COF Resumos Aulas 26 a 30

33
Curso Online de Filosofia OLAVO DE CARVALHO Resumos de Aulas Vol. VI Elaborado por Mário Chainho Índice Pag. Aula 26 – 03/10/2009 2 Aula 27 – 10/10/2009 8 Aula 28 – 17/10/2009 18 Aula 29 – 24/10/2009 23 Aula 30 – 31/10/2009 28 Notas: 1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes devem sempre recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias, para limitar a propagação dos erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas. 2) Os resumos foram escritos em português de Portugal. Não se procurou seguir o novo Acordo Ortográfico.

Transcript of COF Resumos Aulas 26 a 30

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 1

    Curso Online de Filosofia

    OLAVO DE CARVALHO

    Resumos de Aulas

    Vol. VI

    Elaborado por Mrio Chainho

    ndice Pag. Aula 26 03/10/2009 2 Aula 27 10/10/2009 8 Aula 28 17/10/2009 18 Aula 29 24/10/2009 23 Aula 30 31/10/2009 28

    Notas: 1) Este material para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes

    devem sempre recorrer s gravaes e transcries das aulas, como fontes primrias, para limitar a propagao dos erros involuntrios aqui contidos e colmatar as lacunas.

    2) Os resumos foram escritos em portugus de Portugal. No se procurou seguir o novo Acordo Ortogrfico.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 2

    Aula 26 03/10/2009

    Sinopse: O trabalho que se pretende realizar nos primeiros anos do COF do tipo imanente; a ateno do aluno deve se voltar para ele mesmo. uma aco que visa a tomada de posse da inteligncia como um exerccio de conscincia, tendo em conta que esta ltima o mecanismo fundamental da psique e no apenas uma sua casca. As percepes e as imagens onricas so as nossas fontes de compreenso das coisas, porque tudo o que pensamos j passou de algum modo por estas vias. A lgica uma estruturao do possvel, que nos permite imaginar o que est para alm da nossa experincia, mas ela em si no pode captar a realidade e necessita das sensaes e do mundo onrico para fazer a ponte com o mundo real. Os prprios objectos tm uma lgica intrnseca, que a frmula das suas aces e transformaes possveis. Captamos o crculo de latncia de cada ente de imediato e quando, neste primeiro contacto as coisas nos parecem confusas porque a realidade tem em si elementos equvocos. Percebemos primeira a essncia das coisas e, desta forma, a sua identidade e unidade. Isso indica-nos que o mundo onrico e das percepes tem sempre em si conhecimento. O ego uma criao da conscincia que corresponde a uma sua estabilizao narrativa. A psicoterapia consiste em reescrever a histria do eu e para isso temos de prestar ateno no apenas na conscincia focada mas tambm na conscincia dispersa. Para isso, no devemos renegar os nossos pensamentos nem ter medo de imaginar, o que no significa que devemos cultivar fantasias, que um acto que vai para alm da livre iniciativa da imaginao e produzido pelo eu. Neste processo vamos tambm perceber que a capacidade de ser causa o que define o ser humano e nem a natureza nem o ambiente podem determinar aces humanas. A riqueza da experincia nunca poder ser totalmente codificada numa expresso terica. A condio fundamental do aprendizado a abertura para uma multido de factos externos e internos a ns, dos quais s uma nfima parte podemos vir a compreender, e deste conjunto restrito apenas uma fraco comunicvel. A comunicao s possvel porque as pessoas percebem muito mais do que aquilo que conseguem exprimir. Quando no confiamos na experincia vamos nos encerrar numa estrutura lgica que nos bloqueia a novas percepes e podemos mesmo deixar de nos reconhecer nos nossos pensamentos.

    A posse da inteligncia como um exerccio da conscincia Os escolsticos distinguiam dois tipos de aco. Existe a aco transitiva, que opera sobre um objecto, como na construo de um mvel. E h tambm a aco imanente, que fazemos sobre ns mesmos, o que inclui coisas como o exerccio fsico mas tambm o trabalho que se pretende fazer nos primeiros anos do COF, onde a aco do aluno voltada para ele mesmo. uma aco que visa a tomada de posse da inteligncia como um exerccio da conscincia. No se pretende algo to profundo como uma transformao salvadora da prpria alma, mas uma transformao que puxe o indivduo desde a periferia da sua vida psquica at ao seu centro, que constitui a conscincia.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 3

    Temos, em primeiro lugar, de repudiar uma ideia que se disseminou a partir do sculo XIX e que coloca a conscincia como algo exterior psique, como se fosse uma casca. A conscincia foi erradamente tomada como uma parte de uma mquina chamada psique, e que esta trabalha de forma mais ou menos inconsciente. Na verdade, o mecanismo fundamental da psique a capacidade de ter conscincia. Mal o beb nasce, comea a ter conscincia da presena do ser e assim que desenvolve a sua psique. Nada acontece na psique sem a conscincia e esta, ao invs de ser um mecanismo produzido pela psique, antes uma aco e uma fora agente. Os sonhos, que Freud dizia serem algo inconsciente, so em si um acto de conscincia ou nem poderamos nos lembrar deles. Enquanto na viglia a conscincia est mais focada em pontos que nos interessam, no sonho ela funciona menos concentrada pois no estamos agindo e assim a conscincia funciona de forma mais livre e pode ligar-se a qualquer estmulo que recebemos do ambiente ou do nosso corpo. As imagens resultam pouco ordenadas devido sua origem mltipla. A imaginao ainda d um pouco de organizao ao conjunto e as coisas colocadas em sequncia temporal podem dar a iluso de uma narrativa, quando no disso que se trata. A anlise de sonhos no funciona porque parte do princpio que aquilo que chamamos de um mesmo sonho constitui uma narrativa, quando ali se juntam as coisas mais dspares e sem qualquer relao. Pode bastar uma m digesto ou uma alterao de temperatura para aparecer uma imagem horrvel no sonho, que reflecte em primeiro lugar o estado imediato do corpo, tanto naquilo que concerne ao ambiente como em relao a transformaes internas.

    As fontes da compreenso O sonho reflecte acima de tudo percepes, as quais originam imagens que j so em si formas de compreenso e no necessitam de explicao. Recebemos no sonho uma grande quantidade de estmulos, tudo est em constante fluxo, pelo que difcil ter uma conscincia clara das coisas. Se bem que a maior parte das informaes que recebemos no sonho sejam irrelevantes, dizendo respeito a pequenas alteraes corporais, tambm recebemos informaes objectivamente importantes, ocorrendo o mesmo nos devaneios durante o dia. Em geral, prestamos pouca ateno a estas coisas, mas deste material dos devaneios, ocorram estes no sonho ou na viglia, que vo sair as frmulas mais elaboradas e estveis de conscincia. Algo idntico acontece com as nossas percepes, que tambm esto em constante fluxo e cuja intensidade com que nos atingem no proporcional importncia objectiva da informao que contm. O conjunto de sensaes e de imagens onricas a matria-prima do pensamento. Tudo o que pensamos j passou de algum modo antes pela imaginao e pela memria.

