Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História · 15º Seminário Nacional de História...
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15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia,
Universidade Federal de Santa Catarina
16 e 18 de novembro de 2016
Eixo temático “Ciência-Tecnologia-Sociedade-História”
Ciência regulatória no Brasil: A CTNBio como foco ou fonte de controvérsia?
Paulo F.C. Fonseca1
1 IRIS – Instituto de Pesquisa em Riscos e Sustentabilidade, Departamento de Sociologia
e Ciência Política - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Email:
2
(DRAFT – Favor não citar sem o consentimento do autor)
1. Introdução
Um dos grandes focos de tensão das relações entre ciência, tecnologia e sociedade,
são o desenho e implementação de mecanismos institucionais que devem assegurar
seguras bases epistêmicas que confiram a legitimidade de decisões regulatórias sobre
riscos de natureza sociotécnica. A legitimidade política dos regimes de regulação provém
de uma zona cinzenta em que decisões devem ser percebidas como objetivas e, ao mesmo
tempo, democráticas.
Um dos exemplos mais estridentes deste fenômeno é a regulação sobre os
Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), que mesmo após décadas de inserção
no mercado global, continuam a ser uma tecnologia social e politicamente contestada em
praticamente todo o mundo (Rootes, 2003; Leguizamón, 2014; Levidow, 2014; Roden,
2014; Roy, 2015). Se por um lado o rechaço aos transgênicos tem sido caracterizado por
alguns como comportamentos irracionais de atores políticos que não dispõem de
credibilidade ou capacidade científica para a análise dos riscos envolvidos (Marris, 2001;
Blancke, Van Breusegem et al., 2015), por outro a própria comunidade científica parece
ainda não ter atingido um consenso suficientemente maduro para apaziguar as ansiedades
a respeito dos possíveis impactos desta tecnologia para a saúde, para o meio e ambiente e,
especialmente, para questões geopolíticas de justiça e soberania alimentar (Losey, Rayor
et al., 1999; Jasanoff, 2006; Séralini, Clair et al., 2014; Ferreira Holderbaum, Cuhra et
al., 2015; Krimsky, 2015). Atualmente, uma das principais causas de contestação do
pacote tecnológico dos OGM tem sido o aumento da utilização de agrotóxicos em
lavouras transgênicas, contradizendo as promessas por parte de seus defensores de que os
OGM minimizariam o uso de agrotóxicos (Ferment, Melgarejo et al., 2015).
Pesquisas no campo dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT) têm
mostrado que, mesmo entre os países de capitalismo mais avançado, os regimes de
3
regulação implementados divergem significativamente em relação aos critérios de
demonstração, legitimidade e aplicação do conhecimento regulador, sendo caracterizados
por distintas “epistemologias cívicas” (Jasanoff, 2005).
Como parte de um projeto mais abrangente sobre conflitos latentes da ciência
regulatória brasileira, este artigo discute a atuação histórica da Comissão Técnica
Nacional de Biotecnologia – CTNBio, o órgão do governo federal responsável pela
regulamentação acerca de produtos biotecnológicos, no que se refere às primeiras
aprovações para a comercialização de variedades de milhos transgênicos no país. As
aprovações dos milhos Liberty Link (T25), da Bayer e do milho MON-810, da Monsanto,
foram fortemente contestadas por entidades da sociedade civil e por outros órgãos do
próprio governo federal, tendo sido objeto de litigio judicial e administrativo. Este
constitui-se um momento histórico importante, quando foram evidenciados algumas das
questões que continuaram a ser apontadas como fontes de ilegitimação das decisões
técnicas da CTNBio.
2. A CTNBio: solução ou continuação da controvérsia?
A controvérsia sobre a regulação acerca dos OGM no Brasil teve sempre como
um dos principais focos de discussão a atuação e a competência da CTNBio para
regulamentar a pesquisa e a comercialização de OGMs no país. A primeira lei de
biossegurança, aprovada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso em 1995, (Lei
8.794/95), instituía um papel consultivo à CTNBio, ou seja, esta tinha o papel consultivo
de emitir pareceres técnicos sobre a biosseguranca de organismos transgênicos, mas não
deixava claro sobre a vinculação destes pareceres com outras instâncias de regulação, e
especialmente sobre a necessidade ou não de Estudos de Impacto Ambiental (EIA).
Em 1998, a CTNBio autorizou o plantio e comercialização do primeiro
transgênico no país, a soja transgenica Roundup Ready da Monsanto. Esta autorização
levou o Insitituto de de Defesa do Consumidor – IDEC, que também contou com o apoio
da ONG Greenpreace, a ajuizar acao cautelar para suspender os seus efeitos, alegando
4
que a decisao desrespeitava a legislacao vigente pois nao tinham sido realizados estudos
de impacto ambiental e nem havia regulamentacao da seguranca alimentar do produto. A
ONG Greenpeace juntou-se a acao. Em seguida, o IDEC ajuizou tambem Acao Civil
Publica mais ampla, na qual requeria que nenhum organismo transgenico fosse liberado
no Brasil sem a realizacao dos estudos de impacto ambiental e as devidas avaliacoes de
riscos a saude humana, além da implementacao de regras de rotulagem.
