Muitas Mãos: Antologia Literária

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Uma coletânea de textos de alunos do Ensino Médio da Escola Autonomia (Florianópolis/SC), organizada, diagramada e revisada pelo professor Sandro Brincher. Ano 1, número 1, novembro de 2014.

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Muitas Mãos: Antologia Literária / Sandro Brincher (organizador).

Florianópolis/SC, Escola Autonomia, 2014. 56 p.

1. antologia. 2. literatura. 3. poesia. 4. conto.5. narrativa. I. Título.

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Cordula Reuwsaat Paul Diretora Administrativa

Eloiza Schumacher CorrêaDiretora Pedagógica

Inaura M. BelémCoordenaçăo do Ensino Médio

Sandro BrincherProfessor de Literatura do Ensino Médio

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: “MUITAS MÃOS”... MAS DE QUEM?.................................................................7

AMELIA BRIEGO – NAS SOMBRAS DA NOITE...........................................................................9

AVERSO – TEMPO...........................................................................................................................11

CORE – MATEMÁTICA APLICADA..............................................................................................12

ELENA SOUZA – ÚLTIMO GRITO.................................................................................................14

CLENA TECAVADI – TERRA REVIRADA, LEMBRANÇAS ABANDONADAS.......................15

LAURO CARRER – CINZA.............................................................................................................16

ALINE CARDOSO DE OLIVEIRA – TRANSE...............................................................................17

ALINE CARDOSO DE OLIVEIRA – A HISTÓRIA DELA............................................................18

MATHEUS BRITTO FRONER – TEMPO........................................................................................19

ARTHUR DELTREGIA REYS – MÚSICA......................................................................................20

OTÁVIO CARDOSO SENRA – BATATAS AMARELAS...............................................................21

OTÁVIO CARDOSO SENRA – TEM CABELO NAS MINHAS BOTAS......................................22

GUILHERME SOHNLEIN EXEL – 100 ANOS DE SÁBADO.......................................................23

AMANDA ROSAS – PEDRO, O MENINO.....................................................................................26

AMANDA ROSAS – ERVA DE ILHA, UMA ERVILHA................................................................27

CAETANO MACÁRIO DE OLIVEIRA – NO PONTO DE ÔNIBUS.............................................28

DANIEL DONOVAN – JUNHO........................................................................................................29

MICAELA LEITÃO – PETER..........................................................................................................30

LAURA MALMEGRIN – PREFERÊNCIAS....................................................................................31

CECILIA MARTINS – HERANÇA..................................................................................................32

JADE ALMEIDA – SIGNIFICADO..................................................................................................33

PAULO ALMEIDA – CATACLISMA...............................................................................................34

VICENTE AMORIM VILLAÇA – RERK........................................................................................35

GENNARO FATTORI – O BEIJO DA MORTE...............................................................................36

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MARIA LUISA FONTANA – GARBO.............................................................................................37

LUCAS GELINSKI – MEFISTO E A PRINCESA MARINA..........................................................38

ARES – AMOR ANTES DE AMAR.................................................................................................39

BIANCA MOTA – CHAZÃO............................................................................................................40

LARA PAGLIARIM – DESPEDIDA................................................................................................41

ANA LUIZA PANZENHAGEN – CULPA........................................................................................42

ISADORA PAZ – ROUBOS..............................................................................................................43

MONIQUE – MAXAMBA................................................................................................................44

LIZ BASTIANI – COZINHA VERDE..............................................................................................45

IZABEL BECKHÄUSER – O RÁDIO..............................................................................................46

ANA DE MIRANDA LOPES – GASTRONOMIA...........................................................................47

LUCAS MIRANDA – ROTINA........................................................................................................48

BRUNO R. CABRAL – TRÊS NOMES............................................................................................49

NICOLE ANTUNES – UMA CRIATURA........................................................................................50

NICKOLAS ASSIS – CORPO/MENTE............................................................................................51

STELLA NOBRE – TROPOSCO......................................................................................................52

ARTHUR BARBOSA MAGDALENO – A HISTÓRIA DE FERNANDINHO...............................53

VICTOR MUSSOLIN LOPES – TÉRMINO....................................................................................54

DIREITOS AUTORAIS.....................................................................................................................55

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"O que não consigo, escrevo-o;E os ritmos diversos que faço aliviam a minha

covardia."

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).

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INTRODUÇÃO: “MUITAS MÃOS”... MAS DE QUEM?

Este pequeno livro é uma amostra da criatividade, da boa vontade e, por que não dizer, da coragem de seus autores, alunos(as)e egressos do ensino médio da Escola Autonomia. A ela devemos um especial agradecimento pelo apoio nesta empreitada, que não se resumiu a fazer a impressão do material, mas que metodologicamente concede a nós, professores e alunos, a liberdade intectual necessária a esse tipo de trabalho. Apesar de sua simplicidade, esta publicação pretende ser a primeira de muitas. Material certamente jamais faltará. Neste número, por exemplo, além das contribuições espontâneas [passamos o chapéu e encheram-no de literatura], que transitam entre o conto, o poema, a crônica e a prosa poética, teremos algumas produções bem divertidas não por seu gênero ou conteúdo, mas pelo procedimento que as gerou. Foram criadas a partir de experiências de escrita automática e fluxo de consciência inspiradas no Surrealismo [um movimento artístico vanguardista do início do século XX]. Como assim? Simples: definimos um tempo de 2 minutos; escolhemos uma palavra geralmente desconhecida de todos e estabelecemos uma única regra: não parar de escrever em hipótese alguma. Valia tudo: repetir palavras, cortá-las, ignorar-lhes a ortografia, amontoá-las umas atrás das outras sem nenhuma lógica, escrever palavrões [que depois, para evitar constrangimentos aos possíveis pequenos leitores, acabamos censurando], enfim, tudo mesmo – exceto parar! Depois disso, claro, permitimo-nos algumas lapidações, já que o objetivo era também a fruição do leitor. A ideia era a de repetir as experiências dos surrealistas, deixando o inconsciente livre para se manifestar na escrita com a mínima interferência possível do raciocínio lógico. Apesar da aparente dificuldade de muitos no começo, alguns se empolgaram tanto com o conteúdo descoberto lá no fundo de suas próprias mentes que acabaram tornando esse exercício uma fonte pessoal de despejo de emoções. “Professor, eu ando fazendo isso em casa quase todo dia. É muito bom e bem divertido mas às vezes sai cada coisa assustadora”, disse uma aluna alguns dias depois de sua estreia na brincadeira. Mas que alívio saber que essas coisas assustadoras saíram da toca e foram descansar na folha branca, não?

Apesar de alguns dos textos terem sido estimulados por exercícios em sala, eles são fruto de um único trabalho: aquele que transformou uma imaginação fértil em linhas escritas, ou seja, o esforço criativo das pessoas que aqui escrevem. Deve ser deles o grande mérito: este livreto, afinal, não existiria sem suas produções.

Leiam, divulguem, comentem com os colegas e com os autores. Assim como agora os ouvimos, eles vão gostar de ouvir nossa voz também.

Um abraço.

Prof. Sandro Brincher – Literatura.Florianópolis, novembro de 2014.

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AMELIA BRIEGO – NAS SOMBRAS DA NOITE

A garota estava sentada nos degrais da porta dos fundos de um café lotado, meio escondida pelas sombras da noite. O ar estava frio e úmido, e suas roupas esfarrapadas não eram suficientes para evitar que seu corpo miúdo tremesse.