    A lgica com estruturao do possvel Um mero pensamento reflectido, expresso em lgica verbal e sem suporte onrico ou sensitivo, no significa nada, uma forma vazia. A aptido de lidar com formas vazias, que o domnio da lgica, nada tem a ver com o conhecimento da realidade. A lgica a estrutura da possibilidade e no da realidade. A lgica tem interesse por saber se algo absolutamente necessrio, ou ento se algo configura uma absoluta

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 4

    impossibilidade, e no meio ficam as situaes de necessidade relativa, a que chamamos de probabilidade. Este universo do possvel no pode ser conhecido por experincia, j que esta apenas se atm ao que efectivamente existe e no ao que poderia acontecer. Por outro lado, nenhuma experincia pode captar a totalidade do ser, sempre limitada a uma sua nfima parte. Ns sabemos que existem muito mais coisas mas s as podemos conhecer por especulao do possvel, ou seja, pela razo, pela lgica. A especulao do possvel no serve apenas para imaginar aquilo que no est ao alcance da nossa experincia, serve tambm para dar uma medida da exactido que o nosso conhecimento obtido por experincia tem no conjunto das possibilidades. O nosso horizonte de conscincia demarcado por uma estruturao racional de possibilidades que fizemos e que corresponde, de certo modo, quilo que admitimos conhecer e quilo que somos capazes de reconhecer. Utilizamos esta estruturao da possibilidade em quase tudo o que fazemos. Se pensarmos no trnsito automvel, seria impossvel este acontecer se no tivssemos de antemo uma estrutura do que pode acontecer em cada situao. Mas o nosso horizonte de conscincia pode tambm limitar-nos quando nos surgem informaes que no entram no nosso esquema de possibilidades, como acontece nos sonhos, e ns rejeitamo-las quando estas nos poderiam dar conhecimentos efectivos. A toda a hora tentamos enquadrar o material da experincia real dentro do esquema das possibilidades e quando no existe encaixe ns chegamos a dizer que irreal. Trata-se de uma inverso, pois queremos julgar a realidade a partir de um conjunto de possibilidades quando a substncia da realidade nunca dada pelo esquema da lgica mas pela experincia efectiva e traduzida para o mundo dos sentidos, do imaginrio e da memria. A ponte entre o mundo onrico e sensitivo e o mundo da esquemtica lgica dada pela imaginao, que tambm faz parte do primeiro mundo. Quase tudo o que chamamos senso de realidade depende da actividade imaginativa e onrica. O sonho e o devaneio expressam da forma mais imediata o estado do nosso corpo e o ambiente em torno. aqui que estamos mais profundamente arreigados na realidade em torno e por isso precisamos de sonhar para captar a realidade durante a viglia. Fazer isso atravs da percepo muito difcil porque logo podemos comear a raciocinar em cima e parar o processo.

    A lgica intrnseca dos objectos Os objectos tm a sua lgica intrnseca ns a captamos pelas sensaes e atravs da actividade onrica, obtendo assim as formas dos objectos. Quando estas formas se estabilizam podemos fazer abstraco dos objectos, pois j conseguimos distinguir neles o essencial do acidental. A essncia de um objecto, aquilo que o define, a primeira coisa que nos aparece, se bem que na forma de smbolo. Imediatamente sabemos que aquela forma admite um grande nmero de variaes e possibilidades de aco, mas tambm sabemos que este conjunto limitado. Sabemos partida que uma vaca no ir aparecer no telhado ou que um gato no ir saltar 300 metros. Percebemos logo uma harmonia entre as formas dos entes e as suas possibilidades, e quando nos

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 5

    equivocamos quase sempre porque a aparncias dessas coisas equvoca, como no caso de animal que use a camuflagem. No podemos nos iludir de poder obter uma nitidez total no conhecimento quando a realidade variada, mltipla, ilimitada, mutvel e j de si nos chega equvoca. A nossa capacidade de reconhecer de imediato, at no sonho, a essncia das coisas permite-nos perceber que estas tm identidade e, por isso, unidade. A lgica a unidade do nosso pensamento na unidade das coisas. A unidade que as coisas apresentam reflecte a estabilidade da sua forma substancial, que no a perseverana de algo esttico mas de uma forma com as suas possibilidades de aco e transformao. Ns percebemos sempre um crculo de latncia em tudo, que a percepo do potencial que as coisas tm de agir ou padecer aces. At nos objectos inanimados ns percebemos o seu potencial, ao ponto de chamarmos a certos materiais de matrias-primas precisamente por percebemos neles um potencial maior de transformao do que nos objectos j transformados pela aco humana. Em suma, o mundo das percepes e das imagens onricas trs sempre em si conhecimento, o que falta uma certa organizao porque temos uma multido de informaes todas misturadas.

    A conscincia e o ego Uma das razes de se conceber erradamente o consciente como uma mera superfcie de um grande inconsciente uma confuso que identifica a conscincia com o ego. O ego uma criao da conscincia correspondendo a uma estabilizao narrativa desta. Apenas conseguimos narrar uma parte muito limitada do que entra na nossa percepo e imaginao. O que distingue os grandes escritores e poetas , a partir de um material mais ou menos idntico em todas as pessoas, a capacidade de conseguir estabilizar na mente muito mais coisas e transp-las para combinaes verbais. muito importante aprender a trabalhar com o material que vem de dentro, da nossa alma, mas esse material cada vez mais esquecido na medida que aumentam as presses para a aprendizagem de cdigos e tcnicas de adaptao social. Esta actividade de tipo onrico continuar a trabalhar em ns e como no temos tempo para a estabilizar e no lhes prestamos ateno, ento dizemos que inconsciente. A conscincia tem dois modos de funcionamento, um difuso e outro focado. Quando sonhamos acordados, focando o vazio, e depois voltamos a ns sem recordar do que estvamos a fazer, isso um momento de transio entre os dois modos de conscincia. Mas a conscincia focada s existe como uma seleco operada dentro da conscincia dispersa, no se trata de uma outra conscincia. Tentar esquecer a conscincia dispersa tornou-se numa doena epidmica, e as pessoas passam a ter medo da sua imaginao, temendo ficar loucas, porque j no se reconhecem nos prprios pensamentos e no material das suas almas. A histria do eu fica reduzida a um quase nada. Por isso o doutor Mller dizia que a psicoterapia no agia sobre a psique mas tentava reescrever a histria do eu. Sem ter o objectivo de fazer psicoterapia, tambm temos de ganhar, se possvel, o hbito dirio de reescrever a histria do nosso eu do nosso jeito.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 6

    O eu substancial e o eu subjectivo Quando se fala em reescrever a histria do eu faz-se meno ao eu subjectivo, que aquilo que reconhecemos como eu, e distinto do eu substancial que designa uma pessoa real. Devemos reconhecer todos os pensamentos que nos vm cabea, sem os renegar, mesmo que paream idiotas e malignos. Imaginar no o mesmo que fazer e no se trata de tentar cultivar iluses, como aquelas baseadas em desejos sexuais ou de poder. O desejo ilusrio necessita da estabilizao da ateno, uma produo do eu e no uma actividade livre da imaginao. No funcionamento espontneo da imaginao podemos nos aperceber de muitos mais conhecimentos do que supnhamos ter. Procurar uma causa disso um erro, porque o que define o ser humano a capacidade de ser causa. Natureza e cultura no conseguem obrigar algum a fazer o que quer que seja, mesmo que quase todas as escolas de psicologia digam o contrrio. No escolhemos o que nos acontece mas escolhemos o que fazer diante do que nos acontece. Se no tivssemos a capacidade de ser causa tambm no saberamos distinguir entre aquilo que fazemos e aquilo que nos acontece, e esta uma distino que no precisa ser aprendida, um beb ou um animal tambm a fazem.

