Corpus da V Tertúlia Literária da ESA com Fotos
-
Upload
escola-secundaria-de-amora -
Category
Documents
-
view
222 -
download
0
description
Transcript of Corpus da V Tertúlia Literária da ESA com Fotos
2013
Dia Municipal do Migrante
02-05-2013
V Tertúlia, Cruzamentos
«O outro é uma necessidade inegável. A
importância de não considerar o outro já revela a
sua importância. O outro é também um eu ele é
apenas um eu fora de mim que me influencia, e
vice-versa. Calar outrosnada mais é que aniquilar
o eu de vários indivíduos; e é por causa deste
fenómeno cruel que os movimentos de minorias
ainda são necessários.»
Camila Melo
Cruzamentos
1
Caros tertulianos
O tema que hoje nos é proposto, “Cruzamentos”, associado às
celebrações do Dia Mundial do Migrante é, por si mesmo, um
cruzamento feliz de duas ideias que atravessaram a história da
Humanidade, desde a sua génese aos nossos dias.
O nomadismo que caracterizava as primeiras comunidades, mais tarde
reforçado pelas diásporas, provocou um inevitável encontro de culturas
e mentalidades, elas sim, geradoras de novas culturas-síntese.
Nabucodonosor, sem se dar conta, e ao provocar, com a destruição de
Jerusalém, a primeira diáspora judaica, com as consequências que não
deixaram, desde então, ninguém indiferente, obrigou a uma
disseminação cultural que perdurou durante séculos.
A diáspora africana, com causas não menos violentas, que pesarão para
sempre na memória da Humanidade, tem hoje um peso inegável e uma
presença evidente na atualidade, ao falarmos de cultura ou desporto,
por exemplo.
A diáspora portuguesa, e não me refiro a esta que os nossos políticos
querem hoje forçar, nascida de uma alma maior que o país, deu origem
à grande pátria a que hoje todos nos orgulhamos de pertencer: a pátria
da lusofonia.
Tudo isto levou José Eduardo Agualusa a afirmar que "não há mais um
lugar de origem", existem, sim, "outras fronteiras"; se já os iluministas
valorizavam as virtudes libertadoras da viagem, foram, pois, as
migrações que promoveram a alteração do conceito: as fronteiras
deixaram de ser meramente físicas, geográficas ou políticas, para
assumirem a dimensão cultural.
Neste sentido, as fronteiras de Luanda, por exemplo, atravessam o
Atlântico, até Macedo de Cavaleiros ou Rio de Janeiro, e navegam pelo
Índico até à Índia, ou pelo mar de Timor até Timor Lorossae.
Estes novos mundos dados ao mundo foram, então, o ensejo para o
entrecruzar de culturas, para a troca de experiências ou de afetos; numa
palavra, foram criadas as condições para a “transculturação”, segundo
Ortiz, ou para a “miscigenação”, no dizer de Mendonça freire.
Para estes dois estudiosos, este encontro de “raças, conjuntos sociais,
culturais e linguísticos” deu origem a um fenómeno (…) "heterogéneo"
que marca o advento da pluralidade, da multiculturalidade.
Cruzamentos
2
Como alguém salientou, o desafio que se coloca à escola de hoje,
sobretudo àquelas onde a interculturalidade é imagem de marca, é
promover “ uma unidade dialética” que favoreça a transição “das
estruturas de pensamento para as ações que se desenvolvem no âmbito
escolar, relacionando teoria e prática, objetividade e subjetividade, o
local e o global”.
Em meados do século XV, com a descoberta de Gutemberg, a imprensa
agilizou o cruzamento de saberes, naquilo que mais tarde seria o
conceito da “galáxia de Gutemberg”, um espaço de comunicação que
ajudou à partilha e divulgação cultural.
Ao mesmo tempo que criava este conceito de “galáxia”, Marshall
Mcluhan criava igualmente o conceito ainda hoje em voga, a noção de
“aldeia global”, salientando que as novas tecnologias da informação e
comunicação transformaram o planeta numa aldeola onde todos se
conhecem e a comunicação está à distância de um clic.
Eis, pois, o mundo mediatizado em que vivemos, um espaço onde os
“media” fabricam ou destroem carreiras políticas, um lugar onde as TIC
promovem encontros, desencontros e dependências, seja para os
ansiosos adolescentes, seja para alguns adultos que, a todo o momento
pretendem fazer despertar o ou a “teenager” que há dentro de si.
No mesmo instante, podemos cruzar ideias, culturas ou afetos; esta é a
grande conquista da globalização, ultimamente bastante diabolizada.
Por razões que são óbvias para todos, as tecnologias dos tempos
modernos vieram contrariar o aforismo que clamava que “ na vida há
mais encontrões do que encontros”; sejamos optimistas e acreditemos
que, se o encontrão pode estar ao virar da esquina, não será menos
verdade dizermos que o encontro está apenas à distância de um
pequeno toque de telemóvel.
Muito obrigado a todos
Desejos de uma boa tertúlia
Simão Cadete
Cruzamentos
3
O GATO BOI
Dito por Ana Guerra
Quero que conheçam
este gato. Chama-se Felini e,
acreditem, não se parece com
nenhum outro. Falo-vos de um
gato, digamos assim, muito
ambicioso. Felini era ainda
adolescente, mal se viam os
bigodes, quando se apaixonou.
