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DANIEL WUNDER HACHEM
TUTELA ADMINISTRATIVA EFETIVA
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS:
Por uma implementao espontnea, integral e igualitria
CURITIBA
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
SETOR DE CINCIAS JURDICAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
TUTELA ADMINISTRATIVA EFETIVA
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS:
Por uma implementao espontnea, integral e igualitria
Tese apresentada como requisito parcial
obteno do ttulo de Doutor em Direito do
Estado, ao Programa de Ps-Graduao em
Direito, Setor de Cincias Jurdicas,
Universidade Federal do Paran.
Orientador: Prof. Dr. Titular Romeu Felipe
Bacellar Filho
DANIEL WUNDER HACHEM
CURITIBA
2014
Dedico esta tese a dois grandes juristas paranaenses,
com quem aprendi que a preocupao que move o verdadeiro mestre
no brilhar fulgurante como um astro solitrio,
mas sim criar solidariamente uma radiante constelao.
Ao Professor ROMEU FELIPE BACELLAR FILHO,
modelo de grande mestre, fonte inesgotvel de inspirao e generosidade
e paradigma de ser humano.
Ao Professor EMERSON GABARDO
exemplo de pesquisador, crtico interlocutor e amigo para todas as horas.
RESUMO
A presente investigao parte do seguinte problema: aps o advento da Constituio de 1988, a
baixa efetividade dos direitos fundamentais sociais no Brasil suscitou, como reao da doutrina e
da jurisprudncia, uma centralizao excessiva do debate em torno do Poder Judicirio como
soluo para a realizao de tais direitos, notadamente pela via de aes judiciais individuais.
Contudo, a atuao jurisdicional, embora muitas vezes seja de fato a nica alternativa, tende a
privilegiar de forma desigual parcela dos cidados, sobretudo aqueles que ostentam maiores
nveis de informao e renda para lograr acesso ao Poder Judicirio. Violenta-se, com isso, a
integridade constitucional do princpio da igualdade, subvertendo a principal razo que justifica a
proteo dos direitos sociais pelas Constituies: a reduo das desigualdades sociais. So
lanadas, ento, duas hipteses. A primeira a de que muitos dos problemas surgidos no campo
das atividades administrativas necessrias implementao espontnea, integral e igualitria dos
direitos fundamentais sociais poderiam ser amenizados com a reviso ou relativizao de alguns
dogmas criados pela cincia do Direito Administrativo clssico, desenvolvido e consolidado no
sculo XIX, que no mais coadunam com o panorama constitucional do Estado Social e
Democrtico contemporneo. A segunda hiptese a de que, de um lado, a dogmtica do Direito
Administrativo ainda no incorporou adequadamente trs categorias centrais da dogmtica
contempornea dos direitos fundamentais, que se afiguram tendentes a relativizar alguns
axiomas dessa disciplina jurdica: (i) a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos
fundamentais; (ii) a dupla dimenso subjetiva e objetiva desses direitos; (iii) a
multifuncionalidade dos direitos fundamentais; de outro lado, a dogmtica do Direito
Constitucional no explora suficientemente os institutos do Direito Administrativo como
mecanismos de implementao dos direitos fundamentais sociais, focando-se sobretudo nas
ferramentas jurisdicionais disciplinadas pelo Direito Processual Civil. A proposta apresentada
para enfrentar tal problemtica a partir dessas duas hipteses consiste no reconhecimento, no
ordenamento jurdico brasileiro, do direito fundamental tutela administrativa efetiva,
consagrado na Carta Iberoamericana dos Direitos e Deveres do Cidado em Relao com a
Administrao Pblica aprovada em 10 de outubro de 2013 pelo Centro Latinoamericano de
Administracin para el Desarrollo. Defende-se que tal direito pode ser deduzido de uma
interpretao sistemtica da ordem constitucional ptria (art. 5, 1 e 2 e art. 37, caput) e deve
ser compreendido como o direito do cidado: (1) de receber da Administrao Pblica, em prazo
razovel, uma tutela efetiva espontnea, integral e igualitria dos seus direitos; (2) que
autoriza a adoo de todas as tcnicas e procedimentos administrativos adequados para tanto,
mesmo que para atender integralmente s determinaes do bloco de constitucionalidade seja
necessrio, excepcionalmente, agir na falta de lei (praeter legem) ou contrariamente lei (contra
legem); (3) e que probe o Estado de atuar, administrativa ou judicialmente, em prol de seus
interesses secundrios, quando estes forem descoincidentes com os direitos fundamentais. A
partir desses elementos, a tese defendida a de que a Constituio Federal do 1988 confere ao
cidado o direito fundamental tutela administrativa efetiva, o qual: (i) impe Administrao
Pblica o dever prioritrio de criar condies materiais e jurdicas para satisfazer os direitos
fundamentais sociais em sua integralidade, para alm do mnimo existencial, ainda que para
tanto seja necessria sua atuao praeter legem ou contra legem para no incorrer em omisses
inconstitucionais que obstem o desenvolvimento social; e (ii) obriga-a a atender de forma
igualitria todos os titulares de idnticas posies subjetivas jusfundamentais, adotando de ofcio
medidas aptas a universalizar prestaes concedidas individualmente por requerimentos
administrativos ou condenaes judiciais, sob pena de responsabilizao estatal objetiva
individual ou coletiva, a depender da natureza da pretenso jurdica em questo.
Palavras-chave: tutela administrativa efetiva; direitos fundamentais sociais; aplicabilidade
imediata; multifuncionalidade dos direitos fundamentais; dimenso objetiva dos direitos
fundamentais; dimenso subjetiva dos direitos fundamentais.
ABSTRACT
The present investigation focuses on the following problem: after the advent of Brazilian
Constitution of 1988, the low effectiveness of fundamental social rights in Brazil generated, as a
reaction of the doctrine and jurisprudence, an excessive centralization of the debate on the
Judiciary as a solution for the achievement of such rights, notably through individual lawsuits.
However, the court action, although it is often indeed the only alternative, tends to privilege an
unequally portion of the citizens, especially those who have higher levels of income and
information to get access to the Judiciary. This situation violates the constitutional integrity of
the principle of equality, subverting the main justification for the protection of social rights in the
Constitutions: the reduction of social inequalities. Two hypotheses are then released. The first
one is that many of the problems arising in the field of administrative activities necessary for the
spontaneous, full and equal implementation of fundamental social rights could be reduced with a
review or relativization of some dogmas created by the science of classic Administrative Law,
developed and consolidated in nineteenth century, which are no longer suitable to the
constitutional background of the contemporary Social and Democratic State. The second
hypothesis is that, on one hand, the doctrine of Administrative Law has not adequately
incorporated three core categories of the contemporary theory of fundamental rights, which seem
to be able of relativize some axioms of this legal discipline: (i) the immediate applicability of the
norms that define fundamental rights; (ii) the double dimension subjective and objective of
these rights; (iii) the multifunctionality of fundamental rights; on the other hand, the doctrine of
the Constitutional Law explores insufficiently the institutes of Administrative Law as
mechanisms for the implementation of fundamental social rights, focusing mainly on
jurisdictional tools regulated by Civil Procedure. The proposal presented to face such issues
based on these two hypotheses is the recognition, in Brazilian Law, of the fundamental right to
an effective administrative protection, enunciated in the Iberoamerican Charter of Rights and
Duties of Citizens in Relation to the Public Administration approved on October 10, 2013 by the
Centro Latinoamericano de Administracin para el Desarrollo. This work defends that such
right can be derived from a systematic interpretation of the Brazilian constitutional order (article
5, 1 and 2 and article 37, caput) and must be understood as the right of the citizens: (1) to
receive from the Public Administration, within a reasonable time, effective protection
spontaneous, full and equal of their rights; (2) which authorizes the adoption of all techniques
and administrative procedures adequated to achieve this objective, even if to fully comply with
the determinations of the constitutionality block it turns out necessary, in exceptional
circumstances, to act in the absence of law (praeter legem) or against the law (contra legem); (3)
and that prohibits the State from acting, administratively or judicially, in the seek of its side
interests when they are opposed to fundamental rights. From these elements, the thesis defended
is that the Federal Constitution of 1988 confers to the citizen the fundamental right to an
effective administrative protection, which: (i) imposes to the Public Administration the primary
duty to create material and legal conditions to satisfy fundamental social rights in its entirety,
surpassing the existential minimum, even if to do so it is necessary to act praeter legem or contra
legem in order to do not incur unconstitutional omissions that obstacle social development; and
(ii) compels it to serve equally all holders of identical jusfundamental subjective positions,
spontaneously adopting administrative measures capable of universalizing benefits provided
individually by administrative requests or judicial orders, under penalty of objective State
liability, individual or collective, depending on the nature of the juridical position in question.
Keywords: effective administrative protection; fundamental social rights; immediate
applicability; multifunctionality of fundamental rights; objective dimension of fundamental
rights; subjective dimension of fundamental rights.
