npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de...

17
O DEMONÍACO NA IMAGINAÇÃO ATIVA DE LOURDES. ESTUDO DE CASO CLÍNICO Regina Maria Grigório * Resumo O objetivo deste artigo é apresentar o relato de um Caso Clínico no qual foi utilizada a técnica da Imaginação Ativa como suporte para o trabalho com os sintomas. Lourdes (36 anos) procurou a terapia devido a insonia num período em que também via vultos, ouvia vozes e isso a deixava nervosa. Os ciúmes intensos do namorado agravavam o quadro, o que a fez buscar tratamento. Conforme a CID 10, 301.0 (F60.0), Transtorno da Personalidade Paranóide. Durante as sessões, por inúmeras vezes o demônio e uma rede de imagens que o acompanharam, se fez presente personificado na imagem de Dodi (o demônio), com a qual a paciente é levada a dialogar, sob orientação da terapeuta, através do método dialético. A elaboração dos núcleos emocionais possibilitou uma transformação caracterizada como altamente eficaz que, experimentada pela paciente de forma concreta através da remoção de alguns sintomas, também levou-a a compreender o sentido oculto de seu sofrimento. A terapia é encerrada após treze sessões quando a paciente relata que: “Estou bem, durmo bem, não vejo mais aquelas coisas que via. Não tenho mais aquele medo do demônio. Estou no mesmo emprego e estou fazendo o curso de corte e costura. Ai não tenho tido muito tempo de desenhar porque está bem corrido para mim. O tempo que eu tenho em casa eu quero costurar sabe. Ai nem vejo a hora passar... Mais está tudo bem sim” (sic). Parece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo do demônio e a dimensão sombria da alma que o acompanhavam está relativizado permitindo à consciência a retomada da construção básica da vida (profissão, aperfeiçoamento, relacionamentos) prosseguindo de modo mais harmonico e com alguns núcleos emocionais * * Graduada em Psicologia CRP-PR 08/24212, e Bacharel em Administração pela UNIPAR/PR. Pós-graduada em Administração Financeira Contábil e Controladoria, UNIVEL/PR, MBA Gestão de Pessoas FASUL/PR e Pós-graduada em Psicologia Analítica e Religião Oriental e Ocidental pelo ICHTHYS Instituto/PR. Pós-graduanda em Imaginação Ativa pelo ICHTHYS Instituto, Curitiba-PR. Professora de Pós-Graduação no ICHTHYS Instituto, Curitiba – PR. Polo: Guaira – PR. Email: [email protected]

Transcript of npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de...

Page 1: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

O DEMONÍACO NA IMAGINAÇÃO ATIVA DE LOURDES.

ESTUDO DE CASO CLÍNICO

Regina Maria Grigório*

ResumoO objetivo deste artigo é apresentar o relato de um Caso Clínico no qual foi utilizada a técnica da Imaginação Ativa como suporte para o trabalho com os sintomas. Lourdes (36 anos) procurou a terapia devido a insonia num período em que também via vultos, ouvia vozes e isso a deixava nervosa. Os ciúmes intensos do namorado agravavam o quadro, o que a fez buscar tratamento. Conforme a CID 10, 301.0 (F60.0), Transtorno da Personalidade Paranóide. Durante as sessões, por inúmeras vezes o demônio e uma rede de imagens que o acompanharam, se fez presente personificado na imagem de Dodi (o demônio), com a qual a paciente é levada a dialogar, sob orientação da terapeuta, através do método dialético. A elaboração dos núcleos emocionais possibilitou uma transformação caracterizada como altamente eficaz que, experimentada pela paciente de forma concreta através da remoção de alguns sintomas, também levou-a a compreender o sentido oculto de seu sofrimento. A terapia é encerrada após treze sessões quando a paciente relata que: “Estou bem, durmo bem, não vejo mais aquelas coisas que via. Não tenho mais aquele medo do demônio. Estou no mesmo emprego e estou fazendo o curso de corte e costura. Ai não tenho tido muito tempo de desenhar porque está bem corrido para mim. O tempo que eu tenho em casa eu quero costurar sabe. Ai nem vejo a hora passar... Mais está tudo bem sim” (sic). Parece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo do demônio e a dimensão sombria da alma que o acompanhavam está relativizado permitindo à consciência a retomada da construção básica da vida (profissão, aperfeiçoamento, relacionamentos) prosseguindo de modo mais harmonico e com alguns núcleos emocionais transformados.

