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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-‐4846]
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Novas canções do exílio: História, poesia e memória do desterro na
obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil,1969-1972
Júlio César Lobo1
Uma ciência história autogerida não só seria um desastre como não faz sentido, pois a História, mesmo que só o consiga vagamente, é uma ciência e depende de um saber profissionalmente adquirido. É evidente que a História não atingiu um grau de tecnicismo das ciências da natureza ou da vida, e não desejo que o atinja para que possa continuar a ser facilmente compreensível e até controlável pelo maior número possível de pessoas. A História já tem a sorte ou a infelicidade (única entre todas as ciências?) de poder ser feita conveniente pelos amadores. De fato, ela tem necessidade de vulgarização – e os historiadores profissionais nem sempre se dignam aceder a esta função, no entanto, essencial e digna, da qual se sentem incapazes; mas a era da nova media multiplica a necessidade e as ocasiões para existirem mediadores semiprofissionais.
Jacques Le Goff, História e memória,2003.
Vai, meu irmão, pega esse avião, você tem razão de correr assim desse frio, mas beija o meu Rio de Janeiro antes que um aventureiro lance mão. Pede perdão pela duração
1 Júlio César Lobo é licenciado em Letras, Doutor em Ciências da Comunicação e professor-associado II da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. É autor de Cinema e sociedade no Brasil (2013, no prelo) e coautor de Glauber, a conquista de um sonho (1995) e História e cinema (2011), entre outros livros.
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dessa temporada, mas não diga nada, que me viu chorando e pros da pesada diz que eu vou levando. Vê como é que anda aquela vida à-toa e, se puder, me manda uma notícia boa.
“Samba de Orly” (1970), V. Moraes - C. Buarque -Toquinho
Introdução O corpus que montamos para a nossa especulação em torno do tema-título é
variado, expandindo-se, contextualmente, para além das letras das canções, nossa
motivação inicial e mais importante. Nesse sentido, consideramos relevante cotejar
nossas observações com aquelas provenientes, inicialmente, da maioria da
correspondência de Caetano Veloso para o extinto semanário carioca O Pasquim,
composta por 14 crônicas, publicadas entre 11 de setembro de 1969 e 25 de novembro
de 1970, além de suas observações sobre canções e sobre exílio presentes nos livros
Verdade tropical (lançado em 1997), no quase songbook Letra só (2003) e na
antologia O mundo não é chato (2005). O que está além, em termos, das letras das
canções de Gil em torno do exílio, foi rastreado não exaustivamente nos comentários
dele no também quase songbook Todas as letras (2003) e em sua autobiografia, em
parceria com Regina Zappa: Gilberto bem perto (2013). A nossa premissa para a
associação história e literatura leva em consideração obviamente que letra de música é
literatura, o que não parece ser hoje mais motivo de controvérsia, bem como toma
como discurso literário as crônicas para O Pasquim e os livros citados dos artistas
enfocados.
A liberdade conceitual que tomamos para a montagem do corpus “literário”
desse ensaio faz-se acompanhar também por uma outra: a de natureza da extensão
desse mesmo corpus. A rigor, somente poderíamos tecer considerações sobre as
“canções de exílio” obviamente a partir do momento em que os artistas selecionados
para essa discussão estivessem...no exílio propriamente dito. No entanto, esse tipo de
composição já começa ser produzido e difundido por eles ainda quando estavam no
período de confinamento em Salvador após os períodos de prisão nas cidades de São
Paulo e Rio de Janeiro.
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Como se sabe, após libertados de um quartel do Exército na ex-Capital Federal,
Caetano Veloso e Gilberto Gil são destinados a uma prisão domiciliar em Salvador,
que durou mais de quatro meses. Enquanto isso, havia as tratativas para um exílio e a
promessa da realização de um “show de despedida” também nessa cidade com a
finalidade de levantar recursos para a viagem da família de ambos e para as primeiras
despesas na Europa. No período citado, foram criadas algumas das canções que eles
executaram no espetáculo Barra 69, Teatro Castro Alves (20-21 de julho de 1969),
bem como outras que estão nos primeiros discos de cada um deles lançados no
mercado brasileiro quando eles já se encontravam no exterior.
A canção-marco inaugural, que sinaliza para o exílio de Gilberto Gil e
elaborada durante o período de confinamento em Salvador, foi “Aquele abraço”,
executada publicamente pela primeira vez nas duas apresentações do show Barra 69,
e que encerra o lado 2 do disco que leva o nome daquele espetáculo. Afora ele, não há
mais qualquer referência à desconfortável situação pelas qual ambos passavam no
momento. E a extinta Censura Federal deixaria isso acontecer? “Aquele abraço”, era
um sambão de despedida, surpreendentemente sem uma nota de rancor: “Alô, moça
da favela -aquele abraço! / Todo mundo da Portela – aquele abraço! [...]/Alô, Banda
de Ipanema – aquele abraço! / Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço/a Bahia já
me deu régua e compasso/Quem sabe de mim sou eu -aquele abraço! / Pra você que
me esqueceu – aquele abraço!” O fato é que, de uma certa forma, em suas criações,
Gil já havia celebrado outras despedidas, quem, sabe, menos traumáticas, como
naquela obra-prima de 1965 “Eu vim da Bahia”, que assim se encerra: “Eu vim da
Bahia/mas eu volto pra lá/eu vim da Bahia/mas algum dia eu volto pra lá”. Sobre o
seu processo de criação dessa obra, testemunha Gil (2003, p.63):
Eu ainda estava em Salvador quando a compus. Era janeiro [de 1965] e a convite da Gessy Lever, eu estava indo a São Paulo, já com a viagem marcada. Fiz a música querendo ou necessitando antecipar uma sensação para me precaver, digamos. Uma coisa assim: 'Deixa eu experimentar logo essa coisa de estar fora da Bahia, já imaginar como é' […]' E foi assim: quando eu soube que ia fazer um show de despedida, preparei uma canção como que despedindo já à distância, já como se a Bahia estivesse dormindo
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quando eu saí em viagem e, ao acordar, eu já estivesse longe. Então, tive que saudá-la de longe...
Por outro lado, outra canção de despedida desses tempos, agora de Caetano
Veloso, é “Um dia”, gravada por ele e Gal Costa no disco Domingo (1967) de ambos.
A saudação de longe, a que se refere Gil a respeito de sua música de 1965, também
pode ser notada em um das estrofes desse título de Veloso, que associa um sentimento
em que se misturam marcos de uma topografia distante (Raso da Catarina, águas de
Amaralina) com a presença de uma pessoa próxima: “[...] na calma da calmaria […]
longe do mar da Bahia, /limite da minha vida, /vou voltando pra você […] Eu não
estou indo-me embora, /estou só preparando a hora de voltar”.
As metáforas náuticas Quando já estavam em Londres, Gil e Veloso têm lançados no Brasil os discos
que haviam gravado – apenas voz e base instrumental – em Salvador: o “álbum
branco”, de Veloso, e Gilberto Gil, do próprio. O primeiro, que teve mais músicas
executadas, é composto pelas seguintes canções: “Irene”, “The empty boat”,
“Marinheiro só”, “Lost in the paradise”, “Atrás do trio elétrico”, “Os argonautas”,
“Carolina”, “Cambalache”, “Não-identificado”, “Chuvas de verão”, “Acrilírico” e
“Alfômega”. No baião que abre esse disco, o narrador-compositor Veloso se coloca
como se já estivesse no desterro, saudando a sua irmã de criação, nomeada já no seu
título: “Eu quero ir minha gente/eu não sou daqui/eu não tenho nada/quero ver Irene
rir/quero ver Irene dar sua risada. // Irene ri, Irene ri, Irene (bis)/quero ver Irene dar
sua risada”. O segundo verso dessa canção - “eu não sou daqui”, sintomaticamente, é
o verso de abertura da canção folclórica “Marinheiro só”, terceira faixa do disco: “Eu
não sou daqui/marinheiro só/eu não tenho amor/marinheiro só/eu sou da
Bahia/marinheiro só/de São Salvador/marinheiro só”. Pode-se também ler-se um eco
dos versos “Eu não sou daqui/eu não tenho nada” na ideia central de vazio
material/existencial de “The empty boat”, que, não por acaso, é a segunda faixa do
citado long-play.
