Critica Literária
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CRÍTICA LITERÁRIA
SUMÁRIO 1. FUNDAMENTOS DA CRÍTICA _______________________________________ 4
1.1.Dos limites e fronteiras da crítica _________________________________________ 4
1.2. Origens e fundamentos_________________________________________________ 6
1.3. Características das correntes da crítica __________________________________ 11
2. A CRÍTICA IMANENTE ____________________________________________ 17
2.1. O que é imanência? __________________________________________________ 17
2.2. Fundamentos históricos da crítica imanente ______________________________ 18
2.3. Crítica imanente a partir do século XX __________________________________ 20
3. SOCIOCRÍTICA ___________________________________________________ 28
3.1 Crítica literária e crítica sociológica______________________________________ 29
3.2. O que é Sociocrítica? _________________________________________________ 30
3.3 As bases da sociocrítica ________________________________________________ 33
3.4 Importância da sociocrítica_____________________________________________ 34
4. Estudos Culturais __________________________________________________ 37
4.1. Origem dos estudos culturais___________________________________________ 38
4.2. Migração dos estudos culturais britânicos para os Estados Unidos ____________ 39
4.3. A questão da identidade cultural________________________________________ 40
4.4. Diáspora ___________________________________________________________ 41
4.5. Grupos étnicos ______________________________________________________ 42
4.6. Multiculturalismo____________________________________________________ 43
4.7. Aplicabilidade dos estudos culturais ____________________________________ 44
5. ESTÉTICA DA RECEPÇÃO _________________________________________ 46
5.1. Alguns pressupostos teóricos da Estética da recepção _______________________ 46
5.2. A história sem fim: uma análise do processo de leitura ______________________ 48
5.3. O narrador _________________________________________________________ 51
5.4. O leitor ____________________________________________________________ 53
5.5. O processo de leitura _________________________________________________ 55
5.6 Considerações finais __________________________________________________ 56
6. CRÍTICA GENÉTICA ______________________________________________ 58
6.1 A crítica genética no Brasil _____________________________________________ 58
6.2 O manuscrito ________________________________________________________ 59
6.3 O manuscrito sob novo olhar ___________________________________________ 60
6.4 O rascunho__________________________________________________________ 61
6.5 Crítica Genética e Semiótica____________________________________________ 63
7. LITERATURA E PSICANÁLISE _____________________________________ 69
7.1 Freud e a linguagem simbólica __________________________________________ 70
7.2 Sobre o trabalho de interpretação freudiano_______________________________ 73
7.3. Os sonhos de Dora, uma demonstração. __________________________________ 75
8. Crítica e Existencialismo_____________________________________________ 80
8.1. Algumas questões preliminares _________________________________________ 80
8.2. O que é o existencialismo, afinal? _______________________________________ 81
8.3. Arte e literatura _____________________________________________________ 81
8.4. Jean-Paul Sartre: Vida e obra __________________________________________ 82
8.5. Uma proposta de periodização _________________________________________ 82
8.6. A existência precede a essência_________________________________________ 83
8.7. Liberdade e angústia _________________________________________________ 85
8.8. Sartre: as artes e a literatura __________________________________________ 86
9. Cinema e literatura _________________________________________________ 89
9.1 As Origens __________________________________________________________ 89
9.2 Áreas de contato _____________________________________________________ 90
9.3 Brevíssima história do cinema __________________________________________ 92
10. CRÍTICA E INTERSEMIOTICIDADE_______________________________ 100
10.1. O que é semiótica? _________________________________________________ 100
10.2. Signos icônicos e convencionais _______________________________________ 101
10.3. Interartes_________________________________________________________ 102
10.4. Literatura enquanto signo ___________________________________________ 103
10.5. Literatura hipertextual _____________________________________________ 106
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ___________________________________ 109
GABARITO ________________________________________________________ 113
1. FUNDAMENTOS DA CRÍTICA
Débora Teresinha Mutter da Silva1
O objetivo deste capítulo é apresentar uma visão panorâmica, bem como
uma síntese do funcionamento da crítica ao longo de sua história. Ao mesmo
tempo, permitirá ao aluno, a partir dos dados elementares e referências, um
passo inicial para aprofundar o conhecimento dessa prática.
Ao iniciarmos o estudo da crítica, necessitamos previamente conhecer
seus limites, suas áreas de abrangências e suas fronteiras, pois essas são as
distinções mais importantes (WELEK, p.37 2003). Posteriormente, para
empreendermos a prática da crítica precisamos definir o nosso objeto de
estudo. Desse modo, garantiremos um mínimo de segurança e autonomia,
para escolhermos os nossos métodos de trabalho.
1.1.Dos limites e fronteiras da crítica
A crítica caracteriza-se como uma das três grandes áreas que embasam e
definem os estudos literários: a teoria , a crítica e a história literária . A opção
por situá-la entre a teoria e a historiografia não é causal. Deve-se à sua
natureza, em certa medida, ambivalente. A aproximação a qualquer uma
dessas áreas de estudo exige o prévio deslindamento de suas fronteiras, de
suas especificidades e de seus potenciais com relação às demais. De
qualquer forma, permeia o nosso percurso expositivo a convicção de que o
isolamento entre elas é mais abstrato que efetivo como veremos na seqüência
deste capítulo.
1 Débora Teresinha Mutter da Silva é mestre em Literatura Comparada e doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professora do ensino presencial e a distância da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).
Sem problematizar excessivamente o debate em torno das atribuições de
cada uma, pois este material destina-se a alunos de graduação, o objetivo é
introduzir as noções fundamentais e indispensáveis para o sereno
desenvolvimento da disciplina. Por essa razão, desobriga-se da enumeração
exaustiva de conceitos, embora oriente-se pela exposição sistemática de suas
noções elementares. Desse modo, sua ambição é ser um guia basilar mínimo
para o aprofundamento de futuros estudos.
Para começar, podemos lembrar que a literatura no sentido amplo está
inserida em duas ordens: a sincrônica e a diacrônica . A ordem sincrônica diz
respeito aos acontecimentos e à existência de eventos e obras em um mesmo
tempo. É a ordem que observa a simultaneidade dos fatos2, ou seja, do
surgimento das obras e seus efeitos em um mesmo tempo e/ou lugar. A ordem
diacrônica, ao contrário, refere-se aos eventos dispostos em uma ordem
seqüencial, ou seja, alinhadas no decorrer do tempo e vinculadas ao processo
histórico que organiza os fatos humanos (WELLEK, 2003).
Por essa mesma razão, constamos que o interesse pela ordem diacrônica
caracteriza os estudos da área da história literária . É a prática dos estudos
literários que, geralmente, adota, o critério causalista típico da prática histórica
para a periodização dos fatos. Já os estudos de caráter sincrônicos dedicam-se
às obras isoladas ou em séries específicas a partir de critérios analógicos.
Suas finalidades, embora possa parecer um tanto redutor, são preliminarmente
descrever, classificar e determinar o valor estético. Em um segundo momento,
os resultados desse processo inicial podem servir às outras duas áreas de
estudos: a teoria ou a crítica. Por essa razão, tais práticas se definem como
teoria e crítica respectivamente. A teoria vai deter-se mais na descrição dos
fenômenos literários e na sua classificação com base nas teorias já existentes
ou no sentido de ultrapassá-las como todo processo científico. Já a crítica,
entre um considerável número de probabilidades, vai buscar o estabelecimento
de critérios de comparação e valor, tentando contribuir para o enriquecimento
2 A história se ocupa de registrar fatos, eventos comprováveis. Para a historiografia da literatura um fato pode ser tanto o surgimento de um livro, sua reedição, sua fortuna crítica, sua classificação num critério de valor, sua classificação dentro de um movimento literário, etc. Quaisquer desses eventos podem ser considerados fatos literários. Naturalmente, a historiografia poderá deixar de fora ou omitir acontecimentos que futuros literários tornem dignos de entrar para a História Literária de um país. Vem daí a noção de que um fato histórico é apenas uma construção humana e, portanto, falível.
das interpretações literárias e seus nexos com a sociedade e com a tradição
literária.
Porém, o isolamento total entre as três áreas também não é rigoroso,
havendo uma interdependência. Esta decorre da complementaridade que os
métodos e a própria complexidade da literatura promovem, pois a arte literária,
embora autônoma, nunca está desvinculada da história, do contexto social e
intelectual ou mesmo das ordens discursivas que regem as sociedades e a vida
humana em geral.
1.2. Origens e fundamentos
A definição da palavra crítica pode começar pela etimologia do termo e
sua evolução histórica. Ela nos orientará, inserindo-nos nesse interessante e
movediço universo que caracteriza a área mais complexa dos estudos
literários, como veremos na seqüência deste capítulo.
O termo crítica possui um significado prosaico e outro técnico. O sentido
prosaico tem uma reconhecida carga negativa e outra que remete aos
comentários veiculados em jornais e revistas sobre objetos e eventos artísticos.
Porém, quando se trata do sentido técnico, a palavra adquire vários
nuances que dependem da área ou da finalidade à qual é aplicada. Tendo em
conta essas questões. A base etimológica é o termo grego Kritikê, que significa
arte de julgar, de criticar, arte crítica, que derivou para o adjetivo latino critìcus
e também como substantivo critìca que significa 'apreciação, julgamento'.
Nesse sentido, era aplicado às mais diversas finalidades. Débora, acho que
aqui cabe explicar realmente o sentido da crítica para os gregos, que é
bastante diferente dos sentidos adquirido posteriormente.
Para nós, o alvo resolve-se com o adjetivo “literária”, pois, via de regra,
adotamos a expressão como seu adjetivo: crítica literária. Mas, na sua
evolução histórica, o termo teve, primeiro, influência do francês, critique, e
depois do inglês criticism, envolvendo sempre a arte de avaliar e julgar
produção literária, artística ou científica.
O que não podemos perder de vista é que esse percurso histórico da
palavra, nos respectivos idiomas referidos, informa também e em certa medida
Excluído: ¶
sobre as influências de diferentes correntes teóricas e sobre os
desdobramentos da prática crítica como área do saber e como um fazer
indispensável à sobrevivência e valorização da arte literária no ofício dos
profissionais com ela envolvidos.
É a partir daqui que precisamos agregar, às noções de ordem sincrônica
e diacrônica, típicas da literatura, o segundo critério distintivo. Trata-se da
diferenciação entre
• o estudo dos princípios e critérios da literatura e
• o estudo das obras literárias concretas.
Tais distinções independem de estudarmos as obras literárias
isoladamente ou em uma série cronológica.
Dentro desse cenário, no qual se inscreve o exercício da crítica, o ponto
de discórdia gravita em torno da subjetividade. O conflito está no fato de a
teoria e a história da literatura reivindicarem status de ciência imparcial,
enquanto, sobre a crítica, recaem desconfianças de personalismo e de falta de
isenção no julgamento por parte daquele que a realiza.
Da Antiguidade até a Idade Média, o exercício da crítica era indiferente a
esses questionamentos, pois não existia como atividade definida no âmbito de
uma área específica do conhecimento humano. Foi a partir do século XIX, com
a segmentação do conhecimento em disciplinas, que a Literatura separou-se
da História e da teoria. O mesmo processo histórico que iniciou com o
Iluminismo3 e com o positivismo4 acabou gerando os conflitos entre os saberes
científicos e os saberes ou as ciências menos “duras” (filosofia, psicologia,
sociologia). Entretanto, desde o século XIX até os dias atuais, muitas
convicções em torno da linguagem verbal e, em especial da escrita, foram
relativizadas. Contribuiu para isso o avanço teórico nas áreas afins, o próprio
processo histórico global, as relações entre as diferentes disciplinas e as
3 O Iluminismo foi um movimento intelectual do século XVIII, que o caracterizou como o Século das Luzes. Suas marcas eram a centralidade na ciência e da racionalidade crítica e no questionamento filosófico. Tudo isso implica recusa a todas as formas de dogmatismo. Foi a base de doutrinas políticas, religiosas e filosóficas. Está relacionado às luzes do saber, à ilustração, ao esclarecimento, ao conhecimento. 4 O positivismo foi uma sistema criado por Auguste Comte (1798-1857) e desenvolvido por inúmeros seguidores. Seu objetivo era ordenar as ciências experimentais, considerando-as o modelo por excelência do conhecimento humano, em detrimento das especulações metafísicas ou teológicas.
formas de expressão artísticas que insistem em dialogar e mostrar que nada
precisa ser excluído das ações e do pensamento humano.
Sobre essa realidade, gravita a idéia de que nenhuma ação humana,
máxime a prática crítica, por mais aparentemente imparcial, é isenta de algum
grau de subjetividade e de discursividade (Todorov, 1980). Mesmo o critério de
um historiógrafo da literatura, ao incluir determinadas obras na periodização
literária de um país e não outras, ou de um teórico, ao escolher determinado
critério para detectar certos princípios, ou de um crítico ao escolher certa obra
para trabalhar, é determinado por algum grau de subjetividade.
Sob a acusação de subjetivismo pouco confiável, a crítica sofreu certo
desprestígio com relação à teoria e à historiografia (práticas resguardadas por
um saber científico), devido ao afã cientificista. Porém, com o aporte de outras
áreas do conhecimento (lingüística, antropologia, psicologia, sociologia, etc) ela
conseguiu colocar-se a salvo de seus detratores e também das práticas
“impressionistas”. Atualmente, esse desprestígio tem mais valor histórico como
podemos acompanhar a partir das diversas etapas e correntes que orientaram
o fazer crítico desde o seu surgimento. O percurso mostra que a crítica saiu de
um espaço que suscita questionamento e dúvida para um lugar de prestígio e
muito ambicionado por aqueles que se envolvem com literatura e sua
interpretação. E tudo isso foi possível, precisamente, por evidenciar-se a crítica
como uma arte tão consciente de suas peculiaridades quanto de seus limites e
potencialidades.
Não raro, ouve-se dizer que a missão da crítica é julgar o que é bom, o
que é realmente arte. Porém, por detrás dessa proposição aparentemente
frívola há um intenso labor técnico de análise interpretativa. O crítico interpreta
todo o contexto, todas as direções e todos vínculos aos quais uma obra de arte
literária está ligada e aos quais ela diz respeito. E nisso conjugam-se duas
vidas, a do autor e a do próprio crítico, mas também a de uma sociedade por
inteiro. Desde as representações sociais, psíquicas, estéticas e outras
inerentes à realidade humana até as afetivas estão contidas na literatura,
constituem a nobre matéria que o crítico, a partir da obra, interpretará no seu
profundo esforço humano de contribuir para o avanço das sociedades e de
suas respectivas circunstâncias e épocas. Dentro desta perspectiva, podemos
estabelecer o seguinte gráfico:
Público Leitor
AUTOR OBRA LEITOR Crítico
Leitor Ativo (escritores)
É nesse sentido que o trabalho do crítico como leitor privilegiado e
consciente de sua função devolve tanto à sociedade como à própria literatura a
sua contribuição. Ele pode auxiliar os agrupamentos humanos no processo de
conhecimento de si mesmos e revelar estratégias adotadas pelos próprios
artistas que, assim poderão empreender modificações em suas futuras
criações. Essa é uma das idéias previstas na estética da recepção sob o
conceito de “circuito comunicativo”, quando a recepção entendida como noção
estética, torna-se um “ato de face dupla”. Dentre os vários modos de reação, o
leitor crítico (ativo) ele pode “assumir ima interpretação reconhecida” ou
“apresentar uma nova obra”, estabelecendo uma dinâmica interacional. Esse
dinamismo entre a crítica a arte literária e a sociedade lhe dá um sentido além
fronteiras da literatura (NITRINI, 1997). Mas, sem dúvida, o sentido maior da
crítica está na expansão da própria linguagem literária a partir de um outro
campo, que acaba atuando de forma muitas vezes inesperada sobre o campo
literário.
Distinguir os períodos, ou seja, a própria história da crítica serve de
iniciação e auxilia o estudante a entender e fixar suas convicções sobre o
conhecimento crítico, auxiliando-o na elaboração de suas escolhas
metodológicas tanto em suas pesquisas como na elaboração de suas aulas. O
domínio desse saber permite, além de entender como a crítica se estabelece e
evolui, perceber o foco de valorização, a cada etapa, em algum dos elementos
apresentados na tríade apresentada anteriormente: Autor – Obra – Leitor.
Circunstância que reforça a idéia de que períodos diferentes nutrem
concepções e convenções críticas diferentes (WELLEK, 2003)
As diversas tendências críticas tendem a priorizar um desses elementos,
considerando-se que, quando se trata de enfatizar o Autor e o Leitor, inserem-
se também seus universos ou contextos. Falar em método crítico pressupõe,
necessariamente, um tipo de análise. A análise é a etapa que antecede à
crítica. Não há crítica sem análise. É possível elaborar a análise de uma obra
sem formular uma crítica. Porém, jamais elaboraremos uma crítica sem uma
boa análise. Se assim for, não é crítica; é mera opinião, embora como já foi dito
acima, seja sempre difícil evitar algum grau de subjetividade. Mas a
importância da análise é vista desde Aristóteles, pois o grego jamais teria
elaborado a sua Poética se não tivesse procedido, antes, uma profunda e
exaustiva análise da tragédia e da epopéia grega. Foi a partir daí que teve
inicio o arcabouço teórico que até hoje nos orienta. Portanto, ao falarmos de
correntes, estaremos falando dos métodos de análise e suas bases teóricas
específicas de acordo com as correntes disponíveis.
A classificação de correntes e etapas poderia transformar-se em uma
enorme lista de nomes, dadas as variadas ênfases adotadas ao longo dos
últimos 100 anos. Porém, para racionalizar a exposição, selecionamos as
correntes de maior visibilidade que são a:
• Biográfica (Séc. XIX)
• Determinista
• Impressionista
• Formalista (Séx. XX)
• Estilística
• Nova Crítica
• Estruturalista/semiótica
• Sociológica
• Psicanalítica
• Semiótica
• Estética da Recepção
• Genética
• Interdisciplinar: literatura e cinema
• Cultural
Cada uma delas está relativamente ligada às teorias de outras áreas do
conhecimento (ciência, filosofia, política, etc.) e correspondem ao pensamento
e às convicções teóricas de uma época. Constata-se, a partir das
características de cada uma das etapas e de suas abordagens, a prevalência
de movimentos reativos em contraposição aos métodos adotados no período
anterior. Como veremos a seguir, concorrem nessa disputa aquelas que podem
ser agrupadas sob o título de correntes textualistas e as correntes
contextualistas. Considerando a tríade autor-obra-leitor, vemos que as
textualistas centram-se na obra, considerando exclusivamente o que está no
texto, atendo-se aos elementos lingüísticos. Já as correntes contextualistas
distribuem sua atenção entre os demais elementos da tríade autor, leitor e
contexto em geral, ou seja, todos os elementos extratextuais. Outro aspecto a
observar nos ciclos da crítica é a origem das correntes. Inicialmente, há
predominância de teóricos franceses, posteriormente, uma força significativa de
russos, seguidos de norte-americanos.
1.3. Características das correntes da crítica
A partir daqui, apresentamos uma síntese dos aspectos mais relevantes
das correntes mais antigas: biográfica, determinista, impressionista, formalista,
estilística, nova crítica, estruturalista, sociológica e psicanalítica. Primeiro pelo
valor histórico e pela contribuição que deram para a evolução do pensamento
e do fazer crítico. Mas, em especial, porque elas não serão aprofundadas ao
longo dos demais capítulos, que serão dedicados às práticas mais
contemporâneas.
A crítica biográfica foi um dos primeiros critérios adotados para explicar
as obras literárias. Destaca-se como crítico nessa fase o francês Sainte-Beuve.
Ela teve grande força durante o romantismo e tentava interpretar a obra pela
biografia do autor, mas mostrou-se insuficiente e frágil com o advento do
positivismo, por toda a carga cientificista que estimulou o período do Realismo.
Foram estes os fatores que fortaleceram a crítica determinista , que
considerava a obra literária como produto da relação entre o homem e o seu
meio (condições sociopolíticas e naturais). Prevaleciam a raça, o meio e o
momento como fundamentais do período literário que ficou conhecido como
naturalismo. O maior defensor dessa abordagem, que, apesar da base
cientificista, tinha fortes matizes sociológicos, foi o também francês Hippolyte
Taine.
Porém, no final do século XIX, o excesso de objetividade gerou
adversários a esse pensamento, e ressurge uma tendência a valorizar a
subjetividade. Foi essa atitude que estimulou o surgimento da crítica
impressionista , na qual o crítico seguia livremente seus impulsos e
descobertas pessoais. Alguns dos maiores defensores dessa corrente eram
também escritores (Virgínia Woolf e Anatole France). A ênfase na
personalidade do crítico, porém, não durou muito e, na segunda década do
século XX, a reação veio do Leste Europeu com os Formalistas russos.
No início do Século XX, o Círculo Lingüístico de Moscou, reagindo ao
excesso de variantes extratextuais e subjetividade na avaliação das obras
literárias, busca imparcialidade na lingüística. Os teóricos russos criaram um
movimento caracterizado pela recusa de elementos que não estivessem
estritamente formalmente na obra. Um grupo de estudiosos baseados
exclusivamente na forma artística adotou um método descritivo e morfológico,
que ficou conhecido como crítica formalista . O critério de julgamento era
exclusivamente lingüístico, para definir a literariedade nas obras literárias.
Privilegiando a busca da estreita e coincidente relação entre o fundo e forma na
criação de uma imagem/visão, os formalistas buscavam o desvio criativo, o
estranhamento no efeito estético. Tal estranhamento era desejável, pois
supunha a ruptura do automatismo da linguagem ordinária. A crítica formalista
está embasada nas teorias de vários estudiosos que se dedicaram a explorar
conceitos e técnicas de análise das categorias literárias: imagem (Chkloviski),
tema, fábula, trama, motivo, motivação, herói, espaço, tempo, gêneros
(Tomachevski); análise estrutural e função (Vladimir Propp); teoria da prosa,
romance (Eikhembaum); evolução literária (Tynianov) e análise fonológica da
poesia (Jakobson).
Mais ou menos simultâneo a isso e amparada pelo modelo saussuriano,
também de base lingüística, surgiu a crítica estilística 5. A dicotomia
5 Um fato de estilo se dá a conhecer antes de tudo pelo seu modo de existência no texto e
analisá-lo exige uma atitude interdisciplinar, devido à complexidade de aspectos que se conjugam. Bally baseou a estilística ou a noção de fato estilístico nas expressões de afetividade, observando a sinonímia que, posteriormente, ficou a cargo da Semântica. Spitzer o vinculou tanto aos sentimentos quanto ao pensamento. A contribuição da Lingüística com técnicas para análise das relações paradigmáticas (Jakobson) e sintagmáticas (Riffaterre) sistematizou as implicações teóricas sobre as propriedades da linguagem. O fato estilístico atinge o leitor de uma ou de outra maneira, seja porque é demasiado freqüente, seja porque é injustificado em seu contexto, seja porque é
langue/parole6 é a sua base, observando as manifestações afetivas da língua
como determinantes de um estilo. Há uma estilística da langue e uma da
parole. A obra é vista como uma totalidade estruturada organicamente na qual
entram jogo as manifestações afetivas, reveladas pelo estilo adotado. É nesse
momento que o psicologismo do autor e o biografismo acabam sendo
novamente uma ameaça às tentativas de imparcialidade do método lingüístico,
pois a análise estilística parte de uma intuição e da sensibilidade do crítico que
se encontra com a intuição do autor. Os nomes mais destacados no seu
surgimento foram o lingüista francês Charles Bally, os alemães Karl Vossler, e
Leo Spitzer e o espanhol Dámaso Alonso.
A nova crítica foi a reação vinda dos Estados Unidos (Escolas do Sul –
Kenneth Burke entre outros ) contra os métodos metafísicos e subjetivos da
crítica impressionista e intuitiva. Caracterizou-se pelo academicismo científico e
metodológico. Nela, predomina a exploração microscópica do texto para revelar
as suas imanências. Nada que lhe seja exterior é considerado (contexto
história, biografia). Nessa etapa, há predominância do mundo acadêmico na
prática crítica. O professor é visto como um pesquisador na superação da
dicotomia fundo e forma. Contudo, isso gera dois novos riscos à almejada
imparcialidade científica, pois a interpretação ontológica e hermenêutica, que
busca a essência insere a ameaça do viés romântico e impressionista.
Também a noção de extensão x intenção (que pertence ao autor) como
geradora da tensão poética, devolve, em parte, um viés romântico e
impressionista aos estudos. Por outro lado, a interpretação sociológica ou
histórica extrapola os limites do texto.
desmesuradamente acentuado, etc. Em qualquer caso, em todo enunciado lingüístico há um certo número de leis, relações e imposições que não se explicam pelo mecanismo da língua, mas unicamente pelo mecanismo do discurso. Isso ocorre porque o texto é um sistema conotativo secundário relativamente a outro sistema de significação que lhe é exterior e anterior. Ao mesmo tempo, essa parcela discursiva impõe às reflexões a presença da função retórica de qualquer texto, redividindo os estudos em Poética, cujo objeto seria o discurso literário, e Estilística, cujo objeto seria todos os discursos; domínio da antiga elocutio da Retórica. A partir dessa evidência, o estudo de Wayne Booth sobre a retórica da ficção adquire importância.
6 A oposição conceitual entre langue e parole , ou seja, entre língua e fala foi estabelecida por
Ferdinand Suassure. A língua é o código lingüístico, signos isolados (palavras morfemas) ou conjuntos de signos representativos dos sons e seus respectivos sentidos particulares. Enquanto a fala é a utilização, o emprego deste(s) código pelos sujeitos falantes de uma comunidade. É o uso que cada um faz da língua. Assim, diz-se que a língua é um fenômeno social, enquanto a fala individual. (DUCROT; TORODOROV, 1972)
É neste cenário que surge a crítica estruturalista . Conjugando e
ampliando a herança dos métodos e conceitos formalistas e da lingüística, sua
base é a noção saussuriana de estrutura e sistema de relações entre
elementos solidários e interdependentes na obra. A noção de desvio volta a ter
importância a partir de Jean Cohen. Outros nomes destacados são Tzvetan
Todorov (categoria narrativas e discurso), Roman Jakobson (funções da
linguagem) e Roland Barthes (funções narrativas).
Essa ausência de consideração contextual originou uma reação de
críticos de orientação marxista, fazendo com que o contexto social ganhasse
relevância, dando surgimento à crítica sociológica . Para ela ,o romance é a
forma privilegiada de análise e a obra é vista como o resultado de um momento
e de uma realidade social como consciência coletiva. Os nomes mais
destacados são Jorge Lukács e Lucien Goldmann.
Na crítica psicanalítica , o crítico como leitor fala não da obra, mas do
que nela afetou o seu próprio sistema. Ela intensifica suas origens com as
teorias de Jacques Lacan sobre o pensamento freudiano e sobre a linguagem.
Sua base é a teoria do espelho que reflete o avesso da realidade. O instinto, o
simbólico, o imaginário, a fantasia o desejo, e o desejo do Outro são as noções
que se articulam para o crítico nesta seara.
Segundo Wellek e Warren (2003), há distinções óbvias e de aceitação
ampla. Uma delas é que , “a teoria literária é impossível, exceto com base em
um estudo de obras literárias concretas,ou seja, o acervo da historiografia. Isso
porque, é “impossível chegar a critérios, categorias e esquemas analíticos in
vacuo” (p.38). Do mesmo modo, um estudo crítico totalmente isolado das
outras duas áreas pode tornar-se estéril do pondo de vista social.
O que precisamos reter de todas as etapas e respectivos aspectos e
enfoques da crítica é sua tripla função: estética, teórica e social. Estética
porque, em princípio, ela se volta, primeiramente, para o valor artístico das
obras literárias. Porém, via de regra, isso não ocorre sem uma sólida base
teórica e sem os aportes da história da literatura), para as quais ela também irá
contribuir. Essa espécie de retro-alimentação mostra a importância da critica
para a sobrevivência da própria literatura. Afinal, é o exercício da crítica, em
especial a acadêmica, que movimenta e alimenta as produções teóricas.
Atualmente, a intrasponibilidade que havia entre o mundo acadêmico e a
cultura popular e a imprensa está reduzido. É freqüente encontrarmos estudos
sérios de professores e pesquisadores em que jornais e revistas dediquem
páginas a estudos críticos. Essa retroalimentação que envolve o público está
instaurando um novo paradigma sobre as relações da crítica com as obras
literárias. Contudo, numa realidade em que a demanda visual e midiática tem
urgência, é fácil imaginar que, sem crítica, as obras correm o risco de caírem
no esquecimento.
Por outro lado, é preciso estar alerta sobre as fontes, os critérios e os
autores das elaborações críticas. As interpretações e os desvendamentos que
uma crítica sólida e bem embasada podem trazer à luz exercem uma pressão
social considerável tanto na perspectiva do público leitor quanto na dos
próprios artistas contemporâneos, que nunca são insensíveis a ela.
Circunstância que pode alimentar reflexões e autocríticas em vários níveis.
Essa é a tônica que motiva e justifica a prática crítica, pois a literatura
contém em si o mundo, e a crítica o observa a partir desse lugar privilegiado
que é a ficção.
Atividade:
1. Assinale a alternativa verdadeira nas a opção abaixo quanto às origens da
crítica:
A) A crítica como nós a conhecemos hoje, teve inicio com Aristóteles.
B) Foram os formalistas que realizaram os primeiros estudos críticos.
