Contos Eca Queiros

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CONTOS EÇA DE QUEIRÓS

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  • CONTOS

    EA DE QUEIRS

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    CONTOS

    EA DE QUEIRS

    Esta obra respeita as regras

    do Novo Acordo Ortogrfico

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    NDICE

    SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA 4

    UM POETA LRICO 22

    NO MOINHO 30

    CIVILIZAO 39

    O TESOURO 57

    FREI GENEBRO 63

    ADO E EVA NO PARASO 70

    A AIA 92

    O DEFUNTO 96

    JOS MATIAS 118

    A PERFEIO 135

    O SUAVE MILAGRE 148

    OUTRO AMVEL MILAGRE 154

    O SENHOR DIABO 158

    MEMRIAS DE UMA FORCA 167

    UM GNIO QUE ERA UM SANTO 173

    O MILHAFRE 199

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    SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA

    Comeou por me dizer que o seu caso era simples e que se chamava Macrio... Devo contar que

    conheci este homem numa estalagem do Minho. Era alto e grosso: tinha uma calva larga, luzidia e

    lisa, com repas brancas que se lhe eriavam em redor: e os seus olhos pretos, com a pele em roda

    engelhada e amarelada, e olheiras papudas, tinham uma singular clareza e retido por trs dos seus

    culos redondos com aros de tartaruga. Tinha a barba rapada, o queixo saliente e resoluto. Trazia uma

    gravata de cetim negro apertada por trs com uma fivela; um casaco comprido cor de pinho, com as

    mangas estreitas e justas e canhes de veludilho. E pela longa abertura do seu colete de seda, onde

    reluzia um grilho antigo saam as pregas moles de uma camisa bordada.

    Era isto em Setembro; j as noites vinham mais cedo com uma friagem fina e seca e uma escurido

    aparatosa. Eu tinha descido da diligncia, fatigado, esfomeado, tiritando num cobrejo de listras escarlates.

    Vinha de atravessar a serra e os seus aspetos pardos e desertos. Eram oito horas da noite. Os cus

    estavam pesados e sujos. E, ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar montono

    da diligncia, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influncia da paisagem escarpada e chata,

    sobre cncavo silncio noturno, ou a opresso da eletricidade que enchia as alturas, o facto que

    eu que sou naturalmente positivo e realista tinha vindo tiranizado pela imaginao e pelas

    quimeras. Existe no fundo de cada um de ns, certo to friamente educados que sejamos um

    resto de misticismo; e basta s vezes uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitrio, um ermo

    asctico, as emolientes brancuras de um luar para que esse fundo mstico suba, se alargue como

    um nevoeiro, encha a alma, a sensao e a ideia, e fique assim o mais matemtico, ou o mais crtico,

    to triste, to visionrio, to idealista como um velho monge poeta. A mim, o que me lanara na

    quimera e no sonho fora o aspeto do Mosteiro de Restelo, que eu tinha visto, na claridade suave e

    outonal da tarde, na sua doce colina. Ento, enquanto anoitecia, a diligncia rolava continuamente

    ao trote esgalgado dos seus magros cavalos brancos, e o cocheiro, com o capuz do gabo enterrado

    na cabea, ruminava no seu cachimbo eu pus-me elegiacamente, ridiculamente, a considerar a

    esterilidade da vida: e desejava ser um monge, estar num convento, tranquilo, entre arvoredos, ou

    na murmurosa concavidade de um vale, e enquanto a gua da cerca canta sonoramente nas bacias de

    pedra, ler a Imitao, e, ouvindo os rouxinis nos loureirais, ter saudades do Cu. No se pode ser

    mais estpido. Mas eu estava assim, e atributo a esta disposio visionria a falta de esprito a sensao

    que me fez a histria daquele homem dos canhes de veludinho.

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    A minha curiosidade comeou ceia, quando eu desfazia o peito de uma galinha afogado em arroz

    branco, com fatias escarlates de paio e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o

    vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem estava de cara de mim,

    comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guardanapo de linho de

    Guimares suspenso nos dedos se ele era de Vila Real.

    Vivo l. H muitos anos disse-me ele. Terra de mulheres bonitas, segundo me consta disse

    eu. O homem calou-se. Hem? perguntei.

    O homem contraiu-se num silncio saliente. At a estivera alegre, rindo dilatadamente; loquaz e

    cheio de bonomia. Mas ento imobilizou o seu sorriso fino.

    Compreendi que tinha tocado a carne viva de uma lembrana. Havia de certo no destino daquele

    velho uma mulher. A estava o seu melodrama ou a sua farsa, porque inconscientemente estabeleci-

    me na ideia de que o facto, o caso daquele homem, devera ser grotesco. e exalar escrnio.

    De sorte que lhe disse: A mim tm-me afirmado que as mulheres de Vila Real so as mais bonitas

    do Minho. Para olhos pretos Guimares, para corpos Santo Aleixo, para tranas os Arcos: l que se

    veem os cabelos claros cor de trigo.

    O homem estava calado, comendo, com os olhos baixos. Para cinturas finas Viana, para boas

    peles Amarante e para isto tudo Vila Real. Eu tenho um amigo que veio casar a Vila Real. Talvez

    conhea. O Peixoto, um alto, de barba loura, bacharel.

    O Peixoto, sim disse-me ele, olhando gravemente para mim. Veio casar a Vila Real como

    antigamente se ia casar Andaluzia questo de arranjar a fina-flor da perfeio.

    sua sade. Eu evidentemente constrangia-o, porque se ergueu, foi janela com um passo pesado,

    e eu reparei ento nos seus grossos sapatos de casimira com sola forte e atilhos de couro. E saiu.

    Quando eu pedi o meu castial, a criada trouxe-me um candeeiro de lato lustroso e antigo e disse;

    O senhor est com outro. E no n 3. Nas estalagens do Minho, s vezes, cada quarto um dormitrio

    impertinente. V disse eu. O n 3 era no fundo do corredor. s portas dos lados os passageiros

    tinham posto o seu calado para engraxar: estavam umas grossas botas de montar, enlameadas, com

    esporas de correia; os sapatos brancos de um caador, botas de proprietrio, de altos canos vermelhos;

    as botas de um padre, altas, com a sua borla de retrs; os botins cambados de bezerro, de um estudante;

    e a uma das portas, o n 15, havia umas botinas de mulher, de duraque, pequeninas e finas, e ao lado

    as pequeninas botas de uma criana, todas coadas e batidas, e os seus canos de pelica-mor caam-lhe

    para os lados com os atacadores desatados. Todos dormiam. em frente do n 3 estavam os sapatos de

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    casimira com atilhos: e quando abri a porta vi o homem dos canhes de veludilho, que amarrava na

    cabea um leno de seda estava com uma jaqueta curta de ramagens, uma meia de l, grossa e alta, e

    os ps metidos nuns chinelos de ourelo.

    O senhor no repare disse ele. vontade. E para estabelecer intimidade tirei o casaco.

    No direi os motivos porque ele da a pouco, j deitado, me disse a sua histria. H um provrbio

    eslavo da Galcia que diz: O que no contas tua mulher, o que no contas ao teu amigo, conta-lo a

    um estranho, na estalagem. Mas ele teve raivas inesperadas e dominantes para a sua larga e sentida

    confidncia. Foi a respeito do meu amigo, do Peixoto, que fora casar a Vila Real. Vi-o chorar, quele

    velho de quase sessenta anos. Talvez a histria seja julgada trivial: a mim, que nessa noite estava

    nervoso e sensvel, pareceu-me terrvel mas conto-a apenas como um acidente singular da vida

    amorosa...

    Comeou pois por me dizer que o seu caso era simples e que se chamava Macrio.

    Perguntei-lhe ento se era de uma famlia que eu conhecera, que tinha o apelido de Macrio.

    E como ele me respondeu que era primo desses, eu tive logo do seu carcter uma ideia simptica,

    porque os Macrios eram uma antiga famlia, quase uma dinastia de comerciantes, que mantinham

    com uma severidade religiosa a sua velha tradio de honra e de escrpulo. Macrio disse-me que

    nesse tempo, em I8z; ou ;g, na sua juventude, seu tio Francisco tinha, em Lisboa, um armazm de

    panos, e ele era um dos caixeiros. Depois o tio compenetrara-se de certos instintos inteligentes e do talento

    prtico e aritmtico de Macrio, e deu-lhe a escriturao. Macrio tornou-se o seu guarda-livros.

    Disse-me ele que sendo naturalmente linftico e mesmo tmido, a sua vida tinha nesse tempo uma

    grande concentrao. Um trabalho escrupuloso e fiel, algumas raras merendas no campo, um apuro

    saliente de fato e de roupas brancas, era todo o interesse da sua vida. A existncia, nesse tempo, era

    caseira e apertada. Uma grande simplicidade social aclarava os costumes: os espritos eram mais

    ingnuos, os sentimentos menos complicados.

    Jantar alegremente numa horta, debaixo das parreiras, vendo correr a gua das regas chorar com

    os melodramas que rugiam entre os bastidores do Salitre, iluminados a cera, eram contentamentos

    que bastavam burguesia cautelosa. Alm disso, os tempos eram confusos e revolucionrios: e nada

    torna o homem recolhido, conchegado lareira, simples e facilmente feliz como a guerra. E a paz

    que, dando os vagares da imaginao, causa as impacincias do desejo.

    Macrio, aos vinte e dois anos, ainda no tinha como lhe dizia uma velha tia, que fora querida do

    desembargador Curvo Semedo, da Arcdia sentido Vnus.

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    Mas por esse tempo veio morar para em frente do armazm dos Macrios, para um terceiro andar,

    uma mulher de quarenta anos, vestida de luto, uma pele branca e baa, o busto bem feito e redondo e

    um aspeto desejvel. Macrio tinha a sua carteira no primeiro andar por cima do armazm, ao p de

    uma varanda, e dali viu uma manh aquela mulher com o cabelo preto solto e anelado, um chambre

    branco e braos nus, chegar-se a uma pequena janela de peitoril, a sacudir um vestido. Macrio

    afirmou-se, e, sem mais inteno, dizia mentalmente aquela mulher, aos vinte anos, devia ter sido uma

    pessoa cativante e cheia de domnio: porque os seus cabelos violentos e speros, o sobrolho espesso,

    o lbio forte, perfil aquilino e firme, revelam um temperamento ativo e imaginaes apaixonadas.

    No entanto, continuou serenamente alinhando as suas cifras. Mas noite estava sentado fumando

    janela do seu quarto, que abria sobre o ptio: era em Julho e a atmosfera estava eltrica e amorosa: a

    rabeca de um vizinho gemia uma xcara mourisca, que ento sensibilizava, e era de um melodrama; o

    quarto estava numa penumbra doce e cheia de mistrio Macrio, que estava em chinelas, comeou

    a lembrar-se daqueles cabelos negros e fortes e daqueles braos que tinham a cor dos mrmores

    plidos: espreguiou-se, rolou morbidamente a cabea pelas costas da cadeira de vime, como os

    gatos sensveis que se esfregam, e decidiu bocejando que a sua vida era montona. E ao outro dia,

    ainda impressionado, sentou-se sua carteira com a janela toda aberta, e olhando o prdio vizinhos,

    onde viviam aqueles cabelos grandes comeou a aparar vagarosamente a sua pena de rama. Mas

    ningum se chegou janela do peitoril, com caixilhos verdes. Macrio estava enfastiado. pesado

    e o trabalho foi lento. Pareceu-lhe que havia na rua um sol alegre, e que nos campos as sombras

    deviam ser mimosas e que se estaria bem vendo o palpitar das borboletas brancas nas madressilvas!

