O minorca - Anne-Marie Desplat-Duc
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O Minorca
Anne-Marie Desplat-Duc
Éric é filho único, o que não é nada fácil.
E, para complicar ainda mais, é de baixa estatura….
Os pais protegem-no em demasia, e os colegas fazem dele alvo preferencial de troça.
É simples: ninguém gosta de magricelas e muito menos de magricelas sonhadores…
Por isso, a única solução está em assumir a diferença…e desenvolver a autoestima.
Será que o vai conseguir?
*****
Prefácio
Para as crianças de hoje e de ontem.
Eu era filho único e vivia rodeado de adultos.
Para os meus pais, avós, tios e tias, eu era tudo.
O último descendente de uma família em vias de desaparecimento.
Para os meus colegas, não era nada. Não passava de um minorca.
Os adultos superprotegiam-me e mimavam-me. Os miúdos troçavam e fugiam de
mim.
Causava-me tristeza ser uma espécie de bola entre dois campos.
Queria fugir dos adultos, cujo amor me abafava, mas não tinha coragem nem
sabedoria para o fazer.
Queria ser como os outros, ter amigos, mas, apesar das minhas tentativas, não
conseguia.
Devo confessar que não tinha estofo de líder, longe disso. Para cúmulo, a natureza
tinha-me dotado de um corpo débil, devido a uma falta de apetite crónica que a minha
família considerava desoladora.
A minha mãe levou-me a todos os médicos da cidade, e mesmo a alguns
especialistas aconselhados por amigas, clientes ou comerciantes.
O único de que gostei foi um que disse:
— Esta criança está bem. Deixem-na sossegada. Come quando tiver fome.
A minha mãe, ultrajada por ele não ter receitado fortificantes ou vitaminas, saiu do
consultório a dizer:
— Que médico mais incompetente!
Eu detestava carne, legumes, massas, arroz e sobremesas. Do que gostava mesmo
era de debicar aqui e ali, como os pássaros, quando me apetecesse.
O que era proibido. Segundo a minha mãe, só se podia comer à mesa.
Como era proibido e as artimanhas não me agradavam, não desobedecia.
Apesar de achar o mundo dos adultos enfadonho, sentia-me bem nele, porque era
menos cruel do que o das crianças. Não queria envelhecer (nem sequer ouso dizer
“crescer”, já que era baixinho para a minha idade).
Antes de entrar na escola básica, ainda vivia num mundo de ilusão. Era o mais
pequeno entre os pequenos e as educadoras, que me achavam um autêntico querubim,
apaparicavam-me.
Foi quando saí de lá que tudo começou a correr mal.
1
A palavra encantada
Como era ainda muito novito, não conhecia palavrões, à exceção de “caca”, que
aprendi no infantário, ao mesmo tempo que aprendi a contar até dez e a escrever o meu
nome pouco complicado: Éric.
Foi com desgosto que deixei este mundo infantil.
Não falei a ninguém da minha tristeza e, como se diz que os rapazes não choram,
também não chorei.
Aos seis anos, fui para a “escola dos grandes”, para aprender a ler.
Acabaram-se os castelos de areia, as construções e a plasticina, tudo distrações
reservadas aos bebés. Acabaram-se, também, as pombas na sala de aula, as rodinhas, a
hora do conto e os espetáculos de marionetes.
Sentia-me a ser empurrado e não estava preparado para enfrentar o mundo dos
adultos. Ninguém me tinha consultado.
No primeiro dia de aulas, formou-se na minha garganta uma bola estranha, que me
impedia de engolir a saliva. Nem sequer pude comer a torrada preparada pela minha mãe,
que quis acompanhar-me nesse dia. Aceitei a sua companhia e apertei a mão dela com
força quando atravessámos a entrada da escola reservada aos rapazes.
O recreio estava cheio de gritos, de batalhas, de empurrões. Reconheci alguns dos
colegas e fiz-lhes um sinal, que eles ignoraram, demasiado absorvidos pelos jogos ou
pelas conversas.
Acho que a minha cara mostrava bem a angústia que sentia.
Não havia raparigas. Apenas rapazes a estrear casacos ou calças.
O universo dos rapazes aterrorizava-me. Tudo se passava com demasiada força,
rapidez, maldade e dureza.
Acabei por ter de largar a mão da minha mãe, embora fingisse que a iniciativa era
minha. Dirigi-me, então, para um grupo que jogava berlindes e pus-me a observar. Não
me apetecia distrair e admirei os seus risos e a sua descontração.
Quando o professor, um homem alto, severo, e com um bigode farfalhudo, se sentou
à secretária, colocada sobre um estrado, e nos mandou calar, já eu estava calado há
muito.
Para ser franco, estava mudo.
Os outros nem pareciam tê-lo ouvido e continuavam a falar, a troçar, a deixar cair os
cadernos, ou a raspar as solas dos sapatos no chão.
O castigo estava para vir, mas só eu o sentia.
De braços cruzados, implorava com o olhar que parassem, embora todos me tenham
ignorado.
— Castigo geral! — gritou o professor.
Fez-se silêncio.
Eu ia ser castigado sem merecer, o que era uma injustiça.
Os meus colegas sempre me criticaram por não fazer barulho como eles, por não ser
indisciplinado, por obedecer, por estar de acordo com o professor.
Já nasci assim.
Gosto da ordem e da justiça.
Os outros achavam-me um “lambe-botas”, mas eu era apenas eu próprio, ou seja,
sensato.
Ser uma criança sensata é mais problemático do que ser uma criança turbulenta. Os
pais e os professores gostam mais, mas a criança vive a sensatez como uma tortura.
A minha angústia atenuou-se quando tirei da pasta nova o meu estojo novo, que
levara uma hora a escolher, os meus lápis novos, os meus cadernos de páginas
imaculadas e capas brilhantes.
Fui acometido pelo inebriamento da novidade.
Havia lá coisa mais encorajadora do que um caderno novo em folha à espera de boas
notas! Seria o primeiro da turma, ou o terceiro, que também não calhava nada mal.
Sentia-me capaz de o conseguir. Aplicar-me, escutar, trabalhar, nada disto era difícil para
mim, porque era dócil e bom aluno.
Qualidades que as outras crianças não apreciavam e, por isso, em vez de atrair
amigos, afastava-os. Para fazer amigos num recreio, é preciso participar numa boa luta
que fará de nós alguém a temer e respeitar. É passaporte certo para que três ou quatro
amigalhaços venham apertar-nos a mão e emprestar os berlindes ou a bola.
Ninguém quer minorcas. A compaixão não é um sentimento típico das crianças. Os
miúdos põem-se de lado ou dá-se cabo deles.
Contudo, cheio de boa vontade e acreditando que nada me faltava para ser como os
outros, fiquei à espera de que o professor nos desse alguma tarefa.
O que não tardou a acontecer.
Não querendo traumatizar-nos com um exercício muito difícil para começar o dia,
pediu:
— Desenhem a paisagem das vossas férias.
O desenho não era o meu forte. Tinha demasiada imaginação e gostava de misturar
formas e cores, o que nem todos apreciavam.
Mas dei o meu melhor e nem sequer demorei muito a pensar no que faria.
Num canto da folha, pintei uma enorme laranja, da qual gotejavam lágrimas de sumo,
que era bebido por bocas cor-de-rosa, inseridas num céu pálido, cheio de olhos da cor das
miosótis azuis. O mar era verde como um prado e havia carneiros cremosos que pastavam
ao longe. Sobre a areia dourada, dormia uma criança.
A criança era eu.
Eu não sabia nadar, mas, enquanto estivesse ali deitado, ninguém desconfiaria.
Não que não gostasse da água; apenas tinha medo dela. Gostava do seu contacto
fresco e de ter a areia debaixo dos pés, mas não conseguia flutuar. Os que enfrentam a
água com excitação dizem-nos que é simples, que basta relaxar e deixar-se ir. Só que eu
sentia uma crispação quando deixava de ter contacto com terra firme. Gostava do mar,
mas não sabia nadar.
Senti-me satisfeito com o meu desenho.
O professor passou pelas filas de carteiras, observando os desenhos com um olhar
indiferente, e escreveu um comentário em cada um deles.
No meu, escreveu uma palavra espantosa, uma palavra nova, inventada para mim
decerto.
Eu conhecia as menções normalmente atribuídas: MB significava “Muito Bom”, B
significava “Bom”, e M sancionava um mau trabalho. A palavra que ele acabava de
escrever era-me desconhecida.
Pus-me a observar, à direita e à esquerda, à frente e atrás, as anotações escritas a
vermelho em cada um dos desenhos dos meus colegas.
Nenhum deles tinha a palavra magnífica que o meu ostentava.
Ergui a cabeça com orgulho.
Decompus a palavra sílaba a sílaba, tentando lê-la. Fiquei estupefacto. Era uma
palavra musical como ME-LO-DIA. Uma palavra que convidava ao sonho como MA-RA-VI-
-LHO-SO. Colorida como uma floresta de outono, com árvores em tons púrpura e ocre.
Soletrei-a devagar em voz baixa, várias vezes. De repente, pensei “O ano começa
bem. A minha mãe vai ficar contente!” Enrolei o desenho e enfiei-o debaixo do meu
pulôver para o proteger dos olhares indiscretos e não me esquecer de o levar para casa.
O professor, ignorando a agitação que me assaltava, distribuiu fósforos amarelos
para a lição sobre cálculo. Apesar de querer estar atento, não consegui ouvir as
explicações, conselhos e recomendações. O meu cérebro estava totalmente preenchido
por aquela palavra nova.
A campainha tocou, por fim.
Saí a correr da sala de aula, enfiei o casaco sem sequer o abotoar, cruzei os braços
sobre o peito para não perder o meu tesouro e corri…
Avistei a minha casa por detrás da fileira de cerejeiras de folhas ruivas, empurrei com
o ombro o portão que nunca estava fechado e precipitei-me para os braços da minha mãe
que me esperava no pátio. Antes mesmo que ela me perguntasse como tinha corrido a
primeira manhã de aulas, pedi esbaforido:
— Olha! Olha!
E, feliz e orgulhoso, estendi-lhe o desenho no qual o professor tinha escrito a
vermelho:
MEDÍOCRE.