Na canção “The empty boat, Veloso usa um barco como um “mundo”,
trabalhando com certa exaustividade essa cenografia – que remete aos cantos do
argonautas da Antiguidade -, os componentes da embarcação (“From the stern to the
bow”, “From the rudder to the sail”), os elementos do universo náutico (From the
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ocean to the bay /Oh, the sand is clean, “From the east to the West /Oh, the stream is
long), comparando-os com elementos de seu próprio corpo - “my heart is empty”, “my
hand is empty / from the wrist to the nail”, “my head is empty” “my dream is wrong, /
from the birth to the death.- e com seu estado de espírito em Salvador, confinado,
esperando autorização para sair do País, exilado: “oh, my mind is clean, /from the
night to the day”.
As metáforas náuticas que percorrem a canção “The empty boat” se espraiam
pelo “álbum branco”, associando-se intensamente com as canções de partida, com a
preparação do exílio, como se tem no baião “Irene”, na folclórica “Marinheiro só” e
no fado “Os argonautas”. Nessa última peça, o barco já não está mais vazio, porém
pleno de melancolia: “O barco, meu coração não aguenta/tanta
tormenta/agonia/alegria, meu coração não contenta. / O dia, o marco, meu coração/o
porto, não”. Segue-se o famoso refrão “Navegar é preciso/viver não é preciso” em que
uma expressão de um general grego da Antiguidade, trazida à modernidade por
Fernando Pessoa, insere-se na cultura de massas brasileira como se fora uma criação
de Veloso. E novamente a palavra barco é metáfora para outros sentidos, para a
expressão do estado de espírito de um enunciador que, em canção anterior (“Um
dia”), a propósito de outros contextos, já havia musicalizado a ideia de que “eu não
estou indo-me embora/estou só preparando a hora de voltar”.
Simultaneamente ao lançamento no Brasil do “álbum branco”, de Caetano
Veloso, foi comercializado o disco que Gil havia gravado em Salvador no mesmo
período e nas mesmas condições técnicas e, a exemplo do primeiro, intitulado por seu
intérprete e com nove faixas, três a menos do que o de Veloso: “Cérebro eletrônico”,
“Vitrines” “Futurível” (todas essas três compostas na prisão do Quartel da Vila
Militar do Exército no subúrbio de Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro), “Volks
Volkswagen Blues”, “Aquele abraço” (primeira gravação de estúdio), “17 léguas e
meia”, “A voz do vivo”, “2001” (Tom Zé-Mutantes), e “Objeto semi-identificado”.
Dentre as obras acima listadas, destacamos, por sinalizar para os contextos com
que estamos trabalhando, “Volks-Volkswagen blues”, que havia sido composta
original em português ainda no confinamento em Salvador com uma série de
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referências familiares – o pai, Zeca, a irmã, Dina, a mãe, Claudina, a primeira mulher,
Bela, e suas filhas com ela: Marina e Nara. Para o autor, seus versos eram referentes a
um “período de produção autorreferente e autorreveladora”, pois “era preciso afirmar
a legitimidade do trabalho na praça e a transparência na relação artista-comunidade,
cantor e coro: a coisa da tragédia grega” (GIL,2003, p.116). Já “A voz do vivo”, que,
curiosamente, Gil exclui do seu songbook (2003), passa uma mensagem de
tranquilidade de seu enunciador: “Quem já esteve na rua viu/quem já esteve na rua
também viu. / Quanto a mim, é isso e aquilo/eu estou muito tranquilo/ pousado no
meio do planeta/girando ao redor do sol”, versos que se repetem insistentemente. Em
“17 léguas e meia” (Humberto Teixeira-C. Barroso), baião lançado por Gonzagão em
julho de 1950, há a celebração da alegria, proveniente de se ouvir e dançar um baião,
acrescido da companhia da amada, Rosinha.
O Pasquim e Gonçalves Dias
O fato é que, de certo modo, o intervalo entre os discos do “confinamento” e
os primeiros elepês londrinos de Gil e Veloso acabou por ser preenchido por um outro
exercício da literatura do último: suas crônicas para O Pasquim. O primeiro desses 14
textos, escritos em forma de carta ou diário semanal, veio a público na edição de 11
de setembro de 1969, transformando um elemento de sociabilidade do endereçamento
no destilação de uma ironia cortante: “Meu caro Sigmund – eu agora também vou
bem, obrigado. Obrigado a ver outras paisagens, senão melhores, pelo menos mais
clássicas e, de qualquer forma, outras. Alô, alô, Realengo, aquele abraço. Por
enquanto não tenho nada para contar: ainda estou em Portugal”.
A segunda crônica de Veloso, publicada na edição de O Pasquim de 11 de
setembro de 1969,busca se aproximar mais dos elementos de uma espécie de
reportagem, dando conta do ambiente cultural de Londres, do que acontecia nos seus
parques, de como as pessoas dançavam e cantavam neles, da ausência de incômodo
ou de violência nos eventos artísticos públicos, além de associar versos de músicas
recentes dos Beatles – do chamado “álbum branco”, ou melhor, álbum duplo The
Beatles - com algumas de suas reflexões. Nesse texto, Veloso acentua o seu olhar de
recém-chegado: “Tendo ido a Lisboa e Paris, ainda não tinha chegado ao estrangeiro.
Aqui é o estrangeiro”. A terceira crônica, publicada em 5 de novembro daquele
mesmo ano, é repleta de frases curtas, parecendo sinalizar anotações para
desenvolvimentos posteriores, além do fato de associar dados do cotidiano londrino a
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sua análise de fatos que repercutem nos exemplares de O Pasquim. No último
parágrafo, ele reconhece um certo fastio com tudo: “Talvez porque eu esteja cansado,
à maneira de Nara [Leão] se cansar das coisas, eu tenho vontade de ouvir coisas sobre
a alma lírica brasileira”.
Na quarta crônica de Veloso para O Pasquim – que se inicia relatando o
impacto no autor da violência em câmera lenta do filme The wild bunch (EUA,1969,
Sam Peckinpah) – mais próximo ao seu final, ele é que acaba nos impactando com
três frases, que refletem estados de espíritos diversos: “Gil está cantando na sala. Nós
não estamos nem alegres, nem tristes, nem poetas. Eu gostaria de ver a Bahia antes de
morrer”. Talvez não se possa desassociar essa última frase, violenta asserção, da
alusão com o tão parodiado, principalmente debochado “não permita Deus que eu
morra sem que volte para lá”, da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Trata-se de
um poema que tem um longo histórico de paráfrases e paródias na história da
literatura brasileira, histórico esse que tomamos a liberdade de pontuar a seguir
mesmo que não o seja exaustivamente.
No distante ano de 1843, mais precisamente no mês de julho, o primeiro poeta
romântico brasileiro, o maranhense Antônio Gonçalves Dias, finalizava em Portugal a
sua “Canção do exílio”. Três anos depois, já residindo no Rio de Janeiro, ele tem esse
poema publicado em seu livro de estreia, Primeiros Cantos (Tipografia Universal de
Laemmert). Iniciava-se então a circulação de um dos mais populares e declamados
textos da literatura brasileira, cuja primeira estrofe raramente é dita, hoje, sem uma
ponta de ironia: “Minha terra tem palmeiras, /onde canta o sabiá;/as aves, que, aqui
gorjeiam, /não gorjeiam como lá”. Quis a história da cultura brasileira que essa estrofe
inaugural – e, por extensão, todo esse poema – tenha acabado por estimular um
incontável número de paródias, levando para o universo do humor uma peça ufanista.