Coisa séria. Muito séria.
Deixou de comer, deixou de
lamber o pêlo, e passou a
andar pelos telhados como um
vagabundo – sujo, magro,
desgrenhado -, gemendo
tristemente o seu amor. A mãe ficou preocupada:
- Meu filho- perguntou-lhe-, quem é essa gata?
Gata? Felini olhou-a desesperado. Não, não era uma gata. Era
uma vaca! Graciosa, a vaca, pastava os seus dias, isto é, passava os
seus dias, no terreiro em frente à aldeia, com as outras vacas. A mãe
de Felini riu-se, pasmada, e foi contar às amigas: o seu filho – o
pobrezinho! – estava apaixonado por uma vaca. A novidade
espalhou-se pela vizinhança. Os gatos grandes davam-lhe palmadas
nas costas: “ Tens mais boca que barriga”, diziam. Os colegas
troçavam dele. O pior, porém não era isso. O pior, para Felini, aquilo
que realmente o incomodava era a indiferença de Graciosa.
Felini sentava-se à noite em frente do estábulo onde dormia
Graciosa e compunha canções para a lua, canções tristíssimas, que
Cruzamentos
4
falavam dos olhos mansos do seu amor, e do seu pêlo macio, e do
seu caminhar pelo pasto húmido ao amanhecer. Graciosa nem olhava
para ele. A mãe de Felini, cada vez mais preocupada com tamanha
persistência, foi procurá-lo:
-Meu filho - explicou-lhe -, como queres que uma vaca se
interesse por ti? As vacas gostam de animais grandes, como elas, de
bois. Os gatos gostam de gatas.
Era esse o problema? Então – decidiu Felini -, então seria um
boi. A partir desse dia começou a pastar, como as vacas, e com tal
apetite que cresceu, e cresceu, e cresceu, até alcançar o tamanho de
um boi. Só nessa altura voltou a procurar Graciosa. A vaquinha
porém, olhou-o com susto:
-Meu Deus, um gato boi!
O grito dela atraiu os outros animais. Todos o olhavam com
horror. Os gatos já não o aceitavam – ele deixara de ser um gato. As
vacas fugiam ao vê-lo. Felini, tristíssimo, decidiu então partir para
outro país. O mundo era imenso. Em algum lado encontraria quem o
aceitasse sem estranheza.
José Euardo Agualusa, Estranhões &Bizarrocos
Cruzamentos
5
POEMA DO MEU PAÍS
Dito por Miguel Assis
És o longe e o perto e a viagem
nas mãos feitas de medo e aventura
és o mar e a terra e a mensagem
do amor em versos de amargura
e de todos os navios
por dentro dos teus braços prisioneiros
são de sol e sal e vento sul
é a tristeza do meu povo azul
um cheiro de amoras e pinheiros.
És a voz que se levanta
a dor de ser contente
e de não ser
a palavra proibida na garganta
a água
e a sede de a beber.
És esta coragem de escrever
as palavras com o sangue das palavras
como quem inventa
a própria fome
e a sustenta.
És o meu nome por dentro do teu nome
és mais do que esta dor aberta em gomos
daquilo que já fomos e não somos
mais do que este sumo amargo que bebemos.
Cruzamentos
6
E os versos que dizemos?
e as dores que guardamos?
e as armas que empunhamos?
e os filhos que não temos?
e os mares que cruzamos?
e o sangue que perdemos?
quem ri como nós rimos?
dos males que sofremos?
Amo-te
e no entanto eu sei que amar-te
não é trazer teu nome sobre o peito
é mais que o teu saber é esta dor
que o meu povo passeia pelas ruas
é esta luta a sós esta saudade
de um nome fuzilado liberdade.
Joaquim Pessoa, in O Pássaro no Espelho
Cruzamentos
7
O TOMBO DA LUA
Dito por Bruno Páscoa
Uma ocasião, quando
desapareceu a Lua, eu
estava lá e sei contar
tudo. Não me lembro da
idade que então tinha e já
na altura me não
lembrava. Certo é que a
noite estava muito quente
e repassada de azul, assim
de tinta soé dizer-se e a
Lua tinha-se quieta,
redonda e branca,
brilhante como lhe
competia. Provavelmente
o Zé Metade cantava o
fado, postado à soleira da
porta, enquanto acabava
um saquitel de tremoços.
O Zé Metade é assim
chamado desde que lhe
aconteceu uma infelicidade: quis separar o Manecas Canteiro do Mota
Cavaleiro quando eles se envolveram à facada na Esquina dos
Eléctricos, por causa de uma questão, segundo uns política, segundo
outros de saias. Ambos usavam grandes navalhas sevilhanas e o Zé
caiu-lhes mesmo a meio dos volteios. Ali ficou cortado em dois, sem
conserto, busto para um lado, o resto para outro. Daí para diante
ficou conhecido por Zé Metade, arrasta-se num caixote de madeira
com rodinhas e deu-lhe para cantar todas as noites um fado
Cruzamentos
8
melancólico e muito sentido: Ai a profunda desgraça / Em que me
viste ó `nhamãiiii…
Pois foi nesta altura, com tudo assim quieto e a fazer olho para
dormir, que o Andrade da Mula se chegou à janela e disse: “Lá a
calari…” e depois remirou em volta a ver se alguém lhe ligava, o que
não aconteceu.