2
O 4CV1* preto
A minha mãe não quis estragar a minha alegria, explicando-me o significado da
palavra enganadora.
Será que fez bem ou mal?
Só descobri o equívoco, quando, no dia da minha primeira comunhão, o episódio foi
narrado para gáudio de toda a família. Depois de terem rido de mim à vontade, tentaram
desculpar-se da sua hilaridade beijando-me prodigamente e concluindo:
— Decididamente, aquele professor era tudo menos um artista!
Senti-me penalizado pela troça dos adultos. Será que tinham direito de o fazer?
Fiquei zangado com a minha mãe, por ela não ter guardado o segredo. Para me
vingar, vou contar um dos seus disparates. Assim, ficamos quites.
Já não me recordo da data do incidente, mas sei que foi no ano em que a minha mãe
aprendeu a conduzir.
*O 4CV foi um automóvel fabricado pela marca francesa Renault (N.T.)
— Um destes dias, ainda me vão atravessar a montra — disse o meu pai a olhar para
os carros estacionados diante da loja de material elétrico que ele e a minha mãe tinham
comprado depois de casados. O estacionamento tinha de ser feito numa rampa
complicada e os carros estacionavam de frente, contra o passeio, mesmo a um metro da
frente da loja.
Contudo, mesmo que o meu pai se tenha retraído várias vezes ao ver as manobras
perigosas de alguns condutores principiantes, nunca nenhum veículo se aproveitara da
rampa para cortejar a vitrina.
Com o decorrer dos anos, o meu pai desenvolveu mesmo uma certa filosofia:
— No dia em que um carro me demolir a montra, vou aproveitar para a mudar.
Mas, como a ocasião não se proporcionava, o meu pai decidiu empreender a
remodelação nesse mesmo ano, trocando a velha e antiquada moldura em madeira por
uma montra panorâmica, montada em perfis de alumínio, que era mais atraente para a
clientela.
Um pintor italiano, chamado Leonardo, aconselhou uma mescla de amarelo, verde,
azul e vermelho, que ele mesmo aplicou, de forma pouco cuidada, nas paredes, no teto,
na fachada e no chão, enquanto cantava, de manhã à noite, uma canção italiana chamada
Santa Lucia.
O efeito era moderno e vistoso.
Esta loja, remodelada segundo as últimas tendências da moda, era a prova de que os
meus pais, que se tinham estabelecido há cerca de dez anos, tinham “trabalhado no
duro”, como o meu pai repetia, e essa era a razão do seu sucesso. Orgulhoso das obras, o
meu pai colocou as três letras do seu nome num reclame luminoso por cima da porta.
O desaparecimento da antiga montra entristeceu-me. Estava já tão habituado à sua
madeira antiquada como ao pelo rapado do meu velho ursinho. Detestava tudo o que é
mudança e não reconhecia a “minha” loja. O cheiro era diferente. Cheirava a novo, a
desconhecido. Já não me sentia em casa.
O meu pai voltou a exprimir alguns receios quando as mulheres começaram a
conduzir. De braços cruzados, prudentemente instalado ao lado da montra, vigiava as
condutoras. Claro que elas sabiam puxar o travão de mão, mudar de velocidade, fazer
ponto de embraiagem, aliviar o travão de mão devagar e recuar, sem galgar o passeio.
O meu pai, pessimista, continuava a repetir, qual meteorologista que vê logo chuva
numas pequenas nuvens:
— Um destes dias, vai-me entrar UMA pela montra dentro.
Um domingo de manhã, a minha mãe propôs-me acompanhá-la para comprar alguns
pastéis. Embora com alguma dificuldade, conseguiu tirar da garagem o 4CV preto,
comprada três dias depois de ter obtido a carta de condução.
O meu pai, que não queria que a minha mãe conduzisse, tanto para conservar a sua
supremacia, como para a preservar de acidentes, dissera-lhe, num tom perentório e
desencorajador:
— Já que conseguiste tirar a carta, também deves conseguir tirar o carro da garagem.
E ela tirou.
Quando chegámos à cidade, estacionámos… diante da montra da loja deles.
Depois das compras feitas, voltámos rapidamente para o carro, para evitar a
afluência do fim da missa. A minha mãe colocou, com cuidado, as caixas dos bolos junto
de mim, esqueceu-se de meter a marcha atrás e, com um solavanco, o carro galgou o
passeio e pulverizou o vidro da montra com estrondo.
Demos ambos um grito.
A minha mãe não teve tempo de ter medo: só sentia vergonha. Apetecia-lhe
desaparecer naquele mesmo instante, para evitar os olhares trocistas, as perguntas
idiotas, as críticas.
Petrificada, com os olhos cheios de lágrimas, media a extensão do prejuízo, enquanto
murmurava:
— Como é que vou dar a notícia ao teu pai?
Fiquei inquieto, porque sabia que os meus pais iam discutir.
Os adultos são piores do que as crianças. São capazes das piores discussões por
causa de um molho um pouco salgado ou de um atraso injustificado. Quando discutiam, o
meu pai costumava gritar e a minha mãe chorar. O meu pai saía da cozinha, batendo com
a porta, enquanto a minha mãe dizia “Éric, acaba o queijo e vai deitar-te.”
No dia seguinte, a casa estava calma, o que me tranquilizava um pouco.
Desta vez, porém, achava que o meu pai tinha um bom motivo para se aborrecer: a
montra era nova!
Entretanto, o barulho tinha atraído os curiosos e os fiéis, que ficaram contentes por
terem um acontecimento que seria motivo de comentário e risota durante o almoço de
domingo. “É verdade, ela deu cabo da própria montra!”
Perdoa-me, mãe, pois nunca devia ter contado este incidente. Contudo, tu também
divertiste a família à custa da minha palavra maravilhosa, sem me teres perguntado se
podias contar o episódio.
Também eu senti vergonha quando me apercebi do que o comentário do professor
significava realmente.
Não são só os adultos que sentem vergonha…
3
A pesca
Os meus pais discutiram e eu senti-me muito infeliz.
Esforcei-me por engolir a comida, mas não consegui. A fúria do meu pai abateu-se
sobre mim:
— Vais comer ou quê, meu molengão? Se continuares assim, nunca serás um
homem!
Sentia-me triste, mas também contente por o ter distraído da montra e das críticas à
minha mãe.
Tinha medo de que os meus pais se divorciassem.
Não conhecia a palavra “divórcio” há muito tempo. Um aluno mais velho tinha-me
falado dela: os pais tinham-se separado e, por isso, às segundas-feiras, os deveres dele
nunca estavam feitos, porque passava o domingo com o pai e não tinha tempo para
estudar.
O professor tinha-o mesmo dispensado dos trabalhos de casa de segunda-feira.
Os outros achavam que ele tinha sorte, mas eu não.
Gostaria de ter coragem de dizer “Por favor, Pai, não grites. Uma montra partida não
é grave, porque a Mãe nem sequer se feriu.”
A tempestade acalmou, finalmente.
A minha mãe voltou a sorrir e o meu pai deixou de criticá-la. E, em jeito de pedido de
desculpas, propôs-me ir à pesca no domingo seguinte.
Esperei pelo fim de semana com impaciência. Gosto de pescar e gosto do meu pai. A
combinação dos dois dá um excelente programa.
A minha mãe não ia connosco. Embora me mime e cuide de mim, não se diverte
comigo. Está sempre séria. Já o meu pai é o oposto. Quando está de bom humor, faz
momices e inventa segredos. Corre atrás da minha bicicleta, constrói um teatrinho de
marionetas para mim, joga bólingue e cartas comigo.
Fizemos os preparativos no sábado. O meu pai colocou o material todo na mesa da
cozinha. Eu nem falava, ciente da importância de cada gesto. De qualquer forma, quem
vai à pesca tem de saber estar calado.
Depois, fomos ao jardim buscar minhocas. O meu pai escolheu o canto mais húmido
e, debaixo do lilaseiro branco, remexeu num grande torrão de terra com a pá e eu fiz a
colheita. Com o polegar e o indicador, peguei em cada uma de forma delicada. Depois de
as avaliar rapidamente, coloquei-as numa caixa metálica cheia de buraquinhos.
— Estas são bonitas — apreciei, qual perito.
No domingo, o meu pai acordou-me bem cedo e eu, que passava a semana cheio de
sono, abri as pálpebras como se fossem portadas de janela.
— Psiu, a tua mãe ainda dorme! — avisou ele.
Estava tudo pronto em cima da mesa da cozinha.
A minha mãe tinha confecionado o nosso piquenique e colocado, em cada
embrulhinho cuidadosamente feito, uma etiqueta a indicar o conteúdo.
Depois de um rápido pequeno-almoço, o meu pai anunciou, bem-disposto:
— Vamos lá, companheiro, os peixes estão à nossa espera.
Conduziu devagar até ao “nosso” cantinho, algures debaixo da ponte. Inspecionei o
lugar para ver se alguém chegara antes de nós, mas não havia vivalma. Estacionámos
junto de um enorme castanheiro que nos serviria de ponto de referência.
Metemos por um caminho estreito, que tinha sido trilhado por muitos passos, além
dos nossos, ao largo de gerações, caminhando por entre as raízes das árvores, os tufos de
tomilho e giesta, e as saliências cortantes das rochas calcárias. Fomos até ao fundo do
valezinho onde o rio cantarola no seu leito estreito.
O sol matinal ainda não iluminava este canto da montanha e a sombra estava fresca.
Os pássaros davam-se os bons-dias mutuamente e uma pequena brisa ondulava a
superfície da água, sobre a qual insetos delgados e de patas longas se perseguiam.
A paz mágica deste lugar era sempre fonte de surpresa para nós. Colocámos o
material em cima da relva para saborear de mãos livres a felicidade que sentíamos em
estar ali, juntos.
O meu pai sorriu para mim, o que significava “Está-se mesmo bem, não está?”
Retribuí com outro sorriso, que queria dizer “Se está!”.
O meu pai tirou os elásticos que atavam as canas de pesca, pegou numa linha que
estava no cesto de verga e atou o fio de náilon à extremidade flexível da cana.