Palavras-chave: Imaginação Ativa, demônio, sentido oculto, luz e sombras.

Introdução

A concretização deste trabalho se deu por meio de várias sessões realizadas em

consultório em caráter psicoterapêutico na abordagem da Psicologia Analítica Junguiana. A

paciente veio através do serviço prestado à comunidade pela Clínica Escola. Na primeira

sessão a paciente Lourdes esclarece que já havia procurado ajuda, mas obteve parcos

resultados. Era meados de agosto do ano de dois mil e dezesseis, tive com Lourdes a primeira

de treze sessões que foram realizadas. Realizamos os procedimentos necessários e anamnese.

Lourdes é católica, solteira, trinta e seis anos, ensino médio completo, profissão auxiliar de

produção, reside com os pais. Iniciamos às averiguações motivacionais anteriores e recentes

que a levaram buscar tratamento. Segue relatando que procurou o serviço psicológico porque

** Graduada em Psicologia CRP-PR 08/24212, e Bacharel em Administração pela UNIPAR/PR. Pós-graduada em Administração Financeira Contábil e Controladoria, UNIVEL/PR, MBA Gestão de Pessoas FASUL/PR e Pós-graduada em Psicologia Analítica e Religião Oriental e Ocidental pelo ICHTHYS Instituto/PR. Pós-graduanda em Imaginação Ativa pelo ICHTHYS Instituto, Curitiba-PR. Professora de Pós-Graduação no ICHTHYS Instituto, Curitiba – PR. Polo: Guaira – PR. Email: [email protected]

Page 2: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

não conseguia dormir, via vultos, ouvia vozes e tinha muito ciúmes do namorado, e isso tudo

a deixava muito nervosa. Fez alguns comentários relacionados à sua estrutura familiar, alguns

fatos sobre a mãe e o quanto esta era ansiosa, o pai e os modos de ser dele, alguns detalhes de

sua infância e criação, disse também da irmã que temporariamente reside com o filho de 20

anos junto a eles, e comenta que o rapaz está em depressão. No momento descreve que

devido a ter recebido orientações com o acompanhamento no ano anterior sente-se um pouco

melhor quanto ao dormir e que já não tem tanto medo dos vultos e vozes. (obs. faz-se uso das

siglas L, Lourdes e P, Psicóloga)

Quando questionada sobre estes fenômenos que ela vivência diz:

L: “É uma coisa muito feia que aparece. As vozes eram muitas na minha cabeça. Tá

bem mais melhor. Esses dias atrás eu ainda vi. Não é igual mais. Não tenho tanto medo mais.

Não podia nem dirigir à noite. Via alguém sentado ao meu lado” (sic).

Diante dos resultados obtidos pergunto:

P: “O que ainda traz você a terapia? O que gostaria de trabalhar? Responde:

L: “Os ciúmes, é intenso, chego até passar mal” (sic). Com isso ela segue relatando

que os ciúmes é uma presença constante, e que, não queria mais se relacionar com ninguém

porque não queria incomodar ninguém com seus ciúmes. Esclarece que iniciou novo namoro

este ano e enfatizou ao rapaz sobre esta questão: - “Não é ele o problema desde o começo

deixei claro que não sou coisa boa em termos de ciúmes, e se alguém fizesse comigo o que eu

faço com a pessoa eu não iria gostar. No outro namoro de antes, o meu namorado me traía

muito e usava até o meu carro para isso, e a voz me dizia disso, ela me contava tudo. Adquiri

dívidas por causa dele porque não tinha roupas, nem nada. A dívida que ele deixou foi o que

mais me prejudicou” (sic).

Peço que me esclareça como são os ciúmes para ela:

L: “Os ciúmes me faz bloquear para não amar alguém porque é melhor para mim”

(sic). Segundo Carotenuto (2011, p.139) “Literalmente a mercê de fantasias persecutórias e

por sentimentos auto denegridores, a posse recíproca pela qual fomos nutridos nos torna

agora escravos”.

Relatados os fatos fiz junto a ela algumas observações quanto ao que poderiam as

vozes estar lhe alertando; aprofundando em Carotenuto (2011, p.141) encontra-se um

entendimento: “O indivíduo potencialmente ciumento se enamora justamente de quem tem

necessidade, também incoercível, de pô-lo a dura prova, por seu lado o traidor tem

necessidade da pessoa ciumenta, a fim de exercer controle e contenção sobre sua tendência”.