    Crer para entender Todo o ensinamento prtico, semelhana do ensinamento religioso, coloca como condio prvia compreenso um perodo de impregnao prtica. o famoso credo ut intelligam inspirado em Santo Agostinho, embora no COF no se pretenda ir to longe como dar este salto no escuro. Contudo, preciso ter a noo de que todas as explicaes tericas que possam ser dadas no vo abranger todos os elementos que vo aparecer na experincia, alguns dos quais so mesmo intransmissveis. No mundo moderno reina a desconfiana (sobretudo ao que nos possa fazer bem, como o Exerccio do Necrolgio, mas j ningum desconfia dos malefcios que possam causar as drogas), e as pessoas exigem a prova de tudo, bloqueando-se assim experincia. O medo de errar muitas vezes o medo da verdade, alertava Hegel. A verdade obriga a uma abertura ao real, que s possvel ao nvel da percepo e da actividade onrica. Mas como estas so fugazes, as pessoas refugiam-se em frmulas lgias estabilizadas e fecham a porta a novas percepes. A percepo e a imaginao so as nossas fontes e devemos lidar com elas delicadamente. Os processos mentais de base so basicamente os mesmos em todas as pessoas e o que distingue Aristteles no o QI mas o cuidado e a subtileza que ele dedica aos seus processos mentais sem se deixar amedrontar, alm de no ter pressa em querer compreender tudo imediatamente. A condio nmero um do aprendizado consiste na abertura para uma multido de factos externos e internos que no compreendemos e s iremos compreender um nfima parte e, dessa parte, s uma fraco iremos conseguir explicar. Mas quando percebemos isto, percebemos tambm que as outras pessoas esto na mesma situao; elas tambm esto percebendo muito mais coisas do que aquelas que conseguem falar. Por isso no temos de explicar tudo porque as outras pessoas tambm podem compreender algo a mais do que conseguem

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 7

    dizer. Isto o oposto da iluso de Kurt Lewin, que preconizava uma programao autoritria das pessoas para mold-las a uma mentalidade democrtica. Daqui surge a tendncia de eliminar palavras em circulao, como se assim o fenmeno subjacente palavra tambm desaparecesse da sociedade. O que isso criou foi uma camisa-de-foras para o eu e as pessoas ficaram com medo de pensar.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 8

    Aula 27 10/10/2009

    Sinopse: Quando Aristteles afirma, na Metafsica, que as coisas universais so as mais difceis de conhecer porque esto mais longe dos sentidos, tal parece entrar em contradio com a assumpo por Aristteles de que os universais so dados directamente nas percepes sensveis. As essncias so percebidas directamente pela inteligncia num acto que ocorre em cada percepo sensorial mas no se confunde com este. Por outro lado, a validao do conhecimento tem de passar por uma converso para conceitos que se afastam das apreenses sensveis. Deus no pode ser conhecido como um objecto de experincia pois no possvel colocar Deus fora do sujeito pois Ele a prpria condio de existncia do horizonte de conscincia. Deus pode ser conhecido, no na sua essncia mas nas suas propriedades, pela sua aco criadora em ns e pela sua interveno nos milagres. O texto Unidade e percepo coloca o problema de saber o fundamento da nossa certeza na unidade do real, tendo em conta que ela no pode ser dada pelos sentidos. Os cpticos podem duvidar da possibilidade de obter este fundamento mas no duvidam da unidade do real em si. Entre outros, Hume, Kant, e a escola pragmtica, de Rorty e outros, propuseram solues para este problema que apresentam claras deficincias. A inteligncia que o filsofo deve desenvolver baseia-se num repertrio de problemas com os quais deve conviver, deixando que sejam as coisas a dizer o que so. Quem no quer arriscar a mente no pode estudar filosofia. Ao filsofo no basta indicar e desmontar o erro. Ele tem a obrigao de averiguar os fundamentos da possibilidade do erro e seguir o seu percurso.

    Uma questo legada por Aristteles No livro Metafsica, Aristteles diz (982-A, linha 25): E as coisas mais universais so, para os homens, exactamente as mais difceis de conhecer por serem as mais distantes das apreenses sensveis. (Giovanni Reale) Nesta frase, enviada pelo aluno Nilton Ribeiro, est embutido um dos grandes problemas da filosofia de Aristteles e que ele no deixou resolvido. Sabendo que Aristteles afirmava que junto com a forma sensvel vem imediatamente a forma inteligvel que d o conceito do universal, como podem os universais serem os conhecimentos mais distantes das apreenses sensveis? Aristteles diz que tudo o que existe, s existe como individualidade, no h existncia colectiva. Mas, por outro lado, s existe conhecimento cientfico no nvel do universal. Uma leitura desatenta pode ver na frase de Aristteles apenas uma contradio lgica, mas uma leitura atenta percebe que a contradio est no prprio objecto em causa. Aristteles entendia o processo cognitivo como uma tenso entre exigncias opostas, pelo que a sua filosofia comea com um problema e termina com um ponto de interrogao. Existir consiste em ter unidade e j Duns Scot dizia que o ser e a unidade se convertem um no outro. O que aparece aos sentidos a existncia como individualidade e no a espcie, mas o conhecimento cientfico lida apenas com conceito universais, que so tirados das formas inteligveis dos objectos individuais. Existe uma tenso estrutural,

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 9

    aparentemente insupervel, entre a modalidade de existncia dos objectos e a modalidade de os conhecermos cientificamente. Aristteles j tinha percebido h 2400 anos que o mundo das cincias nunca pode se ajustar perfeitamente ao mundo percebido, mas hoje as pessoas ignoram isto e acreditam poder fazer uma descrio precisa e exacta a realidade. Quase tudo o que Aristteles escreveu para ser interpretado em dois planos de significado. O processo do conhecimento deve ser visto do ponto de vista psicolgico mas tambm da perspectiva da sua fundamentao lgica. Ao contrrio do que parece sugerir Plato, para Aristteles as formas inteligveis no esto acima e fora dos objectos mas so dadas nestes directamente, ou seja, as duas coisas esto na mesma esfera de realidade. Como podem ento as frmulas inteligveis estar mais distantes dos dados dos sentidos? Isto acontece, em primeiro lugar, porque as essncias so percebidas directamente pela inteligncia num acto que ocorre em cada percepo sensorial mas no se identifica com este, so coisas que no ocorrem ao mesmo nvel e por isso nem tudo o que vemos sabemos o que . Ainda assim as duas coisas aparecem juntas se bem que ningum saiba como se d a ligao. Depois, a distncia em relao aos sentidos aumenta irremediavelmente quando se faz a ligao do conceito forma inteligvel concomitante aos dados dos sentidos, pois vamos ter de fazer uma converso para uma proposio afirmativa que seja possvel de encadear num raciocnio lgico. do ponto de vista da validao lgica do conhecimento que os universais esto distantes das apreenses sensveis.