Regulou a altura do flutuador e estendeu-me a cana:
— Boa pesca! — desejou.
Faltava ainda colocar o isco no anzol, o que eu detestava fazer. Tinha sempre a
impressão desagradável de que algo me picava também nas costas, embora não o
deixasse transparecer. Peguei numa minhoca rechonchuda com a mão direita e coloquei-
a, da forma mais delicada que pude, no anzol de aço. A minha vontade era sempre
magoá-las o menos possível.
Avancei lentamente, ao longo do rio, à procura de um local para me sentar. Avaliando
a profundidade da água, tal como o meu pai me ensinara, inclinei-me para passar sob o
grande salgueiro. Ao aperceber-me de um cintilar de escamas sob os ramos longos e
macios da árvore, lancei o anzol e sentei-me num cepo.
Fixei o flutuador, que a corrente começava a arrastar, e voltei a colocá-lo no seu
ponto inicial, com um movimento suave do pulso. Esperei, imperturbável. A paciência e a
calma eram minhas aliadas. Após alguns minutos de imobilidade, hipnotizado pelo
balancear do flutuador, o meu espírito pôs-se a vaguear e a minha cabeça encheu-se de
todo o tipo de pensamentos…
Fui acordado por um despique no seio de um bando de pardais. O flutuador, entregue
a si próprio, tinha sido retido por ramos secos que boiavam na superfície da água. Puxei-o
de novo para mim. Depois, fiz sinal ao meu pai, que se tinha instalado um pouco mais
adiante. Perguntei-lhe, por gestos “O peixe está a morder?”. “Não”, respondeu ele,
meneando a cabeça com um ar desanimado.
Desde que tínhamos chegado ao rio, nenhum de nós tinha proferido palavra. A pesca
é uma verdadeira escola de silêncio.
Como não tinha irmãos, irmãs, ou amigos, costumava falar sozinho e contar histórias
a mim mesmo. Porém, embora o silêncio possa ser muito doloroso, este estava cheio de
sons, de pequenos barulhos, e de ruídos alegres. Além de que comunicava com o meu pai
através de gestos e pensamentos.
Naquele sítio, nem eu estava sozinho nem o silêncio era inquietante.
Enquanto observava o voo de uma borboleta branca, o triângulo vermelho da cortiça
afundou-se ligeiramente. O meu coração disparou: um toque.
Agarrei firmemente a cana com as duas mãos, pronto a agir. Algures, no fundo da
água, um peixe tocava ao de leve na minhoca. Será que ia morder o anzol? Tinha de
conservar a calma e esperar que o flutuador descesse a pique. Mal isso aconteceu, puxei
logo pela cana.
Quando vi o peixinho de água doce na ponta do fio, esqueci toda a prudência e gritei:
— Apanhei um!
O peixe escorregou pela minha mão, na qual deixou um rasto de escamas prateadas.
Retirei-o com cuidado para não lhe arrancar a goela e larguei-o dentro do balde cheio de
água.
O peixe começou a voltear dentro da sua prisão de lata. Achei-o menos bonito e
menos alegre do que quando brincava nas águas vivas do rio. Será que devia ficar
contente com a minha proeza ou libertá-lo?
Recusei este sentimento de ternura e voltei para o meu lugar.
A reverberação da luz no espelho da água afastava de mim o olhar de milhões de
estrelas multicolores. Pus a cana de pesca entre os joelhos para poder esfregar os olhos.
Através de grandes gestos, o meu pai chamou-me a atenção para a hora da
merenda. Sentados num rochedo plano, engolimos as sandes. Que fome eu tinha! Durante
a semana, quando estava na loja, o meu pai fazia sempre uma pausa às dez horas.
Naquele momento, senti-me orgulhoso de o estar a imitar.
Sentíamo-nos felizes juntos. Felizes e cúmplices.
O meu pai deu-me uma palmada amigável no ombro, como fazem os amigos de
trabalho, e inspecionou as canas colocadas na erva rala da margem. Em seguida, olhou
para o céu, avaliando-o. Mastigava devagar, saboreando a comida e o momento presente.
Era ali que ele pescava com o pai e gostava do lugar, por causa do silêncio e do
cantarolar suave da água sobre os seixos polidos. De todos os rios, só este parecia ter
este murmúrio tímido, este cochichar sob as árvores, e estas gargalhadas espumantes
quando desce pelas cascatas.
Um dia, também eu virei aqui pescar com o meu filho.
— A pesca não está famosa hoje — comentou o meu pai. — Vamos mais cedo para
casa.
Voltámos aos nossos lugares depois de beber uma água com gás que tínhamos posto
a refrescar na corrente.
Ainda apanhei algumas tainhas com um misto de alegria e pena.
O sol descia no vale cavado pelo rio, os pássaros cantavam, as libelinhas rasavam a
água límpida. Os mosquitos voavam em turbilhão sob o salgueiro, e os peixes, felizes por
estarem no rio, tentavam evitar as minhocas tentadoras.
Acabei por deitar ao rio os cinco infelizes gulosos que se queixavam dentro do balde.
Era melhor assim. Embora gostasse da pesca, detestava a fritura. Ficava enjoado só de
ver os peixes fritos de olhos brancos e redondos no meu prato. Como era possível que
alguém comesse aquilo? Creio que o meu pai é como eu, porque prefere chegar a casa de
mãos a abanar. E a minha mãe também, porque não gostava nada de ter de preparar a
vintena de peixinhos que, uma vez ou outra, levámos para casa.
Depois de arrumarmos o material, descalcei-me e patinhei na água fresca, molhando
o meu pai, que se pôs a rir.
Sentia-se um vento de alegria a percorrer este canto da natureza selvagem e calmo.
Tinha sido eu a semeá-la, e isso deixava-me feliz.
4
É preciso comer para viver...
Costumava passar as férias da Páscoa em casa do tio Julien. Devo confessar que
gostava mais do tio Julien do que da tia Rose.
Enquanto a tia Rose só se preocupava que eu comesse e que não apanhasse frio, o
tio Julien era melhor do que um colega: estava sempre de acordo comigo, não fazia
batota, nunca discutia, e tinha um olhar mais bondoso do que o melhor dos amigos.
Fiz, pois, questão, de voltar a passar as férias da Páscoa com os meus tios.
Mal entrei em casa deles, a tia Rose abraçou-me com força e cobriu-me de beijos
sonoros.
Persuadida que a minha mãe não sabia alimentar-me em condições, tinha o hábito de
explicar às amigas que encontrava no mercado:
— As mulheres de hoje não se preocupam com as refeições. Nem sequer perdem
tempo com isso. Abrem umas latas de conservas e já está. Só que as crianças não se
alimentam assim…
E, todas as manhãs, a tia Rose cozinhava pratos variados e rebuscados para tentar
engordar-me.
Eu suspirava e o meu tio segredava:
— A tua tia quer-te bem, mas exagera…
Como a minha tia pensava que eu estava cheio de saudades dos meus pais, falava
sem parar na tentativa de preencher um silêncio que ela achava difícil de suportar para
mim.
Curiosamente, eu preferiria um reencontro calmo com a casa: queria cumprimentar o
velho relógio, acariciar os adornos com os dedos, reapropriar-me do meu cenário de férias
de Páscoa.
À noite, eu dormia no quarto de hóspedes, perdido no meio de uma cama demasiado
alta e grande, submerso pelo edredão grosso e vermelho-escuro, que cheirava a naftalina.
A minha tia perguntava vezes sem conta antes de apagar a luz:
— Não tens frio? Se tiveres frio, chamas-me, está bem? Há cobertores no armário. Se
te sentires mal, grita. Se quiseres fazer chichi, o quarto de banho fica ao fundo do
corredor. Se te levantares, tem cuidado a sair da cama. Deixa o candeeiro da mesinha de
cabeceira ligado para adormeceres. Dorme bem, meu tesouro.
Depois de todas estas recomendações, o meu tio entrava no quarto, trazendo consigo
um odor de tabaco de mel.
Dava-me um beijo na testa e dizia:
— Boa noite, meu homenzinho.
As férias decorriam tranquilamente, por entre as refeições copiosas da tia Rose e os
momentos de liberdade organizados pelo tio Julien, nos quais a minha tia não participava,
de tão absorvida que estava com a roupa, a louça, a limpeza e as refeições.
De manhã, jogávamos cartas e outros jogos. Como o meu tio não tinha sorte ao jogo,
eu derrotava-o sempre, para meu grande júbilo.
De tarde, dispúnhamos de três longas horas para nos divertirmos. Tínhamos tantos
projetos que as férias todas não chegavam para os realizar.
O tio Julien tinha ideias simples e maravilhosas: um dia dávamos a volta à cidade em
elétrico, cujo condutor me explicava o funcionamento do transporte; noutro dia, íamos
assistir à chegada de um navio, cujo capitão nos autorizava uma visita. Íamos ao museu,
subíamos ao Farol, deambulávamos pela marginal, viajávamos até ao castelo, ou
bebíamos uma groselha no terraço de um bar no Velho Porto.
Juntavam-se a nós marinheiros, pescadores, jogadores de malha. A conversa ficava
animada e descreviam-se situações trágicas, cómicas ou fantásticas com o sabor da
pronúncia local. Eu chorava, ria, e aplaudia como se estivesse num espetáculo.
O meu tio conhecia muitas pessoas. Cumprimentava algumas levando a mão ao boné
de veludo, mas sem lhe tocar. A não ser que encontrasse um padre ou uma freira. Estes
tinham direito a uma vénia e a um voltear de boné como faziam os cavaleiros n’Os Três
Mosqueteiros. Era um gesto teatral e elegante e eu ficava excitado sempre que via um
hábito preto, na esperança de ver o meu tio repetir o gesto.
Era alguém que transformava o mais simples passeio numa viagem fabulosa.
Conhecia sempre histórias pitorescas ou engraçadas acerca das pessoas com que nos
cruzávamos.