Afora o dado celebrante desse famoso poema, não se pode esquecer o dado
premonitório contido no verso “não permita Deus que eu morra sem que volte para
lá”. Como se sabe, Dias morreu em naufrágio voltando para o Maranhão.
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A mais antiga produção paródica em torno da “Canção do exílio” de maior
difusão é inquestionavelmente o “Canto do regresso à pátria”, do livro Lóide
Brasileiro, de Oswald de Andrade:
Minha terra tem palmares onde gorjeia o mar. Os passarinhos daqui não cantam como os de lá. Minha terra tem mais rosas e quase que mais amores, minha terra tem mais ouro, minha terra tem mais terra. Ouro terra amor e rosas, eu quero tudo de lá. Não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá. Não permita Deus que eu morra sem que volte pra São Paulo, sem que veja a Rua 15 e o progresso de São Paulo”.
Entre outros traços críticos, o “Canto de regresso à pátria”, de Oswald de
Andrade, troca um dado natural, celebrante de uma paisagem tropical que se deve
louvar – palmeiras – por uma paronomásia, palmares, produzindo crítica social
através do humor: escravidão, servidão, lutas e mortes. Em 1930, Carlos Drummond
de Andrade, em seu livro de estreia – Alguma poesia -, no poema “Europa, França e
Bahia”, remete-nos ao famoso poema gonçalvino ao lembrar-se do Brasil ou de um
Brasil:
Meus olhos brasileiros sonhando exotismos ….................................................................. Chega! Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. Minha boca procura a 'Canção do Exílio'. Como era mesmo a 'Canção do Exílio'? Eu tão esquecido de minha terra... Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabiá.
No caso desse texto drummondiano, vale ressaltar, talvez a somente uma
gravação do próprio autor pudesse comprovar a aposta que fazemos em torno de uma
sua provável ironia, procedimento humorístico esse inquestionável no “Canto de
regresso à pátria,”, de Oswald, por exemplo. Modernista como Oswald e Drummond,
Murilo Mendes, em 1950, fez circular uma paródia do texto-emblema de Gonçalves
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Dias na sua homônima “Canção do exílio”, cujo deboche está bem próximo do
espírito que deve ter presidido a composição da versão oswaldiana. Esse poema, que
se abre prometendo um canto exaltativo - “Minha terra tem macieiras da
Califórnia/onde cantam gaturamos de Veneza” -, logo mostra a que veio, satírico: “Os
poetas da minha terra/são pretos que vivem em torres de ametista, /os sargentos do
exército são monistas, cubistas/os filósofos são polacos vendendo a prestações. /A
gente não pode dormir/com os oradores e os pernilongos. / Os sururus em família têm
por testemunha a Gioconda”. Após o tom irônico, o poema muriliano se fecha
sugerindo uma melancolia:
Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores são mais bonitas, nossas frutas mais gostosas, mas custam cem mil réis a dúzia. Ai, quem me dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabiá com certidão de idade!.
Saindo um pouco da esfera da poesia, em sentido restrito, mas não saindo da
série literária, em 1967, “Marginália 2” (Torquato Neto-Gilberto Gil), uma das mais
ilustrativas canções da acidez da Tropicália (o sufixo alia em grego significa riso),
retomava o espírito das paródias de Oswald, principalmente, e de Murilo Mendes,
para atualizar o ufanista poema de Gonçalves Dias. A diferença com relação ao
original romântico do século XIX já começava pela identificação do enunciador: “Eu,
brasileiro, confesso/minha culpa, meu pecado […]. /Eu, brasileiro, confesso/minha
culpa, meu degredo/pão seco de cada dia/tropical melancolia/negra solidão”. Após
afirmar por três vezes que “Aqui é o fim do mundo”, o narrador retoma esse conceito
da geopolítica de esquerda da segunda metade dos anos 1950 para destilar a sua ira:
“Aqui, o Terceiro Mundo/pede a bênção e vai dormir. / Entre cascatas,
palmeira/araçás e bananeiras/ao canto da juriti.
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“Sabiá”, AI-5 e prisão
Em nosso entendimento, a “Canção do exílio” somente foi citada recuperando,
digamos, parte do clima romântico, terno e saudoso com que deve ter sido concebida,
na moderna música popular brasileira, em 1968, precisamente em “Sabiá” (Tom
Jobim-Chico Buarque). Esse tom já se estabelece na primeira estrofe:
Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar. Foi lá e é ainda lá que eu hei de ouvir cantar uma sabiá.
No entanto, quando se poderia imaginar que a celebração de uma terra, de um
espaço, iria se prolongar, irrompe a crítica, que, pioneiramente, instaura um discurso
de militância ecológica:
Vou voltar sei que ainda vou voltar. Vou deitar à sombra de uma palmeira, que já não há, colher a flor, que já não dá...
É claro que, em nenhum trecho da letra escrita por Chico Buarque, há a menção
a algum exílio, a algum desterro, mas o que nos leva a tomá-la como uma canção de
exílio é a alusão que se poderia produzir de seus versos. Independente das conotações
estritamente “românticas” que as expressões “algum amor” e “fiz de tudo e nada/de te
esquecer”, havia, a nosso ver, a possibilidade gerada de que as centenas de brasileiros
que haviam sido exilados desde o primeiro de abril de 1964 pudessem tomar os versos
“Vou voltar/sei que ainda vou voltar” como um futuro “Canto de regresso à pátria”.
O curioso é que, alguns meses após o lançamento mundial de “Sabiá” no
Festival Internacional da Canção (TV Globo, Rio de Janeiro), aconteceriam duas
coisas com as quais dificilmente alguém poderia com ela associar: a edição do Ato
Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, e a prisão simultânea, em São Paulo,
de Caetano Veloso e Gilberto Gil, exatamente duas semanas depois. Em breve, esses
mentores do tropicalismo seriam exilados, atualizando de modo bastante sofrido uma
personificação por parte de ambos dos versos iniciais da última estrofe de “Canção de
exílio”, de Gonçalves Dias. Nela está a súplica: “Não permita Deus que eu morra/
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sem que eu volte para lá”. Essa frase acabaria por servir, em vários momentos da vida
de ambos em Londres, desterrados, como um mote, em canções, crônicas, entrevistas
e em seus livros de memória ou autobiográficos. E aqui, a exemplo do que temos em
“Sabiá”, o verso citado surge inquestionavelmente sem qualquer motivo para
paródias.
Enquanto não se dava esse “retorno à pátria”, que acabou por acontecer em
janeiro de 1972, Caetano Veloso e Gilberto Gil talvez estivessem involuntariamente,
do ponto de vista da criação artística, colocados a refletir talvez em torno dessa
relação que o crítico literário palestino Edward Said (2003, p.58) coloca entre herança
cultural e novos modos de narrar para o sujeito em condição de exilado, de desterrado
ou de refugiado político. A sua premissa é de que as culturas “podem ser
representadas como zonas de controle ou de abandono, de lembrança e de
esquecimento, de força ou de dependência, de exclusividade ou de partilha, tudo isso
acontecendo na história global”. Em seguida, ele afirma que tanto o exílio, como a
imigração e a ultrapassagem de fronteiras são “experiências que podem, portanto, nos
proporcionar novas formas narrativas ou, na expressão de John Berger [Modos de ver]
outras maneiras de contar”.