    O modo de conhecer Deus No podemos conhecer nenhum objecto que esteja acima do nosso horizonte de experincia. Acima de tudo, Deus no pode ser conhecido como objecto de experincia pois no possvel colocar Deus fora do sujeito e ainda O submeter ao horizonte de conscincia desse sujeito. Deus no um objecto externo mas a prpria condio de existncia do nosso horizonte de conscincia, pelo que podemos conhecer Deus, ao contrrio do que dizia Kant, pela sua aco criadora em ns ou pela sua interveno no mundo exterior atravs dos milagres. No vamos conseguir conhecer Deus na sua essncia mas apenas nas suas propriedades atravs das suas aces. J Espinosa negava a possibilidade de conhecimento emprico e propunha conhecer Deus de maneira construtiva, pelo puro raciocnio criado maneira geomtrica. Mas isto no passa da tentativa de conhecer um conceito e nega partida qualquer experincia de Deus. Desta forma conhecemos apenas aquilo que a nossa mente inventou e mesmo que se obtenha da algo com validade universal, ser apenas o Deus dos filsofos e no o Deus de Abrao, Isaac e Jacob, que conheciam Deus pelas suas aces, ainda que a sua essncia permanecesse misteriosa. O elemento de f entra quando chega a hora de, ao invs de ficarmos na posio do observador cientfico que quer controlar a experincia, nos remetemos a uma passividade atenta e que reconhece a sua ignorncia, nulidade e total falta de mrito para poder ver a aco de Deus. Todos temos o direito, e por isso o dever, de fazer isto.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 10

    Leitura do texto Unidade e percepo Vai ser feita a leitura do texto Unidade e percepo, que pretende colocar um problema sem deixar uma soluo. Teremos em conta que aprender filosofia aprender a captar os problemas que surgem na realidade, por detrs dos textos e no neles propriamente. O texto encontra-se em: http://www.seminariodefilosofia.org/system/files/cof_unidadepercpcao.pdf

    Unidade e percepo

    Considerado em si mesmo, amputado de todos os nexos invisveis e insensveis que o unificam e articulam, o mundo dito material, o mundo dos corpos e das sensaes, no de maneira alguma um "mundo", uma unidade real: uma poeira de percepes mltiplas e instantneas, separadas e incomunicveis, sem qualquer vnculo "material" que as relacione e as cole umas s outras. Basta uma piscada, e voc no "v" mais nenhum elo de continuidade temporal entre os objetos das duas percepes visuais sucessivas.

    Ns sabemos que o mundo permanece o mesmo, em duas vises consecutivas, devido memria, que o elo entre as duas percepes visuais mas ela em si no um dado dos sentidos.

    Voc sabe que o elo est l, mas no pode enxerg-lo com os olhos. Ao ver um objeto qualquer e estender a mo para peg-lo, a unidade entre a coisa vista e a coisa tocada no vista pelos olhos nem apreendida pelo tato;

    Existe uma unidade entre a percepo visual e a percepo tctil que no nenhuma destas coisas.

    () os dois sentidos permanecem distintos e separados, assim como os respectivos aspectos que apreendem no objeto: se voc sabe que o objeto que voc v o mesmo que voc toca, esse saber no lhe vem nem da sensao visual nem da sensao tctil, mas de uma ligao entre as duas que, por sua vez, no vista nem tocada. Se nem mesmo a simples unidade de um objeto simples de uma caneta, de um copo, de um gato pode ser objeto de percepo sensvel, muito menos pode s-lo a unidade do "mundo", a unidade do real como um todo. No entanto, a unidade do real est pressuposta em cada uma das nossas percepes e aes. Se a esquecssemos por mais de alguns segundos, nos tornaramos incapazes de executar at mesmo as aes mais simples

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 11

    comer, andar, subir numa rvore, fugir de um perigo.

    A unidade do nosso ser fsico e das nossas aces, assim como a unidade do objecto e a unidade entre ns e o objecto, tudo isto est pressuposto em tudo o que fazemos, caso contrrio no perceberamos nada e muito menos teramos capacidade de agir.

    Nossa desadaptao ao ambiente seria tal, que no poderamos sobreviver nele, individual ou coletivamente, por mais que o tempo necessrio para definhar e morrer. Tudo o que fazemos neste mundo supe a unidade do real da sua simultaneidade no espao e da sua continuidade no tempo , e esta unidade, por sua vez, no chega ao nosso conhecimento por nenhuma informao sensvel, sendo antes a condio prvia para que as informaes sensveis se unifiquem na nossa mente e tomem a forma de "percepes". Mesmo somados, os dados dos cinco sentidos no nos notificam da existncia de nenhum "mundo" e nem sequer de um s objeto inteiro.

    Se juntamos vrias informaes sensveis sobre um objecto porque j temos de antemo o senso da sua unidade. A identidade do objecto no percebida em nenhuma das informaes dos sentidos.

    Os sentidos do apenas... sensaes. Se estas no se juntam, no h objeto nem mundo, e o fato que elas no se juntam ao nvel dos sentidos. Que isso coloca um problema, algo que os primeiros filsofos gregos j perceberam como muita clareza. Ao afirmar que "nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio", Herclito dava cincia do carter fragmentrio e inconstante das nossas percepes. Ao buscar a unidade do real numa esfera de eternidade supra-sensvel, Parmnides reconhecia que essa unidade no se encontrava no mundo dos sentidos, mas ao mesmo tempo deixava um ponto de interrogao na pergunta decisiva: se a unidade no se v nem nos objetos do mundo sensvel, como podemos apreend-la na suposta ligao, ainda mais alta e mais difcil de alcanar, entre o sensvel como um todo e o supra-sensvel?

    Podemos aceitar, como diz Parmnides, que a unidade das coisas est situado no mundo supra-sensvel, mas isto colocar o problema e no resolv-lo.

    Qual , em suma, o fundamento da nossa certeza na unidade do real, certeza que os cpticos podem at questionar em palavras, mas qual retornam no instante mesmo em que a questionam diante de um ouvinte

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 12

    que sabem existir como totalidade individual no mesmo mundo em que eles existem?