Em 2000, a 6a Vara Federal de Brasilia determinou, em face da ação civil pública,
que os organismos transgenicos deveriam obrigatoriamente passar por estudos de
avaliacao de riscos ambientais e a saude antes de serem comercializados. A partir daí, o
que se observou foi uma longa disputa que não se restringiu apenas ao campo judicial, na
medida em que sementes de soja RR foram sendo crescentemente utilizadas por
agricultores, o que levou o governo Lula a emitir 3 medidas provisórias legalizando a
comercialização da safra. (Fuck e Bonacelli, 2009).
Assim, foi aprovada no início de 2005, uma nova Lei de Biossegurança, a Lei n.
11.105/051, com a finalidade de conferir a necessária estabilidade jurídica e institucional
para atividade de regulação da biotecnologia no Brasil (Fonseca, 2010).
A nova lei reformula a composição e competência da CTNBio, assegurando-lhe
poderes regulatórios e deliberativos que só respondem a um órgão superior, o Conselho
Nacional de Biossegurança, um colegiado de Ministros de Estado que pode ratificar ou
não as decisões da CTNBio.
A comissão passa a ser formada por 27 membros titulares e 27 membros
suplentes, com “grau acadêmico de dotuor e com destacada atividade profissional nas
áreas de biossegurança, biotecnologia, biologia, saude humana e animal ou meio
ambiente”(Art.11, lei 11.105/05). Dentre estes especialistas, as sociedades científicas
devem indicar 3 da area de saude humana, 3 da área animal, 3 da área vegetal e 3 da área
de meio ambiente. Além disso, compõem a comissão um representante indicado pelos
1 Lei Nº 11.105, DE 24 DE MARÇO DE 2005, Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11105.htm (acesso em 3
de março de 2016)
5
Ministerio da Ciencia e Tecnologia. Ministerio da Agricultura, Pecuaria e Abastecimento,
Ministerio da Saude, Ministerio do Meio Ambiente, Ministerio do Desenvolvimento
Agrario, Ministerio do Desenvolvimento, Industria e Comercio Exterior; Ministerio da
Defesa, Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidencia da Republica,
Ministerio das Relacoes Exteriores. Por fim, completam a comissão: um especialista em
defesa do consumidor, indicado pelo Ministro da Justica; um especialista na area de
saude, indicado pelo Ministro da Saude; um especialista em meio ambiente, indicado pelo
Ministro do Meio Ambiente; um especialista em biotecnologia, indicado pelo Ministro da
Agricultura, Pecuaria e Abastecimento; um especialista em agricultura familiar, indicado
pelo Ministro do Desenvolvimento Agrario; um especialista em saude do trabalhador,
indicado pelo Ministro do Trabalho e Emprego.
Portanto, a missão desta comissão formada por cientistas de diversas áreas ligadas à
biossegurança é, sobretudo, definir os protocolos de avaliação e monitoramento de risco
de produtos biotecnológicos e decidir, caso a caso, sobre a aprovação ou não de
experimentação, produção, circulação e consumo.
Marinho e Minayo-Gomes (2004), ao analisar os pareceres da comissão de 1995 a
2002, ou seja, antes da nova legislação, apontaram que a forma como esta vinha atuando
era a principal responsável pelo acirramento da controvérsia. A análise aponta que a
ausência de critérios explícitos para o deferimento de liberações experimentais no meio
ambiente, como a discrepância no tamanho das áreas aprovadas para experimentação, (a
comissão havia liberado áreas de plantio experimental tão extensas quanto 110 Ha, o que
pode ter contribuiído para a disseminação ilegal da soja transgênica) indicava a
insustentabilidade “técnica” das liberações comerciais, contribuindo assim para a
instabilidade jurídica e para ilegitimidade política de suas decisões deliberativas.
Segundo estes mesmos autores, o conteúdo da então iminente nova lei de biossegurança,
embora apresentasse mudanças substantivas, não seria suficiente para apaziguar a
discordância entre os diversos atores envolvidos com a temática.
É interessante notar que, de fato, sob a égide da nova legislação que lhe confere
autoridade enquanto órgão máximo responsável pela regulação, sempre baseada em
6
pareceres ad hoc sobre a segurança de novas biotecnologias, a legitimidade epistêmica da
CTNBio enquanto órgão imparcial e apolítico não tem logrado suficiente consolidação.
