História Não é Ciência
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História não é Ciência?
por Marcos André Pizzolatto
Sobre o autor*
Na atividade do historiador se imbricam problemas que, em
essência, questionam a própria cientificidade da prática historiográfica. Comumente
a subjetividade do pesquisador, a utilidade do conhecimento histórico, a fugacidade
do acontecimento e o limitado conceito de ciência constituem impedimentos à
classificação da História como ciência, restando-lhe ser reduzida, na visão de
determinados críticos, a mero discurso literário. O presente artigo não pretende
fazer apologia a História-ciência, antes sim uma elucidação dos argumentos da
promotoria e da defesa em relação ao réu: A historiografia.
Comecemos pela pertinente definição de História que já carrega
em si o cerne da discussão. A palavra história vem do grego ίστоρία, e era usada
pelos jônios no século VI a.C. para significar a busca de conhecimentos no sentido
mais amplo. Significa indagação, investigação e não narrativa. Não foi senão dois
séculos mais tarde que o historikos, o recitador de estórias, substituiu o historeon, o
que procura o conhecimento. Como nos esclarece Shotwell (1967, p.34):
"A história começou como um ramo da pesquisa
científica — quase a mesma coisa a que os atenienses chamaram
mais tarde de Filosofia. O próprio Heródoto foi tanto explorador
científico como recitador de narrativas, e a investigação de toda sua
vida foi historie no seu modo jônico de falar."
Assim para Shotwell (1967, p.34), “a história compreende duas
operações distintas, uma das quais, a investigação, está no campo da ciência,
enquanto a outra, a apresentação literária, está no campo da arte”.
A história moderna se propõe a responder duas questões básicas
“o que aconteceu” e “por que aconteceu?”. Para a primeira pergunta basta que se
reúnam os registros, as evidências, enfim, as provas objetivas. Já no segundo
questionamento nos deparamos com o fato de que “cada história é, em resumo,
uma explicação, e cada explicação é uma história”. Assim, analogicamente, em
nossas vidas cotidianas cada incidente é uma causa, e cada causa um incidente em
nossas biografias (SHOTWELL, 1967, p.8). O problema é que a história não é mera
sucessão de eventos, conforme Shotwell (1967, p.8-9), “é manifestação de vida e
por trás de cada acontecimento existe um esforço da mente e da vontade”.
Shotwell considera impossível, apesar dos esforços conjuntos das
disciplinas, chegar às causas finais ou primeiras. Somente Teólogos e Metafísicos se
“aventuram a tratar das causas e dos objetivos finais”, pois o “infinito está além da
experiência, e a experiência é o domínio da história”. Para o autor a função da
história é saber mais sobre as relações entre homens, situações e acontecimentos
(1967, p.9).
A Posição do Historiador e o Problema da Subjetividade
A respeito do papel interpretativo do pesquisador vale citar Jürgen
Habermas para quem existe uma distinção entre “aqueles que dizem simplesmente
como as coisas se passam (tal é, entre outras, a atitude do cientista) com a atitude
performativa daqueles que procuram compreender o que lhes é dito (tal é, entre
outras, a atitude dos intérpretes)” (HABERMAS, 1989, P.42). Para Habermas (1989,
P.44) o fato é que “compreender o que é dito exige participação e não mera
observação”, em outras palavras, o Historiador enquanto interprete da realidade,
não é imparcial, pois “juízos de valor se insinuam nos discurso que constata fatos”
(HABERMAS, 1989, P. 44). Ou conforme Foucault (2004, P.30), “os historiadores
procuram, na medida do possível, apagar o que pode revelar, em seu saber, o lugar
de onde eles olham, o momento em que eles estão, o partido que eles tomam — o
incontrolável de sua paixão”. Habermas conclui ser impossível a construção de
linguagens axiologicamente neutras no domínio das ciências sociais:
"Em suma, toda ciência que admite as objetivações
de significado como parte de seu domínio de objetos tem que se
ocupar das conseqüências metodológicas do papel de participante
assumido pelo intérprete, que não “dá” significado às coisas
observadas, mas que tem, sim, que explicitar o significado “dado” de
objetivações que só podem ser compreendidas a partir de processos
de comunicação. Essas conseqüências ameaçam justamente aquela
independência do contexto e aquela neutralidade axiológica que
parecem ser necessárias para a objetividade do saber teórico
(HABERMAS, 1989, p.44)."