SUMRIO
PARTE I A COMPLEXIDADE JURDICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
SOCIAIS: EM BUSCA DE UMA LEITURA ADEQUADA CONSTITUIO DE
1988 ......................................................................................................................................... 10
CAPTULO 1 AS DEFICINCIAS DOS ATUAIS DISCURSOS SOBRE A EXIGIBILIDADE
DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS PERANTE OS PODERES PBLICOS 12
1.1. A falta de percepo quanto natureza jurdica complexa dos direitos fundamentais no
Estado Social e Democrtico de Direito: uma herana da fantasia das geraes de direitos 13
1.1.1. A inadequao da transposio simplista das noes de direito subjetivo privatista e de
direito pblico subjetivo publicista do sculo XIX .................................................................. 16 1.1.2. A complexidade jurdica da categoria direitos fundamentais e uma confuso elementar
conducente a equvocos: a distino entre direitos fundamentais e pretenses jurdicas
jusfundamentais .......................................................................................................................... 30
1.2. O maniquesmo do debate quanto exigibilidade dos direitos fundamentais sociais pela via
judicial: anlise das tendncias no Direito Pblico brasileiro ...................................................... 40
1.2.1. As deficincias do discurso do passivismo judicial subserviente: obstculo ao
desenvolvimento social e efetivao constitucional .................................................................. 41 1.2.2. Os problemas do discurso do ativismo judicial desenfreado: o Judicirio como porta das
esperanas inviabiliza o desenvolvimento igualitrio ............................................................... 48
1.3. O silncio da doutrina quanto ao contedo dos deveres jurdicos da Administrao Pblica
em matria de direitos fundamentais sociais .................................................................................. 54
1.3.1. A constitucionalizao do Direito Administrativo insuficiente: preciso tambm
administrativizar o Direito Constitucional................................................................................... 56 1.3.2. A Administrao Pblica deve garantir o mnimo existencial ou a integralidade dos
direitos fundamentais sociais? ..................................................................................................... 61
CAPTULO 2 DESENVOLVIMENTO E IGUALDADE COMO FUNDAMENTOS PARA A
EXTENSO DA JUSFUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS PARA ALM DO
MNIMO EXISTENCIAL ....................................................................................................................... 66
2.1. O regime jurdico jusfundamental dos direitos sociais na Constituio brasileira de 1988 66
2.1.1. As distintas concepes a respeito do reconhecimento dos direitos sociais como espcie de
direitos fundamentais ................................................................................................................... 70 2.1.2. A posio adotada: direitos sociais como direitos integralmente fundamentais ............... 80
2.2. O mnimo existencial como piso mnimo e no como teto mximo dos direitos
fundamentais sociais: exigncia de um desenvolvimento social igualitrio ................................. 86
2.2.1. Precises tericas acerca do mnimo existencial: contedo, forma de aplicao e
finalidade no campo dos direitos sociais ..................................................................................... 87 2.2.2. Administrao Pblica e cidado em uma dana das cadeiras: para alcanar a igualdade
de posies, a atuao administrativa deve superar o mnimo existencial ................................ 107
2.3. Do desenvolvimento como liberdade ao desenvolvimento como igualdade: consequncias
para a exigibilidade dos direitos fundamentais sociais................................................................ 117
2.3.1. Um conceito de desenvolvimento constitucionalmente adequado: da perspectiva
econmica concepo jurdica ................................................................................................ 118 2.3.2. Repercusses do dever constitucional de promoo do desenvolvimento igualitrio em
matria de direitos fundamentais sociais ................................................................................... 122
CAPTULO 3 DESVENDANDO AS OBSCURIDADES ACERCA DA APLICABILIDADE
IMEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NA CONSTITUIO BRASILEIRA
DE 1988 ................................................................................................................................................... 129
3.1. A multifuncionalidade dos direitos fundamentais: por uma efetiva unicidade de tratamento
jurdico dos direitos de liberdade e dos direitos sociais ...................................................... 129
3.1.1. Direitos fundamentais como feixes de posies jusfundamentais (direito fundamental
como um todo) .......................................................................................................................... 130 3.1.2. A aplicabilidade imediata dos direitos de liberdade e direitos sociais
rigorosamente a mesma: as variaes dizem respeito s diversas espcies de funes exercidas
por cada direito .......................................................................................................................... 133
3.2. A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais sociais no se limita ao mnimo
existencial ........................................................................................................................................ 144
3.2.1. Crtica das teorias atuais quanto aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais
sociais ......................................................................................................................................... 145 3.2.2. A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais sociais na perspectiva subjetiva
individual: uma proposta de explicao detalhada ................................................................... 150
CAPTULO 4 O DUPLO CARTER (INDIVIDUAL E TRANSINDIVIDUAL) DA
TITULARIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS .................................................. 157
4.1. A dimenso objetiva dos direitos fundamentais como faceta transindividual inerente a
todos eles .......................................................................................................................................... 160
4.1.1. Da dimenso subjetiva perspectiva objetiva dos direitos fundamentais: identificao de
efeitos jurdicos relevantes ......................................................................................................... 161 4.1.2. A transindividualidade como caracterstica comum a todos os direitos fundamentais e a
possibilidade de ressubjetivizao da dimenso objetiva .......................................................... 175
4.2. A impossibilidade de se atribuir genericamente aos direitos fundamentais as titularidades
estanques previstas nas categorias tradicionais da legislao processual brasileira ................ 183
4.2.1. A distino entre direitos individuais, difusos, coletivos e individuais homogneos no
Direito positivo brasileiro e suas respectivas formas de tutela ................................................. 184 4.2.2. Crtica da classificao tradicional brasileira em matria de direitos fundamentais: todos
eles ostentam dupla dimenso (individual e transindividual) .................................................... 198
PARTE II DIREITO TUTELA ADMINISTRATIVA EFETIVA E OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS SOCIAIS ............................................................................................. 208
CAPTULO 5 O DESCOMPASSO ENTRE O DIREITO ADMINISTRATIVO E AS
TRANSFORMAES CONSTITUCIONAIS EM MATRIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS:
DA AO ESTATAL OFENSIVA OMISSO ADMINISTRATIVA TRANSGRESSORA ....... 209
5.1. Administrao contida pelas amarras da lei: o Direito Administrativo como escudo
protetor das liberdades individuais ............................................................................................... 213
5.1.1. A ao administrativa como violao aos direitos fundamentais e o efeito limitador da lei
liberal ......................................................................................................................................... 215 5.1.2. O Direito Administrativo construdo sob a gide de um sistema jurisdicional de garantias
de carter liberal-subjetivista-individualista ............................................................................. 222
5.2. Administrao impulsionada pelas ordens da Constituio: o Direito Administrativo como
arma propulsora das aes administrativas sociais ..................................................................... 233
5.2.1. A omisso administrativa como ofensa aos direitos fundamentais e o efeito impulsionador
da Constituio social ................................................................................................................ 235
5.2.2. Inadequaes do Direito Administrativo clssico e a necessidade de um modelo que
implemente a dimenso objetiva dos direitos fundamentais (para alm da perspectiva individual)
.................................................................................................................................................... 247
CAPTULO 6 TUTELA ADMINISTRATIVA EFETIVA: A ADMINISTRAO PBLICA
COMO DESTINATRIA DA APLICABILIDADE IMEDIATA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS ................................................................................................................................. 261
6.1. Fundamentao jurdica do direito tutela administrativa efetiva .................................... 263
6.1.1. Elementos para a formao de um conceito: direito boa Administrao Pblica, direito
tutela judicial efetiva e reconhecimento jurisprudencial argentino ........................................ 263 6.1.2. Uma proposta conceitual de direito tutela administrativa efetiva e seu embasamento
normativo no bloco de constitucionalidade brasileiro ............................................................... 288
6.2. Relevncia prtica e consequncias jurdicas do direito tutela administrativa efetiva .. 298
6.2.1. A pr-atividade administrativa e seu papel preventivo: dever de promoo espontnea e
integral dos direitos fundamentais, pela Administrao Pblica, para alm da lei .................. 299 6.2.2. A proibio de persecuo, pela Administrao Pblica e pela advocacia de Estado, de
interesses secundrios contrrios aos direitos fundamentais: fundamento para uma atuao
destemida dos agentes pblicos em favor da cidadania ............................................................. 306
CAPTULO 7 A VINCULAO DIRETA DA ADMINISTRAO PBLICA AOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS: EFEITOS JURDICOS DO DIREITO TUTELA ADMINISTRATIVA
EFETIVA ................................................................................................................................................ 321
7.1. Efeitos negativos: proibies ao administrativa decorrentes da incidncia direta dos
direitos fundamentais ..................................................................................................................... 328
7.1.1. Vedao de atuao contrria ao contedo expresso ou implcito dos direitos
fundamentais contido no bloco de constitucionalidade (para alm das previses legais) ........ 329 7.1.2. Ao administrativa contra legem: recusa de aplicao de lei atentatria aos direitos
fundamentais .............................................................................................................................. 338