    E quando fechou a carteira sentiu em frente correr-se a vidraa; eram de certo os cabelos pretos.

    Mas apareceram uns cabelos louros. Oh! E Macrio veio logo salientemente para a varanda aparar

    um lpis. Era uma rapariga de vinte anos, talvez fina, fresca, loura como uma vinheta inglesa: a

    brancura da pele tinha alguma coisa de transparncia das velhas porcelanas, e havia no seu perfil

    uma linha pura, como de uma medalha antiga e os velhos poetas pitorescos ter-lhe-iam chamado

    pomba, arminho, neve e ouro.

    Macrio disse consigo: filha. A outra vestia de luto, mas esta, a loura tinha um vestido de cassa

    com pintas azuis, um leno de cambraia trespassado sobre o peito, as mangas pendidas com rendas, e

    tudo aquilo era asseado, moo, fresco, flexvel e tenro.

    Macrio, nesse tempo, era louro, com barba curta. O cabelo era anelado e a sua figura devia ter aquele

    ar seco e nervoso que depois do sculo XVIII e da revoluo foi to vulgar nas raas plebeias.

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    A rapariga loura reparou naturalmente em Macrio, mas naturalmente desceu a vidraa correndo

    por trs uma cortina de cassa bordada. Estas pequenas cortinas datam de Goethe e elas tm na vida

    amorosa um interessante destino: revelam. Levantar-lhe uma ponta e espreitar, franzi-la suavemente,

    revela um fim; corr-la, pregar nela uma flor, agit-la fazendo sentir que por trs um rosto atento se

    move e espera so velhas maneiras com que na realidade e na arte comea o romance. A cortina

    ergueu-se devagarinho e o rosto louro espreitou.

    Macrio no me contou por pulsaes a histria minuciosa do seu corao. Disse singelamente

    que da a cinco dias estava louco por ela. O seu trabalho tornou-se logo vagaroso e infiel e o

    seu belo cursivo ingls, firme e largo, ganhou curvas, ganchos, rabiscos, onde estava todo o romance

    impaciente dos seus nervos. No a podia ver pela manh: o sol mordente de Julho batia e escaldava

    a pequena janela de peitoril. S pela tarde, a cortina se franzia, se corria a vidraa, e ela, estendendo

    uma almofadinha no rebordo do peitoril, vinha encostar-se mimosa e fresca com o seu leque. Leque

    que preocupou Macrio: era uma ventarola chinesa, redonda, de seda branca com drages escarlates

    bordados pena, uma cercadura de plumagem azul, fina e trmula como uma penugem, e o seu cabo de

    marfim, donde pendiam duas borlas de fio de ouro, tinha incrustaes de ncar linda maneira persa.

    Era um leque magnfico e naquele tempo inesperado nas mos de plebeias de uma rapariga vestida

    de cassa. Mas como ela era loura e a me to meridional, Macrio, com intuio interpretativa dos

    namorados, disse sua curiosidade: Ser filha de um ingls. O ingls vai China, Prsia, a Ormuz,

    Austrlia e vem cheio daquelas joias dos luxos exticos, e nem Macrio sabia porque que aquela

    ventarola de mandarina o preocupava assim: mas segundo ele me disse aquilo deu-lhe no goto.

    Tinha-se passado uma semana, quando um dia Macrio viu, da sua carteira, que ela, a loura, saa com

    a me, porque se acostumara a considerar me dela aquela magnfica pessoa, magnificamente plida

    e vestida de luto.

    Macrio veio janela e viu-as atravessar a rua e a entrarem no armazm! Desceu logo trmulo, sfrego,

    apaixonado e com palpitaes. Estavam elas j encostadas ao balco e um caixeiro desdobrava-lhes

    em frente casimiras pretas. Isto comoveu Macrio. Ele mesmo mo disse.

    Porque enfim, meu caro, no era natural que elas viessem comprar, para si, casimiras pretas.

    E no: elas no usavam amazonas, no queriam decerto estofar cadeiras com casimiras pretas,

    no havia homens em casa delas; portanto aquela vinda ao armazm era um meio delicado de o ver

    de perto, de lhe falar, e tinha o encanto penetrante de uma mentira sentimental. Eu disse a Macrio

    que, sendo assim, ele deveria de estranhar aquele movimento amoroso, porque denotava na me uma

  • 9

    cumplicidade equvoca. Ele confessou-se que nem pensava em tal. O que fez foi chegar ao balco

    e dizer estupidamente:

    Sim, senhor, vo bem servidas, estas casimiras no encolhem. E a loura ergueu para ele o seu olhar

    azul e foi como se Macrio se sentisse envolvido na doura de um cu.

    Mas quando ele ia a dizer-lhe uma palavra reveladora e veemente, apareceu ao fundo do armazm

    o tio Francisco, com o seu comprido casaco de pinho, de botes amarelos. Como era singular e

    desusado achar-se o senhor guarda-livros vendendo ao balco e o tio Francisco, com a sua crtica

    estreita e celibatria, escandalizar-se, Macrio comeou a subir vagarosamente a escada de caracol

    que levava ao escritrio, e ainda ouviu a voz delicada da loura dizer brandamente:

    Agora queria ver lenos da ndia. E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenos,

    acamados e apertados numa tira de papel dourado.

    Macrio, tinha visto naquela visita uma revelao de amor, quase uma declarao, esteve todo o

    dia entregue s impacincias amargas da paixo. Andava distrado abstrato, pueril, no deu ateno

    escriturao, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almndegas, mal reparou no

    seu ordenado que lhe foi pago em pintos s trs horas e no entendeu bem a recomendaes do tio e

    a preocupao dos caixeiros sobre o desaparecimento de um pacote de lenos da ndia.

    o costume de deixar entrar pobres no armazm tinha dito no seu laconismo majestoso o tio

    Francisco. So doze mil ris de lenos. Lance minha conta.

    Macrio, no entanto, ruminava secretamente uma carta, mas sucedeu que ao outro dia, estando ele

    varanda, a me, a de cabelos pretos, veio encostar-se ao peitoril da janela, e neste momento passava

    na rua um amigo de Macrio, que, vendo aquela senhora, afirmou-se e tirou-lhe, como uma cortesia

    toda risonha, o seu chapu de palha. Macrio ficou radioso: logo nessa noite procurou o seu amigo, e

    abruptamente, sem meia-tinta:

    Quem aquela mulher que tu hoje cumprimentaste em frente do armazm? a Vilaa. Bela

    mulher. a filha? A filha? Sim, uma loura, clara, com um leque chins. Ah! sim. filha.

    o que eu dizia... Sim e ento? bonita. bonita. gente de bem, hem? Sim

    gente de bem. Est bom! Tu conhece-las muito? Conheo-as. Muito no. Encontrava-as dantes

    em casa de D. Cludia. Bem, ouve l. E Macrio, contando a histria do seu corao acordado

    e exigente e falando do amor com as exaltaes de ento, pediu-lhe como a glria da sua vida que

    achasse um meio de o encaixar l. No era difcil. As Vilaas costumavam ir aos sbados a casa de

    um tabelio muito rico na Rua dos Calafates: eram assembleias simples e pacatas, onde se cantavam

  • 10

    motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora D. Maria I, e

    s nove horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro sbado Macrio, de casaca azul,

    calas de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de cetim roxo, curvava-se diante da

    esposa do tabelio, Sra. D. Maria da Graa, pessoa seca e aguada, com um vestido bordado a

    matiz, um nariz adunco uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos

    grisalhos. A um canto da sala j l estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaa,

    a loura, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A me Vilaa, a

    soberba mulher plida, cochichava com um desembargador de figura apopltica. O tabelio era

    homem letrado, latinista, e amigo das musas; escrevia num jornal de ento, a Alcofa das Damas:

    porque era sobretudo galante, e ele mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, moo escudeiro de

    Vnus. Assim, as suas reunies eram ocupadas pelas belas-artes e, numa noite, um poeta do

    tempo devia vir ler um poemeto intitulado Elmira ou a Vingana do Veneziano!... Comeavam

    ento a aparecer as primeiras audcias romnticas... As revolues da Grcia comeavam a atrair

    os espritos romanescos e sados da mitologia para os pases maravilhosos do oriente. Por toda a

    parte se falava no pax de Janina. E a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal

    de minaretes, serralhos, sultanas cor de mbar, piratas do Arquiplago, e salas rendilhadas, cheias

    do perfume do alos onde paxs decrpitos acariciam lees. De sorte que a curiosidade era grande

    e quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoo entalado

    na alta gola do seu fraque Restaurao e um canudo de lata na mo o Sr. Macrio que no

    teve sensao alguma, porque l estava todo absorvido, falando com a menina Vilaa. E dizia-lhe

    meigamente:

    Ento, noutro dia, gostou das casimiras? Muito disse ela baixo. E, desde esse momento,

    envolveu-os um destino nupcial. No entanto, na larga sala, a noite passava-se espiritualmente. Macrio

    no pde dar todos os pormenores histricos e caractersticos daquela assembleia. Lembrava-se

    apenas que um corregedor de Leiria recitava o Madrigal a Ldia: lia-o de p, com uma luneta

    redonda aplicada sobre o papel, a perna direita lanada para diante, a mo na abertura do colete

    branco de gola alta, e em redor, formando crculo, as damas, com vestidos de ramagens, cobertas de

    plumas, as mangas estreitas, terminadas num fofo de rendas, mitenes de retrs cheias da cintilao

    dos anis, tinham sorrisos ternos, cochichos, doces murmuraes, risinhos, e um brando palpitar de

    leques recamados de lantejoulas. Muito bonito, diziam, muito bonito! E o corregedor, desviando

    a luneta, cumprimentava sorrindo e via-se-lhe um dente podre.

  • 11

    Depois, a preciosa D. Jernima da Piedade e Sande, sentando-se com maneiras comovidas ao cravo,

    cantou a sua voz roufenha a antiga ria de Sully:

    Oh Ricardo, oh meu rei, O mundo te abandona.

    O que obrigou o terrvel Gaudncio, democrata de 20 e admirador de Robespierre, a rosnar

    rancorosamente junto de Macrio:

    Reis-vboras!... Depois o cnego Saavedra cantou uma modinha de Pernambuco muito usada no

    tempo do senhor D. Joo VI: Lindas moas, lindas moas. E a noite ia assim correndo, literria,

    pachorrenta erudita, requintada e toda cheia de musas. Oito dias depois, Macrio era recebido em casa

    da Vilaa, num domingo. A me convidara-o dizendo-lhe:

    Espero que o vizinho honre esta choupana. E at o desembargador apopltico, que estava ao lado,

    exclamou: Choupana! Diga alcar! Formosa dama! Estavam, nesta noite, o amigo do chapu de

    palha, um velho cavaleiro de Malta, trpego, estpido e surdo, um beneficiado da S, ilustre pela

    sua voz tiple, e as manas Hilrias, a mais velha das quais, tendo assistido, como aia de uma senhora

    da Casa da Mina, tourada de Salva terra, em que morreu o conde dos Arcos, nunca deixara de

    narrar os episdios pitorescos daquela tarde: a figura do conde dos Arcos de cara rapada e uma fita

    de cetim escarlate no rabicho; o soneto que um magro poeta, parasita da Casa de Vimioso, recitou

    quando o conde entrou, fazendo ladear o seu cavalo negro, arreado espanhola, com um xairel onde

    as suas armas estavam lavradas em prata; o tombo que nesse momento um frade de S. Francisco deu

    na trincheira alta, e a hilariedade da corte, que at a senhora condessa de Povolide apertava as mos

    nas ilhargas; depois el-rei, o senhor D. Jos I, vestido de veludo escarlate, recamado de ouro, todo

    encostado ao rebordo do seu palanque, fazendo girar entre os dedos a sua caixa de rap cravejada,

    e atrs, imveis, o fsico Loureno e o frade seu confessor; depois o rico aspeto da praa cheia de

    gente de Salvaterra, maiorais, mendigos dos arredores, frades, lacaios, e o grito que houve quando D.