C) No final do século XIX, a crítica adquiriu independência de outras áreas.
D) A crítica impressionista é a mais praticada desde sempre.
2. Assinale a alternativa verdadeira sobre as correntes da critica.
A) As correntes são definidas por um grupo de críticos prestigiados.
B) As correntes da crítica são sensíveis a outras áreas do saber.
C) As correntes da crítica nunca se opõem entre si.
D) As correntes da crítica pertencem a seus respectivos países.
3. Assinale a alternativa verdadeira sobre as tendências da crítica.
A) As tendências da crítica são aleatórias e dependem crítico.
B) As tendências mais importantes são as contextualistas.
C) As tendências tendem a enfatizar ora o autor, a obra ou o leitor.
D) Apenas as tendências que valorizam a obra são confiáveis.
4. Assinale a alternativa correta sobre tipos de correntes críticas.
A) Os tipos de críticas distribuem em três grandes grupos;
B) As correntes textualistas ignoram o leitor e o autor;
C) As correntes textualistas nunca são imanentistas.
D As correntes contextualistas consideram apenas a obra.
5) Assinale a alternativa mais adequada com relação à função da crítica.
A) Deve difundir o entendimento e as emoções do crítico.
B) Interpretar criticamente as obras com métodos e recursos teóricos.
D) Libertar a subjetividade e definir o que é que tem valor estético;
E) Estimular o mercado literário indicando o que deve ser lido.
2. A CRÍTICA IMANENTE Edgar Roberto Kirchof7
Neste capítulo, você estudará, de modo bastante panorâmico, algumas
teorias da crítica que permitem realizar uma reflexão sobre a obra literária
predominantemente a partir de suas estruturas imanentes, ou seja, a partir de critérios
internos à própria obra. Esse tipo de crítica, portanto, prioriza reflexões em torno de
questões ligadas às características da linguagem literária e da composição, por vezes,
procurando estabelecer critérios lingüísticos para o valor literário. Aspectos ligados ao
contexto social, cultural e histórico que circundam autor, leitor e representações da
própria obra, nessa perspectiva, geralmente são considerados secundários.
2.1. O que é imanência? O termo imanente remonta à teoria filosófica de Immanuel Kant, no século
XVIII. Em sua Crítica da razão pura, Kant estabeleceu uma diferenciação entre duas
faculdades do conhecimento: o entendimento, de um lado, e a razão, de outro. Para
Kant, ao passo que o primeiro nos fornece conhecimentos a partir do próprio mundo
empírico em que vivemos, a segunda nos permite chegar a certas conclusões, baseando-
nos, para tanto, em princípios buscados já a partir das regras abstratas produzidas pelo
entendimento. Seguindo essa divisão, Kant chegou à conclusão de que o conhecimento
lógico e conceitual (que hoje nós denominaríamos, talvez, de conhecimento científico)
decorre do entendimento, ao passo que nossos conhecimentos sobre a moral e a ética
(sobre o que é bom ou mau, certo ou errado), por sua vez, ancoram-se na razão.
Em outros termos, o entendimento necessita da experiência dos objetos como
fundamento. A razão, por sua vez, inicia seu processo cognitivo já com as regras
fornecidas pelo entendimento, a partir das quais é possível realizar conclusões.8 Nesse
ponto, Kant afirma que todo conhecimento ligado ao entendimento é imanente, pois é
buscado a partir da análise dos próprios objetos empíricos, ao passo que todo
conhecimento ligado à razão é transcendente, pois provém de um domínio que está
além das determinações da natureza observada, apontando para o indeterminado.
7 Graduado em Letras Português/Alemão pela UNISINOS, Mestre em Comunicação e Semiótica pela UNISINOS, doutor em Teoria da Literatura pela PUCRS e pós-doutor em semiótica pela Universidade de Kassel. 8 KANT, 1997, p. 315.
2.2. Fundamentos históricos da crítica imanente
No contexto da crítica literária e da teoria da literatura, o termo imanência é
geralmente utilizado para caracterizar teorias que restringem seu campo de análise a
aspectos que não ultrapassam as regras da própria obra literária. Nesse sentido, o crítico
que se guia por uma concepção imanente procura permanecer no domínio da própria
obra, compreendendo-a como um objeto pertencente ao mundo sensível. Ao invés de
estudar aspectos ligados ao contexto social e histórico (ou mesmo psicológico) do autor
– e tampouco do leitor –, esse tipo de crítica busca estabelecer reflexões em torno do
valor literário e estético da obra a partir da maneira como as regras e as estruturas de
composição e criação são utilizadas.
Historicamente, pode-se dizer que o primeiro pensador a realizar uma reflexão
imanente sobre a literatura foi o filósofo grego Aristóteles, em sua Poética. Em termos
muito simplificados, Aristóteles estabeleceu a verossimilhança e a necessidade como
principais critérios para avaliar a qualidade de uma composição literária, chegando
mesmo a apontar “defeitos” em algumas obras ou partes de obras, de um lado, e a
elogiar a perfeição com que outras foram realizadas, de outro lado. Nesse sentido, é
conhecida a preferência de Aristóteles pelas peças de Sófocles, especialmente o Édipo
rei, em detrimento das peças de Eurípides, sendo que Aristóteles utiliza critérios de
composição para realizar seus juízos.
Ao longo da história literária, os conceitos imanentes desenvolvidos por
Aristóteles, principalmente a versossimilhança, a mimese e a catarse, foram utilizados
por diferentes escolas literárias, servindo, muitas vezes, como critérios restritivos e
normativos imputados aos artistas. Essa tendência teve, como primeiro representante, já
no século I d.C, o romano Horácio, que, interpretando Aristóteles, passou a postular que
o artista deveria sempre guiar suas produções artísticas pela construção de uma
harmonia semelhante àquela encontrada na natureza. A mimese mais perfeita seria,
portanto, aquela que gerasse o maior efeito de realidade, fazendo com que o
leitor/espectador tenha a sensação de que está diante de fatos reais e não ficcionais. Essa
seria a lógica necessária a partir da qual se deve construir a verossimilhança na
literatura, de acordo com Horácio. Para tanto, o autor deveria compor a obra imitando
ações plausíveis de um ponto de vista realista.
O século XVIII foi o período em as concepções imanentes desenvolvidas por
Aristóteles e Horácio chegaram ao seu apogeu. Nessa época, o crítico francês Jean
Chapelain, por exemplo, chegou a afirmar que as melhores obras eram aquelas em que a
mimese é tão perfeita que o leitor/espectador tem a impressão de que não há “nenhuma
diferença entre a coisa imitada e a que imita, pois o principal efeito da imitação é
apresentar os objetos ao espírito como se fossem verdadeiros e presentes, para purgá-lo
de suas paixões desregradas”.9 Vale notar que é justamente no século XVIII que surge,
inclusive, uma disciplina destinada a estabelecer as regras para a composição das obras
de arte, de forma que delas se gere o conhecimento e não apenas meras ilusões. Trata-se
da disciplina estética, fundada por Alexander Gottlieb Baumgarten. No quinto parágrafo
de seu livro Aesthetica, por exemplo, Baumgarten chega a afirmar que é necessário ditar
regras para o pensamento sensível (fonte da imaginação e da fantasia, da qual se serve o
artista para criar suas obras) a fim de que dele não surjam erros.10
Por outro lado, é necessário esclarecer que, mesmo no século XVIII, os artistas
jamais chegaram a realmente seguir, de forma completamente rígida, essas regras fixas
ditadas pela crítica literária e pela disciplina estética. Os melhores dramaturgos
franceses dessa época, Corneille, Racine e Molière, por exemplo, embora tenham
seguido as regras aristotélicas e horacianas da mimese e da verossimilhança, em termos
globais, também inseriram certas mudanças, muitas vezes sutis, fazendo uso da
liberdade criadora. Nas palavras de Roger, “as obras magistrais do classicismo, a
despeito de sua adequação global às regras, foram freqüentemetne responsáveis pelo
surgimento de cabalas e controvérsias [...], em decorrência da liberdade que exibiram na
própria utilização daquelas regras”.11
Assim sendo, é importante esclarecer que um exercício de crítica literária que se
guia por critérios imanentes não deve tomar as regras de composição que utiliza para
análise como um critério absoluto, pois, ao longo da história literária, sempre que essa
atitude prevaleceu, os próprios artistas se encarregaram de subverter tais regras.
Ademais, mesmo que, até hoje, sejam utilizados, com freqüência, conceitos aristotélicos
para discutir a composição literária, não existe consenso nem entre críticos guiados por
concepções imanentes – e muito menos entre os artistas – a respeito de quais regras de
composição realmente seriam capazes de garantir o valor literário e estético de uma
obra. Note que os critérios imanentes para definir o valor variam muito ao longo da
história da literatura, o que pode ser percebido facilmente quando avaliamos as
9 CHAPELAIN, apud Jérôme Roger, 2002, p. 20. 10 KIRCHOF, 2003, p. 34. 11 ROGER, 2002, p. 23.
diferentes escolas literárias. No Classicismo, por exemplo, valorizava-se sobremaneira a
cópia da natureza e a imitação dos clássicos, ao passo que, a partir do Romantismo,
passaram a ser valorizados principalmente aspectos ligados à liberdade e à criatividade.
2.3. Crítica imanente a partir do século XX O Formalismo Russo
No século XX, uma das linhas pioneiras no que tange à crítica imanente foi
desenvolvida por um grupo de pesquisadores russos, que, devido ao fato de priorizarem
critérios formais para análise da obra literária, passaram a ser denominados de
formalistas. Trata-se de um grupo formado em torno do Círculo Lingüístico de
Moscou e da Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética (OPOIAZ). O fundamento
imanentista dessa corrente pode ser percebido, entre outros, através da seguinte
formulação de um de seus principais representantes, Eickenbaum:
O objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos literários que os distinguem de qualquer outra matéria, e isto independentemente do fato de, pelos seus traços secundários, esta matéria poder dar pretexto e direito de a utilizarem noutras ciências como objeto auxiliar.12
Uma das principais contribuições do formalismo russo para a crítica é o conceito
de literariedade, ou seja, o conjunto de todas as características formais e estruturais que
determinam a singularidade do discurso literário em comparação com os demais tipos
de discursos e linguagens. Em outros termos, trata-se de uma busca pelas regras da
linguagem literária, aquilo que permite defini-la em oposição ao que não é literário. De
um lado, esse projeto se assemelha aos projetos já realizados anteriormente por
Aristóteles, Horácio e outros críticos interessados nas características imanentes do
fenômeno literário. De outro lado, contudo, os formalistas deram início a um
procedimento diferenciado, na medida em que buscaram, primeiro, na lingüística e,
posteriormente, na semiótica, os fundamentos teóricos a partir dos quais pretendiam
investigar os processos formais de composição e de evolução das formas literárias.
Dentro desse contexto, um dos formalistas mais influentes, sem dúvida, foi Roman
Jakobson.
12 EIKHENBAUM, 1999, p. 37.
Roman Jakobson
Apesar de ser hoje geralmente mais conhecido por suas descobertas no campo da
lingüística (especialmente sua definição do fonema e das funções da linguagem),
Jakobson, em sua atividade intelectual, sempre esteve fortemente ligado aos estudos da
literatura e, de forma não tão intensa, de outras artes, como a pintura e o cinema. De
fato, Jakobson sustenta a tese de que não há razão para separar literatura e lingüística: se
a primeira constitui a arte da criação verbal, a segunda é, por excelência, a ciência
encarregada de estudar a linguagem verbal, em todas as suas manifestações.
Jakobson foi amigo pessoal de artistas como Khliébnikov, Maiakovski,
Maliévitch, sendo que o grupo OPOIAZ (1914-5), que ajudou a criar, também contava
com a participação de Pasternak, Mandelshtam, Assiéiev, além do próprio Maiakovski.
Na década de 20, quando já atuava no Círculo Lingüístico de Praga, tornou-se amigo do
poeta tcheco Nezval e estabeleceu relações com o diretor de teatro E. F. Burian, tendo,
inclusive, colaborado com a preparação de um roteiro cinematográfico, juntamente com
Svatava Pirkova e Nezval.
A partir dessa preocupação simultânea com a teoria da literatura e com a
lingüística, Jakobson mantém, ao longo de toda a sua produção intelectual, a concepção
– já postulada desde os tempos de sua participação no Círculo Lingüístico de Moscou e
na Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética (OPOIAZ) – de que os estudos
literários e estéticos devem ocorrer sob um prisma semiolingüístico.
Como os demais formalistas, Jakobson também condena o tipo de estudo
literário que se ocupa dos “traços secundários” ou não imanentes da literatura (como
questões sociológicas, psicológicas, filosóficas), deixando de lado aquilo que possui de
mais central e específico: a linguagem verbal. Em um artigo dedicado ao tema do
realismo artístico, Jakobson chegou a afirmar que, antes de sua ligação com a lingüística
e com a semiótica, a história da literatura não podia ser considerada uma ciência, pois se
caracterizaria como uma mera causerie13: “Não faz muito tempo, a história da arte e, em
particular, a história da literatura, não era uma ciência, mas uma causerie. [...] Passava
alegremente de um tema a outro, e a torrente lírica de palavras sobre a elegância e a
forma dava lugar às anedotas retiradas da vida do artista.” 14
13 Causerie, do francês, pode ser traduzido como conversa superficial. 14 JAKOBSON, s.d., p. 159.
Jakobson afirma que, infelizmente, essa atitude pouco rigorosa tem sido
dominante no estudo da literatura. Por isso, numa atitude provocativa, chega a propor o
fim da crítica literária e sua substituição por uma “nova” disciplina: a poética,
principalmente devido às confusões terminológicas geradas pela postura impressionista
de muitos críticos15. Jakobson, juntamente com os demais formalistas, reivindica para a
lingüística “o direito e o dever de empreender a investigação da arte verbal em toda a
sua amplitude e em todos os seus aspectos”.16 Além disso, também postula uma divisão
própria das ciências destinadas a tratar da linguagem, de forma geral, e da literatura, de
forma específica. Como ciência mais geral, o autor propõe a semiótica, compreendida
como a teoria de todos os signos; a lingüística, por sua vez, faz parte da semiótica, mas
se restringe ao estudo do sistema dos signos verbais: “o objeto da semiótica é a
comunicação de mensagens, enquanto o campo da lingüística se restringe à
comunicação de mensagens verbais.”17 A poética, por sua vez, é um dos vários
domínios da lingüística: aquele cujo fim é o estudo da literatura enquanto arte verbal.
Diagrama com a proposta de divisão de disciplinas segundo Roman Jakobson SEMIÓTICA LINGÜÍSTICA POÉTICA Estudo de todos os sistemas de signos verbais e não-verbais
Estudo do sistema dos signos verbais
Estudo da literatura enquanto sistema de signos verbais
Em outros termos, para Jakobson, a poética compreende a “análise científica e
objetiva da arte verbal”, dividida a partir de “dois grupos de problemas: sincronia e
diacronia”.18 Seu objetivo principal é definir e explicar por que uma mensagem verbal
artística é diferente de mensagens artísticas não-verbais, de um lado, e, de outro, por que
é diferente de mensagens verbais não artísticas: em suma, trata-se de buscar “as
differentia specifica entre a arte verbal e as outras artes e espécies de condutas
verbais”.19 Ao procurar pelas differentia da literatura, de um lado, Jakobson dá
continuidade a grande parte das preocupações já tratadas pelos demais formalistas
russos, principalmente a descoberta de que a poesia se constrói lingüisticamente a partir
da relação motivada que estabelece entre o som e o sentido; de outro lado, contudo,
confere-lhes uma fundamentação lingüística e semiótica, buscada, de forma pluralista,
15 Sobre a questão da confusão criada pela crítica em relação aos termos idealismo e realismo, verificar Jakobson: El realismo artístico, p. 160s. 16 JAKOBSON, 1995, p. 161. 17 JAKOBSON, 1995, p. 20. 18 JAKOBSON, 1995, 121. 19 JAKOBSON, 1995, p. 119.
nas teorias que vai estudando ao longo de sua vida, desde o estruturalismo saussuriano,
a teoria da informação e da comunicação até o pragmatismo americano de Charles
Sanders Peirce, entre outras.
Já desde o tempo de sua colaboração com o círculo de Moscou, Jakobson
sustenta a tese de que a essência lingüística da poesia reside na relação de semelhança
que é capaz de estabelecer entre o som e o sentido. Mais tarde, essa relação é ampliada
para além do nível sonoro, englobando todos os demais níveis da linguagem,
principalmente a gramática. Após seu contato com as teses de Saussure, Jakobson
expande o alcance de sua descoberta, redefinindo a linguagem poética como aquela que
“projeta o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação”.20
Influenciado pela teoria da comunicação, Jakobson reformulou essa proposição
afirmando que a função poética é aquela em que a mensagem se dirige à própria
mensagem21; por fim, nos termos da semiótica peirciana, para a linguagem poética, a
“correspondência diagramática [ou seja, icônica] entre o significante e o significado é
patente e obrigatória.”22 Essa correspondência gera aquilo que Jakobson denomina de
auto-reflexividade (o referente da mensagem é a própria mensagem), que acaba
gerando, como conseqüência, a ambigüidade (a mensagem literária sempre veicula mais
do que um significado ao mesmo tempo).
Mais tarde, influenciado por Peirce, Jakobson passa a questionar o postulado
comumente aceito entre os estruturalistas, segundo o qual a relação entre significante e
significado é sempre arbitrária, como pretendia Saussure. Jakobson passa a definir a
mensagem poética como aquela em que predominam as relações motivadas ou icônicas
da linguagem (e não arbitrárias). Dentre dois tipos de iconismo postulados por Peirce, a
imagem e o diagrama, Jakobson acredita que é o segundo que prevalece na poesia.
É importante observar, por fim, que, ao contrário do que afirmaram alguns
opositores da poética formalista-estruturalista, sua proposta não é estática tampouco a-
histórica, pois Jakobson, apesar de ter sido fortemente influenciado pelas categorias
lingüísticas opositivas de Saussure, redefine-as em termos de complementaridade, o que
lhe permite tratar da literatura – bem como de qualquer outro sistema de signos – tanto
do ponto de vista sincrônico quanto diacrônico.
20 JAKOBSON, 1995, p. 130. 21 JAKOBSON, 1995, p. 127. 22 JAKOBSON, 1995, p. 112.
Ressalte-se, ainda, que a linguagem poética, apesar de receber uma
definição acurada, não deve ser vista como uma essência lingüística, mas como uma
função, presente de forma mais ou menos intensa nas mais diversas mensagens. Nos
termos do próprio autor, ela “não se confina à poesia. Há somente uma diferença na
hierarquia: tal função pode estar subordinada a outras funções, ou ao contrário, aparecer
como a função central, organizadora, da mensagem”.23
Umberto Eco e a semiótica literária
De certo modo, pode-se dizer que todos os críticos de literatura interessados em
realizar discussões a partir dos referenciais semiolingüísticos de Ferdinand Saussure ou
nos referenciais semióticos de Charles Sanders Peirce formam uma das correntes
imanentistas mais fortes e influentes em nossos dias: a semiótica literária. Nesse
sentido, os formalistas russos e, principalmente, Roman Jakobson, podem ser
considerados uma espécie de precursores da crítica literária realizada a partir da
semiótica. Vários autores poderiam ser apresentados aqui como parte dessa tradição,
como Roland Barthes, Algirdas J. Greimas, Julia Kristeva, Iuri Lotman, Claude
Bremmond, Jacques Derrida, entre outros. A seguir, serão apresentadas, de forma muito
breve, algumas idéias de um dos mais conhecidos semioticistas de nossa época,
Umberto Eco, que tem realizado um trabalho intenso não apenas de crítica como
também de produção literária, inspirado por um referencial semiótico próprio.
Desde que iniciou sua vida acadêmica, em 1954, até os dias de hoje, Umberto
Eco tem refletido sobre questões relativas à estética, às artes e à literatura, tendo
passado por algumas fases ao longo de seu pensamento. Nas décadas de 50 e 60, Eco
estudou a historiografia medieval e, principalmente, a estética de Tomás de Aquino. Seu
romance mais famoso, O nome da rosa, certamente deve muitas de suas idéias aos
estudos realizados nessa época. Na metade da década de 60, Umberto Eco passou a
estudar a estética da cultura das mídias voltadas para grandes massas, a partir de filmes
hollywoodianos, cartoons, revistas em quadrinhos, entre outros. Seu livro mais
importante desse período é Obra aberta, cujo principal interesse, para a crítica literária,
reside no fato de Eco utilizar conceitos que permitem estabelecer semelhanças e
diferenças estéticas entre o que nós consideramos a literatura canônica, de um lado,
dotada de valor literário, e a arte voltada para as massas, de outro lado, cujo principal
valor é o consumo rápido e imediato.
23 JAKOBSON, 1995, p. 21.
A partir de 1968, com a publicação de A estrutura ausente, bem como com a
publicação do Tratado Geral de Semiótica, de 1975, Umberto Eco elabora uma teoria
semiótica própria, que utiliza para discutir também questões ligadas à arte e à literatura.
Por fim, a partir da década de 80, em obras como Lector in fabula, Seis passeios pelos
bosques da ficção e Os limites da interpretação, Umberto Eco passa a realizar uma
teorização da literatura mais orientada pela teoria do texto e da pragmática, discutindo
principalmente o papel do leitor na fruição. Deve-se destacar, no âmbito da crítica, uma
série de artigos publicados, em 2002 – Sulla Letteratura (2002); [Sobre a literatura
(2003)] – em que Eco retoma suas principais concepções semióticas para discutir
grandes autores como Dante, Wilde, Borges, entre outros.
Visto não ser possível abordar aqui todas as idéias de Umberto Eco sobre a
literatura, a seguir, apresentaremos apenas um de seus principais conceitos utilizados
para definir a obra literária: o idioleto estético. Segundo Eco, a literatura, assim como
todas as demais artes, articulam-se em torno de uma contradição aparente, pois, de um
lado, não podem ser reduzidas a uma única regra de composição ou de estrutura, que
permitiria definir com exatidão o seu valor. Por outro lado, contudo, toda obra “deve ter
uma estrutura̧ pois de outro modo não haveria comunicação, mas pura estimulação
ocasional de respostas aleatórias.” (Eco: 1976, p. 60) Para resolver esse aparente
paradoxo, Umberto Eco desenvolve o conceito de idioleto estético.
A idéia do idioleto foi desenvolvida sob a influência dos conceitos de
ambigüidade e auto-reflexividade, de Jakobson. Nessa perspectiva, toda mensagem
estética e literária se estrutura de modo ambíguo com relação ao sistema de expectativas
que é o código a que pertence. Essa ambigüidade se transforma em auto-reflexividade
quando a mensagem estética se articula segundo um sistema particular de relações,
homólogo à própria língua ou ao código literário, mas que possui suas características
próprias. Para exemplificar, poderíamos dizer que cada período literário cria uma
espécie de idioleto, na medida em que podemos reconhecer características tanto formais
quanto temáticas próprias do Classicismo, do Romantismo, do Realismo etc, embora
cada um desses estilos esteja dentro do código da linguagem literária, que se diferencia
de outros códigos, como o científico, o religioso, o filosófico etc. Além disso, cada
autor, individualmente, também constrói um idioleto, que o diferencia, também em
termos formais e de conteúdo, em relação ao código do período em que está inserido.
Em poucos termos, o idioleto nos permite refletir sobre este aparente paradoxo
que parece vigorar nas artes e na literatura: de um lado, existem regras e estruturas de
composição; de outro lado, essas regras e estruturas são constantemente violadas pelos
escritores de diferentes períodos estéticos e literários, bem como uns em relação aos
outros do próprio período. Para concluir, podemos dizer que Umberto Eco acredita que
a linguagem estética, característica da literatura e das artes, possui uma função cognitiva
muito importante, pois, uma vez que sua ambigüidade inerente nos oferece várias
possibilidades de interpretação, o leitor é convidado a preencher os significantes com
significados sempre novos, transformando continuamente as denotações em conotações.
Dessa forma, “a mensagem estética compele-nos a experimentar sobre si léxicos e
códigos sempre diferentes.” (Eco: 1976, p. 68) Esse processo exigente de interpretação
leva o destinatário, de um lado, a uma experiência emotiva ou prazerosa e, de outro, a
um incremento contínuo de seu próprio conhecimento bem como de sua visão de
mundo.
ATIVIDADES
1) Qual das alternativas abaixo possui a melhor definição para crítica imanente?
a) A crítica imanente procura refletir sobre as obras literárias a partir de seu
contexto histórico.
b) A crítica imanente procura refletir sobre as obras literárias principalmente a
partir da ideologia que determina a época dos autores.
c) A crítica imanente procura refletir sobre as obras literárias a partir de suas
características internas ou inerentes.
d) A crítica imanente procura refletir sobre as obras literárias a partir de suas
ligações com o contexto sociocultural.
2) Qual dos pensadores abaixo pode ser considerado o precursor de uma crítica
imanente?
a) Aristóteles.
b) Horácio.
c) Boileau.
d) Umberto Eco.
3) Dentre as alternativas abaixo, qual a melhor definição para literariedade?
a) Literariedade é sinônimo de polissemia.
b) Literariedade pode ser explicada como um exemplo de auto-reflexividade.
c) Literariedade é o conceito utilizado pelos formalistas russos para determinar o
valor estético da literatura.
d) Trata-se das características imanentes do discurso literário.
4) Qual dos conceitos abaixo foi postulado por Roman Jakobson para explicar os
vários sentidos de uma obra literária?
a) Auto-reflexividade.
b) Ambigüidade.
c) Imanência.
d) Literariedade.
5) Qual a melhor explicação para o conceito idioleto estético, de Umberto Eco?
a) O idioleto é idêntico à auto-reflexividade, conforme o conceito de Jakobson.
b) O idioleto é idêntico à ambigüidade, conforme o conceito de Jakobson.
c) O idioleto caracteriza um desvio em relação ao código de expectavivas, o que
confere a cada obra seu caráter singular.
d) O idioleto caracteriza um código de expectativas ligado a um estilo de época
ou de período literário.
3. SOCIOCRÍTICA Profª. Dr. Maria Alice Braga - ULBRA
Diante dos textos modernos, a crítica deixa de lado sua função
tradicional e explicativa, renunciando, inclusive, aos estudos voltados para o
autor, sua biografia, já que em tais textos o sujeito é apenas um sujeito da
enunciação, produto do próprio enunciado, para, então, posicionar-se ante uma
mudança radical. Ao escolher a modernidade, a crítica ficaria com duas
funções: a científica e a escritura. Com a primeira, a crítica pode descrever os
textos, valendo-se, pois, do aparato conceitual e metodológico da semiologia.
Já com a escritura, a crítica privilegiará a produção de novos sentidos a partir
de sentidos prévios. Entre os dois pólos destacados, situam-se, de acordo com
a professora e pesquisadora Leyla Perrone-Moisés (2005, p. 20):
[...] os discursos ancorados nas ciências humanas. Esses discursos utilizam a linguagem como instrumento de conhecimento e, como tal, não pertencem mais a uma área especificamente literária, tendendo a ser anexados às diferentes ciências sobre as quais se apóiam, como aplicações dessas ciências a um domínio particular da atividade humana.
Os dois caminhos referem-se ao próprio texto; a semiologia porque visa
à leitura, no seu estado imanente, e a escritura porque se vale da linguagem
plena, que é a poesia.
Nessa perspectiva, voltamos aos antigos conceitos de crítica, que
sempre oscilaram entre a ciência e a arte. Assim, a modernidade opera com
grandes revoluções em todas as áreas do saber, não havendo mais a
possibilidade de separar ciência e arte – existe uma comunicação direta e
natural entre os dois pólos. Hoje a ciência, baseada na criatividade, está mais
próxima da arte.
Quando o estudo de documentos pertence a discursos variados, como Literatura,
História, Sociologia e Cultura de um povo, oferecendo, pois, subsídios para inserir o
autor no seu tempo e no seu espaço, pode-se recorrer à Sociocrítica.
3.1 Crítica literária e crítica sociológica O crítico literário Antonio Candido, na obra Literatura e sociedade (1985)
afirma que a crítica sociológica deve destacar os elementos sociais como partes da
estrutura do texto. Por exemplo: o conto A cartomante, de Machado de Assis, mostra
dimensões sociais claras como lugar, moda no vestir, tipo de transporte, costumes,
enfim, de uma época. Isso não se constitui em atividade crítica. O tema do conto de
Machado refere-se ao triângulo amoroso entre Rita, Vilela e Camilo, dentro de uma
sociedade rígida quanto aos conceitos sociais. A falência do casamento por causa do
envolvimento entre Rita e Camilo, reforçada pela crença nas cartas demonstra as
fragilidades pessoais e sociais.
O conto retrata as relações de casamento, que deveriam fundar-se nos princípios
do amor, entretanto, tornam-se degradadas pela traição. A leitura crítica possibilita ao
leitor uma visão maior não só quanto à estética, mas quanto aos traços literários, que são
o ponto e objetivo principais, tudo partindo dos aspectos sociais que o texto recupera na
sua estrutura.
Sob esse viés, a crítica sociológica, segundo Candido (1985), não deve ser
fechada, pois o crítico deve considerar as possibilidades lingüísticas, psicológicas,
religiosas, temáticas, etc, que enriquecem a interpretação do texto, ampliando, assim, o
universo dialógico entre leitor/texto.