A quinta crônica de Veloso para O Pasquim, edição de 27 de novembro de 1969,
se inicia com um retrato, melhor dizendo, se inicia com uma radiografia do que ele
entende como imagem do seu estado atual, de exilado, desterrado, desterritorializado:
“Hoje quando eu acordei eu dei de cara com a coisa mais feia que já vi na vida. Essa
coisa era a minha própria cara. Eu sou um sujeito famoso no Brasil, muita gente me
conhece. Eu acredito que a maneira pela qual esse conhecimento se dá pode dizer
muito a mim mesmo sobre mim”. E acrescenta: “Acho que uma capa de revista pode
ser como um espelho para um homem famoso. Quando um homem vê a sua cara no
espelho ele vê objetivamente em que estado a vida o deixou”.
Já no terceiro parágrafo da mesma crônica em pauta, o clima muda, passando a
sugerir a transcrição de um diário: “Hoje eu fui à aula de inglês e Mr. Lee me ensinou
a usar direct speech em lugar de reported speech. Depois da aula King's Road estava
uma beleza sob uma chuva fria e crônica. Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei
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que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar”. Essa última frase
retornaria a circulação, no segundo semestre de 1970, na voz de Gal Costa, na
abertura de “London, London”, um sucesso de execução no Brasil: “I' m wandering
round and round nowhere to go / I'm lonely in London / London is lovely so / I cross
the streets without fear / Everybody keeps the way clear...” O parágrafo da frase
destacada se encerra assim: “Mas eu não estou aqui e não tenho nada com isso”. Tal
disposição dele nos faz associá-la com um dos aspectos formais do estrangeiro, tal
como teorizados Georg Simmel (1983, p.185), quando ele observa que o estrangeiro
“não está submetido a componentes nem a tendências peculiares do grupo e, em
consequência disso, aproxima-se com a atitude específica de 'objetividade'”. Sendo
assim, prossegue Simmel, “mais livre, prática e teoricamente”, ele “examina as
condições com menos preconceito e não está amarrado à sua ação pelo hábito, pela
piedade ou por algum precedente”.
A propósito, a despeito do sucesso de “London, London” no Brasil, Veloso
(2002, p.424-425) rememora os seus impasses com a tentativa de obter fluência na
língua inglesa, tentativa essa iniciada frequentando uma escola para estrangeiros -
“várias salas com turmas grandes” -, que se revela, enfim, como um capítulo, em
suma, de “um período de fraqueza total”: “Mas falava português quase o tempo todo,
morando numa casa habitada por brasileiros e frequentemente visitada por brasileiros.
Eu me sentia incapaz de aproveitar o que deveria ser visto como oportunidade”.
Generalizando, Veloso estava sendo “vítima”, entre outras coisas, daquilo que o
crítico cultural palestino Edward Said (2003, p.51) entende como “uma condição
ciumenta” do exílio: “[...] um sentimento exagerado de solidariedade de grupo e uma
hostilidade exaltadas em relação aos de fora do grupo, mesmo aqueles que podem, na
verdade, estar na mesma situação que você”. Por outro lado, a quase exclusiva
convivência de Veloso com brasileiros em Londres poderia estimular uma
consideração no sentido que haveria aí sinais do fracasso, como quer Said (2003,
p.54), em “compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo para
governar”, esforço esse que, segundo esse mesmo autor, seria “logicamente artificial”,
com sua “irrealidade”, assemelhando-se com uma ficção”.
No quinto parágrafo ainda da mesma crônica de 27 de novembro de 1969, há
espaço tanto para a publicização de uma ira de Veloso - “Meu coração está cheio de
um ódio opaco” - bem como para relatar a visita de Roberto Carlos, que, como se
sabe, acabaria motivando-o fazer a canção-solidariedade para Veloso intitulada
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“Debaixo dos caracóis do seu cabelo”: “O Rei esteve ontem aqui em casa e eu chorei
muito”. Tempos depois, poder-se-ia se perceber marcas emocionais desse encontro
nos versos de “Debaixo dos caracóis do seu cabelo”. A canção aponta para a situação
de desterro do homenageado obviamente não-nomeado (“Uma história pra contar/De
um mundo tão distante”), revela o desencanto do estrangeiro diante do clima
eternamente cinzento de Londres (“As luzes e o colorido/que você vê agora/nas ruas
por onde anda/na casa onde mora. / Você olha tudo e nada/lhe faz ficar contente”) e o
desejo dele de retorno para o Brasil: “Você só deseja agora/voltar pra sua gente”.
A “rua por anda” refere-se mais precisamente a Portobello Road, via principal
do bairro em que Veloso e Gil residiram por algum tempo. Rua essa, caminhada essa,
que, na canção “Nine out of ten” (disco Transa, Londres,1972), o primeiro busca
traduzir para nós: “Walk down Portobello Road to the sound of reggae / I'm alive. /
The age of gold,yes the age of / the age of gold / the age of music is past. / I hear them
talk as I walk I hear them talk / I hear they say yes / Expect the final blast. / Walk
down Portobello Road to the sound of reggae / I'm alive”.
A Portobello Road musical, citada acima, é cenário também para uma memória
triste de Gil, conforme referência na canção “Back in Bahia”, uma das músicas com
que ele retoma, em disco (Expresso 2222), sua carreira no Brasil em 1972:
Lá em Londres, vez em quando, me sentia longe daqui Vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim. Puxando o cabelo, nervoso, querendo ouvir Celly Campelo pra não cair naquela fossa em que vi um camarada meu de Portobello cair, naquela falta de juízo que eu não tinha nem uma razão pra curtir. Naquela ausência de calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra sentir. Tanta saudade, preservada num velho baú de prata dentro de mim.
Além de registrar a tristeza do amigo desterrado, Roberto Carlos, em “Debaixo
dos caracóis do seu cabelo”, faz votos pelo seu regresso, encerrando a canção desse
modo: “Um dia vou ver você/Chegando num sorriso/Pisando a areia branca/Que é seu
paraíso”. Em Verdade tropical, volumoso livro a meio caminho entre autobiografia,
memória, biografia de uma geração e crítica da cultura de massa brasileira, Veloso
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(2002, p.424) recupera com detalhes a visita de Roberto Carlos a que se referia na
crônica para O Pasquim: “Uma visita comovente foi a que nos fez o Rei Roberto
Carlos. Ele nos era, como já disse, grato pela valorização que fizemos de seu trabalho.
De passagem por Londres, quis nos ver. [...] Roberto veio com Nice, sua primeira
mulher, e nós sentimos nele a presença simbólica do Brasil”.
A presença insidiosa da morte
A percepção que Roberto Carlos tivera de Veloso no exílio – retrabalhada na
música acima citada - assim como a canção com que Paulo Diniz o homenageia,
tentando falar “em nome de Caetano”, em “I wanna to go back to Bahia”, traduzem
de certa forma um pouco da emoção de solidariedade que esses encontros – apenas o
primeiro deles verdadeiro – devem ter gerado. Afinal, como já pontou Said (2003,
p.47), “ver um poeta no exílio – ao contrário de ler a poesia do exílio – é ver as
antinomias do exílio encarnadas e suportadas com uma intensidade sem par”.
Ademais, o fato é que o parágrafo que fecha a crônica, de que a visita de Roberto
Carlos faz parte, retorna com aquelas frases com que Veloso nos assustava pelo
Pasquim: “Talvez alguns caras do Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo
tenha acontecido por acaso. Mas agora eu quero dizer aquele abraço a quem quer que
tenha querido me aniquilar porque o conseguiu”. E o mais grave, mais enigmático,
vem a seguir: “Nós estamos mortos”.