    Jos I entrou: Viva el-rei, nosso senhor! E o povo ajoelhou, e el-rei tinha-se sentado, comendo

    doces, que um criado trouxe num saco de veludo atrs dele. Depois a morte do conde dos Arcos,

    os desmaios, e at el-rei todo debruado, batendo com a mo no parapeito, gritava na confuso, e o

    capelo da Casa dos Arcos que tinha corrido a buscar a extrema-uno. Ela, Hilria ficara atarracada

    de pavor: sentia os urros dos bois, os gritos agudos das mulheres, os ganidos dos flatos, e vira ento

    um velho, todo vestido de veludo preto, com a fina espada na mo... debater-se entre fidalgos e

    damas que o seguravam, e querer atirar-se praa, bradando cheio de raiva! o pai do conde. Ela

    ento desmaia nos braos de um padre da Congregao. Quando veio a si, achou-se junto da praa; a

  • 12

    berlinda real est porta com os boleeiros emplumados, os machos cheios de guizos, e os batedores

    com pampilhos: el-rei j estava dentro, escondido no fundo, plido, sorvendo febrilmente rap, todo

    encolhido com o confessor; e em frente, com uma das mos apoiadas alta bengala, forte, espadado,

    com o aspeto carregado o Marqus de Pombal falando devagar e intimativamente, e gesticulando com

    a luneta: mas os batedores picaram, os estalos dos postilhes retiniram, e a berlinda partiu a galope,

    enquanto o povo gritava: Viva el-rei, nosso senhor! e o sino da porta da capela do pao tocava

    a finados! Era uma honra que el-rei concedia Casa dos Arcos.

    Quando D. Hilria acabou de contar, suspirando, estas desgraas passadas, comeou-se a jogar. Era

    singular que Macrio no se lembrava o que tinha jogado nessa noite radiosa. S se recordava que

    ele tinha ficado ao lado da menina Vilaa, que se chamava Lusa, que reparara muito na sua fina pele

    rosada, tocada de luz, e na meiga e amorosa pequenez da sua mo, com uma unha mais polida que o

    marfim de Diepa. E lembrava-se tambm de um acidente excntrico, que determinara nele, desde esse

    dia, uma grande hostilidade ao clero da S. Macrio estava sentado mesa, e ao p dele, Lusa: Lusa

    estava toda voltada para ele, com uma das mos apoiando a sua fina cabea loura e amorosa, e a outra

    esquecida no regao. em frente estava o beneficiado, com o seu barrete preto, os seus culos na ponta

    aguda do nariz, o tom azulado da forte barba rapada, e as suas duas grandes orelhas, complicadas e

    cheias de cabelo, separadas do crnio como dois postigos abertos. Ora como era necessrio no fim

    do jogo pagar uns tentos ao cavaleiro de Malta, que estava ao lado do beneficiado, Macrio tirou da

    algibeira uma pea, e quando o cavaleiro, todo curvado e com um olho pisco, fazia a soma dos tentos

    nas costas de um s, Macrio conversava com Lusa, e fazia girar sobre o pano verde a sua pea

    de ouro, com um bilro ou um pio. Era uma pea nova que luzia, faiscava, rodando e fazia vista

    como uma bola de nvoa dourada. Lusa sorria vendo-a girar, girar, e parecia a Macrio que todo o

    cu, a pureza, a bondade das flores e a castidade das estrelas estavam naquele claro sorriso distrado,

    espiritual, arcanglico, com que ela, gira, gira, seguia o giro da pea de ouro nova. Mas, de repente,

    a pea, correndo at borda da mesa, caiu para o lado do regao de Lusa, e desapareceu, sem se

    ouvir no soalho de tbuas o seu rudo metlico. O beneficiado abaixou-se logo cortesmente: Macrio

    afastou a cadeira, olhando para debaixo da mesa: a me Vilaa iluminou com um castial, e Lusa

    ergueu-se e sacudiu com pequenina pancada o seu vestido de cassa. A pea no apareceu.

    clebre disse o amigo de chapu de palha. Eu no ouvi tinir no cho. Nem eu, nem eu

    disseram. O beneficiado, curvado como um F, buscava tenazmente, e Hilria mais nova rosnava o

    responso de Santo Antnio.

  • 13

    Pois a casa no tem buracos dizia a me Vilaa. No entanto Macrio exalava-se em exclamaes

    desinteressadas: Pelo amor de Deus! Ora que tem! amanh aparecer! Tenham a bondade! Por

    quem so! Ento Sra. D. Lusa! pelo amor de Deus! No vale nada.

    Mas mentalmente estabeleceu que houvera uma subtrao e atribui-a ao beneficiado. A pea

    rolara, decerto, at junto dele, sem rudo, ele pusera-lhe em cima o seu vasto sapato eclesistico e

    tachado, depois, no movimento brusco e curto que tivera, empolgara-a vilmente. E quando saram, o

    beneficiado, todo embrulhado no seu vasto capote de camelo, dizia a Macrio pela escada:

    Ora o sumio da pea, hem? Que brincadeira! Acha, senhor beneficiado? disse Macrio

    parando, absorto de impudncia. Ora essa! Se acho! Se lhe parece! Uma pea de sete mil ris! S

    se o Senhor as semeia! Safa! eu dava em doido!

    Macrio teve tdio daquela astcia fria. No lhe respondeu. O beneficiado que acrescentou:

    Amanh mande l pela manh, homem. Que diabo... Deus me perdoe! Que diabo! Uma pea no

    se perde assim. Que bolada, hem!

    E Macrio tinha vontade de lhe bater. Foi neste ponto que Macrio me disse, com a voz singularmente

    sentida: Enfim, meu amigo, para encurtarmos razes resolvi-me casar com ela. Mas a pea?

    No pensei mais nisso! Pensava eu l na pea! resolvi-me casar com ela!

    ****

    Macrio contou-me o que o determinara mais precisamente quela resoluo profunda e

    perptua. Foi um beijo. Mas esse caso, casto e simples, eu colo-o mesmo porque a nica

    testemunha foi uma imagem em gravura da Virgem, que estava pendurada no seu caixilho de

    pau-preto, na saleta escura que abria para a escada... Um beijo fugitivo, superficial, efmero.

    Mas isso bastou ao esprito reto e severo para o obrigar a tom-la como esposa, a dar-lhe uma

    f imutvel e a posse da sua vida. Tais foram os seus esponsais. Aquela simptica sombra

    de janelas vizinhas tornara-se para ele um destino, o fim moral da sua vida e toda a ideia

    dominante do seu trabalho. E esta histria toma, desde logo, um alto carcter de santidade e

    de tristeza.

    Macrio falou-me muito do carcter e da figura do tio Francisco; a sua possante estatura, os

    seus culos de ouro, a sua barba grisalha, em colar, por baixo do queixo, um tique nervoso que

    tinha numa asa do nariz, a dureza da sua voz, a sua austera e majestosa tranquilidade, os seus

    princpios antigos, autoritrios e tirnicos e a brevidade telegrfica das suas palavras.

  • 14

    Quando Macrio lhe disse, uma manh, ao almoo, abruptamente, sem transies emolientes: Peo-

    lhe licena para casar, o tio Francisco, que deitava o acar no seu caf, ficou calado, remexendo

    com a colher, devagar, majestoso e terrvel: e quando acabou de solver pelo pires, com grande rudo,

    tirou do pescoo o guardanapo, dobrou-o, aguou com a faca o seu palito, meteu-o na boca e saiu: mas

    porta da sala parou, e voltando-se para Macrio, que estava de p, junto da mesa, disse secamente:

    No. Perdo, tio Francisco! No. Mas oua, tio Francisco... No. Macrio sentiu

    uma grande clera. Nesse caso, fao-o sem licena. Despedido de casa. Sairei. No haja

    dvida. Hoje. Hoje. E o tio Francisco ia a fechar a porta, mas voltando-se : Ol! disse ela

    a Macrio. que estava exasperado, apopltico, raspando nos vidros da janela.

    Macrio voltou-se com uma esperana. D-me da a caixa do rap disse o tio Francisco. Tinha-

    lhe esquecido a caixa! Portanto estava perturbado. Tio Francisco... comeou Macrio. Basta.

    Estamos a doze. Receber o seu ms por inteiro. V. As antigas educaes produziam estas situaes

    insensatas. Era brutal e idiota. Macrio afirmou-me que era assim.

    Nessa tarde Macrio achava-se no quarto de uma hospedaria da Praa da Figueira com seis peas,

    o seu ba de roupa branca e a sua paixo. No entanto estava tranquilo. Sentia o seu destino cheio

    de apuros. Tinha relaes e amizades no comrcio. Era conhecido vantajosamente: a nitidez do seu

    trabalho, a sua honra tradicional, o nome da famlia, o seu tato comercial, o seu belo cursivo ingls,

    abriam-lhe, de par em par, respeitosamente, todas as portas dos escritrios. No outro dia foi procurar

    alegremente o negociante Faleiro, antiga relao comercial da sua casa.

    De muito boa vontade, meu amigo disse-me ele. Quem mo dera c. Mas, se o recebo, fico de

    mal com o seu tio, meu velho amigo de vinte anos. Ele declarou-mo categoricamente. Bem v. Fora

    maior. Eu sinto, mas...

    E todos a quem Macrio se dirigiu, confiado em relaes slidas, receavam ficar de mal com o seu

    tio, meu velho amigo de vinte anos.

    E todos sentiam, mas.... Macrio dirigiu-se ento a negociantes novos, estranhos sua casa e

    sua famlia, e sobretudo aos estrangeiros: esperava encontrar gente livre da amizade de vinte anos do

    tio. Mas, para esses, Macrio era desconhecido, e desconhecidos por igual a sua dignidade e o hbil

    trabalho. Se tomavam informaes, sabiam que ele fora despedido de casa do tio repentinamente, por

    causa de uma rapariga loura, vestida de cassa. Esta circunstncia tirava as simpatias a Macrio. O

    comrcio evita o guarda livros sentimental. De sorte que Macrio comeou a sentir-se num momento

    agudo. Procurando, pedindo, rebuscando, o tempo passava, sorvendo, pinto a pinto, as suas seis peas.

  • 15

    Macrio mudou para uma estalagem barata, e continuou farejando. Mas, como fora sempre de

    temperamento recolhido, no criara amigos. De modo que se encontrava desemparado e solitrio

    e a vida aparecia-lhe como um descampo. as peas findaram. Macrio entrou, pouco, na tradio

    antiga da misria. Ela tem solenidades fatais e estabelecidas: comeou por empenhar. Depois vendeu.

