condições (causas), ocorrem, necessária ou provavelmente
certas conseqüências (seus efeitos). Essas proposições, como foi
assinalado, são as chamadas leis da natureza, que são leis da
causalidade. Os enunciados pelos quais a ciência do Direito descreve
seu objeto não são uma aplicação do princípio da causalidade; eles não
têm significado das leis da natureza, embora tenham a mesma forma
gramatical. Seu significado não é o de que, em certa condição,
determinada consequência ocorre efetivamente, isto é, necessária ou
provavelmente, mas que, sob condição de certa conduta humana, outra
conduta humana deve ocorrer como conseqüência. Esses enunciados
são regras de Direito. Na regra de Direito de que ‘se um homem comete
roubo, outro homem deve punir o ladrão’ a punição não é descrita
como efeito nem o roubo como a causa. O termo ‘dever’ expressa o
significado específico da ligação entre condição e consequência,
estabelecida por uma norma jurídica (uma prescrição ou permissão),
como diferente da ligação entre causa e efeito. Pode ser designada
como ‘imputação’. É necessário lembrar, é claro que, quando o princípio
da imputação é aplicado, e quando se afirma que, sob a condição de
certa conduta, outra conduta deve ocorrer, o termo ‘deve’ não tem seu
significado moral costumeiro, mas significado puramente lógico.
Designa, como a causalidade, uma categoria no sentido da lógica
transcendental de Kant.
A ciência do direito e a política
Se as proposições por meio das quais a ciência do Direito descreve seu
objeto forem chamadas ‘regras de Direito’, devem ser distinguidas das
normas jurídicas descritas por essa ciência. As primeiras são
instrumentos da ciência jurídica, as segundas são funções da
autoridade jurídica. Ao descrever o Direito por meio de regras de
Direito, a ciência do Direito não exerce a função de autoridade social,
que uma função da vontade, mas função da cognição. Embora se possa
considerar que as normas jurídicas emitidas pela autoridade jurídica
constituem valor específico a saber, o valor jurídico, as regras de Direito
não são juízos de valor em nenhum sentido possível do termo, assim
como as leis da natureza por meio das quais a ciência natural descreve
seu objeto não são juízos de valor.
A única norma não-positiva que a ciência do Direito pode levar em
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consideração- não como seu objeto- é norma fundamental da ordem
jurídica que é seu objeto. A função específica da norma fundamental de
uma ordem jurídica positiva, que constitui valor jurídico, é servir como
fonte última do Direito, isto é, como razão da validade da constituição
de uma ordem jurídica; e a constituição é aquela norma jurídica positiva
( ou conjunto de normas) que regulamenta a criação de outras normas
da ordem jurídica. Portanto, a norma fundamental de uma ordem
jurídica positiva, como foi assinalado, tem um caráter meramente
formal; ela não constitui um valor substantivo como, por exemplo, a
norma não-positiva de que os homens deve ser livres, ou de que os
homens devem viver em segurança- que constituem o valor chamado
‘justiça’.
Um Direito positivo pode ser justo ou injusto; a possibilidade de ser
justo ou injusto é uma conseqüência essencial do fato de ser positivo. O
juízo de que algo é legal ou ilegal, como foi assinalado, refere-se
necessariamente a uma ordem jurídica definida, válida para certo
espaço e em certo tempo. O que é legal segundo uma ordem jurídica
pode ser ilegal segundo outra. Nesse sentido, o valor constituído por
normas jurídicas positivas é sempre um valor relativo. Mas a ideia de
justiça, em seu sentido especifico, designa um valor absoluto,
constituído por uma norma não-positiva que se afirma válida em todas
as partes em todos os tempos, uma norma substantiva como um
conteúdo imutável. Mesmo se o enunciado de que alguma coisa é justa
ou injusta significar que ela está ou não em conformidade com uma
norma de uma ordem moral positiva, estabelecida pelo costume ou
pelos comandos de um fundador religioso, ele estará excluído do
campo da ciência do Direito. Pois a validade de tal norma positiva
depende de uma norma fundamental do Direito positivo, que é a única
condição sob a qual a ciência do Direito pode descrever seu objeto
como um conjunto de normas válidas que constituem o valor jurídico
específico.
Outros valores, especialmente o valor da justiça, que é valor específico
segundo o qual o Direito positivo chama ‘valores políticos’, para serem
distinguidos do valor jurídico.