A primeira crônica de 1970 de Veloso em O Pasquim (14 de janeiro), intitulada
“Ipanemia tem seus cinco parágrafos com intertítulos que sugerem o esboço de uma
crítica cultural que ele, aparentemente, nunca pensou em desenvolvê-la: “A ipanemia
é uma doença fácil”, “A ipanemia é uma doença fértil”, “A Ipanemia é uma doença
horrível”, “A Ipanemia é uma doença fóssil” e “A Ipanemia é uma doença fútil”. Há
um tema que percorre a maioria do texto: a morte. A morte de Caetano Veloso,
assunto que ocupa um parágrafo, que se inicia, associando-a, em termos, a mitologia
brasileira da cultura de massas - “Quero dizer que, se eu falei que morri, foi porque eu
constatei a falência irremediável da imagem pública que eu mesmo escolhi aí no
Brasil” -,descarta o que ele entende como uma hipócrita e atrasada solidariedade -
“Quando eu me congratulei com aqueles que me fizeram sofrer, eu estava querendo
dizer que, dando motivo para crescer uma compaixão unânime por mim, que vira
prêmios e capas de revistas muito significativas”, sintetizando, enfim, para um
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público externo, o que aquilo estava significando para ele: “[assim], eles conseguiram
realmente aniquilar o que poderia restar de vida no nosso trabalho”.
A segunda crônica daquele ano somente seria publicada muito tempo depois,
na edição de O Pasquim de 26 de março, e trata de vários assuntos, mas há um saldo
emocional do período de confinamento em Salvador, antes da saída para o exílio,
quando ele se refere ao show que ele e Gil haviam feito no Royal Festival Hall: “Era o
avesso do show de despedida que nos foi permitido fazer no Teatro Castro Alves,
onde todo mundo sabia de tudo. Aqui ninguém sabia de nada”. Foi nesse espetáculo
que Veloso interpretou a toada “Asa branca”, como o faria tempos depois no seu
primeiro disco gravado em Londres e sobre a qual nos deteremos mais adiante. A
crônica seguinte, em 2 de abril, é composta por dois longos parágrafos, sendo difícil
lhe determinar um tema dominante, mas há ainda sinais esparsos, mas intensos de um
balanço ainda doloroso: “Quero morrer, quero morrer já”, “Eu não sei de nada. Eu
não sou daqui”. Já a crônica da edição de 18 de junho nada registra de seu cotidiano
ou de sua condição exilada.
O tema da morte – ou pelo menos da morte de uma imagem pública de
Veloso –, que havia sido tratado com intensidade na crônica de 14 de janeiro de 1970
para O Pasquim, retorna no texto publicado em 12 de agosto daquele ano no mesmo
semanário: “[…] Além do mais, não há motivo para tanta alegria: eu ainda posso
ressuscitar. A nossa época é uma época de milagres”. Um pouco de mistério surge
para o leitor quando, na frase seguinte lá está: “Eu gostaria apenas que a minha morte
fizesse bem à Gal Costa. Tomara que ela tenha percebido que eu morri. Digo isso
porque eu mesmo não me apercebi de imediato. Alguns amigos me avisaram, mas eu
não liguei, até que vi o retrato”.
Um dado curioso que surge a propósito das menções recorrentes de Veloso à
morte em sua correspondência para O Pasquim, nesses tempos de exílio, é a
lembrança que nos traz alguns versos de “Marginália 2” (Torquato Neto-Gilberto
Gill,1967). Num estilo peculiar de composição que a Tropicália consagrou, há uma
enumeração que associa conceitos da geopolítica de esquerda (Terceiro Mundo) com
uma paisagem tropical (cascatas, palmeira, araçás, bananeiras, juritis), culminando
16
com a referência à famosa “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, associando-a não a
uma terra utópica, mas, sim, à morte: “Minha terra tem palmeiras/onde sopra o vento
forte/da fome, do medo e muito/principalmente da morte/Olerê, lalá.”
O refrão de “Os argonautas” aparece em uma oportunidade de cada vez em
parágrafos diversos até após a inversão de “Navegar não é preciso”, Veloso informa,
sem crítica, que “todos acham que eu falo demais”. Acrescenta a isso a constatação de
que tem novo ofício - “Estou virando cronista” - talvez sem saber que, décadas atrás,
Walter Benjamin (2012,p.226), já havia afirmado que “o cronista é o narrador da
história”, argumentando nesse sentido que, dentre “todas as formas épicas, a crônica é
aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é a mais incontestável” e
que, “no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser
narrada estratificam-se como se fossem variações da mesma cor”. Esse texto de
Veloso se encerra com uma expressão que pode remeter ao seu sentimento na época
bem como para “o clássico” da Bossa-nova: “Chega de saudade”.
Em “Asthma” (O Pasquim,25 de novembro de 1970), pode-se perceber que
aquele espaço dele naquele semanário carioca passou a ser menos o ponto de escape
para o Brasil de um diário de um desterrado e mais o território de uma
experimentação textual do que é prova o modo como ele se encerra: “Eu quero a
proesia. Eu quero as galáxias do poeta heraldo de los campos. Quem não comunica dá
a dica. Eu quero a proesia. I wanna go back to bahia. I wanna to go back to bahia”.
Forma original de reconhecer publicamente a homenagem que lhe fazia o cantor e
compositor Paulo Diniz na canção de mesmo nome.
“Nega” e “Asa branca”
A partir de 1971, Veloso deixa de colaborar com O Pasquim. E haveria, pelo
menos, duas coisas boas nisso. Primeiro, ele estava respondendo a uma postura desse
veículo que começava sistematicamente, então, a veicular textos discriminando
nordestinos, quando não o criticava e também a Gil. O segundo motivo, mais vital,
por sinal, é que ele começava a preparação de seu primeiro disco londrino, que tem
como título o seu nome, ostentando na capa um close dele, que o fazia parecido, hoje,
com Osama Bin Laden. Inevitavelmente o que mais chamou a atenção de todos nele
foi a faixa “Asa branca” e por vários motivos: pela sua aparente inexplicável inserção
na cena pop que Veloso e Gil viviam na swinging London, pela duração de sua
execução (sete minutos e 22 segundos) e pelo modo extremamente tristonho com que
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ele a canta, combinando, por sinal, com a imagem que ele projetava de si mesmo na
capa. Alguns se perguntavam: o que aquela toada de L. Gonzaga-Humberto Teixeira,
que muitos têm como “O hino do Nordeste”, que se centrava na saída de um colono
por causa da seca e prometendo o seu retorno quando “a chuva/cair de novo”, tinha a
ver com ele? A resposta mais rápida poderia ser talvez a projeção do sofrimento de
um retirante em um exilado urbano, que jamais havia pegado no cabo de uma enxada.
Ou então, tudo se resumiria apenas no estado de alguém que, “hoje, longe muitas
légua”, vive “numa triste solidão”?
Além da gravação particularíssima de “Asa branca”, destacam-se ainda no
disco em pauta de Veloso um hit, que Gal Costa havia lançado no segundo semestre
de 1970 - “London, London” - e a saudosa “Maria Bethânia”, essa também dele, e
sobre a qual nos deteremos mais adiante. Veloso (2002, p.456) não guarda boas
lembranças desse título londrino: “Até hoje, esse disco me desagrada por lembrar-me
demais minha depressão e minhas limitações pessoais. Mas foi um sucesso de estima
brasileiro. A faixa “Asa branca”, uma versão pessoal e harmonicamente pobre do
clássico de Luiz Gonzaga, justificava para mim a existência desse disco”. O fato é
que, além dos motivos citados por Veloso, esse clássico do repertório de Gonzagão
era das muitas das canções dele que se referia a uma partida, a uma situação de
relativo “desterro”, mas incluindo uma promessa de retorno como na “matriz”
“Canção de exílio” gonçalvina.
