http___=pdf&path=_web_x_prn_p.html_172769416

52
Mahamudra na Tradição Gelug-Kagyu Esta é a versão para impressão de: http: / / www.berzinarchives.com / web / x / nav / group.html_172769416.html Publicado originalmente como H. H. the Dalai Lama e Berzin, Alexander. The Gelug/Kagyü Tradition of Mahamudra. Ithaca, Snow Lion, 1997 Parte I: Introdução ao Mahamudra e à Sua Aplicação Prática na Vida Alexander Berzin Julho de 1996 1 A Estrutura Budista Esboço Inicial do Tópico "Mahamudra" é uma palavra sânscrita que significa "grande selo" e que se refere à natureza de todos os fenómenos. Tal como um selo de cera é estampado em documentos legais para autenticar a sua assinatura, do mesmo modo, a natureza da realidade é figurativamente estampada sobre tudo como uma garantia de que nada existe de maneira fantasiada e impossível. Assim, o fato de que todas as coisas são vazias de existir em qualquer maneira impossivel torna válido que as coisas na verdade existem. Mahamudra também se refere a sofisticados sistemas budistas de meditação e prática para compreender esta natureza grande-selo. A característica distintiva destes métodos é a de ver esta natureza focalizando na própria mente e descobrindo a relação entre a mente e a realidade. Quando a nossa mente confunde a realidade com a fantasia, produzimos problemas para nós. Além disso, quando a nossa mente faz surgir uma aparência dos demais de tal maneira que não corresponde à sua realidade, somos incapazes de os conhecer corretamente, para ser da melhor ajuda possivel. Portanto, compreender a relação íntima entre mente e realidade é essencial para se alcançar a liberação e a iluminação, que é o objetivo da prática mahamudra. No budismo, a forma de existência impossivel e fantasiada mais frequentemente discutida é chamada literalmente de "existência verdadeira", ou seja, existência verdadeiramente independente de uma relação com a mente. Dado que existência verdadeira é, paradoxicamente, existência falsa, referindo-se a uma forma de existência que é impossível e que não é, de maneira alguma, real, podemos talvez evitar confusão usando, ao invés, variações do termo "existência sólida". Podemos começar a apreciar a complexa relação entre mente e realidade examinando-a de vários pontos de vista. Por exemplo, se abordarmos o tópico de maneira prática e com os pés na terra e chamarmos a maneira em que nós e o universo existe "realidade", então nós vivemos "na realidade". Com base na nossa experiência quotidiana da realidade, podemos saber e talvez compreendê-la. Este processo só pode ocorrer através do meio da mente. Mahamudra na Tradição Gelug-Kagyu 1

description

bon po

Transcript of http___=pdf&path=_web_x_prn_p.html_172769416

  • Mahamudra na Tradio Gelug-KagyuEsta a verso para impresso de: http: / / www.berzinarchives.com / web / x / nav /

    group.html_172769416.html

    Publicado originalmente comoH. H. the Dalai Lama e Berzin, Alexander. The Gelug/Kagy Tradition of Mahamudra. Ithaca,

    Snow Lion, 1997

    Parte I: Introduo ao Mahamudra e Sua AplicaoPrtica na Vida

    Alexander BerzinJulho de 1996

    1 A Estrutura Budista

    Esboo Inicial do Tpico

    "Mahamudra" uma palavra snscrita que significa "grande selo" e que se refere natureza detodos os fenmenos. Tal como um selo de cera estampado em documentos legais paraautenticar a sua assinatura, do mesmo modo, a natureza da realidade figurativamenteestampada sobre tudo como uma garantia de que nada existe de maneira fantasiada eimpossvel. Assim, o fato de que todas as coisas so vazias de existir em qualquer maneiraimpossivel torna vlido que as coisas na verdade existem.

    Mahamudra tambm se refere a sofisticados sistemas budistas de meditao e prtica paracompreender esta natureza grande-selo. A caracterstica distintiva destes mtodos a de veresta natureza focalizando na prpria mente e descobrindo a relao entre a mente e arealidade. Quando a nossa mente confunde a realidade com a fantasia, produzimos problemaspara ns. Alm disso, quando a nossa mente faz surgir uma aparncia dos demais de talmaneira que no corresponde sua realidade, somos incapazes de os conhecer corretamente,para ser da melhor ajuda possivel. Portanto, compreender a relao ntima entre mente erealidade essencial para se alcanar a liberao e a iluminao, que o objetivo da prticamahamudra.

    No budismo, a forma de existncia impossivel e fantasiada mais frequentemente discutida chamada literalmente de "existncia verdadeira", ou seja, existncia verdadeiramenteindependente de uma relao com a mente. Dado que existncia verdadeira ,paradoxicamente, existncia falsa, referindo-se a uma forma de existncia que impossvel eque no , de maneira alguma, real, podemos talvez evitar confuso usando, ao invs,variaes do termo "existncia slida".

    Podemos comear a apreciar a complexa relao entre mente e realidade examinando-a devrios pontos de vista. Por exemplo, se abordarmos o tpico de maneira prtica e com os psna terra e chamarmos a maneira em que ns e o universo existe "realidade", ento nsvivemos "na realidade". Com base na nossa experincia quotidiana da realidade, podemossaber e talvez compreend-la. Este processo s pode ocorrer atravs do meio da mente.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu 1

  • Se o conhecimento direto da realidade, e sua experiencia, no suficiente para sermos capazesde entend-la claramente, assim que precisamos tambm pensar sobre ela, s poderemosfaz-lo atravs de um esquema conceptual, que construdo pela mente. Alm disso, seprecisarmos formular e expressar, a ns prprios ou aos outros, o que a realidade, spoderemos faz-lo atravs de palavras ou smbolos, que tambm so construdos pela mente.A realidade existe, mas somente fantasia imaginar que a podemos experienciar, entender,provar, ou descrever independentemente da relao entre a realidade e a mente. Usando umtermo da filosofia ps-modernista, temos de " desconstruir" a realidade como sendo uma coisaslida "l fora".

    Se perguntarmos como que os fenmenos existem, j envolvemos a mente meramente aofazer a pergunta. E mais, tambm s podemos responder a esta questo envolvendo a mente.Suponhamos que respondemos: "Sim, isso bvio, mas a um nvel terico, as coisas noexistem separadamente da mente?" Teramos de dizer que um nvel terico no existe por simesmo, independentemente de uma mente que o est formulando ou, pelo menos, pensandonele. No podemos dizer mais nada sobre como um nvel terico existe, porque dizer qualquercoisa envolve a linguagem, que construda pela mente.

    Na verdade, mal levantamos a questo de como as coisas existem, entramos no reino dasdescries, que s podem ser feitas pela mente. Mas isso no quer dizer que tudo existeapenas na mente e que a terra no existia antes de nela ter havido vida. Um objeto no precisade ser experienciado por uma certa mente neste momento para que exista. Mas se formos falarsobre como as coisas existem, ou tentar entender, provar e saber isso, s o poderemos fazerem relao mente. Mahamudra comea nesta premissa.

    Podemos formular a relao entre a mente e como as coisas existem de vrias maneiras. Hduas abordagens principais em mahamudra. Vamos caracteriz-las em termos muito gerais. Aprimeira apresenta tudo o que existe em termos dos fenomenos serem ou mente ou objetos damente - por outras palavras, experincia ou os contedos da experincia. Os fenomenos,inclundo as mentes, existem meramente por virtude do fato que mente pode simplesmentefazer surgir uma aparncia ou ocorrncia deles como um objeto de cognio. Podemosestabelecer que os nossos filhos e o amor que temos por eles existe simplesmente porque ospodemos conhecer e experienciar. A outra abordagem principal discute o que existe emtermos de rotulamento mental, o que significa que as coisas existem como aquilo que elas sosimplesmente em termos de palavras e daquilo a que as palavras referem ou significam. Osfenomenos existem como so por virtude de serem simplesmente o significado das palavras,rtulos mentais ou formulaes conceptuais deles. Podemos estabelecer que os nossos filhos eo nosso amor existem simplesmente porque lhes podemos dar nomes que se referem a eles.

    Em nenhum dos casos estabelecida a existncia dos fenomenos do seu prprio lado porvirtude, por exemplo, de uma auto-natureza encontrvel e inerente/intrnseca, fazendo delesverdadeiramente o que so, independentemente de qualquer relao com a mente. Os nossosfilhos no existem como nossos filhos porque tm, algures dentro deles, uma caractersticadefinidora, fazendo deles intrinsecamente "nossos filhos", mesmo se ns prprios nuncativssemos existido. E o amor no existe por si prprio, algures no cu, com uma fora internadefinidora, dando poder sua existncia. Estas so maneiras fantasiadas e impossveis deexistir, e todos os fenomenos so vazios de existir dessas maneiras. A ausncia da existnciade maneiras impossveis de qualquer fenomeno chamada o seu vazio ou vacuidade.

    Cada uma destas duas abordagens envolve o seu prprio estilo caracterstico de meditaomahamudra sobre a natureza da realidade. Com a primeira, focalizamos na mente que

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Esboo Inicial do Tpico 2

  • apreende a vacuidade como seu objeto e vem a entender que todas as aparncias so o brincardaquela mente. Com a ltima, focalizamos na vacuidade como objeto de cognio,especificamente na vacuidade da mente, e chegamos a entender que at a prpria mente existemeramente por virtude do fato que ela pode ser simplesmente rotulada como "mente". Com aprimeira, ento, focalizamos numa mente que apreende um certo objeto, enquanto que com altima, num objeto apreendido por uma certa mente.

    Cada uma das tradies tibetanas Kagyu, Sakya e Gelug transmite linhagens de mahamudraapresentadas na sua prpria maneira de explicao distintiva e com seu prprio estiloindividual de meditao. Todas derivam de fontes comuns da India, transmitidas ao Tibetedurante os incios do sculo XI. Kagyu e algumas escolas Sakya apresentam mahamudra emtermos da inseparabilidade da aparncia e da mente. Gelug apresenta-a em termos derotulamento mental, enquanto que as outras escolas Sakya combinam os dois, vendo primeiroa relao entre os objetos da mente e a prpria mente, e depois entendendo a prpria naturezada mente em termos de rotulamento mental. Kagyu e Gelug apresentam mtodos mahamudraenvolvendo tanto os nveis grosseiros da mente como os mais sutis, enquanto Sakya abordaisto apenas do ponto de vista do nvel mais sutil. Kagyu explica dois estilos de prticamahamudra - um para aqueles que prosseguem atravs de etapas graduais e outro para aquelesa quem tudo acontece de uma vez. Sakya e Gelug descrevem vias de prtica apenas para osprimeiros. Mahamudra, na tradio Gelug, conhecida como Gelug-Kagyu porque usamtodos para reconhecer a natureza convencional da mente semelhantes aos Kagyu e depoisusa mtodos tipicamente Gelug para reconhecer a sua natureza mais profunda. No fim, comoo Primeiro Panchen Lama explica emUm Texto Raiz para a Tradio Gelug-Kagyu deMahamudra, cada abordagem atinge o mesmo entendimento e resultado intencionados. Cadauma leva, com base na prpria mente, eliminao de toda a confuso e realizao de todosos potenciais de modo a que cada um de ns possamos ser do maior benefcio aos demais.

    Os Quatro Verdadeiros Fatos da Vida

    De modo a compreender, apreciar e, se estivermos para isso inclinados, finalmente praticar osmtodos mahamudra, precisamos de os ver dentro do seu correto contexto. Comecemos poresboar este contexto brevemente, em termos dos quatro verdadeiros fatos da vida que o Budacompreendeu e ensinou, e que todos os aryas, ou seres altamente realizados - "os nobres" -vem como verdade. Eles so geralmente chamados as "quatro verdades nobres".