7.2. Efeitos positivos: imposies de atuao administrativa derivadas da aplicabilidade
imediata dos direitos fundamentais .............................................................................................. 405
7.2.1. Reduo da discricionariedade administrativa em matria de direitos fundamentais:
preenchimento dos espaos de vazio normativo pela eficcia jurdica da dimenso objetiva .. 406 7.2.2. Atuao administrativa praeter legem: dever de realizao dos direitos fundamentais
independentemente de regulamentao legislativa .................................................................... 423
CAPTULO 8 IMPACTOS DO DIREITO TUTELA ADMINISTRATIVA EFETIVA (EM
MATRIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS) SOBRE ALGUNS INSTITUTOS DO
DIREITO ADMINISTRATIVO ........................................................................................................... 443
8.1. Produo de atos jurdicos para a tutela administrativa efetiva dos direitos fundamentais
sociais ............................................................................................................................................... 446
8.1.1. Direito ao devido processo administrativo: dever de decidir em prazo razovel vs. silncio
da Administrao e dever de respeito aos precedentes administrativos e judiciais favorveis ao
cidado ....................................................................................................................................... 446 8.1.2. Direito regulamentao das normas veiculadoras de direitos fundamentais:
especificao normativa do contedo de direitos (e deveres administrativos correlatos) e
universalizao de prestaes concedidas individualmente ...................................................... 483
8.2. Prestaes fticas e ferramentas administrativas de maximizao da tutela dos direitos
fundamentais sociais ....................................................................................................................... 494
8.2.1. Direito ao servio pblico adequado: repensando a universalidade do acesso luz da
igualdade material...................................................................................................................... 495 8.2.2. Direito implementao de polticas pblicas: aes de maximizao da tutela dos
direitos sociais e a proibio de proteo insuficiente .............................................................. 519
8.3. A reparao dos danos causados por omisso ofensiva tutela administrativa efetiva dos
direitos fundamentais sociais ......................................................................................................... 532
8.3.1. A desnecessidade de comprovao de culpa da Administrao para gerar a sua
responsabilidade por omisso ou ineficincia: uma proposta de releitura da teoria da faute du
service ...................................................................................................................................... 532 8.3.2. Elementos configuradores da responsabilidade objetiva do Estado por omisso ou
ineficincia na satisfao dos direitos fundamentais sociais ..................................................... 545
CONCLUSO ..................................................................................................................... 553
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................................................. 555
1
INTRODUO
Nos ltimos anos, o Estado brasileiro tem apresentado, com sutis oscilaes, um
significativo ndice de crescimento econmico. Situa-se atualmente na 7 posio entre as
economias mundiais, em virtude de seu elevado PIB nominal, que em 2012 alcanou a casa dos
US$ 2,396 trilhes.1 Isso no significa, no entanto, que o pas tenha alcanado um alto nvel de
desenvolvimento. A aferio desse fator, que anteriormente se limitava a levar em conta
indicadores econmicos, atualmente calculada por meio do ndice de desenvolvimento humano
(IDH), que alm da renda engloba tambm indicadores sociais (educao e longevidade,
diretamente relacionada sade). Nesse ponto, o Brasil encontra-se na 85 posio, entre os 186
Estados examinados pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).2
A explicao para esse distanciamento consiste na grave crise de distribuio,
demonstrada pelo fato de o Brasil ser um dos pases dotado de maior desnvel entre os mais ricos
e os mais pobres da populao, situando-se entre os 12 pases mais desiguais.3 Ainda que na
ltima dcada tenha havido reiteradas quedas dos ndices de desigualdade de renda no pas,
informaes do Censo 2010 demonstram que os 10% mais ricos no Pas tm renda mdia mensal
trinta e nove vezes maior que a dos 10% mais pobres. Para que estes consigam reunir a renda
mdia mensal daqueles (R$5.345,22), teriam que juntar a sua remunerao mensal total
(R$137,06) durante trs anos e trs meses.4
Essa contradio entre a expressiva riqueza econmica e a drstica disparidade entre as
posies sociais mais privilegiadas e as menos elevadas revela-se sintomtica ao se verificar o
baixo ndice de satisfao dos direitos fundamentais sociais dos cidados brasileiros. Embora o
sistema constitucional ptrio tenha assegurado expressamente direitos como sade, educao,
alimentao, moradia, assistncia aos desamparados, previdncia social, entre outros, ainda
persiste um flagrante dficit entre a previso normativa e sua efetivao na realidade prtica.
Alguns exemplos concretos prestam-se a evidenciar a afirmao.
A Constituio Federal, desde a sua promulgao em 1988, garante como direito
fundamental o acesso gratuito ao ensino fundamental, em seus arts. 6 e 208, I e 1. Contudo, no
ano de 2006 aps quase vinte anos de vigncia da Lei Fundamental a taxa de escolarizao
dos brasileiros de 18 a 24 anos de idade no chegava a 32%.5 Disso se pode inferir que inmeros
brasileiros no tiveram acesso educao bsica, constitucionalmente garantida, por conta da
inao do Estado. O mesmo ocorre em relao sade. Atualmente, a taxa brasileira de
1 Dados divulgados pelo Fundo Monetrio Internacional, consultados no stio:
. Acesso em 25 abr. 2013. 2 PROGRAMA DAS NAES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Resumo: Relatrio do
Desenvolvimento Humano 2013 A Ascenso do Sul: Progresso Humano num Mundo Diversificado.
Washington DC: Communications Development Incorporated, 2013. p. 17. Disponvel em:
. Acesso em 25 abr. 2013. 3 Dado extrado do site: . Acesso em 15 jan. 2013. 4 As informaes foram colhidas no site: . Acesso
em 15 jan. 2013. 5 IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenao de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de
Domiclios 2005-2006. Disponvel em:
. Acesso
em 06 ago. 2008.
http://www.pnud.org.br/arquivos/rdh-2013-resumo.pdf
2
mortalidade infantil (crianas entre 0 e 5 anos) situa-se em 19,88 para cada mil nascimentos. A
cifra pode parecer um avano, se comparada com a taxa de 1990: 52,04 a cada mil nascimentos.
Sucede que o Estado brasileiro situa-se na 90 posio no ranking que avalia a mortalidade
infantil em diversas naes, ficando atrs de vrios pases latino-americanos, como Cuba (taxa
de 5,25), Chile (6,48), Argentina (12,8) e Colmbia (15,3), e significativamente abaixo de
naes como Islndia (2,6) e Sucia (2,7).6
A baixa efetividade dos direitos fundamentais sociais levou a doutrina brasileira a
buscar, na dogmtica constitucional, instrumentos jurdicos para assegurar a sua realizao
ftica. A afirmao da plena e integral normatividade da Constituio, notadamente aps o
advento da nova ordem constitucional de 1988, produziu efeitos prticos notveis nessa seara.
Com apoio no art. 5, 1 da Lei Maior, que estabelece textualmente a aplicabilidade imediata
das normas veiculadoras de direitos e garantias fundamentais, e no art. 5, XXXV, que prev a
inafastabilidade do Poder Judicirio para apreciar leso ou ameaa a direito, passou-se a
sustentar a possibilidade de se reivindicar judicialmente a satisfao de tais direitos pela via
individual, nos casos de omisso ou atuao insuficiente da Administrao Pblica.
A jurisprudncia acompanhou, em boa medida, as proposies nascidas no mbito
doutrinrio. Especialmente em matria de sade, os juzes passaram cada vez mais a conceder
prestaes estatais postuladas individualmente, satisfazendo o direito daqueles que logravam
acesso ao Poder Judicirio, mas sem resolver o problema da vasta maioria das classes
marginalizadas da populao. Muitos dos medicamentos fornecidos em razo de condenaes
judiciais no constam das listas oficiais de distribuio gratuita, sendo que alguns deles poderiam
ser substitudos por frmacos constantes das relaes de medicamentos essenciais e outros
sequer possuem eficcia comprovada. Os impactos no oramento destinado ao atendimento do
direito sade cresceram exponencialmente. Uma pesquisa emprica realizada em 2005
investigou todas as aes movidas por cidados naquele ano em face da Secretaria Municipal de
Sade de So Paulo, por meio das quais se postulava a concesso de remdios. Dos 170
processos, verificou-se que foram gastos R$876.000,00 somente para itens que no constavam da
Relao Municipal de Medicamentos Essenciais, dos quais 73% poderiam ser substitudos.
Constatou-se, ademais, que de todas as verbas despendidas, 75% foram destinadas aquisio de
antineoplsicos, cuja comprovao de eficcia necessitava de mais ensaios clnicos.7
Em face desse cenrio, emerge uma problemtica que carece de investigao especfica.
Se o reduzido grau de fruio dos direitos sociais no Brasil constitui obstculo elevao do
ndice de desenvolvimento humano, importando manuteno das graves desigualdades existentes
na sociedade brasileira, a sua efetivao prioritariamente pelo Poder Judicirio, em aes
individuais propostas pelas classes mdia e alta da populao, no se apresenta como soluo
ideal. Pelo contrrio: ela pode contribuir para o aumento do fosso entre os mais ricos e os mais
pobres, j que aqueles que desfrutam de melhores condies financeiras e de informao para
obter a tutela judicial dos seus direitos individualmente acabam desviando, para a sua satisfao
pessoal, recursos que seriam destinados ao atendimento da camada mais necessitada da
sociedade. Com isso, nota-se que a via do Poder Judicirio no a nica, nem a principal, nem a
6 Conforme dados extrados da revista mdica The Lancet. Disponvel em
. 7 VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Distores causadas pelas aes judiciais poltica de medicamentos
no Brasil. Revista de Sade Pblica, v. 41, n 2, So Paulo, Universidade de So Paulo, p. 214-222, 2007. p. 214.
3
mais adequada forma de promoo dos direitos fundamentais sociais embora seja, sem sombra
de dvidas, uma possvel e imprescindvel via para tanto.
Partindo da realidade ftica e institucional brasileira, constata-se que a atuao do Poder
Pblico ptrio nessa seara tem se desenvolvido de forma ofensiva a dois princpios
constitucionais, que sero utilizados como nortes para a orientao da pesquisa: o
desenvolvimento e a igualdade.
De um lado, a ao da Administrao Pblica peca por omisses inconstitucionais, que
impedem o desenvolvimento social por inviabilizar uma adequada elevao das condies de
vida da populao, por conta da ilegtima defesa de interesses secundrios, muitos dos quais
exclusivamente fazendrios, pela mquina administrativa. Negam-se prestaes ligadas a direitos
fundamentais sociais j amplamente reconhecidas pela jurisprudncia e a Administrao
continua aplicando leis que versam sobre direitos fundamentais e j foram reiteradamente
declaradas inconstitucionais pelo controle judicial difuso, ao invs de afastar a sua aplicao em
decorrncia da incidncia direta das normas definidoras de tais direitos. Deixa-se de conferir
prioridade a aes sociais constitucionalmente obrigatrias para privilegiar outras reas de
atuao. Com isso, obstaculiza-se o desenvolvimento social definido pela Constituio como
objetivo fundamental da Repblica.