Começava sempre com a frase “A propósito, não cheguei a contar-te sobre aquele dia
em que…”. Era a história de um chinês que o tinha convidado a comer ninhos de
andorinha, ou de um passageiro clandestino escondido no fundo de um porão, ou de uma
pesca milagrosa de várias toneladas de sardinhas, ou de um quadro roubado que tinha
sido encontrado numa cabana abandonada…
Eu nem me perguntava como um reformado dos correios conhecia todas estas
aventuras. O meu tio contava-as tão bem…
A tia Rose obrigava-nos sempre a levar um casaco de malha, “para o caso de o
tempo arrefecer”, um cachecol para as correntes de ar, e um guarda-chuva para fazer
frente à mais pequena nuvem. E, embora nos ríssemos de todas estas precauções, nem
têm conta as vezes em que ficámos contentes por nos podermos abrigar da chuva ou
proteger do vento frio…
Por volta das quatro horas, o meu tio tirava o relógio de ouro do bolso do casaco e
declarava:
— São horas.
Ele sabia que a perspetiva do lanche me afligia e dava-me um cone de gelado, uma
panqueca com chantilly, um crepe com açúcar, ou uma taça de baba de camelo,
comprados no quiosque rosa e verde à entrada do jardim.
Éramos atendidos por um comerciante alto e afável, que perguntava sempre ao meu
tio:
— Com que então a passear o pequeno?
O tio Julien devorava tudo para não restarem vestígios da nossa falcatrua e
concordávamos em não dizer nada à tia Rose.
Depois de comer, eu pedia sempre para beber. Para ter o prazer de ver a única
pessoa do mundo que conseguia fazer um copo a partir de papel…
O tio Julien tirava do bolso do casaco de veludo um envelope, que dobrava com os
gestos de um mágico e um olhar malandro. Cortava o envelope em duas partes, na
diagonal, com um canivete que me fazia inveja e medo, como se fosse uma arma temível.
Quando o copo estava pronto, dava-mo.
Eu enchia-o de água fresca na fonte e bebia o mais rapidamente que podia, não fosse
o papel desfazer-se na minha mão. O meu prazer era muito maior se houvesse outros
miúdos sedentos a assistir à confeção do copo.
Por volta das seis horas íamos para casa, de mão dada.
A tia Rose, que estava sempre à nossa espera, dizia:
— Fiz-vos uma bela sopa de legumes.
5
Igual aos outros
Queria tanto ser como os outros! Roubar compotas e biscoitos, ser comilão e
travesso, intrépido e endiabrado! Esta ideia tinha-se tornado uma obsessão para mim,
pois, ao falar constantemente das diferenças entre mim e os outros, os adultos só
reforçavam o meu desgosto.
Um dia, quando íamos às compras, a minha mãe parou para falar com uma vizinha,
no passeio estreito da padaria.
Cheio de paciência, pus-me a contemplar uma montra,.
— O seu filho tem um ar tão bem-comportado! — admirou-se a vizinha. — Não é
como o meu, um verdadeiro tornado! Não consegue estar quieto um segundo. Tem de
estar sempre a correr e a saltar. Vê-se logo que é um rapaz!
“Também sou um rapaz”, pensei, enquanto olhava as nuvens a fazerem uma corrida
no céu, para ver qual delas seria a primeira a tapar o sol. Finda a conversa, a minha mãe
conduziu-me na direção do talho, enquanto concluía:
— É verdade, o Éric é muito calmo.
O talhante, achando-se muito esperto, interpelou-me:
— Um bife para o nosso jovem? A carne vermelha é boa para os músculos e ajuda-te
a ser um homem.
Olhei para os meus pulsos magros e suspirei. Seria algum dia um homem? Tinha as
minhas dúvidas. Quando tinha distribuído os músculos, a natureza esquecera-se de mim.
Alguns passos mais e, diante da mercearia, uma senhora fez-me uma festa na cara:
— É tão gentil este menino! Tão doce… O meu mais velho é terrível. Só aprecia os
desportos violentos. Vai ser como o pai, forte e desportivo.
E uma outra senhora comentou:
— Que elegante que ele está, de calças e casaco. Nunca posso vestir o meu filho
como deve ser, porque se enfia na lama mal sai de casa. É um lutador. Os rapazes são
terríveis. Enfim, mostram que têm caráter.
O orgulho destas mães em relação aos seus filhos exasperava-me. As suas reflexões
insinuavam-se na minha mente e provocavam verdadeiros estragos. Dir-se-ia que, para
agradar às mães, era preciso gostar de andar à pancada!
A minha mãe comentou:
— O Éric não é turbulento.
Estava farto de ser diferente. As mães só me davam como exemplo para fazerem boa
figura. Mas que culpa tinha eu de gostar de jogos calmos? De não me divertir a sujar-me
de propósito? Até agora tinha vivido feliz no meu casulo de miúdo sonhador, mas, de
repente, via-me obrigado a colocar-me certas questões desagradáveis.
Será que devia comportar-me como os outros? Parecer-me com eles? Decalcar as
minhas atitudes nas deles? Será que não tinha direito à diferença?
Era impossível forçar-me a ser o que não era ou a provocar uma luta. Mas, se ter
caráter era gostar de se sujar e andar à pancada, havia de lhes mostrar que também eu
tinha caráter.
Durante alguns dias, tentei resolver o problema delicado de adquirir o aspeto de um
“verdadeiro rapaz”. Não era fácil. Segundo as descrições, era preciso ter nódoas, mossas,
escoriações, rasgões, canelas esfoladas, membros partidos, cabelos desgrenhados, ranho
no nariz, dedos sujos e dizer alguns palavrões. Um rapaz era um durão. Eu era um mole e
tinha noção dos meus limites.
Era inútil provocar um grandalhão sempre pronto para a bulha: deitava-me ao chão
com uma estalada. Mas também estava fora de questão atacar um rapaz mais fraco: era ir
contra o meu código de honra.
Eu tinha sentido moral. O sentido moral impede-nos de nos tornarmos uns crápulas,
mesmo que isso signifique a nossa salvação. É uma barreira que quereríamos transpor,
mas não o fazemos porque não é correto. Bastava-me atacar o pequeno Marc para me
sentir um fortalhaço. Porém, o meu sentido moral opunha-se a tal. Tinha de encontrar
outra solução.
Subitamente, tive uma ideia. Lutaria contra mim mesmo. Só tinha de pensar como o
faria. Era uma forma de me assegurar de que não faria mal a ninguém e de que não
receberia muitos sopapos.
Delineei um plano. Às quatro e meia, à saída das aulas, fiquei para trás. Dirigi-me,
num passo decidido, para uma poça de lama que rodeava a caixa de areia. Contrariado,
saltei para dentro dela e depois, para tornar o resultado mais espetacular, atirei-me ao
chão e chafurdei à vontade. Que horror! A lama colou-se ao blusão, penetrou nos sapatos,
salpicou-me a cara e empastou-me os cabelos.
Quem diz luta diz golpe. Puxei pelo tecido dos calções. Como não conseguia rasgá-lo,
agarrei numa pedra pontiaguda e rompi-os.
Faltava o mais difícil. Arranjar algumas mossas. Refleti longamente neste problema,
mas não havia soluções ideais. Era mesmo preciso levar pancada.
Escalei um muro de pedra e atirei-me para o chão. Que queda! Vieram-me as
lágrimas aos olhos. Nada de choradeiras. Limpei a face com os dedos sujos de terra. Tinha
dores. Um dos meus joelhos sangrava, o outro estava bem esfolado. Coxeava e apertava a
ferida para tentar parar as fisgadas de dor que sentia.
Para compor o quadro, decidi roçar, na roseira da entrada da escola, o pulôver
vermelho que a minha avó me tinha oferecido no meu aniversário. Arranhei as mãos e
estraguei a camisola. Estava num lindo estado! Será que devia regozijar-me da minha
transformação? Não estava certo disso. Sentia-me infeliz, embora parecesse um
verdadeiro rapaz.
Saí a correr da escola: estava sujo, roto, pisado, ensanguentado, mas tinha um
aspeto de herói e de justiceiro.
Quando entrei em casa, gritei, vitorioso:
— Olha, mãe, andei à pancada como os outros!
A minha mãe não me felicitou. Antes me recriminou:
— Quem te pôs nesse estado? É uma vergonha. Vou falar com a mãe desse
brutamontes. Não precisas de provocar os grandalhões… O pulôver da avó está bom para
o lixo… E os calções também… Vem cá, vou tratar do teu joelho. Assoa-te e lava a cara.
Desisti.
Definitivamente, nunca seria um durão!
6
Despacha-te!
— Despacha-te — disse a minha mãe enquanto abria as portadas do meu quarto. —
São oito horas!
Bolas! Estava a ter um sonho maravilhoso.
Este despertar sobressaltado apagara da minha memória as imagens idílicas. Estava
tão bem… Estava no mar… Havia um grande veleiro branco.
Enfiei a cabeça nos cobertores e fechei os olhos, numa tentativa de encontrar a
continuação deste filme fantástico. Era capitão de uma escuna que vogava rumo a terras
maravilhosas, cheias de sol; terras onde as crianças brincam, pescam e nadam de manhã
à noite… Mais alguns segundos e gritaria aos meus marinheiros: “Preparar para atracar!”
— Éric, despacha-te! — insistiu a minha mãe, metendo a cabeça pela porta do meu
quarto.
Abri os olhos, espreguicei-me, bocejei, pus um pé no chão, depois outro. Tudo isto
muito devagar, para não ter de abandonar os mares do Sul depressa demais. Maqui-
nalmente, enfiei os braços no roupão e dirigi-me à cozinha para tomar o pequeno-almoço.
O meu olhar fixava ainda as palmeiras ao longe.
O café com leite quente esperava-me dentro da tigela.
Peguei nas torradas e mergulhei-as. Observei as crateras que se formavam à
superfície do líquido, e que se aproximavam ou afastavam conforme os movimentos do
meu pulso. Pus-me depois a imaginar os primeiros passos de um astronauta no seu
café-lua. Cortei em seguida o pão em pequenos barcos, que fiz voltear com a minha
colher, como se um ciclone os tivesse apanhado. Vagas enormes e castanhas submergiam
o pão e transbordavam da tigela.
Tendo decidido que não haveria sobreviventes, engoli, uma a uma, as minhas
embarcações.