    Relgio, anis, casaca azul, cadeia, palet de alamares, tudo foi levando pouco a pouco, embrulhado

    debaixo do xale, uma velha seca e cheia de asma.

    No entanto via Lusa de noite, na saleta escura que dava para o patamar: uma lamparina ardia em

    cima da mesa; era feliz ali naquela penumbra, toda sentado castamente: no a via de dia porque

    trazia j a roupa usada, as botas cambadas e no queria mostrar fresca Lusa, toda mimosa nas suas

    cambraias assentadas, a sua misria remendada: ali, quela luz tnue e esbatida, ele exaltava a sua

    paixo crescente e escondia o seu fato decadente. Segundo me disse Macrio era muito singular

    o temperamento de Lusa . Tinha o carcter louro como o cabelo se certo que o louro uma cor

    fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos, dizia a tudo pois

    sim; era mais simples, quase indiferente, cheia de transigncias.

    Amava decerto Macrio, mas com todo o amor que podia dar a sua natureza dbil, aguada, nula. Era

    como uma estriga de linho, fiava-se como se queria: e s vezes, naqueles encontros noturnos, tinha sono.

    Um dia, porm, Macrio encontrou-a excitada: estava com pressa, o xale traado toa, olhando

    sempre para a porta interior.

    A mam percebeu disse ela. E contou-lhe que a me desconfiava, ainda rabugenta e spera, e

    que decerto farejava aquele plano nupcial tramado como uma conjurao.

    Porque no me vens pedir mam? Mas, filha, se eu no posso! No tenho arranjo nenhum.

    Espera. mais um ms talvez. Tenho agora a um negcio em bom caminho. Morramos de fome.

    Lusa calou-se, torcendo a ponta do xale, com os olhos baixos. Mas ao menos disse ela

    enquanto eu te no fizer sinal da janela, no subas mais, sim ?

    Macrio rompeu a chorar, os soluos saam violentos e desesperados. Chut! dizia-lhe Lusa.

    No chores alto!... Macrio contou-me a noite que passou, ao acaso pelas ruas, ruminando febrilmente

    a sua dor, e lutando, sob a nudenta friagem de Janeiro, na sua quinzena curta. No dormiu, e logo pela

    manh, ao outro dia, entrou como uma rajada no quarto do tio Francisco e disse-lhe abruptamente,

    secamente:

    tudo o que tenho. E mostrava-lhe trs pintos. Roupa, estou sem ela. Vendi tudo. Daqui a

    pouco tenho fome.

  • 16

    O tio Francisco, que fazia a barba janela, com o leno da ndia amarrado na cabea, voltou-se e,

    pondo os culos, fitou-o.

    A sua carteira l est. Fique e acrescentou com um gesto decisivo solteiro. Tio Francisco,

    oua-me!... Solteiro, disse eu continuou o tio Francisco, dando o fio navalha numa tira de

    sola. No posso. Ento, rua! Macrio saiu, estonteado. Chegou a casa, deitou-se, chorou e

    adormeceu. Quando saiu, noitinha, no tinha resoluo, nem ideia. Estava como uma esponja.

    Deixava-se ir.

    De repente uma voz disse de dentro de uma loja:

    Eh! pst! ol! Era o amigo do chapu de palha: abriu grandes braos pasmados. Que diacho!

    Desde manh que te procuro. E contou-lhe que tinha chegado da provncia, tinha sabido a sua crise e

    trazia-lhe um desenlace.

    Queres? Tudo. Uma casa comercial queria um homem hbil, resoluto, e duro, para ir numa

    comisso difcil e de grande ganho a Cabo Verde.

    Pronto! Disse Macrio. Pronto! Amanh. E foi logo escrever a Lusa, pedindo-lhe uma

    despedida, um ltimo encontro, aquele em que os braos desolados e veementes tanto custam a

    desenlaar-se. Foi. Encontrou-a toda embrulhada no seu xale, tiritando de frio. Macrio chorou. ela,

    com a sua passiva e loura doura, disse-lhe:

    Fazes bem. Talvez ganhes. E ao outro dia Macrio partiu. Conheceu as viagens trabalhosas nos

    mares inimigos, o enjoo montono num beliche abafado, os duros sis das colnias, a brutalidade

    tirnica dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as dilaceraes da ausncia, as viagens

    ao interior das terras negras e melancolia das caravanas que o costeiam por violentas noites, durante

    dias e dias, o rios tranquilos, donde exala a morte.

    Voltou. E logo nessa tarde a viu a ela, Lusa, clara, fresca, repousada, serena, encostada ao peitoril da

    janela, com a sua ventarola chinesa. E, ao outro dia, sofregamente, foi pedi-la me. Macrio tinha

    feito um ganho saliente e a me Vilaa abriu-lhe uns grandes braos amigos, cheia de exclamaes.

    O casamento decidiu-se para da a um ano.

    Porqu? disse eu a Macrio. E ele explicou-me que os lucros de Cabo Verde no podiam constituir

    um capital definitivo: eram apenas um capital de habilitao: trazia de Cabo Verde elementos de

    poderosos negcios: trabalharia, heroicamente, e ao fim poderia, sossegadamente, criar uma famlia.

    E trabalhou: ps naquele trabalho a fora criadora da sua paixo. Erguia-se de madrugada, comia

    pressa, mal falava. tardinha ia visitar Lusa. Depois voltava sofregamente para a fadiga, como

  • 17

    um avaro para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo mpeto das

    ideias e dos msculos; vivia numa tempestade de cifras. s vezes Lusa de passagem, entrava no

    seu armazm: aquele pousar de ave fugitiva dava-lhe alegria, valor, f, reconforto para todo o ms

    cheiamente trabalhado.

    Por esse tempo o amigo do chapu de palha veio pedir a Macrio que fosse seu fiador por uma grande

    quantia, que ele pedira para estabelecer uma loja de ferragens em grande. Macrio, estava no vigor do

    seu crdito, cedeu com alegria. O amigo do chapu de palha que lhe dera o negcio providencial de

    Cabo Verde. Faltavam ento seis meses para o casamento. Macrio j sentia, por vezes, subirem-lhe

    ao rosto as febris vermelhides da esperana. J comeava a tratar dos banhos mas um dia o amigo do

    chapu de palha desapareceu com a mulher de um alferes. O seu estabelecimento estava em comeo.

    Era uma confusa aventura no se pde nunca precisar nitidamente aquele imbrglio doloroso. O que

    era positivo que Macrio era fiador, Macrio devia reembolsar. Quando o soube, empalideceu e

    disse simplesmente:

    Lquido e pago. E quando liquidou, ficou outra vez pobre. Mas nesse mesmo dia, como o desastre

    tivera uma grande publicidade, e a sua honra estava santificada na opinio, a casa Peres & C.-a, que

    o mandara a Cabo Verde, veio propor-lhe uma outra viagem outros ganhos.

    Faz outra vez fortuna, homem. O senhor o Diabo! disse o Sr. Eleutrio Peres. Quando se

    viu assim, s e pobre, Macrio desatou a chorar. Tudo estava perdido, findo, extinto; era necessrio

    recomear, pacientemente a vida, voltar s longas misrias de Cabo verde, tornar a tremer a tremer os

    passados desesperos, suar os antigos suores! E Lusa? Macrio escreveu-lhe. depois rasgou a carta.

    Foi a casa dela: as janelas tinham luz; subiu at ao primeiro andar, mas a tomou-o uma mgoa, uma

    covardia de revelar o desastre, trmulo de uma separao, o terror de ela se recusar, negar-se, hesitar!

    E quereria ela esperar mais?! No se atreveu a falar, explicar, pedir; desceu, p ante p. Era noite.

    Andou ao acaso pelas ruas: havia um sereno e silencioso luar. Ia sem saber: de repente ouviu, de uma

    janela iluminada, uma rabeca que tocava a xcara mourisca. Lembrou-se do tempo em que conhecera

    Lusa, do bom sol claro que havia ento, e do vestido dela, de cassa com pintas azuis! Esta na rua onde

    eram os armazns do tio. Foi caminhando. Ps-se a olhar para a sua antiga casa. A janela do escritrio

    estava fechada. Quantas vezes dali vira Lusa, e o brando movimento do seu leque chins! Mas uma

    janela, no segundo andar, tinha luz: era o quarto do tio. Macrio vai observar mais de longe: uma

    figura estava encostada, por dentro, vidraa: era o tio Francisco veio-lhe uma saudade de todo o seu

    passado simples, retirado, plcido. Lembrava-lhe o seu quarto, e a velha carteira com fecho de prata,

  • 18

    e a miniatura da sua me, que estava por cima da barra do leito; a sala de jantar e o seu velho aparador

    de pau-preto, e a grande caneca de gua, cuja asa era uma serpente irritada. Decidiu-se e, impelido por

    um instinto, bateu porta. Bateu outra vez. Sentiu abrir a vidraa, e a voz do tio perguntar:

    Quem ? Sou eu, tio Francisco, sou eu. Venho dizer-lhe adeus. A vidraa fechou-se, e da a

    pouco a porta abriu-se com um grande rudo de ferrolhos. O tio Francisco tinha um candeeiro de

    azeite na mo. Macrio achou-o magro, mais velho. Beijou-lhe a mo.

    Suba disse o tio. Macrio ia calado, cosido com o corrimo. Quando chegou ao quarto, o tio Francisco

    pousou o candeeiro sobre uma larga mesa de pau-santo, e de p, com as mos nos bolsos, esperou.

    Macrio estava calado, anediando a barba. Que quer? gritou-lhe o tio. Vinha dizer-lhe adeus;

    volto para Cabo Verde. Boa viagem. E o tio Francisco, voltando-se as costas, foi rufar na vidraa.

    Macrio ficou imvel, deu dois passos no quarto, todo revoltado, e ia sair. Onde vai, seu estpido?

    gritou-lhe o tio. Vou-me. Sente-se ali! E o tio Francisco falava, com grandes passadas pelo

    quarto: O seu amigo um canalha! Loja de ferragens! No est m! O senhor um homem de

    bem. Estpido, mas homem de bem. Sente-se ali! Sente-se! O seu amigo um canalha! O senhor

    um homem de bem! Foi a Cabo Verde! Bem sei! Pagou tudo. Est claro! Tambm sei! Amanh faz

    favor de ir para a sua carteira, l para baixo. Mandei pr palhinha nova na cadeira. Faz favor de pr

    na fatura Macrio & Sobrinho. E case. Case, e que lhe preste! Levante dinheiro. O senhor precisa de

    roupa branca e de moblia. E meta na minha conta. A sua cama l est feita.

    Macrio queria abra-lo, estonteado, com lgrimas nos olhos, radioso. Bem, bem. Adeus! Macrio

    ia sair. Oh! burro, pois quer-se ir desta sua casa? E indo a um pequeno armrio trouxe geleia, um

    covilhete de doce, uma garrafa antiga de Porto e biscoitos.

    Coma. E sentando-se ao p dele, e tornando a chamar-lhe estpido, tinha uma lgrimas a correr-lhe

    pelo engelhado da pele.

    De sorte que o casamento foi decidido para dali a um ms. E Lusa comeou a tratar do seu enxoval.