Quando ela era apenas uma menininha ela achava que a escuridão da noite lá fora tinha um ar excitantemente misterioso; todos os pequenos segredos vistos apenas pelo grande olho - a lua. A noite tinha um ar de promessa; promessa de aventura... Você pode ser tudo o que quiser; uma princesa fugitiva, uma cartomante, uma artista de Circo, uma feiticeira de terras distantes, uma ladra. Amanhã ninguém vai lembrar seu rosto ou seu nome; somente seus olhos brilhando no escuro e o que você escolheu ser.

Mas agora a garota não acreditava mais em contos de fadas. Agora ela era parte das sombras da noite, e ela descobrira a verdade: a escuridão é vazia, e fria. Agora ela era apenas o que parecia ser: uma garota pobre e suja sem lar ou esperança, encolhida em um canto em uma noite de inverno.

Luz amarelada vazava das janelas das casas e lojas. Lembranças de fogareiros acesos e da luz cálida de um lampião tomaram a mente da garota, dolorosas e ao mesmo tempo aconchegantes; aquela nostalgia melancólica de quando pensamos ter perdido algo bom para sempre... por um momento, ela chegou a ter saudade de casa.

- Senhoras e senhores, sem mais delongas! O melhor chocolate e o cara mais incrível da cidade estão aqui.

O garoto parou quando viu o olhar triste no rosto da garota. Olhou pras canecas que trazia como se de repente estivessem cheias de água de esgoto.

- É, eu sei que não é muito, mas é o melhor que eu consegui arranjar por um real.

Ela dirigiu a ele um sorriso desanimado. Uma brisa gelada soprou no cabelo escuro e desgrenhado do garoto. A garota queria dizer que não era culpa dele, mas tudo o que ela conseguiu foi tremer com o frio.

Ele sentou ao lado dela nos degraus e deu a ela uma das canecas. A garota fechou as mãos em volta daquele pedacinho de calor e se deixou saborear aquela sensação agradável por um momento. Eles beberam o chocolate em silêncio.

- Não fica triste - ele disse, baixinho - eu tenho certeza que a gente vai dar um jeito.

Ela queria acreditar nisso. Ela queria dizer "claro, vai ficar tudo bem no fim das contas", mas um final feliz parecia tão real quanto Papai Noel, ou uma refeição decente e uma cama quente. Ela não queria ser a pessimista, porém, nem a garota fraca que precisa de consolo, então fez seu melhor para soar animada.

- Eu não tô triste. É só que o inverno congelou o meu rosto nessa cara emburrada.

Ele não acreditou nela, é claro. Seus olhares se encontraram e eles viram seus próprios medos e receios espelhados nos olhos um do outro. Então, do nada, o garoto

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deixou escapar uma risada. - O que é? - ela disse, irritada.- Nada, nada - ele respondeu, aquele brilho no olhar que ela já não via há

algum tempo. Ela ergueu as sobrancelhas. Não ia desistir tão fácil. - Ta bom, ta bom! - ele disse com um sorriso - eu tava prestes a fazer uma

coisa, mas você iria me bater, provavelmente.Ela cruzou os braços e bateu a sola das botas no chão, exasperada.- Se você não me disser agora sobre o que você tá rindo, aí sim eu vou te

bater!Ele riu de novo. Enrolou os dedos na manga do casaco, e por um instante ela

achou que ele ia manter o segredo, e então ela teria que arrancar a verdade à beliscões.

Mas então ele a beijou. Bem rápido. Ela quase nem sentiu, mas quando ele se afastou, deixou uma sensação formigante nos seus lábios, como um choque elétrico. Ela o encarou fixamente, surpresa.Então a garota deu um soco nele.

- Ai! - ele berrou. Seu rosto estava escarlate, mas ele ainda estava sorrindo - Eu sabia!

A garota deixou escapar un sorriso. Naquele momento ela agradeceu pelas sombras que encobriam seu rosto.

Talvez, bem talvez, as coisas dessem certo. Talvez a garota e o garoto pudessem ser o que eles queriam ser. O futuro, assim como a noite, é um mistério. Mas naquele exato momento, eles queriam ser apenas o que realmente eram: um garoto e uma garota, sentados nos degraus da porta dos fundos de um café lotado, o rosto vermelho e um sorriso discreto.

E de repente, as estrelas brilhando sobre eles pareceram muito mais bonitas que as luzes das casas ao redor.

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AVERSO – TEMPO

Quanto tempo tem o tempo,Tempo é pensamento?Tempo pode ser medido,mas quem tem podido medir o tempo?A lógica do relógio tá errada,Por que o tempo voa numa conversa fiada?E quando chora a hora fica.Vai embora! Pelo contrário,o horário demora e estica,Se aponta pro ponteiro,ele apronta pro teu dedoDesaponta quem quer chegar tarde e quem quer chegar cedo.Todos com pressa e de saco cheio, Cê começa a perceber:Pra que relógio, se não pra verQuando começa o recreio?

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CORE – MATEMÁTICA APLICADA

Ser racional que era,Foi avaliar sua vida,Com um método comprovado

Dividiu seu objeto de estudoEm 360 partes iguais,Avaliou-os com três elementos:Razão, emoção e um terceiro:Sua vida por inteiro.

Conectou os elementos,Criando polígonos distintosAgora nos eixos de seu plano,Duas divisões:

R A Z A O - E M O Ç A O V I D A V I D A

Dividida como uma torta, De quatro pedaços,O primeiro tão equilibradoCom emoções que,Lentamente o tomavam

O segundo foi um mergulho,Num poço fundo,Onde tudo era sentido,Sentiu muito pela dor do mundo,Sorriu pela beleza em tudo

O terceiro foi o interesse,A falta de interesse,A vontade de não pensar,De deixar de canto,De a voz mudar,Pois se não há respostas,Só há o mal-estar

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E chegou o último,(junto com os enrugados dedos)O encanto pelo que tinha sentido,A lógica e seus métodos,As leis universais,Os números racionais e irracionais.

E o último chegou e saiu,Ele veio e foi,Ninguém mais notou,O que somou, subtraiu,Até atingir um número vazio.

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ELENA SOUZA – ÚLTIMO GRITO

Terno era o que sua mãe queria que usasse naquele dia, mas não era o que ele usava realmente, não, tinha um moletom e com o pé no acelerador finalmente acabou sua dor. O gosto doce de lágrimas, álcool, adrenalina. O amigo, meu amigo também, sentiu sua falta na cama ao lado. Ele já sabia, todos haviam de saber que ele se fora. O menino que terno nunca usaria esperou seu aniversário para sua morte; em janeiro, onde mora era frio, neve, álcool mais uma vez, toque de seu celular, toque de sua mão no volante, decidido. Tudo a sua volta girava até que colidiu na árvore. Agora sua mãe grita. Grita que ele deveria estar aqui e não no frio país ao norte. Grita porque sabe que parte da culpa era sua. Eu grito também, mas não sinto tanto sua falta quanto imaginei. Você fora na verdade uma ideia, um exemplo, uma pessoa que me fez querer pisar no freio que seu pé de acelerador nunca conhecera.

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CLENA TECAVADI – TERRA REVIRADA, LEMBRANÇAS ABANDONADAS

O dia já começava a escurecer e ele decidiu parar o carro. O ronco do motor se extinguiu e o silêncio tomou conta da estrada deserta. Raivoso, segurou o volante com toda a sua força, resmungou algumas palavras inaudíveis e finalmente deixou que seus braços caíssem ao lado de seu corpo. Abriu a porta do carro e, assim que colocou o pé para fora, sentiu o ar pesado e frio tomar conta dele. Seu cabelo preto se rebelava no vento, ao mesmo tempo que sua alma se inquietava. Respirar havia se tornado uma tarefa árdua, primeiramente pelo ar rarefeito e depois por ter que lutar contra seu ímpeto de fugir do local o mais depressa possível.