    Vivendo na India h dois mil e quinhentos anos atrs, Buda foi uma pessoa que se liberou detoda a confuso e, assim, tornou-se capaz de usar todos os seus potenciais para o benefcio dosoutros. Basicamente, ele atingiu este estado de iluminao entendendo a realidade, ou seja, oque verdade na vida. Primeiro, ele viu a verdade do sofrimento. Porm, a forma usual deexpressar este primeiro verdadeiro fato, que "a vida sofrimento", soa um pouco ameaador epessimista. No comunica muito bem a inteno. De fato, ele viu que ningum que olheverdadeiramente para a vida poderia negar que ela difcil.

    Nada na vida fcil. No fcil viver em sociedade, ganhar a vida ou suportar uma famlia.To rduo quanto estes aspectos normais da vida possam ser, tendemos a torn-los ainda maisdifceis. Por exemplo, ficamos to nervosos, agitados e preocupados acerca de tudo que nolidamos com as tribulaes da vida to bem ou to graciosamente como poderamos. Sempretensos, tornamo-nos infelizes, no s a ns mas a toda a gente nossa volta.

    Buda explicou que a causa mais profunda porque fazemos a vida mais difcil do quenecessrio a nossa falta de apercebimento, ou "ignorncia". Este o segundo verdadeiro fato

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Os Quatro Verdadeiros Fatos da Vida 3

  • da vida - a verdadeira causa do sofrimento. O no-apercebimento pode ser acerca da causa eefeito comportamental ou da realidade, e podemos no nos aperceber deles simplesmente nosabendo disso ou, adicionalmente, percebendo-os de maneira incorreta. "Apreender",traduzido geralmente como "agarrar", significa reconhecer um objeto de uma certa maneira.Dado que apreender a realidade de uma maneira incorreta a causa raiz das nossasdificuldades na vida, iremo-nos referir ao no-apercebimento neste contexto como "a confusosobre a realidade".

    Estando confusos acerca da realidade, sentimo-nos naturalmente inseguros e ficamos nervosose tensos. Tendemos a fazer grandes e pesadas provaes das coisas do dia a dia da nossa vida,tal como dirigir para o trabalho ou pr os nossos filhos na cama, que nos sentimosconstantemente estressados. claro, precisamos ocuparmo-nos com a vida e tomar conta dasnossas responsabilidades, mas nunca h necessidade alguma de nos incapacitarmos compreocupaes compulsivas e ansiedade crnica. Isso apenas nos impede de lidar efetivamentecom a vida. Certamente no conduzem felicidade e paz mental. Para parafrasearShantideva, mestre indiano do sculo VIII, "Se h algo difcil na vida que podemos mudar,para qu ficarmos perturbados? Mudemos simplesmente o que precisa ser mudado. Mas seno podemos fazer nada, para qu ficar perturbado? Isso no ajuda."

    Quando nos sentimos tensos acerca de uma situao especfica, como um engarrafamento detrnsito, ou de maneira no-bvia, como quando estamos de mau humor, tendemos aexternalisar a nossa tenso. Isto no acontece apenas no modo de comunicar e talvez detransmitir isto aos outros. A um nvel mais profundo, percebemos mal a nossa tenso, comosendo algo slido, e a projetamos sobre todas as situaes em que nos encontramos. A nossamente produz uma aparncia do engarrafamento de trnsito, e at do fato que tivemos quelevantar-nos de manh, como se fossem umas provaes slidas e monstruosas. Produz umaaparncia delas como se as suas prprias naturezas as fizessem verdadeiramente eintrinsecamente estressantes, independentemente de quem as possa experienciar. Alm danossa mente automtica e inconscientemente produzir aparncias das coisas deste modo,tambm podemos "remoer" sobre estas aparncias com pensamentos mrbidosincontrolavelmente recorrentes, reforando a nossa crena de que estas aparncias so averdadeira realidade. Sentimo-nos to tensos e estressados com tudo que a vida aparece comose fosse uma armadilha, algures "l fora", sentindo-nos firme e inexoravelmente amarrados noo seu cruel aperto.

    Buda explicou que esta confuso acerca da realidade - o nosso imaginar que todas as coisasexistem da maneira que as nossas mentes produzem a aparncia delas - a causa raiz dosnossos problemas. Deste modo, os aspectos difceis da nossa vida se tornam ainda maisdifceis para ns. No nos parece que a tenso seja uma mera experincia de uma situao,mas que verdadeira e intrinsecamente parte da prpria situao. Se a situao fosseintrinsecamente produtora de estresse, no haveria maneira de evitar ficarmos estressados porela. Contudo, embora seja a experincia pessoal de uma situao, o estresse surge dependendode muitos fatos pessoais e no inevitvel. A no ser que entendamos isto bem,condenamo-nos a um estresse incessante.

    certo que difcil viver numa cidade atolhada e se encontrar no meio do trnsito, barulho epoluio todos os dias, sem falar ser-se vtima de possveis crimes. Ningum pode negar isto.Mas quando construmos uma imagem mental concreta e fixa da cidade como sendo um lugartenso, horrvel, temvel, "l fora", impingindo como um monstro no coitadinho de mim, avtima, "aqui dentro", tornamos a nossa vida ali ainda mais difcil. A cidade dentro da nossacabea, que ns projetamos sobre as ruas, parece ainda mais slida e concreta do que a

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Os Quatro Verdadeiros Fatos da Vida 4

  • verdadeira cidade feita de cimento. Deste modo, nossa crena que a imagem que temos averdadeira realidade gera toda a nossa tenso e estresse. Infelizmente, muitas pessoasconsideram no s aonde elas moram, mas toda a vida, deste modo.

    Buda ensinou que no inevitvel que ns experienciemos sndromes dolorosos como este. possvel que estes sndromes e suas causas acabem, no s temporariamente mas de uma vezpor todas. O verdadeiro acabar, ou paragem, equivalente sua remoo total, o terceiroverdadeiro fato da vida - a verdadeira "cessao" do sofrimento e das suas causas. Seeliminarmos a recorrncia das causas do sofrimento, experienciaremos definitivamente aausncia do sofrimento que teria surgido como seu resultado. Sem uma causa, um resultadono pode surgir. Alm disso, j que a causa principal da recorrncia dos nossos problemas aconfuso com a qual imaginamos que as coisas existem realmente na maneira impossvel emque a nossa mente confusa as faz enganosamente parecer existir, possvel eliminar arecorrncia desta causa. Isto porque a confuso no pode ser verificada. Baseada em fantasiaem vez de fato, ela no tem uma fundao firme e no resiste um exame detalhado. Portanto,verdadeiros finais podem definitivamente ocorrer.

    Porm, a fim de realizarmos uma verdadeira paragem dos nossos problemas e das suas causas,devemos ativamente fazer algo por isso. Se no, devido ao forte hbito, continuaremosinfinitamente a tornar a nossa vida miservel - por exemplo gerando a tenso outra e outravez. Dado que a causa raiz do nosso sofrimento um estado mental confuso, precisamos de osubstituir permanentemente por um estado no-confuso de modo que nunca mais vai surgir.Tais estados mentais no-confusos com os quais vemos a realidade, so o quarto verdadeirofato da vida - verdadeiros caminhos interiores da mente, ou verdadeiros "caminhos". Contudo,no suficiente mascararmos meramente o problema do estresse, por exemplo, tomando umtranquilizante ou uma bebida. Temos de nos livrar, ou "abandonar", a confuso, com a qualacreditamos, de algum modo, que a tenso existe "l fora". Temos de substituir a confusocom a compreenso correta, por exemplo, com a compreenso de que a tenso uma criaoda mente.

    As nossas attitudes mentais podem ser mudadas muito mais facilmente do que todo o resto domundo. Parafraseando Shantideva uma vez mais - dentro do contexto da sua discusso sobre apacincia: " impossvel cobrir toda a superfcie spera do mundo com couro. Mas, cobrindoa parte debaixo dos nossos ps com couro, atingimos o mesmo fim". Portanto, para noslibertarmos dos nossos problemas da vida e para sermos do melhor benefcio aos outros, crucial compreendermos a natureza da realidade das aparncias que experienciamos, e faz-loem termos do seu relacionamento com a nossa mente. Os ensinamentos de mahamudraapresentam mtodos eficazes e sofisticados para se atingir este fim.

    Levando a Srio a Ns e s Nossas Vidas

    Se o primeiro fato verdadeiro que a vida em geral no fcil, certamente no podemosesperar que ver a natureza da nossa mente ser simples. A verdadeira natureza da mente, aqualquer nvel, no muito bvia. At mesmo identificar e reconhecer corretamente o que amente extremamente difcil. Mesmo para comearmos a tentar v-la, precisamos de umaforte motivao. Precisamos estar claros sobre porqu gostaramos de ver a natureza da nossamente. Deixem-nos brevemente rever a apresentao budista dos estgios graduais damotivao atravs dos quais progredimos para obtermos o melhor sucesso nesteempreendimento.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Levando a Srio a Ns e s Nossas Vidas 5

  • A fundao para qualquer nvel de motivao espiritual levarmo-nos, a ns mesmos e qualidade da nossa vida, a srio. A maioria das pessoas levanta-se de manh e tm de irtrabalhar ou ir para a escola, ou ficar em casa e tomar conta da casa e dos filhos. Ao fim dodia, elas esto cansadas e tentam relaxar talvez bebendo uma cerveja e vendo televiso.Eventualmente vo dormir, e no dia seguinte levantam-se e repetem a sequncia. Passam a suavida inteira tentando ganhar dinheiro, cuidando da famlia e tentando experienciar qualquerdivertimento e prazer que possam ter.

    Embora a maioria das pessoas no possa alterar este formato da sua vida, elas sentem quetambm no podem mudar a qualidade da sua experincia deste formato. A vida tem os seusaltos, mas tambm tem muitos baixos, e isto tudo muito estressante. Sentem que so umaparte minscula de uma estrutura mecnica, gigantesca e slida, acerca da qual no podemfazer nada. Assim, vivem a vida de uma maneira mecnica, passiva, como um passageironuma montanha russa que corre sem parar, indo para cima e para baixo e sempre s voltas,supondo que no s a trilha, como tambm a tenso experienciada ao circundar nela so umaparte inevitvel do passeio que deve sempre recorrer.

    Dado que tal experincia da nossa vida, apesar dos seus prazeres, pode ser muito deprimente, vitalmente essencial fazermos qualquer coisa acerca disso. Apenas beber at esquecer todasas noites, ou procurando divertimentos e distrao constantes como ter msica ou a televisoligada a toda a hora, ou incessantemente jogar jogos de computador de modo a que nuncatenhamos de pensar sobre a nossa vida, no vai eliminar o problema. Ns devemos levar-nos asrio. Isto significa ter respeito por ns como um ser humano. Ns no somos apenas umapea de maquinaria ou um passageiro incapaz na trilha fixa da vida que s vezes suave, masfrequentemente cheia de dificuldades. Precisamos, por conseguinte, de olhar mais perto para oque ns estamos experienciando cada dia. E se virmos que estamos estressados pela tenso danosso cidade, casa ou escritrio, no devemos aceitar isto como sendo algo inevitvel.

    Os ambientes aonde vivemos, o trabalho e nossa casa, incluindo as atitudes e ocomportamento dos que estao neles, fornecem meramente as circunstncias em que nsvivemos as nossas vidas. Contudo, a qualidade da nossa vida - o que ns prprios, e no asoutras pessoas, estamos experienciando agora mesmo - o resultado direto das nossasprprias atitudes e do comportamento que elas geram, e no das outras pessoas. Isto fica claropelo fato de que nem todos no mesmo ambiente tem as mesmas experiencias.