De outro lado, a atuao jurisdicional, embora muitas vezes bem intencionada,
privilegia de forma desigual parcela dos cidados, notadamente aqueles que ostentam maiores
nveis de informao e renda para conseguir obt-los pela via do Poder Judicirio. Violenta-se,
com isso, a integridade constitucional do princpio da igualdade, subvertendo as razes que
justificam a proteo dos direitos sociais pelas Constituies. Como estes passaram a ser
consagrados pelos sistemas constitucionais justamente para reduzir as desigualdades, as aes
estatais que pretendem efetiv-los no podem agrav-las, sob pena de inaceitvel contrassenso.
A atuao do Poder Pblico nessa matria deve se pautar pelo princpio que anima a tutela
constitucional dos direitos sociais: a promoo da igualdade. Concesses de prestaes
individualizadas, sem a concomitante universalizao do atendimento da demanda, acabam por
fulminar a prpria razo de ser da proteo jurdica dos direitos em questo.
Apresentado o problema que se pretende investigar, cumpre apontar as duas hipteses a
partir das quais se formular a tese a seguir apresentada. A primeira hiptese da qual se parte
nesta pesquisa a de que muitos dos problemas suscitados no campo das atividades
administrativas necessrias implementao espontnea, integral e igualitria dos direitos
fundamentais sociais poderiam ser amenizados com a reviso ou relativizao de alguns
dogmas criados pela cincia do Direito Administrativo clssico, desenvolvido e consolidado no
sculo XIX, que no mais coadunam com o panorama constitucional do Estado Social e
Democrtico contemporneo.
O fato de o exame dos temas de Direito Pblico, como o caso dos direitos
fundamentais, ser efetuado primordialmente sob o prisma do controle judicial deriva do
acolhimento de pressupostos do paradigma liberal do Estado de Direito, perspectiva essa que
ainda exerce influncia dominante sobre o Direito Administrativo.8 Esta disciplina jurdica, no
entanto, mantendo os resultados at aqui j conquistados, no deve limitar-se a estudar a
controlabilidade do agir administrativo pelo Poder Judicirio. Impe-se, tambm, abrir novos
horizontes e dirigir o foco das investigaes do Direito Administrativo para aqueles setores da
8 RODRGUEZ DE SANTIAGO, Jos Maria. La administracin del Estado social. Madrid: Marcial Pons, 2007.
p. 13.
4
atuao da Administrao que devem e podem ser melhorados sem qualquer interferncia
dos juzes.
A segunda hiptese que nortear os rumos da investigao a de que de um lado, a
dogmtica do Direito Administrativo ainda no incorporou adequadamente trs categorias
centrais da dogmtica contempornea dos direitos fundamentais, que se afiguram tendentes a
relativizar alguns axiomas dessa disciplina jurdica: (i) a aplicabilidade imediata das normas
definidoras de direitos fundamentais; (ii) a dupla dimenso subjetiva e objetiva desses
direitos; (iii) a sua multifuncionalidade; de outro, a dogmtica do Direito Constitucional no
explora suficientemente os institutos do Direito Administrativo como mecanismos de
implementao dos direitos fundamentais sociais, focando-se sobretudo nas ferramentas
jurisdicionais disciplinadas pelo Direito Processual.
Essas trs categorias, ao que tudo indica, mostram-se capazes de matizar alguns dos
dogmas do Direito Administrativo clssico, adaptando-os a determinadas exigncias sociais
hodiernas e permitindo que as solues para a implementao espontnea, integral e igualitria
dos direitos fundamentais sociais sejam buscadas nos prprios institutos desse ramo jurdico,
afastando-se do foco jurisdicional a centralidade dos debates. A sociedade brasileira precisa,
conforme averba Luiz Edson Fachin, de mais justia e menos Judicirio como protagonista de
espetculos. Ainda que seja positivo o saldo da jurisdio constitucional brasileira,9 preciso
chamar ateno para o fato de que a plena e integral realizao dos direitos fundamentais sociais
no se dar exclusivamente por essa via.
Diante da problemtica apontada e das hipteses acima lanadas, o substrato terico que
oferece supedneo tese ora apresentada composto por cinco elementos.
(a) O primeiro elemento consiste na necessidade de o Direito Administrativo levar em
considerao a dupla dimenso (subjetiva e objetiva) dos direitos fundamentais, aplicando essa
construo da dogmtica constitucional aos seus institutos.
A assertiva deriva da percepo de que a teoria brasileira do Direito Administrativo, no
que tange ao tema da efetividade dos direitos fundamentais, ainda se mostra ancorada
essencialmente em um vis liberal-individualista-subjetivista, que se prende fortemente ao Poder
Judicirio como resposta a essa questo. Cuida-se de um iderio que imprime prevalncia
natureza subjetiva dos direitos fundamentais, relegando ao esquecimento a eficcia jurdica de
seu carter objetivo. Tal viso acaba por supervalorizar a tutela jurisdicional dos direitos
fundamentais sociais e deslocar o centro do debate ao Direito Processual Civil, buscando corrigir
as dificuldades de sua satisfao de modo pontual, casusta, repressivo, individualista e no raras
vezes anti-isonmico. Os cidados que desfrutam de melhores condies financeiras e de
informao conseguem ter acesso ao Poder Judicirio e, com isso, tm suas pretenses subjetivas
atendidas, ao passo que os socialmente excludos ainda que se encontrem em idntica situao
quanto violao de seus direitos permanecem desamparados. E com isso, deixa-se de
pesquisar mecanismos de tutela administrativa, pensados sob o prisma material do Direito
Administrativo, que sejam capazes de resolver os entraves impostos promoo dos direitos
fundamentais sociais de maneira universal, programada, preventiva, coletiva e igualitria.
Uma das possveis origens desse quadro pode ser extrada da leitura da obra de
Fernando Dias Menezes de Almeida, da qual se colhe uma constatao resultante das
9 FACHIN, Luiz Edson. 2014: o ano que pode no acabar. Gazeta do Povo. Curitiba, 11.01.2014. Disponvel em:
.
Acesso em: 11 jan. 2014.
5
investigaes por ele empreendidas sobre as tendncias do Direito Administrativo brasileiro ps-
1988. Sustenta o autor que na conjuntura contempornea a doutrina nacional se bifurca em duas
correntes, cada qual enfatizando mais um eixo valorativo como fonte inspiradora dos fins a que
se destina a disciplina jurdica em questo: (i) a Escola dos Direitos Fundamentais, que pe
acento em tais direitos a partir de um vis liberal-subjetivista, preocupado preponderantemente
com os sujeitos que os titularizam e com a garantia de um espao de liberdade infenso
ingerncia administrativa; (ii) a Escola do Interesse Pblico, que atribui destaque a esse valor
sob um vis estatizante-publicista, j que propugna por uma significativa interveno estatal
para a promoo dos direitos fundamentais, os quais so concebidos atravs do prisma do
interesse pblico.10
Frente a diviso, o que se denota que tais formas de se pensar no podem ser
encaradas como disjuntivas ou opostas. A fisionomia dplice ou bidimensional que ostentam os
direitos fundamentais, compostos por uma vertente subjetiva e outra objetiva, reclama uma
sntese das duas perspectivas acima mencionadas. A mentalidade essencialmente liberal-
subjetivista insuficiente, pois se foca somente no cunho subjetivo dos direitos fundamentais e
em sua funo defensiva contra aes administrativas invasivas. imprescindvel observar a
tarefa de implementar os direitos fundamentais tambm sob a ptica do interesse pblico,
levando em conta a natureza objetiva de tais direitos, a qual revela a sua faceta transindividual.
O interesse geral se apresenta como a dimenso coletiva dos direitos fundamentais, que h de ser
concretizada de ofcio pela Administrao Pblica, independentemente de reivindicaes
subjetivas, eis que se tratam de pores indivisveis dos bens jurdicos jusfundamentais. Nesse
sentido, a promoo dos direitos fundamentais no Estado Social consiste em um tema
intimamente dependente das estruturas administrativas organizativas e procedimentais
necessrias ao oferecimento de prestaes estatais positivas, algo que s pode ser encarado por
um vis coletivo e estatizante-publicista.
(b) O segundo elemento, decorrente do anterior, diz respeito necessidade de que o
Poder Pblico satisfaa os direitos fundamentais de forma integral, o que s ser viabilizado se o
Direito Administrativo der ateno multifuncionalidade de tais direitos, conferindo
operatividade plena a todas as funes por eles exercidas.
No basta que a Administrao deixe de agredir comissivamente os bens jurdicos
jusfundamentais das pessoas, respeitando a sua eficcia defensiva. Ela precisa tambm fornecer
as condies materiais para que os direitos fundamentais sejam frudos pelos cidados (funo de
prestaes fticas), alm de criar normas jurdicas para instituir organizaes e procedimentos
adequados ao exerccio universalizado desses direitos (funo de prestao normativa de
organizao e procedimento) e proteger tais bens jurdicos contra leses praticadas por outros
particulares (funo de prestao normativa de proteo). Essas trs ltimas funes dependem
sobremaneira do Direito Administrativo para serem levadas a efeito. No de qualquer Direito
Administrativo: elas exigem um modelo que no se ocupe apenas da defesa das liberdades e dos
direitos subjetivos individuais, mas que, ao revs, outorgue a devida relevncia satisfao dos
interesses gerais pelo Poder Pblico.
justamente para atender a essas outras funcionalidades dos direitos fundamentais que
a teoria do Direito Administrativo no pode permanecer aprisionada em uma racionalidade
10
ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Formao da Teoria do Direito Administrativo no Brasil. So Paulo,
2013. 439 f. Tese (Concurso Pblico para Professor Titular de Direito Administrativo) Departamento de Direito do
Estado, Universidade de So Paulo. f. 18-21; 309-310; 326-327; 335; 410.