Habermas (1989, p.45) vai além afirmando que os cientistas
sociais “renunciam tanto a pretensão de objetividade quanto a pretensão de um
saber explicativo”, conseqüentemente têm-se uma espécie de relativismo que
significa “que as distintas abordagens e orientações refletem unicamente distintas
orientações axiológicas”.
Sobre a pretensa imparcialidade do pesquisador, Beard (Apud
DRAY, 1969, p.37) afirma que “sejam quais forem os atos de purificação que um
historiador possa praticar, ele continuará humano, uma criatura de certo lugar,
tempo, circunstância, interesses, predileções, cultura”.
Conforme Ranke (Apud ELIAS, 2001, p.30), existe uma
sobreposição do contexto sobre o objeto, pois “a história está sempre sendo
reescrita... cada época, com sua orientação principal, apropria-se dela, impondo-lhe
seus pensamentos. Em seguida, o louvor e a censura são distribuídos. Assim, isso
vai até o ponto em que não mais é possível reconhecer a própria coisa . Nada mais
se pode fazer, neste caso, a não ser voltar a informação inicial. Mas será que a
estudariam sem o impulso do presente?... será possível uma história inteiramente
verdadeira.”
O problema, de acordo com Norbert Elias, não repousa sobre o
objeto pesquisado, mas sim sobre o resultado da pesquisa. “Aquilo sobre o que
escrevemos, o objeto de pesquisa, não é nem verdadeiro nem falso; apenas o que
se escreve a respeito dele, o resultado da pesquisa pode ser , verdadeiro ou falso”.
O autor acredita que as fontes originais de informação, são a única coisa confiável
“tudo o mais que os pesquisadores da história tem a oferecer são, por assim dizer,
interpretações que se diferenciam no decorrer das diferentes gerações” (ELIAS,
2001, p.30-31).
Já para Ranke (Apud ELIAS, 2001, p.31) a raiz do problema está na
interpretação dada pelo pesquisador. O fato de o historiador não se restringir a
relatar o que está nos documentos, pois o historiador “avalia o que encontra;
distribui luz e sombra de acordo com critérios próprios”. Se concordarmos que
“história e interpretação são essencialmente uma coisa só, se entendermos por
História tudo o que tem acontecido, incluindo matéria e mente, enquanto estas se
relacionem com a ação” (SHOTWELL, 1967, p.11), e se aceitarmos que a
interpretação compromete o resultado da pesquisa, a História encontra-se diante de
mais uma dificuldade.
Para William H. Dray (1969, p.39-41), entretanto, independente da
intenção do pesquisador em atribuir valor, “a própria matéria da História está
carregada de valor” e o historiador está “condenado, queira ou não queira, a
valorar a matéria de que fala”. Em verdade, quando lemos um texto Histórico e
encontramos expressões como vitória, batalha sangrenta, nazismo ou guerracada
um de nós constrói mentalmente um arcabouço significativo que dá sentido às
expressões. Seria possível escrever, por exemplo, sobre religião sem emitir juízos
de valor? Ou então contar a História do medo ou da piedade sem que se
tais objetos tenham para o pesquisador algum significado? Enfim, “pode o
historiador escrever sobre seja lá o que for se não tiver condições para reconhecer-
lhe a natureza; e como poderá ele apreender estes objetos de estudo sem atribuir-
lhes valor”?
Os objetivistas dirão que o historiador não deve julgar e sim
apenas compreender os acontecimentos. Por que então se privilegiam as
atrocidades, as guerras, a história das religiões e as revoltas político-sociais?
Justamente por constituírem-se em acontecimentos de grande carga valorativa.
Conforme conclui Dray (1969, p.42), “é fácil perceber porque se considera que a
valoração está logicamente implícita na matéria de que se ocupa o historiador”.