Conforme o autor esse é o conluio neurótico vivido na inconsciência.

2

Page 3: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

Circunstanciando as sessões

Na sessão seguinte a paciente comenta que estava se sentindo bem desde a sessão

anterior. E inicia à leitura dos sonhos e anotações sobre fatos relacionados as vozes, estalidos

e barulhos que ocorreram neste período. Na anotação escreve que na noite do dia quinze sua

cachorra Pipoca estava muito arisca e latia muito frente ao portão retornando até a porta da

casa, e, isso se estendeu pela madrugada, a paciente comenta; L: “Acredito que ela estava

vendo o que eu não via” (sic). E conta; tomei a Bíblia e li aleatoriamente. Os sonhos dela

trazem aspectos bastante relacionados à vida pessoal, e muito intensos com relação a

dinheiro. Pergunto a ela o que toda essa situação lhe traz, e qual o sentimento que isso lhe

causa? Ela responde que traz preocupação, e se sente triste desanimada, acrescenta que as

finanças familiares se encontram extremamente vulneráveis. Neste sentido, insiro uma

intervenção ao seu imaginário para que ela possa me expressar de modo simbólico o que este

estado financeiro poderia representar para ela e pergunto:

P: “É como se quem ou o que pudesse representar para você aqui e agora esta situação

de vulnerabilidade financeira? Ela responde:

L: “É como se fosse uma nota de R$ 100.00” (sic).

A partir desta fala, utilizei-me da técnica da Imaginação Ativa e posteriormente fiz

junto a ela algumas associações simbólicas a respeito dos sonhos e a convoquei a refletir

sobre os seus valores e sentimentos.

Em seguida ela traz uma fala incisiva quanto a não desejar ter filhos e também sobre

relacionamentos e traição. Neste exato momento a paciente revela que achava que tinha uma

coisa que ficava ao seu lado. Pergunto a ela:

P: “E essa coisa, é como se fosse quem, ou o que? Poderia me dizer? Ela fica

pensativa e revela enfaticamente:

L: “É o demônio” (sic).

P: “E você poderia descrevê-lo para mim por favor?”

L: “É horroroso mesmo, como se estivesse no escuro, tem a cara vermelha dentes

horrorosos chifres e uma capa preta” (sic). Pergunto:

P: “E ele já sabe que você está olhando para ele?

L: “Sim, ele está olhando para mim com a cara feia” (sic).

P: “E é como se ele estivesse querendo te dizer o que com essa cara feia?”

L: “Que odiava eu” (sic). Sigo:

P: “E ele poderia te dizer o que faz com que ele te odeie?

L: “É que eu procuro mais a Deus e essas coisas não gostam, e eu rezo muito” (sic).

3

Page 4: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

P: “Peço a ela que olhe novamente para a imagem e pergunte se ele poderia dizer o

nome dele, por favor?”

L: “Ele disse que é Dodi” (sic). Percebo que ela sente uma estranheza, então pergunto:

P: “E como ele se sente, qual é o comportamento do Dodi enquanto você me diz

isso?”

L: “Dá risada, esta rindo de eu imaginar que estou conversando e fazendo essas

perguntas a ele” (sic).

P: “E é como se ele estivesse querendo o que de você, ou com você?”

L: “Acho que ele queria me levar” (sic).

P: “Levar para onde, para que?”

L: “É isso ele gostaria de fazer mal para mim” (sic). Pergunto:

P: “E é como se você tivesse feito ou deixado de fazer o que para ele, para que possa

querer fazer mal para você?” Ela responde:

L: “Ele acha que eu não vivo correto” (sic).

P: “E o que faz com que ele pense isso de você?”

L: “Se for em termos de religião eu não vivo mesmo, meu namorado dorme comigo lá

em casa. Ele agora está de cara fechada, e diz que é por isso mesmo” (sic).

P: “Pergunte a ele em que momento da sua vida exatamente ele possa ter começado a

querer levá-la para lhe fazer mal? Ela responde:

L: “É como se ele dissesse na adolescência” (sic). E, após esta fala a imagem que se

apresentou como ‘Dodi’ se vai inesperadamente.