6
individualista de roupagem liberal-subjetivista. Mostra-se imprescindvel pensar nas categorias,
figuras e institutos dessa disciplina jurdica ato e processo administrativo, regulamento, servio
pblico, responsabilidade civil do Estado... tambm pela matriz estatizante-publicista, a qual
busca sublinhar que Administrao Pblica no compete apenas tutelar interesses individuais
juridicizados na forma de direitos subjetivos. Ela se encontra igualmente obrigada a dar
efetividade aos interesses transindividuais titularizados pela coletividade.
Vale-se aqui do pensamento de Celso Antnio Bandeira de Mello, o qual conceitua o
interesse pblico como o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivduos
pessoalmente tm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo
simples fato de o serem. O jurista compreende, nessa linha, que tal interesse constitui a
dimenso pblica dos interesses individuais.11
Ao tempo em que fornece essa explicao, o
autor reala a estreita relao que a noo de interesse pblico guarda com a proteo dos
direitos dos cidados,12
deixando claro a todas as luzes que a misso da Administrao Pblica
composta por uma tarefa dplice: atender aos interesses individuais que foram juridificados na
forma de direitos e, concomitantemente, satisfazer os interesses pblicos que foram estampados
na ordem jurdica como metas a serem atingidas pelo Estado, e que dizem respeito dimenso
coletiva dos interesses individuais.
Com vistas a esse alerta, torna-se possvel enxergar a urgncia de se desenvolver, no
marco do Direito Administrativo, tcnicas e instrumentos jurdicos que forcem a Administrao
Pblica a efetivar os direitos fundamentais sociais em sua integralidade, e no apenas no que
concerne s suas parcelas que integram o chamado mnimo existencial. Alm de ter de fornecer
prestaes materiais pontuais e individualizadas, o Estado deve ser compelido a estruturar-se e
organizar-se racionalmente para cumprir todas as exigncias que a Constituio lhe impe.
Apenas para dar um exemplo: muito pouco, num pas que adota a clusula do Estado
Social e Democrtico de Direito, contentar-se em aceitar a possibilidade de acionar judicialmente
o Poder Pblico pela via individual para assegurar ao cidado uma vaga na escola pblica. O
mecanismo indispensvel, mas no resolve o problema em termos globais. preciso admitir
tambm, entre inmeros outros exemplos que poderiam ser aventados, que os poderes
constitudos esto juridicamente obrigados a expedir regulamentos que fixem critrios para
garantir a igualdade de acesso escola um interesse transindividual que, se satisfeito,
eliminar as situaes de pessoas excludas do sistema educacional. Faz-se imperioso, pois,
expandir os horizontes da dogmtica jurdica para outras atividades administrativas que tambm
devem ser executadas, e, quando no o so, produzem impactos de incidncia coletiva, ao invs
de preocupar-se somente com o contedo mais urgente do direito fundamental (ncleo essencial)
que necessita ser imediatamente atendido.
(c) O terceiro elemento se refere ao fato de que, por fora da aplicabilidade imediata
dos direitos fundamentais, a Administrao Pblica encontra-se obrigada a realiz-los de forma
espontnea, independentemente de coeres judiciais. Conforme adverte Romeu Felipe Bacellar
Filho, o ideal seria que, em todas as reas, o Direito se realizasse espontaneamente.13
11
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. A noo jurdica de interesse pblico. In: ______. Grandes Temas de
Direito Administrativo. So Paulo: Malheiros, 2009. p. 182-183. 12
MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30. ed. So Paulo: Malheiros, 2013. p.
59-70. 13
BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Editorial. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional, n
51, Belo Horizonte, Frum, p. 9-12, jan./mar. 2013. p. 9.
7
A Administrao Pblica no Brasil, baseada em uma concepo estrita do princpio da
legalidade, muitas vezes utiliza-o no como uma garantia em favor do cidado, mas como uma
escusa para ofender, por ao ou omisso, os seus direitos fundamentais. O princpio da
aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais pode vir a conflitar com a ideia de vinculao
negativa da Administrao lei, que probe sua atuao contra legem, e com a noo de
vinculao positiva da Administrao lei, que veda sua atuao praeter legem. Se o princpio
da legalidade foi concebido para proteger os direitos fundamentais do cidado, e se tais direitos
desfrutam de aplicabilidade imediata, deveria a Administrao cumprir a lei quando ela os
agredisse? Deveria tambm negar-se a atuar positivamente para satisfaz-los sob o argumento de
que inexiste norma legal determinando a obrigatoriedade de sua ao?
Outra questo, tambm relacionada aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais,
consiste em uma distorcida interpretao do significado jurdico do interesse pblico, que sugere
que os advogados pblicos esto submetidos ao dever de recorrer de ofcio em face da
supremacia do interesse pblico.14
Se os direitos fundamentais, no Estado Social e Democrtico
de Direito contemporneo, integram o cerne do interesse pblico, estariam os procuradores
pblicos obrigados a recorrer mesmo em questes j pacificadas na jurisprudncia em favor dos
direitos dos cidados? Parece que, tambm nesse ponto, a aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais conduz a uma resposta diversa, j que a Administrao est obrigada, antes de
tudo, a satisfaz-los sponte propria e em sua mxima plenitude.
(d) O quarto elemento consiste na necessidade de se pensar em meios para que a
efetivao dos direitos fundamentais sociais ocorra mediante um tratamento igualitrio. De
acordo com Clmerson Merlin Clve, uma das funes dos direitos fundamentais a de no
discriminao, que obriga o Estado a disponibilizar aos cidados de forma igualitria os bens e
servios indispensveis ao seu atendimento (ressalvadas as discriminaes positivas, necessrias
a proporcionar a igualdade material). Por conta dessa funo, exige-se que os servios sejam
colocados disposio de todos os brasileiros (ideia de universalidade), implicando para o
particular o poder de reivindicar (...) idntico tratamento.15
Esse elemento, decorrente da clusula do Estado Social e Democrtico de Direito, pode
produzir significativas repercusses no mbito dos institutos do Direito Administrativo. Por
fora do princpio constitucional da igualdade, no deveria a Administrao respeitar os seus
precedentes, dispensando tratamento isonmico aos cidados situados em idnticas condies
que reclamam os seus direitos pela via do processo administrativo? E no incumbiria tambm
prpria Administrao Pblica universalizar a concesso de prestaes materiais que ela
forneceu a determinados indivduos, isoladamente, apenas porque eles obtiveram uma sentena
judicial? No princpio da igualdade, conjugado com os elementos antes indicados, parece residir
um forte potencial transformador de alguns institutos e modos de agir da Administrao, com
vistas a uma satisfao justa dos direitos fundamentais sociais.
(e) O quinto elemento que compe o subtrato da presente tese visa a materializar os
quatro anteriores: trata-se do reconhecimento, no Direito brasileiro, do direito fundamental
14
Trecho da ementa da seguinte deciso: BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Embargos de Declarao no
Agravo Regimental no Recurso Especial n 1121306/SP. Relator Min. Benedito Gonalves. Primeira Turma.
Julgado em 21.10.2010. DJe 28.10.2010. 15
CLVE, Clmerson Merlin. A eficcia dos direitos fundamentais sociais. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe;
GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder (Coords.). Globalizao, Direitos Fundamentais e Direito
Administrativo: novas perspectivas para o desenvolvimento econmico e socioambiental. Belo Horizonte: Frum,
2011. p. 102.
8
tutela administrativa efetiva. Esse direito foi recentemente consagrado na Carta Iberoamericana
dos Direitos e Deveres do Cidado em Relao com a Administrao Pblica, aprovada em 10
de outubro de 2013 pelo Centro Latinoamericano de Administracin para el Desarrollo
(CLAD),16
cuja redao foi confiada pelo Conselho Diretivo da entidade ao Professor Jaime
Rodrguez-Arana Muoz.17
Antes disso, o direito tutela administrativa efetiva j havia sido reconhecido pela
jurisprudncia da Corte Suprema de Justia da Nao Argentina, no caso Astorga Bracht,
Sergio y otro c. COMFER.18
No julgado, o Tribunal traa um paralelo entre o direito tutela
judicial efetiva, aplicvel em sede judicial, e o ento reconhecido direito tutela administrativa
efetiva, incidente sobre a esfera administrativa. No julgado, busca-se evidenciar o processo
administrativo como mecanismo de tutela dos direitos, compreendido a partir do cidado e no
mais luz dos privilgios e prerrogativas da Administrao, estendendo a ele princpios
conquistados no plano do processo judicial. Buscou-se frisar que a tutela efetiva dos direitos
fundamentais no compete s ao juiz, mas tambm Administrao. A esta tambm compete
realiz-los imediatamente e na maior medida possvel.
Inspirando-se nessa construo terica, a presente tese visa a lanar mo da categoria da
tutela administrativa efetiva, extraindo-a implicitamente do sistema constitucional brasileiro (art.
5, 1 e 2 e art. 37, caput), para empreg-la como mecanismo apto a atrair o contedo dos
mltiplos deveres da Administrao Pblica em termos de implementao de direitos
fundamentais sociais. Distintamente da concepo argentina, que se restringe sua aplicao no
processo administrativo, prope-se a traar o contedo e os efeitos jurdicos desse direito no
campo de outros institutos do Direito Administrativo, dos quais o Poder Pblico se utiliza para
promover os referidos direitos. Cabe, assim, identificar os deveres que emanam do direito
fundamental tutela administrativa efetiva no campo dos servios pblicos, das polticas
pblicas, do regulamento e do ato administrativo, da responsabilidade civil do Estado e do
prprio processo administrativo, sempre que eles forem manejados para a satisfao de direitos
fundamentais sociais.