    Macrio estava ento na plenitude do amor e da alegria. Via o fim da sua vida preenchido, completo,

    radioso. Estava quase sempre em casa da noiva, e um dia andava-a acompanhando, em compras, pelas

    lojas. Ele mesmo lhe quisera fazer um pequeno presente, nesse dia. A me tinha ficado numa modista,

    num primeiro andar da Rua do Ouro, e eles tinham descido, alegremente, rindo, a um ourives que

    havia em baixo, no mesmo prdio, na loja.

    O dia estava de Inverno, claro, fino, frio, com um grande cu azul-ferrete, profundo, luminoso,

    consolado.

  • 19

    Que bonito dia! disse Macrio. E com a noiva pelo brao, caminhou um pouco, ao comprido

    do passeio. Est! disse ela. Mas podem reparar; ns ss... Deixa, est to bom... No,

    no. E Lusa arrastou-o brandamente para a loja do ourives. Estava apenas um caixeiro, trigueiro, de

    cabelo hirsuto.

    Macrio disse-lhe: Queria ver anis. Com pedras disse Lusa e o mais bonito. Sim, com

    pedras disse Macrio. Ametista, granada. Enfim, o melhor. E, no entanto, Lusa ia examinando

    as montras forradas de veludo azul, onde reluziam as grossas pulseiras cravejadas, os grilhes, os

    colares de camafeus, os anis de armas, as finas alianas frgeis como o amor , e toda a cintilao de

    pesada ourivesaria.

    V, Lusa disse Macrio. O caixeiro tinha estendido, na outra extremidade do balco, em cima

    do vidro da montra, um reluzente espalhado de anis de ouro, de pedras, lavrados, esmaltados; e

    Lusa, tomando-os e deixando-os com a ponta dos dedos, ia-os correndo e dizendo:

    feio. pesado. largo. V este disse-lhe Macrio. Era um anel de pequenas prolas.

    bonito disse ela. lindo! Deixa ver se serve disse Macrio. E tomando-lhe a mo, meteu-

    lhe o anel devagarinho, docemente, no dedo; e ela ria, com os seus brancos dentinhos finos, todos

    esmaltados.

    muito largo disse Macrio. Que pena! Aperta-se, querendo. Deixe a medida. Tem-no

    pronto amanh.

    Boa ideia disse Macrio sim senhor. Porque muito bonito. No verdade? As prolas

    muito iguais, muito claras. Muito bonito! E esses brincos? acrescentou, indo ao fundo do balco,

    a outra montra. Estes brincos com um concha?

    Dez moedas disse o caixeiro. E, no entanto, Lusa continuava examinando os anis,

    experimentando-os em todos os dedos, revolvendo aquela delicada montra, cintilante e preciosa.

    Mas, de repente, o caixeiro fez-se muito plido, e afirmou-se em Lusa, passando vagarosamente a

    mo pela cara.

    Bem disse Macrio, aproximando-se ento amanh temos o anel pronto. A que horas?

    O caixeiro no respondeu e comeou a olhar fixamente para Macrio. A que horas? Ao meio-

    dia. Bem, adeus disse Macrio. E iam sair. Lusa trazia um vestido de l azul, que arrastava um

    pouco, dando uma ondulao melodiosa ao seu passo, e as suas mos pequenas estavam escondidas

    num regalo branco.

    Perdo! disse de repente o caixeiro. Macrio voltou-se. O senhor no pagou. Macrio olha

  • 20

    para ele gravemente. Est claro que no. Amanh

    venho buscar o anel, paga amanh. Perdo! disse o caixeiro. Mas o outro... Qual outro?

    disse Macrio com uma voz surpreendida, adiantando-se para o balco. Essa senhora sabe

    disse o caixeiro. Essa senhora sabe. Macrio tirou a carteira lentamente. Perdo, se h uma

    conta antiga... O caixeiro abriu o balco, e com aspeto resoluto: Nada, meu caro Senhor, de

    agora. um anel com dois brilhantes que aquela senhora leva.

    Eu?! disse Lusa, com a voz baixa, toda escarlate. Que ? Que est a dizer? E Macrio,

    plido, com dentes cerrados, contrado, fitava o caixeiro colericamente. O caixeiro disse ento:

    Essa senhora tirou dali o anel. Macrio ficou imvel, encarando-o. Um anel com dois

    brilhantes. Vi perfeitamente. O caixeiro estava to excitado, que a sua voz gaguejava, prendia-se

    espessamente. Essa senhora no sei quem . E tirou-o dali...

    Macrio, maquinalmente, agarrou-lhe o brao, e voltando-se para Lusa com a palavra abafada, gotas

    de suor na testa, lvido:

    Lusa, dize... Mas a voz cortou-se-lhe. Eu... disse ela. Mas estava trmula, assombrada,

    enfiada, descomposta. E tinha deixado cair o regalo ao cho. Macrio veio para ela, agarrou-lhe

    o pulso fintando-a: e o seu aspeto era to resoluto e to imperioso que ela meteu a mo no bolso,

    bruscamente, apavorada, e mostrando o anel:

    No me faa mal disse, encolhendo-se toda. Macrio ficou com os braos cados, o ar abstrato,

    os beios brancos; mas de repente, dando um puxo ao casaco, recuperando-se, disse ao caixeiro:

    Tem razo. Era distrao. Est claro! Esta senhora tinha-se esquecido. o anel. Sim, sim,

    senhor, evidentemente... Tenha a bondade. Toma, filha, toma. Deixa estar, este senhor embrulha-o.

    Quanto custa?

    Abriu a carteira e pagou. Depois apanhou o regalo, sacudiu-o brandamente, limpou os beios com

    o leno, deu o brao a Lusa e dizendo ao caixeiro: desculpe, desculpe, levou-a, inerte, passiva,

    extinta e aterrada.

    Deram alguns passos na rua. Um largo sol aclarava o gnio feliz: as seges ,passavam, rolando ao

    estalido do chicote; figuras risonhas passavam, conversando; os preges ganiam os seus gritos alegres;

    um cavalheiro de calo de anta fazia ladear o seu cavalo, enfeitado de rosetas; e a rua estava cheia,

    ruidosa, viva, feliz e coberta de sol.

    Macrio ia maquinalmente, como no fundo de um sonho. Parou a uma esquina. Tinha o brao de

    Lusa passado no seu; e via-lhe a mo pendente, a sua mo de cera, com as veias docemente azuladas,

  • 21

    os dedos finos e amorosos: era a mo direita, e aquela mo era a da sua noiva! E, instintivamente, leu

    o cartaz que anunciava para essa noite Palafoz em Saragoa.

    De repente, soltando o brao de Lusa, disse-lhe baixinho: Vai-te. Ouve!... disse ela, com a

    cabea toda inclinada. Vai-te. E com voz abafada e terrvel: Vai-te. Olha que chamo. Mando-

    te para o Aljube. Vai-te.

    Mas houve, Jesus disse ela. Vai-te! E fez um gesto, com o punho cerrado. Pelo amor de

    Deus, no me batas aqui disse ela, sufocada. Vai-te, podem reparar. No chores. Olha que veem.

    Vai-te. E, chegando-se para ela, disse baixo: s uma ladra! E, voltando-lhe as costas, afastou-se,

    devagar, riscando o cho com a bengala. distncia, voltou-se: ainda viu, atravs dos vultos, o seu

    vestido azul. Como partiu nessa tarde para a provncia, no soube mais daquela rapariga loura.

  • 22

    UM POETA LRICO

    Aqui est, simplesmente, sem frases e sem ornatos, a histria triste do poeta Korriscosso. De todos os

    poetas lricos de que tenho notcia, este, certamente, o mais infeliz. Conheci-o em Londres, no hotel

    de Charing Cross, uma madrugada regelada de Dezembro. Tinha eu chegado do continente, prostrado

    por duas horas de canal da Mancha.... Ah! que mar! E era s uma brisa fresca de noroeste: mas ali,

    no tombadilho, sob uma capa de oleado de que um marujo me tinha coberto, como se cobre um corpo

    morto, fustigado da neve e da vaga, oprimido por aquela treva tumultuosa que o paquete ia rompendo

    aos roncos e aos encontres parecia-me um tufo dos mares da China.

    Apenas entrei no hotel, gelado e estremunhado, corri ao vasto fogo do peristilo, e ali fiquei, saturando-

    me daquela paz quente em que a sala estava adormecida, com os olhos beatamente postos na boa

    brasa escarlate... E foi ento que vi aquela figura esguia e longa, j de casaca e gravata branca, que do

    outro lado da chamin, de p, com a taciturna tristeza de uma cegonha que cisma, olhava tambm os

    carves ardentes, com um guardanapo no brao. Mas o porteiro tinha rolado a minha bagagem, e eu

    fui inscrever-me ao bureau. A guarda-livros, tesa e loura. com um perfil antiquado de medalha safada,

    pousou o seu crochet ao lado da sua chvena de ch, acariciou com um gesto doce os dois bands

    louros, assentou corretamente o meu nome, de dedinho no ar, fazendo rebrilhar um diamante, e eu ia

    subir a vasta escadaria quando a figura magra e fatal se dobrou num ngulo, e murmurou-me num

    ingls silabado:

    J est servido o almoo das sete... Mas eu no queria o almoo das sete. Fui dormir. Mais tarde,

    j repousado, fresco do banho, quando desci ao restaurante para o lunch, avistei logo, plantado

    melancolicamente ao p da larga janela, o indivduo esguio e triste. A sala estava deserta numa luz

    parda; os foges flamejavam; e fora, no silncio do domingo, nas ruas mudas, a neve caa sem cessar

    de um cu amarelento e bao. Eu via apenas as costas do homem; mas havia na sua linha magra e

    um pouco dobrada uma expresso to evidente de desalento, que me interessei por aquela figura. O

    cabelo comprido, de tenor, cado sobre a gola da casaca, era manifestamente de um meridional; e

    toda a sua magreza friorenta se encolhia ao aspeto daqueles telhados cobertos de neve, na sensao

    daquele silncio lvido... Chamei-o. Quando ele se voltou, a sua fisionomia, que apenas entrevira na

    vspera, impressionou-me: era um caro longo e triste, muito moreno, de nariz judaico e uma barba

    curta e frisada, uma barba de Cristo em estampa romntica; a testa era destas que, em boa literatura,

    se chama, creio eu, cara: era larga e era lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago, com uma indeciso

  • 23

    de sonho nadando num fluido enternecido... E que magreza! Quando andava, a cala curta torcia-se

    em torno da canela como pregas de bandeira em torno de um mastro; a casaca tinha dobras de tnica

    ampla; as duas abas compridas e agudas eram desgraadamente grotescas. Recebeu a ordem do meu

    almoo, sem me olhar, num tdio resignado: arrastou-se para o comptoir onde o matre dhotel lia a

    Bblia, passou a mo pela testa com um gesto errante e dolente, e disse-lhe numa voz surda:

    Nmero 307. Duas costeletas. Ch... O matre dhotel afastou a Bblia, inscreveu o menu e eu

    acomodei-me mesa, e abri o volume de Tennyson que trouxera para almoar comigo porque,

    creio que lhes disse, era domingo, dia sem jornais e sem po fresco. Fora continuava a nevar sobre a

    cidade muda. A uma mesa distante, um velho cor de tijolo e todo branco de cabelo e de suas, que

    acabara de almoar, dormitava de mos no ventre, boca aberta, e luneta na ponta do nariz. E o nico

    som vinha da rua, uma voz gemente que a neve abafava mais, uma voz pedinte que esquina em

    frente garganteava um salmo... Um domingo de Londres.

