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Com Ciência Ambiental 7372Com Ciência Ambiental
Diane Guzi e Sarah Cartagena*DE SANTA CATARINA
CADERNO ESPECIAL
Mudança cultural
Quando uma situação de desastre age
sobre uma sociedade, é difícil afirmar
que ela continuará a ser como antes, sem
modificar hábitos, atitudes e valores, ora
não evidenciados ou esquecidos.
Em curto espaço de tempo, a sociedade
se depara com um novo cenário, uma
nova realidade social e ambiental. Mas
será preciso aguardar uma situação de
desastre para salientar a necessidade de
mudanças? Como alterar a lógica sobre
riscos e desastres, que hoje enfatiza a
cultura do desastre em detrimento da
cultura de riscos de desastres?1
de desastresE PERCEPÇÃO DE RISCOSE PERCEPÇÃO DE RISCOS
Mudança cultural
de desastres
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74Com Ciência Ambiental
Estudos sobre cultura demonstram
que a sociedade pode ser vista como
fruto de uma natureza histórica, uma
ordem em movimento, em que o equi-
líbrio é sempre instável em face da sua
constituição na ordem organizacional
e inserção numa ordem maior, a ordem
mundial (Silva e Nogueira, 2001).
A cultura de uma sociedade, mesmo
assumindo características enraizadas ao
longo do tempo e transmitidas de geração
para geração, estará em constante evolu-
ção devido ao relacionamento entre os in-
divíduos na organização que compõem,
na sociedade e no contexto mundial.
Em seu cerne antropológico, cul-
tura é definida como o resultado de
um processo contínuo e dinâmico de
construção e reconstrução da realidade
por meio da interação social, da qual
surgem esforços para a satisfação das
necessidades básicas do ser humano:
necessidades biológicas (do organis-
mo), sociais (relativas às interações
interpessoais) e socioinstitucionais, ou
seja, aquelas referentes à sobrevivência
e bem-estar dos grupos (Kluckhon,
1951; Rokeach, 1973; Schwartz & Bil-
sky, 1987, 1990 apud Tamayo, 2000).
Essa satisfação, porém, deve acon-
tecer por meio de formas aceitáveis a
todo o grupo. Os grupos são formados
por indivíduos ou subgrupos que, de
forma geral, demonstram característi-
cas semelhantes em alguns aspectos,
mas disparidades em outros, podendo,
ainda assim, integrar uma única cul-
tura, como é o caso de uma nação ou
uma família. E mesmo embora os inte-
grantes de um grupo sejam renovados
ao longo do tempo, as características
culturais predominantes permanecem.
Pode-se dizer que essa surpre-
endente organização da sociedade é
sustentada, fundamentalmente, por
valores que direcionam o comporta-
mento humano e pelo surgimento de
líderes aceitos pelo grupo como repre-
sentativos da ordem ou objetivo maior.
Assim, se a cultura se caracteriza
pela relação entre os indivíduos, o
meio em que se inserem, as cons-
truções históricas por que passam,
suas necessidades e satisfações, suas
formas de organização em grupos
e seus líderes, em uma constante e
dinâmica evolução, esta é, para a ges-
tão de desastres, o ponto central para
a mudança de valores que se deseja
promover na sociedade. Compreen-
der, por exemplo, quais as motivações
que levam um indivíduo a ocupar,
reconhecidamente, uma área de risco,
e assim atribuir diferentes valores às
vulnerabilidades a que está sujeito e aos
benefícios que pensa tirar delas.
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O que se percebe hoje é uma sociedade orien-
tada a esperar que o desastre aconteça, e então se
mobilizar para os momentos de resposta e recons-
trução. Ao passo que, segundo os especialistas,
investimentos em prevenção e preparação podem
reduzir significativamente os custos e impactos de
um acontecimento adverso.
Os estudos sobre cultura ajudam também a re-
conhecer formas de mobilização social a partir de
lideranças. Em sua maior parte, as definições sobre
cultura convergem no aspecto da importância de
líderes para a formação dos aspectos chaves, tanto
para grandes como pequenos grupos.
Diante de ações adversas, como em comunida-
des vulneráveis a desastres, a presença de líderes é
fundamental, pois são responsáveis por planejar,
organizar e controlar situações que poderiam dis-
sociar o coletivo frente às eventualidades, lutando
por interesses comuns.
Além disso, na figura das lideranças reside
também uma das principais ferramentas para a
mobilização social em momentos de prevenção e
preparação, uma vez que são elas o vínculo que
garante aceitação e representação de todo o grupo.