Uma busca não muito exaustiva no repertório daquele artista pernambucano
evidencia como as últimas ideias destacadas por nós acima – incluindo o sentimento
de uma certa “estrangeiridade” no local da imigração forçada - eram nele recorrentes:
“É pra rir ou não é” (1946), “Lorota boa” (1949), 'No Ceará, não tem disso, não”
(1950), “Quase maluco” (1950), “Adeus, Rio de Janeiro” (1950), “Pau-de-arara”
(1952) “Chorei, chorão” (1958) e “Vida de vaqueiro” (1960), entre outras. A
musicóloga cearense Elba R. Ramalho (2000, p.77), por exemplo, pontua a
importância dessas canções acima por terem contribuído, entre outras coisas, “para a
coesão cultural dos migrantes nordestinos, principalmente aqueles que se foram para
o Sudeste”. Aceitando-se essa tese, é de se perguntar se isso poderia funcionar para os
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exilados Veloso e Gil. Será que a inusitada e longa gravação de “Asa branca”, por
Veloso naquele disco “estrangeiro”, poderia ter se transformado de uma “canção de
retirante” para uma “canção de exilado”, para uma “canção de desterrado”, para,
enfim, uma nova paráfrase, sem ironia, da “Canção do exílio” gonçalvina.
Em 1971, mais precisamente em abril, Gilberto Gil lança o seu primeiro disco
londrino, com o seu nome apenas como título. Enquanto Veloso enfrentava
problemas com a fluência do idioma local, Gil, por outro lado, a se observar pelo
repertório desse elepê, uma vez que a única palavra em português dessa gravação era
“Nega”, título da primeira das nove faixas. Vale a pena observar que os depoimentos
de Veloso antecedem em mais de um ano o lançamento desse disco em pauta. As
outras canções eram “Crazy pop rock” (com Jorge Mautner), “Babylon” (idem), “The
three mushrooms” (ibidem), “Can't find my way home” (Steve Winwood), “Volks-
Volkswagen blues”, “Mamma” e “One o'clock last morning,20th April,1970”. Todas
as três primeiras refletem em suas letras alguns reflexos da experiência de Mautner
em Nova Iorque – poluição, a vida de um estrangeiro em uma megalópole, a expansão
da consciência através do uso de drogas ilícitas - numa situação bem diversa daquela
vivida por Gil e Caetano em Londres.
“Volks-Volkswagen blues” havia sido composta original em português ainda no
confinamento em Salvador com uma série de referências familiares – o pai (Zeca), a
irmã (Dina), a mãe (Claudina), a primeira mulher (Bela), e suas filhas com ela:
Marina e Nara. Essa versão inglesa de “Volkswagen blue” exclui toda essa
familiaridade de sua matriz em língua portuguesa logo de início - “Let me present to
you / my Volks-Volkswagen blues. / Ready to carry me away / a long way to reach the
moon” - com o fusca transformando-se numa nave espacial: “Fiz a versão já em
Londres, mas pouco tempo depois de ter saído da prisão. Ainda vivendo, portanto, sob
o signo novo da descoberta do cosmos, que corresponde também à descoberta das
filosofias orientais, que propõem esse deslocamento do microcosmos para o
macrocosmos e vive versa” (GIL,2003, p.117). Já em “Babylon” (inspirada por Nova
Iorque), pode-se ler, sem muito esforço, uma pequena tradução do impacto da
chegada de um estrangeiro a uma metrópole numa situação peculiar, experiência essa
que Gil poderia estar assumindo nos primeiros dias de Londres e que domina a
primeira estrofe dessa canção: “First time I came to Babylon / I felt so lonely / I felt so
lonely and people came along / To mistreat me / Calling me so many names in the
streets / And I was so shy / That I began to cry”.
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Em “Mamma”, Gil, de certa forma, retoma o clima das várias canções de
despedida de Caetano, mesmo aquelas pré-Tropicália – distanciando-se curiosamente
da “alegria”, que se poderia ler em “Aquele abraço” - , enquadrando-a na matriz do
velho blues norte-americano, principalmente aquele referente ao “the deep south”.
“Mamma começa pedindo a benção, mas é firme na colocação de seus objetivos: “Am
gonna do my best again/Am gonna go my way, mamma. /Tomorrow am gonna catch a
train. /Don't try to hold me down/I wanna put my chest against the wind. / From east
and west once again./Mamma,/give me your blessing right now”. A segunda estrofe
reforça as metas traçadas acima - “Am gonna get ahead again. / Am gonna go my
way,mamma./Before you tie me to a chain,/before you close me down,/so wide you
should stretch your breast/and hold my life inside yourself again” e volta a pedir a
bênção à mãe, como se fosse uma prece. A canção se encerra, consolando a receptora
direta dessa mensagem: “I wanna kiss your face again,/am gonna go my
way,mamma,/don't worry, don't cry,don't complain,/don't try to hold me down./How
much you want your darling, baby,/clinging to your long skirt again./Oh,mamma/give
me your blessing right now”.
Em “Mamma”, Gil incorpora a sua família no canto público do exílio, do
desterro, da caminhada, assim como Caetano Veloso havia feito antes, citando irmã
(“Irene”), pai e mãe (“No dia em que eu vim-me embora”), expandindo a publicização
de sua afetividade pelo adeus à cidade natal (“Adeus, meu Santo Amaro”) e ao seu
estado natal (“Ai, quem me dera”). De passagem, nessa última referência, os “velhos
baianos” jamais deixaram de dar credito às canções de exílio de Dorival Caymmi, por
exemplo. A motivação-base dessa canção londrina é bem explicitada por Gil (2003,
p.140): “Era para a minha mãe mesmo, para lhe dizer que eu tinha ido embora e por
que eu tinha ido, por que estava tão longe naquele momento, tão saudoso dela e ela,
provavelmente, tão saudosa de mim”. Simultaneamente a esse movimento de
intimidade afetiva, há, em “Mamma”, uma caminhada no sentido desse músico
recém-imigrado se exteriorizar com relação a modos de composição, notadamente o
blues: “Feita numa estrutura de blues, a canção reiterava o modo de cantar dos negros
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e saga dos homens que vão embora – há muitos blues que falam disso, do homem
saudoso, distante de casa, dizendo: 'Vou pegar o trem etc.'” (GIL,2003, p.140).
Saldos do balanço
Curiosamente, após o discurso de “Mamma” centrado em declarações
afirmativas, prospectivas, esse primeiro disco londrino de Gil se encerra com uma
canção do roqueiro Steve Winwood - “Can't find my way home” -, poetizando uma
certa perplexidade notadamente em torno do sema way, que, em português, encontra
uma tradução bastante diversificada, a saber caminho, rumo, curso, andamento,
seguimento, carreira, método, processo, modo, jeito, processo etc:
Come down off your throne and leave your body alone - somebody must change
You are the reason I've been waiting so long - somebody holds the key.
Well, I'm near the end and I just ain't got the time, and I'm wasted and I can't find my way home.
Come down on your own and leave your body alone - somebody must change.
You are the reason I've been waiting all these years. - somebody holds the key.
Well, I'm near the end and I just ain't got the time and I'm wasted and I can't find my way home.
Em nosso entendimento, o ponto de maior contato dessa canção de Winwood
com o estado de espírito do desterrado Gil (o disco é de 1971,como dissemos, mas os
versos podem dizer respeito ao seu primeiro ano londrino,1969) encontra-se no refrão
em que o narrador declara a sua proximidade do fim (o que nos remete ao “fundo” de
“Com medo, com Pedro”, por exemplo), a sua emergência, o seu estado de
desorientação espacial, sem poder encontrar o caminho de volta para casa. É claro
que, com relação à realidade mais imediata, o problema de Gil não era saber volta
para casa, mas que não podia fazê-lo. Pelo menos, sem o risco de que poderia ser
preso de novo e, o pior, morrer.