Obra e sociedade
Antonio Candido reforça a ideia de que a arte sofre influência da sociedade na
mesma medida em que a influencia, aparecendo tanto na superfície do texto (descrição
de cidades, casas, vestuário, costumes, etc.), quanto na caracterização de personagens e
na estrutura profunda do texto.
A obra interfere na sociedade porque os indivíduos lêem o texto e recebem do
mesmo traços que podem mostrar-se na prática, alterando, de alguma formar, o
comportamento de tais leitores. No entanto, é importante lembrar que a influência
provém do livro, ou seja, vem de dentro da obra, não depende do autor ter tido ou não a
intenção de produzir efeitos.
Candido (1985) propõe uma subdivisão da obra literária em dois grupos: arte de
agregação e arte de segregação. A primeira seria um tipo inspirado “na experiência
coletiva e visa a meios comunicativos acessíveis”. (CANDIDO, 1985, p. 23) a ideia do
crítico refere que a arte deseja ser compreendida pelo maior número possível de leitores.
Seria uma leitura previsível, aquela em que o leitor já antecipa o desfecho dos
acontecimentos, posto que está acostumado com determinado tipo de texto. O leitor não
suportaria alterações significativas tanto na ideologia da obra como na sua linguagem,
rejeitando, assim, as mudanças.
A arte de segregação é aquela preocupada em inovar o sistema de símbolos. As
transformações mágicas ocorridas com algum personagem são motivo para que logo se
busque a causa e a solução para o problema surgido. Por exemplo, um personagem que
se transforma em um inseto, ou algo semelhante, como nos contos de fada, procura
reverter a situação para que não tudo volte à normalidade.
É importante destacar que somente a leitura pode derrubar o mito do texto muito
difícil, como é o caso da obra de Guimarães Rosa, que tanto desconforto causa no leitor
– a arte apresenta novidades, as quais são desafios para o desenvolvimento da
competência da leitura. Para que novos esquemas se estabeleçam, é preciso inovar e
deixar que novos sistemas simbólicos sejam absorvidos pelo nosso imaginário.
3.2. O que é Sociocrítica? Uma definição para a crítica sociológica ou sociocrítica é um discussão que pode
gerar muitas páginas, pois as definições sempre são discutíveis. De qualquer modo, a
professora Marisa Corrêa Silva (2005, p. 141) em seus estudos nessa área afirma que a
crítica sociológica “é aquela que procura ver o fenômeno da literatura como parte de um
contexto maior: uma sociedade, uma cultura”.
Podemos pensar a literatura como um fenômeno vinculado, diretamente, à vida
social. Portanto, a literatura não se constitui em um fenômeno independente; a obra de
arte literária é criada dentro de um contexto; em uma determinada língua, em espaço e
tempo definidos, enfim, onde se pensa de um determinado modo; assim, a obra carrega
em si os traços desse contexto. Ao estudar tais marcas dentro da literatura, percebemos
como a sociedade, na qual o texto foi produzido, se estrutura e quais seus valores.
Entretanto, não podemos confundir uma crítica que visa à história de vida do
autor com a crítica sociológica ou sociocrítica. A crítica sociológica ou sociocrítica
objetiva estudar os grupos sociais aos quais o autor pertenceria, por exemplo, diferente
da crítica biográfica, que focaliza momentos da vida do autor, ainda que estes sejam de
caráter social.
Podemos ilustrar: a crítica biográfica focalizaria a vida do escritor nordestino
Graciliano Ramos, destacando aspectos como a prisão do escritor durante o estado
Novo de Getúlio Vargas, na sua obra Memórias do cárcere.
Já a sociocrítica, partindo da mesma obra, do mesmo autor, isto é, com os
mesmos dados, analisaria de modo diferente, pois os fatos não são vistos como
individuais, mas coletivos. O relato de um homem passa a ser o depoimento simbólico
de uma sociedade. Em Memórias do cárcere o sofrimento narrado é a história de
homens e de mulheres de uma época (Estado Novo). Nesse viés, mais importante que
um romance autobiográfico é verificar, pela leitura, que a obra estabelece um elo
estético entre a realidade social, coletiva com a representação artística. O valor do
romance advém da obra em si e não do autor da mesma, pois a obra exprime os
mecanismos de repressão vigentes no país daquela época (Estado Novo).
O papel da sociocrítica
Pierre Barbéris, crítico francês, destaca que a sociocrítica possui o papel de
fazer com que cada leitor passe a observar o mundo que nos cerca e perceba o processo
de transformação da sociedade ao longo dos tempos, pois os hábitos, crenças, valores,
enfim, não surgem espontaneamente, tampouco duram uma vida inteira. A sociedade é
o reflexo de sua época e tudo muda constantemente, deixando rastros para as novas
gerações. Assim, as verdades que julgamos imutáveis, muitas vezes, não passam de
convenções arbitrárias.
Alguns textos podem reforçar as ideias já consagradas de seu tempo, valorizando
preconceitos, enquanto outros mostram a realidade nem sempre de modo claro, mas
inserida nas entrelinhas da estrutura textual.
Para o crítico francês Pierre Barbéris, a sociocrítica é uma ciência que visa ao
texto como um espaço onde acontece certa socialidade. Para ele, a realidade enquanto
história manifesta-se de três formas: história pode ser a realidade e o processo histórico
empiricamente reconhecíveis; história como um discurso histórico que propõe uma
interpretação da realidade e do processo histórico, a história oficial; e a história
enquanto narrativa ficcional que proporciona uma interpretação fora de ideologia, mas
em relação com o sujeito que pensa e escreve e com o público por nascer.
Barbéris explica, ainda, que a leitura sociocrítica e a sócio-história une a história
e a sociologia em um mesmo movimento já aceito e disponível. Então, a sociocrítica
não pode funcionar como uma bula com sentido redutor, ela está atenta ao novo e, mais
do que isso, ela contribui para uma nova maneira de escrever e de narrar, considerando
o homem no seu tempo e no seu espaço.
Pierre Barbéris completa:
Por isso a crítica moderna habilitou o fragmento e o rascunho, o pré-texto ou o peritexto, e já não se limita às obras-primas grandiosas das instituições. Ela se prende à noção de discurso, seja qual for sua roupagem. (1997, p. 164)
De acordo com ponto de vista do crítico francês, a sociocrítica enriquece
e destaca a questão do sujeito, ou seja, ela “institui o homem concreto no
contexto, mas à margem de uma humanidade concreta.” (1997, p. 165)
Os implícitos e a leitura
Um texto não é composto somente por questões claras, ao contrário, é
um objeto que expressa aspectos sócio-históricos, morais, religiosos e
filosóficos, podendo parecer apenas estético.
Ao lermos Madame Bovary, de Gustave Flaubert, não podemos reduzir
tudo ao adultério, sob pena de minimizarmos pontos importantes na obra de
Flaubert. O autor confere um tratamento cru ao romance, empregando o tema
do adultério e criticando o clero e a burguesia. Do mesmo modo, personagens
conduzem a narrativa e cada um possui traços definidores para as ações
dentro do texto, por exemplo, o mendigo cego, de Madame Bovary, é também
um poeta e um voyeur, na medida em que as opacidades contrastam com a
clareza do fio que conduz a narração, a vida. Aquele que não enxerga, faz
emergir frustrações ou alienações, aparentemente existenciais ou mesmo
relativas, que remetem a crises na realidade sócio-histórica. Também Emma
Bovary constitui-se emblematicamente nas amputações do ser e a busca de
soluções que envolvem o leitor.
Flaubert obrigou-se a enfrentar dificuldades técnicas, entretanto,
procurou vencer o romantismo exacerbado da época, tendo angariado críticas
severas a sua obra prima, que nem por isso deixou de ser o ponto de partida
para uma nova estética literária.
As grandes representações críticas, os mitos modernos, como Emma
Bovary e outros tantos que conhecemos, como Hamlet, de Shakespeare ou
Dom Quixote, de Cervantes, combinam e recuperam o universal particular, os
diversos inconscientes que compõem o imaginário. Assim, o legível deve ser
percebido e interpretado ao redor de pólos presentes no texto – os implícitos.
3.3 As bases da sociocrítica A sociocrítica fundamenta-se na sociedade, pois todo leitor, segundo
Barbéris (1997, p. 172) “pertence a uma sociedade e a uma socialidade que, a
um só tempo, determinam-lhe a leitura e lhe abrem espaços de interpretação,
condicionam-no e tornam-no livre e inventivo.”
O crítico francês também destaca que “todo leitor é um eu, oriundo de
relações paternas e simbólicas, as quais também o determinam e lhe abrem
espaços de pesquisa e de interpretação.” (p. 172)
A respeito das afirmações acima, podemos inferir que estão presentes
no texto buscas e invenções, pois as fantasias encontram-se no nível dos
signos, já que a linguagem constitui-se em um instrumento e meio de relação
entre o texto e o eu histórico e a história vivida pelo eu.
A crítica sociológica está imersa em uma sócio-história que a determina,
mas que, ao mesmo tempo, inventa e se distancia, estando, pois, envolvida em
discursos e signos preexistentes (e não fixos) à própria crítica. Nessa
perspectiva, há pontos que devemos destacar, os quais seguem abaixo:
- a crítica sociológica busca textos que se referem à realidade histórica, social e
política;
- a sociocrítica focaliza a história e a socialidade de textos que, aparentemente,
não foram trabalhados de modo claro.
Assim, podemos observar, nas palavras do crítico Pierre de Barbéris,
que: “A leitura sociocrítica não é, portanto, um acessório de um progressismo
simplista e ingênuo. É uma das formas da lucidez”. (1997, p. 176) A crítica
sociológica realiza uma leitura das virtualidades da história, bem como observa,
na escrita, todos os espaços para a descoberta da expressão social e histórica,
pois vê nesses aspectos campo fértil de todos os problemas recorrentes e
renovados da vida e da condição humana.
3.4 Importância da sociocrítica A sociocrítica, sem dúvida, realiza a leitura dos implícitos. Nesse ponto,
esbarramos na seguinte questão: nós não estamos preparados para ler a
nossa própria história, incluindo nossa socialidade, afetos e moral, pois
guardamos e resguardamos impondo sempre barreiras de segurança.
Desse modo, é difícil fazer crítica, especialmente a criança na escola,
onde o professor procura, por meio de uma leitura, solicitar a representação
crítica tanto do texto lido como da realidade circundante. A sociocrítica procura
auxiliar o indivíduo na medida em que desafia o olhar a percorrer o tempo e o
espaço. Então, entre as tarefas possíveis da sociocrítica pode:
figurar a leitura e a análise dos textos e apresentações escolares com seu discurso vigiado, pois o objetivo não é o de se entregar ao prazer de massacrar o aluno e de cair em um niilismo paralisante, mas o de ensinar a construir suas distâncias. (BARBÉRIS, 1997, p. 179)
A sociocrítica depende não apenas dos livros, os quais nos ensinam a
ler de outro modo, mas da nossa própria vida e da nossa relação com o mundo
que nos cerca. O sujeito crítico possui grande responsabilidade diante dos
tabus, pois a leitura coloca o homem frente à autonomia, à liberdade. Nesse
campo, a luta é infinita, pois nunca cessará o aprendizado da liberdade.
A sociocrítica preconiza que tudo é histórico, social e político,
especialmente os textos, os quais sempre pertencem a um tempo e a um
espaço. No entanto, esse espaço e tempo são utópicos, desconhecidos.
ATIVIDADES
1. Assinale a alternativa que preenche corretamente as lacunas do
seguinte trecho: uma das ideias que a crítica sociológica revela que
se deve destacar os elementos ___ como partes da ____ do texto.
a) culturais; leitura
b) lingüísticos; base
c) sociais; estrutura
d) históricos; escrita
2. Assinale a alternativa correta:
a) A obra interfere na sociedade, pois os indivíduos recebem do texto
traços que podem alterar o comportamento dos leitores.
b) A obra interfere sempre na sociedade, porque os indivíduos
recebem a mensagem do autor.
c) A influência da obra na sociedade provém do livro e do autor.
d) A influência obra na sociedade não provém do livro.
3. Assinale a alternativa correta no que se refere à obra de arte
literária, de acordo com o capítulo de sociocrítica:
a) Não é criada em tempo definido.
b) A obra carrega em si os traços distintos, independente do contexto
em que foi criada.
c) Tem características próprias apenas de seu autor.
d) É criada dentro de um contexto; em uma determinada língua, em
espaço e tempo definidos.
4. Assinale a alternativa correta:
a) A sociocrítica fundamenta-se na história de vida de cada indivíduo.
b) A sociocrítica fundamenta-se na sociedade, pois todo leitor pertence a
uma sociedade e a uma socialidade.
c) A crítica sociológica não pertence uma sócio-história.
d) A crítica antropológica busca textos que se referem à realidade
histórica, social e política.
5. Assinale a alternativa que complementa a afirmação a seguir: a
crítica sociológica realiza uma leitura das virtualidades da história,
bem como observa, na escrita, todos os espaços para a descoberta
da expressão social e histórica.
a) A crítica sociológica realiza uma leitura superficial dos textos.
b) A crítica sociológica preocupa-se com a história de quem narra.
c) A crítica sociológica encontra na escrita o espelho da vida e da
condição humana.
d) A crítica sociológica analisa todos os pontos do texto e destaca
apenas aqueles relacionados com a história de vida do autor.
4. Estudos Culturais Dra. Jane Brodbeck
Neste capitulo vocês terão a oportunidade de conhecer um pouco mais
sobre os estudos culturais, uma abordagem que engloba diferentes áreas do
conhecimento como a crítica literária, a sociologia, a antropologia, a semiótica,
a psicologia, a lingüística, as ciências políticas, a teoria da arte, o cinema, a
música, etc. Como se pode observar, a sua abrangência é muito ampla,
fazendo com que os estudos culturais tomem emprestado vários conceitos
elaborados por estudiosos de campos diversos, evidenciando uma forte
tendência a uma análise de cunho interdisciplinar. Assim sendo, não se pode
falar em estudos culturais como uma das correntes da crítica literária, pois seu
objeto não é apenas a literatura, mas sim as relações que se estabelecem
entre as diferentes áreas epistemológicas já referidas.
Em razão do caráter de interdisciplinaridade, tem havido uma reação
negativa de alguns críticos literários em relação aos estudos culturais, pois de
acordo com os mesmos a literatura perderia o seu valor de canonicidade,
sendo substituída por obras literárias baseadas em questões de raça, gênero e
classe. Um dos críticos mais aguerridos na defesa do cânone ocidental como
parâmetro estético a ser seguido pela academia é o americano Harold Bloom,
que escreveu obras tais como A angústia da influência, Gênio, Como e por que
ler, Um mapa da desleitura, Onde encontrar a sabedoria?, Shakespeare, a
invenção do humano, O cânone ocidental e vários outros. Nos seus livros,
Bloom privilegia a cultura literária que engloba autores como Shakespeare,
Cervantes, os poetas românticos ingleses (Shelley, Wordsworth, Byron),
escritores modernistas como Virginia Woolf, James Joyce, Proust e tantos
outros como se pode verificar na lista dos clássicos incluída em O cânone
ocidental, que provocou uma série de contendas a respeito do critério de suas
escolhas. Entretanto, a polêmica mais acirrada refere-se ao termo que ele
atribuiu ao grupo de intelectuais que privilegiam, conforme Bloom, a literatura
escrita por autores considerados minoritários e que não teriam qualidade.
Bloom afirma que esses intelectuais pertencem à Escola do Ressentimento.
A fuga do estético, ou sua repressão, é endêmica em nossas instituições do que ainda se diz educação superior. Shakespeare,
cuja supremacia estética foi confirmada pelo julgamento universal de quatro séculos, é agora “historicizado” em pragmática diminuição, precisamente porque seu misterioso poder estético é um escândalo para qualquer ideólogo. O princípio cardeal da atual Escola de Ressentimento pode ser exposto com singular brutalidade: o que se chama de valor estético emana da luta de classes. (BLOOM,1995, p. 30-31).
Apesar das críticas ferrenhas a que os estudos culturais têm sido alvo, a
contribuição que eles trazem é relevante e têm influenciado no estudo dos
textos literários de forma considerável. Propomos, portanto, inicialmente um
breve panorama a respeito das suas origens.
4.1. Origem dos estudos culturais No site da Universidade de Birmingham, Inglaterra, encontramos um
histórico resumido a respeito dos estudos culturais que se chamavam na
época, Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, fundado em 1964 por
Richard Hoggart, sendo que em 1968, Stuart Hall tornou-se o diretor do centro,
que ganhou renome mundial através do novo campo de pesquisa. Além de
Hall, também estavam associados ao centro Raymond Williams, E. P.
Thompson, Paul Gilroy, Richard Johnson, e outros nomes conhecidos. Apesar
da importância do centro, o mesmo foi fechado em 1991, quando foi criado um
Departamento de Estudos Culturais e Sociologia que também foi encerrado em
2002, restando apenas o Departamento de Sociologia, aberto em 2004.
É importante ressaltarmos que os pais fundadores dos estudos culturais,
Richard Hoggart, E. P. Thompson, Raymond Williams e Stuart Hall visavam a
um projeto político baseado na ideologia marxista, conforme atenta Jameson
(2005). Quando Richard Hoggart publica o seu livro The Uses of Literacy:
Aspects of Working Class Life (1957), há uma preocupação da parte do autor
em apoiar a cultura da classe popular frente ao elitismo canônico (alta cultura)
das classes média e alta. Para que se possa melhor compreender as idéias do
autor, transcrevemos neste espaço um excerto de sua obra:
Não se deve esquecer que essas influências culturais têm uma ação muito lenta sobre a transformação das atitudes e que elas são freqüentemente neutralizadas por forças mais antigas. A gente do povo não leva a vida pobre que uma leitura, mesmo aprofundada, de sua literatura levaria a pensar. Não é fácil demonstrar rigorosamente tal afirmativa, mas um contato contínuo com a vida das classes populares basta para tomar consciência disso. Mesmo que as formas
modernas do lazer encorajem entre a gente do povo atitudes que se pode corretamente julgar nefastas, é certo que dimensões inteiras da vida cotidiana permanecem ao abrigo dessas mudanças (HOGGART apud MATTELART; NEVEU, 2003, p. 42-43).
Desses primeiros estudos, depreende-se que o foco dos estudos
culturais era justamente combater o arrebatamento da classe operária pela
cultura de massas oriunda dos Estados Unidos, que de acordo com os autores
era banal e pretensiosa, pois se sobrepunha à cultura popular tradicional, que
tinha um vinculo direto com a condição social das classes trabalhadoras.
4.2. Migração dos estudos culturais britânicos para os Estados Unidos
A partir da década de oitenta, os estudos culturais começam a migrar
para outros países tais como os Estados Unidos, Canadá, Austrália, França e
Índia, adquirindo novas feições devido às idiossincrasias de cada país. Nos
Estados Unidos, a pedra angular dos estudos culturais que se originou na
classe operária britânica cede lugar a novos paradigmas.
À medida que os estudos culturais foram institucionalizando-se nos Estados Unidos, se profissionalizaram rapidamente. Em seguida, adquiriram uma linguagem técnica própria – com empréstimos da semiótica e da teoria literária- e, de forma adversa a sua fundação, transformaram-se numa disciplina acadêmica. Nos Estados Unidos, os estudos culturais deixaram de ser uma tradição intelectual para converter-se numa atividade profissional organizada e integrada no amplo espaço da erudição liberal (SARDAR; LOON, 2005, p. 58).24
Nos Estados Unidos, as particularidades da sociedade americana
apontavam para um compromisso com a questão da identidade social e as
representações das formas culturais. Dessa forma, os estudos culturais foram
aceitos na academia sem maior resistência. A década de oitenta expõe uma
sociedade que apresenta um mosaico de identidades e grupos sociais bem
como uma resistência, que nasce com o pós-modernismo, às grandes
narrativas, baseadas nas concepções do projeto iluminista. Diante disso, há um
distanciamento considerável entre os estudos culturais originários e aqueles
desenvolvidos nos Estados Unidos.
24 Tradução da autora deste artigo do original em espanhol.
4.3. A questão da identidade cultural Um dos temas recorrentes nos estudos culturais é o conceito de
identidade. Dos teóricos fundadores dos estudos culturais, Stuart Hall foi, sem
dúvida alguma, aquele que mais se debruçou sobre essa questão, justamente
por ser um dos exemplos vivos das mudanças que ocorreram a partir da
metade do século XX, com as migrações de vários sujeitos pertencentes às ex-
colônias para os países colonizadores. Numa entrevista a Kuan-Hsing Chen,
Stuart Hall enumera as razões que o levaram a sair de sua terra natal, a
Jamaica, emigrando para a Inglaterra. Além da sua insatisfação em ver os seus
pais e demais parentes reverenciarem a cultura do colonizador inglês, Hall
alimentava o desejo de sair daquele espaço que não lhe pertencia, tendo em
vista que os pais o achavam muito escuro quando era comparado com os
demais membros da família.
Minha própria formação e identidade foram construídas a partir de uma espécie de recusa dos modelos dominantes de construção pessoal e cultural aos quais fui exposto. Eu não quis pedir licença, como fez meu pai, para obter a aceitação da comunidade de negociantes expatriados, americanos ou ingleses. Não conseguia me identificar com aquele mundo antigo do engenho e suas raízes escravocratas, a que minha mãe se referia como uma “época de ouro”. Sentia-me muito mais como um garoto jamaicano independente. Mas não havia espaço para isso enquanto posição subjetiva na cultura de minha família (HALL, 2003, p.409).
São nessas memórias que Hall encontra a matéria prima para desenvolver os
conceitos de identidade cultural, que revolucionaram a antiga noção de cultura
existente em épocas passadas. A partir de seus estudos, Hall aponta para três
concepções diferentes de identidade: do iluminismo, do sujeito sociológico e do
sujeito pós-moderno. Neste último, a identidade não tem as características de
essencialismo presentes no sujeito do iluminismo, pois a pós-modernidade
refere-se ao tempo da fragmentação, da dissolução das certezas, da
desconstrução da identidade fixa, gerando identidades contraditórias, num
processo de transformação contínua “em relação à maneira como somos
representados nos sistemas culturais que nos circundam” (HALL,1996, p. 277).
O que as teorias recentes da enunciação sugerem é que, apesar de nós falarmos “em nosso próprio nome”, de nós mesmos e de nossas experiências, ainda assim o sujeito que fala, e o sujeito que é falado, não são nunca idênticos, nunca estão no mesmo lugar. A identidade não é tão transparente ou tão bem resolvida como pensamos. Talvez ao invés de pensarmos em identidade como um fato terminado, que as novas práticas culturais representam, nós deveríamos pensar em identidade como “produção” que nunca é completa, sempre em processo, e sempre constituída dentro, e não fora da representação. [...] Nós todos escrevemos e falamos a partir de um local e um tempo particular, de uma história e uma cultura que é específica. O que falamos está sempre “contextualizado”, posicionado (HALL,1994, p. 392)25.
4.4. Diáspora O conceito de diáspora que encontramos nos estudos culturais difere do
originário relacionado à experiência judaica, quando o deslocamento era
exclusivamente forçado. A diáspora a que nos referimos está associada a um
movimento de cidadãos das ex-colônias africanas, da Índia e da América
Central que migraram para os países colonizadores em busca de melhores
condições de vida. Como já foi mencionado anteriormente, o próprio Stuart Hall
migrou voluntariamente da Jamaica para a Inglaterra onde fixou residência e
atuou como professor e teórico nas universidades. A respeito da diáspora
contemporânea, Stuart Hall ressalta que essa perspectiva diaspórica traz “uma
subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação” (HALL,
2003, p. 36). As trocas que são realizadas entre os diferentes grupos étnicos
determinam um hibridismo que nasce exatamente do contato com cidadãos de
comunidades diversas. Hall cita como exemplo a música e a subcultura
dancehall (salão de baile) na Grã-Bretanha, oriundas da música e subcultura
da Jamaica.
A música dancehall é hoje uma forma musical diaspórica incorporada – uma das várias músicas negras que conquistam os corações de alguns garotos brancos “quero-ser” de Londres (isto é, “quero-ser negro”!), que falam uma mistura pobre de patois de Trench Town, hip-hop nova-iorquino e inglês do leste de Londres, e para os quais o “estilo negro” é simplesmente o equivalente simbólico de um moderno prestígio urbano (HALL, 2003, p. 37-38).
Os contatos que se estabelecem não seguem a fórmula da síntese, ou seja,
da fusão de dois opostos; nos encontros entre sujeitos que pertencem aos
países colonizados e sujeitos oriundos de países do primeiro mundo surge um
25 Tradução da autora do artigo do original em inglês.
terceiro espaço que se caracteriza pela ambivalência, pelo entre-lugar, pela
catacrese. É importante atentarmos para o fato que “a proliferação e
disseminação de novas formas musicais híbridas e sincréticas não pode mais
ser apreendida pelo modelo centro/periferia ou baseada simplesmente em uma
noção nostálgica e exótica de recuperação de ritmos antigos” (HALL, 2003,
p.38). Há, portanto, músicas novas que nascem na diáspora.
4.5. Grupos étnicos Conforme o Dicionário de Relações Étnicas e Raciais (2000, p. 196), etnia
deriva do termo grego etnikos, adjetivo de ethos, e refere-se a povo ou nação.
Verifica-se que os grupos étnicos se formam a partir de experiências
compartilhadas por privação tais como os índios, os aborígenes, os escravos
africanos, os imigrantes. Como a etnia está relacionada com o sentimento de
pertencimento a um determinado grupo, verifica-se na contemporaneidade um
fenômeno que enfraquece essas noções de pertencimento, tendo em vista que
a globalização produz alterações na configuração das comunidades com o
passar do tempo. O que se verifica nos Estados Unidos, por exemplo, é uma
mudança gradativa de costumes, valores, locus da enunciação. A imagem que
nos era transmitida através do cinema de Hollywood dos índios selvagens,
primitivos, inimigos dos brancos sofreu profundas mudanças nas últimas
décadas. Os cocares, as roupas de festas, as cerimônias religiosas são cada
vez mais utilizadas como atração para turistas. Nas reservas indígenas há um
número cada vez menor de índios, pois migram para os grandes centros
urbanos, configurando-se um processo de hibridização. Os índios, dessa
forma, adquirem hábitos urbanos, mas não há uma assimilação total, pois as
novas gerações indígenas preservam elementos que garantem a continuidade
das culturas locais.
Vários escritores indígenas estadunidenses se valem das experiências que
tiveram durante a sua infância na reserva e da mudança para as grandes
cidades, sofrendo a discriminação da cor da pele, dos costumes,
transformando essas experiências em produção ficcional. Nas narrativas
indígenas da pós-modernidade, detectam-se elementos que são inerentes à
cultura indígena, como a oralidade que imprime à narrativa uma força e
originalidade ímpares, pois valem-se de estratégias da língua oral para
representar modelos de vida urbanos.
Outro grupo que apresenta feições semelhantes aos índios são os chicanos,
que são imigrantes mexicanos que cruzaram a fronteira México- Estados
Unidos legal ou ilegalmente, adotando o modo de vida americano. Ainda que
os chicanos vivam em contato diário com uma cultura totalmente diferente da
sua, a assimilação está longe de acontecer, pois a língua espanhola é
preservada através das escolas bilíngües e da tradição de se falar espanhol em
casa ou quando se reúnem em grupos. Há inclusive uma resistência da parte
de muitos imigrantes mexicanos em aprender inglês.
4.6. Multiculturalismo A partir dos movimentos diaspóricos realizados através das migrações de
sujeitos das ex-colônias para países do primeiro mundo, verifica-se a
disseminação de costumes, línguas diferentes, hábitos, crenças que iniciam um
processo de “contaminação”, que se constitui nas relações entre nativos e
diaspóricos. O conceito de pureza, que por tantos anos alimentou a idéia de
raças superiores cujos membros não deveriam sujeitar-se à “contaminação”
com raças consideradas inferiores, desaparece na sociedade contemporânea
multicultural. Se tomarmos duas cidades cosmopolitas como Nova Iorque e
Londres, observamos uma diversidade de grupos étnicos oriundos de vários
países, sinalizando novos parâmetros de sociabilidade em que o hibridismo
torna-se uma constante.
Similar aos estudos culturais, o conceito de multiculturalismo sofre críticas
quanto à divisão e ameaça à unidade do Estado. Também há críticos que
advertem contra o perigo da criação de guetos sociais ou culturais, bem como
conflitos e tensões.
Por sua vez, na área da educação, “o multiculturalismo direciona as escolas
para um currículo que incorpora matérias de diferentes culturas e provê a
celebração de festividades, religiosas ou não, como forma de alimentar a
consciência das diferenças culturais e de promover relações positivas entre os
estudantes” (CASHMORE, 2000, p.372).
4.7. Aplicabilidade dos estudos culturais Nesta seção elencamos algumas aplicações práticas dos estudos culturais, que
podem servir de referencial para os profissionais das diversas áreas do
conhecimento. Um dos exemplos escolhidos provém do livro Dez lições sobre
estudos culturais, de Maria Elisa Cevasco, em que ela faz referência à crítica
norte-americana Susan Willis, “que estuda manifestações da vida cotidiana dos
Estados Unidos para tentar entender como essa lógica da mercadoria permeia
todas as atividades humanas – das mais corriqueiras, como ir ao
supermercado ou à academia de ginástica, às mais elaboradas, como ler um
romance de alta literatura” (p. 166).