Após olhou para o Céu e bocejou um destes bocejos do tamanho
duma casa, escancarando muito a bocarra que era considerada uma
das mais competitivas da zona oriental. E então aconteceu aquilo da
Lua.
Deslocou-se um bocadinho assim como quem se desequilibrou,
entrou a descer devagar, ressaltou numa ponta de nuvem que por ali
pairava feita parva, e foi enfiar-se inteirinha na boca do Andrade que
só fez “gulp” e esbugalhou os olhos muito. No sítio da Lua, lá no
astro, ficou um vinco esbranquiçado como dobra em papel de seda
que logo se apagou e o céu tornou-se bem liso e escorreito. O Beco
ficou um tudo nada mais escuro e um gato passou a correr, pardo, da
cor dos outros.
Diz o Zé Metade, no fim duma estrofe: “Ina cum caraças!”
Vai o Andrade lá de cima e atira o maior arroto que jamais se ouviu
naquele Beco.
Era o Zé Metade a berrar para dentro: “`nha mãe, venha cá,
senhora, co Andrade engoliu a Lua!” e o Andrade a olhar para nós,
limpando a boca com as costas da mão, um ar azamboado.
Seguiu-se o alvoroço costumeiro sempre que havia novidade. Ia um
corrupio de pessoal na rua a falar alto e um ror de gente em casa do
Andrade que estava sentado numa cadeira, pernas muito afastadas,
pedindo muita água e queixando-se de que sentia a barriga um
bocado pesada.
Ele não teve culpa, tadinho, que ela é que se lhe veio enfiar pela boca
dentro comentava a mulher do Andrade, torcendo a ponta do avental.
Cruzamentos
9
Mas se foi ele que a desafiou gritava a mãe do Zé dando punhadas
de uma mão na palma da outra mão. Pôr-se ali na janela aos
bocejos, olha a farronca! Agora vem esta a querer baralhar género
humano com Manuel Germano. O meu Zé viu tudo, óvistes?
Não tardou, estava o presidente da Junta, muito hirto, no seu casaco
de pijama com flores:
Istoo meu amigo o que fazia melhor era regurgitar a Lua, ou o Beco
ainda fica mal visto observou com gravidade e voz de papo.
E o Andrade, moita, ali embasbacado, com os olhos no vago.
Deram-lhe azeite para o homem vomitar, mas nada. Limitou-se a
produzir uns sons equívocos e a esboçar um ar de enjoada
repugnância.
O pior é que se ela sai pelo outro lado nos parte a sanita nova
abespinhava-se a filha do Andrade, toda de mão na anca. Que coisa
mais escanifobética…
É levarem-no já para o hospital gritava o Zé Metade da rua, ansioso
por se ver acompanhado na sua desgraça de vítima do escalpelo
cirúrgico.
Mas o presidente da Junta considerou: Então e depois a Lua onde é
que a punham? Quem lhes garantia que ela voltava ao sítio? E se os
médicos quisessem ficar com ela lá no hospital e a prantassem dentro
dum frasco com álcool? Que é que aquela gente ganhava com isso?
Hã? E em faltando a Lua, quais eram os inconvenientes? Hã?
Acabam-se as marés disse o Paulino Marujo.
Coisa de pouca monta afirmou uma mulher. As marés nunca deram
de comer a ninguém. E quanto à luz, depois da electricidade…
Então como é que o amigo se sente? Perguntou o presidente ao
Andrade.
Menos mal, muito obrigado. Vai um pedacinho melhor…
Então é melhor ficarmos assim recomendou o Presidente. Vossemecê
agora toma um bicarbonatozinho, um leitinho, e ala para a cama que
Cruzamentos
10
amanhã é dia de trabalho. E vocês todos, andor, para casa, em
ordem e não se pensa mais em tal semelhante!
E assim foram fazendo, aos poucos e poucos.
No dia seguinte, a Humanidade toda estranhou muito o
desaparecimento da Lua e deu-se a grandes especulações.
Era com algum orgulho que a população do Beco via passar o
Andrade. Sempre gaiteiro, apenas um pouco mais gordo.
Mário de Carvalho, Casos do Beco das Sardinheiras
Cruzamentos
11
ANTES QUE SEJA TARDE
Dito por
Adelaide Simões, Gisela Batista, Sara Brito
Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
Manuel da Fonseca, Poemas Completos
Cruzamentos
12
A QUEDA DE UM ANJO
Dito por Paula Teixeira (e Adelaide Simões)
A luz é intensa aqui no sétimo
círculo. Ponho o chapéu de
palhinha com abas, com uma
fita preta, que me foi fornecido à
entrada. Agora vejo melhor a
paisagem, as espreguiçadeiras,
os anjos, Deus, os outros
habitantes da Eternidade. Nunca
pensei que houvesse
espreguiçadeiras no Paraíso, um
móvel tão amigo de um dos
pecados mortais. Tapo os olhos
por causa da luz. É demais, é
muita luz, e deveria haver um
botão para baixar, para dar
penumbra, como quando baixo
os estores nas tardes de agosto.