Contornou o automóvel e abriu a porta traseira. A poeira da viagem sujara-a, fazendo com que agora seus dedos estivessem pintados de terra. Retirou o pacote volumoso de dentro e jogou-o sobre as costas. A idade não ajudava em nada e a dor em suas costas era praticamente insuportável naquele momento. Com a mão livre que restava, pegou uma mochila marrom antes de trancar o carro. Ouviu-se um estrondo e assim que o senhor atingiu o limite da floresta, uma chuva fina e gelada açoitou o calçamento. Mesmo com as árvores para protegê-lo, a única mecha de cabelo loiro que contrastava com o terno preto do homem foi molhada.

Algumas horas se passaram e como a chuva havia acabado, as estrelas e a lua tomaram conta do céu noturno. Chegando a uma clareira, ele se ajoelhou e soltou o pacote no chão. Estava todo molhado e sua mochila mais ainda. Abriu-a e retirou de lá uma pá. Ele não conseguia mais pensar sobre nada, só cavava como se toda a sua vida se resumisse a isso e nenhum de seus problemas existisse.

Quando havia acabado colocou o que escondia dentro do pacote na cova. Lágrimas escorreram por sua bochecha e a foto de uma pequena menina loira foi delicadamente depositada ao lado de uma plaquinha de madeira. O dia começara a clarear e, olhando uma última vez para a clareira, ele se virou e foi embora, para nunca mais voltar. Mais uma vez a chuva caiu e, como uma velha amiga, abraçou o cadáver recém abandonado. As letras pretas na plaquinha de madeira começaram a se desmanchar e antes que fossem completamente lavadas, pôde-se ler: “Em memória de Cristina, minha amada filha.

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LAURO CARRER – CINZA

Olho pro canto no recanto, orgulho com pranto, me levanto em demasia na azia, evita, contamina cada olhar, cada humano, mesma ideia, mesmo sempiterno, erramos e aprendemos, mesmo assim não nos reconhecemos, ainda assim só acreditamos em quem hoje só usa terno, conhecemos o que é do outro, na prosa, sinta o cheiro da rosa que transpira pelo olhar, malvada e maligna para nos derrotar, a crueldade da cidade cinza no bar, mais uma dose e o tempo não há de passar, que aconteçam as coisas no seu tempo, se deixa levar por vícios, malefícios, acreditando que algum dia irá lhe trazer benefícios, as chaves para a vida e apenas uma para a morte, e na cidade cinza foi ficando mais forte, melhor abrir a fechadura antes que a chave entorte, sobrevivendo na vida sem poder vivê-la, melhor abrir a fechadura com orgulho do que ter a vida e perdê-la.

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ALINE CARDOSO DE OLIVEIRA – TRANSE

O que há lá em frente? Essa nuvem, além de mais escura que o normal, move-se em uma velocidade muito alta. Por que ela está cada vez mais perto?

Estava imóvel, apenas com o foco de meu olhar alterando-se conforme aquilo se aproximava.

Quando a nuvem chegou mais perto ainda, consegui perceber que não era exatamente uma nuvem. Pássaros pretos, fazendo estardalhaços com suas gargantas estavam a voar desesperados, pareciam voar em minha direção. Nossa, não apenas pareciam.

Permaneci imóvel, de que adiantaria correr? Fiquei ali admirando a euforia do bando ao entrar em mim. Com os primeiros tive um sentimento absurdamente estranho, depois destes tantos comecei a me acostumar. Estes iniciantes me empurraram para trás com uma certa força, minha sorte era que já estava tão envolvida no grande manto preto daquelas aves que nem senti meu corpo tocar o chão, mas sei que estava deitada nele. A pressão deles entrando em mim era incrível, ia além da percepção física. Quem os olhava e olhava minha boca nunca iria imaginar que ali passariam com tanta facilidade.

Sorte que ninguém olhava, sorte que não havia ninguém. A sensação era incrível, tão boa que nem cheguei a pensar no momento em

que aquilo ocorria. Não havia concluído se era algo benéfico ou não até a hora em que a experiência teve seu fim.

Algum tempo havia passado, não fazia noção do quanto. Mas quando saí daquele transe, se é que posso usar essa palavra para definir, queria voltar. Infelizmente todos os pássaros já estavam em mim.

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ALINE CARDOSO DE OLIVEIRA – A HISTÓRIA DELA

A menina caminhava pelo bairro, sem rumo ou foco. Nada à sua volta estava perceptível e nem ela mesma sabia o que passava em sua mente naquele momento. Após alguns instantes ou muitos minutos – não saberia dizer, não que fizesse alguma diferença – olhou para frente e percebeu que se encontrava em uma praça parcialmente abandonada, onde só os moradores mais próximos saíam uma vez ou outra para levar seus cachorros em um curto e chato passeio. Olhando para frente, a poucos centímetros de seu rosto, na realidade, havia um tronco velho e enrugado. Era uma árvore muito, mas muito antiga e com certeza mais que a própria praça. Sentou-se ali mesmo e, com o passar do tempo, começou a pensar que jamais havia amado de verdade. Não que as pessoas em sua vida não fossem importantes, com certeza eram, e até poderia ser por esse motivo que a falta de amor lhe fazia tanta falta. Ali, debruçada no tronco robusto da árvore, a menina desejou com todas as forças conhecer o amor. Fechou os olhos lentamente e naquele lugar sentiu absolutamente tudo o que a árvore havia sentido sua vida inteira. Era como se todas as brisas, todos os pássaros, todas as bolas e gotas de chuva que ali tocaram agora fizessem parte do seu passado. A menina, aos pés da árvore, foi lenta e prazerosamente definhando até o momento em que passou a alimentar-se do sol.

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MATHEUS BRITTO FRONER – TEMPO

E esse tempo que passaEsse tempo que não esperaEssa hora que logo acaba

Parece que não dá pra seguir a meu tempoDesse jeito que os dias vão ao relentoAs horas como folhas jogadas ao vento

Sempre querendo que um momento volteParece às vezes que o ponteiro mordeCada hora passada como que um golpeEnquanto isso toda essa gente corre

Correm tanto para onde?Correm tanto por quê?Será que percebem o quanto o tempo corre?E assim me parece que a vida escorre

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ARTHUR DELTREGIA REYS – MÚSICA

Tocava o tímpanoSeu som era sua vidaFoi levar o filho pra lhe escutar

Elevou o peitoSuspirou em orgulho demasiadoPôs o pequeno aproximadoTocou, mais alto som nunca havia feito

Pois estourou o(s) tímpano(s)E vendo o filho, irremediávelSe revoltado ou transtornadoNão lhe pediu perdão

Foi tocar o surdo,Foi levar o filho pra imaginar

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OTÁVIO CARDOSO SENRA – BATATAS AMARELAS

O céu é como o teto da terra, de noite é cheio de furinhos e ao dia um olho que não gosta de ser encaradoAs batatas só crescem quando são observadas, sem esta ajuda não haveria mais batatasA agricultura é uma arte como grandes pinturas, ela merece ser apreciadaEra uma vez um japonês francês, ele planta pimenta e cresce feijãoBatatas são amarelas, mas ficam vermelhas em campos de guerraCuidado com o óleo da panela, vote no senhor Mandela!