Neste mesmo instante, uma abelha aventurou-se a explorar a compoteira. Com a
boca cheia e uma colher em riste, observei-a, imóvel, enquanto ela se deleitava com o
açúcar tingido de morango que escorria pelo bocal de vidro abaixo.
Detestava os insetos que picavam, que rastejavam, que zumbiam. O avô tinha-me
ensinado que as abelhas só atacam se forem provocadas, mas eu não me sentia muito
seguro.
Nem mexi uma sobrancelha.
Tudo me assustava.
Os insetos, os cães, as tempestades, os ruídos, uma sombra a mexer-se na parede,
um rumorejar de folhas no bosque. Estava sempre em alerta. É claro que se fosse mais
espadaúdo, teria menos medo. Os corpulentos não têm medo de nada.
— Éric, já acabaste? — perguntou a minha mãe. — Despacha-te!
Apanhado em falta, fiz um gesto brusco e a abelha escapuliu-se pela janela.
Molhei os lábios na bebida e fiz uma careta: já estava fria, como todas as manhãs.
A natureza inteira conspirava contra mim e fazia-me demorar.
Um dia, uma mosca veio alisar as asas no rebordo da mesa e pôs-se a tricotar com as
patinhas da frente. Que espetáculo! Um outro dia, um bando de pardais obrigou-me a
levantar para arbitrar uma disputa entre eles. Tudo me chamava a atenção, fosse a
cerejeira em flor que, na primavera, agitava as mangas brancas por detrás da vidraça, ou
o sol, que luzia cores de fogo, ouro, rosa e malva por detrás da colina. Tinha todas as
desculpas possíveis para não me despachar.
Para mim, depressa e devagar não são contrários mas sinónimos (aprendi a palavra
este ano na escola). Eu não andava devagar. Não sabia era andar depressa, porque nem
sequer me dava conta de andar devagar.
O tempo escoa-se sempre à mesma velocidade e eu vivia ao ritmo do tempo.
Ninguém diz à Terra que gire mais depressa, mesmo que tenhamos vontade que o
inverno acabe. Também não dizemos à arvore para crescer mais depressa, por muito que
queiramos colher cerejas no ano em que a plantámos. Para quê condenar-nos a andar
mais depressa?
Os meus gestos detinham-se quando me surgia uma ideia.
Uma manhã, estava a lavar a cara quando, subitamente, me pus a pensar nas férias.
Centenas de projetos eclodiram na minha cabeça. Estava a duzentos quilómetros da casa
de banho, a construir uma cabana de ramos com o avô, que sugeria que atapetássemos o
chão com folhas e que fizéssemos uma chaminé para o caso de querermos assar
castanhas, quando a minha mãe gritou:
— Despacha-te!
A bola de sabão do meu sonho estourou e acabei de lavar a cara. Escovei os dentes,
mas nem me penteei. Também não era preciso: era impossível domar a espiga que se
erguia no cimo da minha cabeça.
Para evitar uma nova reprimenda, corri para o quarto para me vestir. Tentei acelerar
os movimentos, o que só deu um péssimo resultado. Meti os dois pés na mesma perna da
calça, abotoei a camisa ao contrário, enfiei o pulôver de trás para a frente.
Enervei-me, praguejei, enfureci-me.
Finalmente, enfiei o blusão e beijei a minha mãe, que me empurrou para a porta
dizendo:
— Despacha-te!
Desatei a correr. Depois, caminhei pelo passeio fora, a olhar em frente. De repente,
sem querer, o meu passo abrandou, e tornei-me de novo sonhador e ocioso à medida que
me afastava de casa.
Comecei a respirar melhor.
Todo o meu ser se distendia.
O meu olhar ia de uma árvore em flor para uma nuvem estranha no céu. Parei para
acariciar com a mão um carro estacionado e um gato a fazer a sua higiene junto de um
portão.
Relaxava no espaço-tempo que era finalmente meu.
De repente, pareceu-me ouvir “Despacha-te!”
Virei-me. Não havia ninguém.
Suspirei e desatei a correr, com a pasta a balouçar nas minhas costas.
7
A Velha Macieira
Eu não tinha muitos amigos.
Na realidade, nem tinha nenhuns.
Por isso, inventei um: a Velha Macieira.
A algumas centenas de metros da casa dos meus pais, havia uma pequena quinta
abandonada. As telhas vermelhas do telhado tinham já caído e apenas restava um
esqueleto de pedras e vigas emaranhadas.
Dava pena.
O jardim, ao qual se acedia por um portal de madeira carunchosa, tinha já sido
invadido por silvas e ervas daninhas.
As roseiras pareciam abafar sob os rebentos frágeis, que aprisionavam os velhos
ramos onde se viam ainda algumas rosas brancas. As íris azuis subiam o mais que podiam
no céu e os goivos agarravam-se às ruínas cheias de urtigas.
Em março, as violetas cheirosas faziam par com as primaveras amarelas de longos
ramos.
Era um jardim fabuloso e abandonado, cujo acesso me era proibido.
Os adultos viam uma fonte de perigos onde só havia maravilhas e aventuras.
Era lá que morava a minha amiga, a Velha Macieira.
Chamava-lhe Tomasina.
Nem eu era ingénuo, nem a minha mãe o era. Sempre que lhe dizia que ia ter com a
minha amiga Tomasina, ela alinhava no jogo e não me contradizia.
Na escola, falava dela, convertendo-a na heroína de múltiplas aventuras. Também
dizia que era mais velha do que eu para me valorizar aos olhos dos outros.
No inverno, o vento soprava por entre a ramagem nua e vergava os seus ramos
negros e cinzentos. Na sua pele castanha, um líquen esverdeado espraiava-se como se
fosse uma cicatriz e as silvas arranhavam-na. Uma tempestade tinha-lhe mesmo partido
um braço, que pendia agora junto do tronco. Ninguém se preocupava com ela.
A não ser eu.
A macieira protegia, da melhor maneira possível, o ninho do chapim azul, que o
outono mostrava a quantos o quisessem ver. A árvore não quereria que uma corrente de
ar malvada o levasse, porque, na primavera, o chapim animava as suas ramagens e
fazia-lhe companhia.
Eu conhecia o chapim.
Sempre que lhe levava a minha torrada matinal, saudava-me com o seu canto a
partir do ramo mais alto. Aquele pássaro tinha sempre fome.
O inverno é uma estação difícil para os idosos. A minha avó di-lo com frequência,
enquanto se enrola no xaile de lã, junto do fogão. E também a Velha Macieira tinha muito
frio.
Quando ia para a escola, contava-lhe histórias sobre o sol, para que ela se
esquecesse do frio, e falava-me de mim, sobretudo de mim.
Quando o vento e a chuva combinavam encontrar-se no planalto, não me demorava
como de costume e saudava-a com um gesto rápido da mão, que enfiava logo debaixo da
capa encharcada.
Quando o tempo começava a aquecer, vigiava-lhe os rebentos e encorajava-a:
— Coragem, que o inverno já se foi!
E quando a seiva nova circulava pelos seus ramos torcidos e frágeis, viam-se
lágrimas de felicidade a brilhar no tronco.
Esta espécie de renascimento tranquilizava-me, porque era sinal de que ela ainda
não tinha morrido.
Um fim de tarde, maravilhado com a beleza da Velha Macieira, fiquei junto dela mais
tempo. Os ramos cinzentos tinham dado lugar a um sem número de flores de um rosa
delicado e as abelhas voltejavam sob a luz de um sol pálido.
Algumas pessoas acreditam que as andorinhas anunciam a primavera. O meu oráculo
era a Velha Macieira. Tendo já visto tantas estações, decerto não se enganaria.
Assim, nesse dia, cheguei a casa e anunciei numa voz que não deixava margem para
dúvidas:
— Chegou a primavera!
Contudo, as árvores mudam de camisa menos vezes do que os homens e, durante
longas semanas, a Velha Macieira não mudou de roupa. Em compensação, as corolas
brancas tinham cumprido a sua missão e uma brisa ligeira havia-as semeado nas ervas
daninhas, como se fossem uma camada de neve doce e morna.
As folhinhas tenras ganharam forma e a árvore passou a ser um guarda-sol verde
com varetas escuras. Contudo, as pequenas maçãs faziam-se esperar…
Entretanto, chegou a época dos morangos, das cerejas, dos damascos, dos pêssegos,
e das férias. Passei-as em casa do meu avô, a correr pelos campos, a construir uma
cabana, a brincar aos índios, e esqueci-me da minha velha amiga.
A Velha Macieira ficou sozinha a amadurecer os seus frutos.
De vez em quando, ia vigiar os progressos da natureza, já que, por nada deste
mundo queria deixar de ver a primeira maçã madura.
O dia do regresso às aulas foi o dia do nosso reencontro.
Esgotada pelo esforço que o verão lhe exigira, a Velha Macieira deixara tombar
algumas folhas cor de ferrugem.
Encostado ao portão de madeira, descrevi-lhe as minhas férias e agradeci-lhe a
gentileza de perdoar a minha ausência. As maçãs tinham bom aspeto, embora ainda
estivessem um pouco verdes. Talvez dentro de alguns dias…
Corri para a escola, para não chegar atrasado.
Uma semana depois, sem conseguir conter a minha impaciência e arranhando as
pernas, escalei o muro de pedra e cheguei à altura dos ramos carregados de frutos. Não
eram maçãs tratadas, calibradas e enceradas, como as que encontramos nos melhores
mercados. Eram maçãs amolgadas e de tamanho irregular, que abrigavam um ou outro
verme. Mas tinham um perfume…
Escolhi uma, esfreguei-a na minha camisola para a pôr a brilhar e mordi-a. Senti a
sua acidez na boca e isso fez-me salivar. Ainda não estava bem madura, mas era a
primeira maçã da Velha Macieira e comi-a com gosto.
De ano para ano, o sabor destas maçãs sabia-me cada vez melhor… Era como
descobrir um brinquedo novo… Não que gostasse muito de maçãs: na verdade, as únicas
de que gostava eram as da minha velha amiga!
Sentia-me orgulhoso de as poder colher no “meu jardim”. Sentia a alegria de poder
tirar delicadamente o fruto selvagem do ramo, alegria que o perigo da escalada
aumentava, e tinha a felicidade de o provar, ainda cheio de sol, em segredo e em
liberdade, fora das horas das refeições.