Imaginava o Paraíso com
estores. Espero que haja uma
noite para aliviar este dia tão
luminoso.
As grades parecem seguras,
pintadas de azul, que vai bem
com o céu. Mas tenho de
reclamar. Onde é que está o
meu marido? À minha frente surge um anjo, todo vestido de branco.
Quase que ergo a mão para lhe tocar a face, tão jovem, tão bonita,
tão cheia de luz. Em vez disso, sai-me uma pergunta seca: onde é
que está o meu marido? O anjo fica sem saber o que dizer. Digo-lhe
que não me interessa que possam ter achado que o meu marido não
era uma boa pessoa, que ele não era pessoa de vir para o Céu. A
verdade é que se eu vou para o Paraíso, se o mereço, tenho de ter o
meu marido comigo. Que raio de coisa é esta em que passamos a
Cruzamentos
13
eternidade separados das pessoas que amamos? O anjo diz para me
acalmar, mas eu não posso aceitar uma coisa destas. Têm muita luz,
mas esquecem-se de quem amamos! O meu marido podia ser mau,
mas se amamos pessoas assim o que é que devemos fazer? Viver
eternamente sem elas? Que porcaria de paraíso é este? O anjo
encolhe os ombros. Nunca pensei que os anjos os encolhessem, aliás,
nunca pensei que tivessem ombros.
As camas brancas sucedem-se. A brancura agrada-me, é sinal de
higiene. Há um homem a olhar para mim e tem bigode. Esta é outra
coisa que eu não esperava encontrar. Para quê estes pelos? Será que
temos de os cortar ou ficam sempre do mesmo tamanho? É difícil
dizer. Acho que ainda não passou um dia, mas quem é que pode
garantir tal coisa? O tempo deve passar de maneira diferente por
aqui. Se calhar passou uma eternidade. O tempo é muito relativo e
eu sei muito bem o que isso é. Tive um tio que quando abria a boca
para falar, parecia que nunca mais se iria calar, parecia uma
eternidade. Há uma jarra em cima da mesa e vários anjos. Digo-lhes
que se o meu marido não está aqui, que se não é bom o suficiente
para estar aqui, então eu prefiro ir para o Inferno. Pelo menos
estaremos juntos. Tentam dissuadir-me, mas eu não vou desistir.
Agarram em mim e levam-me para um quarto. Sentam-me na cama
e falam-me com voz doce. Fazem com que me deite, trazem-me um
copo de água e eu, passados minutos, sinto vontade de dormir.
Acordo de noite (afinal há noites no Paraíso) e tento acender um
candeeiro, mas só dá escuro. Tenho de chegar ao Inferno, penso,
tenho de chegar ao Inferno.
Estou no sexto círculo e iniciei a minha viagem para o Inferno.
Começo a lembrar-me de coisas, recordações, idas à praia. Como eu
gostava de ir à praia, da areia, do sol a derreter-me o corpo. O meu
marido não gostava. Ficava deitado na toalha a beber cerveja e a ler
o jornal desportivo, enquanto eu caminhava até à beira de água. (…)
Sempre fui muito infantil. Não é fácil ser-se uma criança tão velha
como eu sou. Muitas vezes quero dançar e as minhas pernas apenas
tremem, não concordam com o que eu quero e isso deixa-me triste.
Insulto as minhas pernas e digo-lhes que ficaram velhas e já não
sabem viver a vida, por isso, para lhes mostrar como se pode ser
feliz, danço realmente, mas sem mexer as pernas, só balançando os
braços. E quando estes se cansam, danço só com a imaginação e
Cruzamentos
14
então dou pulos muito grandes e, nessa altura, ninguém me
repreende, nem sequer o meu marido que continua a ler o jornal
desportivo.
Tenho comichão nas costas. Que coisa estranha, pois como é que se
coça as costas? No Paraíso não deveria haver costas se não
chegamos lá com as mãos. Começo a ter demasiadas reclamações a
fazer. Que o mundo não fosse perfeito, compreende-se, mas um
paraíso assim é inaceitável. Talvez deva pedir aos anjos que me
cocem as costas, mas não vejo nenhum. Dizem que os anjos não têm
costas, o que faz todo o sentido. Se calhar eu também não tenho e a
comichão que sinto é como a daqueles sujeitos amputados, soldados
e isso, que continuam a sentir dor na perna que lhes foi serrada para
impedir que a gangrena alastrasse. É um inferno muito grande ter
comichão numa zona do corpo que já não possuímos. É o mesmo que
ir às compras sem levar a carteira.