    Admite-se que alguns ambientes so mais difceis do que outros, por exemplo viver-se numazona de guerra, e ns devemos estar sempre alertas para evitar perigos reais. Mas estarmosalertas diferente da tenso, e esta no precisa necessariamente acompanhar a anterior. Se,contudo, sentirmos que a nossa tenso inescapvel, nem sequer tentaremos super-la.Condenamo-nos a uma experincia extremamente desagradvel da vida. No tem que serassim.

    Se nos sentimos muito nervosos o tempo todo, ento o primeira passo na direo de fazermosalgo para remediar a situao levarmo-nos, a ns e qualidade da nossa vida, a srio.Suponhamos que estamos andando pela rua e pisamos num inseto, esmagando-o parcialmentemas sem o matar totalmente. Se continuarmos a andar ignorando a experincia do insecto, deter a sua perna esmagada ou perdida, fazemo-lo porque no levamos o insecto, nem a sua vida,a srio. No temos nenhum respeito por ele. Se no nos tratarmos melhor do que a um inseto,ignorando as nossas dores e angstias mais profundas, isso realmente lastimvel.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Levando a Srio a Ns e s Nossas Vidas 6

  • Levarmo-nos a srio significa vermos como estamos realmente experienciando a nossa vida e,se vemos que insatisfatria, admitir que assim. A nossa tenso e estresse no iro emborase as negarmos ou se evitarmos olhar para elas com honestidade. E admitir que algo esterrado no o mesmo que queixarmo-nos sobre isso e sentirmos pena de ns mesmos. Nemimplica que algo est fundamentalmente errado conosco e que somos uma m pessoa porqueestamos nervosos. Sermos objetivos, em vez de melodramticos, e permanecendo neutros,sem julgar, essencial para qualquer processo curativo e espiritual.

    Direo Segura e Natureza Bdica

    Quando nos levamos, a ns e qualidade da nossa vida, a srio, e admitimos as dificuldadesque possamos estar experienciando, a etapa seguinte termos a confiana de que (1) possvel super-las, (2) h uma maneira de o fazer, e que (3) somos capazes de o conseguir.Isto traz-nos aos tpicos do refgio e da natureza bdica.

    Tomar refgio no um ato passivo de nos colocarmos nas mos de um poder superior quefar tudo por ns, como a palavra inglesa "refuge" possa implicar. um processo ativo de pruma direo segura, de confiana e positiva na nossa vida. Essa direo indicada pelosBudas, pelo Dharma e pela Sangha - as Trs Jias Preciosas. So preciosas no sentido que soraras e valiosas. Cada uma tem dois nveis de significado - interpretvel e definitivo - e umarepresentao comum. O nvel interpretvel conduz ao definitivo, enquanto que arepresentao serve como foco para respeito sem fornecer uma direo segura real em si oupor si.

    Os Budas so aqueles que eliminaram toda a sua confuso para poderem usar os seuspotenciais inteiramente para o beneficio dos demais. Ao nvel definitivo, a direo segura dosBudas fornecida pelos seus dharmakaya, ou corpos que tudo abrangem - nomeadamente, asua conscincia onisciente e sua natureza, as quais tudo abrangem. O rupakaya, ou o corpo deformas, que os Budas manifestam, serve como o nvel interpretvel, enquanto que as esttuase as pinturas de Buda so a representao da primeira jia preciosa.

    Ao nvel definitivo, a fonte de direo do Dharma refere-se remoo completa, ou ausnciatotal de obstculos, e completa realizao de boas qualidades que os Budas atingiram. Seunvel interpretvel que eles indicam o que nos ajuda a atingir o mesmo, a saber, as suasdeclaraes escriturais e realizaes. Estas so representadas pelos textos de Dharma.

    O nvel definitivo da fonte de direo da Sangha a comunidade interna, dentro da mente, dasremoes totais, ou "cessaes" dos obstculos, e das realizaes de qualidades boas.Especificamente, a comunidade de todos os aryas - os que j conseguiram ver a realidade demaneira direta e no-conceptual - ao progredirem mais ao longo do caminho espiritual. Seunvel interpretvel a comunidade dos aryas, leiga e monstica, com uma pequena partedestas verdadeiras remoes e realizaes. A comunidade geral dos monsticos suarepresentao.

    Em resumo, o nvel definitivo das Trs Jias Preciosas de Buda, Dharma e Sangha, apresentao objetivo que gostaramos de alcanar. O seu nvel interpretativo indica aquilo que nsacreditamos, externamente, que vai nos levar l. Mas tambm existem fatores internos em queprecisamos confiar. Estes referem-se nossa natureza bdica.

    Somos capazes de eliminar os nossos problemas e de alcanar as Trs Jias Preciosasdefinitivas porque todos temos a natureza bdica, ou seja, os vrios fatores, ou materiais de

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Direo Segura e Natureza Bdica 7

  • trabalho, que tornam isso possvel. De todos os nossos recursos naturais, o mais importante mente. Todos temos uma mente que, por sua natureza, no impedida por nada deexperienciar o que quer que exista. No importa o que acontea - no obstante quo confusos,estressados ou infelizes possamos estar - experienciamos tudo isso. At a morte algo queexperienciamos quando ocorre. Por conseguinte, como temos uma mente que nos permiteexperienciar o que quer que exista, temos o recurso bsico que nos permite experienciar umaausncia total de confuso e uma utilizao de todas as boas qualidades possveis para ajudaros outros - contando que tal ausncia e utilizao totais realmente existam. Ou seja, sepudermos estabelecer que possvel que estas duas coisas existam - e que no so apenasobjetos de desejos agradveis porm meras fantasias - podemos estar confiantes que somoscapazes de alcan-la, simplesmente porque temos uma mente.

    Podemos experienciar as coisas sem confuso e sem estarmos tensos. At a pessoa maisperturbada e mais nervosa tem momentos de claridade e de serenidade - mesmo se apenasquando esteja dormindo em paz e sonhando sonhos agradveis ou incuos. Isto demonstra quea confuso e a tenso no so partes integrais da natureza da mente. Por isso, a confuso podeser removida. No s pode ser removida, mas dado que a confuso no pode ser validada epode ser totalmente substituda pela compreenso, que pode ser verificada, a confuso podeser eliminada para sempre. Portanto possvel que uma ausncia total de confuso exista.Alm disso, como a confuso limita a mente de usar os seus potenciais, quando a confuso foreliminada, a utilizao de todos os potenciais tambm pode existir. Por conseguinte, comotodos ns temos uma mente, e todas as mentes tm a mesma natureza de poder experienciar oque quer que exista, todos ns podemos realizar e experienciar as Trs Jias Preciosasdefinitivas.

    Assim, se o nosso objetivo for a remoo da nossa confuso e a realizao dos nossospotenciais como indicado pelos Budas, pelas suas realizao, seus ensinamentos, pelo que elesacumularam ao longo do caminho e por aqueles que nele esto progredindo, ns estaremosviajando atravs da vida com uma direo segura, de confiana e positiva. A tomada derefgio, ento, significa dar esta direo realstica e segura nossa vida. Sem ela, a nossaprtica de mahamudra no teria direo alguma e no nos levaria a lado nenhum, ou um teriauma direo doentia que nos levaria a mais confuso e problemas. E mais, quanto mais longeviajarmos nesta direo segura atravs dos mtodos mahamudra - ou seja, quanto maisentendermos a natureza da mente e a sua relao realidade - mais confiantes nos tornamosda sensatez desta direo e da nossa capacidade de alcanar o seu objetivo. Quanto mais fortea nossa confiana, mais progredimos ao longo do caminho.

    Causa e Efeito Comportamental

    Para prosseguirmos na direo segura de eliminar a nossa confuso e de realizar os nossospotenciais da mesma maneira que os Budas fizeram e que a comunidade altamente realizadaest fazendo, precisamos compreender que todas as experincias da vida surgem atravs deum complexo processo de causa e efeito. O que estamos experienciando neste momentoresulta de causas e ir produzir efeitos. Por exemplo, podemos ver que estamosfrequentemente infelizes e que temos pouca paz mental. Isto pode ser porque, na maioria dasvezes, sentimo-nos nervosos e estressados, e isto porque andamos constantemente de umlado para o outro sem nunca relaxar nem parar. Precisamos compreender que se continuarmosa viver a nossa vida desta maneira iremos experienciar o mesmo nvel, ou pior, de infelicidadee estresse no futuro. Portanto, se quisermos evitar um esgotamento nervoso, tomamos aresponsabilidade de modificar o nosso comportamento. assim que viajamos na vida comuma direo segura e positiva. Precisamos prestar mais ateno ao nosso estado mental e

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Causa e Efeito Comportamental 8

  • tentar relaxar. Por exemplo, tentando parar de correr constantemente e tirando uma hora pordia para nos sentar num banho quente e acalmar-nos.

    Assim, neste primeiro estgio do nosso desenvolvimento, o pavor que a nossa situao setorne ainda pior motiva-nos a tentar compreender a natureza da nossa mente. Levando-nos asrio, tentamos estar cada vez mais cientes do nosso estado mental de modo a, quandoestivermos tensos, modificarmos o nosso comportamento a fim de afetar o que sentimos.Fazemos isto por causa da nossa confiana nas leis da causa e efeito comportamental. Paraexperienciar algo melhor na vida, sabemos que temos de criar as causas para isto.

    Renncia

    Embora tomar um banho quente possa nos fazer sentir um pouco melhor e fazer com que anossa tenso subsida um pouco tambm, isso na verdade no resolve o problema. No diaseguinte retornamos ao mesmo ritmo frntico, e a nossa tenso e infelicidade retornam.Precisamos progredir a um segundo nvel de motivao. Temos de desenvolver a renncia.

    Como muitas pessoas pensam da renncia como sendo uma coisa um pouco masoquista, comose significasse abandonar todo o prazer e conforto na vida, importante compreend-lacorretamente. A renncia tem dois aspectos. O primeiro uma forte determinao de noslivrarmos completamente dos nossos problemas e das suas causas. importante salientar aquique no desejamos simplesmente que alguma outra pessoa nos livre, mas que estamosdeterminados a livrar-nos por ns mesmos. Alm disso, estamos determinados a livrarmo-nosno s dos nossos problemas, como tambm das suas causas para que eles nunca maisretornem. Isso no significa estar simplesmente dispostos a tomar alguma medida superficial,como engolir um comprimido ou tomar um banho quente, para obter um alvio provisrio.Estamos dispostos a sondar muito profundamente para descobrir e desenraizar a causa maisprofunda das nossas dificuldades na vida.

    Investigar profundamente para alcanar a verdadeira fonte dos nossos problemas requer umaenorme coragem. Porm, a fora dessa coragem vem de estarmos completamente fartos eenjoados da pobre qualidade do que estamos experienciando na vida - da nossa infelicidade etenso constante, por exemplo. Com renncia, decidimos que j nos fartamos disso, que temosdefinitivamente de nos libertar do seu aperto.

    O segundo aspecto corresponde mais noo ocidental de renncia. Estamos no sdeterminados a nos libertar, mas, a fim de o fazer, estamos dispostos a sacrificar algo. Isto nose refere a sacrificar algo trivial, como ver televiso ou comer sorvetes, nem a desistir de algonada trivial, como fazer amor com a nossa esposa, ou at do relaxamento e divertimento.Precisamos abandonar os nossos problemas e todos os nveis das suas causas.