    Os cpticos podem encontrar uma abertura para colocar as suas dvidas, mas eles sabem perfeitamente que no a unidade do real que est em causa, ou nem poderiam formular as suas dvidas, mas a sua fundamentao.

    Para resolver esse problema, muitas hipteses foram criadas, e no raro defendidas com veemncia. Eis algumas delas, escolhidas a esmo: 1. Segundo David Hume, no podemos conhecer a unidade do real, nem saber se ela existe ou no. Acreditamos nela pela fora do hbito consagrado, nascido da necessidade prtica. tambm por hbito que acreditamos na nossa prpria unidade pessoal. tambm por hbito que acreditamos na nossa prpria unidade pessoal.

    Para Hume existiam apenas momentos atomsticos e nada para colar estas coisas, pelo que at o eu no existiria mas apenas estados mentais.

    O problema com essa teoria o seguinte: se meu prprio "eu" no tem unidade nenhuma, como poderia ele adquirir um "hbito"?

    A criao de um hbito pressupe a continuidade do sujeito habituado, pelo que o hbito no pode criar unidade nem mesmo o conhecimento da unidade.

    Longe de poder ser criada pelo hbito, a unidade do sujeito uma condio para que existam hbitos.

    A que podemos juntar como pressuposto o conhecimento dessa unidade.

    A simples repetio de um ato qualquer inconcebvel se o sujeito que praticou o ato pela primeira vez no permanece o mesmo na segunda. Quanto unidade do real como um todo, como poderia ela impregnar-se nos hbitos da comunidade se esta no permanecesse a mesma durante o processo de aquisio de cada hbito? Mas como poderia a comunidade conservar-se unitria se sua existncia transcorresse no quadro de uma realidade total fragmentria e quebradia?

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 13

    Sem unidade do real, a realidade de uma comunidade impossvel porque essa comunidade no pode existir num mundo diferente a cada dia. Hume no resolve nada e cria mais um problema lgico.

    2. Segundo Kant, a unidade do real no percebida. um esquema preexistente na mente humana, que o projeta sobre os dados fragmentrios do mundo sensvel, conferindo-lhes assim uma forma unitria que por si mesmos no tm.

    Ele diz que o mundo sensvel nos d apenas fragmentos esparsos e que a nossa mente que lhes d uma unidade, num processo que no consciente mas consiste numa forma a priori.

    Esta doutrina suscita de imediato a objeo de que a unidade assim obtida no real, objetiva, apenas uma criao da mente humana.

    Dentro do mundo kantiano no possvel saber se a unidade criada real ou apenas inveno nossa. Se tentarmos averiguar a validade dessa unidade no mundo real, apenas temos um fragmento e da resulta uma segunda unidade, que a unidade da unidade, e isto segue indefinidamente, sendo todas as unidades projeces da mente.

    Kant responde que de fato assim, mas que essa criao "universalmente vlida" por ser idntica em todos os homens, o que suficiente, segundo ele, para fundamentar a possibilidade do conhecimento. A resposta obviamente insatisfatria, pois abre um abismo entre "validade universal" e "veracidade".

    Fica sempre a pairar a possibilidade de todos estarem errados juntos, o que Kant acha horrvel e afasta como hiptese. Mas os cpticos no aceitam isso nem ns temos de aceitar.

    Ser universalmente vlido significa apenas ser aprovado por todos os homens [pelo menos os que pensaram nisso], mas nada impede que eles se enganem todos juntos. A filosofia de Kant, cuja influncia sobre a mentalidade acadmica foi profunda e duradoura substitui, em ltima anlise, a veracidade pelo mero consenso. [Pode existir um consenso universal sem que isso corresponda a algo do mundo objectivo.] S no nos informa se a existncia do consenso deve existir objetivamente por sua vez ou tambm deve ser admitida por puro consenso, e assim por diante.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 14

    O consenso, bem vistas as coisas, torna-se numa assembleia universal inconclusiva para todo o sempre a validao do consenso precisa sempre de outro consenso, j que no podemos captar a unidade do mundo real.

    3. Segundo toda uma escola de pensamento em que se destacam Willard Quine, Gilbert Ryle, Wilfrid Sellars, Donald Davidson e Richard Rorty, a nica unidade que se pode admitir como existente a da natureza corprea tal como a descrevem as "cincias". O ser humano apenas um ente a mais no conjunto da natureza, e tudo o que se passa no seu psiquismo apenas o resultado da sua atividade neuronal, um processo material como qualquer outro. Os circuitos neuronais recebem inputs dos sentidos e emitem "enunciados" sobre as coisas, mas esses enunciados so nada mais que um jogo intersubjetivo: refletem apenas a troca de estmulos entre vrios crebros humanos e nada mais conhecem, nem expressam, alm da sua prpria situao pragmtica.

    Segundo esta viso, os seres humanos vivem no mundo objectivo que a cincia descreve, mas os cientistas quando pensam e falam no o fazem de forma objectiva mas expressam apenas o funcionamento do prprio crebro.

    Temos ento dois mundos separados: de um lado, a unidade objetiva das "coisas" fsicas descritas pela cincia; de outro, o universo dos "jogos" intersubjetivos, conjunto de erros e iluses s vezes teis, no raro inteis e prejudiciais. Esta soluo no uma soluo de maneira alguma. Em primeiro lugar, no nos explica como a mera soma de atividades intersubjetivas sem poder de preenso sobre a realidade objetiva poderia ter gerado algo como o conhecimento cientfico objetivamente vlido.

    Existe a dificuldade bvia da cincia conseguir descrever o mundo objectivo quando esta feita por pessoas que nada reflectem de objectivo mas apenas o prprio funcionamento neuronal.

    Se todas as atividades cognitivas humanas so apenas jogos, a cincia no pode ser seno um jogo tambm, ainda que um pouco mais sofisticado, e neste caso ele nada tem a dizer sobre o mundo das "coisas", e sim apenas sobre as necessidades pragmticas da comunidade cientfica. Uma dessas necessidades a de persuadir as demais comunidades de que a comunidade cientfica a nica autorizada a falar em nome delas e, ademais, a pronunciar "verdades objetivas" a que todas devem curvar-se.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 15

    Para Rorty no se pode provar nada, pelo que resta tentar induzir as pessoas a falar como ns e isso que faz a comunidade cientfica. Para ele, tal como para Kant, todo o conhecimento apenas uma questo de consenso mas vai mais adiante e fala mesmo em fabricar esse consenso. O discurso cientfico, apesar de mais elaborado, apenas mais um jogo.