Outro exemplo que a autora refere é o livro de Roberto Schwarz, Duas
meninas, em que o autor escreve dois ensaios, um sobre Dom Casmurro, de
Machado de Assis; outro sobre o diário de uma menina de Diamantina, Helena
Morley, autora de Minha vida de menina.
Ao encontrar as semelhanças estruturais entre as duas obras e submeter com sucesso um livro “popular” à leitura cerrada reservada às obras consideradas grandes, Schwarz, sem alarde, desmonta alguns dos paradigmas mais resistentes da crítica literária. Um dos mitos mais caros da disciplina é o de que o mundo é caótico e o artista lhe dá forma. Ao encontrar forma no relato despretensioso da menina que não se diz artista, constata-se que a lógica da forma, e mesmo sua virtualidade estética, só podem vir da realidade prática, e é na interligação entre forma estética e forma social, dois aspectos da mesma estrutura, que reside o trabalho da crítica (CEVASCO, 2003, p. 185)..
Ao encerrar este estudo conciso sobre os estudos culturais, acreditamos
que este modelo de análise possa ser muito útil não apenas nos programas de
pós-graduação, mas principalmente nas escolas de ensino médio quando
tantas vezes os professores insistem na obrigatoriedade de certas leituras sem
quaisquer aportes contextuais para ambientar os leitores alunos. Partindo da
noção de cultura como processo contínuo e das relações que se estabelecem
com a obra literária, acreditamos que os professores possam efetivamente
usufruir das perspectivas que os estudos culturais oferecem quanto à amplitude
de visões originais da mesma obra.
ATIVIDADES
1. Assinale a alternativa correta.
a) A Escola do ressentimento constitui-se num grupo de profissionais que tem como objetivo criticar Harold Bloom.
b) De acordo com os parâmetros de Harold Bloom, pode-se afirmar que Homero é um autor canônico.
c) Conforme Bloom, Shakespeare está sendo estudado por historiadores. d) A indignação de Harold Bloom refere-se ao gradativo descaso com as
questões sociais pelos intelectuais contemporâneos.
2. A identidade cultural é aquela que: a) o sujeito nasce e permanece basicamente o mesmo ao longo de sua
vida. b) a identidade da pessoa é formada na interação entre o eu e a
sociedade. c) considera fatos, entidades e dados dotados de objetividade na
sociedade. d) o sujeito está em processo de transformação contínua.
3. Para os estudos culturais, a diáspora contemporânea: a) surgiu de um recrudescimento do sentimento de nacionalidade. b) produziu um sentimento de alteridade nas comunidades, em que o
estrangeiro é sempre visto como inimigo. c) provoca a criação de novas produções artísticas d) oportuniza o binarismo.]
4. Assinale a alternativa correta. a) Os índios, o negros, os imigrantes não fazem parte dos grupos
minoritários, mantendo-se em guetos. b) Há hoje em dia uma hibridização de costumes como verificamos no
índio urbano. c) Os grupos étnicos na contemporaneidade caracterizam-se pela total
assimilação de costumes do novo país. d) Os chicanos são mexicanos que migraram para vários países.
5. Assinale a alternativa incorreta: a) O multiculturalismo é um movimento que prega a união de todos os
povos. b) O multiculturalismo não compreende a sociedade baseada em
concepções essencialistas. c) Na sociedade multicultural há um mosaico e não um cadinho de
grupos raciais. d) O multiculturalismo promove a diversidade.
5. ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
Mara Elisa Matos Pereira
Neste capítulo apresentaremos Estética da recepção. Esta corrente teórica que
surge e se consolida na segunda metade do século XX coloca o leitor como objeto
central de seus estudos. Os alemães Hans Robert Jauss e Wolfgan Iser são seus
principais representantes. Como a nossa intenção é demonstrar a aplicação de alguns
conceitos-chave desta teoria em uma obra literária, faremos apenas uma breve
explanação a respeito dos trabalhos desenvolvidos por Jauss e Iser.
Nosso foco será a análise de A história sem fim, um romance infanto-juvenil de
Michel Ende, publicado em 1979, que nos permitira refletir a respeito do processo de
leitura. Para tanto, o pensamento de Iser será essencial, pois é ele que nos oferecerá
nossa principal fundamentação teórica.
5.1. Alguns pressupostos teóricos da Estética da re cepção
A estética da recepção entra em cena na Teoria da Literatura através da
conferência ministrada por Hans Robert Jauss na Universidade Constança, na
Alemanha, em 1967, intitulada História da Literatura como provocação da ciência
literária. Nessa conferência, Jauss propõe uma inversão metodológica na abordagem
dos fatos artísticos, sugerindo que o foco deve recair sobre a recepção, e não somente
sobre o autor e a produção literária (LIMA, 1979, p. 10)
Dialogando com a escola marxista e com a escola formalista, presenças
teóricas fortes em sua época, Jauss procura situar sua proposta. Ele afirma que os
métodos desenvolvidos por ambas compreendem o fato literário encerrado no círculo
fechado de uma estética da produção e da representação. Com isso as duas privam a
literatura de uma dimensão que é componente imprescindível tanto de seu caráter
estético quanto de sua função social: a dimensão de sua recepção e de seu efeito
(ZILBERMAN, 1989).
Enquanto e escola marxista trata o leitor da mesma maneira que trata o autor,
procurando caracterizá-lo socialmente, a formalista ocupa-se dele apenas enquanto
sujeito da percepção, alguém que se limita a desvendar um procedimento,
apresentado em um texto. Com tais preocupações, as duas escolas ignoram o
verdadeiro papel do leitor, aquele de destinatário ao qual a obra literária visa em
primeiro lugar.
Jauss chama atenção para o fato de que o que condiciona, primeiramente, a
obra literária é sua relação dialógica como leitor, tal relação possui implicações tanto
estética quanto históricas. A implicação estética reside no fato de, desde sua recepção
primária pelo leitor, uma obra encerrar um avaliação de seu valor estético, pela
comparação que tal leitor faz com outras obras já lidas. A implicação histórica
manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos
primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo
assim, o próprio significado histórico de uma obra e tornando visível sua qualidade
estética. Jauss postula que, contemplando a literatura pelo ângulo de sua recepção,
pode-se encontrar uma mediação entre seu caráter estético e seu caráter histórico, até
então divorciados (JAUSS, 1984).
Wolfgang Iser, professor como Jauss na Universidade de Constance, construiu
a Teoria do Efeito Estético a partir das disciplinas de Sociologia do Conhecimento, da
Pragmática, da Psicologia da Gestalt e da Psicologia Social.
Ele preocupa-se investigar e explicitar os elementos que estão dentro do texto
e que convidam, por si mesmos, à recepção, ou seja, dentro do próprio texto há
elementos que comandam a maneira como ele será percebido. Nesse sentido, cada
texto literário direciona a visão do mundo, selecionando ou eliminando certos
elementos de maneira diferente dos da realidade. Conforme Tadié(1992, p. 282):
Como atua a arte sobre nós é a questão essencial, que se divide em três: “De que modo são recebidos os textos? Como aparecem as estruturas que orientam junto ao leitor a elaboração dos textos? Qual é, no seu contexto, a função dos textos literários?”Cada texto literário dá origem a uma visão do mundo, ali selecionando, ou eliminando, certos elementos em nova combinatória, diferente daquela da realidade. A seleção “anula a referência à realidade”, a “combinação reverte as limitações semânticas do léxico”. A “estética do efeito’ compreende o texto como um processo em estágios podem ser distinguidos, como uma dialética entre o texto e o leitor, que se produz no decorrer da leitura:”A obra é a constituição do texto na mente do leitor”
Como podemos observar, o leitor e o processo de leitura ocupam o espaço
central nos estudos de Iser, pois, para ele, uma obra literária só atinge a sua real
existência no momento em que está sendo lida. É na interação entre texto e leitor,
proporcionada pela leitura, que ela atinge sua concretização. A base destas idéias
está na conceituação da obra de arte literária como objeto intencional, esquematizada
e conseqüentemente indeterminada, conforme Roman Ingardem define e Iser adota
(EAGLETON, 2001, p. 106).
É a indeterminação do texto literário que desencadeia o processo de
comunicação entre texto e leitor, pois é no campo do indeterminado, do vazio, que o
leitor atua, preenchendo e determinando o que não é dado pelo esquema. Sendo
assim, uma obra literária só pode atingir sua forma na mente do leitor.
O texto pode orientar o processo, estabelecer limites para o
leitor, mas a concretização é individualizada e por isso sujeita
a modificações. O mesmo leitor, por exemplo, pode concretizar
o mesmo texto de maneira diferenciada a cada leitura que dele
faz. Não é só o fato de a leitura ser uma experiência individual
que determina a variação da concretização, o próprio texto,
como objeto de natureza polissêmica, oferece inúmeras
possibilidades que o leitor seleciona enquanto busca
estabelecer sua consistência. As possibilidades não
selecionadas continuam a existir e como potencialidades estão
sempre disponíveis para atualização.
5.2. A história sem fim: uma análise do processo de leitura
Iser descreve em detalhes estas e outras idéias em seus textos teóricos e
serão elas que serão utilizadas no presente trabalho. O alvo de aplicação, como
dissemos anteriormente, é o texto literário A história sem fim, de Michael Ende. Esse
livro possui, como singularidade, o fato de ilustrar em suas páginas o processo de
leitura. Sendo assim, a união das idéias de Iser e o texto de Michael Ende parece ser
conveniente e produtiva, pois o segundo ilustra muito dos conceito que Iser postula.
O objetivo, então, é demonstrar, através da análise do texto, como a leitura é
tematizada e o processo de leitura ilustrado em A história sem fim. O roteiro a ser
seguido para o desenvolvimento do tema tem como ponto de partida a construção da
narrativa, a meta é verificar até que ponto a maneira como está construída a narrativa
em A história sem fim serve para ilustrar o processo em questão. O segundo ponto a
ser trabalhado é o narrador do texto, quais são suas peculiaridades e sua relação com
os leitores previstos para esta obra. O ponto seguinte trata de analisar o leitor. Para A
história sem fim, existem três leitores possíveis, o implícito e o real, comum a
qualquer obra literária, e o representado, específico de algumas obras que tematizam
a leitura, entre elas o texto em questão. Por fim, a análise focaliza o processo de
leitura em si, procurando encontrar e destacar os pontos comuns entre o que está
sendo ilustrado no texto e o que é descrito por Iser.
A história sem fim toca em outras questões que envolvem a leitura e que
mereceriam um tratamento detalhado, mas como nosso objetivo é verificar de que
maneira o processo de leitura é ilustrado no livro de Ende, elas receberam um
tratamento indireto e proporcional a sua importância para o desenvolvimento dos
pontos propostos. Não é intenção esgotarmos a obra, visto que ela apresenta uma
riqueza de aspectos e peculiaridades muito grande, o que reforça a idéia da natureza
polissêmica da obra literária.
É preciso salientar que a ilustração do processo de leitura proposta em A
história sem fim não é um modelo geral, ela aparece individualizada, pois aparece
identificada com uma personagem específica, o menino Bastian, um leitor com suas
peculiaridades e com personalidade definida. O fato de individualizar, além de ilustrar,
abre o espaço para a discussão do próprio processo de leitura, não no sentido de
concluir qual a maneira adequada de conduzi-lo, mas de levantar questões que estão
constantemente presentes no ato de leitura, por esse ser individual, solitário, e ter
como alvo um objeto tão polissêmico e indeterminado como é a obra literária.
A construção da narrativa
Iser (1979) diz que o processo de leitura lida com dois elementos básicos: a
construção do texto e a interioridade do leitor. A construção do texto orienta, estimula
e estabelece os limites ao processo de leitura. Em A história sem fim, essa construção
não só desempenha esse papel, como também contribui para a ilustração do próprio
processo, pois ela está construída de forma a apresentar um livro dentro de um livro,
uma narrativa que conta a leitura de outra. Este tipo de construção estabelece um
diálogo entre as duas partes do texto, diálogo esse que é próprio do processo de
leitura.
O texto está estruturado em duas grandes partes. A primeira
narra duas histórias, não paralelas, mas uma dentro da outra.
A história de Bastian, um menino de dez anos, medroso e
desajeitado, que tem como grande paixão os livros. Essa
paixão faz com que ele roube, de uma loja, um livro que o
atraiu pelo título, A história sem fim. Título esse que lhe
prometia a satisfação de um grande desejo, ler uma história
que nunca chagasse ao fim. Por isso, Bastian rouba o livro e
passa a lê-lo escondido no sótão de sua escola. Tem início,
então, outra narrativa, a da história que Bastian está lendo.
Leitor real e leitor representado passam a ocupar o mesmo
espaço, com a diferença de se ter, descrito no texto, paralelo à
história que está sendo lida, o modo como ela está sendo
recebida e concretizada por Bastian. O artifício concreto
utilizado é a mudança da cor da letra do livro. A narrativa da
situação leitura de Bastian mantém a cor da letra do início do
livro, a história lida por ele é apresentada em cor de letra
diferente.
Os dois textos estabelecem um diálogo, de um lado está um leitor (Bastian),
suas emoções, expectativas e incertezas em relação à história que está lendo, de
outro, está a narrativa que desperta essas emoções, satisfaz essas expectativas e
provoca essas incertezas. De um lado, o mundo representado equivale ao mundo real,
do outro o mundo representado é fantástico. E ainda, de um lado o personagem é um
menino comum, um ser humano, do outro os personagens são seres fantásticos.
A construção do texto permite mostrar os dois lados envolvidos no processo de
leitura, a interioridade do leitor, no caso específico, de Bastian; e a narrativa lida. A
cada aventura narrada, Bastian responde com uma reação, a cada explicação do
narrador, Bastian domina melhor o mundo narrado, dando-lhe forma, preenchendo as
indeterminações.
O diálogo entre as duas partes do texto se intensifica progressivamente. A
atuação de Bastian é cada vez maior, ao ponto de, a partir de um determinado
momento, se iniciar a ruptura da barreira entre os dois textos. A atuação de Bastian
começa a ser narrada na história que ele está lendo. Isso começa a acontecer no
capítulo IV do livro:
Bastian emitiu um pequeno grito de horror. Um grito de horror ressoou acima do ruído da batalha ecoando
várias vezes nos rochedos. Ygramul voltou o olho para a esquerda e para a direita, para ver se havia outro recém chegado, pois o rapaz que estava à sua frente, como que paralisado pelo terror, não podia ter sido. Mas não havia mais ninguém.
Terá sido o meu grito que ele ouviu?, pensou Bastian muito
perturbado. “Não é possível”.(ENDE, 2000, p. 63 - 64).
Desse ponto em diante, os dois textos vão se aproximando até o momento em
que acontece o rompimento total das fronteiras, que corresponde à chegada física de
Bastian à Fantasia, mundo maravilhoso em que se passa a história lida por ele até
então. Essa chegada suscita muitas interpretações, mas em nível de construção
narrativa, ela significa a unificação das histórias, ou seja, uma das narrativas (a da
leitura do livro), deixa de existir momentaneamente, pois perde o motivo de sua
existência: o leitor que lia um livro de aventuras e dele participava intensamente passa
a ser personagem da história lida por ele.
A partir daí, a construção da narrativa já não participa de forma explícita da
ilustração do processo de leitura, pois o diálogo entre os dois textos, as reações de
Bastian ao ler a história, era ponto chave que a construção possuía para ilustrar o
processo. Suprimida essa parte, a construção da história passa a exercer outras
funções.
5.3. O narrador O narrador, em A história sem fim, é aquele que detém todas as
informações. Ele conhece a fundo os dois mundos narrados, conhece também o
passado, o presente e o futuro, servindo-se constantemente deste conhecimento
para se aproximar do leitor e garantir o sucesso do processo de comunicação que
está envolvido na leitura.
Sua voz permanece a mesma nas duas narrativas, o fato dele estar narrando os
acontecimentos de dois mundos diversos não lhe causa qualquer dificuldade, pois,
como já foi dito, ele conhece muito bem os dois mundos, suas histórias e sua
estreita ligação.
Ele é um narrador empenhado em orientar o leitor, está sempre dando
explicações:
Neste ponto cumpre fazer um interrupção para explicar algumas peculiaridades da geografia de Fantasia. Os países e os mares, as montanhas e os rios são fixos como no mundo dos homens. Por exemplo, seria completamente impossível fazer um mapa de Fantasia. . . Dado que Fantasia não tem fornteiras, o seu centro pode estar, em qualquer parte. . ., ou, melhor dizendo, está ao mesmo tempo perto e longe de todos os pontos do reino. Tudo depende de quem chegar a esse centro. E o centro de Fantasia é precisamente a Torre de Marfim. (ENDE, 2000,142-143)
Ele antecipa acontecimentos e com isso cria expectativas que nunca deixa
de satisfazer:
Chegou finalmente o dia da coroação, coroação que não aconteceria. Esse dia iria passar para a história de Fantasia como o da batalha sangrenta da Torre de Marfim.
Logo de manhã, o céu estava coberto por um manto espesso de nuvens cinzentas, cor-de-chumbo, e o dia nem sequer chegou a romper. Pairava sobre todas as coisas uma luz crepuscular e inquietante, o ar estava totalmente imóvel e tão pesado e opressivo que mal se podia respirar.(ENDE, 2000, p.324)
Apesar da preocupação de manter seu leitor informado, muitas vezes ele
deixa para esse encontrar a explicação de determinado fato relatado:
Xaíde – seu fim consta-se rapidamente, apesar de ser difícil de compreender e de trazer muitas contradições, como tantas outra coisas em fantasia. Os eruditos e os historiadores ainda se esforçam por compreender como tal coisa foi possível. Alguns duvidam inclusive dos fatos, ou tentam lhes dar interpretações diferentes. Mas vamos contar aqui o que realmente aconteceu e os nossos leitores que tentem explicar as coisas o melhor que puderem(ENDE, 2000, p.351).
Além disso, enquanto está narrando a aventura de Atreiú, herói de
Fantasia, e dando pistas constantes para que Bastian perceba sua participação na
história de maneira direta, para os outros leitores, ele antecipa claramente que
Bastian não pode mais fugir e esta participação na história que está lendo.
O narrador de A história sem fim não frustra seus leitores. Todas as
expectativas que ele desperta, ele satisfaz. Além de não frustrar, ele também não
surpreende, mesmo quando apresente um fato tão inusitado quanto um leitor
tornar-se personagem do livro que está lendo. É que a passagem de Bastian de
seu mundo para o mundo de Fantasia é gradualmente anunciada. O leitor espera
curiosamente que isso aconteça, anseia, até, mas não se surpreende. O próprio
Bastian, enquanto leitor, não é totalmente surpreendido, pois, como já foi
explicado, o narrador lhe dá pistas que, apesar de sua resistência em aceitar,
acabam preparando-o para o momentos em que ele não pode mais fugir de sua
participação física em A história se fim.
A grande surpresa do texto toma forma gradualmente a partir da chegada
de Bastian em Fantasia. Primeiro, ele recebe o Aurin, espécie de símbolo que
representa o poder da Imperatriz Criança, figura suprema do mundo maravilhoso
apresentado no texto, das mãos da própria. O Aurin é a promessa de que terá
todos os seus desejos satisfeitos em Fantasia, já que com sua ida ele salva o
mundo de Fantasia da destruição.
Ao conceder um novo nome à Imperatriz Criança, Bastian a cura e com ela
todo o seu mundo. Espera-se, então, que a narrativa siga um caminho
determinado. Esse caminho levaria Bastian ao sucesso e a superação de seus
problemas, mas é justamente o contrário o que acontece, a satisfação dos desejos
de Bastian se revela bastante nociva. Isso será desenvolvido quando o leitor
representado, ponto a ser tratado posteriormente, for introduzido.
Em muitos momentos, o narrador contribui para a ilustração do processo de
leitura. Por exemplo, quando dá uma explicação no espaço da narrativa lida por
Bastian, e relata como ela é recebida por Bastian:
Agora sabia finalmente o que era necessário fazer. Só um folho do homem, um habitante do mundo que ficava para além de Fantasia, podia dar um novo nome à Imperatriz Criança. Tinha de encontrá-lo e de levá-lo até junto dela. Levantou-se de um salto.
“Ah”, pensou Bastian, “eu gostaria tanto de ajudá-la – a ela e
também a Atreiú. Com certeza eu poderia inventar-lhe um nome maravilhoso. (ENDE, 2000, p.101)
Sua participação na ilustração do processo de leitura apresentado pelo livro
é menor que a sua participação no processo de leitura desencadeado pelo livro.
Nesse, sua atuação é fundamental, porque ele consegue fechar e dar acabamento
às duas histórias por ele narradas, estabelecendo correspondências que permitem
ao leitor concretizar, sem problemas, uma situação inusitada como a de ver um
leitor tornar-se personagem do livro que está lendo. Ele não explica claramente
como isso acontece, mas fornece informações que possibilitam a construção de
inúmeras hipóteses pelo leitor. Não é função do narrador questionar como
aconteceu, mas contar o que aconteceu, a explicação de como fica a critério do
leitor. Ainda que o livro ofereça indicações para esta questão, vale observar o
diálogo final entre Bastian e o Sr Koreander, não transcrito aqui devido sua
extensão.
5.4. O leitor
Como já dissemos anteriormente, o texto de A história sem fim prevê
para si mesmo três tipos de leitores. Dois deles, próprios de qualquer obra literária, o
outro seu particular.
Cabe aqui apresentarmos cada um dos leitores, com suas
peculiaridades que têm papel fundamental seja na ilustração do processo de leitura
proposto pelo texto ou no processo por ele desencadeado. Mesmo assim, em alguns
momentos da narrativa, os três tipos ocupam o mesmo espaço, o que não significa
que neste momento estejam concretizando o texto da mesma maneira, pois a
concretização do texto é um processo individualizado.
O leitor implícito
O leitor implícito é aquele intrínseco ao texto. Toda obra literária possui seu
leitor implícito. Ele é aquele a quem se dirigem, em primeira instância, as informações,
explicações e comentários do narrador.
No caso específico de A história sem fim, o leitor implícito está muito próximo
do narrador, dele recebendo constante atenção. Exemplos como o que seguem são
comuns:
A palavra “Torre” pode dar uma idéia errada a uma pessoa que nunca tenha visto este lugar, pois esta torre em nada se parecia com a torre de uma igreja ou de um castelo. A Torre de Marfim era tão grande como uma cidade. De longe, parecia o cume de uma montanha, alto e pontiagudo, retorcido em espiral como a concha de um caracol cujo ponto mais alto desapareceria nas nuvens (ENDE, 2000, p. 22)
Por esse exemplo, podemos observar que o livro quer de seu leitor uma
compreensão clara da história narrada. Esta relação de proximidade entre narrador e
leitor serve para ilustrar a maneira como a obra entende o processo de leitura. Ele
deve ser bem orientado, bem subsidiado para que o leitor não se perca no caminho,
buscando explicações para o que não entende. Esta preocupação em relatar
satisfatoriamente os fatos, amarrando-os com explicações e comentários pode parecer
um tanto limitadora da liberdade de concretização. Por exemplo, a explicação sobre a
Torre de Marfim citada acima é dispensável para o andamento da narrativa, o narrador
poderia deixar para o leitor a total concretização da Torre de Marfim, mas ele sempre
opta por limitar o campo de concretização. Uma hipótese para explicar esse
comportamento é a de que esta é uma medida preventiva que o texto utiliza devido ao
grande número de informações que apresenta: menos controle poderia resultar em
dispersão da leitura.
O leitor real
Assim com o leitor implícito, o leitor real se depara com um texto fortemente
determinado, com mecanismos de controle muito estabelecidos de forma a garantir a
consistência do texto. A história sem fim é um texto que parece se construir sempre de
maneira a corresponder as expectativas do leitor, seja ele real, implícito ou
representado, mas o leitor real consegue manter uma distância maior do texto, que é
bastante salutar. Enquanto que o leitor implícito está amarrado pela boa vontade do
narrador, o leitor real pode escapar e ter uma visão mais livre do que está sendo
relatado. Obviamente, isso depende de cada leitor, do grau de aproximação dele com
o narrador, da confiança que este último desperta ou não.
O leitor representado
Esse é o ponto alto do texto, e através dele que o livro atinge seu objetivo que
é ilustrar o processo de leitura. Ao colocar em foco um leitor caracterizado, com
personalidade determinada, a ler um livro também minuciosamente descrito, e relatar
a relação que se estabelece entre os dois pólos, o texto dá conta de seu objetivo.
Bastian é o leitor apaixonado que se identifica com o herói da narrativa
que está lendo, Atreiú, e vê nesse herói tudo o que gostaria de ser. Essa identificação
é tão intensa que as barreiras entre o o mundo real, de Bastian, e o mundo fantástico
se rompem. Surge, então, um ponto intrigante do livro: se a identificação com Atreiú é
o que conduz Bastian a Fantasia, por que, em Fantasia, Bastian não é Ateriú e, sim,
gradualmente se torna seu inimigo? É bastante intrigante o processo sofrido por
Bastian em Fantasia, mas parece indicar que a função do imaginário na satisfação de
desejos pode ser perigosa, se a pessoa perde a noção de quem realmente é, pode se
perder para sempre em Fantasia. É o que quase acontece com Bastian.
5.5. O processo de leitura
A maneira que a obra escolhe para desenvolver o tema e demonstrar como
ocorre a ligação, a comunicação entre um leitor e um texto é bastante ilustrativa do
processo de leitura. É dada a oportunidade de se observar processos como a
concretização, a construção da ilusão, a identificação, através da interioridade narrada
do leitor representado Bastian.
Apesar de estar individualizada, trata-se de um leitor de dez anos de idade e de
um livro de aventuras fantásticas, a obra trabalha categorias gerais do processo de
leitura. Principalmente a relação entre realidade e ilusão. Assim, o mundo narrado de
Fantasia ambiciona representar a própria fantasia, que está sempre presente no
processo de leitura. Por isso, Fantasia é o mundo de todas as histórias e por isso
precisa da visita de um homem para continuar existindo. Em contrapartida, se esse
homem se perde em Fantasia, ao querer satisfazer nela todos os seus desejos, ele
está condenado a nunca mais voltar a ser o que era enquanto ser humano, ele se
esquece de si mesmo, é o que acontece com Bastian.
O texto é bem sucedido em sua proposta de ilustração do processo de leitura,
porque consegue demonstrar apropriadamente como ocorre a relação interativa entre
texto e leitor, colocando a leitura como uma experiência rica e apaixonada desde que
o leitor nunca perca de vista seu verdadeiro Eu.
5.6 Considerações finais
Vimos, ao longo deste capítulo, como podemos, a partir de alguns
pressupostos teóricos, aprofunda o estudo de uma obra literária. O principal deste
estudo, é salientar que a própria obra é quem demanda uma ou outra teoria.
Quando nos debruçamos sobre um texto literário, com o intuito de analisá-lo,
podemos percebem quais as teorias que podem nos revelar melhor esse texto. É
o que a aproximação entre o pensamento de Iser e A história sem fim pode ilustrar.
ATIVIDADES
1 A Estética da recepção elege como seu principal objeto de estudos
a) a produção literária e sua repercussão social
b) a recepção e o ato de leitura
c) o autor literário e sua personalidade
d) o narrador e a estrutura narrativa
2. Uma aplicação crítica dos pressupostos teóricos da Estética da recepção não pode,
de forma alguma, deixar de considerar
a) a obra literária como um objeto plenamente determinado por seu contexto social
b) o texto como reprodução exata da mente do autor que o escreveu
c) a obra literária como um objeto inacabado que só se concretizará totalmente no
momento da leitura
d) o autor como figura central do processo de construção do sentido do texto
produzido por ele
3. A obra sempre prevê, em sua estrutura, um leitor que
a) equivale exatamente ao leitor real
b) recebe o nome de leitor representado
c) não corresponde às intenções do autor
d) que pode ser chamado de leitor implícito e não equivale ao leitor real
4. Como a Estética da recepção coloca o leitor como elemento central de seus
estudos, ele concebe a relação entre esse e a obra literária
a) como um processo de comunicação
b) como um jogo de poder em que o leitor está sujeito ao sentido do texto
c) como um processo de investigação
d) como um trabalho de tradução da linguagem literária
5. A Estética da recepção entende que
a) a obra de arte literária é um discurso fechado
b) a obra literária prevê para si, em sua própria construção, um leitor que não
corresponde exatamente ao leitor real
c) leitor real e leitor implícito são termos sinônimos
d) o leitor real pode ser sempre determinado na estrutura da própria obra
6. CRÍTICA GENÉTICA Profª. Dr. Maria Alice Braga - ULBRA
A crítica genética trabalha com a dimensão temporal do texto em estado
nascente, partindo, assim, da hipótese de que a obra constitui-se no resultado
de sua própria gênese. Entretanto, para que o nascimento da obra torne-se
objeto de estudo, marcas devem sido deixadas e são estas marcas materiais
que a genética textual procura para elucidar. Ao lado do texto ou mesmo antes
dele, segundo o teórico Biasi (1997), pode haver um conjunto de documentos
de redação, o que se chama de manuscritos da obra. Cada manuscrito contém
uma história singular e torna-se essencial ao estudo crítico genético. Assim, a
crítica genética procura interpretar os resultados descobertos de cada
documento que está subjacente ao texto final e compreender a originalidade do
texto literário por meio do processo que lhe deu origem.
6.1 A crítica genética no Brasil
A pesquisa genética desenvolveu-se na Europa, no Canadá, nos Estados
Unidos e no Brasil. São Paulo é o centro de irradiação histórica da crítica
genética, na Universidade de São Paulo (USP), pelo professor belga Philippe
Willemart.