A crítica de Norbert Elias (2001, p.31-32), por sua vez, exemplifica
que o papel do historiador é o mesmo do homem que ergue sua casa a partir de
ruínas de épocas anteriores, fazendo-a no estilo de sua própria época. “Cada
geração seleciona ruínas do passado e, juntando-as de acordo com seus próprios
ideais e valores, faz delas casas características de seu tempo.”
É preciso concordar, no entanto, que excessiva confiança é
depositada sobre o papel interpretativo do historiador ao que Boutry chama de
“hipertrofia do historiador” (1998, p.66-69).
Segundo Daniel Milo “o espaço antes ocupado pelo sujeito histórico
parece agora ocupado pelo sujeito historiador” (Apud BOUTRY, 1998, p.66) que
pode “dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas:o leitor
confiará nele, como um bom romancista, e julgará que esses dez anos são vazios de
eventos” (VEYNE, 1995, p.18-19).
Para Philippe Boutry (1998 ,p.66) esta elevação de status do
pesquisador é o primeiro sinal de anomalia epistemológica da ciência histórica:
"A posição elevada conferida ao historiador na
produção de saber constitui o primeiro e sem dúvida o principal
sintoma da crise intelectual que o manifesto da história experimental
traz a tona."
Segundo Daniel Milo “Experimentar é violentar o objeto” (Apud
BOUTRY, 1998, p.66).
Para Hartog (1998, p.) “o bom historiador seria, justamente, o
homem que se apagasse diante dela (a história): não aquele que, a exemplo de
Michelet, leva-a a falar, sobretudo nos seus silêncios, mas aquele que a deixa falar,
simplesmente”.
Nas palavras de Aron (Apud BOUTRY 1998, p.68), “se alguém
estima, como o faz meu colega e amigo Michel Foucault, que é preciso, de uma vez
por todas, se livrar da mitologia do verdadeiro e do falso, o lógico imediatamente
depõe suas armas” levando a emergência crescente do sujeito-historiador que
emite discurso.
A postura relativista do historiador “repousa na idéia de que
existem, segundo épocas ou segmentos variados, esquemas conceptuais ou de
pensamento, intraduzíveis no idioma de outro esquema, e que, por conseguinte,
não há referente único nos discursos em questão” (ENGEL, 1998, p.115). Esta
posição, além de criticada pela filosofia contemporânea, desconsidera que, embora
de forma diferente, os discursos podem apontar para o mesmo referente. Engel
(1998, p.115) ilustra tal postura com um questionamento bastante didático:
“Quando Aristóteles falava da lua, designa por acaso algum astro diferente daquele
que nós falamos hoje?”
História : Uma Disciplina Humanista
A operação histórica consiste, após ter reunido, criticado e
dissecado o conjunto dos documentos disponíveis, em estabelecer encadeamentos
entre os diversos componentes do objeto estudado — de acordo com um método
adaptado a cada caso —e a construir um discurso atribuindo-lhes coerência e
sentido (BÉDARIDA, 1998, p.149).
Aliás, quando recorremos a um expert o que lhe pedimos senão
que “emita sua opinião sobre a base de dados objetiva, única fiadora de sua
credibilidade?” (BÉDARIDA, 1998, p.148).
Bédarida (1998, p.150) alerta para o fato de que ao analisarmos
eventos de grande porte e ele cita como exemplo o holocausto Judeu, “a história
deve ser o tão objetiva quanto possível — ainda que se trate neste caso de um voto
irrealizável”.
O que se procura primordialmente através do discurso, e
afortiori com a expertise do historiador, são os sinais por meio dos quais uma
sociedade se pensa, se exprime e se historiciza. Mas assim como objetividade não
se confunde com indiferença, a historicização não se confunde com o relativismo
absoluto à moda pós-moderna (Bédarida, 1998, p.151).
Bédarida (1998, p.151) afirma ainda que embora os conceitos base
do procedimento histórico como memória, testemunho, liberdade e representações,
sejam, em essência, relativos e parciais, “essas verdades contingentes e
instrumentais perturbam, sem dúvida, uma história frágil e falível, mas que se quer
acesso à verdade e busca de sentido”. O autor questiona se diante da crise da
objetividade histórica “um dos remédios não estaria numa reabilitação elevada e
firme do princípio de verdade?” (1998, p.151).