    Em segundo lugar, que uma "cincia"? Cincia levantar uma hiptese de que determinado campo de fenmenos obedece a alguma constante, e em seguida coletar fatos dentro desse mesmo campo, definido pela constante, para averiguar se a constante mesmo constante. [E mesmo sendo uma actividade tautolgica, por vezes ela d errado.] O campo de observao de cada cincia delimitado pelas hipteses iniciais que em seguida selecionam o material de observao. Por mais exatas e meticulosas que sejam as observaes, o resultado final h de trazer sempre consigo a tara hereditria da hiptese fundadora, e por isso no pode jamais ser declarado uma verdade objetiva, apenas a confirmao intersubjetiva de um mtodo inventado precisamente para cri-la. Kant estava certo ao observar que, nas cincias, o mtodo inventa o objeto, mas, se esse o caso, nenhum objeto de cincia nenhuma pode ser dito "real": cada um apenas um simulacro de objetividade projetado pelo mtodo.

    A aplicabilidade tcnica das cincias est dada desde incio porque o mtodo cientfico j uma aplicao tcnica. Quando se seleccionam certos aspectos a tratar segundo algumas constantes, como acontece na cincia, isto j um procedimento de aplicao tcnica porque a escolha feita sobre um conjunto de possibilidades pressupostas. Isto perde toda a objectividade porque em causa no est a natureza dos objectos mas a reaco destes aco humana. Quando o mtodo recorta os objectos, estes no existem objectivamente e so apenas aspectos da realidade escolhidos pela mente humana. Por isso errado dizer que o mundo descrito pelas cincias objectivo, ainda que algumas cincias contenham um aspecto descritivo bastante desenvolvido e assim introduzam o elemento de objectividade. A objectividade introduzida aqui quando se descrevem as coisas como se apresentam e no como as seleccionamos, havendo sempre um grau mnimo de seleco dado pela prpria definio da cincia que delimita o seu campo. Idealmente, segundo Husserl, a diviso entre os vrios campos das cincias deve corresponder a campos da estrutura do ser, mas isto apenas um ideal.

    Em terceiro lugar, a unidade do real concreto no qual sabemos que existimos no a mesma coisa que a unidade abstrata de um "todo" tomado como objeto de teoria. Podemos fazer afirmaes sobre o "todo", mas sabemos que o todo do qual se fala no o mesmo no qual se existe. A totalidade concreta transcende toda possibilidade de teorizao pelo simples fato de que fazer teorias algo que acontece "dentro" do todo,

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 16

    no acima e fora dele. Portanto, mesmo se fosse possvel existir uma concepo cientfica da totalidade universal, essa concepo abrangeria somente uma parte ou aspecto da totalidade concreta, no a totalidade concreta enquanto tal. Ou seja: se o mundo corpreo descrito pelas cincias uma unidade, essa unidade determinada pelas necessidades internas do mtodo e no pela natureza objetiva das coisas. Isso o mesmo que dizer: o mundo que as cincias descrevem apenas um jogo intersubjetivo entre outros. Por fim, resta a obviedade de que, se a cincia no pode descrever o todo, tambm no pode descrever um s fato concreto, por mnimo que seja. Fato concreto o fato tomado no na essncia abstrata que o define muito menos na definio meramente operacional da qual parte em geral a observao cientfica , mas na totalidade ilimitada dos acidentes sem os quais no poderia produzir-se. Isso est absolutamente acima da capacidade de observao, seja de cada cincia em particular, seja de uma hipottica e utpica articulao de todas elas.

    Mas qualquer pessoa tem acesso ao facto concreto e sabe que a sua percepo no se esgota num conceito e est aberta para uma infinidade de acidentes que concorrem para aquilo. Qualquer que seja a cincia, ela no pode ter esta abertura porque est logo limitada pelo seu mtodo, que vai recortar apenas alguns aspectos para se debruar e exclui todos os acidentes. Juntando todas as cincias, de forma ideal, no se iria ainda abranger o mundo concreto porque isso seria ter o infinito quantitativo em acto. O infinito quantitativo s pode ser apreendido em potncia, onde infinitos acidentes esto presentes em potncia e no de forma numervel.

    O perfil da inteligncia a desenvolver A inteligncia humana um esquema determinado pelos vrios plos de interesse do indivduo, nos quais confluem todo o tipo de problemas aos quais as pessoas costumam fugir ou ento resvalam para solues rpidas. precisamente a criao de um reportrio de problemas que traar o perfil da forma individual da nossa inteligncia, que ganha um poder hormonal com a convivncia com toda uma srie de questes. O que caracteriza a inteligncia medocre a necessidade de um estado de homeostase, procurando afastar-se de problemas e do sofrimento. Da vem a necessidade de respostas rpidas e qualquer besteira serve. O filsofo no foge das questes e sabe que elas so preciosas porque alimentam a tenso da busca do conhecimento. Se ficarmos nervosos e colocamos um fim arbitrrio na busca, a filosofia termina logo ali. Mas a convivncia com os problemas no significa ficar constantemente mexendo nas questes, porque isso quer dizer que estamos a tentar criar uma soluo. Temos, antes, de esperar pela soluo; esperar que as coisas nos digam o que so e o que fazem ali. O filsofo aquele que convive longamente com estes problemas ao ponto de os conseguir expressar em termos universalmente vlidos. Ele no faz um fingimento de

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 17

    filosofia porque o seu objecto de investigao filosfica coincide com o seu repertrio de problemas e a sua personalidade identifica-se com a sua inteligncia filosfica. Isto s vai acontecer se deixarmos a nossa mente acalmar e ouvirmos a nossa inteligncia reflexiva porque ela est sempre atenta ao que dizem as coisas. O que Aristteles fazia no era criar teorias ou montar frases mas tentar perceber uma coisa tal como ela era e faz-la falar. Se por vezes ele se expressava em termos abstractos altamente sofisticados, era porque a experincia concreta no podia ser expressa em termos mais simples, mas poderia ser expressa tambm em smbolos poticos se fosse esse o talento de Aristteles. Se por vezes ficamos anos lidando com esta camada verbal, abstracta ou potica, isto apenas uma dificuldade emprica e no quer dizer que a filosofia esteja nas estruturas discursivas porque ela se foca na realidade. Muitas pessoas ficaro bloqueadas a este nvel e o que para uns uma percepo imediata, para outros parece apenas uma opinio. Tendo em conta isto, perdemos a iluso de que todos nos iro compreender. No basta mostrar algo por pura demonstrao lgica porque preciso remontar aos factos de onde aquilo parte, e aqui as coisas no so evidentes para todos. Nenhum conhecimento pode prescindir de outros conhecimentos acumulados, da sensibilidade, da abertura, etc.