O direito tutela administrativa efetiva tem como ideia-chave a imposio do dever,
Administrao Pblica, de realizar espontaneamente e na mxima medida toda a potencialidade
dos direitos fundamentais. Como consequncia desse direito, todos os entraves jurdicos ou
materiais existentes para a satisfao plena dos direitos fundamentais devem ser afastados. Se a
tutela administrativa efetiva significa a necessidade de a Administrao empregar todas as
tcnicas e meios adequados a proteger e promover os direitos dos cidados, disso decorre o dever
de reconhec-los espontaneamente, e no o dever de conflito permanente do Estado com os
particulares. Com isso, o direito tutela judicial efetiva se torna apenas a ltima ratio, a ser
aplicada somente em situaes excepcionais em que o direito tutela administrativa efetiva tiver
16
CENTRO LATINOAMERICANO DE ADMINISTRACIN PARA EL DESARROLLO. Carta
Iberoamericana de los Derechos y Deberes del Ciudadano en Relacin con la Administracin Pblica.
Caracas, 2013. Disponvel em:
. Acesso em: 15.11.2013. 17
LA ADMINISTRACIN AL DA. El catedrtico Rodrguez-Arana redactar la Carta de Derechos
Ciudadanos de Iberoamrica. 14.02.2013. Madrid, Instituto Nacional de Administracin Pblica. Disponvel em:
. Acesso em: 08.05.2013. 18
ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nacin. Astorga Bracht, Sergio y otro c. COMFER. Fallos
327:4185 (2004).
9
sido descumprido, e caminha-se rumo a uma reduo da quantidade de processos tramitando no
Poder Judicirio.
Para enfeixar os demais elementos antes apresentados, prope-se que a tutela
administrativa efetiva seja compreendida como o direito do cidado: (1) de receber da
Administrao Pblica, em prazo razovel, uma tutela efetiva espontnea, integral e
igualitria dos seus direitos; (2) que autoriza a adoo de todas as tcnicas e procedimentos
administrativos adequados para tanto, mesmo que para atender integralmente s determinaes
do bloco de constitucionalidade seja necessrio, excepcionalmente, agir na falta de lei (praeter
legem) ou contrariamente lei (contra legem); (3) e que probe o Estado de atuar,
administrativa ou judicialmente, em prol de seus interesses secundrios, quando estes forem
descoincidentes com os direitos fundamentais.
A partir desses cinco elementos, pretende-se defender a seguinte tese: a Constituio
Federal reconhece ao cidado brasileiro o direito fundamental tutela administrativa efetiva, o
qual: (i) impe Administrao Pblica o dever prioritrio de criar condies materiais e
jurdicas para satisfazer os direitos fundamentais sociais em sua integralidade, para alm do
mnimo existencial, ainda que para tanto seja necessria sua atuao praeter legem ou contra
legem para no incorrer em omisses inconstitucionais que obstem o desenvolvimento social; e
(ii) obriga-a a atender de forma igualitria todos os titulares de idnticas posies subjetivas
jusfundamentais, adotando de ofcio medidas aptas a universalizar prestaes concedidas
individualmente por requerimentos administrativos ou condenaes judiciais, sob pena de
responsabilizao estatal objetiva individual ou coletiva, a depender da natureza da pretenso
jurdica em questo.
10
PARTE I A COMPLEXIDADE JURDICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
SOCIAIS: EM BUSCA DE UMA LEITURA ADEQUADA CONSTITUIO DE
1988
A investigao acerca do significado jurdico da aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais sociais sobre a Administrao Pblica, com a identificao da pliade de deveres
que sobre ela recaem para satisfaz-los integralmente e de forma igualitria, reclama uma
reflexo prvia. Impe-se uma incurso anterior sobre a natureza, o regime jurdico, a estrutura
normativa e o grau de exigibilidade que a Constituio brasileira de 1988 imprimiu a esses
direitos, esclarecendo algumas confuses dogmticas habituais nessa matria.
que a temtica da efetivao dos direitos fundamentais em geral, e dos sociais em
particular, no se restringe ao campo do Direito Constitucional: ela demanda o domnio de
categorias de outros ramos do conhecimento jurdico, notadamente do Direito Administrativo e,
no caso brasileiro, do Direito Processual Civil.19
No raro so empregadas construes tericas
de um desses campos do saber, forjadas em sculos passados, para operacionalizar institutos
desenvolvidos mais recentemente por outros ramos do Direito sob uma racionalidade
completamente distinta. E essa falta de dilogo, bem como de historicizao de cada figura que
se pretende utilizar, acaba gerando impasses, anacronismos e frustraes na concretizao dos
objetivos constitucionais.
A dificuldade de se desprender de algumas compreenses sedimentadas no sculo XIX,
pautadas em uma ideologia liberal, individualista e subjetivista, no apenas empobrece os
esquemas de tutela dos direitos fundamentais sociais, como tambm inviabiliza a sua satisfao
coletiva e universalizada. Impede, ademais, a percepo de que algumas condutas omissivas da
Administrao frente a deveres objetivos que no se enquadram em uma relao jurdico-
subjetiva transgridem os mandamentos constitucionais (ainda que, se adotado um vis
oitocentista, aparentem estar legitimamente situadas dentro da esfera da discricionariedade
administrativa). preciso afinar as concepes do Direito Administrativo e do Direito
Processual Civil com a perspectiva de um constitucionalismo igualitrio, para lograr a
materializao do contedo da Constituio em sua totalidade.
Este o objetivo da primeira parte deste estudo: dedicar-se s formulaes
contemporneas da teoria dos direitos fundamentais, delas extraindo efeitos normativos
concretos, e confront-las com eventuais conceitos teorticos e legais que no se revelam
ajustados realidade constitucional atual. Com isso, pretende-se cimentar as premissas
necessrias readequao de alguns dogmas e teorias a propsito da atuao da Administrao
Pblica em matria de direitos fundamentais sociais, para ento explorar as novas
19
A ressalva quanto especificidade brasileira reside no fato de que, diferentemente de outros ordenamentos, na
ordem jurdica ptria os processos judiciais originados de aes propostas pelo particular em face da Administrao
Pblica so, em geral, regidos pelo Cdigo de Processo Civil (salvo no caso de aes de procedimentos especiais,
tais como o mandado de segurana, a ao popular e o habeas data, regidas por leis especficas). O ramo do Direito
que se ocupa da disciplina jurdica de tais processos judiciais o Direito Processual Civil, mesmo campo do
conhecimento que se dedica ao estudo das aes propostas por um particular em face de outro, j que o diploma
normativo de regncia , em geral, o mesmo. Em outros sistemas como o espanhol e o argentino, por exemplo a
tratativa se passa de forma distinta, uma vez que neles esto previstas regras processuais em leis prprias para
regular as aes propostas contra a Administrao, estudadas pelo Direito Processual Administrativo.
11
potencialidades e funcionalidades de institutos clssicos do Direito Administrativo com vistas
consolidao efetiva desses direitos.
12
CAPTULO 1 AS DEFICINCIAS DOS ATUAIS DISCURSOS SOBRE A
EXIGIBILIDADE DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS
PERANTE OS PODERES PBLICOS
A proliferao doutrinria de pesquisas sobre a exigibilidade dos direitos fundamentais
sociais, maiormente aps a promulgao da Constituio de 1988, instaurou uma multiplicidade
de discursos apoiados em matrizes filosficas e ideolgicas variadas, muitas das quais
divergentes e contraditrias. No que toca ao reconhecimento da aplicabilidade imediata dos
direitos sociais, como se ver mais adiante, concepes liberais, positivistas, procedimentalistas,
institucionalistas, entre tantas outras, ofereceram solues diferenciadas para a problemtica.
Embora persistam muitas dessas leituras distintas, inclusive as que negam aos direitos
sociais a condio de autnticos direitos fundamentais e, por consequncia, sua aplicao direta e
sindicabilidade judicial, uma tendncia especfica ganhou corpo no Poder Judicirio brasileiro na
ltima dcada. Trata-se da ideia segundo a qual os sobreditos direitos enquadram-se no conceito
de direito subjetivo e so, portanto, plenamente justiciveis.20
A proposta, bem intencionada,
visava a emprestar de uma vez por todas efetividade ao tecido constitucional, e encontrou eco na
jurisprudncia nacional.21
No entanto, a falta de apuro tcnico para compreender em que medida e em quais
situaes os direitos fundamentais no apenas os chamados sociais se apresentam como
uma pretenso jurdico-subjetiva, apta a ser reclamada judicialmente pela via individual,
acarretou consequncias destoantes das diretrizes constitucionais. Gerou-se um senso comum
terico, consoante o qual se direito social direito subjetivo, eu posso postular judicialmente as
prestaes que, ao meu juzo, esto contempladas por ele. Uma avalanche de aes judiciais,
sobretudo em matria de sade, passou a assolar o Poder Judicirio. O juiz tornou-se o
protagonista da realizao desses direitos, ganhando, tambm, a ateno hegemnica da doutrina
especializada. Administrao Pblica e ao legislador relegou-se um papel secundrio, ao
menos no mbito da investigao cientfica acerca da exigibilidade dos direitos fundamentais
sociais.