    Foi o magro que me trouxe o almoo e apenas ele se aproximou, com o servio do ch, eu senti

    logo que aquele volume de Tennyson nas minhas mos o tinha interessado e impressionado; foi um

    olhar rpido, gulosamente fixado na pgina aberta, um estremecimento quase impercetvel , emoo

    fugitiva, decerto, porque depois de ter pousado o servio, rodou sobre os calcanhares e foi plantar-se

    melancolicamente janela, de olho triste e posto na neve triste. Eu atribu aquele movimento curioso

    ao esplendor da encadernao do volume, que eram Os Idlios de El-Rei, em marroquim negro,

    com o escudo de armas de Lanarote do Lago o pelicano de ouro sobre um mar de sinopla.

    Nessa noite parti no expresso para a Esccia, e ainda no tinha passado York, adormecida ria sua

    gravidade episcopal, j me esquecera o criado romanesco do restaurante e de Charing Cross. Foi s

    da a um ms, ao voltar a Londres, que entrando no restaurante, e revendo aquela figura lenta e fatal

    atra vessar com um prato de rosbife numa das mos, na outra um pudim de batata, senti renascer o

    antigo interesse. E nessa noite mesmo tive a singular felicidade de saber o seu nome, e de entrever um

    fragmento do seu passado. Era j tarde e eu voltava do Covent Garden, quando no peristilo do hotel

    encontrei, majestoso e prspero, o meu amigo Bracolletti.

    No conhecem Bracolletti? A sua presena formidvel; tem a amplido panuda, o negro cerrado da

    barba, a lentido, o cerimonial de um pax gordo; mas esta ponderosa gravidade turca temperada,

    em Bracolletti, pelo sorriso e pelo olhar. Que olhar! Um olhar doce, que me faz lembrar o dos animais

    da Sria: o mesmo enternecimento. Parece errar no seu fluido macio a religiosidade meiga das raas

    que do os Messias... Mas o sorriso! O sorriso de Bracolletti a mais complexa, a mais perfeita,

  • 24

    a mais rica das expresses humanas; h finura, inocncia, bonomia, abandono, ironia doce, persuaso,

    naqueles dois lbios que se descerram e que deixam brilhar um esmalte de dentes de virgem!... Ah!

    mas tambm este sorriso a fortuna de Bracolletti.

    Moralmente, Bracolletti um hbil. Nasceu em Esmirna de pais gregos; tudo o que ele revela: de

    resto, quando se lhe pergunta pelo seu passado, o bom grego rola um momento a cabea de ombro a

    ombro, esconde sob as plpebras cerradas com bonomia o seu olho maometano, desabrocha o sorriso

    de uma doura a tentar abelhas, e murmura, como afogado em bondade e em enternecimento:

    Eh! mon Dieu! Eh! mon Dieu!... Nada mais. Parece, porm, que viajou porque conhece o Peru,

    a Crimeia, o cabo da Boa Esperana, os pases exticos, to bem como Regent Street: mas evidente

    para todos que a sua existncia no foi tecida, como a dos vulgares aventureiros do Levante, de ouro

    e estopa, de esplendores e pelintrices: um gordo e, portanto, um prudente: o seu magnfico solitrio

    nunca deixou de lhe brilhar no dedo: nenhum frio jamais o surpreendeu sem uma pelia de dois mil

    francos: e nunca deixa de ganhar, todas as semanas, no Fraternal Club, de que um membro querido,

    dez libras ao whist. um forte.

    Mas tem uma debilidade. singularmente guloso de rapariguinhas de doze a catorze anos: gosta delas

    magrinhas, muito louras, e com o hbito de praguejar. Coleciona-as pelos bairros pobres de Londres,

    com mtodo. Instala-as em casa, e ali as tem, como passarinhos na gaiola, metendo-lhes a papinha no

    bico, ouvindo-as palrar todo baboso, animando-as a que lhe roubem os xelins da algibeira, gozando

    o desenvolvimento dos vcios naquelas flores da lama de Londres, pondo-lhes ao alcance as garrafas

    de gin para que os anjinhos se embebedem e quando alguma, excitada de lcool, de cabelo ao, vento

    e face acesa, o injuria, o arrepela, baba obscenidades, o bom Bracolletti, encruzado no sof, de mos

    beatamente cruzadas na pana, o olhar afogado em xtase, murmura no seu italiano da costa sria:

    Piccolina! Gentilleta! Querido Bracolletti! Foi realmente com prazer que o abracei, nessa noite. em

    Charing Cross: e como nos no vamos h muito, fomos cear juntos ao restaurante. O criado triste l estava

    no seu comptoir, curvado sobre o Journal des Dbats. E apenas Bracolletti apareceu, na sua majestade

    de obeso, o homem estendeu-lhe silenciosamente a mo, foi um shake-hands solene, enternecido e sincero.

    Bom Deus, eram amigos! Arrebatei Bracolletti para o fundo da sala, e, vibrando de curiosidade,

    interroguei-o com sofreguido. Quis primeiro o nome do homem.

    Chama-se Korriscosso disse-me Bracolletti, grave. Quis depois a sua histria. Mas Bracolletti,

    como os deuses da tica que, nos seus embaraos no mundo, se recolhiam a sua nuvem. Bracolletti

    refugiou-se na sua vaga reticncia.

  • 25

    Eh! mon Dieu!... Eh! mon Dieu!... No, no, Bracolletti. Vejamos. Quero-lhe a histria... Aquela

    face fatal e byroniana deve ter uma histria...

    Bracolletti ento tomou todo o ar cndido que lhe permitem a sua pana e as suas barbas

    e confessou-me, deixando cair as frases s gotas, que tinham

    viajado ambos na Bulgria e no Montenegro... Korriscosso foi seu secretrio... Boa letra... Tempos

    difceis... Eh! mon Dieu!...

    Donde ele? Bracolletti respondeu sem hesitar, baixando a voz, com um gesto repassado de

    desconsiderao:

    um grego de Atenas. O meu interesse sumiu-se como a gua que a areia absorve. Quando se

    tem viajado no Oriente e nas escalas do Levante, adquire-se facilmente o hbito, talvez injusto, de

    suspeitar do grego: aos primeiros que se veem, sobretudo tendo uma educao universitria e clssica,

    o entusiasmo acende-se um pouco, pensa-se em Alcibades e em Plato, nas glrias de uma raa esttica

    e livre, e perfilam-se na imaginao as linhas augustas do Prtenon. Mas, depois de os ter frequentado,

    s mesas redondas e nos tombadilhos das Messageries, e principalmente depois de ter escutado a lenda

    de velhacaria que eles tm deixado desde Esmirna at Tunes, os outros que se veem provocam, apenas,

    estes movimentos: abotoar rapidamente o casaco, cruzar fortemente os braos sobre a cadeia do relgio,

    e aguar o intelecto para rechaar a escroquerie. A causa desta reputao funesta que a gente grega que

    emigra para as escalas do Levante uma plebe torpe, parte pirata e parte lacaia, bando de rapina astuto e

    perverso. A verdade que apenas soube Korriscosso um grego, lembrei-me logo que o meu belo volume

    de Tennyson, na minha ltima estada em Charing Cross, me desaparecera do quarto, e recordei o olhar

    de gula e de presa que cravara nele Korriscosso... Era um bandido...

    E durante a ceia no falmos mais de Korriscosso. Serviu-nos outro criado, rubro, honesto e so.

    O lgubre Korriscosso no se afastou do comptoir, abismado no Journal des Dbats.

    Nessa noite aconteceu, ao recolher-me ao meu quarto, que me perdi... O hotel estava atulhado,

    e eu tinha sido alojado naqueles altos de Charing Cross, numa complicao de corredores, escadas,

    recantos, ngulos, onde quase necessrio roteiro bssola.

    De castial na mo, penetrei num passadio onde corria um bafo morno de viela mal arejada.

    As portas a no tinham nmeros, mas pequenos cartes colados onde estavam inscritos nomes: John,

    Smith, Charlie, Willie... Enfim, eram evidentemente as habitaes dos criados. De uma porta aberta

    saa a claridade de um bico de gs; adiantei-me, e vi logo Korriscosso, ainda de casaca, sentado a uma

    mesa alastrada de papis, de testa pendida sobre a mo, escrevendo.

  • 26

    Pode-me indicar o caminho para o nmero 508? balbuciei. Ele ergueu para mim um olhar

    estremunhado e enevoado; parecia ressurgir de muito longe, de um outro universo; batia as plpebras,

    repetindo:

    508? 508?... Foi ento que eu avistei, sobre a mesa, entre papis, colarinhos sujos e um rosrio o

    meu volume de Tennyson! Ele viu o meu olhar, o bandido, e acusou-se todo numa vermelhido que

    lhe inundou a face chupada. O meu primeiro movimento foi no reconhecer o livro: como era

    um movimento bom, e obedecendo logo moral superior do mestre Talleyrand, reprimi-o; e apontando

    o volume com um dedo severo, um dedo de Providncia irritada, disse-lhe:

    o meu Tennyson... No sei que resposta ele tartamudeou, porque eu, apiedado, retomado

    tambm pelo interesse que me dava aquela figura picaresca de grego sentimental, acrescentei num

    tom repassado de perdo e de justificao:

    Grande poeta, no verdade? Que lhe pareceu? Tenho a certeza que se entusiasmou... Korriscosso

    corou mais: mas no era o despeito humilhado do salteador surpreendido: era, julguei eu, a vergonha

    de ver a sua inteligncia, o seu gosto potico adivinhados e de ter no corpo a casaca coada de

    criado de restaurante. No respondeu. Mas as pginas do volume que eu abri responderam por ele; a

    brancura das margens largas desaparecia sob uma rede de comentrios a lpis: Sublime! Grandioso!

    Divino! palavras lanadas numa letra convulsiva, num tremor de mo, agitada por uma sensibilidade

    vibrante...

    No entanto Korriscosso permanecia de p, respeitoso, culpado, de cabea baixa, com o lao da gravata

    branca fugindo para o cachao. Pobre Korriscosso! Compadeci-me daquela atitude, revelando todo

    um passado sem sorte, tantas tristezas de dependncia... Lembrei-me que nada impressiona o

    homem do Levante como um gesto de drama e de palco; estendi-lhe ambas as mos num movimento

    Talma, e disse-lhe:

    Eu tambm sou poeta!... Esta frase extraordinria pareceria grotesca e impudente a um homem

    do Norte; o levantino viu logo nela a expanso de uma alma irm. Porque, no lhes disse?, o que

    Korriscosso estava escrevendo, numa tira de papel, eram estrofes; era uma ode.

    Da a pouco, com a porta fechada, Korriscosso contava-me a sua histria ou antes fragmentos,

    anedotas desirmanadas da sua biografia. to triste, que a condenso. De resto, havia na sua narrao

    lacunas de anos e eu no posso reconstituir com lgica e sequncia a histria deste sentimental.

    Tudo vago e suspeito. Nasceu com efeito em Atenas; seu pai parece que era carregador no Pireu.