Devemos considerar, no entanto, como nos conta Martinez (2001,
p.41-42) que embora a “proposição genuína mostra e diz algo, tem sentido e
condições de verdade”, somente “existe um tipo peculiar de proposições” cuja
verdade e falsidade conhecemos sem necessidade de verificação porque “são
independentes da realidade”: A “tautologia é incondicionalmente verdadeira e a
contradição incondicionalmente falsa”. O que torna tais proposições “carentes de
sentido”, mas ainda assim, “não são (...) contra-sensos”. Certamente a
historiografia não está baseada em simples tautologias e contradições.
Então, na medida em que toda busca de verdade está ligada a
corpos de valores, existe uma conexão óbvia entre história e ética. Tanto mais
quanto o objeto histórico está fundamentalmente ligado à vida humana, seu
precípuo objeto histórico. Como questiona Bédarida (1998, p.151) “como poderia o
discurso histórico, observando o rigor e a sobriedade de praxe, permanecer
impessoal e gélido? Queira-se ou não, a história é, e deve continuar sendo, uma
disciplina humanista”.
Como nos afirma Hours (1979, p.87):
"Por outras palavras, a história, levada pelo
movimento geral de todas as disciplinas humanas, reconhece a
originalidade irredutível do homem em relação ao mundo que o
rodeia e a impossibilidade de o compreender doutra forma a não ser
de dentro, por esforço de imaginação e de sensibilidade. Fazer a
história duma época é, em suma, pôr-se no lugar daqueles que a
viveram."
A História como Ciência
De acordo com Paul Veyne (1995, p.18) “todo leitor dotado de
espírito crítico e para maior parte dos profissionais, um livro de História não é, na
realidade, o que aparenta ser, assim ele não trata do Império Romano, mas daquilo
que ainda podemos saber sobre esse império”.
Ainda de acordo com o autor o debate em tornou da cientificidade
histórica não é em vão, pois “ciência não é uma palavra sagrada, mas um termo
preciso, e a experiência mostra que a indiferença pela discussão sobre termos é,
frequentemente acompanhada por uma confusão de idéias sobre a própria coisa”.
No entanto, Veyne é incisivo ao afirmar que a história “não tem um método” que
possa servir para caracterizá-la como ciência, além de que “não explica coisa
alguma”, os historiadores “narram fatos reais que têm o homem como autor; a
história é um romance real” (VEYNE, 1995, p.7-8).
Para o positivista Burckhardt (Apud LOWITH, 1991, p.33), a história
“não foi uma ciência objetiva respeitante a fatos neutros, mas o registro de fatos
que uma época considera extraordinária noutra”.
Marrou (Apud HOURS, 1979, p.71) também afirma que “não existe
uma ciência histórica, mas uma série de pontos de vista divergentes e irredutíveis
sobre o passado”. É forçoso admitir, como nos diz Veyne (1995, p.25), que o objeto
histórico “escapa por entre os dedos” por sua subjetividade e que seu historicismo
é a “projeção de nossos valores e a resposta às perguntas que achamos por bem
fazer-lhe”.
Em verdade, o que está em debate é o próprio conceito de ciência
galileana, seu programa e seu ideal, como ilustremente definido por Castoriadis
(1997, p.202):
"O programa de um saber constituindo seu objeto
como processo em si, independente do sujeito, reconhecível num
referencial espaço-temporal válido para todos e privado de mistério,
determinável em categorias indiscutíveis e unívocas (identidade,
substância, causalidade), exprimível, enfim, numa linguagem
matemática de poder ilimitado (...)"
Castoriadis (1997, p.249) afirma ainda que a separação das
disciplinas ditas antropológicas torna-se um problema pois a própria “unidade do
objeto desafia imediatamente a dissecação científica” e ainda devemos nos
perguntar “se a distinção que fazemos entre disciplinas diferentes tem sentido para
sociedades outras que não a nossa”.
Dada a dimensão desconcertante dos argumentos detratores
parece-nos, conforme Lowith (1991, p.193), que “o problema da história não tem
resposta dentro de sua própria perspectiva. Os processos históricos como tal não
evidenciam a menor prova de um sentido total e derradeiro”.