Sendo a proposta deste trabalho analisar os deveres que a Constituio enderea
Administrao para a concretizao de tais direitos, proporcionando a sua satisfao igualitria e
democrtica, e verificar as consequncias jurdicas de sua omisso nesse desiderato, este captulo
inicial tem por escopo apontar alguns dos principais problemas dos discursos atuais sobre a
exigibilidade imediata dos direitos sociais. As deficincias encontradas se dividem em trs: (1.1.)
a falta de percepo quanto natureza jurdica complexa dos direitos fundamentais no Estado
20
O entendimento adotado por Lus Roberto Barroso. O autor, asseverando ser vlida a aplicao da categoria
direito subjetivo aos direitos previstos constitucionalmente, assinala as suas caractersticas essenciais: a) a ele
corresponde sempre um dever jurdico por parte de outrem; b) ele violvel, vale dizer, pode ocorrer que a parte que
tem o dever jurdico, que deveria entregar uma determinada prestao, no o faa; c) violado o dever jurdico nasce
para o seu titular uma pretenso, podendo ele servir-se dos mecanismos coercitivos e sancionatrios do Estado,
notadamente por via de uma ao judicial. BARROSO, Lus Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In:
________. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 74. 21
o caso, por exemplo, do seguinte acrdo do Superior Tribunal de Justia: ADMINISTRATIVO. DIREITO
SADE. DIREITO SUBJETIVO. (...) O direito sade, expressamente previsto na Constituio Federal de 1988 e
em legislao especial, garantia subjetiva do cidado, exigvel de imediato, em oposio a omisses do Poder
Pblico. (...). BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial n 1068731/RS. Relator Min. Herman
Benjamin. Segunda Turma. Julgado em 17.02.2011. DJe 08.03.2012.
13
Social e Democrtico de Direito; (1.2.) o maniquesmo do debate sobre a exigibilidade judicial
desses direitos, derivado da falta de dilogo entre os discursos; (1.3.) o silncio da doutrina em
dizer, aps um exame atento e profundo, qual o contedo dos deveres jurdicos da
Administrao Pblica em matria de direitos fundamentais sociais.
1.1. A falta de percepo quanto natureza jurdica complexa dos direitos
fundamentais no Estado Social e Democrtico de Direito: uma herana da fantasia
das geraes de direitos
O primeiro alerta que deve ser feito diz respeito ao anacronismo de tentar transplantar
de forma mecnica conceituaes elaboradas no sculo XIX lgica dos direitos fundamentais.
o que ocorre com as figuras do direito subjetivo em sua vertente privatista e do direito pblico
subjetivo, de cariz publicista. O intento de vestir os direitos sob exame com tais armaduras
jurdicas uma das causas que prejudica a sua adequada performance no cenrio constitucional
atual.
A manuteno desse apego deve-se, em parte, malfadada fantasia das chamadas
geraes de direitos.22
A tradicional referncia ao surgimento de diversas geraes de direitos
fundamentais, que foram sucessivamente positivando nas Constituies direitos de diferentes
espcies, gerou a seguinte explicao reducionista: (i) a primeira gerao seria fruto do Estado
Liberal de Direito de fins do sculo XVIII, momento em que se reconheceram como direitos
essenciais do homem as liberdades individuais, cujo contedo se limitaria a restringir o campo de
atuao do Poder Pblico, dirigindo-lhe o dever de absteno de interferncia nas esferas
jurdicas dos cidados; (ii) a segunda gerao emergiria com o Estado Social de Direito, que
teve seus embries no incio do sculo XX mas cuja consolidao se deu aps a Segunda Guerra
Mundial, modelo no qual direitos dos trabalhadores e direitos a prestaes fticas como sade,
educao e assistncia batizados de direitos sociais passaram a ser constitucionalmente
recolhidos, com a caracterstica primordial de impor deveres de ao positiva e interventiva ao
Estado, para a promoo da igualdade material e da justia social; (iii) a terceira gerao,
nascida no ltimo quarto do sculo XX, teria derivado da necessidade de tutela de bens jurdicos
indivisveis em uma sociedade de massa, tendo como trao distintivo a titularidade
transindividual coletiva e difusa dos direitos, haja vista a impossibilidade de apropriao
individual dos interesses por eles resguardados.
A doutrina, j h algum tempo, vem tecendo crticas procedentes a essa classificao,
sob o ponto de vista histrico. De um lado, porque ela faz transparecer uma substituio
paulatina da gerao anterior pela subsequente, quando na realidade os direitos no previstos
anteriormente complementam aqueles que j haviam sido salvaguardados, agregando novos
contedos protetivos ao ser humano sem abandonar as pretenses jusfundamentais previamente
tuteladas,23
formando um bloco de proteo indivisvel. Essa complementaridade e
22
A expresso de TRINDADE, Antnio Augusto Canado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos
Humanos. v. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. p. 24-25. 23
Fernando Dias Menezes de Almeida, nesse influxo, destaca que a agregao de aspectos de garantia de bem-estar
social, bem como a preocupao com valores inerentes solidariedade humana em nvel global no eliminaram a
proteo das liberdades como elemento fundamental da noo de Estado de Direito. ALMEIDA, Fernando Dias
Menezes de. Dez ideias sobre a liberdade, extradas da obra de Manoel Gonalves Ferreira Filho. In: HORBACH,
Carlos Bastide; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; AMARAL JNIOR, Jos Levi Mello do; LEAL, Roger
14
indivisibilidade se verificariam, por exemplo, pelo fato de que sem condies materiais de
existncia digna, propiciadas pelos direitos sociais, as liberdades individuais no poderiam ser
efetivamente exercidas.24
De outro lado, porque essa construo retrata um cenrio eurocntrico
e historiograficamente inadequado, visto que nem todos os Estados passaram por todas essas
etapas, ou no vivenciaram a positivao de tais direitos nessa mesma ordem cronolgica.
Alguns autores propem, em razo disso, modificar a nomenclatura de geraes para
dimenses, tentando afastar as aludidas impropriedades.25
Mas a mudana, na prtica, no altera
em absolutamente nada o problema. Embora tais refutaes sejam vlidas, elas no constituem o
principal defeito da classificao geracional dos direitos fundamentais. No preciso muito
esforo para perceber que os direitos de liberdade continuam sendo albergados nas Constituies
dos Estados verdadeiramente democrticos, ainda que com o advento dos direitos sociais e dos
transindividuais, que logicamente no os substituram, ou que a sequncia supramencionada no
reflete a experincia de todas as naes contemporneas, tratando-se de uma generalizao
inidnea.
O grande prejuzo encontra-se no plano jurdico-dogmtico, e deriva da suposio de
que cada uma dessas espcies de direitos fundamentais possui caracteres jurdicos que lhe so
prprios e que a distinguem das outras modalidades.26
Dessa explanao advm dois mitos, que
pairam sobre o senso comum terico dos direitos fundamentais e consistem em verdadeiros
entraves para a apreenso de sua complexidade (e, consequentemente, para a sua realizao
integral e no meramente parcial). Ambos conduzem a um prestigiamento da fora jurdico-
imperativa dos direitos chamados de primeira gerao, pois s estes se amoldariam com
perfeio aos caracteres da figura que confere ao cidado o mais alto nvel de proteo pelo
Direito: o direito subjetivo.
O primeiro mito, decorrente da diviso entre a primeira e a segunda gerao, a ideia de
que os direitos de liberdade prescindem de prestaes positivas fticas e normativas para a sua
proteo, diferentemente dos direitos sociais, que careceriam de regulamentao do seu
contedo e altos custos para serem implementados. Isso conferiria aos primeiros a condio de
genunos direitos subjetivos (pblicos, porque oponveis ao Estado), dotados de aplicao
imediata e independente de lei integrativa, cuja satisfao total se alcanaria mediante uma
ordem judicial de no fazer expendida ao Poder Pblico. Aos segundos, por sua vez, faleceria o
status de verdadeiros direitos subjetivos, na plenitude do termo. Embora pudessem ser
reivindicados judicialmente, sua efetivao dependeria da existncia de regulamentao
infraconstitucional e de disponibilidade oramentria. Careceriam de aplicabilidade imediata,
Stiefelmann (Orgs.). Direito Constitucional, Estado de Direito e Democracia: homenagem ao Prof. Manoel
Gonalves Ferreira Filho. So Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 232. 24
PIOVESAN, Flvia. Direitos humanos e justia internacional: um estudo comparado dos sistemas regionais
europeu, interamericano e africano. So Paulo: Saraiva, 2007. p. 13. 25
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 45. 26
Essa explicao, da qual se discorda frontalmente pelos motivos adiante expendidos, apresentada por Manoel
Gonalves Ferreira Filho, ao afirmar que as trs geraes, como o prprio termo geraes indica, so os grandes
momentos de conscientizao em que se reconhecem famlias de direitos. Estes tm assim caractersticas jurdicas
comuns e peculiares. Ressalve-se, no entanto, que, no concernente estrutura, h direitos que, embora reconhecidos
num momento histrico posterior, tm a que tpica de direitos de outra gerao. Mas isso um fenmeno
excepcional. FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Direitos Humanos Fundamentais. 14. ed. So Paulo:
Saraiva, 2012. p. 24. Diferentemente do autor, o que se sustentar no presente trabalho que a estrutura e as
caractersticas de todos os direitos fundamentais rigorosamente a mesma, no havendo qualquer excepcionalidade
nisso.
15
portanto. Contra esse mito, parte da doutrina e da jurisprudncia acabou por opor o argumento de
que se tratariam sim de autnticos direitos subjetivos, integralmente exigveis na esfera judicial,
tentando enquadr-los nas categorias antes citadas, criadas no sculo XIX.27
Tal proposta de
combate, que representou grande avano na dogmtica constitucional brasileira, atualmente se
revela insuficiente e no resolve a questo.