Em sua obra Edinger (2006, p.117) demonstra o quanto é indispensável a alquimia

para a Psicologia Profunda. Analogicamente se trata de um processo relacional, uma

elaboração de conexões por meio do ‘como se’, e nesta analogia encarna ou coagula o

espírito. Ele ressalta: “ela é um tesouro de analogias que personificam ou encarnam a psique

objetiva e os processos pelos quais ela passa no curso do desenvolvimento” relata ainda; “o

mesmo se aplica para a religião e à mitologia”. Deve ser respeitada por ser ela quem dá forma

e visibilidade ao que antes era invisível e intangível, ainda não coagulado.

Para maior compreensão Edinger (2006) constata, “as imagens do sonho e da

imaginação ativa coagulam” Edinger (2006, p.118). Sua explanação nos diz que as imagens

tanto nos sonhos, como na imaginação ativa, são uma sucessão de fatos em formas

personificadas “elas vinculam o mundo exterior com o mundo interior por meio de imagens

análogas ou proporcionais e por isso coagulam o material que vem da alma” Edinger (2006,

p.118). Em nosso cotidiano “os humores e afetos nos agitam” constantemente de forma

4

Page 5: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

violenta, enquanto não são personificados, tendo chegado a este ponto, podemos ter com elas,

as imagens uma relação objetiva (EDINGER 2006, p.118). Neste sentido, o autor fala sobre

Jung em suas memórias: “Na medida em que conseguia traduzir as emoções em imagens, -ou

seja, na medida em que conseguia descobrir as imagens que se achavam ocultas nas emoções-

eu recuperava a calma e a paz interiores” Jung (citado por EDINGER, 2006, p. 118).

Quanto aos aspectos sombrios e demoníacos que se manifestavam para Lourdes, a

orientei que quando, e se, novamente ocorressem ela anotasse em seu caderno o que estivesse

se passando em seus sentimentos e em relação a situação que se apresentasse no momento,

demonstrando a esses vultos ou a estas vozes, que não as desdenha, e, somente trataria com

elas em terapia, assim, trabalharíamos juntas. Segundo Jung (2011‘a’), “O terapeuta não é

mais um sujeito ativo, mas ele vivência junto um processo evolutivo individual” (JUNG

2011‘a’:7, OC 16/1, p.18). Lourdes se mostrou bastante pensativa em muitos momentos

durante a sessão.

As sessões seguiram e Lourdes me conta que achou diferente o meu modo de

trabalhar com relação ao que já conhecia de terapia, mas como eu tratava sobre imagens e

símbolos, ela pesquisou sobre Jung e diz que tudo que viu a respeito do trabalho dele no

Hospital Psiquiátrico fez todo sentido para ela com relação ao meu trabalho, e ressaltou: L

-“Ele não achava que eram todos loucos, mas que precisavam ser ouvidos” (sic).

Jung (2011‘c’), afirma que:

Todo psicoterapeuta não só tem o seu método: ele próprio é esse

método. Ars totum requirit hominem diz um velho mestre. O grande

fator de cura, na psicoterapia é a personalidade do médico - esta não é

dada a priori; conquista-se com muito esforço, mas não é um esquema

doutrinário (JUNG, 2011 ‘a’; 198, OC 16/1, p.103).

Parabenizei Lourdes pelo interesse em seu processo, pois, expressa aparente

morbidez, mas, não ao ponto de fazê-la desistir, e por intuição mostrei a ela o Livro

Vermelho de Jung. Brevemente falei das imagens, vozes e símbolos do inconsciente,

reforçando sobre o valor de suas anotações. Assim, encontro em Edinger (2006) que o

elemento chumbo, é associado ao planeta Saturno, e “carrega as qualidades da depressão, da

melancolia e da limitação mortificante” (EDINGER, 2006, p. 104). Neste sentido “o espírito

livre e autônomo deve vincular-se com a pesada realidade e com as limitações das

particularidades pessoais” (EDINGER, 2006, p. 104). A vinculação ao chumbo na prática

analítica ocorre quando o indivíduo assume responsabilidade pessoal diante do analista, ou

outra pessoa significativa. “É surpreendente a diferença entre uma ideia pensada e a ideia