    Podemos estar dispostos a abrir mo do problema, por exemplo, de ser infeliz, porque doloroso. Mas abrir mo at dos primeiros nveis das causas dos nossos problemas outracoisa. O primeiro nvel da causa dos nossos problemas so os nossos traos auto-destrutivosda personalidade. Temos de estar prontos a sacrific-los. Precisamos abdicar os nossosapegos, raiva, egosmo e, neste caso, nosso nervosismo, tenso e preocupao constante. Seno estivermos totalmente dispostos a renunciar a estes fatores perturbadores que estocausando os nossos problemas, nunca nos poderemos livrar da nossa infelicidade. muitomais difcil deixarmos de nos preocupar do que deixarmos de fumar ou de ver televiso. Mas nisto que focalizamos quando tentamos desenvolver a renncia.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Renncia 9

  • Muitas pessoas que abordam a prtica do budismo esto dispostas a sacrificar uma ou duashoras do seu dia a fim de fazer alguma prtica ritual ou de meditar. O tempo relativamentefcil de dar, mesmo que as suas vidas sejam muito ocupadas. Mas no esto dispostas a mudarnada das suas personalidades - no esto dispostas a renunciar nada do seu carter negativo.Com este tipo de abordagem ao budismo, no obstante quanta meditao fizermos, a nossaprtica permanece um mero passatempo ou um esporte. No toca nas nossas vidas. De modo asuperarmos realmente os nossos problemas, temos de estar dispostos a mudar - ou seja, amudar a nossa personalidade. Precisamos renunciar e livrar-nos dos seus aspectos negativos,que esto nos causando tantos problemas.

    Isto requer ainda mais coragem - uma tremenda quantidade de coragem - seguir em frentepenetrando novo territrio na nossa vida. Mas a obteno dessa coragem definitivamentepossvel, mesmo que possa ser um pouco assustadora no incio. Por exemplo, a gua numapiscina pode estar muito fria. Mas se, no vero, estivermos com muito calor e transpirando,ento, como estamos to fartos de nos sentirmos incomodados, ganhamos a coragem demergulhar na gua. Estamos dispostos a desistir, renunciar, no s transpirao, comotambm causa do disconforto, a saber, estarmos no sol quente e no na piscina. Quandoprimeiro mergulhamos na piscina, claro que est fria. um grande choque para o nossosistema, mas depressa nos habituamos gua. De fato, descobrimos que muito maisconfortvel do estarmos ao lado da piscina a transpirar. Assim, muito possvel obter-se estacoragem, esta determinao de nos livrarmos das nossas qualidades negativas e esta coragemde estarmos dispostos a desistir delas.

    Tambm temos de ter a coragem de examinar ainda mais aprofundadamente a fonte dosnossos problemas. Sermos nervosos, tensos e preocupados, por exemplo, tanto uma causa dainfelicidade como tambm o resultado de algo mais profundo. Com o primeiro nvel demotivao, modificamos o nosso comportamento a fim de evitar que o nosso problema piore.Como medida inicial para reduzir e aliviar o nosso estresse e tenso tentamos deixar de correrde um lado para o outro o tempo todo e tentamos fazer algo para relaxar. Mas agora,adicionalmente, temos de descobrir o processo interno que est por trs da tenso.

    Quando investigamos mais profundamente, realizamos que o correr de um lado para o outro o resultado da nossa tenso ou a circunstncia em que a nossa tenso se est manifestando.Contudo, no a causa real da nossa tenso. H algo acontecendo mais profundo que responsvel por estado mental que temos ao correr de um lado para o outro - estamosconstantemente preocupados, por exemplo. Mas temos tambm de revolver ainda maisprofundamente para descobrir porque andamos to preocupados e ansiosos.

    Eliminando A Confuso

    A natureza da realidade que os contedos daquilo que experienciamos, tal como as vises,sons, pensamentos e emoes, so todos objetos que surgem dependendo de uma mente. Elesno existem independentemente "l fora", separadamente do processo de uma mente que osest experienciando. O trfego completamente diferente da viso de trfego refletida naretina dos nossos olhos ligada cognio visual. O que realmente experienciamos esta, aviso do trfego, enquanto que o anterior, o proprio trfego, meramente o que chamamos, naanlise budista, a condio focal ou objetiva para a experincia do trfego. o que aexperincia tem como objetivo, mas no o que aparece realmente mente que o estexperienciando. Alm disso, a nossa mente d surgimento no s aparncia que constitui oscontedos da nossa experincia, mas tambm a uma aparncia de um modo de existnciadestes contedos que normalmente no correspondem realidade.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Eliminando A Confuso 10

  • Normalmente, fixamos a ateno nos contedos da nossa experincia e imaginamos, ou nocompreendemos, que eles existem independentemente de serem apenas o que uma mente fazsurgir, de uma maneira ou outra, como parte de uma experincia. Fixados nestes contedos eimaginando que eles existem solidamente "l fora" - como parecem existir - tornamo-nosnervosos e preocupados com eles, e isto a fonte da nossa tenso e, assim, da nossainfelicidade; porque se ns acreditarmos que eles esto realmente "l fora", no hpraticamente nada que possamos fazer acerca deles. Por isso sentimo-nos incapazes edesesperados.

    Com os mtodos mahamudra, desviamos a nossa ateno dos contedos da nossa experinciapara o processo da prpria experincia e, desse ponto de vista, compreendemos a relao entrea mente e a realidade que experienciamos. Isto permite-nos desconstruir a nossa experincia eos seus contedos de serem slidos e assustadores, a algo mais fluido e administrvel. Fazereste desvio de perspectiva requer a forte renncia da nossa fixao mrbida nos contedos danossa experincia e da maneira em que os imaginamos existir. Assim, no pode havernenhuma prtica de mahamudra sem o correto desenvolvimento da renncia.

    Compaixo e um Corao Dedicado Bodhichitta

    Para desenvolvermos o nvel mais avanado de motivao, olhamos para o nosso nervosismoe tenso e como afetam negativamente os outros, por exemplo, os nossos filhos e amigos. Onosso estado mental perturbado no s nos impede de os poder ajudar eficazmente, mas fazcom que eles tambm se sintam nervosos e tensos. S seremos capazes de os ajudar maiseficazmente se superarmos toda a nossa confuso e realizarmos todos os nossos potenciais. Ouseja, para ajuda-los completamente, ns mesmos temos de nos transformar num Budailuminado. Desta maneira, atravs do nosso interesse pelos outros, desenvolvemos um coraodedicado bodhichitta - um corao que est determinado a atingir a iluminao a fim debeneficiar a todos.

    A superao da confuso e a realizao dos potenciais requerem a viso da natureza da mente.A mente tanto a base para toda a confuso, como tambm a fundao para todas as boasqualidades. Assim, com um corao dedicado bodhichitta como motivao, o nosso interessepelos outros faz-nos sentir que temos mesmo de superar todos os nossos problemas elimitaes, por exemplo, a preocupao e a tenso cronicas, e de realizar todos os nossospotenciais por intermdio da viso da natureza da mente. No temos outra alternativa.Precisamos fazer isto urgentemente porque, se no, no aguentamos a nossa incapacidadedede ser de benefcio a todos, incluindo a ns prprios.

    Bodhichitta no s a motivao mais forte que fornece a maior fora para a prtica demahamudra, mas cultivando-a como nosso estado mental ajuda ainda de outras maneiras amelhorar esta prtica. Tecnicamente, bodhichitta um corao ou uma mente tomando ailuminao como seu objeto e acompanhada por duas fortes intenes - alcanar essailuminao e beneficiar todos os seres por meio dessa realizao. Porm, a menos que sejamosBudas, no podemos possivelmente o que significa a iluminao de maneira direta eno-conceptual. Podemos apenas focar na iluminao por meio de uma ideia dela, ou de algoque a representa, tal como a imagem visualizada de um Buda.

    Contudo, antes de ns prprios sermos um Buda, podemos focalizar em, e conhecerdiretamente e no-conceptualmente, a nossa natureza bdica, a saber, os fatores que nospermitem alcanar a iluminao - especificamente, a natureza da nossa mente. A natureza damente no manchada por quaisquer emoes perturbadoras, pela confuso ou at pelos seus

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Compaixo e um Corao Dedicado Bodhichitta 11

  • instintos, e a fundao de todas as boas qualidades para ajudar os outros, tal como aconscincia oniscinte e o interesse total pelos outros. Assim, a natureza da mente tambmpode servir como uma representao da iluminao para fins meditativos.

    Ento, focalizando na natureza da nossa mente com a forte inteno de a compreender e debeneficiar todos os seres atravs dessa compreenso, pode servir como uma maneira demeditar sobre bodhichitta. Tal prtica conhecida como o cultivo do ltimo, ou maisprofundo, nvel de bodhichitta, enquanto que a focalizao conceptual na prpria iluminaoatravs de qualquer outra imagem a prtica de bodhichitta relativa ou convencional. Assim onvel mais profundo da prtica de bodhichitta , de fato, a prtica de mahamudra.

    O interesse pela felicidade dos outros e a compaixo para que se livrem do seu sofrimento sonecessrias, no s como base da motivao bodhichitta para a prtica de mahamudra, mastambm para manter essa prtica no curso correto para o seu pretendido objetivo. Quandotivermos mudado o nosso foco na vida, dos contedos da nossa experincia para o processo daexperincia, h um grande perigo de ficarmos fixados na prpria mente, porque a experinciadireta da prpria mente totalmente bem-aventurada - no sentido de calma e serenidade - eenvolve uma claridade e uma simplicidade extraordinrias. O interesse pelos outros uma dasforas mais fortes para nos trazer de volta para terra depois de termos estado nas nuvens.Embora todas as aparncias existam em funo da mente, os outros seres no existem apenasna nossa cabea. O seu sofrimento real e di-lhes tanto quanto o nosso nos di.

    Alm disso, termos interesse por algum no significa estarmos descontroladamentepreocupados com essa pessoa. Por exemplo, se estivermos fixados nos problemas que o nossofilho tem na escola, deixamos de ver que a aparncia dos problemas que a nossa mente fazsurgir uma funo da mente. Acreditando que a aparncia a realidade slida " l fora",sentimos uma vez mais que no h nada a fazer e, assim, tornamo-nos extremamente ansiosose tensos. Preocupamo-nos ao ponto de ficarmos doentes e reagimos demais ao nosso filho, oque no ajuda. Se, em vez disso, focalizarmos no processo da mente que causa a nossapercepo do problema como se existisse como um monstro horrvel "l fora", no vamoseliminar o interesse pelo nosso filho, mas apenas a nossa preocupao. Isto permite quetomemos qualquer ao clara e calma necessria para aliviar o problema. Assim, no s acompaixo necessria para a prtica bem sucedida de mahamudra, mas a compreensomahamudra necessria para a prtica bem sucedida da compaixo.

    2 As Prticas Preliminares

    Reconhecendo os Nossos Bloqueios Mentais

    Os ensinamentos mahamudra tambm salientam a importncia e a necessidade de extensasprticas preliminares. O propsito de tais prticas, de por exemplo fazer-se centenas demilhares de prostraes, o de purificar os nveis mais grosseiros dos obstculos e acumularfora positiva de modo a que a nossa meditao mahamudra seja mais eficaz para nos levar iluminao. Neste contexto, "obstculos" no se refere a problemas economicos, sociais ououtros problemas externos, mas a dificuldades dentro de ns. A fora positiva, traduzidageralmente como "potencial positivo" ou "mrito", refere-se a um estado interno positivo queresulta de aes construtivas, ou "virtuosas", do corpo, fala, mente e corao.