O pragmatismo e certo endeusamento da prática reconhecida
como cientifica alçou às ciências ditas legítimas ou experimetais (química, física,
etc...) ao nível do inquestionável. Segundo Habermas em sua obra Técnica e ciência
como Ideologia (Apud AYRES, 1995), a racionalidade elevou as práticas científicas
ao status de voz legítima:
"Organizou-se toda uma racionalidade que, com
conseqüências práticas de modo algum negligenciáveis, foi
imprimindo às ciências uma forma metódica restrita e exclusivista,
que acabou por se tornar a única reconhecidamente capaz de
produzir um conhecimento objetivo do mundo. Ao mesmo tempo, o
que é mais relevante, esta racionalidade tem feito das ciências
algumas das mais respeitadas vozes na legitimação dos projetos
sociais constitutivos da modernidade."
Costuma-se, partindo desta pretensa legitimidade, desmerecer a
ciência histórica comparando-a com as demais ciências tradicionais, principalmente
as ditas naturais, como se estas já tivessem alcançado a sabedoria última:
"Em Física ou Química ampliamos nossas idéias
relativamente aos fenômenos, observando como eles decorrem,
quais suas afinidades, como se associam ou como reagem. Mas todas
estas propriedades são apenas diferentes aspectos da mesma coisa,
e nosso conhecimento dela é a soma total de nossas análises.
Ninguém pergunta o que é um elemento — exceto em termos de
outros elementos. Seu significado tem mudado, na medida que se
amplia nosso conhecimento, de um montão de lama para um
composto de elementos. (SHOTWELL, 1967, p.10)"
Os que negam a cientificidade da História se esquecem que as
ciências não compartilham procedimentos e espaços. Conforme nos
esclareceShotwell (1967, p.10):
"A interpretação de fenômenos físicos, portanto, é a
sua descrição em termos de suas propriedades mesmas. O mesmo
acontece com a História, mas em vez da descrição temos a narrativa.
Pois a História difere das ciências naturais neste fato fundamental:
enquanto as ciências naturais consideram os fenômenos do ponto de
vista do espaço, a História encara-os do ponto de vista do tempo."
Poderíamos inclusive utilizar Bergson para afirmar “que os
processos racionais de nosso intelecto não podem compreender a realidade” e esta
limitação da razão pertenceria a todas as ciências, sem exceção. Obviamente, a
essência desta afirmação de Bergson é que o pensamento não pode compreender a
vida em sua totalidade. “As ciências Matemáticas e Físicas são ciências no mais
completo sentido da palavra”, a vida, no entanto, extrapola as categorias da
compreensão. “As relações de espaço são quantitativas, e com elas o intelecto
pode lidar;” mas o tempo, elemento da ciência Histórica, “fornece mudanças
qualitativas que iludem eternamente o investigador”. Assim, a vida, “tão
completamente ligada ao tempo, escapa assim a explicação, porque está sempre a
se tornar diferente” (Apud SHOTWELL, 1967, p.145). Mais que uma crítica a
arrogância dos cientistas físicos e matemáticos, este parágrafo serve para valorizar
a atividade hercúlea do historiador que se vê diante de um objeto não explícito e
em um constante vir a ser.
Para Fustel de Coulanges (Apud HOURS, 1979, p.60-61) não há
dúvidas sobre a cientificidade da História:
"A História, escreve, é uma ciência; ela não imagina,
ela vê...ela consiste como qualquer outra ciência em constatar fatos,
em analisa-los, em aproximá-los, em descobrir-lhes o
encadeamento...o historiador...procura e atinge os fatos pela
observação minuciosa dos textos como o químico encontra os seus
em experiências cuidadosamente conduzidas."
Devemos salientar, no entanto, que assim como o biólogo tem a
célula que vai ao microscópio e o químico tem o tubo de ensaio onde reproduz
isoladamente a experiência, para Fustel a história tinha também seu objeto
definido: “A História faz-se com documentos” (Apud HOURS, 1979, p.61).
Certamente a autoridade de Fustel como defensor da história-ciência fica
comprometida ao ignorar as demais fontes históricas e ele mesmo, na afamada
obra, Cidade Antiga, antes de ser cientista, “mostra-se primeiramente como
grande letrado” (HOURS, 1979, p.62).