5

Page 6: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

falada. É a mesma diferença entre o mercúrio e o chumbo” (EDINGER, 2006, p. 104). Foi

então que ela me contou um fato bastante pertinente que ocorreu a ela na tarde da sessão

anterior, relatando em detalhes, que sentiu muitos mal-estares físicos. Desse modo, a paciente

leu conforme anotou: -“Hoje chegando em casa senti meu corpo pesado. Almocei e fui mexer

no meu not, mas não aguentava de sono, deitei por volta das 13:00 da tarde e fui me acordar

era já 15:30 da tarde com meu corpo um pouco ruim. O dia foi se passando e a tarde limpei a

casa e fui tomar banho, vesti um shorts e uma camiseta, mas ela estava muito fedida cheirava

enxofre, dei para meus familiares verem e também eles sentiram. Tirei aquela e coloquei

outra. Só o cheiro passou para casa. Fui dormir ai o cheiro estava mais forte e se eu virava

para o lado esquerdo da cama tava mais ainda, isso foi até de madrugada. Quando ai peguei

meu Rosário e comecei a passar aonde estava o cheiro. Foi que ai foi sumindo e sumiu aquele

cheiro ruim. Ai dormi”(sic).

Edinger (2006) contextualiza a respeito do enxofre na receita alquímica da coagulatio

apontando-o como o terceiro agente, este está associado ao sol devido sua cor e seu caráter

inflamável, seus vapores impregnam de mau cheiro e escurecem a maioria dos metais, por

esta razão tem um aspecto característico do inferno. Em Mysterium Coniunctionis, Jung

sintetiza a discussão do simbolismo do enxofre brilhantemente, tornando-se imprescindível

sua descrição:

O enxofre constitui a substância ativa do sol ou, em linguagem

psicológica, a força impulsionadora da consciência: de um lado a

vontade, melhor concebida como um dinamismo subordinado a

consciência; do outro, a compulsão, uma motivação ou impulso

involuntário, que vai desde o interesse até a possessão propriamente

dita. O dinamismo inconsciente corresponderia ao enxofre, porque a

compulsão é o grande mistério da existência humana. É o cruzamento

da nossa vontade consciente e da nossa razão por uma entidade

inflamável que está dentro de nós, manifestando-se ora como um

incêndio destruidor, ora como um calor que gera vida Jung (CW 14,

par.151, citado por, EDINGER, 2006, p.105, grifos do autor).

A partir dessa citação o autor friza que o enxofre é paradoxal: “Como corruptor tem

afinidade com o diabo, mas ao mesmo tempo se apresenta como um paralelo para Cristo.

Então se parte do significado do enxofre é desejo, chegamos à conclusão que o desejo

coagula” (EDINGER, 2006, p. 105).

6

Page 7: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

Em todas as sessões Lourdes trazia e lia seus sonhos, todos carregados de pertinências

simbólicas, vinculando o mundo externo com o interno. Ao ver uma imagem de borboleta no

Livro Vermelho me comenta algumas correlações negatívas relacionando-a com recordações

de coisas ruins que faziam da sua vida um caos, tendo levado ela ao desejo de morte, se

colocando em risco com o carro em alta velocidade na rodovia. Com isso, realizamos

algumas reflexões sobre borboletas e processos transformadores a partir da simbologia do

casulo, assim, ela refletiu com relação ao que parece ser ruim e que dê certo modo pode ser

bastante construtivo. Jung (2011‘a’) explica que ao se tratar de um fato psicológico, este

precisa ser visto sob dois pontos de vista, o da causalidade e o da finalidade. Por finalidade

referia-se a tensão psicológica imanente dirigida a um objetivo futuro. E não a um objetivo

futuro no sentido de um objetivo a alcançar. Ressalta, ainda que os fenômenos psicológicos

comportam um sentido de natureza, mesmo os puramente reativos como as reações

emocionais. E cita que a cólera provocada por uma ofensa pode manifestar este sentido na

vingança, e no caso de um luto ostensivo, tem como finalidade despertar a compaixão dos

outros (JUNG, 2011‘a’: 456 OC 8/2 p. 191).

Fomos adiante com as sessões e certo dia a paciente me conta de uma excursão que

fez a cidade de Apucarana, às aparições de Nossa Senhora de Lourdes. Relata detalhes, me

mostra fotos das aparições que tirou no celular, e finaliza dizendo; L: “Vai de quem acredita,

quem tem fé, eu gosto de ir lá” (sic). Pergunto como ela se sente quando está lá; L: “Todo

aquele peso que tá no meu corpo vai saindo, aliviando, aliviando. Quando chega a tarde a

sensação é muito boa. Só quem vai lá entende, não dá para explicar a sensação” (sic).