Na próxima seção faremos uma contextualização sócio-histórica sobre as primeira
aprovações de milho transgênico da CTNBio, que evidentemente não se propõe como
exaustiva, mas que se dirige a algumas das questões cruciais que parecem ter servido de
base para a contestação futura de suas decisões técnicas, e que parece ter contribuído para
a continuação da instabilidade política e institucional do regime regulatório sobre
biossegurança.
3. As primeiras aprovações comerciais: os milhos transgênicos T25 e MON-810
Os primeiros processos de aprovação comercial da CTNBio foram os milhos
transgênicos Liberty Link (T25) e Guardian (MON-810). O primeiro foi votado e
aprovado na 102ª Reunião Ordinária da CTNBio, realizada em 16 de maio de 20072 e o
segundo na 105a Reunidão Ordinária da CTNBio, realizada em 16 de Agosto de 20073.
Estas decisões ocorreram em meio a fortes contestações e suscitaram respostas distintas
por parte da CTNBio e de outros órgãos do governo.
Os procedimentos científicos e administrativos destas primeiras duas aprovações,
bem como os protestos e recursos judiciais a elas relacionados, apresentam alguns dos
indícios sobre possíveis fatores que têm fragilizado a legitimação não apenas enquanto
órgão técnico e, portanto, imparcial, mas do próprio regime de governança dos riscos
biotecnológicos no país. Este artigo mostra que, apesar de a CTNBio se fundamentar
sobre os pilares de que as decisões políticas devem ser tomadas a partir do escrutínio
técnico, científico e portanto imparcial, as dinâmicas operativas de seu funcionamento
2 Parecer no 987/2007, relativo ao processo nº: 01200.005154/1998-36, disponível em:
http://ctnbio.mcti.gov.br , (acesso em 10 de marco de 2016) 3 Parecer no 1100/2007, relative ao processo nº: 01200.002995/1999-54. Disponível em
http://ctnbio.mcti.gov.br (acesso em 10 de marco de 2016)
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revelam que, desde o início de seu funcionamento “normal” após a regulamentação da
Lei 11.105/05, são critérios políticos, e não técnicos, que têm definido o seu
posicionamento.
3.1 De maioria qualificada a maioria simples
Uma primeira questão envolve o número de votos favoráveis necessários para a
aprovação de liberações comerciais. A lei 11.105/05 previa que as deliberações da
CTNBio deveriam ser tomadas por maioria qualificada em votação aberta, isto é, que ao
menos dois terços do colegiado, portanto, 18 membros, votassem a favor da decisão.
Enquanto tal regulamentação esteve em vigor, não foi aprovado nenhum pedido de
liberação comercial por parte da comissão. Por exemplo, em novembro de 2006, a
comissão negou a autorização de uso comercial de uma vacina contra a doença de
Aujelszky, feita com vírus modificado e usada em porcos e cavalos, apesar de o placar
apontar 17 votos favoráveis e 4 contrários à aprovação. Em 21 de março de 2007, o
presidente Lula sancionou a medida provisória No. 327, convertida em Lei No. 11.4604,
que reduzia o quórum mínimo para maioria simples, ou seja, para 14 integrantes.
Apenas dois meses depois, em maio de 2007, o milho transgênico T25,
comercialmente conhecido como Liberty Link, da empresa Bayer, resistente a herbicida
glufosinato de amônio, produzido pela Bayer teve seu uso comercial liberado pela
CTNBio, com o mesmo placar de 17 votos favoráveis e 4 contrários.
Portanto, ficou claro que a alteração do quórum mínimo de votação implicou na
viabilização de aprovações que até então estavam bloqueadas pelo bloco minoritário de
cientistas da comissão. É somente a partir desta ação administrativa que as decisões
técnicas favoráveis começam a acontecer, sugerindo que o funcionamento interno da
comissão é baseado, mais que na busca de consenso sobre a biossegurança, na afirmação
de um grupo levemente maioritário como aquele que efetivamente detém os poderes
4 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2007/Lei/L11460.htm (acesso em 15 de março de 2016)
8
decisórios. Este é um dos argumentos que têm sido sistematicamente utilizado para a
contestação da legitimidade das decisões da CTNBio. A crucialidade do quórum mínimo
de metade mais um indica que, ao contrário do discurso, não é o consenso científico que
guia as decisões dentro da própria comissão, na medida em que nunca se conseguiu
aprovar alguma liberação comercial com dois terços dos votos dos integrantes. Mais
ainda, isso indica o consenso nunca é atingido interdisciplinarmente e que, portanto, não
se trata de uma avaliação científica rigorosa, embasada em diferentes contribuições de
áreas complementares, mas de uma definição política, que se dá a partir da disciplina
científica dominante na comissão. Há uma maioria, formada por especialistas que
gravitam as áreas de biotecnologia e agricultura, e um grupo minoritário, que congrega
especialistas em meio ambiente e saúde. Cada grupo recorre às suas próprias referências e
fundamentações científicas, mas apenas o grupo que dispuser de mais votos tem seus
posicionamentos deferidos.