O Engano do Fato e da Experimentação
Fustel acreditava também que os “fatos existem por eles próprios,
fora de nós e que nada há mais simples do que descrevê-los” (HOURS, 1979, p.62).
Pois é justamente Hours (1979, p.73) quem nos dá a medida da impossibilidade da
história tratar o fato:
"Sabemos hoje que no mundo visto pela História não
existem fatos se nós entendermos por isso uma série de fenômenos
ligados estreitamente uns aos outros na sua sucessão, a ponto de
formar uma unidade inseparável para o nosso espírito e que nós
pudéssemos isolar facilmente pelo pensamento do estado do mundo
no qual se produziram. Talvez tais fatos existam na física onde nós
podemos, com efeitos, discernir os conjuntos dos fenômenos tão bem
ligados que nos é possível reproduzi-los idênticos a eles próprios, não
importa em que momento do tempo e em que o nome de fatos possa
convir a tais reuniões. Não há nada de semelhante e História, na
medida em que ela é para nós o conhecimento do passado humano."
Em História não há experimentação, pois “não se pode reproduzir
o acontecimento que se quer estudar porque não se pode isolá-lo de tudo que o
rodeia” e não se pode esperar que o evento se repita para traçar comparações
porque “não há repetição por causa da irreversibilidade da duração, há, pelo
contrário, uma renovação incessante” (HOURS, 1979, p.74).
É novamente Hours (1979, p.90) quem esclarece a dimensão do
trabalho do pesquisador histórico:
"Querendo conhecer o passado e não podendo trazê-
lo para a vida, deseja pelo menos ter uma representação dele e quer
que ela seja o mais próxima possível da inacessível realidade. Essa
representação é um conjunto. Nela vêm tomar lugar e comporem-se,
pouco a pouco, os múltiplos pormenores que lhe trazem as suas
fontes. E é incompleta, evidentemente, porque, dos inúmeros
acontecimentos que num dado momento foram a vida da
humanidade, só uma parte ínfima chega até nós nos documentos de
que dispomos e, todavia, essa parte ínfima excede muitas vezes a
possibilidade que o historiador teria de os conhecer. Ela não pode
reproduzir na sua complexidade a realidade de outrora. Um jornal
diário não consegue, senão com grande esforço, dar-nos uma pálida
idéia da realidade atual e a coleção dos nossos jornais não seria em
nenhum grau essa representação que o historiador procura."
A História não pode, portanto, dar-nos uma explicação do todo,
pois ele não é acessível, mas sim de partes deste todo e tais partes guardariam
traços essenciais, reconhecíveis e, por sua fugacidade, perigosamente singulares:
"Há sem dúvida entre situações políticas ou sociais
que o decurso dos acontecimentos nos apresenta numerosas
analogias, mas são sempre parciais ou fugitivas. Nada mais perigoso
que prolongá-las ou generalizá-las e o cuidado que se tenha em
utilizá-las é a grande qualidade dos homens de ação.(HOURS, 1979,
p.111)"
Nas observações de Paul Veyne essa hierarquia dos fatos
estabelecida pela pretensamente pelo historiador é um engano porque os fatos em
si não possuem uma grandeza absoluta:
"No interior da clareira que as concepções ou as
convenções de cada época recortam no campo da historicidade, não
existe hierarquia constante entre as províncias (...) Quando muito,
pode-se pensar que certos fatos são mais importantes que outros,
mas mesmo essa importância depende, totalmente, dos critérios
escolhidos por cada historiador e não tem uma grandeza absoluta (...)
permanece a impressão de que a guerra de 1914 é, ainda assim, um
acontecimento mais importante do que o incêndio do Bazar da
Caridade (...) a Guerra é História o resto é notícia de jornal. Isso não
passa de ilusão, que resulta de termos confundindo a série de cada
um desses acontecimentos e a sua dimensão relativa na série
(VEYNE, 1995, p.20)."
De fato, se a série ou campo estudado for a História da
Criminalidade, o incêndio no Bazar de Caridade recebe elevada importância, ainda
assim, para a História Geral a Guerra parece ser de suma importância e o incêndio
algo sequer mencionado.