Conforme Otto (2007, p. 96); “[...] quem se envolver com a natureza peculiar da valoração

especificamente religiosa, permitindo que ela desperte nele, conseguirá vivenciar sua

veracidade”. Com isso ela tira da bolsa uma imagem impressa de Nossa Senhora de Lourdes

e me presenteia. Comenta que desejou trazê-la para mim, e fala de um senhor que tem as

chagas nas mãos e recebe as mensagens da Santa: L “No momento da visão ele se ajoelha

escreve o que ela diz e depois vai e lê pra gente” (sic). Comenta que ela reza e crê porque:

“As pessoas não são aquele apoio total” (sic). Ressalta que se sente mais segura agora com o

que está fazendo na terapia, e só faz comentários com quem acredita porque as pessoas

acham que é loucura e mandam ela procurar a Deus e salienta: L: “Eu procuro Deus, mas

aquilo ali é mais forte” (sic), e conta que sua mãe tem percepções ainda mais forte que as

suas. Pesquiso em Jung (2011 ‘b’) onde lemos:

Por mais abstrata que possa parecer, é uma realidade encontrada na

prática que a causa de inúmeras neuroses está principalmente no fato

7

Page 8: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

de as necessidades religiosas da alma não serem mais levadas a sério,

devido a paixão infantil do entendimento racional. Afinal o psicólogo

de nossos dias deveria saber que o que importa já não são dogmas e

credos, mas sim toda a atitude religiosa, que tem uma função psíquica

de incalculável alcance. A continuidade histórica é imprescindível

justamente para essa função religiosa (JUNG, 2011‘b’; 99, OC 16/1,

p. 59).

Nos sonhos de Lourdes aparecem também animais maltratados, e através da te

comenta que dá vontade de chorar por não poder ajudar. Intervenho para que ela possa

interagir com este conteúdo, pois o mesmo representa características da desmembratio e

putrefactio alquímica. A partir da interação com a imagem, na Imaginação Ativa, a imagem

vai restabelecendo os órgãos do animal. Assim, complexos conteúdos arquetípicos vão sendo

trabalhado na medida do possível, conforme apresentados.

As sessões seguiram, e na quinta sessão percebi através de um sonho sobre provas não

acabadas que se tratava de etapas da sua vida. Quando questionada o que essas provas

poderiam representar, ela responde: - “Do 0 aos 18 anos” complementando, “[...] nessa etapa

eu não conseguia entender nada, não conseguia dormir, não queria ter a vida de adulto, queria

continuar criança, dá vontade de voltar atrás. Desde lá nunca tive vontade de ter filho, ter

família [...]”, “Queria ficar sozinha, não gosto de ter responsabilidades [...]” (sic). Jung

(2011‘b’) cita: - “Em todos os casos evidentes de neurose, torna-se imprescindível uma certa

reeducação e transformação da personalidade, pois se trata invariavelmente de uma evolução

deficiente do indivíduo, que, em regra, remonta a infância” (JUNG, 2011‘b’; 44, OC 16/1, p.

39). Neste sentido, iniciamos um processo psicoeducacional e a orientei a fazer um mandala

caso sentisse necessidade, assim, Lourdes inicia uma série de desenhos com peculiaridades,

demonstrando seus estados emocionais e vinculações com os sonhos.

Na sessão de número doze as pertinências do sonho apareceram expressivamente no

desenho que Lourdes fez na noite seguinte, e não havia nela o menor sinal de entendimento

ou vinculação consciente do material produzido. Ela lê: - “Sonhei que estava perguntando

para mãe do (meu namorado). Será que ele ia me pagar o que deve. Aí ela me disse que

acharia que não, porque ele não costuma pagar as contas direito. Saindo dali vi e o meu

namorado, mas não conversei com ele. O sobrinho dele saiu atrás de mim, Ele chamou o de

volta mais ele não escutou. Eu tinha na mão um cajado, aquele menino queria que eu desce

esse cajado para ele. Ele pulou em mim me derrubou colocou os joelhos nas minhas costelas,

que estava doendo muito. Ai eu disse pode pegar esse cajado, Ele disse: -vou te matar. Ali