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OTÁVIO CARDOSO SENRA – TEM CABELO NAS MINHAS BOTAS

Cabelos são fininhos fios, que crescem no nosso corpoNunca use xampu para cachorros, nem coma sais de banhoCuidado com os caranguejos, eles comem só queijoArroz, feijão e farinha, só para fazer comidaDeus seja louvado, os esquilos usam sapatosAbençoe o sapateiro, ele não sente cheiroOito é um número em pé, vamos fazer mais charutoO Fábio Amorim é empresário, por isso temos botas cabeludasAnde com calma, e cuidado com os taradosUse o melhor calçado, antes que cresçam cabelos nas minhas botas

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GUILHERME SOHNLEIN EXEL – 100 ANOS DE SÁBADO

Sábado havia sido um bom dia. Daniel não estava com sono nem com frio, mas rolava sorridente em sua cama, pensativo. De manhã havia saído para caminhar com seu vizinho e os dois se tornaram amigos rapidamente. No final da tarde, foi com seus colegas de trabalho no bar e os apresentou seu novo amigo. Voltou pra casa não muito tarde e ainda conseguiu arranjar forças para ir à academia. Nada muito excepcional ou incrível havia acontecido naquele dia, mas Daniel se sentia confiante e capaz de qualquer coisa. Demorou para que ele conseguisse pegar no sono, mas ele não se importou. Nada podia o abalar.

Ele acordou suado, como em todo dia de verão. Em dias de semana, isso era muito desconfortável, já que ele não tinha tempo de tomar banho de manhã. Feliz porque era domingo, ele pegou suas roupas e foi para o chuveiro. Ao sair, se sentindo bem acordado e ainda confiante por causa do dia anterior, ele percebeu: não era domingo. Era sábado. Ainda era sábado. Aquilo não podia estar certo, ele tinha bastante certeza de que ontem havia sido sábado. Correu para a televisão e sintonizou no canal de notícias.— Não existem registros de algo como isso ter acontecido no passado, mas não se preocupe, a órbita da terra não foi abalada. — Disse uma mulher com aparência de pesquisadora.— Mas isso não pode desregular as estações ou algo assim? — Inquiriu o entrevistador.— É muito cedo para dizer, mas tenho certeza que há uma simples explicação científica para o ocorrido, nós só precisamos de mais dados antes de tirar conclusões precipitadas.— Bem, acho que só resta esperar e ver o que acontece. Afinal, que mal pode fazer apenas mais um dia de folga na semana, não é?

A entrevistada riu forçadamente, afinal nem ela nem o entrevistador estavam de folga. Daniel passou por outros canais, mas eles pareciam ou não se importar, ou não davam qualquer informação nova. Ele decidiu então tomar a mesma posição que o jornalista e aceitar que um sábado havia sido adicionado à sua semana.

Enquanto preparava panquecas para seu café da manhã, a campainha tocou. Era seu vizinho.— Oi, como vai? — perguntou Daniel, ao abrir a porta.— Com um sábado a mais, é como vai. Você viu que hoje é sábado? — Sim, estava passando no jornal. Temos mais um dia de folga na semana.— Isso é horrível. Eu tinha uma consulta no ortopedista marcada pra segunda-feira e agora vou ter que ficar mais um dia com as costas desse jeito. Isto é, se amanhã também não for sábado de novo.— Bem, não há como saber. Afinal, se aconteceu uma vez, pode muito bem acontecer de novo.

Os dois tomaram café da manhã juntos. De tarde, Daniel assistiu séries no Netflix por três horas. Decidiu parar e dar uma adiantada em seu relatório para quarta-feira, mas acabou procrastinando e não fazendo trabalho algum. Foi dormir logo que escureceu.

No dia seguinte, ao acordar, percebeu que ainda era sábado. Não estava surpreso, embora estivesse profundamente preocupado. Pegou seu celular e começou a ler as notícias. A mídia havia esquecido completamente do vírus Ebola, do Estado Islâmico e a

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renúncia do presidente de Burkina Faso. Só o que se falava agora era nos sábados.“As possíveis consequências econômicas deste misterioso ocorrido podem ser

drásticas se a sequência dos dias da semana não retornar logo. Este já é o terceiro dia que as escolas não abrem, além de muitos serviços essenciais não estarem funcionando, como os correios e os bancos. Aos sábados, a maioria das empresas fecha ou têm suas horas de funcionamento reduzidas. Se isso continuar assim, pode haver uma drástica queda na produtividade e demissões em massa.”

“É indiscutível que todos estão terrivelmente abalados com o ocorrido, mas as consequências para nós, judeus praticantes, são muito mais graves. Durante o Sabá nós não somente descansamos, como também nos abstemos de muitas outras atividades. Atender a telefonemas, por exemplo.”

“Na madrugada deste sábado, a presidenta Dilma Rousseff anunciou que não existem perspectivas de que a ONU tome qualquer atitude sobre o ocorrido tão cedo, e que não há tempo de tomar medidas remediadoras pelo viés convencional. Ela afirma que se a situação continuar, ela estará preparada para declarar Estado de Calamidade Pública a partir de amanhã e conta com a cooperação do povo para evitar uma desastrosa recessão.”

Daniel colocou seu celular de lado. Ele tinha que admitir que, embora preocupado, também estava um pouco animado. Aquela era uma situação extremamente excepcional e curiosa. Ninguém fazia ideia de por que aquilo havia ocorrido, tampouco de o que aconteceria em seguida. O dia seguinte seria decisivo. Se um quarto sábado seguido acontecesse, o mundo inteiro começaria a se mobilizar. Mas como consertar o problema? Não poderiam simplesmente tornar o sábado um dia útil, pois desta forma não haveria fim de semana. De qualquer forma, aquela decisão não cabia a Daniel. Bateu na porta de seu vizinho, mas ele parecia estar fora. Deixou um bilhete e, duas horas depois, ele apareceu à sua porta.

— Mais um, hein? — Daniel foi direto.— Mais um. Você viu as notícias?— Sim, parece que a partir de amanhã entraremos em Estado de Calamidade

Pública.— E você ouviu falar no que anda rolando na ONU?— Mais ou menos. Eu sei que a Dilma não bota fé.— E com razão! Os representantes dos países estão debatendo sem parar desde a

primeira hora do primeiro sábado repetido e não chegaram à conclusão alguma. Todos os economistas estão trabalhando para achar alguma solução, mas nenhum teve sucesso até agora.

— Acho que agora é esperar pra ver. — Concluiu Daniel.— É a conclusão em que chegamos da última vez. Isso não te faz sentir

completamente impotente? Não há nada que possamos fazer e nenhuma pista do que vai acontecer em seguida. Acho que a humanidade nunca esteve tão desamparada desde a peste negra.

Assim, mais um sábado passou, e quando o dia seguinte finalmente chegou, ainda era sábado. Daniel passou mais um dia dentro de casa, e mais uma vez conversou com seu vizinho sem chegar à conclusão alguma. Não foi neste dia que o Estado de Calamidade Pública foi decretado, mas no próximo, em que Daniel decidiu visitar seus

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pais. Evidentemente, eles estavam muito chocados, mas por mais interessante e único que fosse aquele acontecimento, não havia o que comentar.

As decisões anunciadas durante o Estado de Calamidade Pública seriam apenas paliativas e custariam muito dinheiro para o governo. Muitas pessoas se opuseram. Porém, nada disso importou, pois a grande notícia veio antes que estas decisões começassem a ser implementadas.