Sim, a cabeça funciona bem. Passo por lugares do meu passado com
muita rapidez, como se corresse num campo verde. Vejo o meu gato
Van Gogh, que é muito peludo, e eu sou alérgica aos animais, não é
só aos pólenes, por isso, não lhe mexo, mas passo os olhos por cima
dele, que tem o mesmo efeito que passar as mãos, e ele ronrona e
sente o meu olhar como se fossem os meus dedos. (…)
A primeira vez que eu e o meu marido fizemos amor foi numa
caravana que ele tinha comprado em segunda mão, toda branca com
gaivotas azuis. Não eram gaivotas verdadeiras, eram autocolantes e
não voavam, apesar de terem as asas abertas. A caravana tinha uma
mesa que fazia de sala e tecidos azuis e vermelhos. O meu marido —
que na altura em que tinha comprado a caravana com gaivotas azuis
ainda não era meu marido — deu-me um estalo porque eu não queria
fazer umas coisas com a boca. Foi bem feito, eu era muito burra, era
como uma criança e ele era uma pessoa muito sábia e experimentada
que tinha andado embarcada e tinha visto o mundo. Fiquei muito
mais mulher depois daquela tarde. (…)
Uma vez vesti-me de branco, como a caravana, e acabei por sujar o
vestido, pois o branco atrai muitas nódoas. Foi no dia em que me
casei. O branco também atrai maridos e as nódoas são como os
pássaros, andam a voar à nossa volta e poisam em roupas lavadas.
Cruzamentos
15
Estou a descer rapidamente para o Inferno. Consigo sentir o calor a
encher-me as bochechas, a cara toda. Dantes sabia ver as horas sem
olhar para o relógio e nunca falhava por mais de um ou dois minutos.
O meu marido foi um homem que, a certa altura da vida, começou a
juntar anos. Em vez de os viver, juntava-os. Viveu muito tempo, mas
sem noção disso. O meu marido já estava tão velho que já não
envelhecia, apenas apodrecia. Eu gostava muito dele e não sou capaz
de viver eternamente sem o ter a meu lado eternamente. Os
desenhos recortam-se com tesouras. A alma recorta-se com palavras.
Eu sempre fiz isso muito bem, é como cortar as unhas. Sempre fui
muito boa nisso.
O cabelo não cai só aos homens, e às árvores no outono, também cai
às mulheres, e eu já não tenho muito. Ultimamente, sempre que me
vejo ao espelho consigo ver a curva da cabeça.
Quando esfrego os olhos são muitos séculos de olhar que estou a
esfregar. Porque uma pessoa não tem só o seu passado, tem também
os passados de todos os seus familiares, dos seus amigos, das
histórias que leu ou que ouviu. Não é? Quando esfregamos os olhos,
esfregamos muitos séculos.
(…)
Estou toda nua e sinto-me mais nova. A proximidade ao Inferno tem
efeitos benéficos na pele. Ouço barulho de automóveis e isso diz-nos
alguma coisa sobre...
Nota final — ou R/C.
A minha prima, Ema de Jesus, atirou-se da
janela do lar Paraíso — que ocupava o
sétimo andar de um prédio do centro —,
para onde se havia mudado recentemente,
logo a seguir à morte do marido. Todos
sentimos algum alívio quando ele morreu
após doença prolongada. É um sentimento
triste, mas não há que ser hipócrita a
respeito disso.
Sempre ouvi dizer que o tempo é muito
relativo. Lembro-me de um tio que, quando
abria a boca, parecia que nunca mais se
Cruzamentos
16
iria calar, eram discursos que pareciam durar eternidades. Espero
que a queda da minha prima lhe tenha permitido, tal como tenho
ouvido dizer que acontece nestas ocasiões, rever a sua vida toda em
segundos como se a estivesse a viver de novo. Ou pelo menos
relembrar algumas das coisas que lhe foram mais queridas. Acho que
oitenta e dois anos cabem perfeitamente dentro de uma queda de
sete andares.
O lar Paraíso foi alvo de um processo judicial.
Afonso Cruz, A queda de um anjo
Cruzamentos
17
UM SENTÍ SODADE
Dito por Carmindo Lopes
Adias, um senti sodade de terra.
Um bá paaeropôrt de Lisboa sem kônd nada.
Um nada na mei d´aquelpoóv,
k´tava ta viajá pa terra!
Na boa e sem kônd nada um dá kúm vizinha ta embarcá.
Vizinha é d´la de cômpBitim, um
dal um pedacím de mim.
El tava ma sêfilhinha,el ca cris sabê
d´mim.
Um dzélquêra mim, Cá di Cá um ca ta embarcá.
El tava embarcá naquel voo diréct
pa sãocente
Um fcá contente. Um críisencostá na sê mala.
Um dzelk´mi é Cá di Cá, um cris
sentísãocente!
Mi lá na aeropôrt, um viajá, um
matá sodade!
Um falá de nha família, um falá de nhasamiíg.
Um bá paaerpôrt sem kôndnada.Um ca embarcá.
Um enviá um recôd d´sodadepal levam nhasamiíg.
Vizinha tava ma sê filhinha, ma um contaltúdsodade.
És ta dzék´táexistímisteêr;
Cruzamentos
18
Kel avião cabá de levantávoô, um rancá.
Um saltá rio tejo pam beijá nha cretcheu!
És ta dzék´táexistímisteêr; um saltal um beijal!