Avançando um pouco além dos limites temporais de nosso corpus, gostaríamos
de destacar que a situação desconfortável vivida por Gil como colocada acima,
voltaria a ser referida, anos mais tarde (1977), por ele, em sua versão bem-sucedida
em termos de execução do reggae jamaicano “No woman, no cry” (B. Vincent), mais
precisamente em sua segunda estrofe: “Bem que eu me lembro/da gente sentado ali,
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/na grama do Aterro, sob o Sol, /ob-observando hipócritas, /disfarçados, rondando ao
redor. //Amigos presos, /amigos sumindo assim/pra nunca mais. /Tais recordações,
/retratos do mal em si, /melhor é deixar pra trás”.
Quase que ao mesmo tempo em que Gal Costa colocava a balada triste “London,
London” nas paradas de sucesso do Brasil, Elis Regina lançava ainda em 1970 um
samba de Gilberto Gil, “Fechado pra balanço”, que radiografava, por assim dizer, o
estado dele: “Tô fechado pra balanço/meu saldo deve ser bom/Tô fechado pra
balanço/meu saldo deve ser bom/deve ser bom”. Ao comentar essa canção, mais de
trinta anos depois, Gil (2003, p.131), assim de referiu: “O título e o tema da canção
são auto-explanatórios: eu estou ali, em Londres, porque me obrigaram a isso, me
prenderam, me tiraram de circulação, me mandaram para o exílio, e estou 'fechado pra
balanço' […] as acumulações, as riquezas da minha cultura, da minha realidade
cultural brasileira, que formavam o meu tesouro na situação de exílio”.
Assim como Veloso fala do seu cotidiano passeando por Portobello Road
(Notting Hill, então, um bairro alternativo e onde Gil e Sandra iriam morar após o
nascimento de Pedro), ouvindo reggae, ou de sua melancolia pelas ruas em “London,
London”, em “Fechado pra balanço”, também há espaço para pontuar a situação de
desterrado com um exemplo de como se dava a manutenção da sobrevivência, como
pagar as contas: “Gasto sola de sapato/mas aqui custa barato/custa um samba, um
samba e meio”. Era, na verdade, uma situação de penúria, que seria relembrada
muitos anos depois no livro citado acima quando Gil traça a rota de reabastecimento
financeiro: o dinheiro dos direitos autorais eram recolhidos por uma contraparente,
que o trocava por dólares, dentro dos limites legais de remessa de divisas, e o enviava
para Londres. Era com esses recursos que Veloso e Gil pagavam os aluguéis e se
mantinham de modo bastante modesto. A partir de 1970, Gil começou a fazer
apresentações na Alemanha, na Suíça e na França: “Isso complementava a renda. Ele
[Gil] e Caetano também fizeram shows na Inglaterra e gravaram discos. Mas o
dinheiro que segurava a barra era o que vinha do Brasil (GIL; ZAPPA,2013, p.146).
Nesse arremedo de contabilidade existencial, que é “Fechado pra balanço” de
Gil, há custos maiores como ele aponta nos versos seguintes: “E o resto/ O resto não
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dá despesa/viver não me custa nada/viver só me custa a vida/a minha vida contada”.
Essa associação custos e existência pode ser também observada no fecho do fado
“Argonautas”, composto por Veloso, durante o confinamento de quatro meses de
1969 em Salvador e uma das faixas do disco “branco”, lançado quando o seu autor já
estava na Europa: “Navegar é preciso/viver não é preciso”. Nessa prestação de contas,
há ainda dados que não conferem, digamos, se formos tomá-la como um
“documento”, como uma “verdade”, o que se nota aqui:” Um pouco da minha
grana/gasto em saudade baiana/ponho sempre por semana/cinco cartas no correio”.
Em outro sucesso de Elis Regina, “Ladeira da Preguiça” (1971), Gil confessava, entre
uma de suas preguiças no exílio, “preguiça que eu sempre tive/de escrever para a
família/e de mandar contar pra casa/que esse mundo é uma maravilha/e pra saber se a
menina já conta as estrelas/e sabe a segunda cartilha...”
Ao tempo em que, no samba “Fechado pra balanço”, Gil telegrafa um estado de
espírito de quem, no desterro, também aproveita para se examinar, para se questionar,
em outra canção anterior, “Com medo, com Pedro” (1969), composta e gravada no
primeiro ano de exílio, o criador de “Aquele abraço” já havia notado algumas certezas
dessa situação de infortúnio, como se tem na sua segunda estrofe: “Deus me livre de
ter medo agora/depois que eu já me joguei no mundo/Deus me livre de ter medo
agora/depois que eu já pus os pés no fundo”. O imã das rimas mundo-fundo acaba por
criar uma série de associações, cada uma delas mais terrível: “Se você cair, não tenha
medo/o mundo é fundo. / Quem chega no fundo encontra a porta do fim de tudo”.
Essa ideia de fundo de poço também pode ser encontrada na ideia geral que, talvez,
presida a criação de “Empty boat”, composta por Veloso ainda durante o período de
confinamento em Salvador e uma das faixas do “álbum branco” (1969).
Enquanto o correio do exilado Gil, em “Fechado pra balanço”, é mencionado
em duas oportunidades com sentidos invertidos, Veloso, em “Maria Bethânia” (do
primeiro disco gravado em Londres), cobra notícias da irmã famosa, pede que ela lhe
mande cartas. Fora do âmbito familiar e afetivo, em termos mais gerais, Veloso fez,
entre 1969 e 1971, a sua mala direta com o Brasil nas páginas do semanário carioca O
Pasquim, aspecto ressaltado em outra canção que lhe homenageia, “I wanna to go
back to Bahia”, de Paulo Diniz, especialmente nesses versos: “Eu tenho andado tão
só/Quem me olha nem me vê/silêncio em meu violão/Nem eu mesmo sei porque/ Via
Intelsat eu mando/notícias minhas para O Pasquim […] I don't want to stay here/ I
wanna to go back to Bahia”. A canção-elegia, lançada muito tempo depois daquela de
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Roberto Carlos, também foi sucesso de execução, agregando certamente um novo
público para Paulo Diniz.
Além do lançamento do primeiro disco londrino de Gil, o ano de 1971
assinala também para a dupla exilada a gravação de Transa, o segundo elepê de
Veloso, agora contando com a direção musical e violão de Jards Macalé, duas canções
em português - “Triste Bahia” e “Mora na filosofia (Monsueto Menezes - A. Passos) -
e mais, em inglês, “You don't know me”, “Nine out of ten” (já comentada mais acima),
“It's a long way”, “Neolithic man” e “Nostalgia”. “You don't know me” encerra alguns
dos enigmas aos quais os leitores de Veloso em sua correspondência para O Pasquim
já deveriam estar acostumados como esses versos: “The world is spinning round
slowly / there's nothing you can show me / from behind the wall”. As estrofes
seguintes são puras citações de versos de três famosas canções brasileiras: “Maria
Moita” (C. Lyra-V. Moraes,1964); “Reza” (idem) e “Hora do adeus” (O. Almeida-L.
Gonzaga,1964). Assim estruturada, essa canção-montagem talvez ficasse mais
funcional em meio a um roman à la clef...