    Filosofar no jogar pelo seguro Em filosofia lidamos com aquilo que no sabemos e no nos limitamos a jogar apenas no que certo. No podemos simplesmente apontar o erro e ficar por a. Temos de ver qual o fundamento da possibilidade do erro e dizer como se chegou ali. Nesse difcil processo de investigao filosfica, iremos prosseguir numa srie de meandros dialcticos fazendo abstraco do certo ou errado finais, para acompanharmos a experincia intelectual ou espiritual em toda a sua plenitude. Fazer isso implica alguns riscos, mas quem no quer arriscar a mente no pode estudar filosofia.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 18

    Aula 28 17/10/2009

    Sinopse: Esta aula foca alguns obstculos vida intelectual, que no so de ordem intelectual mas uma srie de hbitos internos e externos. A educao de h dez sculos atrs foi a responsvel pelo florescimento dos sculos XII e XIII, onde apareceram as catedrais e os grandes escolsticos. Essa educao no visava produzir obras mas pessoas, tendo como alvo inicial o corpo por este ser visto como um sinal da presena de Deus. O homem um animal espiritual, o nico capaz de pensar em infinitude. Apenas a intuio de ordem transcendente pode dar o senso da unidade do real. precisamente isto que o corpo deve transmitir, e para isso tem que ser afinado como um instrumento musical, fugindo ao total descontrolo assim como camisa-de-foras da polidez burguesa. Uma deficiente cultura corporal vai afectar a inteligncia que, por sua vez, far decair a moralidade. Ocorrer uma degradao do senso da propriedade vocabular, que conduzir a uma nfase deslocada. Daqui resultam falsas afectaes de indignao, que so proibidas no COF. Os alunos devem receber com elevao pequenas e grandes ofensas. Prticas como o Tai Chi so teis ao restabelecimento de uma cultura corporal, ajudando a obter pacincia e concentrao mesmo em situaes de muita dor. O exerccio de decorar poemas ajuda a recuperar o senso da propriedade vocabular, alm de aumentar o repertrio lingustico. O desejo de ter sempre razo conduz a alguns vcios que impedem o desenvolvimento intelectual. No importar ter razo em cada pequena discusso mas apreender a realidade como um sistema de tenses cruzadas. S assim nos capacitamos para vencer as grandes discusses pblicas.

    Obstculos vida intelectual O tipo de obstculos que se opem vida intelectual, no caso, brasileiro, quase nunca so de ordem intelectual mas dizem respeito a uma srie de hbitos internos e externos que se materializam em formas de pensamento e hbitos de conduta que se tornam impedimentos quase invencveis. Impe-se, por isso, um longo trabalho nos prximos anos de exame da alma e da prpria conduta para averiguar os hbitos imbricados no nosso tecido interior e que nos afastam da possibilidade de realizar as operaes superiores do esprito. O exame da prpria conduta acabar tambm por se tornar num valioso estudo sociolgico porque outras pessoas tm os mesmos problemas que ns. Quando a nossa auto-observao e autoconhecimento coincidem com dados objectivos captados na sociedade, que podemos colher da literatura, jornalismo, mdia, isso significa que estamos a pisar terreno firme e a conhecer algo efectivamente.

    A educao h 10 sculos atrs Ser til focarmo-nos na educao existente h 10 sculos atrs como plo de comparao. Apesar de ser um perodo que a maior parte dos historiadores considera estril, havendo poucos documentos entre os sculos IX e XI, mais recentemente

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 19

    descobriu-se que foi a educao ministrada nesta altura a responsvel pelo enorme florescimento dos sculos XII e XIII, com personagens como Hugo de S. Vtor, Duns Scot, S. Boaventura e S. Toms de Aquino, alm de ser o perodo das catedrais, que so as mais elevadas artes criadas pelo ser humano e que sintetizam todas as outras artes.

    O ensino entre os sculos IX, X e XI no tinha interesse em produzir obras mas pessoas, no sentido em que pretendia desenvolver as suas virtudes. A virtude era entendida no sentido antigo, como um poder a mais e no no sentido actual de passar a imagem de bom-mocismo. Foi uma poca de transio de um perodo de predomnio oral para uma cultura escrita. Inicialmente era dada pouca importncia aos textos, colocando o foco na aprendizagem de virtudes atravs do encontro entre aluno e professor, que constitua um modelo vivo. Da os relatos de profunda admirao entre professor e aluno, que atestam uma educao virada para criar seres humanos admirveis que serviriam de modelos para a restante sociedade. O ensino passou a basear-se em textos apenas a partir do sculo XIV, mas j a poca anterior das catedrais era apenas o testemunho de uma cultura cujo apogeu tinha passado, ainda que mal tenha deixado registos.

    O corpo como alvo inicial da educao O corpo era considerado um sinal vivo da presena de Deus e por isso era o primeiro alvo da educao e no a inteligncia. Dizia-se que os anjos invejavam, de certo modo, os homens porque estes, por terem um corpo mortal que implicaria correr riscos, poderem aceder virtude da coragem, que era inacessvel aos anjos, assim como outras virtudes como a pacincia ou a resignao, e tudo isto pode ser testemunhado pelo corpo que se tornava, ento, precioso. A educao comeava pela tomada de posse do corpo de modo a que os gestos, as maneiras de falar e as posturas reflectissem uma presena de esprito e no um automatismo. Os impulsos do corpo deviam ser transfigurados pela intencionalidade de modo a cada gesto expressar conscientemente um valor. No Brasil esta cultura do corpo desprezada, havendo apenas duas atitudes, ou o desleixo total, em que os gestos caticos reflectem apenas os estados internos, ou ento um rigidez hiertica, para no parecer mal. No h que amarrar o corpo numa camisa-de-foras nem desleix-lo, mas antes afin-lo como um instrumento musical para este transmitir algo valioso e digno. Isto vai parar bem longe das normas de polidez que o mundo burgus criou, que apontam para uma postura totalmente artificial. O ensinamento antigo implicava uma infinidade de regras mas tudo estava calculado para afinar o corpo e torn-lo uma expresso da presena de Deus e nunca impor uma camisa-de-foras vinda do exterior.

    O homem um animal espiritual A essncia da verdadeira educao adestrar o ser humano naquilo que lhe mais prprio, que a capacidade de pensar em infinitude. O homem um animal espiritual que tem a capacidade de pensar sobre coisas que vo muito alm do seu crculo de