Quando falamos na mudança cultural que se
deseja promover no contexto da sociedade do risco,
estamos falando também em percepção de risco, em
valores atribuídos a ameaças, vulnerabilidades, ris-
cos e aos benefícios deles extraídos. Para Henriques
(2002), esse processo de mudança de comportamen-
to e de mobilização social pode ser representado
em uma escala de critérios de vinculação, na qual
o que se busca é a corresponsabilidade.
CADERNO ESPECIAL
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CADERNO ESPECIAL
76Com Ciência Ambiental
Corresponsabilidade é o sentimento
de pertencimento e responsabilidade
dentro de um grupo, quando o indi-
víduo entende sua participação como
uma parte essencial no todo (Henri-
ques, 2002). Para a percepção de risco,
seria o entendimento de ser sujeito
diante do risco, ser afetado e fabricante
do risco, o que requer um processo edu-
cativo e fundamentalmente dialógico2,
primeiro de modificação de valores em
uma cultura já solidificada para poste-
rior construção de uma nova cultura.
Kroeber e Kluckhohn (1952), antro-
pólogos norte-americanos, montaram
mais de 160 definições diferentes para
cultura e, por fim, definiram-na como
“(...) padrões implícitos e explícitos do
comportamento humano adquiridos e
transmitidos por símbolos, constituin-
do atividades distintivas de grupos hu-
manos, incluindo sua externalização
em artefatos; o núcleo essencial da
cultura consiste em ideias (histori-
camente derivadas e selecionadas) e,
especialmente, os valores inscritos; os
sistemas de cultura podem, de um lado,
ser considerados como produtos da
ação, e por outro lado, como elementos
condicionantes de ação futura.”
Valores inscritos proporcionam a
coesão dos indivíduos formadores de
uma cultura, são princípios tão pro-
fundos, importantes e consolidados
que passam a fazer parte do cotidiano,
de forma inconsciente e imperceptível,
e, desta mesma forma, são aceitos
e repetidos por novos membros in-
voluntariamente. São valores dessa
grandeza que a cultura de riscos de
desastres pretende fortalecer, alterando
a percepção de risco dos indivíduos
e qualificando sua capacidade de
relacionar-se com o risco, de maneira
que habitação, trabalho, saúde e la-
zer sejam valores inegociáveis frente
ao risco de desastres e aos pilares da
construção de cidades mais seguras.
Para a Opas (Organização Pana-
mericana de Saúde), a cultura é um
dos cinco fatores que influenciam a
percepção de riscos. Segundo o órgão,
“muitos estudos já demonstraram que
a população, composta por diversos
atores sociais, percebe o risco de modo
diferente. Especialistas acreditam
que essa percepção esteja submetida
aos contextos culturais em que se
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CADERNO ESPECIAL
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CIÊNCIA NA AMAZÔNIA
78Com Ciência Ambiental
encontram as pessoas para interpretar
os fatos. Se a população crê que pode
tomar certas medidas para se precaver
de um risco, é mais provável que ela o
aceite; entretanto, se esses riscos não
forem familiares ou não estiverem de
acordo com os valores dessa comuni-
dade, as pessoas indubitavelmente se
sentirão mais ameaçadas.”
Ainda na busca para entender o
conceito de cultura, surgem, em 1979,
os trabalhos do sociólogo e antropólogo
britânico Andrew Pettigrew, que define
cultura como um “sistema público e de
significados coletivos aceitos operacio-
nalmente para um determinado grupo
em um determinado momento. Esse
sistema de formas, termos, categorias e
imagens interpreta as próprias situações
das pessoas para si mesmas. De fato,
o que diferencia os homens quando
comparados com outros animais é sua
capacidade de inventar e comunicar
seus próprios comportamentos”.
O pesquisador holandês Geert
Hofstede realizou estudos em mais
de 70 países e afirma que a cultura
não é herdada, mas sim adquirida.
Ela provém do ambiente social
no qual o indivíduo se insere e
não das características genéticas
dos seres humanos. Em suas
palavras, “o núcleo essencial da
cultura consiste em ideias tradi-
cionais e especialmente em seus
valores unidos... Cada um de
nós transporta consigo padrões
de pensamento, de sentimentos
e de ação potencial, que são o
resultado de uma aprendizagem
contínua, iniciada na infância,
período do desenvolvimento onde
somos mais susceptíveis à apren-
dizagem e à assimilação. Quando
certos padrões de pensamento,
sentimentos e comportamentos
se instalam na mente de cada um,
torna-se necessário desaprender,
antes de aprender algo diferente,
e desaprender é mais difícil que
aprender pela primeira vez.”