    Para apreciar como este processo de purificao trabalha para podermos empreend-lo damaneira mais eficaz, essencial compreender o que so obstculos internos. Shantidevaescreveu: "Sem estabelecer contato com o objeto a ser refutado, voc no pode obter uma

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    2 As Prticas Preliminares 12

  • compreenso da sua refutao". No possvel eliminarmos os obstculos mentais eemocionais ao nosso sucesso espiritual a no ser que saibamos o que eles so.

    Podemos compreender estes obstculos em muitos nveis. H obstculos que impedem aliberao e outros que impedem a oniscincia. Os primeiros referem-se s emoes e atitudesperturbadoras, s "aflies", como o orgulho e a confuso teimosa, enquanto que os ltimosreferem-se aos instintos dessa confuso. As prticas preliminares ajudam-nos a purificar osnveis mais grosseiros dos obstculos que impedem a liberao. As prostraes, por exemplo,ajudam a enfraquecer o nosso orgulho. Porm, dentro do contexto de mahamudra, talvezpossamos compreender melhor os obstculos como sendo bloqueios mentais. Deixem-medesenvolver este tema examinando uma vez mais o mecanismo da tenso.

    Se estivermos constantemente tensos, um dos principais bloqueios mentais que causa isso anossa fixao nos contedos do que estamos atualmente experienciando. Por exemplo,estamos preenchendo nosso formulrios para pagamento de impostos - uma tarefa quedetestamos. Porque a detestamos tanto, fixamo-nos morbidamente e ficamos obsecados emcada linha do formulrio, sentindo-nos cada vez mais tensos e nervosos. Mentalmente,comeamo a queixar-nos, a sentir pena de ns mesmos, a duvidar da nossa capacidade deexecutar a tarefa, a preocupamo-nos sobre se vamos ser capazes de terminar, desejando queno tivessemos de fazer isto, e fantasiamos sobre nos divertir outra coisa em vez disto.Distramo-nos com um cigarro, um snack ou uma chamada de telefone. como se estesformulrios fossem um terreno de areia movedia arrastando-nos para o fundo. Essa atitudeimpede-nos severamente de terminar de preenche-los. Do mesmo modo nos incapacitamos,atravs de um mecanismo semelhante, quando nos fixamos morbidamente, com tenso epreocupao, nos contedos de uma experincia ou de uma experincia futura queantecipemos com pavor.

    A vida, contudo, um processo que continua de um momento ao seguinte sem nunca fazeruma pausa. Cada momento da vida o momento seguinte da experincia, e cada experinciatem os seus prprios contedos. H sempre algo diferente que estamos experienciando a cadamomento. A vida sempre continua, embora, infelizmente, muitas vezes significa ter que fazercoisas que ns no gostamos de fazer. O primeiro verdadeiro fato, afinal, que a vida difcil.

    Contudo, quando estamos tensos, ficamos parados no aspecto do contedo de um momentoparticular da nossa experincia. como se tivssemos congelado um momento de tempo e noconsegussemos ir avante / sair dele. Estamos encrencados no contedo do que estamosfazendo ou antecipando fazer, em vez de simplesmente desempenharmos a tarefa e acabarmoscom ela. Esta fixao funciona como um severo bloqueio mental - um obstculo que nosimpede de fazer eficazmente seja o que for, muito menos libertarmo-nos de todo o sofrimento.

    A minha falecida me, Rose, tinha um conselho muito sbio e til. Ela costumava sempredizer: "faz as coisas direitas, para cima e para baixo, e no para os lados! O que quer quetenhas de fazer, faz e termina de fazer". Assim, se tivermos de lavar os pratos ou lever o lixopara a rua, faam o que tm a fazer direito, para cima e para baixo, e acabem a tarefa. Se, nanossa mente, fizermos disso um grande drama, vamos tambm experienci-lo como umgrande drama.

    Ficarmos presos e grudados nos contedos das experincias da nossa vida diria de tal modoque nos sentimos tensos e queixamo-nos, alm de ficarmos irritados, um bloqueio mentalsrio. um obstculo que nos impede de ver o contnuo processo da natureza da nossa mente.Como essencial vermos esse processo a fim de superarmos a confuso sobre a realidade que

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Reconhecendo os Nossos Bloqueios Mentais 13

  • cria os nossos problemas e nossa incapacidade de ajudar os outros eficazmente, precisamosremover esses obstculos. As prticas preliminares, tais como a repetio de cem mil ou maisprostraes, so planejadas para enfraquecer e, assim, comear a eliminar estes bloqueios.

    Prostraes

    Fazer prostraes no uma punio ou arrependimento, no nenhuma coisa horrvel quetemos de fazer e acabar rapidamente de modo a continuar indo para as partes boas. Buda no como um pai dominador insistindo que temos de fazer os nossos deveres antes de podermosjogar qualquer jogo. Ao invs, fazer prostraes ajuda-nos a afrouxar o bloqueio mental deestarmos grudados nos contedos da nossa experincia. Ns simplesmente fazemos asprostraes, "como deve ser, para cima e para baixo", como Rose Berzin diria. Isto nosignifica que as fazemos mecanicamente, mas sim, diretamente. Fazemos o que temos a fazer,sem mais.

    Naturalmente, acompanhamos as nossas prostraes com a motivao correta, visualizao erecitao de uma das frmulas de refgio ou de um texto curto til para purificar, tal como AAdmisso das Quedas. Fazendo assim deixa pouco espao na nossa mente para queixas, sentirpena de ns mesmos ou preocuparmo-nos com o fato de conseguir completar as cem mil. Masat meramente fazer as prostraes, por si, pode familiarizar-nos com a abordagem vida defazer as coisas diretamente, acima e abaixo, sem nos sentirmos tensos. Isto ajuda-nos apurificar at um certo ponto, alguns dos nossos bloqueios ou obstculos mentais e a acumularmais fora positiva para sermos capazes de realmente ver diretamente a natureza da mente.

    Prtica de Vajrasattva

    Uma outra prtica preliminar importante a recitao, cem mil vezes ou mais, do mantra decem-slabas de Vajrasattva, para a purificao da fora negativa que acumulamos das aesdestrutivas, ou "no-virtuosas" previamente cometidas. Acompanhamos a nossa recitao comuma honesta admisso destas aes negativas e o reconhecimento que t-las cometido foi umerro. Sentimos remorso, mas no nos culpamos; oferecemos a nossa promessa de tentar nocomet-las de novo; reafirmamos a nossa direo segura do refgio e o nosso compromisso dealcanar a iluminao para podermos beneficiar a todos; e imaginamos graficamente umapurificao ocorrendo com uma complexa visualizao enquanto repetimos o mantra.

    O estado mental com que nos engajamos nesta preliminar, ento, o mesmo com que fazemosas prostraes recitando A Admisso das Quedas. Desta maneira, a prtica de Vajrasattvapurifica-nos das foras negativas as quais, como obstculos crmicos, iriam amadurecer nanossa experincia de infelicidade ou de situaes desagradveis que impediriam,respectivamente, a nossa liberao ou capacidade total de ajudar os outros. Porm, alm doseu benefcio usual, esta prtica serve tambm como uma excelente preliminarespecificamente para a meditao mahamudra.

    Uma das maneiras em que experienciamos termos acumulado fora negativa sentindo-nosculpados. Suponhamos que tolamente dissmos palavras speras ao nosso chefe numademonstrao de irritao momentnea que fz com que perdssemos o nosso emprego e podecausar-nos dificuldades de arranjar outro emprego no futuro. Se ficarmos grudados noscontedos dessa experincia, ns solidificamos o acontecimento na nossa mente. Ns ocongelamos no tempo e, depois, o recordamos o tempo todo, identificando-nos completamentecom o que fizemos nesse momento e julgando-nos como sendo estpidos, sem valor e maus.Esta culpa clssica geralmente acompanhada por um sentimento de estresse e ansiedade, e

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Prostraes 14

  • muita preocupao com o que fazer agora. Enquanto no largarmos o nosso forte agarramentoaos contedos dessa experincia, seremos incapazes de agir claramente e com auto-confianapara remediar a situao arranjando um novo emprego.

    A visualizao, de forma grfica, das nossas negatividades nos deixando, enquanto recitamoso mantra de cem-slabas de Vajrasattva com um estado mental correto, ajuda-nos a largar anossa fixao pelos contedos da nossa experincia passada de termos agido destrutivamente.Por conseguinte, ajuda-nos a abandonar a nossa culpa. Isto ajuda a treinar-nos a abandonar anossa fixao nos contedos de cada momento da nossa experincia, que a essncia dosnveis iniciais da prtica mahamudra. Desta maneira, Vajrasattva serve como uma preliminarexcelente para mahamudra.

    Guru-Yoga

    Outra preliminar sempre salientada como um mtodo para ganhar inspirao, ou "benos", o guru-yoga. bem fcil praticar guru-yoga a um nvel superficial. Visualizamos perante nso nosso professor espiritual, guru ou lama na aparncia do Buda Shakyamuni, ou de umafigura bdica, tal como Avalokiteshvara, ou de um mestre da linhagem, tal como Tsongkhapaou Karmapa. Depois imaginamos luzes de trs cores emanando desta figura para ns enquantorecitamos, cem mil vezes ou mais, um mantra ou verso adequado, fazemos pedidos fervorosospara inspirao para sermos capazes de ver a natureza da nossa mente. No entanto, ao nvelmais profundo muito difcil de compreender o que estamos realmente tentando fazerdurante, e por meio de, tal prtica. O que estamos tentando cultivar a um nvel psicolgico? Aresposta anda volta de um dos aspectos mais difceis dos ensinamentos budistas - a relaocorreta com um professor espiritual.

    Em quase todos os textos mahamudra ns lemos algo do estilo: "Como preliminar essencialpara a prtica de mahamudra, faam guru-yoga diligentemente. Imaginem que os vossoscorpos, fala e mente se tornam se um com os do vosso guru. Faam fervorosos pedidos deinspirao para serem capazes de ver a natureza da vossa mente". Na primeira leitura, quaseque parece como se tudo que precisamos fazer essa visualizao e esses pedidos, e depoisviveremos felizes para sempre, como num conto de fadas. Ns receberemos a inspirao que,como mgica, agir como a nica causa para a nossa obtencao de real izao,independentemente de termos de fazer qualquer outra coisa. Mesmo na escola do budismojapons de Jodo Shinshu em que ns confiamos unicamente no poder de Amitabha paraalcanar a liberao e a iluminao, ns compreendemos implicitamente desta formulao docaminho espiritual que devemos parar todos os esforos baseados no ego, o que depende determos compreendido a natureza mais profunda de "mim" e da mente. Assim, bvio quetemos de ir alm do nvel superficial de rezar ao nosso guru pedindo inspirao para vermos anatureza da nossa mente, sem fazer mais nada, sentindo que se tivermos bastante f e formosverdadeiramente sinceros, o nosso desejo ser concedido. De repente, como se tivssemossido tocados na cabea com a varinha mgica de um mgico, ns veremos e reconheceremos anatureza da nossa mente.

    A mente tem uma natureza com dois nveis. Sua natureza convencional mera claridade eapercebimento. o que permite o surgimento de qualquer coisa como um objeto de cognioe que seja conhecido. Sua natureza mais profunda, ou "ltima", que vazia de existir demaneiras fantasiadas e impossveis, como surgir independentemente das aparncias que criacomo sendo os objetos que conhece. Guru-yoga uma ajuda profunda, embora no mstica,para ver ambos. Deixem-nos examinar o mecanismo de cada um.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Prtica de Vajrasattva 15

  • Quando praticamos guru-yoga, pedimos inspirao ao nosso guru, e depois dissolvemos umarplica do nosso guru para dentro de ns. Quanto mais forte e fervorosa for a nossaconsiderao e respeito por ele ou ela, mais experienciaremos um estado mentalbem-aventurado e vibrante como consequncia deste processo. Se a nossa f estiver misturadacom apego, o estado mental que obtemos um de mero excitao - confundido, distrado eno muito claro. Mas se a nossa fervorosa considerao e respeito forem baseadas na razo,este estado mental bem-aventurado e vibrante estar fundado numa crena confiante. Sendoemocionalmente estvel, extremamente conducente a utilizar tanto a mente que v a suaprpria natureza convencional como a mente que tem esta natureza, sobre a qual focalizar.