Mas, embora a ciência do Direito possa e deva ser separada da política,
isto é, embora o cientista jurídico deva abster-se de juízos de valor
político, o processo legislativo, que é função da autoridade jurídica, não
pode ser separado da política. Pois essa função é determinada não
apenas pelas normas jurídicas, mas Tb por normas de outro sistema
normativo que, para distingui-las do Direito, são chamadas, como foi
assinalado de ‘políticas’. É uma peculiaridade do Direito de reger sua
própria criação. Assim como a constituição rege a criação dos estatutos
ou institui o costume como fato criador do Direito, estatutos e regras
de Direito consuetudinário regem a criação de normas específicas pelos
tribunais nas jurisprudências. Ao criar uma norma, a autoridade jurídica
aplica uma norma superior que determina a criação e o conteúdo da
norma inferior. Na medida em que sua função criadora de normas é
deixada ao seu arbítrio, a autoridade jurídica pode ser, e efetivamente é,
determinada por outras normas que não as normas jurídicas- e nessa
medida sua função tem um caráter político, ao passo que é uma função
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medida sua função tem um caráter político, ao passo que é uma função
jurídica na medida em que é determinada por normas jurídicas.
Normalmente o órgão legislativo é juridicamente obrigado pela
constituição. É esse caso quando a constituição proíbe ou prescreve
certo conteúdo para essas normas, por exemplo, quando a constituição
proíbe certo conteúdo a restrição da liberdade religiosa. Na medida, em
que a função legislativa é, determinada pela constituição, o legislador
pode ser, e efetivamente é, determinado por princípios políticos,
especialmente pela sua ideia de justiça. Ele pode preferir um conceito a
outro no mesmo campo, pq considera um justo e o outro injusto.
O cientista jurídico não tem escolha de aceitar ou rejeitar o Direito, tal
como estabelecido pelo legislador, com base no seu juízo sobre o que é
justo ou injusto. Ele pode apenas examinar se as normas criadas pelo
órgão legislativo estão ou não em conformidade com as normas
positivas da constituição, e o resultado desse exame é, em ultima
análise, a verificação objetiva de um fato, não um juízo subjetivo de
valor. Mas, mesmo o enunciado do cientista jurídico, de que um
estatuto é ou não constitucional, não tem nenhuma importância
jurídica, pois a questão de se o estatuto é ou não constitucional não
pode ser decidida pela ciência do Direito, mas pela autoridade jurídica a
quem o Direito confere esse poder.
A aplicação do Direito por uma autoridade jurídica, assim como a
descrição do Direito pelo cientista político, implica uma interpretação
do Direito. Interpretar uma norma jurídica é encontrar seu significado. É
uma exigência da técnica jurídica que a norma jurídica seja formulada
tão claramente quanto possível, para que seu significado seja
inquestionável. Por vezes, mais de um significado pode ser encontrado
em uma norma jurídica.
Existem diferentes métodos de interpretação: segundo a intenção do
legislador, interpretação histórica ou lógica e a interpretação restritiva
ou extensiva. Mesmo que um método de interpretação seja obrigatório,
ele pode fornecer significados diferentes e contraditórios. Ao aplicar
uma norma, a autoridade jurídica escolhe em desses significados e,
assim, atribui força de Direito. Isso pode ser chamado uma
interpretação autêntica, embora na linguagem tradicional esse termo
seja usado apenas para designar uma norma jurídica cujo propósito
expresso é interpretar uma norma anterior, não a interpretação
implícita na aplicação da norma. A escolha de um dos vários significados
de uma norma jurídica por uma autoridade jurídica em sua função
aplicadora do Direito é um ato criador do Direito. Na medida em que
essa escolha não é determinada por uma norma superior, é uma função
política. Portanto, a interpretação automática do Direito por uma
autoridade jurídica pode ser caracterizada como interpretação política.
Por outro lado, a tarefa de um cientista jurídico que interpreta um
instrumento jurídico é demonstrar seus possíveis significados e deixar à
autoridade jurídica competente a escolha, segundo princípios políticos,
do que esta autoridade julga mais adequado. Ao mostrar as
possibilidades que a lei a ser aplicada abre à autoridade jurídica, o
cientista jurídico serve cientificamente à função aplicadora de direito; ao
revelar a ambiguidade e assim, a necessidade de melhorar a redação,
serve à função criadora de Direito de maneira científica.