Se eu não gostasse destas maçãs, pergunto-me se a Velha Macieira não se teria
deixado morrer naquele jardim…
8
O código da estrada
Eu passava quase todas as férias grandes em casa dos meus avós.
Eles tinham uma loja mas nunca faziam férias: nunca era boa altura para fechar. Em
julho, os clientes ainda não tinham ido de férias; em agosto, chegavam os turistas.
No verão, o avô Ernest e a avó Marie moravam no campo, numa casinha empoleirada
no alto de uma colina. O pedreiro que a tinha construído devia gostar muito de espaço. Do
alto da escadaria exterior, avistavam-se os telhados de telhas irregulares e desbotadas da
aldeia, e a curva suave dos prados e dos jardins.
Era indispensável ter carro para fazer as compras, porque a loja mais perto só vendia
o estritamente necessário e a preços muito altos. Ora, o meu avô tinha uma velha Peugeot
403 cinzenta, e era neste carro grande e confortável, que tinha o dobro da minha idade,
que o meu avô e eu tínhamos as nossas conversas mais interessantes, sempre que a avó
pedia que fôssemos comprar pão ou carne à cidade.
— Sabes, Éric — dizia ele, enquanto conduzia — a velocidade é uma coisa
desnecessária. Se as pessoas aceitassem isso, haveria muito menos acidentes. Para quê
correr riscos, brincar com a nossa vida e com a dos outros, apenas para chegar alguns
minutos mais cedo? E que fazemos nós com esses minutos a mais? Nada. Nem sequer
podemos economizar para mais tarde, porque não nos vão servir de nada…
Eu concordava com um acenar da cabeça lá do fundo do assento traseiro, que estava
coberto com uma manta vermelha. Como os meus olhos só chegavam à altura do assento
da frente, não conseguia ver a estrada.
A filosofia do meu avô impressionava-me. Era um homem sábio, ponderado, sério, a
quem nada aconteceria de desagradável. Pensava em tudo, calculava tudo, desconhecia
imprudências. Sentia-me seguro com ele e essa era uma sensação boa.
Na velha viatura cheirava a tabaco, a pó e a mofo, cheiros que eu achava tão
tranquilizantes como se fossem os odores da infância, aqueles que nos embalam desde o
berço. Por isso, sereno e confiante, distendia-me no sossego do carro. Ao contrário do meu
pai, o meu avô não se enervava nos engarrafamentos, nunca insultava os condutores
imprudentes, nem se agarrava ao volante e carregava no acelerador, como se fosse fazer
uma corrida.
Conduzia calmamente, tão calmamente como vivia a vida, e essa atitude permitia
descobertas extraordinárias…
Certa vez, encostou o carro para que pudéssemos observar o voo de uma perdiz.
Outra vez, desligou o motor numa descida para melhor ouvirmos o canto de um cuco.
Também tomava alguns atalhos para atravessar a floresta e fazer uma surpresa a um
esquilo.
O meu avô ensinava-me coisas sobre a natureza, tal como o tio Julien me ensinava
coisas sobre a cidade.
Nesse dia, fomos comprar o pão campestre feito de farelo que a minha avó me dava
ao lanche. Eu gostava de ouvir o estalar do pão sempre que era cortado e de ver o fio de
mel correr pelo miolo. O meu avô tinha-me mostrado as suas colmeias e tinha-me
assegurado que as obreiras só trabalhavam para fazer o mel que eu comia nas férias, o
que me dava logo vontade de engolir a fatia de pão barrado.
De vez em quando, o carro parava, embora a paisagem não fosse interessante. O
meu avô aproveitava então para enrolar um cigarro. Quando acabava de fumar,
murmurava “Fizemos bem em parar” e arrancava de novo, engatando a primeira com
ruído e bastantes sobressaltos que nos faziam cabecear.
— Eu cá conduzo há cinquenta anos e nunca tive nenhum acidente. Deixo sempre
passar os apressados.
E fazia um gesto de generosidade com a mão esquerda, como se convidasse todos os
automobilistas do mundo a ultrapassá-lo. Em seguida, voltava a colocar o chapéu cinzento
de feltro que nunca deixava de usar, bem enterrado na cabeça.
Às vezes, quando vinha do jardim, onde tinha passado a manhã a cavar, sachar,
plantar e a regar a horta, sentava-se à mesa da cozinha, abria o guardanapo, servia-se de
um copo de vinho, tudo isto sem tirar o chapéu. Este parecia fazer tão parte dele como os
seus cabelos!
A avó ralhava:
— Ernest, tira o chapéu!
O avô apalpava a cabeça e ficava espantado, porque já nem se lembrava de ter posto
o chapéu.
Parámos durante alguns minutos. Aproveitei para observar o vaivém dos peões e as
montras. Uma chiadela do travão de mão anunciava que o carro estava de novo em
andamento. Depois de dizer “Fizemos bem em parar”, o meu avô continuou:
— Agora, para tirar a carta de condução, é preciso aprender de cor regras que nem
existiam no meu tempo e que não servem para grande coisa. Será que as pessoas
conduzem melhor agora que têm o papelinho cor-de-rosa no bolso? Não, senhor. Basta ver
nas estradas os jovens que ultrapassam à sorte, que andam a mais de cem à hora e que
passam com o semáforo vermelho.
“Queimar” um semáforo vermelho era o seu maior medo. O meu avô não aguentaria
uma apitadela estridente do polícia.
— Um homem respeitável não recebe apitos da polícia — explicara-me.
Sempre que nos aproximávamos de um semáforo verde, o meu avô abrandava, não
fosse dar-se o caso de a luz ficar vermelha de repente.
— Eu, por exemplo, quando quero virar à esquerda, ponho o pisca e, para que me
vejam melhor, desço a janela e faço sinal com o braço… Já ninguém faz isto. Os jovens
julgam que a mecânica resolve tudo… Podemos esquecer-nos do pisca, mas do braço não.
Nos entroncamentos, paro sempre. Se vejo que um automobilista hesita, convido-o a
passar, venha ele da direita ou da esquerda. Hoje em dia, estamos a perder o civismo.
Andam todos depressa de mais.
O meu avô voltou a parar o carro e avançou de novo, dizendo “Fizemos bem em
parar”. Esta frase intrigava-me. Contudo, nunca tinha perguntado o que queria ele dizer.
Muitas vezes, quando perguntava algo aos adultos, eles respondiam-me “Mais tarde
compreenderás”. Esta resposta limitava, naturalmente, a minha curiosidade.
Nesse dia, porém, não me contive:
— Avô, por que razão dizes sempre “Fizemos bem em parar” quando paras o carro?
— Sabes, filho, aquele sinal vermelho com letras brancas grandes diz STOP. Isso quer
dizer que, quando nos aproximamos dele, devemos ficar parados algum tempo antes de
voltar a arrancar.
9
O cachimbo partido
As férias estavam a chegar ao fim.
O ar já cheirava a outono, folhagem vermelha, cogumelos e pasta escolar nova.
O tempo não estava bom. Uma chuva miudinha, batida pelo vento, inundava o chão.
Enquanto brincava na sala de jantar, ouvi a minha avó chamar:
— Ernest, por favor, põe o lixo lá fora!
O meu avô, que acabava de se sentar na sua cadeira de palha para reler alguns
artigos do jornal, levantou-se sem grande vontade:
— Se um dia o meu cachimbo se partir, quem irá pôr o lixo lá fora?
A avó sorriu.
Eu assistia a este ritual quase todas as noites, mas não me ria. Deitado de barriga
para baixo na carpete, entretinha-me a fazer um puzzle, segurando na mão uma peça que
não parecia encaixar de todo na paisagem de cartão.
Os adultos ofereciam-me puzzles e jogos individuais, pensando que eu os adorava. É
claro que não lhes dizia que um jogo não substitui um amigo, até porque me faziam
companhia quando não saía com o meu avô, quando ele não me ensinava a classificar os
selos, a construir uma cabana, ou a cultivar o pedacinho de jardim que me tinha dado.
A frase que o meu avô proferia todas as noites dava-me que pensar. Ele já havia
falado, várias vezes, de “partir o cachimbo”. Dizia-o sempre que um trabalho de casa
importante estava em jogo. Na véspera, tinha-a proferido quando vira que o pêndulo do
relógio de caixa alta já não oscilava:
— Será que, quando partir o cachimbo, o relógio nunca mais vai funcionar?
Claro que um relógio de sala é importante, porque ritma as refeições, a hora de deitar
e de levantar. Além de que alegra a sala com o seu tiquetaque e toques cristalinos.
Quando o relógio deixa de tocar, o silêncio torna-se pesado. Parece que falta algo, que
falta alguém.
Quem lhe dava corda era o meu avô.
Pegava numa cadeira, tirava as pantufas velhas, e colocava os pés nas duas traves
de madeira para não estragar o assento de palhinha. Em seguida, com a ajuda de uma
pequena manivela, fazia subir os pesos, por entre um barulho de engrenagens.
A avó ralhava:
— Ernest, pega no banquinho. Ainda me vais furar as cadeiras…
Ao que ele respondia:
— Trato deste relógio há quarenta anos e as cadeiras continuam como novas.
Eu cá achava que os avós deviam estar sempre de acordo um com o outro!
Mas algumas tarefas eram exclusivas do meu avô: pôr o lixo na rua, dar corda ao
relógio, ir buscar o vinho à cave, correr os dois ferrolhos da porta e fechar as janelas
depois do jantar.
Dias antes, a avó tinha dito:
— Ernest, a garrafa de vinho está vazia!
O meu avô, que estava a classificar os seus selos multicolores num álbum grande,
com uma lupa numa mão e uma pinça fina e longa noutra, levantou-se a protestar:
— Estou ocupado! Quando eu partir o cachimbo, será que só beberemos água?
O cachimbo era muito importante para o meu avô.
Ocupar-se dele envolvia todo um ritual minucioso, que consistia em gestos precisos,
silêncios e suspiros que eu tentava interpretar. Bem instalado no seu sofá, o meu avô
saboreava a primeira fumaça com os olhos semicerrados. Um cheirinho a mel inundava a
sala enquanto as argolas de fumo iam subindo.