    Para compreender como o processo de guru-yoga e de pedir inspirao funciona para facilitara nossa viso da natureza mais profunda da mente, precisamos compreender como a viso donosso guru como um Buda encaixa dentro do contexto dos ensinamentos sobre a vacuidade eo surgimento dependente. Vacuidade significa uma ausncia - uma ausncia de maneirasimpossveis de existir. Quando imaginamos que um guru existe por examplo, como um Budaindependentemente, do seu prprio lado, ns estamos projetando uma maneira impossvel deexistir nesse professor. Esse modo de existncia no refere a qualquer coisa real, porqueningum existe como "isto" ou "aquilo", ou como qualquer coisa, do seu prprio lado. Algumexiste como um mentor espiritual, um Buda, ou ambos, somente em relao a um discpulo.Um "professor" surge dependente no s de uma mente na qual algum aparece como umprofessor e no s daquilo a que a palavra ou rtulo mental "professor" se refere, comotambm da existncia de estudantes.

    O papel de "professor" no pode existir independentemente da funo de ensinar. definido,de fato, como algum que ensina. A funo de ensinar no poderia possivelmente existir se aaprendizagem ou os estudantes no existisse. Assim, ningum poderia ser um professor se nohouvessem estudantes. Ou seja, ningum - nem mesmo o Buda Shakyamuni, Tsongkhapa,Karmapa, e nem mesmo o nosso guru pessoal - poderia existir como mentor espiritual se noexistisse tambm algum como estudante. Mesmo se algum no estiver ensinando nestemomento nem tiver nenhum estudante agora mesmo, essa pessoa s poderia existir comoprofessor se ele ou ela tivesse feito o curso de professor, o que poderia acontecer apenas sehouvessem estudantes no universo. Alm disso, algum est funcionando como professorapenas quando est realmente ensinando, e isso s pode acontecer em relao a um estudante.

    A mesma linha de raciocnio aplica-se existncia de origem interdependente de Budas e dosseres sencientes. Seres sencientes so aqueles com conscincia limitada, enquanto que osBudas so aqueles com a maxima capacidade de ajuda-los. Ningum poderia ser um Buda seos seres sencientes no existissem. por isto que se diz que a bondade dos seres sencientes muitssimo maior do que a bondade dos Budas em capacitar-nos de alcanar a iluminao.

    Dado que os gurus e os Budas no existem independentemente dos discpulos ou estudantes,segue-se que nem os professores nem os discpulos existem como entidades totalmenteindependentes, como dois postos slidos e concretos, cada um deles existindo por si prpriomesmo se o outro nunca tivesse existido. Podemos por conseguinte logicamente concluir que uma fantasia imaginar que um guru pode produzir um efeito num discpulo como se fossealgum slido, "l fora", transmitindo um efeito slido, como lanar uma bola, a algumslido "c dentro", ou seja, "eu". Efeitos, tais como obter a compreenso da natureza damente, s podem surgir dependendo no s de um esforo comum de um guia espiritual e deum discpulo, mas de muitos outros fatores tambm. Como Buda explicou, "um balde no enchido com gua pela primeira nem pela ltima gota de gua. enchido por uma coleo deum nmero enorme de gotas".

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Guru-Yoga 16

  • A compreenso da natureza convencional e da natureza mais profunda da mente o resultadode um longo e rduo processo, durante vidas incontveis, de acumulao e de limpeza(colecionar e purificar). O primeiro refere-se a fortalecer as duas redes construtoras deiluminao: de fora positiva (ou de potencial positivo) e de conscincia profunda - as "duascolees de mrito e sabedoria"; enquanto que o ltimo significa purificarmo-nos da foranegativa (ou do potencial negativo) e dos obstculos. Alm disso, temos de ouvirensinamentos corretos sobre os dois verdadeiros nveis da natureza da mente - convencional emais profunda -, refletir neles at obtermos um nvel funcional bsico de compreenso, edepois meditar neles correta e intensivamente. Praticando desta maneira, acumulamos ascausas para obtermos compreenso e realizaes. A inspirao do nosso guru no podesubstituir este processo.

    No entanto, a inspirao que vem de um mentor espiritual o meio mais eficaz para fazer comque as sementes do potencial para a compreenso,que acumulamos atravs destes mtodos,amaduream mais depressa para produzir os seus resultados mais rapidamente. A inspirao,embora sendo uma circunstncia para o amadurecimento de causas, no pode produzirquaisquer resultados por si, se no houverem causas ou se estas forem insuficientes para queamaduream. A inspirao ou as "benos" de um guru, de um fundador da linhagem, ou atdo prprio Shakyamuni, no podem funcionar magicamente para nos levar compreenso e iluminao. Por conseguinte, no nos devemos iludir pensando que podemos evitar o trabalhorduo de superar os nossos problemas para sermos capazes de obter a profunda eternafelicidade e a capacidade de sermos do maior benefcio aos outros. A inspirao podedefinitivamente ajudar-nos a alcanar mais rapidamente os efeitos dos nossos esforos - e extensamente elogiada como o meio mais eficaz para isto - mas nunca pode substituir oesforo sustentado, sobre muitas vidas, para acumular as causas para esses efeitos.

    Em resumo, para que um discpulo obtenha inspirao e depois realize a natureza da mente, crucial que no s ele ou ela, mas tambm o professor, compreendam como cada um delesexiste e como o processo de causa e efeito s pode funcionar com base na vacuidade - aausncia de maneiras impossveis de existir. Se um deles ou ambos acreditarem que ele ou elae o outro existem independentemente e concretamente como postes de cimento, que ainspirao e a compreenso existem como uma bola dura, e que o processo de causa e efeitode obter inspirao e compreenso trabalham como o lanamento dessa bola de um poste aooutro, ento no importa quo hbil o mentor espiritual possa ser e quo receptivo e sincero odiscpulo possa ser, o efeito ser bloqueado. Se acreditarmos que o que experienciamos emrelao ao nosso guru, mesmo como um Buda, existe algures concretamente "l fora" e nosurge dependendo de muitos fatores - incluindo a nossa mente - como poderia ele ou elatransmitir-nos inspirao ou compreenso da natureza da nossa mente, mesmo se pedssemosisso com total sinceridade e motivao correta?

    O Relacionamento com um Professor Espiritual

    Para compreendermos o guru-yoga mais claramente, precisamos examinar maisprofundamente o tpico da "devoo ao guru". A fim de evitar uma possvel m interpretao,vamos traduzir o termo tcnico como "um compromisso de todo corao a um professorespiritual", ou seja, o compromisso de considerar esta pessoa como um Buda. Fazer estecompromisso no lidar com a questo de se o nosso mentor espiritual existe "l fora" comoum Buda ou no. Afinal, s podemos falar do nosso professor em termos da nossa experinciadele ou dela. A maneira em que um mentor espiritual existe s pode ser formulada em termosda mente. Por conseguinte, estamos cometendo-nos a considerar a nossa experincia do nossoprofessor como a experincia de um Buda.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    O Relacionamento com um Professor Espiritual 17

  • Ento, este relacionamento com um professor espiritual como sendo um Buda fundamentalmente um contrato muito pessoal. Falando do ponto de vista de um discpulo, onosso contrato com essa pessoa seria: "No me interessa, durante este estgio da minhaprtica, como que voc gera e experiencia a sua motivao para o que voc est fazendo. Euquero ser capaz de ajudar os outros to plenamente quanto possvel e alcanar o estado de umBuda de modo a ter mais capacidade de produzir esse benefcio. Portanto, tendo-nosexaminado, a voc e a mim, com muito cuidado, e tendo visto que ns dois estamos prontospara entrar neste tipo de relacionamento, eu agora pretendo considerar a minha experincia doque quer que voc diga ou faa como um ensinamento pessoal. Irei experienciar as suas aese palavras como motivadas unicamente pelo desejo de me ajudar a desenvolver de modo a queeu possa superar os meus problemas e falhas e ser de maior benefcio para os demais. Cadapensamento, palavra e ao de um Buda beneficia os outros, ou seja, algum que estsempre ensinando. Assim, vou considerar voc como me ensinando o tempo todo.

    "Nem o nosso relacionamento nem o benefcio que eu posso derivar dele existem como algovindo s do seu lado ou como uma entidade slida, como uma corda amarrada entre ns. Onosso relacionamento existe apenas em termos da sua experincia em nossa mente, a qual dependente de ns dois. Como s posso experienciar o nosso relacionamento da maneira emque eu o entendo e percebo, vou experienci-lo de maneira a maximizar o benefcio que possareceber. para este fim que vou considerar minha experincia de voc como sendo minhaexperincia de um Buda. E, de fato, se a considerar como tal, ser a minha experincia de umBuda e funcionar como tal. No auto-iluso feita para um propsito bom e digno".

    A maneira principal que o nosso professor espiritual, ou qualquer Buda, pode ajudar-nos alibertar dos nossos problemas e confuso e a usar eficazmente todos os nossos potenciais paraajudarmos os outros, treinando-nos a desenvolver a conscincia discernente, ou a"sabedoria". Precisamos cultivar a mente que capaz de discernir entre a realidade e afantasia, e entre o que til e o que prejudicial. Assim, nossa relao com o nosso guru no a mesma de um soldado no exrcito com o seu general. Sempre que o general fala,pmo-nos em posio, saudamos e gritamos "Sim, Senhor!", e obedecemos sem questionar.No assim. Quando o nosso mentor espiritual fala, ns somos, naturalmente, respeitosos,mas tambm usamos a situao como uma oportunidade de desenvolver a nossa conscinciadiscernente.

    Alm disso, se no exrcito obedecermos sempre e formos um bom soldado, o nosso generalpode-nos promover. Mas totalmente diferente com um professor espiritual. Se nsobedecermos sempre ao nosso professor sem questionar, isso no faz de ns um bomdiscpulo. E se ns pedirmos sinceramente, o nosso guru no nos promover posio dealgum que v a natureza da mente. O surgimento da viso da natureza da nossa mentedepende diretamente do desenvolvimento da nossa conscincia discernente. A maneira em queexperienciamos o nosso professor contribui para o nosso sucesso de uma maneira indireta,ajudando-nos a cultivar esse discernimento.

    O exemplo clssico deste processo vem de um relato de uma vida anterior de Buda. Uma vez,numa vida passada, Buda teve um mentor espiritual que lhe disse, e a todos os seus outrosdiscpulos, para irem cidade e roubar coisas para ele. Todos foram roubar exceto Buda, quepermaneceu no seu quarto. O guru foi ao quarto de Buda e gritou iradamente: "Por que vocno foi roubar para mim? Voc no me quer agradar?" Buda respondeu calmamente: "Como que roubar pode fazer algum feliz?" O guru respondeu: "Ah, voc nico que compreendeua finalidade da lio".