Um saltá rio tejo, pam bá panhá combói na Miratejo!
Um entrá na combói, ma el ca rancá.
Um embarcá na nhapensamente, um falásentimente!
Um fcá ta esperápam ca rancá.
Um ta lí ta esperá
Um ta lí ta sonhá…
Carmindo Lopes
Cruzamentos
22
FADO FALADO
Dito por João Pedro Costa
Fado Triste
Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar
Ouve-se a voz
Voz inspirada de uma raça
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar
Mãos doloridas na guitarra
que desgarra dor bizarra
Mãos insofridas, mãos
plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando à traição, ciume e morte
E um coração a bater forte
Cruzamentos
23
Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dia de procissão
Da Senhora da Saúde
Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe
Trazia-os ele do mar
Eram bravios e salgados
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinho
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama
Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
Cruzamentos
24
E lá em casa:
Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar
Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
Mas não marca a sombra dele
Procurou como doida
E ao voltar da esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, levião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
Cruzamentos
25
O que resta de um cigarro
Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele
E o ciúme chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu
Correm vertigens num grito
Direito ou maldito que há-de perder
Puxa a navalha, canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua
Mãos carinhosas, generosas
Cruzamentos
26
Que não conhecem o rancor
Mãos que o fado compreendem
e entendem sua dor
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar
E pouco a pouco o amor regressou
Como lume queimou
Essas bocas febris
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir
Há gargalhadas no ar
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor
Há alegria na viela
E em cada janela
Cruzamentos
27
Renasce uma flor
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado.
João Villaret
Guitarras: António Rodrigues e Bartolomeu Dutra
Cruzamentos
28
SEMBA
Dito por José Jacinto
O Semba é Único.
Há tanto tempo...
Há tantas gerações.
Tá aí discreto,
mas foi no seu embalo
que tantas músicas
se derivaram puras.
Plantaram depois
sons na Geórgia,
Nova Orleães,
Rio de Janeiro,
Baía, Jamaica,
Lisboa... e mais e mais...
Sons alimentados pela
seiva ´
da árvore musical de
Angola.
Semba é fonte boa.
Semba é mais.
José jacinto
Cruzamentos
29
POÇO DOS NEGROS
Dito por Miguel Assis
A história que gente vos quer contar
Aconteceu um dia em lisboa
Aonde o tempo corre devagar
Chegamos era cedo à ribeira
Ainda todo o peixe respirava
E a outra carne aos poucos definhava
O gemido do cordame das amarras
Juntava-se ao lamento dos porões
E o que nos chega fora são canções
A gente viu sair muita gente que dançava
Um estranho bailado em tom dolente
Marcado pelo bater das corrente
Anda linda
Vamos p´ra ver se é verdade
Que lá se pode ouvir cantar
Anda linda
Vamos ao poço dos negros
P´ra ver quem pode lá morar
Cruzamentos
30
Mais tarde fomos ter àquela parte da cidade
Que é mais profunda do que maré baixa
E a lua só visita por vaidade
De novo a estranha moda se dançava
Agora com suspiros de saudade
Agora com bater de corações
Batiam-se com barriga e roçavam-se nas coxas
Os corpos já dourados de suor
E as bocas já vermelhas dos amores
Quisemos nós saber qual é o nome desta moda
Respondeu-nos um velho já mirrado
Lundum mas se quiserem chamem-lhe fado
Trovante
Cruzamentos
31
MICROFONE ESCONDIDO
Dito por Paula Teixeira
Leonor achou a ideia péssima,
mas Ataíde insistiu: botar um
microfone escondido no elevador do prédio seria muito divertido.
Não queria ouvir o que os vizinhos diziam, subindo ou
descendo pelo elevador. Os vizinhos não interessavam.
Divertido mesmo seria ouvir o que os amigos do casal diziam,
chegando ou saindo do apartamento.
- Vai dar galho, Ataíde... - Vai nada.
E Ataíde instalou um microfone no elevador.
O primeiro teste foi quando
convidaram o Júlio e a Rosa para jantar.
Ataíde ouviu Júlio dizer para Rosa dentro do elevador, na
subida: - Às onze horas a gente dá o
fora. - Acho que às onze ainda não
serviram o jantar. Se eu conheço a Leonor...
- Não importa. Às onze nos mandamos. Amanhã eu tenho
academia. E Ataíde ouviu Júlio dizer para Rosa dentro do elevador, na descida:
- Saco, Rosa. Uma hora da manhã. Não viu eu fazer sinais prà gente
ir embora? - Aquilo era um sinal? Pensei que você estivesse limpando o ouvido.
Outro jantar. Aniversário do Ataíde. Os dois últimos casais saem juntos. Ataíde corre para ouvir o que vão dizer no elevador.
- O Ataíde está meio acabadão, tá não? - Acho não. Prà idade dele...
- Também, ter de aguentar a Leonor... No apartamento, Leonor se revolta:
- Quem disse isso? De quem é a voz? - Parece a da Soninha - diz Ataíde.