Para Willemart, a crítica genética procura perceber os processos de criação,
voltando ao aquém do texto publicado e, assim, percorre os manuscritos. O
professor destaca que: “Tudo que está escrito no manuscrito faz parte da
memória da escritura” (WILLEMART, 1999, p. 164.) – enfatizando a idéia
de que o manuscrito é o objeto da crítica genética, pois o documento autógrafo
explicita as alterações, estas impossíveis de serem percebidas no texto
editado.
Na mesma perspectiva, a pesquisadora e professora Cecília Almeida Salles
(2000, p. 19) afirma que:
[...] a crítica genética analisa o documento autógrafo [...] para compreender, no próprio movimento da escritura, os mecanismos da produção, elucidar os caminhos seguidos pelo escritor e entender o processo que presidiu o nascimento da obra.
Em seus estudos, a autora desvenda os fundamentos dessa ciência, que
surgiu com um desejo de penetrar na razão do processo criativo. A
pesquisadora destaca que, para definir qualquer ciência, é necessário delimitar
seu objeto de estudo, “pois os textos genéticos nascem de uma constatação”
(2000, p. 17) – a de que o texto definitivo de uma obra, publicado ou publicável,
resulta de um trabalho que se caracteriza por uma transformação progressiva.
Salles destaca que a crítica genética é uma investigação que percebe a obra a
partir de sua construção, pois o crítico genético, ao acompanhar todo o
processo pelo qual passa o texto estético pode compreender melhor o
processo criativo, refazendo a gênese da obra com o material de que dispõe e,
assim, descrever os mecanismos que fundamental a produção.
6.2 O manuscrito
A professora e pesquisadora Cecília de Almeida Salles (1992) ressalta
que manuscrito é um termo com sentido amplo, não se limitando, então, à
forma escrita à mão. Daí podemos inferir que os datiloscritos integram o
universo dos manuscritos.
O manuscrito constitui-se, para o pesquisador, no testemunho concreto
de um processo evolutivo de criação. Ele manifesta movimento e atividade que,
raramente, são encontrados nos livros. Assim, a Crítica Genética permite
verificar os componentes da escritura na combinação de suas relações de onde
nasce o movimento da gênese.
Os documentos da gênese são tão importantes em cada uma de suas
partes como no todo – da folha solta com anotações desencontradas,
desenhos e rabiscos à cópia datilografada e corrigida. A escritura, segundo
Salles, mostra-se como um complexo sistema e não como uma coleção de
dados isolados. (1992, p. 47) Daí a necessidade de se conhecerem as
características singulares de cada manuscrito e buscar a harmonia entre o
objeto de estudo e o embasamento teórico, para que o resultado desse
trabalho mostre o objeto estudado.
Cada parte do manuscrito (rascunhos, notas, rasuras) é uma peça
concreta de um mecanismo intelectual. O escritor cria os instrumentos para a
construção de sua obra, e tudo é importante para ele, assim como será
importante para o pesquisador.
O trabalho do pesquisador é o de elaborar um prototexto crítico,
baseado na reconstituição do que precede um texto, auxiliado por um método
específico. Sua tarefa parte do manuscrito, que é um prolongamento da mente
e do corpo do autor, conduzindo a um caminho de desvendamento da escritura
e de conhecimento da imortalidade deste, que permanece vivo em sua criação,
e chega à gênese da obra para, então, rever o texto sob nova abordagem.
A função do geneticista é procurar desnudar o sistema responsável pela
criação da obra. O texto (re)estabelecido em sua gênese revela fases da
escritura, mostra o escritor em seu fazer literário, como aponta Salles, pois
tenta reconstituir os modelos da criação poética. Ademais, o geneticista
devolve um valor vital àquele manuscrito preservado e conservado na medida
em que sai dos arquivos e retorna à vida em forma de idéias, dando
testemunho do escritor em ação.
Os textos genéticos nascem de uma constatação (SALLES, 1992, p. 17)
– a de que o texto definitivo de uma obra, publicado ou publicável, é o resultado
de um trabalho que se caracteriza por uma transformação progressiva, ou seja,
a obra final sofreu muitas correções, pesquisas, esboços e planos. Antes do
texto existe um conjunto de documentos de redação reunidos, e, muitas vezes,
conservados pelo escritor, estes são os manuscritos da obra. O manuscrito é,
pois, a concretização de um processo de contínua transformação.
6.3 O manuscrito sob novo olhar Atualmente, o conjunto dos manuscritos literários preservados e
disponíveis em acervos e bibliotecas é um campo pouco explorado por
estudantes e pesquisadores. Ainda que seja uma prática antiga, o estudo dos
manuscritos não se constitui em algo atraente, no entanto, a crítica genética dá
importância e tem, nesse tipo de documento, toda a base para sua pesquisa.
A partir dos anos 50 do século XX, começaram a surgir os primeiros
aspectos de uma nova concepção do estudo genético dos textos, mas foi na
década de 60 que os caminhos se abriram inteiramente para a nova crítica que
surgia como outro modo de pensar e de teorizar, elaborando, assim, novos
conceitos para os estudos dos manuscritos.
A crítica genética, então, surge apoiada nos conceitos de gênese,
porém, antes, é importante destacar que as condições que fundamentaram os
estudos em pauta foram os diferentes conhecimentos das teorias do texto, com
os quais foi possível formular o problema da produção temporal. Ao longo dos
anos 70 do século XX, a crítica genética considerou-se, de acordo com os
estudos de Biasi (p. 09):
o prolongamento inesperado das pesquisas estruturais que tomava como espaço de definição o que faltara mais cruelmente às análises formais: o texto em desenvolvimento, como estrutura em estado nascente, e a extensão de um novo objeto, concreto e específico, estruturado pelo tempo, o manuscrito.
Assim, a crítica genética passa a exigir a teorização da dimensão
histórica do texto na sua estrutura mais interna e o manuscrito assume uma
importância vital para o desenvolvimento das pesquisas que visam ao
nascimento dos escritos. Desse modo, a ciência que estuda o surgimento da
obra tem a finalidade de reconstruir a história do texto em seu estado
nascente, visando à descoberta das nuanças desde a criação e, assim,
descortinar e compreender o texto literário.
6.4 O rascunho
Philippe Willemart (1993, p. 15-16) afirma que o crítico tenta circunscrever a
gênese da obra a partir do manuscrito e afirma:
Em vários autores, há dois momentos dialéticos na criação. Por um lado, uma preparação longínqua que consiste em anotar tudo o que interessa sem critérios aparentes: observações de viagens, trechos de livros [...] que denotam uma ânsia de copiar e uma verdadeira paixão pelo significante [...] Por outro lado, há uma preparação imediata nos rascunhos, em que aos poucos o escritor deixa a iniciativa à instância narrativa e torna-se instrumento de sua cultura e de sua escritura.
O interesse pelo prototexto ou por tudo o que escreve o autor antes do texto
publicado, ou mesmo em vista deste, remonta ao século XIX, conforme destaca
Willemart.
O crítico, ao compor seu objeto de estudo, deve verificar a autenticidade dos
manuscritos e logo decifrar os rascunhos, bem como a escrita que permanece
sob as rasuras, manchas ou rabiscos para poder identificar e ordenar os
demais documentos.
Podemos citar um exemplo: nos rascunhos, o pesquisador pode ter chance de
encontrar o que o psicanalista Sigmund Freud esboçou em uma de suas
tópicas, colocando o inconsciente na classe gramatical dos adjetivos ou dos
determinantes e, desde então, conhecer que qualquer escolha está
contaminada de inconsciente. Assim, o crítico pode encontrar, nos rascunhos,
situações cercadas de angústias ou até, na falta de indícios, perceber os ecos
que o texto suscita.
A noção de rascunho, para o estudioso francês Pierre-Marc de Biasi, não é
exata ao descrever os diferentes tipos de manuscritos em fase pré-redacional,
pois o trabalho que se desenvolve, desde os primeiros elementos do roteiro até
o manuscrito definitivo, não se realiza em um único movimento. A partir de
certo ponto de elaboração, o rascunho toma novas formas, deixando
transparecer as linhas da escrita propriamente dita.
Os rascunhos podem apresentar fatos que enriquecem a interpretação do
texto, fundamentados nos pressupostos provindos dos estudos da crítica, pois
tais documentos não serão concebidos como objetos, e, sim, como extensão
útil do próprio texto.
A professora Cecília Almeida Salles refere que os rascunhos assumem um
papel mais amplo na medida em que abrangem outras formas de arte. Ela
destaca que o crítico deve romper com a relação direta entre a crítica genética
e o rascunho literário, observando, desse modo, os índices, como rasuras,
notas, esboços, etc, em um universo de relações, pois o papel do crítico é
tentar compreender os passos do artista e reorganizá-los em seu ritmo original,
como estabelecer a relação dos rascunhos com outros documentos, por
exemplo, anotações e diários, conferindo unidade a um objeto aparentemente
fragmentário.
Philippe Willemart afirma que toda escritura preexiste no escritor,
considerado minicriador, destacando que “as rasuras e os acréscimos serviriam
para encontrar esse ideal e recuperar o texto enterrado na memória do escritor,
outro nome da alma”. (1999, p. 25) Ele desenvolve um conceito sobre rasura:
Pode ser uma palavra riscada, um acréscimo importante preenchendo um branco, a supressão de um parágrafo ou mesmo um capítulo sem manifestação gráfica no verso seguinte. (1999, p. 74)
O pesquisador afirma que não existe correspondência entre o mundo empírico
e a teoria, as idéias, a consciência, a percepção e a linguagem. Sob esse viés,
salienta que, antes do acontecimento poético, há apenas o silêncio. E
completa: “a rasura rompe o limite entre o ser e o nada e viola esse aquém
onde reinava o nada”. (1999, p. 25) Ao provocar o silêncio, a rasura leva o
escritor a ouvir o nada e a divindade Caos, existindo, a partir daí, uma relação
entre a intensidade do contato com o nada e o poético.
Nessa perspectiva, Cecília Almeida Salles (1998, p. 78) destaca que:
no silêncio que a rasura guarda, o artista aprende a dizer aquilo que resiste a se materializar, ou a dizer de novo aquilo que não lhe agradou [...] o artista lida com sua obra em estado de permanente inacabamento.
Entretanto, o objeto inacabado possui valor dinâmico porque, enquanto gera o
processo de construção de uma obra específica, pode originar outras obras em
uma cadeia infinita de construções.
6.5 Crítica Genética e Semiótica
Cecília Salles, na apresentação de sua obra, Gesto inacabado, destaca,
principalmente, o ato criador manifestado na arte e busca estabelecer a relação
entre ciência e arte. A autora propõe, ainda, o contato do pesquisador com a
materialidade do processo, a fim de conhecer os meandros da criação artística.
“A crítica genética é uma investigação que vê a obra de arte a partir de sua
construção” (1998, p. 12) segundo Salles, reforçando a idéia de que com o
material, o crítico genético consegue refazer a gênese da obra e descrever os
mecanismos que sustentam essa produção.
Gesto inacabado conduz o leitor à compreensão da tessitura do movimento
que é desencadeado a partir do processo responsável pela geração da obra. O
pesquisador só se interessa pelo estudo desse processo inicial porque a obra
existe e ambos são intrinsecamente dependentes um do outro.
A autora refere que a crítica genética se vale dos rastros deixados pelo escritor
para melhor entender a obra pronta, ou melhor, a obra entregue ao público.
Esse tipo de investigação é capaz de reativar a vida guardada nos documentos
que serviram de base à obra e reintegrar a mão do criador à sua criação.
Os primeiros pesquisadores da crítica genética detinham-se em desvendar os
segredos guardados pelas palavras rasuradas, margens repletas de outras
escrituras ou páginas reescritas várias vezes. O crítico imaginava e
acompanhava o percurso do autor, ordenando, classificando e interpretando
todo o material.
Gesto inacabado contempla não só o processo de produção da obra literária,
mas também rompe a barreira da literatura e vai além da palavra. A crítica
genética, no entanto, prevê o estudo de manuscritos de qualquer manifestação
artística, bem como de produções científicas. Junto com o manuscrito, a
tecnologia como suporte pede um espaço nesse contexto de criação que,
muitas vezes, é um facilitador, pois existem os “arquivos de imagens paradas,
imagens em movimento, sons ou ainda back-ups de idéias a serem
desenvolvidos ou formas em construção” (1998, p. 16), arquivos tratados como
manuscritos. Sob essa perspectiva, as novas tecnologias, consideradas como
documentos originais, contribuem para a diversidade desses itens.
Salles propõe, em sua pesquisa, que o termo manuscrito, objeto de estudo do
crítico genético, passe a designar-se documentos de processo, justificando que
outras manifestações da arte, como esboços, ensaios, partituras, copiões e
maquetes possuem, independentemente de sua materialidade, a idéia de
registro, tal qual a expressão literária. Ainda, o geneticista trabalha entre o
limite material do documento e a própria ausência de limites, isto é, aquilo que
é registrado e o que não é.
O crítico genético possui apenas índices desse percurso, vestígios que
testemunham uma criação em processo. Para a autora, os documentos
desempenham dois papéis ao longo do processo criador: armazenamento e
experimentação.
O artista utiliza-se dos mais diferentes meios para armazenar informações da
obra, os quais funcionam como auxiliares até a concretização da mesma. O
modo como ele guarda ou registra essas informações varia de um processo a
outro. Outra função desempenhada pelos documentos de processo é a
experimentação, que pode ser registrada em rascunhos, estudos, croquis,
esboços, maquetes, projetos, etc, dependendo da área a que a obra pertence.
Cada pegada deixada pelo artista é uma luz que se acende para o crítico
genético.
Os documentos de processo guardam o tempo contínuo da criação na medida
em que podem ultrapassar a simples descrição de uma estrutura imobilizada,
adquirindo dinamicidade, o que leva a acreditar na estética do inacabado.
Imbuída desse olhar, Cecília Salles expande seu estudo para a criação artística
em geral, ampliando as possibilidades de discussão a respeito do processo
criativo. Sob essa perspectiva, sugere uma morfologia do processo criador,
fundamentada na teoria de Charles S. Peirce, a qual teve como ponto de
partida estudos de manuscritos. A autora defende a idéia de que discutir a
morfologia da criação significa tirar objetos do isolamento das análises e
reinseri-los em seu movimento natural – tudo no âmbito das artes em geral.
Para Salles, a “obra consiste em uma cadeia infinita de agregação de idéias”
(1998, p. 25), inferindo, assim, que a criação está em contínua transformação.
O artista, sob a perspectiva do crítico genético, “vai levantando hipóteses e
testando-as permanentemente” (1998, p. 26), tendo como conseqüência
possíveis obras, ou seja, criações em constante processo – a obra de arte
encerra a estética da continuidade em diálogo com a estética do estático.
Desse modo, é impossível determinar com precisão o momento do início, bem
como do final do processo, pois este é contínuo. É importante salientar aqui
que cada versão contém, potencialmente, um objeto acabado, e o objeto
considerado final também representa, sob essa perspectiva, apenas uma das
fases do processo, derrubando, assim, a idéia da obra final entregue ao público
como a sacralização da perfeição. A partir desse ponto de vista, tudo, a
qualquer instante, é perfectível porque a obra de arte é mutante, assim como
existem possíveis obras nas transformações que os documentos preservam. A
construção da obra de arte acontece por meio de um completo percurso de
múltiplas transformações, que implica desenvolvimento, crescimento e vida – o
artista é impelido a agir.
O projeto estético, localizado em um espaço e um tempo, influi no artista,
manifestando-se pelos documentos de processo, os quais guardam marcas do
ambiente que envolve os processos criativos e a obra em construção.
Apontamentos sobre a leitura de livros, de jornais, ou mesmo sobre exposições
visitadas ou espetáculos a que assistiu são exemplos da relação do artista com
o mundo. Através desses registros, se pode conhecer suas preferências
estéticas, suas preocupações e inquietações. No entanto, é importante
ressaltar que a simples constatação da influência do contexto não conduz ao
processo propriamente dito; ao contrário, a busca recai na questão de como o
tempo e o espaço do artista pertencem à obra.
Assim, o projeto desenvolve-se a partir de princípios éticos e estéticos que
direcionam a produção artística. Cada obra é capaz de mostrar uma possível
concretização de seu projeto, podendo-se vê-la como um rascunho ou a
concretização parcial desse grande desígnio inicial. O artista dialoga consigo
mesmo: idéias armazenadas, obras em desenvolvimento, reflexões, desejos –
tudo registrado em diários, anotações, correspondências. Nessa perspectiva,
ele é agente e testemunha do ato criador. Do mesmo modo, a autora lembra
que não se pode deixar de mencionar as leituras particulares que integram
muitos processos criadores, quando o artista escolhe algumas pessoas para o
acesso preliminar às obras em processo ou às recém-acabadas.
Forma e conteúdo
Salles trata de forma e conteúdo no que diz respeito a duas entidades
imbricadas, traduzindo o processo artístico. “Se o conteúdo determina a forma,
esta, por sua vez, representa o conteúdo. O conteúdo manifesta-se através da
forma, pois a forma é aquilo que constitui o conteúdo” (1998, p. 98). A forma é
o acesso do artista a seu projeto poético, pois uma simples anotação, por
exemplo, registra parte desse projeto e o movimento criador, guardado nos
documentos de processo, mostra a ação do artista.
A pesquisadora recolheu depoimentos e registros de autores sobre a relação
entre forma e conteúdo, concluindo seu estudo com o seguinte
posicionamento: a relação entre forma e conteúdo não estabelece uma
dicotomia. Existe uma espécie de amálgama entre essas duas entidades, pois
o autor está presente no instante em que conteúdo e forma se fundem.
O crítico genético, segundo Salles (1998) ao acompanhar o processo, entra em
contato com a elaboração sucessiva dos fragmentos, na medida em que:
cada gesto modificador reverte-se em alguma forma de rasura, como, por exemplo, uma substituição de um adjetivo [...] O artista entrega-se ao trabalho de cada fragmento com dedicação plena, e esse trabalho é, por sua vez, sempre revisto na sua relação com a totalidade da obra. (p. 77)
Tal registro pede que o olhar do pesquisador deva nascer a partir do
estabelecimento de relações entre os vestígios, pois é aí que se podem
identificar e extrair os princípios que norteiam o processo.
É importante observar a relação de cada índice com o todo, como uma rasura
com as outras; rascunhos com diários ou, ainda, rasuras, rascunhos, notas e
diários com a obra. A autora diz que essa “relação entre o que se tem e o que
se quer reverte-se em contínuos gestos aproximativos – rasuras que buscam
completude”. (1998, p. 78) No silêncio que a rasura guarda, o artista diz aquilo
que resiste a se materializar ou diz novamente o que não lhe agradou. O autor
luta pela exatidão de um processo em contínuo crescimento, a obra está em
permanente inacabamento.
De acordo com Salles, o inacabado possui valor dinâmico na medida em que
gera o processo que aproxima uma obra específica e gera outras obras, em
cadeia infinita. A artista lida com o objeto acabado que pertence a um processo
inacabado, o que significa que a obra entregue ao público pode ser
retrabalhada por inteiro ou, ainda, algum de seus aspectos, como tema,
personagem, etc.
Partindo do que foi exposto até aqui, sobre o conceito de crítica genética e o
seu objeto, pode-se perceber que a genética surgiu com o intuito de
compreender o processo de criação artística a partir dos registros deixados
pelo autor nesse percurso. Quanto ao objeto de estudo dessa ciência
investigativa, tem-se a dimensão temporal do texto em estado inicial, uma vez
que a obra é efeito de sua própria gênese, a qual deixa pistas ao longo do
caminho. São essas pistas materiais que formam os documentos de redação e
que são chamados, de maneira geral, de manuscritos.
ATIVIDADES
1. Marque a alternativa que preenche corretamente as lacunas do
seguinte excerto: “A crítica genética trabalha com a dimensão ___do
texto em estado ___, partindo, assim, da hipótese de que a obra
constitui-se no resultado de sua própria gênese.”
a) natural; final
b) temporal; nascente
c) espacial; inicial
d) da escrita; absoluto
2. Marque a alternativa que preenche corretamente as lacunas do
seguinte excerto: “a crítica genética procura interpretar os resultados
descobertos de cada documento que está ___ao texto ___ e
compreender a originalidade do texto literário por meio do processo
que lhe deu origem.”
a) subjacente; final
b) abaixo; literário
c) por cima; manuscrito
d) entre; editado
3. Marque a resposta correta:
a) Para Willemart, a crítica genética procura perceber os processos de
escrita.
b) Para o crítico belga, a genética não investiga os processos de criação.
c) Para o crítico Willemart, a crítica genética procura perceber os
processos de criação, voltando ao aquém do texto publicado.
d) Para Willemart, a genética percebe os processos de leitura.
4. Marque a resposta correta:
a) O manuscrito constitui-se na escrita à mão.
b) O manuscrito é um documento irrelevante para o processo evolutivo
de criação.
c) O manuscrito é pouco estudado nos dias de hoje.
d) O manuscrito constitui-se no testemunho concreto de um processo
evolutivo de criação.
5. Marque a resposta correta no que se refere à crítica genética :
a) É uma investigação que vê a obra de arte a partir de sua construção.
b) Apresenta fatos que enriquecem a interpretação do texto.
c) É o testemunho concreto de um processo evolutivo de criação.
d) Constitui-se em uma crítica baseada apenas nos rascunhos.
7. LITERATURA E PSICANÁLISE Mara Elisa Matos Pereira
Neste capítulo, desenvolveremos um trabalho crítico apoiado em
pressupostos teóricos oferecidos pela psicanálise. Desde seu estabelecimento,
como um ramo da Psicologia, mas não igual a ela, a Psicanálise busca na
literatura um objeto de ilustração para muitas de suas abstrações. Sigmund
Freud reconhece na literatura um terreno rico e revelador da mente humana.
Freud rncontrou muitas vezes apoio nos textos literários para expressar e
ilustrar seu entendimento do aparelho psíquico e, colocando de forma mais
abrangente, do humano. Assim ele afirma, em um de seus trabalhos iniciais:
Os poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais o nosso saber escolar ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da psique, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência (FREUD, 1907).
Muitas são as abordagens possíveis. Desde que Sigmund Freud
estabeleceu a relação, tanto psicanalistas têm buscado nos textos literários
ilustração de seu pensamento teórico quanto críticos literário têm lançado mão
do pensamento psicanalítico para abordar questões relativas ao processo de
criação literária, à personalidade do autor, à construção da linguagem e da
estrutura do texto literário e ao processo de leitura.
Jerôme Roger (2002) aponta dois grandes tipos de abordagem
psicanalítica da obra literária. Conforme o autor:
Uma, a mais antiga, é o método de investigação psicocrítica, elaborado a partir dos anos 40 por Charles Mauron, que pesquisou na obra, se não a chave, ao menos a configuração original da psique do autor real.
A outra, a textanálise, termo criado por Jean-Bellemin-Noël em Lê Texte et l’Aavant-texte, convida ao mesmo tempo vigilância e abandono da parte do leitor, não para buscar o segredo do “eu”, mas para se entregar ao “inconsciente do texto”, uma vez que “é por causa dele que a leitura nunca se contenta com um sentido (que fala e do qual se fala) (ROGER, 2002, p.95)
Como são muitos os caminhos seguidos tanto por críticos literários
quanto por psicanalistas, dedicaremo-nos a apresentar a seguir, algumas
contribuições importantes de Freud no que diz respeito aos aspectos
simbólicos da linguagem.
Nos vários textos em que ele se dedicou a abordar a questão do
fenômeno onírico, ele costuma entender o texto do sonho, aquilo que
lembramos e somos capazes de relatar, como uma espécie de elaboração
posterior que encobre o sentido que está oculto em nosso inconsciente e que já
foi disfarçado pelo próprio trabalho do sonho. Esta elaboração secundária que
fazemos e comparada por Freud ao trabalho do autor literário ao produzir seus
textos. Ele vê uma estreita ligação entre a criação literária e a representação
imaginária (ROGER, 2002). Sendo assim, a elaboração artística encobriria o
inconsciente do texto e, como o psicanalista explora o texto do sonho de seus
pacientes em busca do inconsciente, o crítico literário, em seus exercício de
interpretação, poderia explorar sentidos encobertos.
Para fazermos uma rápida descrição do trabalho de interpretação de
sonhos freudiano, ao invés de exploramos um texto literário, deter-nos-emos
em um dos estudos de caso publicados por Freud. Os estudos de caso são
relatos de sessões analíticas que podem ser lidos como narrativas muito
próximas da ficção.
7.1 Freud e a linguagem simbólica
Freud, que abordou, pela primeira vez, do ponto de vista psíquico, a
questão dos sonhos, em sua obra A interpretação dos sonhos (1900), também
os vê como uma espécie de “mensageiros” desempenhando um importante
papel de via por onde materiais recalcados no inconsciente podem chegar à
consciência. No início da apresentação do Caso Dora26, texto de 1905, ele
afirma o seguinte:
Esse conhecimento, posso asseverar, é imprescindível para o psicanalista, pois o sonho é um dos caminhos pelos quais pode aceder à consciência o material psíquico que, em virtude da oposição criada por seu conteúdo, foi bloqueado da consciência, recalcado, e assim se tornou patogênico. O sonho é, em suma, um dos desvios por onde se pode fugir ao recalcamento, um dos principais recursos do que se conhece como modo indireto de representação no psíquico.
26 FREUD, Sigmund. Fragmentos da análise de um caso de histeria. In: Obras Completas, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
O conhecimento ao qual ele se refere é o de interpretar o material
onírico, reconhecendo nesse uma comunicação do inconsciente, de algo
recalcado e que aparece, em forma de sonho, disfarçado em virtude de um
processo intenso de censura. Mas aparece por quê? Porque, segundo Freud,
no sonho ocorre a realização de um desejo que não pode se tornar consciente,
por isso a censura, por isso o disfarce.
Ao falar sobre o sonho manifesto, aquele do qual o sonhador tem
lembrança, ainda que, muitas vezes, uma lembrança difusa, Freud apresenta
os processos pelos quais a transformação (deformação) do conteúdo latente é
realizada, a isso ele chama elaboração onírica, por ele definida como o
trabalho que transforma o sonho latente em sonho manifesto; entendendo
como conteúdo manifesto do sonho aquilo que a pessoa que sonhou realmente
conta; e, como pensamentos oníricos latentes, o material oculto, que só pode
ser revelado através de um exercício de interpretação.
Esse trabalho da elaboração onírica realiza-se então por processos por
ele identificados e nomeados como condensação, deslocamento e
transformação de pensamentos em imagens visuais. Acrescidos, ainda, do
simbolismo, processo em que Freud leva em consideração elementos da
cultura no estabelecimento das relações entre o manifesto e o latente.
A condensação é um processo de transformação do conteúdo latente
em manifesto por uma espécie de “tradução abreviada”. Ela tem como
conseqüência o estabelecimento de uma relação não-simples entre os
elementos de um e de outro. Um elemento manifesto pode corresponder
simultaneamente a diversos elementos latentes e, em sentido inverso, um
elemento latente pode desempenhar seu papel em diversos elementos
manifestos.
A condensação se realiza das seguintes maneiras: determinados
elementos latentes são totalmente omitidos, apenas um fragmento de alguns
complexos do sonho latente transparece no sonho manifesto e determinados
elementos latentes, que têm algo em comum, se combinam e se fundem em
uma só unidade no sonho manifesto. Segundo Freud, o resultado dessa
superposição de elementos separados, que foram condensados
conjuntamente, é, geralmente, uma imagem difusa e vaga. Embora a
condensação torne os sonhos obscuros, não parece que ela seja efeito da
censura. Antes, parece ser devida a um fator automático ou econômico, mas,
em todo caso, a censura lucra com ela.
A segunda realização da elaboração onírica é o deslocamento que é
inteiramente obra da censura dos sonhos. Ele manifesta-se de duas maneiras:
na primeira, um elemento latente é substituído não por uma parte componente
de si mesmo, mas por alguma coisa mais remota, isto é, por uma alusão; e, na
segunda, o acento psíquico é mudado de um elemento importante para outros
sem importância, de forma que sonho parece descentrado e estranho. A
substituição de algo por meio de uma alusão constitui processo corrente
também no pensamento desperto, mas existe uma diferença. No pensamento
desperto, a alusão deve ser inteiramente inteligível, e o substituto deve estar
relacionado, no seu tema, com a coisa original que representa. Já no sonho, a
conexão entre os elementos é ininteligível, pois a censura de sonhos só
consegue seu objetivo quando consegue tornar impossível que se encontre o
caminho desde a alusão até a coisa original.
A terceira, é a transformação de pensamentos em imagens visuais. Essa
transformação não afeta tudo nos pensamentos oníricos; alguns deles
conservam sua forma e aparecem no sonho manifesto também como
pensamentos ou conhecimentos; e nem são as imagens visuais a única forma
na qual os pensamentos se transformam. Geralmente essas imagens estão
relacionadas com os pensamentos que representam, por uma raiz em comum.
Ele sustenta essa afirmação dizendo que muitos de nossos pensamentos são
construídos a partir de estímulos sensoriais que produzem traços mnêmicos.
Freud afirma que a elaboração onírica é um processo de tipo muito
singular na vida mental. Condensações, deslocamentos, transformações
regressivas de pensamentos em imagens são as suas principais realizações.