3.2 Audiência pública e sigilo dos processos: um modelo de participação contestado
Outra tema que se mostrou controverso, sobretudo em relação o primeiro pedido
de liberação comercial foi a questão da participação pública. Em dezembro de 2006,
ainda com o processo em tramitação, um juiz federal do Paraná, Nicolau Konkel Junior,
publicou uma liminar que suspendia a análise do pedido de liberaçãoo do milho LIberty
Link até que se efetivasse uma audiência pública sobre o assunto5. A comissão cumpriu
com a liminar e promoveu uma audiência pública, que ocorreu durante a manhã e tarde
de 20 de março de 2007. Segundo o então presidente da CTNBio, Walter Colli, foram 62
inscritos, sendo 20 selecionados para fazerem intervenções. A estrutura do evento foi de
apresentações subsequentes de 15 minutos, com uma hora para debates e perguntas, ao
fim de cada período. Além disso, foram protocolados 36 documentos com “opiniões ou
5 Decisão judicial liminar proferida nos autos da ação civil pública número
2006.70.00.030708-0
9
sugestões”, todos eles disponíveis no site da CTNBio.6 O Dr. Colli deixou claro que o
motivo da audiência era cumprir a decisão judicial, relativa ao milho Liberty Link, mas
decidiu incluir na pauta a discussão sobre outros milhos geneticamente modificados.
Este mecanismo de participação pública foi fortemente contestado por grupos
opositores. Em primeiro lugar, conforme se verifica ao longo de algumas das próprias
intervenções,7 foi questionada a utilidade de se reunir pessoas em apenas um dia, com
quinze minutos cada, para se debater um tópico complexo como a biossegurança de um
milho transgênico, incluindo os questões específicas relacionadas ao risco do milho para
a saúde e para o meio ambiente, mas também à confiabilidade e necessário escrutínio das
informações apresentadas pelo requerente. Por outro lado, muitos dos questionamentos
apresentados por alguns dos participantes não foram contemplados, sejam nas discussões
no dia, mas principalmente após o protoclamento das dúvidas e sugestões. Portanto, esta
primeira audiência pública realizada pela CTNBio, ao contrário de contribuir para a
construção de uma imagem de transparência e de abertura democrática, acabou por
reforçar a ideia de que a CTNBio não está disposta a se abrir para contribuições externas.
Mais que isso, segundo constam algumas das manifestações na altura, o comportamento
do presidente da comissão foi o de ignorar indiscriminadamente as contribuições ou
indagações (também de natureza técnica) levantadas pela sociedade civil.8 O Ministério
Público manifestou, na altura, a intenção de entrar com uma ação para anular a audiência
pública da CTNBio, na medida em que, segundo a procuradora Maria Cordiolli, “Fica
parecendo que eles quiseram apenas tirar o problema da frente para votar logo, o que não
6 Disponível em: http://ctnbio.mcti.gov.br/participacao-publica/-
/document_library_display/IVl5tCZGEO72/view/668445?_110_INSTANCE_IVl5tCZG
EO72_redirect=http%3A%2F%2Fctnbio.mcti.gov.br%2Fparticipacao-
publica%3Fp_p_id%3D110_INSTANCE_IVl5tCZGEO72%26p_p_lifecycle%3D0%26p
_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-
2%26p_p_col_count%3D1 (acesso em 16 de marco de 2016) 7 A transcrição ipsis verbis de toda a audiência está disponível no endereço acima. 8 Ver, por exemplo: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/CTNBio-
ignora-audiencia-publica-e-aprova-milho-transgenico-da-Bayer/3/13106 (acesso em 31
de Março de 2016)
10
é razoável”. 9 Neste sentido, uma nova liminar concedida na 2ª Vara da Justiça Federal, a
sessão ordinária da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) realizada
em Abril de 2007, teve de ser realizada a portas abertas.10
Da mesma forma, foram reiteradas as contestações sobre a falta de transparência
em relação aos processos de avaliação de pedidos de liberação comercial. Os processos
não estão disponíveis a escrutínio público, mesmo aqueles que não requerem pedido de
sigilo devido a questões de propriedade intelectual. Alguns dos participantes da audiência
pública, como o representante da ASP-TA, Gabriel Fernandes, indicou que, apesar da
solicitação, não recebeu as cópias dos processos em tempo hábil para que se pudesse
fazer uma avaliação que fundamentasse a sua contribuição na audiência pública.