Cruzamentos
32
- Cachorra! Outro jantar. Ligam da portaria para anunciar que o Sr. Marcos e a
Dona Lia estão subindo. No elevador, Lia diz:
- Se a Leonor servir salmão outra vez, eu me mato. Depois, Lia não entende a frieza da Leonor com ela durante todo o
jantar. Não sabe que Leonor teve de suspender o salmão que serviria. Que substituiu o salmão por um resto de pernil que, graças a
Deus, ainda tinha na geladeira. Descendo no elevador, Lia comenta com Marcos:
- A Leonor enlouqueceu. Você viu? Serviu pernil com molho remolado pra peixe.
Leonor anuncia que nunca mais convidará Lia para nada. Depois de um jantar para os amigos que ainda restavam, os melhores amigos
do casal foram os últimos a sair. Marjori e Adão. Amigos chegadíssimos. Amigos de muito tempo. Depois das despedidas,
depois de fechada a porta do elevador e de o elevador começar a descer com Marjori e Adão, Ataíde hesitou. Talvez fosse melhor não
ouvir o que os amigos iam dizer a respeito deles e do jantar no
elevador. - Você acha? - perguntou Leonor.
- Melhor não. Você tinha razão. Não foi uma boa ideia botar esse microfone.
- Mas agora está posto. Vamos ouvir. - Leonor... Nós vamos acabar brigando com todos os nossos amigos.
- Eu quero ouvir, Ataíde. Preciso ouvir o que a Marjori e o Adão estão dizendo!
O que ouviram foi o fim de uma frase dita pelo Adão: - ...cada vez mais chato.
- Viu só, Ataíde? - disse Leonor. - É sobre você. - Porquê eu? Tinha mais gente no jantar!
- Sei não... Sei não... E nunca saberiam mesmo. No dia seguinte, Ataíde tirou o microfone
escondido no elevador.
Luís Fernando Veríssimo, Crónicas
Cruzamentos
36
OS DOIS IRMÃOS
Dito por Ladislau Albuquerque
O juiz acabaria por
considerar como provado
que André Pascoal matou
o irmão em circunstâncias
não de todo perfeitamente
esclarecidas mas que no
entanto apontaram a sua
convicção para a prática
de um crime de homicídio
voluntário.
Enquanto
esperavam que se viesse
comunicar ao advogado
estar servido o famoso almoço, o Tribunal continuou ouvindo André a
contar como tinha parado um momento junto à porta do quarto
contemplando sobre a cómoda a fotografia do seu casamento.
Figurava-lhe como se estivesse a voltar para casa depois de um único
dia de ausência, disse, porque todas as coisas se encontravam nos
lugares em que ele se lembrava que sempre tinham estado: a cama
no mesmo canto à esquerda de quem entra, o guarda-fato ao fundo
virado para a porta com o espelho de corpo inteiro onde ele agora se
via reflectido, a pesada cadeira forrada e o primeiro espelho de corpo
inteiro a chegar na sua povoação. Tinha-os conhecido numa das suas
primeiras idas à cidade e nessa altura tinha decidido que quando
Cruzamentos
37
estivesse a casar-se haveria de comprar umas iguais. No entanto,
não tinha sido fácil transportá-los nos lombos de uma mula durante
cerca de quinze quilómetros, especialmente porque a cada topada da
besta ele via as suas jóias em fanicos pelo chão. Tinha mesmo
acabado por carregar o espelho debaixo do braço por quase todo o
caminho, mas depois de instalado no seu quarto toda a aldeia se
tinha deslocado à sua casa para se admirar em corpo inteiro diante
do orgulhoso sorriso de André. A cómoda continuava à direita, com a
fotografia do seu casamento mais pendida sobre o lado esquerdo
para melhor poder ser vista logo da porta de quarto. André reviu-se
de fato preto e gravata e luvas brancas passando o seu braço pelo
braço da Maria Joana toda vestida de branco, o longo véu tapando-
lhe a cara. Sorriu ao pensar que aquela maneira de se casar já de há
muito que estava fora de moda e se fosse agora não teria ido à igreja
de luvas, talvez nem mesmo de fato, mas certamente que nunca
seria de fato preto. Atrás dos noivos viam-se o pai, a mãe, João, o tio
Doménico, João e Doménico sorrindo, os seus pais de rosto fechado e
sério. Tinha sido há quatro anos atrás, mas são daquelas coisas que a
gente nunca mais esquece na vida, embora seja verdade que
praticamente nem tinha sido consultado sobre se era ou não o que
queria fazer. Quando o pai de Maria Joana tinha aparecido certa noite
solicitando o pai de André para uma conversa particular, ele tinha
ficado demasiado atemorizado para tentar surpreender do que
estariam falando, embora soubesse de certeza absoluta que aquele
assunto lhe dizia respeito. Foi João quem, escondendo-se no sobrado,
tinha escutado todo o longo monólogo. De princípio João não tinha
entendido onde o homem queria chegar porque ele tinha começado
por falar de mais um ano de crise que se avizinhava por falta das
chuvas que nunca mais chegavam, do filho que já estava na
emigração, pelo que era a filha que todos os dias se esfalfava nos
campos em busca de alguma palha para os animais que tinham no
curral. Embora ainda apenas com 16 anos, a filha tinha sido até
Cruzamentos
38
pouco tempo antes uma rapariga ajuizada e trabalhadeira e
respeitadora dos conselhos dos seus maiores. Mas infelizmente era
certo estar o mundo cheio das mais diversas tentações e nem sempre
era possível a um pai, como tinha sido seu desejo, afastar uma filha
dos caminhos da perdição e conservá-la na dignidade das tradições
familiares até ao dia em que honradamente pudesse ser levada ao
altar por um rapaz de respeito. A seguir o velho tinha falado dos
rapazes que voltavam da emigração com as novas ideias que
chamavam de modernidade, mas que no fundo não eram senão de
malandragem porque apenas tinham em vista desinquietar e
desgraçar as famílias honradas. O pai de André ouvia tudo em
silêncio, ao João parecia que ele concordava com a cabeça porque o
pai de Maria Joana começou então a falar da filha e do André.