Para Furet o problema é que “em certo sentido, todos os dados
históricos (tirando aqueles que constituem os vestígios da vida material do
homem), são subjetivos” e ainda porque existem “conceitos que não têm respostas
claras” e mesmo as questões que, em princípio, tem respostas claras, no entanto,
não podem ser resolvidas por falta de dados, “quer pela sua natureza — seja pelo
caráter ambíguo dos indicadores ou pelo fato de estes não serem suscetíveis de
procedimentos de análise rigorosos”. Para o autor a História centra seus resultados
na interpretação do pesquisador que por definição “consiste em ultrapassar o nível
dos dados descritos para o relacionar com outros níveis da realidade histórica”,
exigindo desta forma dados que nem sempre estão disponíveis e nem forçosamente
claros isso “geralmente acarreta hipóteses não verificadas ou não verificáveis”.
Assim, conforme Furet, diante da utilização de modernos e rigorosos procedimentos
científicos de demonstração, o problema, em verdade, não é saber se a História
pode tornar-se ciência: “dada a indeterminação do seu objeto, a resposta a esta
pergunta é indubitavelmente negativa”. O verdadeiro problema “está em conhecer
os limites no interior dos quais esses procedimentos podem ser úteis a uma
disciplina que fundamentalmente não é cientifica” (FURET, [s.d.], p.94-98).
Legitimação do Conhecimento Histórico
Poderíamos simplificar o título acima com a célebre introdução de
Marc Bloch em Apologia da História: para que serve a História? Conforme nos
afirma José Carlos Reis (1996 ,p.88) “para a sociedade moderna, um conhecimento
é valido por sua utilidade. Portanto a História, para valer seu investimento, teria
necessidade de servir à previsão e à ação”.
De que maneira a História pode ajudar os homens a viver melhor?
O simples conhecimento do passado parece inútil, pois o atual não repete o
acontecido.
Para Reis (1996, p.89) a história estabelece um diálogo entre os
homens do passado e os do presente e esta seria a incalculável utilidade do
conhecimento histórico. “Este diálogo entre presente e passado aumenta, no
presente, o número de participantes no debate e das capacidades inventivas, pela
introdução dos homens e das criações passadas”. Portanto, “a História impede que
o atual seja vivido solitária e silenciosamente em estado de amnésia”.
Exceto o acaso, e mesmo ele está sujeito a condições anteriores,
não existem invenções humanas. Todas são frutos de conhecimento acumulado, de
experiências passadas e, no máximo, são revoluções estruturais que, por definição,
também são resultado do acúmulo de condições. Imaginemos que tudo que a
humanidade constrói fosse esquecido na manhã seguinte? Este seria o mundo sem
História.
Bloch considera que o conhecimento Histórico é legítimo porque,
entre outras coisas, o “conhecimento histórico é um prazer, o prazer do
conhecimento do outro, a curiosidade de conhecer situações que ele viveu, e que
conhecer por conhecer o que o rodeia e a ele mesmo”. Desta posição de Bloch,
discorda Paul Veyne. Para este a história não pode ser uma “atividade intelectual
gratuita”, pois “é uma atividade de conhecimento e não uma arte de viver” (Apud
REIS, 1996, p.89-91).
O que se pode concluir, apesar das divergências entre os teóricos,
é que a História é um conhecimento legítimo e possui utilidade.
Legítimo porque “o homem é um objeto de conhecimento como
qualquer outro, que exige uma problematização, hipóteses, conceitos, documentos,
reflexão e pesquisa”. E se o homem existe e se sua existência se faz no tempo, “um
conhecimento racional deste objeto deveria se constituir: é a História” (REIS, 1996,
p.92).
Possui utilidade porque permite o debate “entre os homens
passados, cuja presença se torna viva, e os homens presentes, que se sentem
menos solitários e desprotegidos”. Este diálogo permite aos homens do presente
“uma interlocução, um conforto, uma melhor localização de si no tempo, o sentido
específico da diferença, da alteridade e da identidade” (REIS, 1996, p.92).
Referências Bibliográficas
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