3.3 Monitoramento e regras de convivência: Aprovação sem regulamentação
A aprovação milho Liberty Link foi contestada por diversas organizações da
sociedade civil, sobretudo pelo motivo de que a liberação foi efetuada antes de que a
mesma comissão estipulasse as regras de monitoramento e de coexistência entre o milho
transgênico e o milho convencional. De fato, a justiça federal do Paraná, proferiu
sentença anulando a liberação do milho, atendendo à ação civil pública movida pelo Idec
e as organizações Terra de Direitos, Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura
Alternatia (AS-PTA) e Associação Nacional de Pequenos Produtores (Anpa).11 A Juíza
Pepita Durski Tramontini Mazini suspendeu a decisão técnica da Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNBio) referente à liberação do milho Liberty Link, até
9 http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/mp-vai-entrar-com-a-o-para-an/ (acesso
em 31 de Março de 2016)
10 Ver, por exemplo: http://gvces.com.br/ctnbio-e-obrigada-a-abrir-as-portas?locale=pt-br
(acesso em 31 de Março de 2016)
11
http://www.ecoagencia.com.br/?open=noticias&id=VZlSXRFWWNlYHZEWOZlVaN2a
KVVVB1TP
11
que fossem elaboradas normas de coexistência das variedades orgânicas, ecológicas e
convencionais com as variedades transgênicas e até que fossem definidos os termos do
monitoramento. Concomitantemente, em julho, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária - ANVISA e o Instituto Brasileiro para o Meio Ambiente - Ibama apresentaram
recurso ao Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS contra a decisão da CTNBio de
liberar o milho Liberty Link.
Em 16 de Agosto de 2007, a CTNBio aprovou as normas de monitoramento que
cumpririam com a resolução da justiça e, a seguir, a liberação comercial do milho
Guardian, da Monsanto, com 15 votos favoráveis, uma abstenção e um voto contrário. O
motivo de apenas um voto contrário foi que cinco integrantes da comissão, que não
concordaram com a forma com a qual as regras de monitoramento e coexistência foram
propostas e aprovadas, sem o devido escrutínio e discussão no plenário da comissão,
deixaram o plenário em protesto. Assim, a CTNBio aprovou, de uma só vez, as
resoluções normativas no 3 e no 4, dispondo, respectivamente, sobre as normas de
monitoramento de milho geneticamente modificado em uso comercial e sobre as
distâncias mínimas entre cultivos comerciais de milho geneticamente modificado, e a
liberação de mais uma espécie de milho.
Mais uma vez, a CTNBio, e especialmente o seu comando por parte da
presidência de então, parece ter oferecido fundamentos para subsidiar análises de que as
suas resoluções normativas, isto é, a regulamentação sobre os critérios de segurança a
serem respeitados, não foram elaboradas a partir do escrutínio minucioso dos
posicionamentos científicos e, portanto, de que não se tratam de critérios legítimos de
biossegurança. De fato, o parecer técnico que fundamenta a liberação do milho Liberty
Link, cita o estudo científico de Luna et al (2001) para afirmar que, “sob ventos baixos a
moderados, estimou-se que, comparando-se as concentrações a 1 m da cultura fonte,
aproximadamente 2% de pólen são anotados a 60 m, 1,1% a 200 m e 0,75-0,5% a 500 m
de distância”.12 No entanto, a resolução normativa no 4, em seu artigo 2o, estabelece que:
12 PARECER TÉCNICO Nº 987/2007
12
Para permitir a coexistência, a distância entre uma lavoura comercial de milho
geneticamente modificado e outra de milho não geneticamente modificado,
localizada em área vizinha, deve ser igual ou superior a 100 (cem) metros ou,
alternativamente, 20 (vinte) metros, desde que acrescida de bordadura com, no
mínimo, 10 (dez) fileiras de plantas de milho convencional de porte e ciclo
vegetativo similar ao milho geneticamente modificado.13
Ou seja, a resolução normativa contradiz o próprio parecer técnico. Enquanto este
segundo atesta que a 200 metros, sob ventos moderados, ainda pode haver polinização
cruzada, a resolução desproblematiza as condições geográficas e coloca um isolamento
de 100 metros. Chama a atenção que a resolução não apresenta qualquer fundamentação
ou justificação científica para a definição de tal critério.
Esta resolução normativa foi fortemente contestada, tendo sido objeto de uma
publicação por parte do NEAD, Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento, Rural,
órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário que contava com membros
da área minoritária da CTNBio, que se opõe cientificamente aos critérios adotados
(Ferment, Zanoni et al., 2009). A publicação apresenta estudos científicos que
contradizem a norma da CTNBio, como pesquisas realizadas na Franca, que indicam que
graos de polen do milho foram identificados a uma distância de mais de mil metros do
perímetro da área plantada. Praticamente de forma concomitante, a CTNBio publicou
outro documento, de autoria de 7 membros da CTNBio e com a colaboracao de outros 27
membros e ex-membros, o estudo “Milho geneticamente modificado: bases cientificas
das normas de coexistencia entre cultivares” (Andrade, Nepomuceno et al., 2009). Neste
documento, que já no prefácio se justifica como resposta à publicação do ENAD, são
apresentadas as justificativas para as normas aprovadas, sobretudo a partir da premissa de
que um fluxo gênico zero é impraticável e mesmo indesejável (p.25-7).