Considerava André um bom rapaz, sossegado, trabalhador,
respeitador dos mais velhos. Esta aliás a razão por que não tinha
metido qualquer impedimento quando por diversas vezes tinha visto
André acompanhando a Maria Joana. Mas infelizmente, e sem de
forma alguma estar a querer desfazer do rapaz por quem continuava
a ter consideração, parecia que André também participava dessas
ideias de modernice porque tinha sido informado pela sua mulher que
os dois jovens tinham ido mais longe do que seria de esperar num
rapaz da sua qualidade, e tudo isso sem ter dado aos pais qualquer
satisfação. Estava pois ali para que eles, os dois velhos, decidissem
como resolver aquela triste questão porque, que destino poderia
agora esperar uma pobre rapariga, desgraçada e lançada no mundo?
Um longo silêncio tinha seguido a estas palavras. Mais que ouvir João
adivinhou que seu pai se preparava para enrolar um cigarro e de
facto pouco depois ouviu-o riscar um fósforo e sentiu chegar até onde
estava o cheiro do seu tabaco. Depois o pai suspirou e disse com ar
cansado que fosse o que fosse que o seu filho tinha feito, sabia ser
ele honrado e digno o suficiente para não fugir a uma
responsabilidade capaz de envergonhar os seus maiores. E, assim, se
Cruzamentos
39
André de facto tinha feito alguma coisa de contrário à moça, ficaria
desde aquela hora garantido que André estaria na disposição de
imediatamente reparar todo e qualquer mal que tivesse feito pela
forma que a família considerasse satisfatória. O pai de Maria Joana
agradeceu com comedimento, disse que nunca tinha esperado outra
atitude de um homem honrado e cumpridor como era o pai de André.
E partiu levando com ele a promessa de breve casamento. João tinha
conseguido escapulir-se do sobrado sem ser visto e correu a avisar
André. Ainda ofegante pela corrida e com o coração aos saltos,
resumiu-lhe a conversa dizendo que o homem tinha dito que André
tinha tirado os três vinténs a Maria Joana e por isso tinham que se
casar depressa. E foi logo opinando que André não devia casar-se à
força. João era quatro anos mais novo que o irmão, mas a firmeza
das suas convicções impressionavam André. Ela ainda é menor, disse
este, poderei ir parar à cadeia, mas João respondeu desabrido que
cadeia era feia para gente, os bichos eram fechados em currais.
Porém, o pai de André não tinha chegado propriamente a pedir-lhe a
sua opinião sobre o casamento, limitando-se a perguntar-lhe se era
verdade que ele se tinha servido da Maria Joana. Eternamente tímido
diante do pai, André conservou-se calado e de cabeça baixa e então o
velho lembrou-lhe que quando um homem de bem se deita com uma
mulher donzela, está diante de Deus a tomá-la por sua legítima
esposa. Este é um dever sagrado que deve continuar a ser respeitado
e que espero estejas na disposição de honrar, ajuntou. E foi assim
que André se viu a casar-se quando tinha apenas 20 anos de idade.
Germano Almeida, Os dois irmãos
Cruzamentos
40
Agradecimentos especiais:
A todos aqueles que no passado ou no presente fizeram ou fazem
parte da ESA.
São eles:
Os alunos, Bruno Páscoa, Gisela Batista e Sara Brito.
Os ex-alunos Carmindo Lopes, Paulo Teixeira (responsável pelas
luzes e som, voluntário da BE), Ana Paula Teixeira, nossa assistente
operacional, e o ator Miguel Assis – encenador do nosso grupo de
teatro «Contra a Regra».
Os professores Adelaide Simões, Ana Guerra, António Rodrigues,
Bartolomeu Dutra, Ilda Neves, João Pedro Costa, José Jacinto e, por
último, ao nosso ex-colega, prof. Ladislau Albuquerque.
E um agradecimento muito especial à voluntária da BE, profª Isabel
Tavares e ao músico cantor Juary Livramento.
Um agradecimento particular às nossos parceiras:
Da Câmara Municipal do Seixal, do Gabinte de Migrações e Cidadania,
dra. Helena Palacino e dra. Sílvia Pereira.
Da Associação cabo-verdiana do Seixal, na pessoa da nossa também
ex-aluna, Lídia Duarte.
Custódia Rebocho
(PB)