Daniel estava no banheiro quando recebeu uma ligação do seu vizinho.— Rápido, ligue a televisão!Antes que ele pudesse responder, seu vizinho desligou. Evidentemente, Daniel

ligou a televisão. A notícia era que finalmente a ONU chegara à um acordo que acabaria com o problema de uma vez por todas. Aparentemente, um economista do Azerbaijão havia encontrado uma solução extraordinária. Pelo que Daniel conseguiu entender, a ideia era fazer dias da semana “artificiais”. Logo, por mais que todos os dias fossem sábados, os países fariam um acordo para chamar o dia seguinte de segunda-feira, o próximo de terça-feira, e assim por diante. Não seria difícil acompanhar que dia era qual, afinal todo o mundo estaria fazendo a mesma contagem. Desta forma, se alguém se perdesse na contagem dos dias, poderia tanto olhar no site oficial da ONU quanto perguntar para qualquer outra pessoa. A Microsoft logo anunciou que desenvolveria uma atualização para o Windows com o objetivo de fazer seu calendário obedecer à nova contagem artificial, ao invés de obedecer à contagem real e permanecer travado no sábado. Dezenas de notícias como esta eram divulgadas a cada minuto. O mundo inteiro havia entrado em um esforço coletivo para implementar a nova contagem.

O clima era de comemoração, todos estavam aliviados. Dentro da ONU, a proposta foi aceita unanimemente. Daniel tinha que admitir que a ideia era simplesmente genial. Na gravação do momento em que o tal economista apresentou sua proposta, era possível ver que todos na sala aplaudiam de pé. O governo brasileiro imediatamente revogou todas as decisões tomadas durante o Estado de Calamidade Pública e adotou apenas a nova contagem.

No dia seguinte, Daniel foi para o trabalho como em qualquer segunda-feira, embora esta ele não tenha odiado. A partir de então, a vida de todos voltou ao normal e foi como se nada tivesse acontecido.

Mesmo que os sábados nunca tenham deixado de se repetir, ainda se tem esperança de que, algum dia, o domingo finalmente chegará.

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AMANDA ROSAS – PEDRO, O MENINO– um conto frio para flores.

Contarei-te uma história que não só é contada para pássaros dormirem, mas também como o falar das flores. Sabe-se mais dela do que quaisquer bastardos rumores. É uma história multicor. E mistura-se somente com o amor e seus afins.

Bem, digamos que tudo e nada era distante o bastante para Pedro o menino. Destemido, nada sabia sobre nada, passava despercebido de problemas mais corriqueiros, avoado como uma pluma. Mascarado e observador, Pedro o menino sabia de tudo, até mesmo a quantidade de seus fios, justamente porque não os tinha.

Todos os dias, Pedro o menino soltava um balão para os céus, em nome das árvores. Dentro de cada um deles, havia um recado escrito com sua áspera mão esquerda. Era assim a cada amanhecer de um novo dia. Essas firulas diárias caçavam seu grande amor, Flor da Floresta. Ele a perdeu em sua oitava existência primaveril, uma tristeza sem fim. Mal sabia ele que Flor da Floresta seria aquela que traria a mais pura e infinita felicidade para sua alma. Quando ele a perdia, sua identidade desaparecia, junto com seus traços. Quem seria ele sem sua flor? Quem seria ele sem sua essência mais que extraordinária? Nada sabia ele e tudo temia... O pobre Pedro o menino agora estava perdido como o seu amor.

Como mandou seu sentir, Pedro o menino foi em busca de seu desejo inalcançável...

A Flor da Floresta, que o guiava para tudo e nada, falou mais alto do que todos os outros seres vivos e verdejantes ali presentes. Sem pensar duas vezes, ajoelhou-se calmo e sereno em busca de sua grande e bela amante. Pedro o menino, agora entendia tudo, justo como deveria ser, e foi. Foi-se como a brisa. Foi-se como o vento que sopra e faz chiar, foi-se e será sempre como a ventania e sua ira. Foi... e se... e se absolutamente nada, foi-se tudo.

Até adormecer.

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AMANDA ROSAS – ERVA DE ILHA, UMA ERVILHA

– Um dia quero ser grande como um pé de ervilha. Crescer, crescer e crescer e ter várias irmãs filhas.

Apesar de pequeninas, são grandes e unidas plantas. Estão quentinhas no casulo, tímidas e medrosas.

– Marieta, Marieta, és verde de envergonhada. Marieta menina moça, não te prendas nesta ciranda redonda, tua essência louca!

– Ser ervilha é um dom da terra, que cresce em formato de folha, se desdobra pé por pé, como a mais pontiaguda agulha.

Como as árvores da meia tarde, ser ervilha é nascer sem pressa, é despertar acompanhada, formando dança e peça.

Ser ervilha como um todo, para desta me sentir segura, nunca estou só, e enxergo tudo em torno.

Ser ervilha, um pé bem grande, em horas vagas foi meu sonho, foi desejo, foi saber.

-Mas agora, de minha insegurança nada sou... E se fosse para nascer ervilha, segurança reinaria quem sou.

Quero tanto, tanto ser maior, e encostar minha própria mão em outro lado do universo... Me esticaria do mindinho ao ""cucuruto"", para achar meu ramo, ninho.

Sou de lua e por isso ervilha não posso encontrar, pois no meio desta estrada, Marieta eu ficaria sem pé.

– Já pensou nesta façanha?– Já pensou em nascer vegetal?

Moro no mar e queria,Queria ser erva de ilha.

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CAETANO MACÁRIO DE OLIVEIRA – NO PONTO DE ÔNIBUS

Amanhece e o dia parece ser mais um daqueles preenche-calendário, nos quais a surpresa não parece pintar e deixar sua marca. Os sonhos te assustam, os minutos não passam porque o que tu mais querias era estar lendo poemas e deixando o tempo urgir. Pobre aparência esta que nos engana, nobre é o momento infante.

Sentado eu, solitário, divagando sobre o que iria fazer, sou surpreendido na meia tarde, no ponto de ônibus. Uma senhora, que apesar da idade carregava um charme desses das moças jovens que catam flores no crepúsculo, vinha dos seus estudos e já, antes de chegar, antecedeu um “bom dia”. Retribuído o “bom dia” seguiu a conversa: falamos um do outro; eu mencionei meu desejo acerca da filosofia e do meu apego às palavras, ela falou dos seus quadrinhos, seus traçados e do seu igual apego pelas palavras. “Tem vezes que eu até escrevo a história e os desenhos eu deixo pra depois” diz ela.

Ingressamos no mesmo ônibus, compartilhamos o mesmo assento e o assunto da viagem foi poesia, não poderia ser outro. Recitei um poema meu, ela retribuiu com fragmentos de sua poemia. Encanta-me a simplicidade e foi com essa simplicidade que nos despedimos. Ela cedeu seus ouvidos para minha voz enquanto eu recitava:

Pedem-te bis e um bis não se despreza! Vamos! retesa os músculos, retesa Nessas macabras piruetas d'aço. . .

E embora caias sobre o chão, fremente, Afogado em teu sangue estuoso e quente, Ri! Coração, tristíssimo palhaço.

“Acrobata da Dor, Cruz e Sousa”, encerrei. Assim terminou a viagem. Beijei-lhe o rosto e saí do ônibus com a boca aliviada por aqueles segundos de ouvidos atentos. O meu coração ria, ria satisfeito tal como um palhaço se satisfaz com o riso da plateia. E segui assim por esse dia que não parece ser e nem se encerrar.