Independentemente do mérito científico, o fato de a justificativa das normas de
coexistência terem se dado de forma reativa sugere que, de fato, o embasamento
científico foi buscado a posteriori, o que inegavelmente erode a confiabilidade das
13 CTNBio, RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 4, DE 16 DE AGOSTO DE 2007.
Disponível em www.ctnbio.mcti.gov.br
13
normas aprovadas de forma célere pela CTNBio. Além disso, conforme discute Zanoni et
al (2011), a publicação da comissão repassa o eventual fracasso das normas de
coexistência, que na altura já começavam a se manifestar, como casos de contaminação
significativa de milhos convencionais documentados no Parana, para os próprios
produtores rurais:
Os agricultores que tiverem suas lavouras contaminadas terao cometido algum
erro no manejo da cultura, ou terao sido contaminados por sementes misturadas,
graos misturados ou fluxo de polen de plantios GM vizinhos (Andraade et al, p.
41).
Portanto, a postura da CTNBio em relação às regras de coexistência, ao contrário
de contribuir para a construção da legitimidade de suas primeiras decisões, que devem ser
calcadas em critérios técnicos de biossegurança, apontam para uma maleabilidade que
acaba por alimentar a imagem de que, mais que critérios científicos, as decisões estavam
sendo tomadas por critérios a priori ideológicos e morais, que colocam a transgenia como
evolução inexorável da tecnologia agrícola.
3.4 A resolução normativa no 5: regras definidas após decisões
O posicionamento de contestação ao caráter aparentemente ideológico da
comissão pode ser ainda reforçado diante do fato de que a Resolução Normativa nº 514,
que dispõe sobre as normas para a liberação comercial de Organismos Geneticamente
Modificados e seus derivados, foi publicada apenas em 12 de março de 2008, portanto
após a aprovação comercial dos milhos Liberty Link e Guardian. Em outras palavras,
trata-se de um caso em que a aprovação sobre a segurança de um produto ocorre antes da
aprovação sobre quais são os critérios de segurança que devem ser respeitados, o que
obviamente fragiliza ainda mais a legitimidade técnica do órgão.
Não se obteve acesso, até a presente data, aos processos completos relativos aso
14 Disponível em http://ctnbio.mcti.gov.br/resolucoes-normativas (acesso em 31 de março
de 2016)
14
pedidos de liberação dos milhos Liberty Link e Guardian (o pedido submetido à CTNBio
ainda não foi atendido), mas uma análise comparativa entre os pareceres técnicos e as
regras estabelecidas no anexo da resolução normativa sugere que, ainda que de fato a
expressiva maioria das exigências colocadas na resolução são discutidas no parecer,
alguns dos itens presentes nos anexos da resolução estão ausentes do parecer.
Evidentemente, o anexo I da resolução normativa requer que as proponentes
apresentem um plano de monitoramento, o que, conforme já discutido anteriormente, não
foi feito nos casos do milho Liberty Link e Guardian. As informações dispostas nos
pareceres parecem contemplar todos os itens dispostos no anexo II e no anexo III,
respectivamente sobre as informações relativas aos OGM e sobre a avaliação de risco
para a saúde humana e animal. No entanto, em relação à avaliação de risco, a resolução
aponta para uma classificação de níveis que não aparece de maneira explícita nos
pareceres, ainda que estes indiquem, de forma qualitativa, que o risco relacionado com os
eventos T25 e MON-810 são baixos (o que devem coloca-los, por inferência, dentro da
categoria I). Já dentre os itens presentes no anexos IV, sobre a avaliação de risco ao meio
ambiente, é possível identificar a ausência de menções nos pareceres que indiquem a
correspondência com alguns deles. Especificamente, no parecer relativo ao milho Liberty
Link, estão omissas menções sobre os itens: 9 ( “ as modificações da capacidade da
planta em adicionar ou remover substâncias do solo, em decorrência da introdução de
novas características, descrevendo possíveis alterações físicas e químicas no solo e
contaminação dos corpos d’água adjacentes resultantes das interações com o OGM,
comparativamente aos sistemas convencionais); 10 (“as possíveis modificações da
biodegradabilidade da planta GM, comparativamente ao genótipo parental”); e 11 (“a
possível resistência a agentes químicos conferida pela característica introduzida”). O voto
divergente manifestado no parecer , da relatora Dra. Lia Giraldo da Silva Augusto,
manifestou, além da inexistência da resoluçãoo normativa e de critérios de
monitoramento, que a aprovação não cumpria com o principio da precaução.