Outro processo importante, ao qual Freud dedica uma de suas
conferências sobre sonhos, é o simbolismo. Na introdução desta conferência
ele diz o seguinte:
Uma relação constante desse tipo entre um elemento onírico e sua
versão, nós a descrevemos como ‘relação simbólica’, e ao elemento onírico propriamente dito, como um ‘símbolo’ do pensamento onírico inconsciente. Os senhores estão lembrando de que, anteriormente, quando investigávamos as relações entre elementos oníricos e a coisa ‘original’ situada por trás deles, diferenciei três relações desse tipo — a da parte com o todo, a da alusão e a da representação plástica. Na ocasião eu os adverti de que havia uma quarta relação, porém não citei seu nome [ver em [1]]. Essa quarta
relação é a relação simbólica que estou apresentando agora (FREUD, 1972, vol. XV)
Nesta introdução ele passa a falar daquilo que chama de simbolismo e
afirma que é o mais notável capítulo da teoria dos sonhos. Ele entende os
símbolos como versões constantes, isto é, eles se repetem com regularidade
no sonho manifesto de várias pessoas e permitem um exercício de
interpretação mais seguro, quando acrescido do conhecimento a respeito de
quem é o sonhador. Mas Freud reconhece que a “ interpretação baseada no
conhecimento dos símbolos não é uma técnica que possa substituir a técnica
associativa, nem competir com esta. A técnica dos símbolos suplementa a
técnica associativa e produz resultados que apenas possuem utilidade, quando
subordinada a esta” (FREUD, 1972, vol. XV). Ele explica que:
A essência desta relação simbólica constitui em ela ser uma comparação, embora não uma comparação de tipo qualquer. Limitações especiais parecem estar vinculadas à comparação, porém é difícil dizer quais sejam elas. Nem tudo aquilo com que podemos comparar um objeto ou um processo aparece nos sonhos como símbolo dessa comparação. E, por outro lado, um sonho não simboliza cada elemento possível dos pensamentos oníricos latentes, mas somente alguns pensamentos determinados. Assim, existem limitações em ambos os sentidos. Devemos admitir, também, que o conceito de símbolo, no momento atual, não pode ser definido com precisão: esse conceito se transfigura gradualmente em noções tais como as de substituição ou representação, e mesmo se aproxima do que entendemos por alusão. Em numerosos símbolos, a comparação que subjaz é óbvia. Entretanto, também aí existem outros símbolos em relação aos quais devemos nos perguntar onde buscaremos o elemento comum, o tertium comparationis, da suposta comparação.
Com outras reflexões, podemos posteriormente descobri-lo, ou então ele pode permanecer definitivamente oculto.[...]Os senhores observam, pois, que uma relação simbólica é uma comparação de tipo muito especial, cuja base até agora ainda não apreendemos, embora possamos, posteriormente, chegar a alguma indicação sobre a mesma.
Como se pode observar a partir desta citação, embora Freud considere
o simbolismo um capítulo de destaque no que se refere ao conhecimento
necessário para o exercício da interpretação dos sonhos, ele dá conta de uma
pequena parcela do conteúdo manifesto e não tem autonomia em relação ao
processo de associação que deve entrar em marcha toda vez que o analista se
propõe a trabalhar com um paciente um sonho por este último relatado.
7.2 Sobre o trabalho de interpretação freudiano
Considerando o tipo de material com o qual o analista deve lidar, quando
se trata de interpretar sonhos, não basta conhecer os processos de
transformação implicados na produção do sonho manifesto. Ao empreender,
juntamente com o sonhador, o exercício de interpretação, é necessário que ele
tenha em mente que deve lidar com o que foi relatado, independente do grau
de confusão ou clareza presente no relato. Não há como saber o quanto o
sonho foi reconstruído pelo sonhador, então, é importante concentrar-se no que
foi apresentado. A partir do material exposto, o analista estabelece o processo
de associação livre da seguinte maneira:
Ao pedir a alguém dizer-me o que lhe vem à mente em resposta a
um determinado elemento do sonho, estou lhe pedindo que se entregue à associação livre, enquanto mantém na mente uma idéia como ponto de partida. Isso exige uma atitude especial da atenção, bastante diferente da reflexão, e que exclui esta. Algumas pessoas conseguem essa atitude com facilidade; outras, quando tentam consegui-la, mostram um grau de inabilidade incrivelmente elevado. Existe, no entanto, um grau maior de liberdade de associação: quer dizer, posso eliminar a exigência de manter na memória uma idéia inicial e tão-somente estabelecer a modalidade ou tipo de associação que quero — posso, por exemplo, exigir da pessoa em experiência que deixe vir à mente um nome próprio ou um número, livremente. Aquilo que então lhe ocorre presumivelmente seria ainda mais casual e mais imprevisível do que com nossa técnica anterior. Pode ser demonstrado, porém, que é sempre algo estritamente determinado por importantes atitudes internas da mente, desconhecidas de nós no momento em que atuam –(...) (FREUD, 1972, vol. XV).
Fica claro que o analista deve confiar no processo de associação livre
desencadeado a partir desta primeira idéia que vem a mente do sonhador e
que serve de ponto de partida. Embora Freud reconheça que nem sempre é
fácil que esta idéia apareça, por isso as outras sugestões dadas por ele. É
importante levar em consideração algumas regras para o exercício da
interpretação. Primeiro, a preocupação não deve recair sobre o que parece que
o sonho está dizendo; segundo, o trabalho deve restringir-se à recordação das
idéias substitutivas, sem refletir nem considerar a importância do conteúdo
apresentado, além de ignorar o grau de divergência entre elas e o elemento
onírico; por fim, deve-se aguardar até que o material inconsciente oculto,
investigado, surja com espontaneidade. Soma-se a isso, a necessidade de que
o sonhador não oculte do analista nenhuma idéia substitutiva.
O exercício de interpretação também depende da contextualização do
sonho, da identificação, se possível, de algum elemento da vida de vigília que
possa tê-lo desencadeado, além de um conhecimento da pessoa do sonhador.
Em seus trabalhos dedicados a salientar a importância do sonho como
expressão do inconsciente e a arte de interpretação como exercício
terapêutico, Freud dá muitos exemplos de como se pode trabalhar com sonhos.
Entre eles, os sonhos trabalhados durante o tratamento de uma jovem a quem
ele chama de Dora.
7.3. Os sonhos de Dora, uma demonstração. O caso da jovem Dora é exemplar no que se refere a maneira como
Freud postula que os sonhos sejam interpretados. Assim ele introduz o caso:
Tendo demonstrado em A Interpretação dos Sonhos, publicada em 1900, que os sonhos em geral podem ser interpretados e que, uma vez concluído o trabalho de interpretação, podem ser substituídos por pensamentos impecavelmente construídos, passíveis de ser inseridos num ponto reconhecível no encadeamento anímico, gostaria de dar nas páginas seguintes um exemplo da única aplicação prática que a arte de interpretar sonhos parece admitir (FREUD: 1972).
O texto de Freud é construído a partir da apresentação do quadro
clínico da paciente e de dois sonhos relatados por Dora, aos quais ele agrega
as associações da paciente, a interpretação, por ele desenvolvida, e uma
exposição teórica a respeito dos sintomas histéricos e de sua etiologia
psicossexual.
Já na apresentação do quadro clínico da paciente, segundo a citação
acima, ele afirma que os sonhos podem ser interpretados e substituídos por
pensamentos construídos, passíveis de serem inseridos num ponto
reconhecível do encadeamento anímico. O trabalho de interpretação implica na
transformação da linguagem do sonho em formas de expressão da linguagem
do pensamento.
Para Freud, como já foi apresentado neste trabalho, o sonho é um
desejo que se representa como realizado, a representação é encobridora,
quando se trata de um desejo recalcado, pertencente ao inconsciente. Isto
significa que esta representação é indireta e, por isso, deve ser interpretada. A
maneira como Freud trabalha com sonhos exige uma atividade de tradução, de
transformação da matéria do sonho. As imagens oníricas são desconstruídas e
substituídas por pensamentos, através do processo associativo, desenvolvido
pelo paciente e pontuado pelo analista.
Na apresentação do caso Dora, observamos esta transformação em
processo, pois cada elemento dos dois sonhos relatados, conforme vão sendo
feitas as associações, ganha um outro entendimento e, até mesmo, uma outra
imagem. Por exemplo:
‘Logo lhe explicarei isso. Nada mais lhe ocorre com relação à caixa de jóias?
Até agora você só falou sobre jóias e nada disse a respeito de uma caixa.’
‘Sim, Herr K. me presenteara com uma custosa caixa de jóias há pouco tempo.’
‘Então um presente como retribuição teria sido muito apropriado. Talvez você não saiba que “caixa de jóias” é uma expressão predileta para a mesma coisa que você aludiu, não faz muito tempo, por meio da bolsinha que você usava – para órgãos genitais femininos quero dizer.’
‘Sabia que o senhor ia dizer isso.’ ‘Ou seja, você sabia disso… Agora o sentido do sonho está ficando
ainda mais claro. Você disse a si mesma: esse homem está me perseguindo; quer forçar a entrada em meu quarto, minha “caixa de jóias” está em perigo e, se acontecer alguma desgraça, a culpa é do papai. Foi por isso que escolheu, no sonho, uma situação que expressa o oposto, um perigo de que seu pai a salva. Nessa parte do sonho, em geral, tudo está transformado em seu oposto; você logo saberá por quê. O mistério certamente reside em sua mãe. Como é que a mamãe entra no sonho? Ela é, como você sabe, sua rival anterior nos favores de seu pai. No episódio da pulseira, você teria aceito de bom grado o que sua mãe rejeitou. Agora, vamos substituir “aceitar” por “dar” e “rejeitar” por “recusar”. Isso quer dizer, então, que você estaria disposta a dar a seu pai o que sua mãe lhe recusava, e a coisa que se trata teria a ver com uma jóia. Pois bem, lembre-se agora da caixa de jóias que o Sr. K. lhe deu. Você tem aí o ponto de partida para uma seqüência paralela de pensamentos, na qual seu pai deve ser substituído pelo Sr. K., tal como aconteceu na situação de ele estar em frente a sua cama. Ele lhe deu uma caixa de jóias e, portanto, você tem de presenteá-lo com sua caixa de jóias; por isso falei há pouco em “retribuição do presente”. Nessa seqüência de pensamentos, sua mãe deve ser substituída pela Sra. K., que estava presente, ela sim, naquela ocasião. Logo, você está disposta a dar ao Sr. K. o que a mulher dele lhe recusa. Aí está o pensamento que você teve de recalcar com tanto esforço e que tornou necessária a transformação de todos os elementos em seu oposto. O sonho torna a corroborar o que eu já lhe tinha dito antes de você sonhá-lo: que você está evocando seu antigo amor por seu pai para se proteger de seu amor pelo Sr. K. Mas, o que mostram todos esses esforços? Não só que você temeu o Sr. K., mas que temeu ainda mais a si mesma, temeu ceder à tentação dele. Confirmam também, portanto, quão intenso era seu amor por ele (FREUD: 1972, p. 66)
.
Neste fragmento, podemos ver a transformação da imagem da caixa de
jóias e posteriormente a inclusão do novo significado no contexto da vida da
paciente. Freud busca estabelecer uma causa para o sonho na vida presente
do paciente. A respeito disso ele diz que o sonho de formação regular apóia-se
em duas pernas, uma das quais está em contato com a causa atual essencial,
e a outra, com algum acontecimento relevante da infância.
Considerando os elementos apresentados por Dora: a caixa de jóias, o
pai, a mãe, além das ações de aceitar e recusar, e, por fim, o processo de
censura, é possível compreender a linha de interpretação seguida por Freud.
Partindo da imagem “caixa de jóias”, combinada as ocorrências da vida de
vigília relatadas por Dora, ele estabelece uma relação simbólica que é
facilmente admitida pela sonhadora, já que ele lança mão de algo conhecido
culturalmente, isto é, caixa de jóias = genitais femininos. A partir daí, associar a
imagem do pai com a do Sr. K. e a da mãe com a Srª K fica mais fácil, embora
Dora não participe ativamente desta associação. É o próprio analista, com o
conhecimento do histórico da paciente e de determinados pressupostos
teóricos, que executa o processo. Na verdade, da forma como foi relatado,
parece bastante simples e um tanto quanto arbitrário, mas o fato é que Freud
respeita as regras por ele estabelecidas e consegue imprimir fundamento às
suas interpretações.
A contextualização da ocorrência onírica é de fundamental importância
para o exercício de interpretação, e ela que restringe o grau de arbitrariedade a
qual todo o analista está sujeito:
O que eu agora tinha a fazer era estabelecer a relação entre os acontecimentos em L____ e os sonhos periódicos que ela ali tivera. Portanto falei: ‘Você teve o sonho durante suas primeiras noites em L____ ou durante as últimas? Em outras palavras, antes ou depois da cena no bosque, perto do lago, do qual tanto temos ouvido falar?’(Devo explicar que eu sabia que a cena não ocorrera logo no primeiro dia, e ela permanecera em L____ por alguns dias depois disso, sem dar qualquer indicação do incidente.)
Sua primeira resposta foi que não sabia, porém, após alguns momentos acrescentou: ‘Sim. Penso que depois da cena.’
Dessa forma agora eu sabia que o sonho era uma reação àquela experiência. (FREUD:1972, p. 62-62)
Integrá-lo ao período de vida em que ele ocorreu é uma das partes do processo. Freud
também busca, na infância de Dora, a origem do desejo recalcado que se apresenta no sonho
através da representação encobridora. Desta forma ele vai reconstruindo a história psíquica da
paciente e estabelecendo a origem de seus sintomas. Sem este trabalho de integração do sentido
do sonho à vida do sonhador, o processo de interpretação torna-se um jogo vazio de sentido.
Para que o efeito possa ser terapêutico, o sonhador, olhando para aquilo que em um primeiro
momento possa lhe parecer estranho ou, por outro lado óbvio, possa reconhecer um sentido que
desencadeie um movimento anímico mais intenso e revelador. Como se o sonho, ao ser
interpretado, pudesse finalmente contar aquilo que veio contar e com isso produzir
conhecimento.
Freud deixa claro, no caso Dora, que não é, deforma alguma, uma questão de mágica ou
de iluminação. É preciso lembrar do desejo e do recalque, da censura e da elaboração onírica e
da história do sonhador, além de confiar da associação livre para se deixar por ela conduzir.
Assim como o psicanalista, o crítico literário que se dedica a aplicar este método de
interpretação, precisa lançar-se ao exercício da associação livre, lembrando que a linguagem
literária, marcadamente simbólica, está impregnada pela polissemia e que o texto, como o
analisando, também oferece resistência. É importante lembrar que nem por isso o crítico está
exercendo a psicanálise que é mais do que a aplicação de um método.
ATIVIDADES
1. Sigmund Freud vê na literatura um terreno rico para
a) estudar as estruturas da língua
b) a constituição do aparelho psíquico
c) as relações de poder
d) a pulsão de morte
2. A psicocrítica dedica-se a
a) estudar a biografia do autor
b) explorar o inconsciente do texto
c) descrever as reações do leitor
d) investigar a psique do autor real
3. A textanálise preocupa-se em
a) descobrir os complexos que levaram o escritor a escrever a obra literária
b) revelar o inconsciente do leitor a partir do exercício crítico
c) explorar o inconsciente do texto a partir do exercício de entrega no momento
da interpretação
d) aplicar rigorosamente o método freudiano de interpretação dos sonhos
4. Freud aproxima literatura e sonho por
a) entender que ambos estão impregnados de representação imaginária
b) perceber que tal como o sonho a literatura não pode ser interpretada
c) acreditar que ambos são enredos inacabados
d) observar que ambos são uma tradução direta do inconsciente
5. A interpretação de um sonho, assim como a de um texto literário, oferece
a) uma forma de conhecer os segredos do sonhador
b) uma maneira de conhecer melhor a realidade social
c) um conhecimento que pode ser revelador e transformador
d) caminho para a alienação
8. Crítica e Existencialismo Edgar Roberto Kirchof27
8.1. Algumas questões preliminares
Falar em existencialismo ou em filosofia existencial para denominar o pensamento de filósofos tão diferentes como Søren Kierkegaard, Friedrich Nietzsche, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, entre outros, talvez não seja realmente apropriado, pois, além de haver muitas diferenças no que se refere às suas idéias, a maioria não utiliza o conceito existencialismo para caracterizar suas próprias teorias. Ademais, como destacam os estudiosos dessa corrente (entre outros, verificar Le Blanc: 2003, p. 124), desde a primeira metade do século, o termo existencialismo tem sido usado de maneira muito genérica, chegando a denotar, freqüentemente, menos um sistema filosófico organizado e mais um estilo de vida baseado na boemia e na tentativa de buscar a libertação frente aos costumes burgueses e à moral tradicional.
Por outro lado, contudo, em termos estritamente filosóficos, é possível, sim, detectar, a partir do final do século XIX e início do século XX, uma nova disposição filosófica, comum a alguns pensadores, de atacar veementemente a vocação demonstrada pela filosofia tradicional para construir sistemas metafísicos, abstratos e totalizantes, nos quais o ser humano aparecia mais como uma peça dentro de um jogo pré-determinado do que como um existente concreto – como é o caso da filosofia de Hegel, por exemplo. Contra sistemas metafísicos e abstratos, portanto, filósofos como Kierkegaard, Nietzsche, Sartre, Heidegger e outros propõem pensar a filosofia a partir do sujeito, tomado em sua existência concreta, suas escolhas, suas ações, suas conquistas e frustrações, os sentimentos delas decorrentes e, acima de tudo, sua condição limitada e finita neste mundo. Se existe uma corrente existencialista na filosofia, portanto, caracteriza-se por articular seus conceitos a partir do sujeito existente e não mais a partir de sistemas abstratos e totalizantes.
Por mais controvertido que tenha permanecido, o termo existencialismo passou a ser utilizado para caracterizar essa nova tendência filosófica, principalmente, a partir do pensador francês Jean-Paul Sartre, que não só se autodenominou existencialista como também incluiu, nessa rubrica, filósofos como Heidegger e Kierkegaard, entre vários outros. Sartre (1987, p. 4) afirmava haver duas correntes dessa filosofia: o existencialismo cristão, formado por Kierkegaard, Karl Jaspers e Gabriel Marcel, de um lado, e o existencialismo ateu, representado pelo próprio Sartre, por Heidegger e pelos existencialistas franceses (Jean Wahl, Alexander Kojève, Jean Hyppolite e Albert Camus), de outro. Alguns autores incluem o filósofo Friedrich Nietzsche no rol dos existencialistas ateus, e Dostoievski e Kafka, entre outros, na lista dos escritores identificados com a estética existencialista (p. ex. OLSON: 1970, p. 12). Além disso, deve ser ressaltada a influência dessa filosofia, pelo menos, sobre o alemão-judeu Martin Buber, os russos Léon Chestov, Nicolas Berdiaev, Vladimir Jankélévitch, o francês Maurice Marleau-Ponty, o espanhol Miguel de Unamuno e seu discípulo José Ortega y Gasset, bem como sobre o italiano Nicola Abbagnano. Vários desses teóricos, como Nietzsche e o próprio Heidegger, no entanto, jamais se reconheceram como existencialistas.
27 Graduado em Letras Português/Alemão pela UNISINOS, Mestre em Comunicação e Semiótica pela UNISINOS, doutor em Teoria da Literatura pela PUCRS e pós-doutor em semiótica pela Universidade de Kassel.
Dentre as várias influências recebidas pelo próprio Sartre e os demais filósofos por ele chamados de existencialistas, destacam-se a fenomenologia de Husserl e várias idéias do dinamarquês Søren Kierkegaard, especialmente aquelas ligadas à necessidade de auto-conhecimento, processo que inclui temas ásperos, muitas vezes negligenciados pela filosofia tradicional, como a angústia, o desespero e a morte. A filosofia de Sartre, por sua vez, também apresenta uma forte influência marxista, o que levou Georg Luckács (2000, p. 18), em sua fase marxista, a considerá-lo um teórico que une uma “ética de esquerda” (o próprio marxismo) a uma “epistemologia de direita” (a filosofia de Kierkegaard).
8.2. O que é o existencialismo, afinal?
Tendo Sartre como um dos seus mais enlevados arautos, pode-se dizer que o existencialismo foi uma corrente filosófica que se disseminou pela Europa após a Segunda Guerra Mundial, e suas idéias foram veiculadas tanto através de obras filosóficas quanto de obras literárias (estas últimas, especialmente por Albert Camus e o próprio Sartre), e que gerou, em contextos não-filosóficos, uma espécie de estilo de vida, “embalado no café de Flore, à sombra de Saint-Germain des-Prés, e que se aplica a realizar libertações totais em todos os campos da ‘existência’” (Le Blanc: 2003, p. 124).
Um dos principais postulados sartreanos, como se verá adiante, pode ser resumido na tentativa de compreender o ser humano como fenômeno, um existente concreto, e não mais como uma essência abstrata – no que se revela a influência da fenomenologia de Husserl. Ao contrário do que pregavam muitas correntes filosóficas até então, para Sartre, não somos definidos por uma essência, dada por Deus ou pela natureza compreendida como uma espécie de destino a ser cumprido. O que nos define é a liberdade para agir neste mundo, e as freqüentes escolhas que ela nos impõe levam-nos a sentimentos como a angústia, razão pela qual alguns críticos caracterizaram o movimento existencialista como “uma filosofia do niilismo radical e extremo desespero” (OLSON: 1970, p. 27).
No entanto, o projeto sartreano não é pessimista e sim, emancipatório. Prega que, se é necessário reconhecer que a “realidade humana é sofredora em seu ser” (SARTRE: 1997, p. 141), é apenas porque, através de tal reconhecimento, poderemos “libertar-nos dos medos e frustrações da vida cotidiana ou do tédio dos devaneios filosóficos” (OLSON: 1970, p. 33). Nessa mesma perspectiva, Heidegger (1969, p. 35), ao caracterizar o ser humano como ser-para-a-morte, destaca o papel que Kierkegaard já havia atribuído à angústia e ao desespero: revelar-nos nosso próprio eu, levando-nos a uma existência autêntica.
8.3. Arte e literatura
Quanto à literatura e às artes, em geral, é difícil realizar generalizações, pois os autores chamados de existencialistas desenvolvem conceitos muito específicos. Kierkegaard, por exemplo, não vê a estética como teoria da arte, mas como um dos estádios da vida, aquele em que o indivíduo se guia pelo prazer, entrando em uma relação contraditória com o mundo (Le Blanc: 2003, p. 54). Heidegger (1996, p. 41), por sua vez, realizará ligações fortes entre a arte e a verdade, chegando a afirmar que “a poesia é a fundação discursiva do ser”, ou seja, que somente através da obra de arte o ser e a verdade se manifestam.
Jean-Paul Sartre, por sua vez, influenciado pelo marxismo, estabelecerá um vínculo indissociável entre a arte e a ética: para ele, a arte não se resume a um meio de expressão filosófica, pois possui uma capacidade privilegiada para nos levar à ação. O filósofo (Sartre 1989: p. 50) dirá que a obra deve levar o público não só a desvendar o mundo, mas a querer transformá-lo, defendendo o controvertido tema do engajamento do artista.
Ao apresentar a liberdade humana e o Ser como seus temas principais, portanto, pode-se dizer que a arte adquire um lugar central na filosofia existencial, na medida em que, para Heidegger, é o único acesso que possuímos em direção à verdade e que, para Sartre (1989, p. 51), “no fundo do imperativo estético reconhecemos o imperativo moral”. Além disso, não se deve esquecer que o próprio estilo de Kierkegaard revela-se um misto de filosofia e literatura, que Sartre se dedicava tanto a obras literárias quanto a obras filosóficas e, sobretudo, que alguns pensadores considerados existencialistas, como Camus, dedicaram-se mais à literatura do que à própria filosofia, em sua forma tradicional.
A seguir, por questão de delimitação, serão apresentadas apenas algumas das principais idéias de Sartre sobre o que é o existencialismo e sobre a função das artes e da literatura em seu projeto. Sobre as principais características do existencialismo, verificar REALE & ANTISERI, PENHA, LE BLANC, OLSON, GIORDANI, entre outros.
8.4. Jean-Paul Sartre: Vida e obra
Jean-Paul Sartre (1905-1980) nasceu em Paris. Estudou na Escola Normal Superior e lecionou filosofia nos liceus de Le Havre e de Paris. O início de sua carreira foi fortemente marcado pela influência da fenomenologia de Edmund Husserl, que Sartre estudou na Alemanha entre 1933 e 1934. Desse estudo, resultou a obra A transcendência do ego. Durante a Segunda Guerra, foi preso pelos alemães e, ao seu término, de volta à França, fundou o grupo Socialismo e Liberdade. De fato, a partir de então, o pensamento de Sartre tomará uma dimensão cada vez mais engajada, o que se manifestará não só através de seus livros, mas também através de vários manifestos, viagens e encontros políticos.
É importante ressaltar que o filósofo expressou suas idéias através de uma produção escrita vastíssima, que abrange tanto obras literárias quanto filosóficas e ensaísticas. Um dos vários renomados estudiosos de Sartre, o filósofo húngaro István Mészáros (1991, p. 101), destaca, dentre as principais obras sartreanas, as seguintes: A náusea, O imaginário, O ser e o nada, As moscas, Huis clos, As mãos sujas, O diabo e o bom Deus, Saint Genet, Os seqüestrados de Altona, Crítica da razão dialética e O idiota da família. Como se percebe a partir desses títulos, a literatura ocupa um lugar central no pensamento de Sartre, o que se manifesta não somente pelo fato de o filósofo ter sido também escritor de obras literárias, mas também pelo fato de ter estabelecido um papel extremamente central para a literatura em seu sistema filosófico. Para estudos simplificados e apresentações da obra de Sartre, verificar especialmente PERDIGÃO, MÉSZÁROS, PENHA, REALE & ANTISERI, entre outros.
8.5. Uma proposta de periodização
Como destaca Mészáros (1991, p. 89), não se pode estudar Sartre desconsiderando que suas idéias passaram por uma certa evolução. Mészáros nos fornece um pequeno esquema didático, baseado em seis fases: os anos de inocência (1923-1940); os anos de heroísmo abstrato (1941-1945); a busca da política no código da moralidade (1946-1950); a busca da moralidade no código da política (1951-1956); a busca da dialética na história (1957-1962); a descoberta do universal singular (1963 em diante).
Os textos dos anos da inocência (1923-1940) revelam forte influência da fenomenologia de Edmund Husserl e são marcados pela ausência de preocupação social e política, desenvolvendo a problemática da experiência individual de um ponto de vista ainda não engajado. Algumas obras desse período são A transcendência do ego, Esboço de uma teoria das emoções, além de vários contos e o romance A náusea.
Já nos anos do heroísmo abstrato (1941-1945), devido à presença da guerra, Sartre passa a defender o tema do engajamento; no entanto, para Mészáros, nessa época, seu heroísmo permanece abstrato porque reduz a problemática à discussão sobre a moral, discutida num plano mais individual do que social. A obra mais importante dessa fase é O ser e o nada (1943), juntamente com Os caminhos da liberdade, O existencialismo é um humanismo, e várias obras literárias, como Bariona (1941), As moscas (1943) e Huis clos (1943).
Na terceira fase, a busca da política no código da moralidade, Sartre passa a desenvolver a idéia de uma política moralmente comprometida, de um lado, em que se preserva a soberania do indivíduo, de outro. Em suma, trata-se da tentativa de discutir problemas sócio-históricos concretos, perante os quais o indivíduo é chamado a se posicionar politicamente. É nesse contexto que surgem os principais escritos sobre a literatura, nos quais predomina o tema do engajamento: Baudelaire (1946); A responsabilidade do escritor (1947) e, principalmente, O que é literatura? (1947). Na fase seguinte, a busca da moralidade no código da política, Sartre revela uma certa frustração quanto à tentativa de desenvolver uma moral baseada no poder político de indivíduos independentes – principal projeto da fase anterior –, o que se percebe não somente através dos textos que passa a escrever, como também através de sua postura política mais radical: nessa época, Sartre se torna uma figura importante no Movimento Mundial pela Paz e procura uma vinculação maior com o Partido Comunista Francês. As principais obras desse período são Os comunistas e a paz (1952-54) e L’affaire Henri Martin (1953), além de obras literárias como O diabo e o bom Deus (1951), Nekrassov (1955) e As feiticeiras de Salem (1956).
A próxima fase de Sartre, a busca da dialética na história, recebe sua marca da obra Crítica da razão dialética, em que o filósofo procura desenvolver uma dialética da história, diferente da dialética da natureza. Por fim, a partir de 1963, na obra O idiota da família (1971-1972), Sartre se propõe a realizar o projeto de uma história singular, algo que se aproxima da biografia, baseando-se principalmente na experiência vivida como base de compreensão.
Em vista da magnitude da obra sartreana, a seguir, serão apresentadas apenas algumas de suas idéias que mais repercutiram entre os assim chamados defensores do existencialismo, a maioria, já apresentada em O ser e o nada (1943) e retomadas, de forma simplificada, em O existencialismo é um humanismo.