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DANIEL DONOVAN – JUNHO

Derrotado pela abstinência do poder, atenho-me ao prazer encontrado nas coisas pequenas, simples e práticas, como você mesmo fez naquela manhã de junho de sol forte e ventos gelados, jogou todo o progresso pelos ares e agiu como se nada tivesse realmente acontecido, ignorou e não se deteve ao ignorar, tudo estava tão nítido agora! Não deixara de olhar para as montanhas encobertas por uma suave e macia camada de neve, deitava e rolava, sentia aquele frio aconchegante tocar sua pele, não sabia o porquê daquilo, mas se sentia tão vivo como nunca. Era como se estivesse realmente livre de todo aquele aperto, aquela adrenalina incessante. E agora, de minhas lembranças passadas, somente acho graça, posso finalmente viver meus últimos tempos em paz, em minha casa, nas montanhas encobertas pela suave neve do mês de junho.

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MICAELA LEITÃO – PETER

Peter era um bom menino, poliglota, vindo de um país estranho. Um país da Europa, em que todos vestiam saias no lugar das bolachas champagne em cima do bolo. Ele era grande e se virava sozinho. A motivação era tanta que o fazia vibrar sem medo... Quanta coisa dizia sem poder, “mas bah, quem liga se chegar o dia em que ninguém mais quiser minha companhia”, pensava ele.

“Quantos aniversários tenho pela frente? Nem sei como vai ser o dia de amanhã”. Era por isso que Peter não gastava tempo sempturando, a vida não dá tempo para isso, bolas! “Eu sempre soube que você iria longe meu filho”, disse sua tia moradora do Brasil. Ele não entendeu, pois sua poliglotomia não incluía Português. “Ai, meu Deus, descobri que não vou morrer tão cedo, terei de me matar quando cansar dessa existência que há de se tornar desinteressante um dia desses”; mas nossa, sua tia dizia que daria tudo para ter nascido nos tempos antigos, mais ou menos no século XVI. Devia ser bem lescau demais do que hoje, quando criancinhas realmente podiam... cara, podiam sentir-se livres e contar como essa velha não parava de falar.

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LAURA MALMEGRIN – PREFERÊNCIAS

Doença que come as unhas da menina de cabelo azul com lacinhos. Ela vai no balanço e vira um pássaro. Cadeia alimentar das minhocas, que são dedos, com unhas que a menina come em um prato. Alice gosta de gatos, que têm garras, mas a doença não come. Alice prefere gatos. Não os meninos. Meninos são nojentos. Gatos são limpinhos e têm garras. E de vez em quando um olho de cada cor. Eu já conheci um Husky assim: um da cor do cabelo dela e outro amarelo como o Sol. Aposto que gatos não sentem câimbra.

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CECILIA MARTINS – HERANÇA

Foi à loja comprar um terno para a ocasião especial. Um traje belo, para chamar a atenção. O terno, preto e igual a todos os outros, foi o que mais lhe agradou. O que ele viu nele não se sabe, mas achava aquele terno sem graça a coisa mais linda que seus olhos já haviam encontrado. Quando chegou, esperou que todos o olhassem e admirassem, mas ninguém se encantou pelo terno como ele.

Em todas as suas próximas festas, usou aquele mesmo terno e, ao morrer, deixou-o para seu filho, que também o admirava.

Não se sabe de onde o terno veio, só que ele nunca se desfez. Passando de geração em geração, os homens daquela família usaram sempre o mesmo terno: o terno sempiterno.

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JADE ALMEIDA – SIGNIFICADO

Mergulhou no mar, e lá parecia-lhe, no momento, o único local capaz de lhe fornecer a serenidade e tranquilidade das quais precisava. Estar no mar parecia-lhe receber o verdadeiro abraço do mais sagrado peixe já criado. Lá, submersa, ela tinha uma visão completamente diferente do mundo em que vivemos. Era tudo fascinante, discreto, encantador e puro. Lá, nada podia fazê-la infeliz. O simples fato de respirar e sentir o ar da alma entrar em seu corpo e espalhar-se até chegar ao seu coração já a fazia admirar imensamente a vida e então ela se deu conta de que havia encontrado o real significado da palavra PAZ, e assim passou a viver e a se importar unicamente com a sintonia entre o seu coração e o do mar.

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PAULO ALMEIDA – CATACLISMA

Um tipo de verme novo que foi descoberto no mundo, mas por incrível que pareça, ele só afeta os heteros, assim todo o resto da população mundial está a salvo deste micróbio e verme ao mesmo tempo. Este animal foi descoberto no ano de 2018 quando um viajante do Afrodescendesco comia sua bolacha feita pelo Faustão, era uma bolacha de sabor ovo e que vinha com uma figurinha de verdade do Sérgio Malandro, um professor trolão que ensinava a calcular as massas, por isso era o dono de um restaurante Italiano – quer dizer, holandês – e que ao fazer seu ovo bem batido deixou cair caspa na comida do Felipão, treinador do Niemayer, aquele rapaz que fez um museu para o Digão, que estuda com Jejus; tudo por causa de uma reza feita pela sua vó pro Brasil, onde joga o Neymar – joga muito esse garoto.

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VICENTE AMORIM VILLAÇA – RERK

Eu tinha um amigo unicórnio na época da faculdade que fazia exercícios anaeróbicos. Um rapaz deveras esbelto, que retinha suas tetas flácidas no liquidificador.

Ouvindo o hino do Cazaquistão, cantava aos poucos a canção da Chica Pelega. Era um processo lento e de anos, mas sua voz emitia gemidos claros, clássicos e lúcidos, que queimavam no ovo da verdade.

“Me chamo Rerk, e essa é a minha história” – Dizia sempre. Ele era engraçado, pena que queimaram ele em uma churrasqueira. Que

descanse em pás e em paz. Um belo trocadilho, digno do Rerk. Mas ele era babaca. Nunca me apeguei a ele, embora eu tenha me apaixonado por ele certa vez. Tempos obscuros...

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GENNARO FATTORI – O BEIJO DA MORTE

Homero agora descia as escadas aos tropeços, como se fosse seu último dia de vida; se arremessava para frente, pulando vários degraus; seu tornozelo doía a cada impacto com o solo. O motivo desse desespero vinha da vista através da janela embaçada de seu escritório. Havia visto sua futura esposa ser arremessada a três metros de distância, o asfalto estava úmido, então sua amada deslizou pelo chão, deixando algumas partes proeminentes do corpo em carne viva. Ao chegar à rua, a cabeça de Homero latejava e a adrenalina ocupava seu peito.

O sangue corria como um rio sem afluentes sobre a testa dela, e os olhos, ainda com um pingo de vida, fitavam Homero que, em prantos, ainda incrédulo, tentava salvar sua amada (só faltava descobrir como, era visível o desespero em seus olhos). Quando se tocou que não havia mais nada a fazer, simplesmente deixou sua face cair sobre os seios de sua prometida. O coração dela já estava inativo, enquanto o dele batia tão forte que se podia ver o movimento em seu tronco. Só levantou a cabeça quando começou a escutar o som agudo da ambulância dobrando a esquina. Antes de ela chegar, ainda deu uma olhadela para o corpo estirado no chão e beijou a face translúcida de sua mulher. E esse foi o último e mais dolorido beijo que Homero deu.

Chovia tanto que o motorista da ambulância não conseguiu enxergar o casal no chão, e em alta velocidade chocou-se, matando os pombinhos (corvinhos seria mais cabível), ou melhor, somente um deles.

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MARIA LUISA FONTANA – GARBO

Elefante colorido meio amarronzado, de cor garbo, estava em uma floresta – embora este não seja seu habitat natural –, correndo livremente em busca de sua liberdade. Seu MAIOR sonho era poder voar, por mais que as circunstâncias não estivessem a seu favor. O fato era: ele era um elefante, com patas largas e grossas, com tromba, orelhas de grande porte e o pior, sem asas.