Segundo Pettigrew (1979) e Ho-
fstede (1991), um indivíduo cons-
truirá seus valores de acordo com
sua vivência e aceitação histórica,
e/ou a partir das suas necessidades
edificadas em um determinado
contexto de tempo e espaço.
Portanto, para a construção da
cultura de riscos de desastres, de-
vemos investir, de um lado, como
construção histórica, no aprimo-
ramento dos processos educativos
desde a infância para conseguir-
mos uma mudança cultural ao
longo do tempo. E de outro, mais
difícil segundo Hofstede, mas não
menos importante e necessário,
criar espaços que possibilitem a
renúncia aos atuais valores, para
a aprendizagem de novos.
Assim, ao se garantir um pro-
cesso de mobilização social, em
que mobilizar significa “convocar
vontades para um propósito de-
terminado, para uma mudança na
realidade” (Toro & Werneck, 1996;
apud Henriques, 2002) está se evi-
tando que a mudança cultural seja
imposta, de forma dolorosa e pouco
democrática, pelos desastres.
Quando uma comunidade assu-
me riscos ao se instalar em lugares
vulneráveis, encostas, morros, nas
proximidades de produtos perigosos,
entre outros, a relação risco versus
benefício provavelmente não será
questionada, se isso não fizer parte
do conjunto de valores predomi-
nantes. Exemplificando: habitar
uma encosta por não ter condições
financeiras para estar em um lugar
mais apropriado é mais importante
que a segurança da família? Di-
ficilmente um pai seria contrário
à segurança, mas, então, por que
famílias habitam locais como esses?
Provavelmente, a sede em suprir
uma das necessidades básicas do ser
humano, a habitação, não tenha sido
ponderada suficientemente, deixan-
do o benefício (o de ter a moradia) se
sobrepor ao risco (deslizamento de
terra com perdas humanas e mate-
riais), isso, pelo fato de sua cultura
não possuir esse valor.
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80Com Ciência Ambiental
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sObRE As AutORAsDiane Guzi é mestranda em Engenharia Civil pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e atua como pesquisadora do Ceped/UFSC (Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres). Contato: [email protected]
Sarah Marcela Chinchilla Cartagena, graduada em Relações Públicas pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), é coordenadora da área de Comunicação e Informação do Ceped/UFSC. Atuou na indústria de petróleo e gás, como consultora em responsabilidade social e comunicação de risco. Contato: [email protected]
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CADERNO ESPECIAL
Edgar Schein, psicólogo e pesquisador
norte-americano, diz entender-se como
cultura “o conjunto de pressupostos bási-
cos que um determinado grupo inventou,
descobriu ou desenvolveu ao aprender a li-
dar com os problemas de adaptação externa
e de integração interna, e que funcionou
bem o bastante para serem considerados
válidos e ensinados aos novos membros
como a forma correta de perceber, pensar
e sentir em relação a esses problemas.”
Sabemos, então, que a cultura não
está escrita e declarada, e também não
é ensinada formalmente; ela representa
normas e regras informais que orientam
o comportamento dos indivíduos em um
grupo, no dia a dia e que forma uma
coesão geral da sociedade.
Entretanto , uma cul tura pode
ser modificada e alinhada de acordo
com as necessidades do grupo ou por
decisões de seus líderes, podendo ser
planejada, organizada, direcionada e
controlada em busca de um objetivo,
e é neste contexto que devemos pen-
sar e construir a cultura de riscos de
desastres para o fortalecimento social.
Por cultura de desastres entende-se
um contexto social pautado em ações
principalmente de resposta e recons-
trução, tendo por base comportamentos
de inércia, aceitação e conformismo.
Por outro lado, a cultura de riscos de
desastres pretende enfatizar os processos
de prevenção e preparação, trabalhando a
percepção de riscos como foco chave na
construção de comunidades mais seguras.2
“ser dialógico é não invadir, é não
manipular, é não sloganizar. Ser
dialógico é emprenhar-se na trans-
formação constante da realidade.
Esta é a razão pela qual, sendo o
diálogo o conteúdo da forma de ser
própria à existência humana, está
excluído de toda relação na qual
alguns homens sejam transformados
em ‘seres para outro’ por homens que
são falsos ‘seres para si’. É que o diá-
logo não pode travar-se numa relação
antagônica” (FREIRE, 1992).