8

Page 9: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

não tinha ninguém para me ajudar. De repente ele me solta, e eu sai devagar, porque não

aguentava andar direito. Quando olho para trás, e vejo, Era um monstro branco, de olhos e

boca preta, comendo aquele menino, tirando o pedaço da cabeça. Eu fui para minha casa,

coloquei os cachorros para dentro, fexei tudo. Coloquei cobertas no chão para eles se

deitarem. Vi uma cachorrinha branca, vi que conhecia, era a minha bibi que já tinha morrido

há uns 4 anos atrás. Chamei ela, ela estava com os olhos tristes, o pescoço de um lado não

tinha pelos. Estava bem maltratada. Abracei ela, ela colocou as patinhas no meu ombro e me

abraçou também, ai acordei” (sic).

Considerações

A psicopatologia apresentada no caso de Lourdes, é muito mais comum do que a maioria das

pessoas possam imaginar. Desde o início a paciente trouxe como queixa principal para a

psicoterapia que não conseguia dormir, via vultos, ouvia vozes e tinha muito ciúmes do

namorado, e isso tudo a deixava muito nervosa. Diante de suas falas, o arquétipo da sombra

em seu aspecto arquetípico demoníaco e possessivo tornou-se revelador. A imagem descrita

na sessão de número dois dá indícios do complexo. Paulatinamente, a averiguação analítica

demonstrou uma relação direta com o animus e que parece brotar de raízes que vislumbra

uma relação arquetípica paterna. O esmero com que Lurdes se entrega nas relações e da

mesma forma como cobra de seus parceiros demonstra a carência psíquica existente.

Características sombrias são temas corriqueiros e permeiam durante as sessões, através dos

sonhos, desenhos e anotações relatadas, trazendo também junto a estes, temas que

demonstram a luz, e, uma busca constante pela espiritualidade, assim, neste lusco fusco,

segue vivenciando no corpo o sentido obscuro que em forma de conflito vai delineando o

percurso de sua alma, tentando encontrar o caminho. Mostra também que o tema da morte é

fato corriqueiro, e conforme foi se apresentando fomos trabalhando sobre pensamentos e

desejos de morte, seguido pelas características de putrefação. Especificamente um de seus

relatos traz de modo enfático a ocorrência marcante relacionada ao enxofre, demonstrando

inegável processo alquímico intenso, tal como Edinger traz na obra Anatomia da Psique. É

possível notar ainda incongruência em seus valores, ou, naquilo que se percebe como valor,

por exemplo; ter um pensamento radical em defesa do aborto e ao mesmo tempo uma busca

constante por beatitude.

Outro fator importante é a sincronicidade que nos percorreu, como quando apresentei a ela o

Livro Vermelho, e com isso encontramos um ponto comum fortalecendo o vínculo

terapêutico possibilitando esclarecer a Lourdes aspectos que foram surgindo a cada momento

9

Page 10: npd.uem.br · Web viewParece que a conjunção luz e sombras se evidencia neste caso clínico de modo tão rápido quanto eficaz, uma vez que o personagem principal, isto é, o arquétipo

na busca da estruturação de sua psique. Percebo quanto a mim que muitos de meus interesses

nos estudos da Psicologia Analítica e relacionados a minha própria experiência nas etapas da

vida vem de encontro com as questões que esta paciente apresenta e vivência, bem como de

tantos outros.

Referências

Jung, C. G. (2011‘a’) A natureza da psique. (Trad. Rocha, M. R.) OBRAS COMPLETAS Vol. 8/2, 8ª ed. Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1952).

____, C. G. (2011‘b’). A prática da psicoterapia. (Trad. Appy, L. M. revisão técnica Silva, F. D.) OBRAS COMPLETAS 16/1, 14ª ed. Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1946).

Carotenuto, A. (2011). Amar trair. Quase uma apologia da traição. (Trad. Lemos, B.) São Paulo. 3ª ed. Paulus. (Trabalho original publicado em 1997).

Edinger, E. F. (2006) Anatomia da psique – O simbolismo alquímico na psicoterapia. (Trad. Sobral, U. A; Gonçalves, M. S.) São Paulo: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1990).

Otto, R. (2007). O Sagrado. Os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. (Trad. por Schulupp. O.W.) Petrópolis: Vozes. (Trabalho original publicado em 1979).

10