E sorria para mim ao mesmo tempo que pegava no jornal.
Eu sorria-lhe também, para não o inquietar. Contudo, não me sentia à vontade.
Não via ligação alguma entre pôr o lixo na rua, dar corda ao relógio, ir buscar o vinho
à cave e o cachimbo bem-cheiroso, o que me causava alguma inquietação.
Era, para mim, impensável que o avô deixasse de fazer tudo o que o fazia. Contudo, a
minha avó parecia alheia a esse tipo de apreensão e lavava a louça na cozinha,
totalmente descansada.
Comecei a preocupar-me com o cachimbo.
Todos os dias, depois do jantar, tomava como incumbência minha velar por ele.
Quando o meu avô começava a cabecear e adormecia, eu olhava fixamente para o
cachimbo, entalado entre o lábio inferior e o queixo do meu avô, com medo de que ele
caísse.
Às vezes, quando estava sentado sozinho junto do cadeirão de palhinha, levantava a
tampa da caixa de tabaco e remexia-o com o dedo para reavivar o cheiro. Também
acariciava o cachimbo, sem contudo ousar pegar nele, não fosse ele cair. Apenas o fazia
se o visse num equilíbrio instável na borda do cinzeiro. Era um cachimbo preto, velho e a
boquilha de marfim estava toda mastigada.
O importante era que resistisse!
Na última noite de férias, quando me aproximei da sala, em vez do cheiro a mel, um
odor horrível de tabaco frio encheu-me as narinas.
Nessa manhã, o meu avô regressara do seu passeio matinal com o cachimbo partido.
Quando me dei conta do que acontecera, procurei consolo nos braços da minha avó,
com os olhos cheios de lágrimas:
— E agora, avó, quem vai dar corda ao relógio, pôr o lixo na rua, fechar as janelas, ir
buscar o vinho à cave?
10
A grande pirâmide
Eu era ingénuo.
Sem ter disso total culpa.
Os adultos queriam que eu me mantivesse criança durante muito tempo, porque não
havia mais nenhuma perto deles para os distrair.
Não tinham por hábito explicar-me o sentido das palavras, nem eu costumava querer
sabê-lo. Mas eu gostava de jogar com elas mentalmente, transformá-las e inventar novas.
Se o meu avô me dissesse que “partir o cachimbo” significava morrer, eu não teria
acreditado nele. As duas expressões pareciam não ter nada em comum: enquanto a
primeira era enigmática, a segunda era cruel.
Não era fácil crescer, embora haja quem o faça sem esforço.
Sobretudo aqueles que têm o tamanho e o peso ideal para a idade. São os que não se
fazem notar numa fila, porque a sua cabeça está alinhada com a dos outros. Os altos não
têm muita sorte, porque o professor deteta-os logo quando precisa de um voluntário para
uma tarefa aborrecida. Em contrapartida, são eles os líderes da turma, os chefes que
atraem a admiração dos outros.
Os minorcas metem dó e toda a gente se esquece deles.
E eu era um minorca!
Aos dez anos, já sentia saudades da minha infância e sentia dificuldade em me situar
no mundo dos adultos. E nada jogava a meu favor.
Eu era o mais lento nas corridas, o que saltava menos em altura, e o pior em salto em
comprimento. Nunca conseguia encestar, bater uma bola por cima da rede de vólei, nem
acertar na bola num jogo de ténis. Era o pior aluno a Educação Física, e não me
preocupava nada com isso.
Desde o mês de maio que o essencial das aulas de ginástica consistia em
prepararmo-nos para a festa da escola.
Numa segunda-feira, o professor revelou-nos o projeto desse ano.
A ideia genial consistia em fazer a GRANDE PIRÂMIDE!
Vinte pares de olhos atordoados fixaram-se nele e esperaram, com impaciência, os
detalhes.
Que não se fizeram esperar. A base da pirâmide seria constituída pelos dez alunos
mais fortes, que teriam aos ombros os oito alunos seguintes, culminando a pirâmide no
aluno mais leve de todos.
Dezanove cabeças viraram-se para mim.
Eu nem sequer estava a ouvir. Estava a observar uma andorinha que dava de comer
às crias debaixo da goteira. Três bicos amarelos e grandes erguiam-se do ninho.
O silêncio trouxe-me de volta à realidade.
Os meus colegas fixavam-me.
Assustei-me.
O que acabava eu de perder? Nem sequer me tinha mexido!
O meu vizinho, o Trottinette, deu-me uma cotovelada nas costelas, enquanto
sussurrava com inveja:
— Seu sortudo, és tu quem vai estar no topo da pirâmide!
Sortudo, eu? Sortudo em ginástica? Devia haver algum engano. O professor retomou
as explicações. E eu fiz um esforço para escutar, quanto mais não fosse para poder
esclarecer o mistério que planava sobre aquela pirâmide.
À medida que ia ouvindo, ia ficando admirado, lisonjeado, suspenso nas palavras do
professor. Era mesmo eu que ia estar no topo da pirâmide…
Incrível!
Eu, o minorca, ia ser sustido pela turma inteira?
Mas a minha euforia esvaiu-se brutalmente mal me ouvi a pensar “Tem cuidado! Isto
deve ser uma armadilha para os outros se rirem de ti. E se não conseguires? E se
tremeres? E se tiveres medo? E se caíres?”
Fi-lo calar com um menear de cabeça. Havia de conseguir.
Fizemos muitos ensaios.
Cada dia que passava, a pirâmide ficava mais perfeita.
E um mosquito magricela achava que lhe nasciam asas de anjo nas costas quando o
professor dizia “Vamos lá, Éric, é a tua vez”, e os colegas o levantavam para que ele
subisse com facilidade os ombros e as cabeças de todos até ao topo.
O topo ficava lá no cimo.
É claro que tinha medo, mas não o deixava transparecer por nada deste mundo. Era
a primeira vez que os meus colegas precisavam de mim em Educação Física! Era um
medo que me galvanizava e fazia ir tão alto quanto os meus braços me deixavam escalar.
Havia de conseguir!
Agora, todos invejavam a minha estatura e a minha agilidade. É verdade que eu não
era o grande Louis, que troçava constantemente do meu tamanho…Mas era eu que o
professor tinha escolhido para ficar no topo da pirâmide! De um momento para o outro, o
Louis deixou de fazer comentários desagradáveis. Apenas me lançou alguns dardos
invejosos, o que não me desagradava de todo.
Tinha-me tornado a mascote da turma!
No dia da festa, a sala parecia um buraco negro no qual se encontravam, algures, os
meus pais e os meus avós, que tinham vindo admirar a minha façanha.
Curiosamente, não sentia medo.
Os ensaios tinham corrido bem e estávamos prontos. No último, o professor tinha-nos
felicitado a todos. Quis-me parecer mesmo que me tinha elogiado durante mais tempo do
que aos outros.
A pirâmide construía-se, lentamente, ao som de uma música militar, e um projetor
seguia a sua progressão.
Tinha chegado a minha vez. A música parou.
Ouviu-se um rufar de tambor, como naqueles momentos em que, num espetáculo de
circo, o trapezista se lança no vazio.
O projetor desligou-se para logo se acender de novo.
Desta vez, a luz incidia sobre mim que, no topo da pirâmide, abria os braços,
triunfante.
A sala vibrou com os aplausos. Senti que me eram em grande parte dirigidos.
Foi esse o minuto de glória do minorca.
11
Ignacio
A grande pirâmide não resolveu todos os meus problemas, embora me sentisse mais
seguro de mim mesmo depois. Percebi por fim que os pequenos também têm o seu lugar
no mundo e a possibilidade de mostrar aquilo de que são capazes.
Os que costumavam troçar do meu aspeto magricela agora invejavam-me, e devo
confessar que isso me fazia sentir melhor.
Todos os papéis que a vida nos oferece são bons.
Basta, às vezes, um pouco de paciência.
Mas continuava sem ter amigos.
Tinha apenas alguns colegas. Não tinha ninguém a quem confiar os meus segredos,
com quem trocar uma pastilha elástica, selos, carrinhos ou cromos, alguém que convidar
para lanchar em casa, ou de quem quisesse ser irmão.
Os colegas vão e vêm. Com eles, joga-se uma partida de berlindes, discute-se, brinca-
se. Um amigo fica ao nosso lado, aconteça o que acontecer. Um amigo é uma espécie de
tio Julien mais novo.
Não ter amigos era um dos meus problemas.
Um dia, quando um aluno novo entrou na sala, quase empurrado pelo professor,
apenas vi uma cabeleira negra que escondia uma cabeça baixa.
Com uma voz alegre, o professor anunciou:
— Eis o vosso novo colega. Chama-se Ignacio, mas, para o familiarizarmos com a
língua francesa, chamar-lhe-emos Ignace. O Ignace vem do Brasil.
O recém-chegado parecia paralisado e percebemos que chorava, porque se ouviam
soluços.
Os outros observavam-no de soslaio, procurando descobrir o que o diferenciava deles
e que poderia ser pretexto para futuras ironias. A sala foi percorrida por risos e
murmúrios, acompanhados por ruídos inconvenientes. Era uma forma de a turma mostrar
que era um bloco inviolável e que ele era um intruso. Os “bandos” já estavam formados e
ele não era bem-vindo, a não ser que mostrasse ser um preguiçoso, um contestatário ou
um “palhaço” excecional. Neste caso, os vários grupos iriam disputá-lo entre si, apesar de
o terem denegrido no início.
O professor olhou em redor para escolher uma secretária para Ignace e conduziu-o
até mim.
Eu ocupava uma mesa de dois lugares. Muitos gostariam de se sentar junto de mim,
não por amizade, mas para copiar os meus trabalhos de casa. Por isso, o professor
tinha-me colocado sozinho, o que ainda acentuava mais o fosso que já me separava dos
outros. Contudo, como já estava habituado ao meu espaço e à minha solidão, também eu
vi o novo aluno como um intruso.
Não prestei atenção à lição de gramática nem à de cálculo: a presença de Ignace
perturbava-me. Perguntava-me como podia alguém chegar do Brasil e, de repente,
encontrar-se nos bancos de uma escola em França. Eu só tinha viajado uma vez… para ir à
Bretanha, no norte. E nem sabia onde era o Brasil.