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serve à função criadora de Direito de maneira científica.
Se o cientista jurídico recomenda à autoridade jurídica um dos
diferentes significados de uma norma jurídica, ele tenta influenciar um
processo criador de Direito e exerce uma função política e não
cientifica; se ele apresenta essa interpretação como a única correta,
esta atuando como um político disfarçada de cientista. Portanto a
interpretação cientifica do Direito, que é a interpretação do Direto por
um cientista jurídico pode ser caracterizada como uma interpretação
jurídica – em contraposição à interpretação aplicada a uma autoridade
jurídica. Ao preferir uma das diversas interpretações possíveis, à
exclusão de outras, a segunda pode ser caracterizada como uma
interpretação política.
O “jurídico” e o “político”
A distinção entre uma função jurídica e uma função política como
distinção como uma função determinada por normas jurídicas e uma
função determinada não por normas jurídicas, mas por normas
políticas, é de muitas vezes de considerável importância. Um exemplo
típico é o reconhecimento de uma comunidade ou de um Estado, ou de
um corpo de indivíduos como governo de um Estado. Segundo alguns
autores o reconhecimento tem apenas caráter declaratório, não tem
conseqüências jurídicas. Portanto, uma comunidade é um Estado se
cada um cumprir as exigências do Direito internacional,
independentemente de ser ou não comunidade reconhecida pelos
outros Estados. Segundo outros autores, o reconhecimento tem um
caráter constitutivo, o que significa que tem conseqüências jurídicas
essenciais. Assim, uma comunidade é um Estado apenas quando
reconhecida pelos outros Estados. Mas, na verdade, o reconhecimento
é um ato constitutivo e declaratório, o ato chamado reconhecimento
compreende duas funções: uma função jurídica, que é constitutiva, e
uma função política, que é declaratória.
É frequente a afirmação de que a constituição de um Estado, ou a
constituição de uma comunidade internacional, não é um instrumento
jurídico mas um instrumento político, que, conseqüentemente deve ser
interpretado não juridicamente, mas politicamente. Não pode haver a
menor dúvida que a constituição de um Estado ou tratado constituinte
de uma comunidade internacional são instrumentos jurídicos. A única
questão é se são, ao mesmo tempo instrumentos políticos. Se a
resposta é afirmativa certamente não se fundamenta no conteúdo dos
instrumentos, que, por sua própria natureza, é Direito e nada mais que
Direito. O instrumento em questão pode ser chamado político apenas
no que diz respeito ao propósito do Direito que contém. O propósito
político não priva, em absoluto, o instrumento em caráter jurídico. Não
existe nenhum instrumento jurídico que não tenha um propósito
extrajurídico, porque o Direito, visto a partir de um ponto de vista
teleológico, é sempre um meio e não um fim. Portanto, o propósito
político ou econômico de uma norma jurídica não pode excluir uma
interpretação jurídica, isto é, legal, sobretudo porque uma
interpretação jurídica inclui – como foi assinalado – todas as
interpretações possíveis de uma norma jurídica.
A doutrina de que existem disputas jurídicas, ou política, não passíveis
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A doutrina de que existem disputas jurídicas, ou política, não passíveis
de decisão judicial em virtude de inaplicabilidade do Direito
internacional existente interpreta erroneamente aquilo que é uma
inadequação do ponto de vista não- jurídico, classificando-o como
impossibilidade jurídica. Seu propósito não é interpretar o Direito de
maneira objetiva, mas justificar a tentativa de excluir a aplicação do
Direito existente, em contradição com seu significado cientificamente
verificável. Assim, essa doutrina não é uma teoria cientifica, mas um
instrumento de política.
O uso equivocado da distinção jurídico e político é um dos meios mais
eficazes, embora não único, empregados para confundir a ciência do
Direito com a política. Evitar a fusão destas duas esferas heterogêneas é
tão essencial para preservação do caráter científico da jurisprudência
quanto é vital a separação de ciência e política para a existência de toda
e qualquer ciência independente.
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(2012, 06). O Que é Justiça. TrabalhosFeitos.com. Retirado 06, 2012, de
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Justi%C3%A7a/266308.html
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