O segundo mito est no reconhecimento de uma titularidade transindividual somente a
determinados direitos, ditos de terceira gerao. Essa noo induz ao entendimento de que
certos direitos fundamentais so, por essncia e em sua totalidade, titularizados somente por
grupos determinados ou por uma coletividade indefinida. Seria o caso do meio-ambiente
ecologicamente equilibrado. Tais direitos no seriam passveis de tutela judicial individual, mas
somente por instrumentos processuais coletivos. Isso enfraqueceria a sua proteo jurdica, pois
se inmeros sujeitos tm igual interesse em sua tutela, seria impossvel amold-los ao conceito
de direito subjetivo, seja em sua feio privatista ou publicista, eis que um dos elementos
essenciais dessa figura seria a atribuio de titularidade a um indivduo determinado.
Esses dois mitos levam a uma viso de tnel dos direitos fundamentais: olha-se apenas
para a funo de defesa dos direitos de liberdade, para a funo de prestao ftica dos direitos
sociais e para a titularidade transindividual dos direitos coletivos, quando na realidade todos
ostentam essas trs caractersticas. Como se pretende demonstrar a seguir, todos os direitos
fundamentais, dada a complexidade de sua natureza jurdica e estrutura normativa, renem
concomitantemente a totalidade dos traos que supostamente seriam peculiares a cada uma das
geraes: (i) impem deveres negativos ao Estado; (ii) dirigem ao Poder Pblico obrigaes de
fornecer prestaes fticas e normativas; (iii) ostentam a titularidade transindividual
alegadamente exclusiva dos direitos de terceira gerao, bem como, simultaneamente, a
titularidade individual pretensamente tpica dos direitos de primeira e segunda gerao.
J h tempos a doutrina vem criticando o primeiro mito, ao admitir que a imposio de
condutas negativas e positivas (materiais e normativas) ao Estado caracterstica tanto dos
direitos de liberdade quanto dos direitos sociais.28
Mas em geral, os autores que a tecem no
explicam como que isso resolve a aparente dificuldade de aplicao imediata dos direitos
fundamentais sociais. Normalmente, mesmo reconhecendo que os direitos de todas as geraes
pressupem deveres de ao e absteno estatal, costumam sustentar que todos eles desfrutam de
aplicabilidade direta, mas afirmam que o grau de exigibilidade das liberdades pblicas maior
do que o dos direitos sociais.29
A tentativa de apontar a insuficincia desse raciocnio ser
27
Valendo-se da figura do direito subjetivo para conferir efetividade s normas constitucionais programticas no
campo dos direitos fundamentais sociais: FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Normas constitucionais
programticas: normatividade, efetividade, operacionalidade. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 220 et
seq. 28
Entre outros: HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. El costo de los derechos: por qu la libertad depende de los
impuestos. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2011. p. 55 et seq; ABRAMOVICH, Vctor; COURTIS, Christian. Los
derechos sociales como derechos exigibles. 2. ed. Madrid: Trotta, 2004. p. 24; KRELL, Andreas J. Direitos sociais
e controle judicial no Brasil e na Alemanha: Os (des)caminhos de um Direito Constitucional Comparado. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 47; AMARAL, Gustavo. Direitos, escassez e escolha: em busca de
critrios jurdicos para lidar com a escassez de recursos e as decises trgicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 69
et seq. 29
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais... Op. Cit., p. 268 e 271; SILVA, Virglio
Afonso da. O Judicirio e as polticas pblicas: entre transformao social e obstculo realizao dos direitos
sociais. In: SOUZA, Cludio Pereira de NETO; SARMENTO, Daniel (Coords.). Direitos sociais: fundamentos,
judicializao e direitos sociais em espcie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 593-594 e 597.
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desenvolvida no Captulo 3. J a crtica ao segundo mito, pouco presente na literatura
constitucionalista, ser alinhavada no Captulo 4.
O que neste momento impende demonstrar, como pressuposto chave para a posterior
refutao de tais mitos, : (1.1.1.) a impropriedade do enquadramento automtico dos direitos
fundamentais em conceitos sedimentados no sculo XIX; em razo da (1.1.2.) complexidade
desses direitos, marcada por uma estrutura bidimensional e multifacetada.
1.1.1. A inadequao da transposio simplista das noes de direito subjetivo
privatista e de direito pblico subjetivo publicista do sculo XIX
As origens dos direitos fundamentais, costuma-se dizer, remontam afirmao do
Estado de Direito no final do sculo XVIII, com a sua consagrao como limite ao exerccio do
poder poltico. Tratava-se de uma soluo para combater a forma arbitrria de atuao estatal,
salvaguardando a esfera jurdica individual dos cidados.30
natural, portanto, que a dogmtica
geral dos direitos fundamentais tenha sido tradicionalmente arquitetada para resolver questes
relativas funo defensiva de tais direitos contra ingerncias indevidas do Poder Pblico.31
O reconhecimento de liberdades individuais, que deveriam restringir e condicionar o
agir do Estado, dependia da criao de estruturas jurdicas que garantissem a sua eficcia. A
figura do direito subjetivo, j desenvolvida no marco do Direito Privado, assumiu esse papel
ganhando uma nova roupagem: a de direito pblico subjetivo. Sua funo seria a de traar os
poderes e deveres provenientes da relao jurdica entre cidado e Estado e convert-los em
objeto de proteo judicial.32
Essa perspectiva liberal dos direitos fundamentais girava em torno da relao subjetiva
estabelecida pela lei entre o indivduo e a pessoa jurdica estatal. De um lado, o cidado como
sujeito ativo do vnculo jurdico, titular de um direito subjetivo; de outro, o Estado como
destinatrio do objeto da relao, consistente em uma obrigao de fazer ou no fazer. Cuidava-
se, simplesmente, de lanar mo da categoria do direito subjetivo, forjada no Direito Privado,
aplicando-a ao Direito Pblico. Da porque falar-se em direito pblico subjetivo: um direito
subjetivo oponvel ao Estado. O instituto se revestiria das caractersticas inerentes ao seu
equivalente jusprivatista, em especial do poder de exigir do destinatrio o cumprimento da
prestao objeto da relao jurdica, inclusive pela via judicial em caso de resistncia.33
Esse raciocnio, embora lgico e plenamente justificvel para a conjuntura de ento,
merece reflexo mais aprofundada quando se pretende aplic-lo operacionalizao do sistema
de direitos fundamentais na atualidade. ainda extremamente comum a tentativa de inseri-los na
30
ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dctil. Ley, derechos, justicia. 7. ed. Madrid: Trotta, 2007. p. 28. 31
GAVARA DE CARA, Juan Carlos. La dimensin objetiva de los derechos sociales. Barcelona: Bosch Editor,
2010. p. 13. 32
AMARAL, Francisco. Direito Civil: introduo. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 196-197. 33
O problema dessa transposio, conforme o alerta de Celso Antnio Bandeira de Mello, que: a viso
tradicional do direito subjetivo, montada em vista de relaes privadas, no teve sob seu foco de mira relaes de
direito pblico ou situaes de direito pblico que se marcam pelo especfico propsito de assujeitar o Estado a um
completo respeito aos interesses dos indivduos, mas cuja compostura evidentemente no idntica ao universo de
situaes despertadas pelas relaes entre particulares. MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Eficcia das
normas constitucionais e direitos sociais. So Paulo: Malheiros, 2009. p. 42.
17
embalagem oitocentista dos direitos pblicos subjetivos:34
alm de se tratar de expresso muito
querida na doutrina nacional,35
reiteradamente empregada pela jurisprudncia36
e utilizada
pelo prprio texto constitucional vigente, ainda que uma nica vez, ao prever o direito de acesso
educao bsica gratuita.37
No obstante, como se buscar demonstrar, tal figura se apresenta
ora inadequada, ora insuficiente para dar conta da complexidade jurdica dos direitos
fundamentais no modelo social e democrtico do Estado de Direito.
Antes de investigar as razes da construo da teoria dos direitos pblicos subjetivos,
vale identificar alguns caracteres e elementos essenciais da noo geral de direito subjetivo,
largamente manejada pelo Direito Privado. No se ir aqui perquirir a fundo as origens histricas
dessa figura,38
nem as mltiplas teses a respeito de sua essncia,39
bastando para os fins a que se
destina este tpico compreender o seu significado e utilidade.
Uma conceituao interessante esboada por Roger Bonnard, para quem o direito
subjetivo o poder de exigir de algum, em virtude de uma regra de direito objetivo, alguma
coisa na qual se tem interesse, sob a sano de uma ao na justia; sendo o contedo da coisa
exigvel fixado imediatamente seja pelo direito objetivo, seja por um ato jurdico individual.40
Similar a noo formulada por Jos Carlos Vieira de Andrade, que o define como um poder
ou uma faculdade para a realizao efetiva de interesses que so reconhecidos por uma norma
jurdica como prprios do respectivo titular.41
34
o caso, por exemplo, de: DIAS, Dhenize Maria Franco. O direito pblico subjetivo e a tutela dos direitos
fundamentais sociais. Revista Jurdica da Presidncia, v. 14, n 102, Braslia, Presidncia da Repblica Centro
de Estudos Jurdicos da Presidncia, p. 233-250, fev./maio 2012. 35
Constatao feita por Ingo Sarlet, antes de apontar suas crticas utilizao dessa expresso. SARLET, Ingo
Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 152. 36
So incontveis os acrdos do Supremo Tribunal Federal que versam sobre direitos fundamentais e recorrem
noo de direito pblico subjetivo para reconhecer sua operatividade jurdica. Entre tantos outros, calha citar os
seguintes trechos de ementas nesse sentido: O direito pblico subjetivo sade representa prerrogativa jurdica
indisponvel assegurada generalidade das pessoas pela prpria Constituio da Repblica (art. 196) (BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinrio n 393175. Relator Min. Celso de Mello.
Segunda Turma. Julgado em 12.12.2006. DJ 02.02.2007); Servidor pblico portador de necessidades especiais
Direito pblico subjetivo aposentadoria especial (CF, art.