O professor explicou-nos:
— O Brasil é um país enorme, que fica num outro continente: a América.
No velho mapa-mundo que decorava a parede do fundo da sala, mostrou-nos um
triângulo ao contrário, um pouco torcido. “Isto é o Brasil”. Num outro ponto do mapa,
cobriu com um só dedo uma superfície minúscula: “Isto é a França”.
Devia haver engano. De certeza que o professor cometera um erro. O Ignace não
podia ser o filho único de um país tão grande, enquanto nós, tão numerosos, não eramos
maiores do que um mero selo na totalidade do planisfério. Estávamos a dar-lhe
importância a mais. Lá porque era novo, não era preciso bajulá-lo.
A atitude do professor irritou-me e decidi ignorar o meu novo colega de carteira.
Contudo, não conseguia parar de olhar para ele.
A meio da manhã, cansado já das suas fungadelas, estendi-lhe o meu lenço limpo, no
qual a minha mãe deitava, todas as segundas-feiras, algumas gotas de água-de-colónia.
Cheirava muito bem. Cheirava a casa e a ternura.
Quando não sabia a matéria, quando um grandalhão me batia, ou quando troçavam
de mim, mergulhava o nariz no tecido perfumado e acalmava-me logo.
Mal passei o lenço ao Ignace, arrependi-me. Mas era demasiado tarde. Ele pegou nele
sem me agradecer e apertou-o com força na mão, sem todavia o usar.
Quando tocou a campainha, todos se precipitaram para o sol do recreio, no meio de
risos, gritos, de um arrastar de cadeiras e do barulho de sapatos.
Ia juntar-me ao grupo barulhento quando me apercebi de que o Ignace não se tinha
levantado. Então, puxei-o pela mão para o sacudir e ele seguiu-me.
Esperando que os outros não me tivessem visto, deixei-o junto de um plátano
despido e afastei-me para ir brincar com os meus “amigos”.
De vez em quando, deitava-lhe uma olhadela. Com as costas curvadas e as mãos
dentro dos bolsos, entretinha-se a fazer rodar alguns pedaços de gravilha sob a biqueira
dos sapatos.
Não tive coragem para lhe emprestar alguns berlindes com que ele pudesse ir jogar
para um canto. Convidá-lo para uma partida estava fora de questão, porque só se joga
com quem se conhece e eu não o conhecia. Todavia, aborrecia-me vê-lo ali sozinho a olhar
para a ponta dos sapatos.
Hesitei.
Não conseguia concentrar-me no jogo. O Ignace estava sozinho, como eu, e eu não
estava a ajudá-lo. O receio do que dissessem os outros impedia-me de ser eu a chamá-lo.
O meu parceiro comentou:
— O novo parece um idiota, não achas?
Senti-me dividido.
Por um lado, não podia concordar com ele; por outro, se começasse a discutir,
arriscava-me a apanhar uns tabefes. E por que razão havia de defender alguém que nem
sequer era meu amigo?
De joelhos, a alguns metros do berlinde, afinei a pontaria e respondi como se o
assunto não me interessasse:
— Pois.
— É estúpido chorar só porque se muda de escola.
— Pois.
— Já viste a cara dele?
— Pois.
Sentia-me cada vez pior e tinha um nó na garganta, como quando encontrava, na
primavera, um passarinho sem plumas caído do ninho.
Nenhum dos heróis horríveis, odiosos, fantasmáticos ou extraplanetários que
apareciam na televisão era do meu agrado. Não gostava nada de monstros mecânicos que
lançavam chamas, de robôs que reduziam a nada os seus adversários, ou de armas
supersónicas. A minha imaginação comprazia-se com o mundo maravilhoso de Walt
Disney, no qual os maus tinham uma dimensão humana e nunca eram exterminadores
sanguinários.
Sabia bem que os mais fortes não eram os melhores. A minha mãe dizia-me vezes
sem conta para me encorajar:
— Mais vale ser inteligente e estudar do que andar aos pontapés.
Quando o recreio terminou, o Ignace ficou sozinho. Esperei que todos se alinhassem
debaixo da cobertura para o ir buscar pela mão que pendia, triste, ao longo do corpo, e
conduzi-o até ao último lugar da fila, com a maior discrição possível.
Sentia-me responsável por ele, porque o professor o tinha colocado a meu lado na
carteira. Se estivesse mais longe dele, talvez o tivesse ignorado. Mas a proximidade entre
nós fizera de mim uma espécie de tutor dele, alguém que o apoiaria até ele se sentir mais
confiante.
Eu era o tutor do Ignace e o bordão do meu bisavô. Pelo menos, era ele que o dizia,
quando se apoiava no meu ombro para atravessar a rua. O bisavô era velhinho, muito
velhinho mesmo. Era o pai do meu avô e tinha 91 anos. Eu, que era um minorca, sentia
orgulho em poder ajudá-lo.
Também sentia orgulho em ajudar o Ignace em segredo.
Quando me baixava um pouco para poder ver a cara dele, debaixo daquela cabeleira
imensa, apercebia-me de que sorria. Os meus sinais de empatia ajudavam-no aos poucos
a sobreviver num mundo infantil que lhe era hostil, algo que eu conhecia demasiado bem.
À 11h30, quando a campainha tocou, para alívio dos estômagos vazios que
barulhavam desde as 10 horas, o aluno novo segurou-me no braço e murmurou:
— Eu, Ignacio, e tu?
— Éric.
— Yellic — repetiu Ignace.
Senti um enorme carinho por este desconhecido que sentira vontade de desprezar
sem refletir, como o faziam os outros.
Durante o almoço, falei dele à minha mãe. Não podia deixar de o fazer.
— Como se chama? — perguntou ela.
— Ignace — respondi, sem mais comentários.
— Deve sentir-se sozinho, coitado. Sê gentil com ele — pediu a minha mãe.
Esta recomendação exasperou-me.
Claro que a minha consciência me dizia o mesmo, mas tinha dificuldade em ouvi-la.
Respondi, desabrido:
— E por que motivo devo eu ser gentil? E os outros?
Quando cheguei ao recreio, às 13h30, vi-o correr para mim. Trazia um sorriso de
orelha a orelha num rosto ainda marcado por fios de lágrimas. Os olhos brilhavam por
entre a farta cabeleira negra:
— Yellic! — exclamou, como se pedisse ajuda.
Estava prestes a juntar-me a um grupo que, de joelhos no chão, se preparava para
jogar aos berlindes. Franzi as sobrancelhas e fiz a cara de quem acaba de ser
interrompido. Mas aquela exclamação tinha conseguido penetrar na couraça frágil de uma
indiferença que eu tentava construir.
O Ignace veio ter comigo e tornámo-nos inseparáveis.
Eu protegia-o da maldade dos outros, ensinava-lhe francês e ajudava-o com os
deveres da escola. E ele só me conhecia a mim…
Foram tempos fantásticos!
Finalmente, alguém me admirava, procurava a minha companhia e gostava de mim.
Devolvi a amizade de Ignace ao cêntuplo.
Graças a ele, descobri facetas minhas que ignorava. Afinal, não devia ser tão
palerma, tão medroso e tão incapaz quanto achava, uma vez que ele se tinha tornado
meu amigo! E foi esta amizade que transformou a minha vida.
Convidei-o a conhecer o meu jardim secreto. Fizemos lá o nosso quartel-general, sob
as vigas caídas, e por entre os espinhos e as ramagens.
Na Páscoa, foi comigo para casa do tio Julien.
Emprestei-lhe os meus tios de boa vontade, uma vez que os seus estavam no Brasil e
ele nem sequer sabia se voltaria a vê-los. Aquilo é que foram férias!
O meu tio ria-se mais alto do que nunca e a tia Rose nunca abandonava a cozinha.
E, uma noite, quando regressávamos de visitar o castelo, aconteceu o impensável:
— Tenho fome! — exclamei, ao entrar no apartamento.
Eu tinha fome…
O apetite excelente de Ignacio tinha-me contagiado. Vê-lo comer, rir, brincar, fazia
com que eu comesse tudo o que tinha no prato sem sequer me dar conta. E quando as
férias terminaram, tinha engordado dois quilos, o que nunca me acontecera na vida!
A minha tia chorava de alegria na viagem de regresso. Beijava constantemente
Ignacio e dizia “Que menino corajoso”.
No verão, fomos ambos para casa dos avós Ernest e Marie.
Não fiz um único puzzle.
Estávamos fora durante todo o dia e só voltávamos depois de quatro apelos da avó
ou quando o avô dizia, com voz grossa:
— Toca a vir para casa, meus meninos! Se tiver de vos ir buscar, vamos ter sarilho…
Dormíamos no mesmo quarto e contávamos histórias um ao outro até adormecer.
O Ignacio sabia muitas coisas. Eu ficava horas a ouvi-lo falar da sua vida no Brasil, do
Carnaval e das florestas. Quando era a minha vez de contar coisas, confesso que
inventava um pouco para que as minhas histórias fossem tão bonitas como as dele.
Muitas vezes, ainda não tínhamos adormecido quando a minha avó subia as escadas
para se deitar. Nessa altura, enfiávamo-nos debaixo dos cobertores, gritando “Para o
abrigo!” e ficávamos muito calados enquanto ela entreabria a porta do nosso quarto.
O Ignacio ensinou-me a ser menos “sensato”.
Deixei de ter medo de vespas, de aranhas, e de sombras nas paredes. O Ignacio
disse-me que no Brasil há crocodilos, mas que ele não tem medo deles. O que me deu que
pensar.
Dentro de dois anos, vou passar férias ao Brasil. Ele convidou-me.
Pedi-lhe para refletir.
Tenho vontade de ir e, ao mesmo tempo, não tenho. Gostaria imenso de ir com o
Ignacio, mas a viagem de avião inquieta-me, tanto mais que os meus pais não irão
comigo.
Ainda tenho dois anos para decidir.
Dois anos para crescer.
Penso que irei.
Até breve, aventura!
Anne-Marie Desplat-DucLe Minus
Toulouse, Éditions Milan, 2002(Tradução e adaptação)