Em seu ponto 18, o parecer coloca que
As críticas, questionamentos e alegações protocoladas por pessoas ou
15
organizações que discutem a liberação desta variedade transgênica são, em sua
maioria, baseadas em notícias de jornais ou endereços eletrônicos de
organizações não–científicas, não apresentando fundamento científico. (MCT –
CTNbio PARECER TÉCNICO Nº 1100/2007)
O parecer prossegue, no ponto 19, afirmando que
Alguns documentos protocolados apresentam diversas afirmações
conceitualmente erradas ou superficiais, mostrando um desconhecimento
profundo de biologia molecular e induzindo o leitor a conclusões errôneas. (MCT
– CTNbio PARECER TÉCNICO Nº 1100/2007)
Sem entrar no mérito do recurso retórico de desqualificação por meio da falta de
autoridade científica, que é recorrentemente apontado pelos grupos opositores, chama
atenção o cuidado do texto ao colocar a que, “em sua maioria”, são baseados em
argumentos não científicos, e que “alguns documentos” apresentam afirmações erradas.
Ou seja, ao contrário de uma resposta eminentemente técnica aos questionamentos, o
parecer apresenta uma desqualificação evasiva e generalizante, e acaba por desqualificar
as divergências, supostamente científicas, colocadas pelos próprios integrantes da
CTNBio na altura.
Entre elas, está registrado, no próprio parecer, o voto divergente do Dr. Rubens
Nodari, então membro da comissão, que coloca diversos argumentos que não poderiam se
encaixar dentro da desqualificação acima. Por exemplo, o Dr. Nodari aponta que:
A seqüência de nucleotídeos inseridos nas linhagens MON810 estão
indisponíveis;
A análise de risco, composta de estudos sobre possíveis efeitos adversos ao meio
ambiente nos ecossistemas brasileiros com as variedades brasileiras
descendentes do MON810, está ausente.
Estudos com o núcleo inseticida da toxina Cry1Ab extraído de plantas MON810
estão ausentes.
Dados de expressão da toxina inseticida cry1Ab nos diferentes órgãos e tecidos
das plantas transgênicas das variedades brasileiras (exceto folhas) estão
ausentes.
A maioria dos estudos com organismos não-alvo não são cientificamente
robustos.
Demandas da CTNBio não foram atendidas pela empresa requerente.
A literatura científica disponível foi parcialmente utilizada.
16
Houve tentativa de considerar iguais o uso de inseticidas biológicos a base de
Bacillus thuringiensis e o MON810, sem considerar que o OGM contém genes
não nativos e parcialmente sintéticos expressos todo o tempo e em todos os
tecidos da planta. (MCTI – CTNBio, Parecer técnico Nº 1100/2007: pp. 19)
Ao contrário dos argumentos expostos acima, o Dr. Nodari aponta diversos
questionamentos científicos, que, apesar de aparecerem ao final do parecer, não são
discutidos em nenhum outro documento disponível no site da comissão.
4. Epistemologias cívicas no Brasil: uma linha de inquérito para análises
qualitativas da percepção pública de risco
Apesar de não existir, no Brasil, uma tradição de pesquisa sobre a percepção
pública da Ciência e Tecnologia, existem algumas discussões que nos fornecem indícios
sobre alguns dos posicionamentos mais presentes do público brasileiro em relação à
autoridade de sua ciência regulatória (Guivant, 2006).
Neste âmbito, uma útil contribuição conceitual oferecida pela perspectiva dos
ESCT é o conceito de epistemologia cívica (Jasanoff, 2005). Desenvolvido por Sheila
Jasanoff ao analisar e comparar a biotecnologia e sua governança nos EUA, Alemanha e
Reino Unido, a noção de epistemologia cívica parte do pressuposto de que, na ausência
de provas universalmente reconhecidas, é a aceitação geral das novas tecnologias que
requer explicação. Ou seja, a credibilidade do conhecimento produzido e/ou utilizado
pelo Estado é baseada nos padrões de argumentação e demonstração que são mais aceitos
pelo modo de pensar do público. Os processos de validação e aceitação de um
conhecimento regulatório são moldados por aspectos contextuais, caracterizados
exatamente pelo que a autora define como epistemologias cívicas. Estas são, de acordo
com Jasanoff (2005:249), “caminhos públicos de conhecimento, específicos para cada
cultura e histórico e politicamente situados”. De modo mais claro, podemos definir a
epistemologia cívica como as “práticas sociais e institucionais pelas quais comunidades
políticas constroem, reveem, validam e deliberam sobre conhecimento politicamente
17
relevante (Miller, 2008): 1896).
O conhecimento, e especialmente o conhecimento politicamente relevante, é mais
que simplesmente afirmações de verdade ou de fatos, ele é feito de julgamentos
complexos sobre como identificar múltiplas modalidades de evidência empírica, avaliar a
sua credibilidade e significado e integrá-las de acordo com protocolos específicos e
diversos de relevância. Mais ainda, estes julgamentos são produtos de processos sociais
dinâmicos, onde padrões ou embasamentos para a análise, validação, ou avaliação
competem e são articulados, negociados, valorizados ou descartados (Shapin e Schaffer,
1985). Compreender o conhecimento publicamente aceito como válido, portanto, requer
conhecer os processos de construção deste conhecimento (Cetina, 1999).