A sensação de enigma que percorre “You don't know me” também está
presente em “It's a long way”, com a duração inusitada de aproximadamente seis
minutos, que se abre com versos em inglês e prossegue com a citação de quatro
canções famosas. A primeira longa estrofe é assim: “Wake up this morning/singing
an old, old Beatles song. / We're not that strong, my lord//you know we ain't that
strong/I hear my voices among other. /In the break of
day/hey,brothers/say,brothers/it's a long long long long way”. A repetição desse
último adjetivo inevitavelmente remete o ouvinte pop informado da época à canção
“The long and winding road” (Lennon-McCartney) – título, por sinal, mencionado
algumas vezes durante a execução. Como um ouvinte menos informado sobre a
biografia de Veloso, poderia perceber a mensagem implícita nessa canção?
Verão de 1972: a canção da volta
No verão de 1971-1972, Gilberto Gil e Caetano Veloso já estão de volta ao Brasil,
resolvendo estabelecer-se por algum tempo em Salvador. Mesmo assim, os tempos de
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desterro se fazem presente na primeira canção que aqui ele compõe e grava, “Back in
Bahia” (ecoando aquela canção de Paulo Diniz). Essa obra se inicia, fazendo uma
rememoração: “Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui/vez em
quando, quando me sentia longe, dava por mim/puxando o cabelo/nervoso, querendo
ouvir Celly Campelo pra não cair/naquela fossa/em que vi um camarada meu de
Portobello cair”. A Portobello Road, que já ouvimos na canção “Nine out of ten”, de
Veloso, como um lugar marcado pelo som do reggae, à época, aqui reaparece como
uma referência ao primeiro endereço conjunto de Gil e Veloso.
A primeira longa estrofe de “Back in Bahia” prossegue com mais
rememoração de um período triste: “Naquela falta de juízo/que eu não tinha nem uma
razão pra curtir. / Naquela ausência/ de calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra
sentir/tanta saudade...” Essa enumeração de ausências, marcadas também pela
proximidade fônica, proveniente de aliterações, nos remete, de uma certa forma, com
mais síntese, a alguns dos versos da canção “Debaixo dos caracóis do seu cabelo”,
quando Roberto Carlos, seu autor e intérprete, diz, a respeito de Caetano Veloso: “Um
dia a areia branca/Teus pés irão tocar/E vai molhar seus cabelos/A água azul do mar
[…] Um dia vou ver você/Chegando num sorriso/Pisando a areia branca/Que é seu
paraíso/Debaixo dos caracóis dos seus cabelos...”. A citada enumeração em “Back in
Bahia” prossegue com relação a elementos da natureza, que, da forma como são
citados, tornam-se essenciais no canto da nostalgia da Bahia: “Digo num baú de prata
porque prata é a luz do luar/do luar que tanta falta me fazia junto com o mar/mar da
Bahia/cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar/tão diferente/do verde
também tão lindo dos gramados campos de lá/Ilha do Norte”.
À (boa) lembrança das coisas da Bahia se associa, mesmo numa canção que
celebra o retorno, como “Back in Bahia”, uma dúvida em torno do sentido do exílio -
“[...]onde não sei se, por sorte ou por castigo dei de parar/por algum tempo” - , o
alívio de que ele se acabou, tão estranhamente como ele começara - “[tempo] que,
afinal, passou depressa como tudo tem de passar” e um balanço que não despreza toda
a experiência dos tempos de desterro: “Hoje eu me sinto/como se ter ido/ fosse
necessário para voltar/tanto mais vivo/de vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá”.
Ao comentar muito posteriormente “Back in Bahia”, Gil (2003, p.148) disse que ela
surgiu sob o impacto da emoção que lhe causara a alegria das pessoas durante a festa
em louvor à Nossa Senhora da Purificação, em fevereiro de 1972, em Santo Amaro
(BA); ele havia retornado ao Brasil no dia 14 de janeiro: “Eu estava na casa onde
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Canô, mãe de Caetano, estava dando a festa; vendo as pessoas queridas e a alegria que
emanava delas. Da lembrança da saudade que eu sentia dessas e outras coisas em
Londres veio o impulso para escrever a canção”.
Por sinal, parte doa versos iniciais de “Back in Bahia” foram parafraseados em
duas oportunidades por Caetano Veloso. A primeira vez foi no texto do programa do
seu show de retorno ao Brasil no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em março de
1972: “lá em londres, vez em quando, me sentia longe, dava por mim. / no rio de
janeiro: continua. / na sampa: mano a mano”. A segunda paráfrase foi na crônica
“Discretamente aqui”, na edição de 23-24 julho de 1972 do semanário alternativo
baiano Verbo: “Minha proximidade, a certeza de que sou real, vulnerável, traz de
volta à terra minha lenda. Para minha alegria imensa, pois lá em Londres vez em
quando dava por mim atravessando paredes, como um fantasma”.
Considerações finais
Ao final desse percurso de análise, em que buscamos trabalhar com algumas
representações da História do Brasil, no período mais brutal da ditadura militar, na
produção literário-musical de Caetano Veloso e Gilberto, não podemos deixar de
reconhecer um dos limites dessa nossa investigação: a ausência de maiores
observações sobre os componentes melódicos, rítmicos e harmônicas das canções
montadas em nossa amostra. Deixamos de fazê-lo simplesmente por incompetência
técnica nessa habilidade, mas não podemos também deixar de registrar a falta que isso
faz, deficiência desse tipo de estudo que já foi acentuada com clareza, a propósito de
outro ensaio e de outro autor, pelo mestre Antônio Cândido (1993, p.16): “[...] letra e
música formam um todo indissociável, cujo significado completo depende da sua
performance em estado de fusão (se podemos falar assim). A argumentação de […]
sairia, portanto, reforçada e confirmada pelas melodias, que ecoam a saudade, a
brutalidade, o lamento, a bilontrice, a alegria ou a tristeza do discurso, facultando à
canção o seu impacto integral”. Cândido encerra a sua ponderação, observando que o
estudo em pauta não se propunha nem parecia obrigado a ter um “estudo musical”,
porém, “de qualquer modo, a melodia faz falta, e, quando a conhecemos e podemos
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entoá-la, somos capazes de apreciar mais plenamente as razões expostas”. Por fim,
ainda com relação a questões de método, justificando a proposta de trabalho que se
fez aqui, dentro do tema “História e literatura”, infelizmente vamos fazer uso de um
discurso de autoridade, no caso Peter Burke: “O que deveríamos estar discutindo (em
vez da velha polêmica entre fato e ficção, ciência e arte) é, portanto, a
compatibilidade ou o conflito existente entre esses critérios e diferentes formas de
texto ou retórica”. E ele arremata: “No entanto, essa zona intermediária, a de 'ficções
de representação factual' (a máscara da imparcialidade, a pretensão a conhecimentos
de fontes internas, o uso de estatísticas para impressionar o leitor etc.) está apenas
começando a ser explorada de maneira sistemática”.
Por essas coincidências da vida, nos períodos que antecediam ao retorno de
Veloso e Gil ao Brasil dos dois anos e meio de exílio – o segundo pela primeira vez,
mas o primeiro já havia aqui estado em duas brevíssimas oportunidades e sob
vigilância policial – Vinícius de Moraes, Toquinho e Chico Buarque terminavam de
compor em Roma uma espécie de anti- “Canção do exílio”, uma “canção da volta”, o
“Samba de Orly” (1970), que, de certa forma, era um estímulo e tanto para se voltar a
um país ainda sob a ditadura militar. A canção se inicia, incorporando um dito famoso
de Dom João VI para um de seus filhos: “Vai, meu irmão/pega esse avião/você tem
razão/de correr assim/desse frio, / mas beija/o meu Rio de Janeiro/antes que um
aventureiro/lance mão”. No entanto, no fecho de “Samba de Orly”, o dado histórico
nos é mais contemporâneo: “Pede perdão/pela duração dessa temporada/um tanto
forçada/mas não diga nada/que me viu chorando/e pros da pesada/diz que eu vou
levando...”
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [2236-‐4846]
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