8.6. A existência precede a essência
Em O ser e o nada, Sartre baseia-se na fenomenologia de Husserl e nas idéias de Heidegger para explicar seu método. Inicialmente, parafraseando Heidegger, estabelece que a diferença entre o existente e o ser é que o primeiro pertence ao mundo do fenômeno, do ente, do ser-aí – tudo aquilo que se oferece diretamente à nossa percepção – ao passo que o segundo se refere ao que ultrapassa o fenômeno em direção ao seu fundamento. Contudo, ainda inspirado em Heidegger, Sartre (1997, p. 35) afirma que o ser não deve ser compreendido, de um ponto de vista teológico ou metafísico, como uma essência oculta por traz do existente, mas simplesmente como o sentido que a consciência é capaz de retirar do ser: “a consciência sempre pode ultrapassar o existente, não em direção a seu ser, mas ao sentido desse ser”. E o sentido de ser é compreendido simplesmente como a condição, inerente ao ser, de se revelar através do existente. Nas palavras do filósofo, “o existente é fenômeno, quer dizer, designa-se a si como conjunto organizado de qualidades. Designa-se a si mesmo, e não seu ser. O ser é simplesmente a condição de todo desvelar: é ser-para-desvelar, e não para ser desvelado” (SARTRE: 1997, p. 19).
Devido às muitas críticas recebidas após a publicação de O ser e o nada, principalmente por parte dos marxistas e dos católicos, que acusaram Sartre de veicular nada mais do que pessimismo, desespero, nihilismo, desprezo pelos feitos da humanidade, Sartre escreveu, logo em seguida, o ensaio O existencialismo é um humanismo, utilizando uma linguagem mais simplificada para defender o ponto de vista de que o existencialismo, ao contrário do que pode parecer, é uma filosofia libertadora e otimista, em um termo: humanista.
Em O existencialismo é um humanismo, portanto, Sartre expõe suas idéias de forma mais simples, afirmando que, no caso do ser humano – diferente do caso dos objetos – a existência (o mundo do fenômeno) precede a essência (o mundo do ser). Tomando-se uma cadeira como exemplo, pode-se dizer que a sua essência precede sua existência porque, antes de fabricá-la, o marceneiro já deve ter, em sua mente, o conceito (a essência pré-estabelecida) de cadeira: para que serve, que técnica deve ser empregada para construí-la etc... No caso do ser humano, por sua vez, não se pode dizer que possui uma essência pré-determinada, como a cadeira, pois não foi criado por um Artífice ou por Deus, como afirma o cristianismo. Portanto, para Sartre, assim como para Heidegger, a existência possui, sim, um ser que a sustenta e para o qual ela se transcende, “mas o ser rumo ao qual se transcende a realidade humana não é um Deus transcendente: acha-se em seu próprio âmago, trata-se de si própria enquanto totalidade” (SARTRE: 1997, p. 140).
Em suma, o ser da existência, apesar de transfenomenal, não passa das condições do ser para se desvelar, ou seja, constrói-se, enquanto sentido de totalidade, na mesma medida em que o existente se manifesta. Nessa perspectiva, o ser humano, enquanto existente, não possui nenhuma essência anterior que o defina. Para Sartre (1987, p. 6), “se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é”. Portanto, não deve culpar a Deus, às suas paixões e às aparentes limitações de sua vida pelo que se tornou. Quando age dessa forma, não assumindo a construção de sua própria essência, buscando desculpas para não ser o que é, está negando a liberdade inerente à sua condição de existente, agindo de má-fé. Em seus próprios termos: “o homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo” (Sartre: 1987, p. 6). Na medida em que não possui uma essência anterior que o defina, portanto, o ser humano se define como liberdade para construir o seu ser.
Ainda em O ser e o nada, Sartre chegou à conclusão de que o ser possui ‘duas regiões’ ou simplesmente dois modos fundamentais de se manifestar nesse mundo, o ser-em-si e o ser-para-si. De forma extremamente simplificada, pode-se dizer que o em-si se define como o ser sem consciência, pura facticidade, independente de qualquer consciência que se possa ter dele. Já o para-si possui consciência e, por isso, depende diretamente da consciência que tem de si mesmo e do outro para existir. Evidentemente, nossa qualidade distintiva enquanto seres humanos é a capacidade de sermos ser-para-si.
8.7. Liberdade e angústia
Ao declarar que, para o ser humano, a existência precede a essência, o existencialismo cria um aparente problema ético: se o homem nada mais é do que aquilo que faz de si mesmo, então não há valores, ordens ou critérios absolutos a serem seguidos para guiar seu comportamento neste mundo? De fato, Sartre (1987, p. 9) afirma que é exatamente esta a condição humana: “o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz”.
A liberdade humana é tão radical, na filosofia sartreana, que o indivíduo, ao escolher as ações (o comportamento) que definirá o seu ser, acaba criando um modelo humano válido não somente para si próprio, mas para toda a humanidade: “não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser” (SARTRE: 1987, p. 6). Isso significa que nós não somos responsáveis apenas pelos nossos próprios atos, mas pelos atos de todas as pessoas, pois, na medida em que escolhemos um determinado comportamento, estamos propondo uma imagem ou uma essência construída do ser humano em geral, que poderá ser seguida por todas as pessoas. A principal pergunta ética que deveríamos nos colocar constantemente, portanto, é a seguinte: “o que aconteceria se todos fizessem como nós ?” (p. 7). É exatamente por isso que se torna tão importante, para o existencialismo, que o indivíduo se engaje de forma consciente na construção de sua individualidade, pois ‘é possível que todos venham a seguir as nossas ações’.
Para Sartre, quando tomamos consciência da responsabilidade contida na escolha de nossos atos, somos tomados por sentimentos de angústia, desamparo e desespero. Nas palavras do filósofo (p. 7), “o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade”.
Há, contudo, pessoas que não se deixam acometer pela angústia inerente à responsabilidade que emana de nossa completa liberdade neste mundo, escondendo-se atrás de ‘desculpas’ para agirem de maneira inautêntica. Algumas das desculpas mais freqüentes são o determinismo biológico e as paixões. Estariam tais pessoas destituídas de liberdade? Não. Para Sartre, o que ocorre nesses casos é que elas se negam a aceitar sua condição humana, agindo de má fé: “Aqueles que dissimularem perante si mesmos a sua total liberdade, com exigências da seriedade ou com desculpas deterministas, eu os chamarei de covardes; os outros, que tentarem demonstrar que sua existência era necessária, quando ela é a própria contingência do aparecimento do homem sobre a terra, eu os chamarei de canalhas.”
Por outro lado, quando aceita o desafio da liberdade, o homem se livra dos mitos opressores que pretendem ditar-lhe um determinado comportamento como se fosse o único possível ou correto, o que lhe permite construir o seu próprio ser em liberdade. Em síntese:
O existencialismo nada mais é do que um esforço para tirar todas as conseqüências de uma postura atéia coerente. Esta não pretende, de modo algum, mergulhar o homem no desespero. Mas se, tal como fazem os cristãos, se decide chamar desespero a qualquer atitude de descrença, nossa postura parte do desespero original (...); é preciso que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus. Nesse sentido, o existencialismo é um otimismo, uma doutrina de ação, e só por má fé é que os cristãos, confundindo o seu próprio desespero com o nosso, podem chamar-nos de desesperados. (SARTRE, 1987, p. 22)
8.8. Sartre: as artes e a literatura
A concepção estética de Sartre está diretamente vinculada ao seu conceito de liberdade: a função da boa literatura, em última análise, é representar o mundo em suas mazelas para, assim, apelar para a generosidade do leitor, instigando-o não só a tomar consciência como também a assumir sua responsabilidade frente às questões levantadas. Nas suas palavras, “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (Sartre: 1989, p. 21). Em poucos termos, para Sartre, a literatura só pode ser compreendida a partir de sua propensão para o engajamento individual (auto-conhecimento) e social (transformação da realidade): “Através da literatura, conforme mostrei, a coletividade passa à reflexão e à mediação, adquire uma consciência infeliz, uma imagem não equilibrada de si mesma, que ela busca incessantemente modificar e aperfeiçoar” (Sartre: 1989, p. 217).
Para defender sua posição radicalmente engajada, Sartre acaba realizando uma disjunção entre o que ele denomina de literatura, essencialmente utilitária por ser escrita em prosa, e as artes contemplativas, como a pintura, a música e a própria poesia, cujo fim, segundo Sartre, resume-se a criar imagens e objetos para serem admirados. Na visão sartreana, a principal diferença entre ambas reside no fato de a literatura [sempre em prosa] criar signos, o que a tornaria uma linguagem-instrumento. Já a poesia, a música e a pintura, para o filósofo, não chegam a criar significados, pois nos apresentariam as próprias coisas. Com base nesse fundamento, Sartre conclui que “só ao poeta cabe contemplar as palavras de maneira desinteressada”; ao escritor em prosa, por sua vez, temos sempre o direito de perguntar “com que finalidade você escreve? Em que empreendimento você se lançou e por que necessita ele do recurso à escrita? E em caso algum esse empreendimento poderia ter como finalidade a pura contemplação” (Sartre: 1989, p. 19).
A arte literária que se desvia de tal vocação, segundo Sartre, é manipuladora, age de má-fé, agrada por agradar, adulando. Conseqüentemente, não consegue se furtar a servir diretamente aos interesses das classes sociais dominantes. Ainda segundo o filósofo, essa visão estética se manifesta nas obras de escritores que defendem a arte pela arte ou a arte pura também como projeto para a literatura em prosa. Os dois principais defeitos que Sartre (1980, p. 114) atribui a esse tipo de literatura são a alienação e a abstração. Ao passo que a arte alienada seria aquela que, não possuindo
consciência de sua autonomia, acaba se submetendo à ideologia dominante de sua época, compreendendo-se a si mesma como um meio e não como fim, a arte abstrata já possui uma certa concepção de autonomia, porém não em relação aos seus temas ou conteúdos, mas apenas em relação à sua forma.
Ao analisar a literatura francesa, desde os séculos XVII até o século XX (até 1947), Sartre conclui que o século XVII produziu uma literatura concreta e alienada; no século XVIII, surgiu uma arte negativa e abstrata. Do final do século XIX em diante, a arte tem se tornado cada vez mais decadente, e o século XX presenciou o surgimento de uma arte totalmente negativa, uma espécie de “destruição da literatura por si mesma”. Sartre, por sua vez, defende uma posição dialética, que vê a literatura simultaneamente como universal e concreta: universal na medida em que representa a totalidade dos homens; concreta porque necessita apresentar as sociedades específicas em que vivem.
Por fim, coerente com sua filosofia existencial, Sartre jamais coloca suas convicções de forma totalizante ou essencialista. Apesar de acreditar e defender veementemente que a literatura (em prosa) deve ser utilitária e engajada, o filósofo toma o cuidado de ressalvar que não existe nenhum fundamento metafísico ou sobrenatural a garantir que assim o será:
A arte de escrever não é protegida pelos decretos imutáveis da Providência; ela é o que os homens dela fazem, eles a escolhem, ao se escolherem. Se a literatura se transformasse em pura propaganda ou em puro divertimento, a sociedade recairia no lamaçal do imediato, isto é, na vida sem memória dos himenópteros e dos gasterópodes. Certamente, nada disso é importante: o mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem. (Sartre, 1989, p. 218)
ATIVIDADES 1) Por que é controvertido o uso do termo existencialismo para caracterizar pensadores como Heidegger e Kirkegaard? a) Porque várias idéias desses pensadores vão de encontro ao pensamento existencialista. b) Porque algumas idéias desses pensadores vão de encontro ao pensamento existencialista. c) Porque esses pensadores não se consideravam existencialistas. d) Porque Heidegger é ateu, ao passo que Kirkegaard é cristão. 2) Qual dos seguintes filósofos não pode ser considerado ateu? a) Jean-Paul Sartre. b) Martin Heidegger. c) Friedrich Nietzsche. d) Gabriel Marcel. 3) Sobre a angústia, na concepção de Sartre, é correto afirmar o seguinte: a) É uma conseqüencia da tomada de consciência de um sujeito quanto à liberdade de seu existir neste mundo. b) É o sentimento do qual somos acometidos quando nos damos conta que somos um ser-para-a-morte.
c) É conseqüência do ateísmo sartreano, de acordo com o qual, após a morte, não há nenhuma esperança. d) A angústia, para Sartre, é conseqüência do nihilismo que está inerente à filosofia existencial. 4) Segundo Sartre, a literatura ... a) tem uma capacidade privilegiada para revelar a verdade. b) deve cumprir um papel ético, instigando o leitor a querer transformar o mundo. c) deve nos reconectar o o estádio estético da existência, em que predomina o prazer. d) é superior à filosofia, na medida em que sempre exige um engajamento por parte do leitor. 5) Qual das alternativas abaixo sobre a arte e a literatura na França é correta, de acordo com a visão de Sartre? a) A literatura e as artes do século XVII são engajadas politicamente. b) A arte e a literatura do século XIX é abstrata. c) A decadência das artes e da literatura, na França, têm início apenas no final do século XX. d) As artes e a literatura do século XX são auto-destrutivas e decadentes.
9. Cinema e literatura
Débora Teresinha Mutter da Silva28
Dentre as inúmeras tendências da crítica contemporânea com inclinação
interdisciplinar, uma das mais vigorosas é a que explora as relações entre o
cinema e a literatura. A quantidade de livros que receberam versões fílmicas,
bem como o desafio de transformar o conteúdo de um livro em roteiro
cinematográfico são apenas alguns motivadores para as abordagens críticas
que se ocupam de investigar e aprofundar interpretativamente o diálogo entre a
literatura e a arte cinematográfica.
9.1 As Origens
O contato entre a literatura e as demais artes ou disciplinas não é novo.
Sua origem remonta à Antigüidade quando os limites entre música, história,
pintura e poesia, por exemplo, não constituíam tema para reflexão pelo simples
motivo de que eram vistas como parte de um processo natural de
expressividade. Entretanto, com o passar dos séculos, o homem se viu cada
vez mais impelido a explorar individualmente cada área das artes e das
ciências. Essa tendência deveu-se à segmentação do saber, que culminou com
a criação das disciplinas como as conhecemos desde o século XIX.
No campo artístico, a exemplo do campo científico, surgiram escolas de
música, de pintura, de literatura, de teatro, etc. A partir daí, muitas artes
constituíram-se como disciplinas dedicadas ao estudo de suas próprias bases
teóricas e práticas, com metodologias de ensino e aperfeiçoamento de
técnicas.
Atualmente, dispomos de um arcabouço teórico específico para cada
área, embora, nas manifestações artísticas propriamente ditas, o diálogo entre
elas persista, incluindo, além de disciplinas do porte da História e da filosofia, 28 Débora Teresinha Mutter da Silva é mestre em Literatura Comparada e doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professora do ensino presencial e a distância da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).
todo o acervo de novas formas de expressão como a pintura, fotografia e o
cinema entre outros. A ênfase na crítica sobre os vínculos entre cinema e
literatura deve-se ao fato de que desde os primeiros filmes até os dias atuais,
embora já não exclusivamente, os filmes tomam por base obras literárias para
adaptação.
Os vínculos e afinidades manifestas artisticamente na literatura levaram
os críticos a estudos comparativos, originando métodos eficazes e quase
indispensáveis para algumas abordagens analíticas. Diante dessa constatação,
fica evidenciado que, para abordar criticamente a relação entre cinema e
literatura, precisamos da comparação entre outros recursos analíticos.
9.2 Áreas de contato
A adaptação de um texto literário ao cinema sempre desperta comentários
acerca da “fidelidade” do diretor ou da “infidelidade” da obra fílmica. Isso
significa que a leitura comparativa leiga é automaticamente acionada no
público que conhece a obra que serviu de base ao filme. Segundo Corseuil,
O que se revela problemático nessas leituras comparativas é o
cerceamento de significados, indiretamente impostos pelo texto literário,
ao analisar-se uma adaptação para o cinema. Cerceamento este que
acaba reduzindo a pluralidade de significados que o filme possa ter
como obra independente. (CORSEUIL, 2005, p. 317)
Para evitar essa perspectiva redutora, muitos estudos de adaptação de
obras literárias ao cinema propõem análises mais contextualizadas do filme
adaptado respeitando o momento histórico-cultural em que ele é produzido e
inserindo-o nos vários discursos que o constituem (NAREMORE, 2000)
A comparação é um recurso que caracteriza a estrutura do pensamento
humano e da organização da cultura (CARVALHAL, 1992). O comparatismo é
uma metodologia que se molda a partir de diversos pontos de vista com
finalidades várias. Serve para deslindar as peculiaridades de qualquer objeto,
pessoa ou evento, sendo útil em qualquer área do conhecimento; desde a
medicina até a filosofia, passando pela política, etc. Porém, como método de
estudo literário, ele surgiu no afã positivista de medir as leis gerais sobre
fenômenos análogos e também com o interesse em mapear as semelhanças
entre as literaturas dos países europeus e de suas colônias. Sobre as
intenções dessa época predominava a noção de “influência” que seria medida
pelas analogias identificadas entre a cultura européia e a colonizada.
Entretanto, a crítica literária voltada a formas não exclusivamente verbais
como o cinema visa à compreensão mútua e à complementaridade que emerge
das relações entre a antiqüíssima arte da palavra e as manifestações artísticas
fílmicas e, mais recentemente, criações virtuais surgidas com o advento da era
tecnológica – o computador.
Uma metodologia mínima para abordagem crítica sobre cinema e
literatura exige alguns critérios e precauções indispensáveis. Como exigência
inicial de qualquer estudo que envolva duas áreas diferentes, é preciso
conhecer a história e as peculiaridades de cada uma delas. Se o crítico tem
mais vinculo com a literatura, ele buscará conhecer o cinema. Nesse caso, três
condições são essenciais ao trabalho crítico:
• conhecer a historiografia do cinema a partir de sua periodização.
Saber as características, por exemplo, das principais escolas que
são: Avant-garde, Expressionismo, Experimentalismo soviético,
Neo-realismo, classicismo, Nouvelle vague, Cinema novo.
• familiarizar-se com os conceito, as funções específicas de cada
elemento de base na composição de um filme, tais como tempo,
espaço e narrativa, mise-na-cene e as formas de adaptação ;
• conhecer bem os gêneros já consagrados, que são: comédia,
drama, policial, aventura, histórico, musical, fantástico, horror,
documentário e seriado.
Conhecer a evolução histórica das técnicas e das escolas permite
entender e delimitar os propósitos, bem como os avanços de um etapa com
relação à outra em termos de encontrar os espaços discursivos que operam
por detrás das opções criativas.
Isso se faz indispensável porque, embora as diferenças formais, subjaz a
ambas as artes a noção de narrativa. Portanto, é quase sempre a partir das
noções estruturais do modo narrativo que se sustenta a análise que irá
embasar uma crítica acadêmica que é muito diferente de uma opinião apenas.
9.3 Brevíssima história do cinema
A história do cinema está vinculada à da fotografia (1835). Seu surgimento
ocorre sessenta anos após (1895) com um pequeno filme produzido pelos
irmãos Lumière29. Trata-se , portanto, de uma arte extremamente jovem que,
no princípio, apresentava apenas imagens em movimento, sem áudio. A
primeira definição de cinema foi dada pelos próprios inventores: “um modo de
captar a realidade em movimento sem nenhuma interferência humana.”
(ARAÚJO, 1995, p. 10) Como vemos, essa definição foi incapaz de captar o
futuro que estava reservado ao cinema na sua relação com a arte e com a
ficção, pois a intervenção humana atualmente é muito maior do que os
inventores poderiam sonhar. A inclusão do som estreitou ainda mais o vínculo
com o teatro pelo viés da palavra em drama, ou seja, ação, contribuindo para
isso o cenário 30.
Os primeiros diretores cinematográficos, que exploraram a nova arte até
1940, por não terem antecessores, procuravam inspirar-se no teatro ou na
literatura (ARAÚJO, 1995, p.81). A partir daí, ao contrário da fotografia, o
cinema foi tributário tanto do teatro quanto da literatura. Contudo, ele se
diferencia sobremodo de ambas por ser uma arte em que as idéias e a
tecnologia andam lado a lado, sendo esse um fator decisivo para a conquista
de sua autonomia e especificidade (ARAÚJO, 1995).
Foi graças às experiências e aos esforços dos pioneiros para dar status
de arte ao cinema que os diretores que vieram na seqüência constituíram uma
29 A primeira exibição cinematográfica foi um pequeno filme intitulado A chegada do trem na
estação. Foi produzido e exibido pelos irmãos Lumière em Paris. 30 Entende-se por cenário o lugar onde acontece a ação também denominado mise-en-
scene.Trata-se do conjunto de elementos introduzidos no ângulo de visão câmera. São as peças que compõem o campo visual (móveis, objetos, adereços, cores e luminosidade) no espaço onde se apresenta um espetáculo teatral, cinematográfico, televisivo etc.; trata-se da composição da cena ou dispositivo cênico. É um espaço artificial que integra o sistema semiótico do filme, é criado especialmente para causar um efeito na conjugação com os sons e com as palavras agindo diretamente nos sentidos do espectador. O cenário tem grande carga significativa para o conjunto e para o resultado da obra.
“cultura cinematográfica”. A partir daí, já havia espaço para discussão,
contestação e modificação das técnicas. Atualmente, as acusações iniciais de
que o cinema seria uma arte menor por sua dívida com a literatura e com o
teatro servem apenas para contextualizar historicamente uma arte tão
revolucionária quanto sedutora.
Em um século de existência, o cinema dotou-se de técnicas, avançando
em direção a infinitas possibilidades criativas e relacionais com a arte da
palavra, criando linguagem 31 e teorias próprias no âmbito de um sistema
semiótico específico. Assim, a noção de fidelidade ou infidelidade às obras
literárias já não é uma questão a ser resolvida, pois tem mais valor histórico do
que teórico em uma análise crítica. (CORSEUIL, 2005).
A literatura inspira e ilumina o cinema e a recíproca é verdadeira, inclusive
com relação a outras artes, como a pintura, a música e a fotografia as quais
são também trabalhadas por ele. São vários os tipos de relações que se
estabelecem entre cinema e literatura assim como múltiplas são as formas de
adaptações .
• uma obra literária pode servir de argumento para um filme;
• um filme ou o próprio meio cinematográfico pode ser o tema de
uma obra literária;
• um filme ou seu roteiro 32 pode converter-se em uma obra literária;
• um personagem literário ou um escritor pode ser tema para um
filme;
A transposição de uma obra literária para o cinema é a modalidade mais
antiga e mais freqüente de relação entre ambos. Contudo, a variação de grau e
de intensidade do vínculo como texto original caracterizará o tipo de
adaptação. Essas são informações relevantes para uma análise crítica, pois o
filme poderá expandir, criticar ou reatualizar o texto original na relação com os
31 O debate sobre a existência ou não de uma linguagem cinematográfica perde parte de sua
importância para a finalidade crítica, ficando mais restritas às questões teóricas de estudos da linguagem. Para aprofundar um estudo sobre essa questão indicamos a obra Linguagem e cinema , de Christian Metz, 1971.
32 Também denominado script, o roteiro é o texto que resulta do desenvolvimento do argumento de um filme, um vídeo, uma novela, um programa de rádio ou televisão, uma peça teatral etc. dividido em planos, seqüências e cenas, com as rubricas técnicas, cenários e todos os diálogos.
vários sistemas semióticos com os quais interage (sons, corres, música,
referências cruzadas, velocidade das imagens, etc.)
Além do comparatismo, a intertextualidade exerce importante papel a
crítica estudos de Gerard Genette sobre intertextualidade servem às práticas
entre literatura e cinema. Um romance, por exemplo, seria um hipotexto, o texto
fonte sobre o qual se ergue o argumento que leva ao roteiro. Ele poderá ser
adaptado de vários modos: seleção, amplificação, concretização,
atualização, crítica, extrapolação, analogização, p opularização e
recontextualização . Nessa proposta analítica, não há hierarquia entre o
original e a obra adaptado, o filme. Assim, ele pode ser analisado precisamente
em suas modificações que podem ser: ideológicas, técnicas, críticas e
interpretativas .
Sobre todas as espécies de modificações, paira o conceito de leitor e de
recepção, pois o roteiro será tal e qual o diretor o concebeu na sua “leitura”. Se,
no sei do próprio conceito de leitura, está preservada a integridade e
singularidade interpretativa não apenas de cada leitor, mas de cada leitura que
esse mesmo leitor realizar, a análise de cada filme deverá ser submetido ao
deciframento do grau de refração sofrido com relação ao original.
De toda forma, a passagem de uma obra literária para cinema faz entrar
em ação à noção de fidelidade, uma vez que é impossível que o processo
ocorra literalmente. Isso se deve às peculiaridades de cada uma das formas
artísticas, havendo necessidade de adaptações de tempo, de espaço 33 e de
perspectiva 34.
Quanto às especificidades da linguagem cinematográfica, vários teóricos
do cinema que trabalham com adaptações de obras literárias substituíram o
termo fidelidade. As razões são fortes e apóiam-se na variedade de formas
pelas quais se realizam as adaptações, exigindo subdivisões para as
categorias. Na perspectiva de ANDREW (1984), elas podem ser do tipo
empréstimo , intersecção e transformação das fontes .
33 Na percepção da matéria fílmica, três espaços se articulam ao espectador: espaço pictural,
espaço arquitetural e espaço fílmico. 34 A perspectiva é o ângulo de visão sob o qual se estabelece a cena e a ação. Porém, ela é
também um conceito da literatura e, nesse caso, será necessário retomarmos a noção de foco narrativo.
• empréstimo ocorre quando o artista emprega, independente da quantidade
e da intensidade, o material de uma obra já consagrada, sendo a mais
freqüente na história da arte. Nesse tipo de adaptação, os estudos críticos
atem-se à força do original (fonte), ou seja, àquilo que fez dele um clássico.
É a partir dessa base que o crítico terá subsídios para definir o uso que o
filme adaptado faz do poder e prestígio da sua fonte, seja formal ou
ideológico ou ambos.
• intersecção ao contrário do empréstimo, a intersecção tem por finalidade
transmitir o original (forma e conteúdo) pelos olhos do cinema, num
processo de refração, não de adaptação.35 Filmes com esse viés, temem e
se negam a adaptar, pois apresentam a alteridade e a distinção do texto
original, iniciando um intertexto dialético entre as formas estéticas de um
período e as formas cinemáticas do nosso próprio período;
• transformação das fontes a adaptação estaria constantemente em busca
de reproduzir através do cinema alguma qualidade essencial do texto-fonte.
É ainda o discurso mais freqüente sobre adaptação, muito embora boa
parte das teorias atuais não aborde essa perspectiva. Para ela, a adaptação
estaria constantemente em busca de reproduzir através do cinema alguma
qualidade essencial do texto-fonte. Esse discurso sobre fidelidade se
estrutura em duas vertentes: a primeira é a tentativa deliberada do filme em
recriar, nas condições visuais que lhe são próprias, os aspectos
geográficos, sociológicos e culturais que definem o espaço do livro ou da
peça, bem como a relação entre os personagens e as categorias
narratológicas básicas, como narrador 36 e ponto de vista ; a segunda, seria
um esforço de fidelidade ao “espírito”, ao “tom” e ao “estilo” do original,
tentando-se construir “equivalentes cinemáticos” para as estratégias
estilísticas da obra em que se baseia o filme.
35 São exemplos as adaptações de Medea, Canturbury Tales e Decameron, de Pier Paolo Pasolini. 36 Adiante, abordaremos mais detidamente esse elemento
Não é possível reproduzir o universo de aspectos e informações que
compõem um livro, por isso ao passar para a tela grande uma obra literária
sofrerá muitas modificações. Ela poderá ser apenas o argumento 37 para o
segundo estágio criativo do filme: o roteiro . Para a criação de um roteiro, o
diretor cinematográfico e o roteirista trabalham afinadamente para produzir uma
obra original. Um roteiro não é exatamente uma transposição de um livro para
outro formato. Ele é uma criação nova que terá suas próprias leias e
características.
Por exemplo, a descrição de uma paisagem, que esteja em uma página
no livro, será apresentada com uma única imagem, ou seja, apenas um
fotograma 38 poderá apresentá-lo ao espectador. Outro caso é o perfil
psicológico de uma personagem. Para que sejam mantidas, essas
“informações” no filme elas poderão constar das rubricas 39 dos roteiros e
assim serem executadas pelos atores.
Além da condensação verbal, surgirão as refrações próprias do olhar
daquele que a elabora, isto é, o diretor ou o roteirista cinematográfico. É na
condição de leitor e a partir das imagens mentais geradas pelo texto literário
que eles escolhem os ângulos, as falas, os cenários, a iluminação, os planos 40
para recriar a imagem visual que alcançará o espectador.
Também o processo de decupagem se conjuga com os demais para o
sentido. É por meio dele que se dá a articulação de um conjunto de ações
distintas, no interior de diferentes planos. Decupar 41 significa dividir o roteiro
em cenas, seqüências e planos numerados, para facilitar a gravação. É feito o
levantamento detalhado de imagens e/ou sons, gravados ou filmados,
indicando a posição e o tempo de duração de cada trecho, para servir de
37 O argumento é o esboço elementar de uma idéia. Geralmente, são três ou quatro páginas
com as linhas gerais da história: o que acontece, por que, e quem são as personagens. 38 No espaço de uma película cinematográfica, o fotograma corresponde a cada impressão
fotográfica (slide) ou quadro unitário de um filme inteiro. A passagem rápida de um fotograma a outro gera a ilusão de ótica que recria o movimento.
39 Chama-se rubrica o texto que não faz parte do diálogo, mas indica aos atores, ao diretor e à produção (arte, figurino etc.) detalhes imprescindíveis da cena.