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LUCAS GELINSKI – MEFISTO E A PRINCESA MARINA

O príncipe das trevas Mefisto raptou a princesa Marina em seus calabouços negros e escuros, pois ele tinha um plano: dominar o mundo. Enquanto Marina estava presa, o príncipe maquinava planos e praticava necromancia para levantar um exército de mortos que marchariam sobre a terra, dominando e destruindo todos os seres vivos. Ele queria que o mundo mergulhasse em um caos profundo e a Terra fosse dominada por um espectro negro. Mefisto seria o rei e seus mortos vivos, seus leais súditos, mas houve pessoas que resistiram ao domínio de Mefisto.

Eram pessoas comuns, com nenhuma instrução militar, e a maioria das pessoas que compuseram esse exército da liberdade era, em sua maioria, camponesa. Enfim, os “soldados” juntaram arcos de caça, enxadas, pás, foices, martelos contra a selvageria de machados, espadas, escudos e bestas. Sua batalha foi na cidadela negra de Mefisto e os soldados se muniram de uma esperança divina. Eles oraram para seu deus e partiram para salvar o mundo e Marina de um mundo doente, vil e tirânico. Naquela batalha, muitos caíram e muitos perderam amigos, pais, mães, irmãs e irmãos. Entretanto, com persistência e um ímpeto de dar inveja a povos bárbaros, o exército da liberdade entrou nas masmorras de Mefisto.

Lá a resistência era minúscula. Eles passaram sala ante sala até que chegaram ao trono de Mefisto, mas também a princesa Marina. Sentado em seu trono, falava com Marina.

– Eu venci! Em breve o mundo padecerá e eu reinarei ao seu lado. Juntos faremos um novo mundo sobre as cinzas do velho.

Marina não agüentou aquelas frases e falou logo em seguida: – Você está errado! Enquanto houver pessoas para lutar por aquilo que é certo

justo e de boa fama você nunca vencerá, Mefisto! As luzes sempre triunfam sobre as trevas!

Logo que ela falou isso, entrou o único homem da nobreza ali que também era militar acompanhado pelo seu exército de homens livres. Jared era seu nome, e era um amigo de infância de Marina. Mas devido a ser de uma casta inferior, acabou trilhando a carreira militar, tornando-se muito bom no que fazia. Ele era capitão antes de se juntar à causa livre na Guerra Negra, como seria conhecido esse tempo muito turbulento. Enfim, ele pegou sua espada e duelou com Mefisto. Ele sabia o que fazia: era viver ou morrer naquela luta. Por isso Mefisto, como já havia previsto Marina caiu na guerra, e o mundo estava livre da necromancia para sempre. Jared aproveitou seu momento de heroísmo e felicidade e casou-se com Marina, sendo assim, promovido a pretor de segurança (o ultimo nível da hierarquia militar do reino). Então o reino e todos os seus habitantes viveram felizes até o final dos tempos.

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ARES – AMOR ANTES DE AMAR

Ele abriu um sorriso largoExplicou que aprendera aquiloAprendera como era amar, logo ao conhecerE agora, jamais poderia esquecer

Acabara de conhecê-laUm amigo lhe perguntouO motivo de amá-laEle exclamou

Pelo o que ela é em seu puro estado de siPelo calor de ver seu sorrisoOu pelo breve contentamento de estar ao seu lado

O ano passa, estava já pelo fimE então ele soubera a notícia enfimSeu amor iria partir, era o fim.

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BIANCA MOTA – CHAZÃO

Era uma vez um cara muito chato que trabalhava em uma fábrica de letras. Seu colegas de trabalho não gostavam nada dele, pois ele se achava o melhor de todos. Um dia seu chefe pediu que ele fizesse uma letra M de sete metros de altura. Seus colegas, sabendo da proposta, foram sacaneá-lo e passaram sabão em todos os seus materiais. Quando ele estava lá no topo, finalizando seu trabalho, escorregou e ficou pendurado em um ferro pela cueca. Ele ficou nessa situação por algumas horas. Nesse meio tempo ele gritava desesperado por ajuda, dizia “Oh, Deus! Por que comigo? Por quê?”. Aí ele se lembrou que era ruim com todo mundo, aceitou seu estado, chorou mais um pouco – porque estava doendo muito! Era o pior chazão da sua vida, estava até sangrando –, caiu de cinco metros de altura e morreu!

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LARA PAGLIARIM – DESPEDIDA

E rufaram os tambores, sabia que agora não teria mais chances, só me restava ver cabeças rolando, antes que a minha própria rolasse. Pois então? Como cheguei até aqui, como saber de onde o passado começa para conseguir influenciar o futuro. Desde meu nascimento? Ou desde que eu, no ventre de minha mãe estava ?

Sei que nada sei, e que de agora em diante nada mais saberei. E de que toda a minha sabedoria serviu para poder mudar o presente?

Sei que nada sei e que um dia saberei, pois o que foi é o que sempre será, e o que não foi um dia há de ser, para que eu, em outra vida, possa fazê-lo, vê-lo, vivê-lo, ou na pior das hipóteses, revivê-lo...

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ANA LUIZA PANZENHAGEN – CULPA

O roubo foi uma onda de adrenalina que me atingiu, foi uma das coisas mais emocionantes que já fiz, foi como se nada mais se comparase àquilo, mas depois de toda a adrenalina o que senti foi culpa e o problema da culpa é que ela te devora, devora viva e não tem como escapar ou escondê-la. Sinto como se andasse com um sinal luminoso escrito "CULPADA" na testa, como se minhas entranhas estivessem para fora, completamente expostas. Será que as, o quê?, 2 horas de adrenalina valem esses meses de culpa? Por mais que se tente, ela não sai, não foge, não acaba, ela fica ali te esperando cair e o pior é que é exatamente isso o que as pessoas querem, é o que elas esperam que tu faças, o que a sociedade espera de ti. Pior do que saber como a nossa sociedade tem ideologias tão nojentas e repulsivas, é fazer exatamente o que ela espera de ti.

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ISADORA PAZ – ROUBOS

Hoje eu acordei com uma vontade de ter amor ao próximo, essas coisas de sempre... E cortando meus pensamentos, minha vizinha gritava de seu apartamento me combrando o aluguel já atrasado. Mas eu não tinha dinheiro porque fui trabalhar e acabei sendo despedido. Recebi uma miséria e fui pra casa. No caminho, inseguro de ser roubado, parei na padaria pra comprar um pão; comprei, mas tudo era um roubo na cidadezinha onde eu morava. Então só me sobraram 5/6 da mixaria. A caminho de casa, meio ansioso para pagar minha vizinha que já me atormentava há dias; de repente fui molhado por um carro que passou por uma poça, fiquei pingando e fui pegar um ônibus, mais um roubo! Decidi então ir a pé, andando pelas ruelas da pacata cidadezinha . Acabei me desviando do percurso e fui parar na cidade velha. Comprei mais uma vez um daqueles saquinhos brancos e aspirei fundo, me deixando aliviado, sem problemas e a falta de energia não estava mais em mim. Fui correndo para casa e assim que cheguei veio ela já brigando. Então, em um simples ato, estrangulei-a até que ela deu seu último suspiro.

Pronto! Meus problemas novamente se esvaem.

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MONIQUE – MAXAMBA

Maxamba na roda de samba, feliz a sambar sem se importar; de um avião ninguém o reconheceria. Como um nome grego sem nostalgia, aliás era tudo mentira, escondida acima do além que não era de ninguém. Como o fruto esquecido da roseira, da qual ela era filha, mas não dizia, não no tribunal, não era importante.