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    O Relacionamento com um Professor Espiritual 18

  • Assim, se considerarmos e experienciarmos tudo que o nosso mentor espiritual diz ou fazcomo um ensinamento, poderemos us-lo para nos ajudar a desenvolver o nossodiscernimento e sabedoria. No importa o que seja que o nosso professor diga que faamos,examinamos para ver se faz sentido. Se estiver de acordo com os ensinamentos de Buda eformos capazes de faz-lo, ns o faremos "como deve ser, para cima e para baixo", como aminha me diria. No processo, o nosso professor ensinou-nos a pensar cuidadosamente sobreas coisas antes de agir, e depois agir decididamente com auto-confiana. E se ele ou ela nospedsse para fazermos algo que achamos totalmente incorreto, ns no o fazemos eeducadamente explicamos por qu. Uma vez mais, o nosso guia espiritual deu-nos umaoportunidade para treinar e exercitar a sabedoria discernente.

    Ento, o relacionamento mais benfico com um guru certamente no anda volta de um cultode personalidade. Quando consideramos o nosso professor como um cone de culto, estamospresos e fixados nos contedos da nossa experincia. Ns exageramos e solidificamos o objetoda nossa experincia, neste caso um guru, e pomos-lhe num pedestal quase literalmente, comouma esttua de ouro slida, sempre que vemos ou imaginamos esta pessoa num trono deensino. Com este estado mental, abnegamo-nos e adoramos os contedos da nossaexperincia, adicionando ttulo aps ttulo ao seu nome. No estamos cientes da, nemconcentrados na, natureza da prpria mente e sua relao com a nossa experincia do nossomentor espiritual. Com uma atitude to confusa e ingnua, abrimo-nos a srio abuso.

    O outro extremo em que poderamos cair quando ficamos presos no lado do objeto da nossaexperincia do professor criticar o guru com hostilidade e, talvez, com profunda desiluso edesapontamento. Ele ou ela eram supostamente perfeitos e ns vemos srias falhas ticas oude julgamento. Ou ficamos calados devido ao medo, pensando que se dissermos que no aonosso professor, estaremos a ser um mau discpulo e seremos rejeitados. Ou pensamos quedizer que no semelhante a admitir que fomos estpidos por termos escolhido essa pessoacomo nosso guia espiritual e, em vez de parecermos estpidos a ns e aos outros, aceitamoscegamente e concordamos com tudo o que o nosso mentor diz. Em todos estes casos,perdemos de vista o nosso contrato de aprender a utilizar nossa conscincia discernente apartir da nossa interao com o professor, no importa quais sejam os contedos dessainterao. Obviamente, entrar em tal acordo requer no s um mestre espiritual altamentequalificado, mas tambm um discpulo altamente qualificado que seja emocionalmentemaduro e no esteja procurando um substituto de pai ou me para tomar todas as suasdecises.

    Por isso, quando praticamos guru-yoga, mesmo se ainda no tivermos um mentor pessoal comquem temos esse contrato, tentamos seguir as recomendaes sobre como obter o maiorbenefcio desse relacionamento. Tentamos evitar ficar presos nos contedos das visualizaese ficarmos apaixonados com eles. No nos tornamos extticos em quo maravilhoso o nossoguru ou Buda so ao emitir-nos luzes extasiantes. Em vez disso, concentramo-nos no ladoexperiencial do que est acontecendo - na mente que est permitindo o intercmbio de luzes ea inspirao que essas luzes simbolizam. Assim como podemos desenvolver conscinciadiscernente do que correto ou no experienciando cada ao do nosso guia espiritual comoum ensinamento, do mesmo modo tambm podemos desenvolver conscincia discernente dosurgimento dependente e da vacuidadente a partir da prtica de guru-yoga.

    Quando fazemos pedidos ao guru, o que que estamos fazendo? Quando pedimosfervorosamente "Que eu possa ser capaz de ver a natureza da minha mente", estamos gerandoum desejo muito forte de ver e compreender a natureza da mente atravs de uma interaocorreta com um professor espiritual. Assim como a tenso no existe "l fora" mas pelo

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    O Relacionamento com um Professor Espiritual 19

  • contrrio dependente da mente, do mesmo modo, a compreenso estvel ou at umpassageiro momento de insight sobre a natureza da mente e da realidade, assim como ainspirao para receber qualquer um deles, no so coisas "l fora" que algum nos pode atirarcomo a uma bola. So coisas que surgem dependentemente, com relao a uma mente, comoresultado de um enorme complexo de causas.

    A Inseparabilidade da Nossa Mente e do Nosso Guru

    Gampopa, o mestre tibetano do incio do sculo XII, disse: "Quando eu experienciei ainseparabilidade da minha mente e meu guru, eu percebi mahamudra." Podemos compreendera afirmao de recomendao de Gampopa a vrios nveis, tais como dizendo respeito obteno de inspirao mediante a constante lembrana do nosso professor; obteno de umestado mental bem-aventurado e vibrante a partir da ferverosa considerao e respeito por eleou ela; e assim por diante. Mas ele certamente no quiz dizer que quando teve uma uniomstica com o seu guru, como com Deus ou com seu amor, ele viu mahamudra como umpresente enviado do cu. Pelo contrrio, ele viu que o relacionamento com o seu mentorespiritual era uma experincia mental que envolvia aprender de cada momento de encontro.Assim, o benefcio resultante surgia em dependncia da mente e s podia existir dependendoda mente. Neste sentido, ele compreendeu que o seu guru e a sua mente eram inseparveis.

    A implicao da afirmao de Gampopa no que o relacionamento com um mestre espiritualest apenas na nossa cabea comodiscpulos. Isso to equivocado como dizer que tudo vemdo lado de um guru/Buda todo-poderoso. Uma relao entre um professor e um discpulosurge dependendo no s das duas pessoas, como tambm de uma mente que experiencia ainterao de momento a momento. Quando compreendemos isto, no ficamos presos noscontedos da experincia de fixar no lado-do-objeto do "santo guru" ou no lado-do-sujeito do"pobre de mim". Pelo contrrio, permanecemos concentrados na experincia e na naturezamais profunda da mente e da realidade que permite que o relacionamento de causa e efeito dainspirao e benefcio ocorra entre as duas pessoas envolvidas. Isto simbolizado por um fluirde luzes transparentes do guru ao discpulo, ambos os quais ns visualizamos e, assim,experienciamos, como tambm sendo feitos de luz clara. No h nenhum guru slido,concreto "l fora" enviando luzes brilhantes slidas a um eu slido e concreto, sentado,independentemente "aqui dentro", na minha cabea. Ento, tal prtica de guru-yoga extremamente til para nos treinarmos a ns prprios a concentrar, com conscinciadiscernente, na natureza mais profunda da mente, em meditao mahamudra.

    Guru-Mantra

    Quando praticamos guru-yoga, acompanhamos a nossa visualizao com a repetida recitaode um guru-mantra ou de um verso que inclua um pedido. Na tradio Karma Kagyu, porexemplo, que se desenvolveu a partir de um dos discpulos de Gampopa, o Primeiro Karmapa,ns recitamos o mantra, "Karmapa kyenno," que significa, literalmente, "Karmapa, sabeoniscientemente!" Na tradio Gelug-Kagyu de mahamudra, ns substitumos a visualizao emantra de Tsongkhapa pelos de Karmapa. Exceto isto, o procedimento e o processo soexatamente os mesmos.

    Se a nossa compreenso do guru for como send algum externo, ento a recitao do mantrade Karmapa, por exemplo, se transforma apenas num exerccio de devoo, e nada mais.Basicamente, recitamos o equivalente de "Karmapa, escute e saiba dos meus problemas! Svoc sabe oniscientemente como remov-los". No melhor isto leva-nos a ver Karmapa comoum Buda indicando a direo segura do refgio que tomamos na nossa vida. A um nvel

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    A Inseparabilidade da Nossa Mente e do Nosso Guru 20

  • menos timo, isto conduz ao sentimento que s Karmapa nos pode salvar de todos os nossosproblemas. Assim, os nossos pedidos ao guru com o mantra de Karmapa transformam-se noequivalente da recitao repetida de "Oh Deus, ajuda-me!"

    Mas quando conhecemos a inseparabilidade da nossa mente e do nosso guru, ns estamos defato repetindo "Mente, sabe oniscientemente!" sempre que recitamos "Karmapa kyenno".Ento, com os nossos pedidos fervorosos ao guru, estamos dirigindo as nossas energias numamaneira forte para a compreenso de mahamudra com base na confiana de que a nossamente, como a parte da nossa natureza bdica, tem os recursos para ver a realidade. Mesmo sens ainda no tivermos um guru pessoal para agir como canal para a linhagem que vem dassuas figuras fundadoras, a nossa natureza bdica liga-nos linhagem e, assim, pode funcionarcomo fonte de inspirao interior. Assim, no s confiamos em gurus externos, temos tambmum guru interior - a natureza da nossa mente. Quando vemos a inseparabilidade da nossamente e do nosso guru neste sentido mais profundo, ns ganhamos o nvel mais profundo deinspirao.

    O guru interno, ento, no uma figura existindo independentemente na nossa cabea, dequem podemos receber mensagens especiais que devemos definitivamente seguir. Quandopensamentos, tais como ideias de fazer isto ou aquilo, ou at compreenses, surgem, podemser ideias boas ou tolas, compreenses corretas ou falsas. Apenas porque algo novo einesperado surge repentinamente na nossa mente, isso no significa, de modo nenhum, que mesmo assim. Sempre precisamos examinar a sua validez.

    Alm disso, no existe nenhuma pequena pessoa na nossa cabea enviando-as para ns,supostamente como uma mensagem. Os pensamentos e as compreenses, tanto vlidos comoinvlidos, surgem atravs de um processo de causa e efeito, como o amadurecimento dealguma semente ou potencial. As sementes so plantadas pelas nossas aes habituaispassadas, que podem ser construtivas ou destrutivas, bem informadas ou iludidas. Elasamadurecem quando as circunstncias corretas esto presentes. O reconhecimento da naturezada nossa mente como natureza bdica e a compreenso da inseparabilidade da nossa mente enosso guru - mais precisamente, da nossa mente e nossa natureza bdica como nosso guruinterno - agem como circunstncias para que as compreenses corretas amaduream dassementes do potencial que acumulamos atravs das nossas prticas anteriores de acumulao epurificao, assim como de escuta, reflexo e meditao. Assim como crucial noromantizar transformando o nosso guru externo num fazedor de mgica e de milagres, omesmo verdade do nosso guru interno.

    Investigando o Significado de Cada Ensinamento

    muito importante, na prtica do budismo, olharmos profundamente para todos osensinamentos, especialmente aqueles que repetem em quase todos os textos sobre um tpicoparticular, tal como a afirmao que o guru-yoga e a splica ao guru por inspirao so aspreliminares mais importantes para a prtica de mahamudra. Atisha, o mestre indiano doincio do sculo XI , disse, "Tomem tudo nos grandes textos como instrues derecomendaes para a prtica pessoal". Contudo, isto no significa que ns os consideremossimplesmente como ordens do nosso general que devemos obedecer sem pensar. Precisamosinvestigar profundamente para tentar compreender a significncia e o significado de cadainstruo.

    Os ensinamentos de Buda podem ser divididos em interpretveis e definitivos - literalmente,naqueles que pretendem levar-nos mais fundo e naqueles sobre o significado mais profundo ao

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Guru-Mantra 21

  • qual somos levados. O ponto mais profundo ao qual todos os ensinamentos de Budaconduzem a compreenso da vacuidade. Por conseguinte, a fim de compreender, naspalavras de Atisha, como "todos os ensinamentos encaixam sem contradio", ns temos deencaixar as instrues sobre o que quer que estejamos praticando com os ensinamentos sobretudo o mais - particularmente com os aqueles sobre a vacuidade. O estudo do budismo comoser-nos dado peas de um enorme puzzle. Cabe-nos a ns reunir todas as peas, tais como oguru-yoga e a vacuidade, e encaix-las. At o processo de pensar sobre como elas encaixam etentar entender, e no apenas intelectualmente, age como uma preliminar para eliminarobstculos e fortalecer as redes construtoras de iluminao de fora positiva e conscinciaprofunda.