40 O plano é cada fragmento filmado. Cada corte na montagem serve para trocar de plano, ou seja, o plano é ângulo e o grau de abertura ou fechamento da lente sobre um cenário ou paisagem. Dividem-se em sete os planos e vão desde o Plano Geral (PG) que mostra o conjunto de um cenário ou paisagem até o Plano de detalhe (PD) que mostra um detalhe do rosto, um olho, uma boca um closed.
41 A palavra decupar vem do francês decoupér, que significa cortar em pedaços. Na prática, é o momento em que diretor e roteirista dividem cada cena em planos.
referência ao trabalho de edição na montagem , que é processo pelo qual o
montador seleciona as cenas de uma filmagem, após o seu término, unindo-as
em seqüência para formar o filme. Ele é tão importante que alguns teóricos
chegam a afirmar que a montagem é a “única criação realmente original do
cinema” (ARAÚJO, 1995, p.50). É a montagem que define o ritmo do filme e os
aspectos decisivos de sua linguagem.
Todos esses procedimentos estão a serviço do sentido do filme, pois pela
decupagem descobre-se que:
Não apenas a ênfase de momentos isolados da ação
reforça o efeito emocional, mas, sobretudo, ela dá uma
interpretação dos elementos representados, pois para o
espectador cada nova posição de câmera torna-se o único
ponto de vista possível para absorver os acontecimentos.
(EISENSTEIN, 2002, p.80)
Ao mencionar a câmera, somos levados a pensar nesse forte ponto de
contato entre as técnicas narrativas empregadas entre o filme e o livro: o
narrador . Diferente na narrativa literária, o mundo romanesco ou ficcional não
é intermediado pelo discurso direto ou indireto do narrador. No cinema,
devemos considerá-lo sempre como uma entidade entre a focalização, a mise-
em-scene, a trilha sonora e a montagem.
Sendo assim, a presença do narrador no cinema surge com a edição de
imagens, pois nela que reside a sua interferência. É na edição, com a
decupagem e a montagem que se organizam os eventos da história, ou seja, é
aí que surge o arranjador ou fabulista no sentido aristotélico. A edição ou a
montagem dos diferentes planos situados em um segmento espaço-temporal
pode organizar sequências de modo linear ou não. Segundo CHATMAN, 1992
apud CORSEUIL (2005, p. 322), “a montagem, determinada pela forma como
uma história é contada, aponta para a existência de um mediador que organiza
os eventos da história no tempo e no espaço”.
Contudo, diferente da narrativa literária, o narrador fílmico não está
vinculada exclusiva nem necessariamente a uma individualidade organizadora
da diegese, ou seja, da narrativa no conceito de Genette.
Nada impede, porém, que algumas opções fílmicas introduzam um
narrador-personagem que conta a história para outro personagem, para um
diário ou ainda como simples rememoração ou com uma voz in off enquanto as
imagens se alternam. Em qualquer dos casos, a partir dos estudos de Genette
sobre perspectiva levaram ao conceito de focalizador como sendo o agente
que vê e sente as ações. É através dele que distinguimos a atividade do
narrador. É pelo focalizador e pela sua subjetividade que percebemos, vemos e
sentimos as emoções das personagens e as suas visões do mundo ficcional,
sem que a manipulação do câmera-narrador se torne visível.
Para finalizar, o que precisa ficar evidente é o rigor da análise que
antecede o exercício crítico entre cinema e literatura. O estudioso precisa
acionar e articular inúmeros recurso para a exegese e os caminhos até aqui
sinalizados são apenas a ponta de um iceberg que fascina pelo infinito de
possibilidades criativas e alerta para o rigor nas etapas preliminares de
conhecimento interdisciplinar.
ATIVIDADES
1. A partir do que foi estudado no capítulo, assinale a alternativa verdadeira
sobre a crítica que relaciona cinema e literatura.
A) A crítica cinematográfica é a ideal para analisar obras literárias que recebem
versões fílmicas.
B) As relações do cinema com a literatura remontam às suas origens,
estimulando a intensificação dos estudos críticos nessa área.
C) Apenas as teorias literárias subsidiam estudos críticos entre literatura e
cinema.
D) Não é possível tacar nenhuma analogia teórica entre cinema e literatura.
2. Assinale a alternativa correta sobre o que foi estudado.
A) Um roteiro não é mera transposição de um livro para outro formato.
B) A adaptação de um livro para o cinema não exige esforço criativo.
C) O cinema é sempre tributário da literatura porque depende dela.
D) o empréstimo não pode ser considerado uma das formas de adaptação fílmica.
3. Assinale a alternativa correta quando aos conteúdos estudados.
A) Cada expressão artística tem um arcabouço teórico específico, sendo
impossível misturar esses saberes e práticas.
B) O cinema e a literatura podem dialogar tanto com as diversas formas
artísticas como com disciplinas como a História e a filosofia.
C) Entre as formas de expressão artística, apenas o cinema interessa à
literatura.
D) O diálogo entre cinema e literatura é uma invenção da crítica no século XXI.
4. Para a análise de filmes em termos comparativos com os elementos da
narrativa literária, podemos afirmar que:
A) a função do narrador transfere-se naturalmente para a câmera;
B) o arranjo perde a importância quando realizamos um estudo de adaptação
entre filme e livro;
C) o focalizador é o conceito mais adequado para estudar o papel do narrador;
D) a montagem não importa por ser uma etapa exclusivamente mecânica.
5. Assinale a alternativa correta quanto às etapas da elaboração de um filme.
A) O argumento é a fase final da recriação de uma obra literária para o cinema. B) O roteiro depois da decupagem é o segundo estágio criativo do filme. C) Somente depois do argumento elabora-se o roteiro. D) As rubricas são comentários subjetivos do diretor.
10. CRÍTICA E INTERSEMIOTICIDADE Edgar Roberto Kirchof42
Neste capítulo, serão abordados, de forma bastante preliminar e introdutória, alguns dos principais temas ligados à relação que a literatura pode estabelecer com outros sistemas de linguagem, ou seja, com sistemas não literários, o que é possível devido ao caráter sígnico ou semiótico de seu próprio sistema. Para tanto, inicialmente, é importante compreender o sentido dos conceitos signo e semiótica, a fim de delimitar em que consistem as especificidades da linguagem literária e, desse modo, identificar seus pontos de intersecção com outras artes. Após serem discutidas algumas conseqüências, para a literatura, advindas do fato de o próprio sistema literário ser constituído de signos, serão apresentadas algumas possibilidades de reflexão crítica tomando como base a relação da literatura com algumas linguagens não-literárias, principalmente com signos visuais e com o hipertexto.
10.1. O que é semiótica? Quando falamos da linguagem empregada pela literatura, em sentido restrito,
estamos falando de linguagem verbal, o que significa que os signos dos quais se utiliza qualquer escritor para escrever uma obra literária são as palavras, na sua forma escrita. No entanto, a comunicação humana não se restringe às palavras – muito menos às palavras escritas –, ocorrendo também por imagens, sons, sinais etc. Todos esses veículos da comunicação, incluindo-se a linguagem verbal (tanto em sua manifestação oral quanto escrita), são signos, e a ciência destinada ao estudo dos signos se chama semiótica.
De forma bastante simplificada, pode-se dizer que qualquer tipo de comunicação sempre ocorre através de um conjunto de signos que representam objetos, gerando-se, dessa maneira, significados na mente do receptor. A pintura de uma pessoa, por exemplo, é um signo. A pessoa representada, enquanto ser de carne e osso, é o objeto dessa representação. No entanto, o singificado desse signo não é a própria pessoa, mas o efeito gerado pela pintura na mente de quem a observa. Assim sendo, todo acesso cognitivo que temos do mundo é mediado pelos signos.
Visto que o tipo de signo que predomina em uma pintura é visual ou imagético, nós dizemos que se trata de uma representação icônica, pois, no caso dos ícones, há uma certa semelhança (embora nunca uma identidade completa) entre o signo e o seu objeto, respectivamente, entre a pintura e a pessoa representada nessa pintura.
Figura 1. Exemplo dos três elementos da semiose PESSOA (OBJETO) PINTURA (SIGNO) SIGNIFICADO (EFEITO DO SIGNO SOBRE A MENTE DE ALGUÉM) No caso da literatura, contudo, os signos não são icônicos, mas simbólicos, pois
as palavras não mantêm relações diretas de semelhança com os objetos representados e
42 Graduado em Letras Português/Alemão pela UNISINOS, Mestre em Comunicação e Semiótica pela UNISINOS, doutor em Teoria da Literatura pela PUCRS e pós-doutor em semiótica pela Universidade de Kassel.
sim, relações de convencionalidade. Em outros termos, nós aceitamos que a palavra pássaro, por exemplo, significa um tipo específico de ser vivo porque assim está convencionado na língua portuguesa. Em outros idiomas, existem outras convenções e, por essa razão, a forma significante pode variar, como bird (inglês), Vogel (alemão), oiseau (francês) entre tantos outros exemplos possíveis.
A linguagem verbal é o mais complexo sistema semiótico de que dispõe o ser humano para se comunicar. No entanto, não devemos subestimar a capacidade dos demais sistemas comunicativos, principalmente as imagens. Ademais, na maior parte das vezes, nós utilizamos a linguagem verbal juntamente com outros sistemas de signos, o que caracteriza um sincretismo semiótico, que alguns autores denominam de intersemioticidade. Por exemplo, quando falamos, não emitimos apenas palavras. Também emitimos signos através de nossas expressões faciais, dos gestos de nossas mãos e, mesmo, através de certas posturas corporais. Muitas vezes, só é possível identificar se o que está sendo dito é sério ou não através dos gestos, da entonação da voz e da expressão facial que acompanha as palavras enunciadas. Outras vezes, nós sequer utilizamos palavras para a comunicação, quando, por exemplo, fazemos um sinal afirmativo com a mão ou quando balançamos a cabeça para sinalizar uma resposta negativa.
10.2. Signos icônicos e convencionais A história das artes, no ocidente, é marcada pela predominância de signos
icônicos e convencionais, sendo que os primeiros determinam artes como a pintura e a escultura, ao passo que os segundos determinam a arte literária. Além disso, há artes que congregam tanto a visualidade icônica quanto a convencionalidade simbólica. O teatro, por exemplo, emprega o texto mas também o cenário, o vestuário, a gestualidade, por vezes, a música e outras linguagens. Outra arte extremamente sincrética, mais recente, é o cinema, em que se conjugam linguagens as mais diversas.
Devido a seu caráter de semelhança com os objetos que representam, os signos icônicos são, aparentemente, mais facilmente inteligíveis do que os signos convencionais. Também são percebidos mais rapidamente. Já os signos convencionais exigem o conhecimento de, pelo menos, um código. Por exemplo, para se entender o que é uma casa em diferentes culturas, pode-se aprender com que palavra esse objeto é expresso em cada idioma, o que implicaria a aprendizagem de vários idiomas. Por outro lado, também seria possível simplesmente desenhar a casa e mostrar o desenho ao receptor, o que talvez levasse a uma compreensão mais fácil e mais rápida.
No entanto, a aparente opacidade do signo icônico é relativa e não absoluta, pois, entre o objeto representado iconicamente e sua representação, também existem regras convencionais, como as regras de projeção. É por isso que, por vezes, lêem-se erroneamente pinturas e esculturas de culturas muito distantes, como os totens ou os fantoches javaneses. Um exemplo famoso de convencionalidade do signo icônico nos é proporcionado por um clássico da literatura, o Pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. O pequeno narrador inicia o livro contando, ao leitor, que seu primeiro desenho era assim:
Após mostrar o desenho aos adultos e lhes perguntar se o signo lhes fazia medo, eles
responderam: "Por que é que um chapéu faria medo?" Em seguida, o pequeno príncipe esclarece que o desenho não representava um chapéu e sim, uma jibóia digerindo um elefante, conforme o segundo desenho:
Portanto, também os signos icônicos estão dotados de diferentes graus de
convencionalidade, sendo que, tanto no caso de imagens quanto de palavras utilizadas com fins artísticos, as principais convenções geralmente são dadas pelos códigos estéticos e poéticos nas bases da sua produtividade, bem como pelas concepções ideológicas e culturais mais amplas na base desses códigos.
10.3. Interartes Quanto se pretende analisar ou comparar as possíveis relações entre a literatura
e outras artes, principalmente as artes visuais, inicialmente, é muito importante conhecer o tipo de concepção estética e ideológica por trás de cada produção. Um quadro barroco, por exemplo, é muito diferente de um quadro neoclássico, mesmo que ambos representem objetos semelhantes, por vezes, a mesma personalidade histórica ou mitológica. Uma vez que se compreendam os preceitos ideológicos e estéticos que guiam o Barroco, o Neoclassicismo ou qualquer outro estilo, será possível perceber várias relações entre todas as demais artes pertencentes a cada uma dessas correntes, inclusive a literatura.
Para citar um breve exemplo apenas, um dos vários paralelos possíveis entre uma pintura e um poema barroco são os famosos contrastes entre claro e escuro – no caso da pintura – e o gosto por antíteses – no caso do poema. Esse mesmo traço pode ser percebido na música barroca, através do gosto acentuado por contrastes entre piano e forte, mas também pode ser analisado em outras artes, como a escultura e a arquitetura. Como você pode perceber, portanto, uma concepção estética bem delimitada tende a estar presente, em maior ou menor grau, em todas as manifestações artísticas de um determinado estilo.
Como nos informa Mario Praz (1982, p. 2), já na Antigüidade, a esfinge – geralmente representada pela arte da escultura – não era vista apenas como um animal fantástico: os antigos acreditavam que ela veiculava sentidos ocultos e enigmáticos, uma “consciência culposa e insana”, sendo que esse tipo de sentido, oculto e muitas vezes religioso, era sugerido artisticamente ao invés de ser expresso de modo direto. Mais tarde, o filósofo do renascimento italiano Pico della Mirandola chegou a afirmar que as coisas divinas devem ser ocultas por enigmas e dissimulação poética. Assim sendo, em nossa tradição, todas as artes parecem comungar, desde sua origem mais remota, dessa tarefa de produzir significados ambíguos e polissêmicos dotados de um forte apelo aos sentidos e à imaginação, buscado através da manipulação estética dos signos que determinam cada arte específica.
Por vezes, existe uma consciência clara, entre os artistas de um determinado período, sobre as relações estabelecidas entre as suas produções. Os poetas ingleses do século XVIII, por exemplo, mantinham vínculos de amizade com os pintores, sendo que tanto os escritores quanto os pintores daquele período buscavam inspiração em estátuas antigas. Esse fenômeno se deve ao fato de que o Neoclassicismo é um estilo que
valoriza deveras a visualidade ao mesmo tempo em que apregoa um retorno às concepções dos antigos gregos e romanos. Nesse sentido, há uma certa recorrência de padrões estéticos no Neoclássico, que podem ser percebidos tanto na arquitetura quanto na pintura, na escultura, na música e, evidentemente, também na literatura. Esse mesmo tipo de vínculo forte entre artistas e escritores também ocorreu no Romantismo, para citar mais um exemplo.
Por outro lado, contudo, muitas vezes, essas relações não são assim tão diretas ou evidentes. O grande escritor do século XVI, William Shakespeare, por exemplo, cita, em todas as suas obras, um único artista italiano apenas: Giulio Romano, escultor de imagens de cera, o que não significa que suas obras não possuam relações com as principais concepções estéticas e ideológicas daquele período. No caso de Shakespeare, visto se tratar de um escritor extremamente original, existem contendas até os dias de hoje quanto à filiação estética e estilística de sua obra. As duas principais posições tendem a considerá-lo ou um barroco ou um maneirista. Para uma reflexão crítica, no entanto, talvez essas contendas nos ajudem a perceber a arbitrariedade de rótulos como clássico, barroco, romântico etc.
Um crítico literário interessado em ler a literatura no contexto mais amplo da produção das artes na cultura deve desconfiar de rótulos muito fáceis. Na contemporaneidade, por exemplo, é muito complicado estabelecer relações entre obras de artistas e obras literárias sob a rubrica de um mesmo estilo, porque predomina uma grande liberdade quanto aos fundamentos da criação artística e poética. Por vezes, falar em arte ou literatura pós-moderna é abrangente demais. O que une um artista como Andy Warhol a um escritor como Umberto Eco, por exemplo? Por outro lado, embora os pontos de aproximação não sejam óbvios em um primeiro momento, isso não quer dizer que eles não existam. Um estudo aprofundado sobre os principais problemas com os quais nos confrontamos nesta sociedade pós-industrial em que vivemos hoje permite perceber de que modo as artes e a literatura reagem a tais problemas, o que pode servir como um bom início para qualquer reflexão crítica.
Para concluir esta seção, é importante ressaltar que a produção dos signos em uma cultura, sejam eles intencionalmente artísticos ou não, é algo complexo e ocorre sempre dentro de uma teia de relações determinadas por acontecimentos históricos, sociais, descobertas científicas, reformulação de valores éticos e morais, entre inúmeros outros fatores que poderíamos aqui arrolar. Assim sendo, talvez uma das maneiras mais produtivas de refletir criticamente sobre o papel das artes, de forma ampla, e da literatura, de forma específica, seja perguntar pelo lugar que elas ocupam dentro dessa teia complexa e dinâmica de relações.
10.4. Literatura enquanto signo Para uma crítica literária interessada na questão específica da
intersemioticidade, interessa notar que a literatura se modifica historicamente, sendo que suas transformações mais evidentes não se devem apenas às mudanças que atingem o código verbal, mas também às mudanças que ocorrem em outros códigos semióticos e, de forma mais ampla, na própria cultura em que esses códigos são produzidos e modificados. Inicialmente, não havia a palavra escrita e sim, apenas a linguagem oral. A invenção da escrita propriamente dita ocorre provavelmente por volta de 3000 a. C. Desse modo, narrativas míticas originalmente orais foram se adaptando à cultura da escrita, ao longo dos anos. Essa passagem histórica é bastante nítida em textos antigos, como a Ilíada de Homero ou mesmo em vários textos bíblicos, nos quais ainda há traços fortes da oralidade. Hoje, a oralidade parece sobreviver nos romances, principalmente
nos diálogos e falas de personagens, nos filmes, mas também está sendo revigorada pela linguagem hipertextual, típica do ciberespaço.
Com o surgimento da escrita, as formas orais foram se tornando mais lineares e menos repetitivas, o que permitiu o surgimento de uma maneira diferenciada de comunicação. Além disso, a escrita também permite imprimir efeitos gráficos sobre o texto, como pontuação, ilustração, diferenciação de caracteres etc. Vários desses efeitos passaram a ser incorporados pela literatura, ao longo do tempo, e hoje adquirem uma grande importância estética. Note, por exemplo, o modo como Machado de Assis, no capítulo 55 de Memórias Póstumas de Brás Cubas, utiliza apenas a pontuação como um meio altamente expressivo para construir um diálogo repleto de segundas intenções entre Brás Cubas e Virgília. O Velho Diálogo de Adão e Eva Brás Cubas .......? Virgília ....... Brás Cubas .................... .......... Virgília ..................! Brás Cubas ............... Virgília .................................................................................. ........................? ...................................................... ............................................................................... Brás Cubas ..................... Virgília ....... Brás Cubas ................................................................................. ........................................................................... .....
........................................................! .......................
....! ...........................................................! Virgília .......................................? Brás Cubas .....................! Virgília .....................!
Geralmente, esse tipo de recurso visual é mais empregado no caso da poesia e
não tanto nos romances, pois muitos poemas mais recentes adquirem sentidos específicos a partir do caráter icônico das letras, das palavras e da sua disposição na página. No entanto, visto que, até a invenção da imprensa, no século XVI, os livros não circulavam de forma ampla entre a população, muitas obras literárias eram recitadas ou
encenadas, o que tornava a sua oralização mais importante do que o aspecto visual propriamente dito.
Com a invenção da imprensa no séc. XVI d.C., contudo, torna-se possível, para um número maior de pessoas, realizar uma leitura silenciosa e individualizada, pois os livros foram se tornando cada vez mais baratos e populares a partir de então. Desapareceu, com isso, a necessidade de recitação, tão comum anteriormente, principalmente no caso da poesia e da epopéia. Também a necessidade da encenação dramática foi minimizada, pois, com o acesso individualizado aos livros, a leitura foi se tornando um ato realizado por um leitor auto-suficiente e cada vez mais solitário. É nesse contexto que o romance começa a ganhar um grande destaque, com suas personagens mais individualizadas e análises psicológicas mais profundas. A poesia, por sua vez, passa a se destinar mais aos olhos do que aos ouvidos, o que faz com que os efeitos gráficos ganhem cada vez mais relevo, juntamente com os efeitos sonoros já amplamente explorados.
Nos séculos XIX e XX, devido ao surgimento de vários outros meios de comunicação – desde a fotografia até o rádio, a televisão, o telégrafo –, a literatura passa por algumas transformações significativas. De um lado, existe uma tendência, por parte de autores e programas poéticos, para absorver características específicas dos novos meios. Pode-se dizer que, já no realismo, por exemplo, autores como Balzac e Flaubert procuravam “imitar” os efeitos icônicos da pintura, através de descrições pormenorizadas de espaços exteriores e interiores. Mais tarde, alguns autores como Robe-Grillet e Margarite Duras procuraram imitar os efeitos da câmera, no cinema, fazendo desaparecer ou minimizando a figura do narrador.
Além disso, vários movimentos da vanguarda européia procuraram dissolver a fronteira entre a literatura e as artes visuais, o que foi realizado por artistas como Arno Holz, Mallarmé, Apollinaire, Kandinsky, Paul Klee, Mondrian, Marinetti, cummings, Williams, entre outros. Nesse processo, pode-se dizer que foi estabelecido mais do que um mero diálogo com os novos meios: houve uma espécie de hibridação de formas. Num primeiro momento, essa hibridação ocorreu de modo ainda um tanto tímido, com a criação do verso livre. Diferente do verso tradicional, o verso livre concede, ao poeta, mais liberdade para experimentar com a forma visual do poema.
A partir de então, surgiu a possibilidade de explorar cada vez mais intensamente o aspecto visual ou icônico da literatura, o que pode ser visto já em inúmeros poemas produzidos no início do século XX, nos quais o próprio verso foi abolido. Observe, abaixo, um dos famosos caligramas de Apollinaire:
UM POEMA VISUAL – CALIGRAMA DE APOLLINAIRE
Posteriormente, essa tendência de hibridação de formas seguiu rumo a outras
escolas e movimentos literários, sendo que uma das mais importantes foi o concretismo. Essa escola surgiu, na Europa, ao longo da década de 50 do século XX, tendo como alguns de seus mais importantes seguidores Eugen Gomringer e Max Bense. No Brasil, o concretismo se fez perceber muito na arquitetura de Lúcio Costa e Oscar Niemayer, sendo que, na literatura, está ligado inicialmente aos nomes dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, juntamente com Décio Pignatari.
10.5. Literatura hipertextual Uma das questões mais controvertidas no contexto da hibridação da literatura
com outras linguagens diz respeito aos limites ou fronteiras da própria linguagem literária. Em outros termos, em que medida uma obra que explora mais a visualidade do código lingüístico do que seu aspecto simbólico pode ser ainda considerada literatura? Para exemplificar o problema, podemos nos referir ao teatro e ao cinema. Quando é encenada, uma peça dramática extrapola em muito os limites da linguagem verbal, sendo que uma boa encenação é fruto da colaboração de inúmeras linguagens. De modo semelhante, é possível dizer que o próprio cinema nasceu, originalmente, a partir de um hibridismo de linguagens. Inicialmente, não passava de uma espécie de fusão entre o romance e a fotografia, acrescido de movimento. Contemporaneamente, são inúmeras as linguagens passíveis de ser empregadas em uma produção cinematográfica, o que, há muito tempo, já lhe tem conferido o status de arte autônoma.
A partir das décadas de 80 e 90 do século XX, teve início uma grande transformação em termos de código semiótico, com o surgimento e a rápida popularização do computador. Como não poderia deixar de ser, não demorou muito para que a arte literária entrasse em diálogo com essa nova linguagem. Inicialmente, ocorreu uma migração quase direta de textos literários para o meio digital, principalmente devido às inúmeras vantagens oferecidas pelo ambiente virtual, como armazenamento, intercâmbio, facilidades de cópia, colagem e montagem, entre outras tantas. Contudo, quando um texto escrito é simplesmente transportado para o computador, nós podemos falar de literatura digital ou literatura digitalizada, mas esse tipo de procedimento não pode ser considerado ainda uma verdadeira hibridação de linguagens, pois, com a mera digitalização, as características estéticas da linguagem escrita são mantidas praticamente
intactas. Somente quando a literatura passa a integrar as características da própria linguagem desenvolvida no ambiente virtual é que se pode falar em uma verdadeira hibridação semiótica.
No espaço cibernético, existe uma linguagem específica, geralmente denominada de hipertexto, sendo que uma das suas principais características é justamente a capacidade impressionante para agregar diferentes linguagens. Geralmente, esse fenômeno é designado de hipermidialidade, mas há autores que preferem utilizar conceitos como multimidialidade e intermidialidade, ressaltando, desse modo, a interação produtiva entre essas várias linguagens agregadas. Além disso, o hipertexto também está dotado de várias outras características que o diferenciam de um texto típico da linguagem escrita. Apenas a título de exemplo, podemos destacar, aqui, duas delas: a interatividade e a não-seqüencialidade.
Diferente de um texto impresso, o hipertexto convida o leitor para se tornar uma espécie de co-autor, pois “ler” um hipertexto geralmente requer “interagir” com o que se está lendo. Essa interação se dá, inclusive, fisicamente, na medida em que somos chamados a clicar sobre inúmeros links, que acabam levando a outros links, numa espécie de espiral virtualmente infinita. Como conseqüência dessa interatividade, a leitura de um hipertexto nunca é linear. Um livro impresso, normalmente, prevê que se comece a leitura na primeira página e que se termine na última. No hipertexto, portanto, não existe uma seqüencialidade definida rigidamente. Por isso, o leitor hipertextual não apenas decide o próprio percurso da leitura como também acaba criando um novo texto, não-seqüencial, a cada nova leitura. Da interação entre a literatura e o hipertexto, tem surgido uma nova forma literária, que alguns autores chamam de literatura digital e, outros, de literatura hipertextual. Note-se, contudo, que alguns críticos preferem falar de arte digital, pois acreditam que, nessa hibridação, o caráter propriamente literário não se mantém. Neste livro, contudo, não é possível aprofundar essa discussão. De qualquer modo, já existem vários experimentos com obras literárias hipertextuais, tanto em termos de narrativa como de poesia. No Brasil, até o momento, predomina a produção de poesia em detrimento de narrativas hipertextuais, sendo que estas últimas estão ainda muito circunscritas aos domínios da blogosfera. No que diz respeito à poesia, contudo, pode-se dizer que Augusto de Campos foi um dos precursores na produção deste gênero, pois ele enxerga, nessa nova manifestação literária, um certo desenvolvimento da própria poesia concreta. No entanto, entrementes, há inúmeros outros artistas desenvolvendo trabalhos muito significativos, como Giselle Beiguelman, Arnaldo Antunes, Franklin Capistrano, Hélio Oiticica, vários deles disponíveis no seguinte endereço eletrônico: http://www.imediata.com/BVP. Também merecem um destaque especial os poemas hipertextuais desenvolvidos por Alckmar Luiz dos Santos e Gilberto Prado, disponíveis em http://www.nupill.ufsc.br/hiper.html. EXERCÍCIOS: 1) Assinale, dentre as alternativas abaixo, a melhor definição para semiótica a) Trata-se de um campo da teoria da literatura. b) Trata-se de uma linha da crítica literária. c) Trata-se da ciência destinada ao estudo dos signos. d) Trata-se da ciência destinada ao estudo da evolução literária. 2) Qual a melhor definição para signo icônico? a) Trata-se de um signo que mantém relação de semelhanças com seu objeto de referência.
b) Trata-se de um signo que mantém uma relação arbitrária com seu objeto de referência. c) Trata-se de um signo que mantém uma relação convencional com seu objeto de referência. d) Trata-se de um signo que não possui objeto de referência 3) Sobre a relação entre a literatura e as demais artes, é correto afirmar o seguinte: a) As principais relações entre literatura e as demais artes são estabelecidas apenas devido às diferenças semióticas que as determinam. b) Nunca é possível estabelecer relações entre a literatura e as demais artes, pois concepções estéticas e ideológicas mudam ao longo do tempo. c) Nem sempre é possível estabelecer relações entre a literatura e as demais artes, a partir das concepções estéticas e ideológicas de determinada época ou período. d) É sempre possível estabelecer relações entre a literatura e as demais artes, a partir das concepções estéticas e ideológicas de determinada época ou período. 4) Em termos semióticos, qual a principal contribuição das vanguardas européias? a) Questionar os valores da sociedade burguesa. b) Levar a literatura ao mesmo patamar das artes figurativas. c) Levar as artes figurativas ao mesmo patamar da literatura. d) Minimizar as fronteiras entre as várias artes. 5) Assinale a alternativa que contém uma das principais características da literatura hipertextual. a) Criatividade. b) Interatividade. c) Objetividade. d) Subjetividade.
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1. b 2.d 3. 4.a 5.c Cap. 8 1.c 2.d 3.a 4.b 5.d Cap. 9 1. 2.a 3.b 4.c 5. Cap. 10 1.c 2.a 3.d 4.d 5.b