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LIZ BASTIANI – COZINHA VERDE

Queria um bom pão com geleia, mas o que tinha era um único pão com formigas, sentado no chão sozinho, na frente da igreja, a escola fechou porque o cara perigoso matou todos, minha mãe foi para o México comprar arroz, ela está longe, infinito existe, mas às vezes vai embora e leva a praia junto, meu caro, desperdicei anos da minha vida com dois cachorros, por que fiz isso?!

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IZABEL BECKHÄUSER – O RÁDIO

O ábaco do menino toca mais do que o seu João, acredito que seja lira ou simplesmente um violão. O sol desta manhã abalou meu coração, pois queria uma chuvinha pra acalmá-lo. Hoje cresci mais que o normal sem saber o que é ábaco. O triângulo mágico que vive em cada um é mais mágico que o rádio do berço do coração.

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ANA DE MIRANDA LOPES – GASTRONOMIA

Talvez quisesse ir para casa, mas a praia estava mais cheirosa; ele ao seu lado. Tudo sempre fica melhor com um golfinho e um beija-flor. Entendedores entenderão o que mesmo os entendidos não captarão. Quem sabe um camarão? Já que vencemos, nos devemos o prazer de uma refeição. Depois voltaremos às rotinas de chateação.

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LUCAS MIRANDA – ROTINA

Começou na cidade de Xanxerê, lá na minha, cara pálida, saiu a história do Líbano ao sargento Carvalho, então comi abacate, batecaba, pera e jabuticaba no café da manhã. Acordar, ir pra escola; o livro de matemática é pesado, aula de matemática, contas e mais contas, rabo de cavalo argentino, Messi é ruim, encracado, cucuruto com chantily, abobrinha na caixa de som, fui amassado enquanto corria e vomitava.

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BRUNO R. CABRAL – TRÊS NOMES

O 1º não era o melhor, mas tinha um sabor bom, como na virada do ano, quando a gente se vê e você pula por aí e me enche de luz e carinho.

Olho para o horizonte e vejo que você está lá. Não corro e não olho. Medo.Escuro como uma pedra que se vai e se perde na profundeza da tristeza que eu

vejo.

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NICOLE ANTUNES – UMA CRIATURA

Uma vez, quando andava na rua, me deparei com uma criatura completamente nova. Era sem formato definido e com uma cor levada para o colorido. Parecia uma centopéia, mas vagava pelos ares. Talvez estivesse pendurada com fio tão fino que ao menos eu não conseguia ver. Era diferente. Pousava de ombro em ombro de cada pedestre que passava por debaixo de um toldo, mas sempre era ignorada pelos seres de cara fechada. Fiquei ali, parado, observando a criatura que nunca tinha sido notada. Na vez, pousou em meu ombro e olhei para seus olhos. Eram tão pequenos por fora, mas tão profundos como um oceano. Afinal, o que era aquilo? E por que fui me deparar com esse algo logo no dia em que minha alegria tinha acabado? Apenas olhei, ali parado no meio da rua, no entardecer do dia, e sem mais nem menos, me senti diferente. Eu poderia pegá-lo e levá-lo pra casa? Aquilo me fez tão bem. A criatura era incrível. Era um sentimento que não tinha como descrever, só sentindo. Chegou até meu ouvido e sussurrou: "eu sou a felicidade".

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NICKOLAS ASSIS – CORPO/MENTE

Você prefere bunda ou peito, me perguntou um sujeito.Respondi gosto dos dois, já meio sem jeito.Mas o que me fascina mesmo, é uma mente sem preconceito.Uma mente que me fascina, não importa a aparência da mina.De uma forma ou de outraUm dia isso se acaba, todos sabem a verdade.Mas a cabeça e a mente são anti-gravidade.

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STELLA NOBRE – TROPOSCO

Era uma vez um gigante chamado Tropo. Ele adorava comer abelhas, porém um dia a abelha, quando já havia sido encolhida, resolveu picá-lo. A garganta do gigante começou a inchar até explodir. O sangue se espalhou por todos os lados, até que respingou na cabeça de uma pobre menininha. Ela começou a chorar, então sua mãe chegou e se chocou com a cena. A menina ficou traumatizada e nunca mais quis brincar com seus bonecos gigantes, pois começou a ter pesadelos toda noite com o gigante explodindo. A família acabou ficando pobre pois gastou todo o dinheiro levando a pobre menina à terapeuta, que não resolveu nenhum trauma.

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ARTHUR BARBOSA MAGDALENO – A HISTÓRIA DE FERNANDINHO

Fernandinho era um menino obcecado por dinheiro. Sempre que sua mãe o mandava ir ao mercado, ele demorava mais tempo do que outras pessoas levariam para fazer uma simples compra, pois no caminho do mercado ele andava vagarosamente com sua cabeça inclinada para baixo para ver se encontrava uma moeda no chão. Entretanto, quando encontrava uma moeda de cinquenta centavos, por exemplo, reclamava que não era uma moeda de um real.

Fernandinho era fã dos gibis do Tio Patinhas, mas nunca comprou uma revista sequer. Seu tio era dono de uma banca de revistas e jornais e deixava o sobrinho passar as tardes na banca lendo os gibis. O sonho do menino era poder nadar em dinheiro assim como o personagem dos quadrinhos fazia.

Um dia, após ter juntado muitas moedas, Fernandinho decidiu realizar seu sonho, ou quase isso, ele pegou uma bacia redonda e despejou as moedas de seu cofre nela. As moedas que ele tinha não eram suficientes para encher nem um terço da bacia, decepcionado, Fernandinho decidiu que não comeria mais lanche na escola para guardar o dinheiro e colocá-lo no tal recipiente.

Dois meses se passaram. Fernandinho havia emagrecido demais, estava muito fraco e não conseguia mais jogar bola com seus amigos. Ele decidiu parar com o jejum e tentou novamente encher a bacia, agora com mais moedas. Para sua surpresa, o nível de moedas tinha aumentado significativamente. Com suas forças quase esgotadas, o menino empurrou as moedas para o lado para abrir espaço e “mergulhou” com o rosto na bacia como se fosse a última coisa que iria fazer na vida.

E foi.Ao perceber que sua cabeça estava submersa em moedas, notou que havia

conseguido realizar o seu objetivo, foi puxar um pouco de ar, mas não foi apenas ar que veio, uma pequena moeda de um centavo percorreu sua boca e trancou a passagem de ar em sua garganta. Em um movimento de desespero, tentou tirar a cabeça da bacia, mas estava muito fraco e tinha aproximadamente meio quilo de cobre e níquel sobre ela.

Sua mãe estava trabalhando e só voltaria à noite, seu pai tinha viajado e voltaria na próxima semana. Fernandinho não voltaria nunca mais.

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VICTOR MUSSOLIN LOPES – TÉRMINO

Penso, esqueço e ignoroLendo, preso, onde moro

Não vejo, cego, o seu dizerIngênuo, nesse momento que tenho, não vejoAnseio, para que veio essa ideia?De medo, me tornei leigo, quis parar

Textos e mais textos sem fimInvejo os poucos que são libertadosOs poucos que, mais rápidos que mimVão indo e fugindo das trancas desse local fadado

Penso, penso, pensoPenso mais, E MAIS AINDA, mas não inventoQuero, ou pelo menos espero, acabarNão vejo, nem prevejo, algum fimPosso tudo começar, mas nunca terminar

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"No fundo, todos temos necessidade de dizer quem somos e o que é que estamos a fazer e a necessidade de deixar algo feito, porque esta vida não é eterna e deixar coisas feitas pode ser uma forma de eternidade”.

José Saramago