    Aos dezoito anos, Korriscosso servia de criado a um mdico, e nos intervalos do servio frequentava

  • 27

    a Universidade de Atenas: estas coisas so frequentes l-bas, como ele dizia. Formou-se em leis:

    isto habilitou-o, mais tarde, em tempos difceis, a ser um intrprete de hotel. Desse tempo datam as

    suas primeiras elegias num semanrio lrico, intitulado Ecos da tica. Isto levou-o diretamente

    poltica e s ambies parlamentares. Uma paixo, uma crise pattica. um marido brutal, ameaas de

    morte, foram-no a expatriar-se. Viajou na Bulgria, foi em Salnica empregado numa sucursal do

    Banco Otomano, remeteu endechas dolorosas a um jornal da provncia A Trombeta da Arglida.

    Aqui h uma dessas lacunas, um buraco negro na sua histria. Reaparece em Atenas, com fato novo,

    liberal e deputado.

    Este perodo de glria foi breve, mas suficiente para o pr em evidncia; a sua palavra colorida,

    potica, recamada de imagens engenhosas e lustrosas, encantou Atenas: tinha o segredo de florir,

    como ele dizia, os terrenos mais ridos: de uma discusso de imposto ou de viao fazia saltar

    clogas de Tecrito. Em Atenas este talento leva ao poder: Korriscosso era indicado para gerir uma

    alta administrao do Estado: o Ministrio, porm, e com ele a maioria de que Korriscosso era o

    tenor querido, caram, sumiram-se, sem lgica constitucional, num destes sbitos desabamentos

    polticos to comuns na Grcia, em que os governos se aluem, como as casas em Atenas sem

    motivo. Falta de base, decrepitude de materiais e de individualidades... Tudo tende para o p num

    solo de runas...

    Nova lacuna, mergulho obscuro na histria de Korriscosso... Volta superfcie, membro de um

    clube republicano de Atenas, pede num jornal a emancipao da Polnia, e a Grcia governada

    por um conclio de gnios. Publica ento os seus Suspiros de Trcia. Tem outro romance de

    corao... E enfim e isto disse-mo sem explicaes obrigado a refugiar-se em Inglaterra.

    Depois de tentar em Londres vrias posies, coloca-se no restaurante de Charing Cross.

    um porto de abrigo disse-lhe eu, apertando-lhe a mo. Ele sorriu com amargura. Era decerto

    um porto de abrigo, e vantajoso. bem alimentado; as gorjetas so razoveis; tem um velho colcho

    de molas mas as delicadezas da sua alma so, a todo o momento, dolorosamente feridas...

    Dias atribulados, dias crucificados, os daquele poeta lrico, forado a distribuir numa sala, a burgueses

    estabelecidos e glutes, costeletas e copos de cerveja! No a dependncia que o aflige; a sua alma

    de grego no particularmente vida de liberdade, basta-lhe que o patro seja corts. E, como ele me

    disse, -lhe grato reconhecer que os fregueses de Charing Cross nunca lhe pedem a mostarda ou o

    queijo sem dizer if you please, e quando saem, ao passar por ele, levam dois dedos aba do chapu:

    isto satisfaz a dignidade de Korriscosso.

  • 28

    Mas o que o tortura o contacto constante com o alimento. Se ele fosse um guarda-livros de um

    banqueiro, primeiro caixeiro de um armazm de sedas... Nisso h uma sombra de poesia os milhes

    que se revolvem, as frotas mercantes, a brutal fora do ouro, ou ento dispor ricamente os estofos,

    os cortes de seda, fazer correr a luz nas ondulaes dos moirs, dar ao veludo as molezas da linha e

    da prega... Mas num restaurante como se pode exercer o gosto, a originalidade artstica, o instinto

    da cor, do efeito, do drama a partir nacos de rosbife ou de presunto de York?!... Depois, como ele

    disse, dar a comer, fornecer alimento, servir exclusivamente a pana (*), a tripa, a baixa necessidade

    material: no restaurante, o ventre Deus: a alma fica fora, com o chapu pendurado no cabide ou com

    o rolo de jornais que se deixou no bolso do palet.

    _____

    (*) Deste ponto em diante, o original cpia manuscrita, talvez de Lus de Magalhes.

    _____

    E as convivncias, e a falta de conversa! Nunca se voltarem para ele seno para lhe pedirem salame

    ou sardinhas de Nantes! Nunca abrir os seus lbios, donde pendia o Parlamento de Atenas, seno para

    perguntar: Mais po? Mais bife? Esta privao de eloquncia -lhe dolorosa.

    Alm disso o servio impede-lhe o trabalho. Korriscosso compe de memria; quatro passeios pelo

    quarto, um repelo ao cabelo, e a ode sai-lhe harmnica e doce... Mas a interrupo glutona da

    voz do fregus, pedindo nutrio, fatal a esta maneira de trabalhar. s vezes, encostado a uma

    janela, de guardanapo no brao, Korriscosso est fazendo uma elegia; so tudo luares, roupagens

    alvas de virgens plidas, horizontes celestes, flores de alma dolorida... feliz; est remontado aos

    cus poticos, nas plancies azuladas onde os sonhos acampam, galopando de estrela em estrela...

    De repente, uma grossa voz faminta berra de um canto:

    Bife e batatas!

    A, as aladas fantasias batem o voo como pombas espavoridas! E a vem o infeliz Korriscosso, precipitado

    dos cimos ideais, de ombros vergados e as abas da casaca balouando, perguntar com o sorriso lvido:

    Passado ou meio cru? Ah! um amargo destino! Mas perguntei-lhe eu Porque no deixa

    este covil, este templo do ventre? Ele deixou pender a sua bela cabea de poeta. E disse-me a razo

    que o prende: disse-ma, quase chorando nos meus braos, com o n da gravata branca no cachao:

    Korriscosso ama.

    Ama uma Fanny, criada de todo o servio em Charing Cross. Ama-a desde o primeiro dia em que

    entrou no hotel: amou-a no momento em que a viu lavando as escadas de pedra, com os braos rolios

  • 29

    nus, e os cabelos louros, os fatais cabelos louros, deste louro que entontece os meridionais, cabelos

    ricos, de um tom de cobre, de um tom de ouro-mate, torcendo-se numa trana de deusa. E depois a

    carnao, uma carnao de inglesa de Yorkshire leite e rosas...

    E o que Korriscosso tem sofrido! Toda a sua dor exala-a. em odes que passa a limpo ao domingo,

    dia de repouso e dia do Senhor! Leu-mas. E eu vi quanto a paixo pode perturbar um ser nervoso:

    que ferocidade de linguagem, que lances de desespero, que gritos de alma dilacerada arremessados

    dali, daqueles altos de Charing Cross, para a mudez do cu frio! que Korriscosso tem cimes.

    A desgraada Fanny ignora aquele poeta ao seu lado,

    aquele delicado, aquele sentimental, e ama um policeman. Ama um policeman, um colosso, um

    alcides, uma montanha de carne eriada de uma floresta de barbas, com o peito como o flanco de

    um couraado, com pernas como fortalezas normandas. Este polifemo, como diz Korriscosso, tem,

    ordinariamente, servio no Strand; e a pobre Fanny passa o seu dia a espreit-lo de um postigo, dos

    altos do hotel.

    Todas as suas economias as gasta em quartilhos de gin, de brandy, de genebra, que noite lhe leva

    em copinhos debaixo do avental; mantm-no fiel pelo lcool; o monstro, plantado enormemente a

    uma esquina, recebe em silncio o copo, atira-o de um golpe s fauces tenebrosas, arrota cavamente,

    passa a mo cabeluda pela barba de hrcules, e segue taciturnamente, sem um Obrigado, sem um

    Amo-te, batendo o lajedo com a vastido das suas solas sonoras. A pobre Fanny admira-o babosa...

    E talvez nesse momento, outra esquina, o magro Korriscosso, fazendo no nevoeiro um esguio relevo

    de poste telegrfico, soluce com a face magra entre as mos transparentes.

    Pobre Korriscosso! Se ele ao menos a pudesse comover... Mas qu! Ela despreza-lhe o corpo de

    tsico triste; e a alma, no lha compreende... No que Fanny seja inacessvel a sentimentos ardentes,

    expressos em linguagem melodiosa... Mas Korriscosso s pode escrever as suas elegias na sua lngua

    materna... E Fanny no compreende grego... E Korriscosso s um grande homem em grego...

    Quando desci ao meu quarto, deixei-o soluando sobre o catre. Tenho-o visto depois, outras vezes,

    ao passar em Londres. Est mais magro, mais fatal, mais mirrado de zelos, mais curvado quando se

    move pelo restaurante com a travessa do rosbife, mais exaltado no seu lirismo... Sempre que ele me

    serve dou-lhe um xelim de gorjeta: e depois, ao sair, aperto-lhe sinceramente a mo.

  • 30

    NO MOINHO

    D. Maria da Piedade era considerada em toda a vila como uma senhora-modelo. O velho Nunes, diretor

    do Correio, sempre que se falava nela, dizia, acariciando com autoridade os quatro plos da calva:

    uma santa! o que ela ! A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma

    loura, de perfil fino, a pele ebrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas

    escureciam mais o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa azul de trs sacadas;

    e era, para a gente que s tardes ia fazer o giro at ao moinho, um encanto sempre novo v-la por trs

    da vidraa, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e sria.

    Poucas vezes safa. O marido, mais velho que ela, era um invlido, sempre de cama, inutilizado por

    uma doena de espinha; havia anos que no descia rua; avistavam-no s vezes tambm janela,

    murcho e trpego, agarrado bengala, encolhido no robe-de-chambre, com uma. face macilenta, a

    barba desleixada e com um barretinho de seda enterrado melancolicamente at ao cachao. Os filhos,

    duas rapariguitas e um rapaz, eram tambm doentes, crescendo pouco e com dificuldade, cheios

    de tumores nas orelhas, chores e tristonhos. A casa, interiormente, parecia lgubre. Andava-se em

    pontas dos ps, porque o senhor, na excitao nervosa que lhe davam as insnias, irritava-se com o

    menor rumor, havia sobre as cmodas alguma garrafada da botica, alguma malga com papas de

    linhaa;. as mesmas flores com que ela, no seu arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas,

    depressa murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por causa das correntes de ar; e

    era uma tristeza ver sempre algum dos pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a um canto do

    canap, embrulhado em cobertores com uma amarelido de hospital.

    Maria da Piedade vivia assim, desde os Vinte anos. Mesmo em solteira, em casa dos pais, a sua

    existncia fora triste. A me era uma criatura desagradvel e azeda; o pai, que se empenhara pelas

    tavernas e pelas batotas, j velho, sempre bbedo, os dias que aparecia em casa passava-os lareira,

    num silncio sombrio, cachimbando e escarrando para as cinzas. Todas as semanas desancava a

    mulher. E quando Joo Coutinho pediu Maria em casamento, apesar de doente j, ela aceitou, sem

    hesitao, quase com reconhecimento, para salvar o casebre da penhora, no ouvir mais os gritos

    da me, que a faziam tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava pelo telhado. No

    amava o marido decerto; e mesmo na vila tinha-se lamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria,

    aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joozinho Coutinho, que desde rapaz fora sempre entrevado.

    O Coutinho, por morte do pai, ficara rico, e ela, acostumada por fim quele marido rabugento, que

  • 31

    passava o dia arrastando-se sombriamente da sala para a alcova, ter-se-ia resignado, na, sua natureza

    de enfermeira e de consoladora, se os filhos ao menos tivessem nascido sos e robustos. Ms aquela

    famlia que lhe vinha com o sangue viciado, aquelas existncias hesitantes, que depois pareciam

    apodrecer-lhe nas mos, apesar dos seus cuidados inquietos, acabrunhavam-na. s vezes, s, picando

    a sua costura, corriam-lhe as lgrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a, como uma nvoa que

    lhe escurecia a alma.

    Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um dos pequenos choramingava, l limpava

    os olhos, l aparecia com a sua bonita face tranquila, com alguma palavra consoladora, compondo

    a almofada a um, indo animar o outro, feliz em ser boa. Toda a sua ambio era ver o seu pequeno

    mundo bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um

    capricho: nada a interessava na Terra seno as horas dos remdios e o sono dos seus doentes. Todo o

    esforo lhe era fcil quando era para os contentar: apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o

    pequerrucho, que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos seus pobres beicinhos uma

    crosta escura: durante as insnias do marido no dormia tambm, sentada ao p da cama, conversando,

    lendo-lhe as Vidas dos Santos, porque o pobre entrevado ia caindo em devoo. De manh estava

    um pouco mais plida, mas toda correta no seu vestido preto, fresca, com os bands bem lustrosos,

    fazendo-se bonita para ir dar as sopas de leite aos pequerruchos. A sua nica distrao era tarde

    sentar-se janela com a sua costura, e a pequenada em roda, aninhada no cho, brincando tristemente.

    A mesma paisagem que ela via da janela era to montona como a sua vida: em baixo a estrada,

    depois uma ondulao de campos, uma terra magra plantada aqui e alm de oliveiras e, erguendo-se

    ao fundo, uma colina triste e nua, sem uma casa, uma rvore, um fumo de aldeia que pusesse naquela

    solido de terreno pobre uma nota humana e viva.

    Vendo-a assim to resignada e to sujeita, algumas senhoras da vila afirmavam que ela era beata:

    todavia ningum a avistava na igreja, a no ser ao domingo, com o pequerrucho mais velho pela mo,

    todo plido no seu vestido de veludo azul. Com efeito, a sua devoo limitava-se a esta missa todas

    as semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir pelas preocupaes do Cu; naquele

    dever de boa me, cumprido com amor, encontrava uma satisfao suficiente sua sensibilidade; no

    necessitava adorar santos ou enternecer-se com Jesus. Instintivamente mesmo pensava que toda a

    afeio excessiva dada ao Pai do Cu, todo o tempo gasto em se arrastar pelo confessionrio ou aos

    ps do oratrio, seria uma diminuio cruel no seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de rezar era

    velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa cama, todo dependente dela, tendo-a s a ela,

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    parecia-lhe ter mais direito ao seu fervor que o outro, pregado numa cruz, tendo para o amimar toda

    uma humanidade pronta. Alm disso nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam

    devoo. O seu longo hbito de dirigir uma casa de doentes, de ser ela o centro, a fora, o amparo

    daqueles invlidos tornara-a terna, mas prtica: e assim era ela que administrava agora a casa do

    marido, com um bom senso que a afeio dirigia, uma solicitude de me prvida. Tais ocupaes

    bastavam para entreter o seu dia: o marido, de resto, detestava visitas, o aspeto de caras saudveis, as

    comiseraes de cerimnia; e passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se ouvisse

    outra voz estranha famlia, a no ser a do Dr. Ablio que a adorava, e que dizia dela com os olhos

    esgazeados:

    uma fada! uma fada!...

    Foi por isso grande a excitao na casa, quando Joo Coutinho recebeu uma carta do seu primo

    Adrio, que lhe anunciava que em duas ou trs semanas ia chegar vila. Adrio era um homem

    clebre, e o marido de Maria da Piedade tinha naquele parente um orgulho enftico. Assinara mesmo

    um jornal de Lisboa, s para ver o seu nome nas locais e na crtica. Adrio era um romancista: e o

    ltimo livro, Madalena, um estudo de mulher trabalhado a grande estilo, de uma anlise delicada

    e subtil, consagrara-o como um mestre. A sua fama, que chegara at vila, num vago de legenda,

    apresentava-o como uma personalidade interessante, um heri de Lisboa, amado das fidalgas,

    impetuoso e brilhante, destinado a uma alta situao no Estado. Mas realmente na vila era sobretudo

    notvel por ser primo do Joo Coutinho.

    D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via j a sua casa em confuso com a presena do

    hspede extraordinrio. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar a hora do jantar, de

    conversar com um literato, e tantos outros esforos cruis!... E a brusca invaso daquele mundano,

    com as suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de so, na paz triste do seu hospital, dava-

    lhe a impresso apavorada de uma profanao. Foi por isso um alvio, quase um reconhecimento,

    quando Adrio chegou, e muito simplesmente se instalou na antiga estalagem do Tio Andr, outra

    extremidade da vila. Joo Coutinho escandalizou-se: tinha j o quarto do hspede preparado, com

    lenis de rendas, uma colcha de damasco, pratas sobre a cmoda, e queria-o todo p ara si, o primo,

    o homem clebre, o grande autor... Adrio, porm recusou:

    Eu tenho os meus hbitos, vocs tm os seus... No nos contrariemos, hem?... O que fao vir c

    jantar. De resto, no estou mal no Tio Andr... Vejo da janela um moinho e uma represa que so um

    quadrozinho delicioso... E ficamos amigos, no verdade?

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    Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele heri, aquele fascinador por quem choravam

    mulheres, aquele poeta que os jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples muito

    menos complicado, menos espetaculoso que o filho do recebedor! Nem formoso era: e com o seu

    chapu desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena de flanela caindo larga num corpo

    robusto e pequeno, os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caadores de aldeia que s

    vezes encontrava, quando de ms a ms ia visitar as fazendas do outro lado do rio. Alm disso no

    fazia frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com grande bonomia, dos seus negcios.

    Viera por eles. Da fortuna do pai, a nica terra que no estava devorada, ou abominavelmente

    hipotecada, era a Curgossa, uma fazenda ao p da vila, que andava alm disso mal arrendada... O que

    ele desejava era vend-la. Mas isso parecia-lhe a ele to difcil como fazer a Ilada! ... E lamentava

    sinceramente ver o primo ali, intil sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os

    proprietrios da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu Joo Coutinho declarar-lhe que a

    mulher era uma administradora de primeira ordem, e hbil nestas questes como um antigo rbula!...

    Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e arranja-te isso tudo... E na questo de preo,

    deixa-a a ela!...

    Mas que superioridade, prima! exclamou Adrio maravilhado. Um anjo que entende de

    cifras!

    Pela primeira vez na sua existncia Maria da Piedade corou com a palavra de um homem. De resto

    prontificou-se logo a ser a procuradora do primo...

    No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e era um dia de Maro fresco e claro, partiram

    a p. Ao princpio, acanhada por aquela companhia de um leo, a pobre senhora caminhava junto

    dele com o ar de um pssaro assustado: apesar de ele ser to simples, havia na sua figura enrgica e

    musculosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos pequenos e luzidios alguma coisa de forte, de

    dominante, que a enleava. Tinha-se-lhe prendido orla do seu vestido um galho de silvado, e como

    ele se abaixara para o desprender delicadamente, o contacto daquela mo branca e fina de artista na

    orla da sua saia incomodou-a singularmente. Apressava o passo para chegar bem depressa fazenda,

    aviar o negcio com o Teles, e voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento prprio, no

    ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada estendia-se, branca e longa, sob o sol tpido e a

    conversa de Adrio foi-a lentamente acostumando sua presena.

    Ele parecia desolado daquela tristeza da casa. Deu-lhe alguns bons conselhos: o que os pequenos

    necessitavam era ar, sol, uma outra vida que aquele abafamento de alcova...

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    Ela tambm assim o julgava: mas qu!, o pobre Joo, sempre que se lhe falava de ir passar algum tempo

    quinta, afligia-se ri terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes horizontes: a Natureza forte

    fazia-o quase desmaiar; tornara-se um ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama...

    Ele ento lamentou-a. Decerto poderia haver alguma satisfao num dever to santamente cumprido...

    Mas enfim, ela devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa alm daquelas quatro paredes,

    impregnadas do bafo da doena...

    Que hei de eu desejar mais? disse ela. Adrio calou-se: pareceu-lhe absurdo supor que ela

    desejasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que ele pensava era noutros apetites,

    nas ambies do corao insatisfeito... Mas isto pareceu-lhe to delicado, to grave de dizer quela

    criatura virginal e sria que falou da paisagem...

    J viu o moinho? perguntou-lhe ela. Tenho vontade de o ver, se mo quiser ir mostrar,

    prima. Hoje tarde. Combinaram logo ir visitar esse recanto de verdura, que era o idlio da vila.

    Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aproximao maior entre Adrio e Maria da

    Piedade. Aquela venda, que ela discutia com uma astcia de alde, punha entre eles como. que um

    interesse comum. Ela falou-lhe j com menos reserva quando voltaram. Havia nas maneiras dele, de

    um respeito tocante, uma atrao que ao seu pesar a levava a revelar-se, a dar-lhe a sua confiana:

    nunca falara tanto a ningum: a ningum jamais deixara ver tanto da melancolia oculta que errava

    constantemente na sua alma. De resto as suas queixas eram sobre a mesma dor a tristeza do seu

    interior, as doenas, tantos cuidados graves... E vinha-lhe por ele uma simpatia, como um indefinido

    desejo de o ter sempre presente. desde que ele se tornava assim depositrio das suas tristezas.

    Adrio voltou para o seu quarto, na estalagem do Andr. impressionado, interessado por aquela

    criatura to triste e to doce. Ela destacava sobre o mundo de mulheres que at ali conhecera, como um

    perfil suave de anjo gtico entre fisionomias de mesa-redonda. Tudo nele concordava deliciosamente:

    o ouro do cabelo, a doura da voz, a modstia na melancolia, a linha casta, fazendo um ser delicado

    e tocante, a que mesmo o seu pequenino esprito burgus, certo fundo rstico de alde e uma leve

    vulgaridade de hbitos davam um encanto: era um anjo que vivia h muito tempo numa vilota grosseira

    e estava por muitos lados preso s trivialidades do stio: mas bastaria um sopro para o fazer remontar

    ao cu natural, aos cimos puros da sentimentalidade...

    Achava absurdo e infame fazer a corte prima... Mas involuntariamente pensava no delicioso prazer

    de fazer bater aquele corao que no estava deformado pelo espartilho, e de pr enfim os seus

    lbios numa face onde. no houvesse ps de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que

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    poderia percorrer toda a provncia em Portugal, sem encontrar nem aquela linha de corpo, nem aquela

    virgindade tocante de alma adormecida... Era uma ocasio que no voltava.

    O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de natureza, digno de Corot, sobretudo hora do

    meio-dia em que eles l foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida das grandes rvores, e

    toda a sorte de murmrios de gua corrente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando

    e espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde corriam cantando. O moinho era de um alto

    pitoresco, com a sua velha edificao de pedra secular, a sua roda. enorme, quase podre, coberta de

    ervas, imvel sobre a, gelada limpidez da gua escura. Adrio achou-o digno de uma cena de romance,

    ou, melhor, da morada de uma fada. Maria da Piedade no dizia nada, achando extraordinria aquela

    admirao pelo moinho abandonado do Tio Costa. Como ela vinha um pouco cansada, sentaram-se

    numa escada desconjuntada de pedra, que mergulhava na gua da represa os ltimos degraus: e ali

    ficaram um momento calados, no encanto daquela frescura murmurosa, ouvindo as aves piare