Assim, inquirir sobre a epistemologia cívica presente em um determinado contexto é
indagar sobre como as formas de racionalidade estão imbricadas nas próprias formas de
organização política. Estas formas são normalmente estabilizadas em períodos históricos,
materializadas em práticas epistêmicas cristalizadas em instituições sociais e políticas,
como a própria CTNBio. No entanto, elas são dinâmicas, isto é, abertas à mudança por
meio de processos de coprodução que conectam novas epistemologias, inovações e
contestações sócio políticas (Miller, 2008).
Portanto, as epistemologias cívicas, e o seu dinamismo, consolidam o substrato
para a estabilidade e para a legitimidade da ciência regulatória. Isto é, na medida em que
a prática de ciência regulatória diverge da epistemologia cívica dominante, ela também
fragiliza sua legitimidade. Na medida em que novas epistemologias cívicas não são
reconhecidas pelas instituições políticas, estas perdem sua capacidade de sintonizar-se
com as aspirações e valores de bem comum.
5. A CTNBio como foco ou fonte de controvérsia?
Se por um lado a CTNBio pode ser vista como o foco natural da controvérsia sobre
a regulação de transgênicos, uma vez que se trata do fórum onde as posições devem ser
confrontadas e debatidas, esta pesquisa sugere uma melhor reflexão sobre até que ponto a
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mesma pode ser, mais que um mecanismo gerador de consenso, uma fonte de
controvérsia. Em outras palavras, até que ponto o seu funcionamento e resultados podem
contribuir para o apaziguamento ou, pelo contrário, para o acirramento de controvérsias
sociotécnicas relacionadas com os transgênicos?
A análise acima para as primeiras decisões tomadas pela CTNBio após a sua
reformulação identificou um padrão de conflitos e tensões, embasado em duas questões
recorrentes. A primeira está relacionada com a incapacidade, ou impossibilidade, do
órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia em se afirmar enquanto órgão técnico e não
político. Ou seja, as dinâmicas que caracterizaram suas primeiras decisões e aprovações
de resoluções normativas acabaram por transparecer uma perspectiva de enviesamento
que, independentemente de sua verificação empírica, foi explorada por grupos diversos,
da sociedade civil ou do próprio governo, que contestam a sua legitimidade. A segunda
questão que também parece contribuir para minar a confiança pública na CTNBio é a sua
pouca preocupação com os valores de transparência e, sobretudo, de inclusão
democrática. Conforme se verificou, os primeiros momentos de atuação da comissão
parecem ter negligenciado a emergente demanda do público brasileiro por maior abertura
à participação em decisões de natureza técnica e regulatória. Isso parece estar relacionado
com a incapacidade de alguns dos membros da comissão em lidar com a perícia
interdisciplinar, e de não reconhecer a emergência de novas dinâmicas de contato entre o
saber leigo e científico. A desqualificação de posições científicas divergentes, presentes
dentro da própria comissão, parece ter reforçado a imagem de que, ao contrário de um
julgamento científico sobre biossegurança, as decisões foram tomadas a partir de um
julgamento moral sobre a biotecnologia.
6. Considerações finais
Este trabalho, que é parte de uma pesquisa mais ampla em andamento, oferece
subsídios para caracterizar um aparente conflito entre a epistemologia cívica “brasileira”
e a epistemologia performada nos procedimentos da CTNBio. De forma ainda hipotética,
podemos sugerir que a primeira, no presente momento histórico, está calcada nos
19
pressupostos de uma interação simbiótica entre a análise tecnocientífica criteriosa (e
portanto imparcial) e a inclusão democrática de vozes divergentes, cumprindo assim as
premissas do princípio da precaução. O próprio texto da lei 11.105/05, que foi aprovada
após intensos debates e disputas politicas, oferece uma perspectiva de governança calcada
nestes dois pontos. De fato, muitas das contestações à atuação da CTNBio evoca o não
cumprimento da lei, sobretudo no que concerne ao respeito ao princípio da precaução. Já
a epistemologia performada pela e na CTNBio, neste primeiro momento de sua
implantação, parece se fundamentar no uso ideológico da autoridade científica,
(Habermas, 1986[1968]), ignorando a complexa relação entre perícias distintas (Collins e
Evans, 2008), mas sobretudo a demanda por maior transparência e democratização do
debate técnico. O uso estratégico da demarcação científica (Gieryn, 1995) não parece ter
sido empregado de acordo com as aspirações de parte dos públicos interessados. Com a
desqualificação generalizante de toda oposição como não-científica, a CTNBio acaba por
desconstruir sua própria autoridade científica, na medida em que deixa margem para a
acusação de sua parcialidade no escrutínio de informações científicas.
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