    Assim, as prticas preliminares so um pr-requisito essencial para conseguirmos atingirqualquer sucesso com os mtodos mahamudra. Sem elas, podemo-nos sentar e fazer o quepode parece ser meditao mahamudra. No difcil imaginar que estamo-nos concentrandono estado natural da mente. Mas, de fato, tudo que estamos fazendo estarmos ali sentados,sonhando acordados ou, na melhor das hipteses, concentrando-nos em nada, completamente"no espao", com a nossa cabea nas nuvens. Podemos ficar um pouco mais relaxados noprocesso, mas basicamente a nossa meditao no vai chegar a nenhum lado profundo.

    3 Evitar que as Prticas Preliminares Fiquem sem Energia

    Razes que Fazem com que as Prticas Preliminares Fiquem sem Energia

    As pessoas engajadas nas prticas preliminares s vezes reparam que elas se esto tornandofrouxas, sem energia. O erro principal est na nossa motivao. A medida principal paraimpedir que isto acontea reafirmar continuamente as nossas razes para fazermos aspreliminares. Se, como ocidentais, ns as fizermos como se fosse o nosso dever faz-las,como se estivssemos seguindo ordens no exrcito, ento certamente que vo acabar semnenhuma energia. Ou se as fizermos apenas mecanicamente, sem nenhuma emoo nemcompreenso da razo porque as estamos fazendo, tambm acabaro sem energia. Por outrolado, embora possam haver vrios nveis diferentes de motivao espiritual, se tentarmossinceramente desenvolver um corao dedicado bodhichitta, permaneceremos semprecientes das dificuldades que os outros esto experienciando e sentiremos profundamente odesejo de poder fazer algo construtivo para lhes ajudar. Isto move-nos a agir para nosdesenvolvermos inteiramente; e a maneira de comear atravs das preliminares. Essa atitude,ento, torna as nossas prticas preliminares cheias de vida e relevantes ao nosso objetivo.

    No entanto, embora possamos ter uma motivao correta e sincera, s vezes exageramos aspreliminaries, solidificando-as na nossa mente em algo monstruoso, "l fora". Podemos entocair num de dois extremos. O primeiro o de considerar as preliminares com uma atitudedistorcida e antagonsta, traduzida geralmente como uma "viso errada". Ns as difamamos etentamos ignor-las, julgando que so um desperdcio de tempo. Julgamos que so apenaspara principiantes, no para ns, e que por isso devamos ir diretamente para a prpria prticamahamudra principal.

    O outro extremo o de fazermos das preliminaries uma experincia penosa, como algo de ummito grego - Hrcules limpando os estbulos de Frgia de sculos de estrume acumulado.Oprimidos pelo prospeto de limpar a nossa mente de todo o lixo mental, sentimos que nuncachegaremos a lado nenhum. Essa atitude transforma as preliminares num filme de horror, eclaro que acabam sem energia, pois ficamos imediatamente desanimados, sentindo que nuncaconseguiremos fazer progresso algum.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Investigando o Significado de Cada Ensinamento 22

  • Ser-se Criativo com as Prticas Preliminares

    H muitos tipos diferentes de prticas preliminares mencionadas nos textos. Embora hajamlistas e instrues para quatro, cinco, oito ou nove prticas padres, qualquer tipo de aopositiva repetitiva que possamos fazer funciona como uma prtica preliminar - se tivermos amotivao correta. Por exemplo, uma vez Buda teve um discpulo que no era muitointeligente e que era incapaz de compreender ou de se lembrar de qualquer coisa que lhe tinhasido ensinado. Mas tinha um desejo sincero de aprender e melhorar. O que que fez o Buda?Instruiu o rapaz a varrer o templo, dia aps dia, repetindo: "Sujeira v embora; sujeira vembora!" Alm disso, organizou de modo que o templo estivsse sempre cheio de poeira. Essaera a prtica preliminar que Buda especificou para este discpulo. Gradualmente, o rapazpouco inteligente foi capaz de compreender que a sujeira que estava tentando varrer era, defato, a confuso da sua prpria mente. Depressa foi capaz de compreender tudo, e por fimtransformou-se num arhat - um ser liberado.

    Por nove anos tive o privilgio de ser o tradutor e secretrio para o meu falecido professor,Tsenzhab Serkong Rinpoche. Eu gracejava frequentemente que a minha prtica preliminar eraescrever cem mil letras e fazer cem mil telefonemas em nome dele, ajudando a organisar assuas turns de ensinamentos em torno do mundo. Embora num certo sentido isto possa ter sidoum gracejo, eu tambm penso que noutro era totalmente verdade. Eu realizei estas tarefas comentusiasmo, e traduzi para ele to bem quanto podia porque vi que esta era a maneira maiseficaz em que eu poderia ser de benefcio a outros, a saber, ajudando o meu guru a ensin-los.Sem dvida que essa atitude fez daquelas inmeras cartas e chamadas um mtodo paraenfraquecer obstculos e acumular fora positiva e potenciais para mais tarde eu prprio vir aser um professor.

    O importante nas preliminares no a forma que elas tomam, mas o processo que estamoscom elas tentando atravessar. No o contedo ou a estrutura das prticas, mas o estadomental que experienciamos antes, durante e depois delas que o fator mais crucial. Em luzdisto, at mudar as fraldas sujas do nosso beb cem mil vezes pode ser transformado numaprtica preliminar muito profunda. Temos de ser prticos e criativos. Nem todos temos tempopara fazer cem mil prostraes e, sem dvida, ser me cuidando responsavelmente do seubeb no tem de ser intrinsicamente um obstculo impedindo a prtica e o progressoespiritual. Precisamos compreender a essncia.

    Que estamos fazendo quando estamos constantemente mudando as fraldas do beb? Seexaminarmos isto do ponto de vista de acumular e limpar -- um sinonimo tibetano paraprticas preliminares - estamos limpando-nos de certas atitudes negativas. Ou seja, estamostrabalhando para superar a preguia e o egosmo que nos faz pensar: "No quero tocar nasujeira de outra pessoa nem quero sujar as minhas mos". Reduzir essa atitude ajuda-nostambm a diminuir a fora do bloqueio mental com que no queremos tocar nem nos envolvercom os problemas pessoais das outras pessoas porque, figurativamente, tambm no queremossujar as nossas mos. Alm disso, estamos acumulando fora positiva. No processo de atenders necessidades do nosso beb, estamos acumulando cada vez mais capacidade e vontade decuidar dos outros no futuro.

    Transformando Todas as Atividades num Caminho Espiritual

    A prtica das preliminares no limitada meramente aos estgios iniciais do nosso caminhoespiritual e depois acabam. Temos de continuar limpando-nos dos obstculos e a acumulandofora positiva ao longo de todo o caminho. Continuamos o processo at alcanarmos o nosso

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Ser-se Criativo com as Prticas Preliminares 23

  • objetivo de nos tornarmos totalmente purificados e inteiramente capazes de usar todos osnossos potenciais para sermos de benefcio aos demais. Como isto um processo to central ea longo prazo, importante entender que, com uma atitude e uma motivao corretas,podemos transformar qualquer ato repetitivo positivo ou neutro que fazemos na nossa casa ouescritrio numa preliminar eficaz para diminuir os bloqueios mentais e acumular forapositiva.

    Lemos, em muitos textos budistas comumente usados, como podemos transformar at asatividades mais mundanas no caminho espiritual. Por exemplo, quando entramos num quarto,podemos imaginar que estamos liberando-nos do samsara, ou dos renascimentosincontrolavelmente recorrentes, e entrando no nirvana, um estado de liberao e de liberdadedo sofrimento. Podemos tambm imaginar que estamos trazendo todos conosco. Temos de sercriativos com os ensinamentos de Dharma e aplicar este princpio s circunstncias da nossavida pessoal e transformar tudo que fazemos numa preliminar.

    Por exemplo, suponhamos que estamos trabalhando num escritrio datilografandodocumentos o dia inteiro. Se considerarmos isto simplesmente como o nosso trabalho e oacharmos chato, sem sentido, e o detestarmos, ganharemos pouco dele, com exceo de algumdinheiro, uma dor de cabea e muita frustrao. O mesmo pode ser verdade com as repetidasprostraes. No ganharemos muito delas se as considerarmos como um desagradvel deverde trabalho que somos obrigados a fazer. Apenas ficamos com uma dor de cabea e dinheironenhum! Mas se considerarmos datilografar o dia inteiro com a atitude: "Estou tornando ascoisas claras para que algo possa ser comunicado eficazmente a outra pessoa", descobrimosque no faz diferena nenhuma quo trivial sejam os contedos do que estamosdatilografando. O processo que importante - estamos tornando algo claro e disponvel a sercomunicado a outros. Com esta atitude e motivao, a nossa rotina diria no escritriofunciona eficazmente como uma prtica preliminar.

    Para ser criativos com os ensinamentos budistas, precisamos juntar tudo que aprendemos.Neste exemplo de transformar o nosso trabalho no escritrio numa prtica preliminar, estamoscombinando os ensinamentos sobre acumular e limpar com a recomendao mahamudra deno ficarmos presos nos contedos da nossa experincia, mas simplesmente ficar com oprocesso. Depois estamos encaixando isso com lojong - os mtodos para limpar as nossasatitudes, ou o "treinamento da mente", com os quais ns transformamos situaes negativasem positivas conducentes prtica. Quando encaixamos partes diferentes dos ensinamentosdeste modo, ns prprios podemos descobrir as respostas de como aplicar o Dharma vidadiria. assim que tornamos a nossa prtica budista animada e que mantemos a energia donosso interesse.

    Estabelecendo e Fortalecendo as Duas Redes Construtoras de Iluminao

    Outra possvel razo porque a nossa prtica das preliminares, e do Dharma em geral, carece deenergia, porque estamos abordando o estabelecimento e fortalecimento das duas redesconstrutoras de iluminao, as de fora positiva e conscincia profunda, como se estivssemosacumulando uma coleo de "selos verdes" num supermercado americano. Com cada compraque fazemos acumulamos mais e mais selos que colamos num livro e guardamos numa gaveta.No fim, quando tivermos enchido suficientes livros, podemos troc-los por um aparelho decozinha. Assim, quando usamos tempo e energia fazendo repetidas prostraes, julgamos que como gastar dinheiro no supermercado para obter mais selos. Eles agora no tm nenhumuso ou relevncia para a nossa vida, mas podem mais tarde ser trocados, como nosso prmio,pela iluminao.

    Mahamudra na Tradio Gelug-Kagyu

    Transformando Todas as Atividades num Caminho Espiritual 24

  • Ns podemos comer o que compramos na loja, mas com a atitude acima no vemos nenhumefeito imediato das prostraes, exceto joelhos e costas doloridas. Contudo, quandotransformamos cada ao do nosso dia, particularmente as repetitivas, numa prticapreliminar, tambm teremos o benefcio imediato de cada momento do nosso dia se tornarsignificativo. A qualidade da nossa vida melhora proporcionalmente e tornamo-nos maisfelizes, sentindo que nunca estamos desperdiando o nosso tempo. Este sentimento positivo deauto-dignidade refora o nosso entusiasmo pelas preliminares comuns, como fazerprostraes. Desta maneira, encaixando todos os ensinamentos para aplic-los vida diria, anossa prtica das preliminares no fica frouxa.

    Encaixando os Ensinamentos de Dharma

    um processo muito excitante e ambicioso tentar encai