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 20

    experiencia; o nico bicho capaz de albergar preocupaes metafsicas. Por mais que se recue na humanidade, encontramos sempre alguma intuio de ordem transcendente. Isto tem influncias em termos prticos porque o ser humano deixa de estar vinculado a uma circunstncia particular e at concebvel que possa viver em outros planetas. Ortega y Gasset j tinha notado que a maior parte dos animais est adaptada a um certo tipo de ambiente e se so retirados de l vo sofrer ou morrer, enquanto o homem vive em qualquer ambiente do planeta, mas como no est perfeitamente adaptado a nenhum ambiente vai ter sempre um certo grau de incomodidade relacionado com o lugar e a estao do ano onde se encontra. S percebemos a unidade do mundo da experincia porque temos alguma intuio da ordem transcendente, que algo que vai para alm da experincia sensvel e que os homens sempre captaram. Quando se perde a viso da ordem transcendente, o senso da unidade do real tambm se esvai e resta uma vivncia animal onde s existe um contexto imediato. esta a proposta de cientistas como Richard Dawkins, que tm uma nostalgia de um passado animal que nunca existiu e no percebem que um animal preso sua circunstncia no poderia evoluir para conceber algo como a ordem csmica ou divina, pois se esta capacidade foi infundida, ento foi toda de uma vez s. Em termos substantivos, a viso que temos da ordem divina no difere daquelas dos sbios egpcios ou dos primeiros filsofos, temos apenas um maior nmero de registos de pessoas com a mesma viso nossa disposio. Sendo o homem um animal espiritual, um animal metafsico, precisamente isso que o corpo deve transmitir. A educao de h dez sculos atrs visava transformar o corpo num veculo dcil que expressasse as partes mais elevadas da conscincia. O indivduo tornava-se expressivo mas no para chamar a ateno para si mesmo, j que o ego era acalmado, mas para espelhar a presena divina. Neste sentido, eram utilizados tanto modelos sagrados como profanos, por exemplo, dos oradores greco-romanos como Ccero, algo que erradamente se diz ter ocorrido apenas na Renascena. J as normas de polidez do mundo burgus visam criar uma inexpressividade obrigatria, para que ningum chame a ateno e as invejas sejam controladas. No se concebe que algum possa admirar algum, uma confisso de que ningum presta. Na verdadeira educao o corpo no deve ser ocultado pois ele pode reflectir as mais altas virtudes, especialmente quando torturado, mutilado ou morto, pensando nas mortes exemplares de Scrates e Jesus Cristo.

    O senso da propriedade vocabular Um dos reflexos de uma fraca cultura corporal, demasiado rgida ou demasiado desordenada, a perda do senso da propriedade vocabular. As coisas deixam de ser designadas pelo nome mais apropriado mas por outro parecido. A boa escrita parte da mxima de preferir sempre o termo especfico ao termo genrico. Utilizamos muitos termos genricos quando somos crianas ou quando aprendemos uma lngua estrangeira, mas se nos queremos dirigir a um pblico temos de usar os termos exactos.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 21

    O senso da propriedade da nfase Uma consequncia da perda do senso vocabular a tentativa de compensao da ausncia do termo certo pela enfatizao do que se diz, o que acaba por dar um efeito cmico no desejado. A par do senso da propriedade vocabular deve existir o senso da propriedade da nfase. Devemos ter ateno nossa voz para perceber se ela transmite uma insegurana que no queremos confessar. Vamos tentar camuflar o nosso estado de terror proclamando pseudo-certezas de forma enftica. Devemos confessar a nossa insegurana e dizer no sei porque s assim podemos dizer um dia sei com efectividade. A conscincia moral est relacionada com a inteligncia e esta com o hbito corporal. Ento, para a moralidade no decair preciso exemplos vivos de alta cultura e seriedade. A generalidade das pessoas oscila entre a total falta de decoro e uma polidez ofendida. Por isso aumentou a indignidade fingida, que a certa altura se torna em indignao real mas totalmente desproporcionada dos factos. A indignao d a iluso s ms pessoas de serem grandes pessoas, por isso provoca um dano irreparvel no s moralidade mas tambm personalidade e inteligncia. Qualquer expresso de indignao est proibida no COF. Temos que saber suportar pequenas e grandes injustias com elegncia. A indignao deve ser modulada pelos valores em jogo e ela s deve ocorrer quando h uma ofensa contra Deus ou contra valores altssimos. Mas no devemos cair num auto-controlo que seja como a camisa-de-foras da moral burguesa. O nosso padro deve apontar, mesmo que remotamente, para a educao da Idade Mdia. No fazem falta pessoas que ficam brandindo tica na praa pblica mas pessoas que sejam verdadeiros exemplos do que pensar, ser, falar e actuar nas coisas pblicas.

    A educao do corpo e do corao Existe uma etapa que visa adquirir um auto-controlo que nos permita escolher aquilo que o corpo vai expressar. A inteligncia depende bastante do corpo, o que Alain exemplificava quando pedia aos alunos para pensaram no som u enquanto a boca se abria para pronunciar a. A dificuldade de realizar isto mostra que as disposies do nosso corpo (posio, tom de voz, olhar, etc.) impedem-nos de entender certas coisas. O corpo deve ser cultivado tendo em vista os valores que temos em mente e os nossos objectivos de vida. Estes sero a nossa msica e o corpo deve ser o instrumento afinado para toc-la. Para isso h que transcender tanto a expressividade animal descontrolada como a rigidez das normas de polidez. Uma prtica como o Tai Chi pode ajudar bastante neste aspecto, j que permite desenvolver a concentrao e adequar a conduta exterior mesmo em situaes de muita dor. O nosso corpo uma massa de linhas contraditrias, pois formado por uma frmula hereditria que desconhecemos e por elementos do mundo exterior, e cabe a ns domin-lo segundo os nossos prprios fins. O Tai Chi tambm serve para desenvolver a pacincia, que a resistncia ao tdio, a capacidade de ficar parado durante horas, e isto algo fundamental. A inteligncia filosfica, que permitia aos escolsticos dos sculos XII e XIII fazer distines lgicas finssimas, no deriva do cultivo da inteligncia racional mas do

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 22

    dilogo com o corao. A sinceridade a virtude bsica da inteligncia e consiste em dizer as coisas tal como as percebemos, sem exageros. Isto exige que a memria seja fiel percepo original mas tambm necessrio domnio da linguagem, sem esquecer que o objecto sempre soberano em relao a aluno e professor. Existem alguns exerccios que podemos realizar neste sentido. Um exerccio possvel escrever imaginariamente e guardar na memria. Vamos repetir vrias vezes as palavras que queremos dizer sem as escrever. Outro exerccio excelente a decorao de poemas. Para comear, basta um poema por ms, mas sempre algo ao nvel de Cames ou Shakespeare. Podemos comear pelo soneto de Cames Transforma-se o amador na cousa amada. Os poemas decorados serviro de reportrio lingustico e at para fazer aluses, que no podem ser confundidas com plgio. Quem faz esta confuso tambm no perceber uma figura de linguagem e vai tom-la literalmente. Este tipo de percepo mutilada est disseminada pela sociedade mas o que importante observar estas coisas em ns. importante tambm lembrar como se desenvolveram os vcios mencionados nesta aula. Uma das causas principais o desejo de ter sempre razo. natural que as frases que dizemos nos paream persuasivas, mas s estamos a concordar connosco mesmos. No temos de nos identificar com nenhuma ideia mas apenas com o nosso centro produtor, porque l que est o Esprito Santo. No importa ter razo mas apreender a realidade, tendo em conta que esta um sistema de tenses cruzadas. Os problemas filosficos no se resolvem com uma frase, preciso apreender a tenso interna dos objectos. Temos a vantagem de poder elaborar o status quaestionis de todos os filsofos que se pronunciaram sobre o assunto, j que a Histria da filosofia est toda documentada. Temos que usar este legado e fazer uma coleco de aspectos contraditrios e isto ficar pressionando por dentro at que o objecto marque a sua presena. O vcio de ter razo em todas as pequenas discusses vai nos incapacitar de poder vencer as grandes discusses pblicas. Temos de saber perdoar sempre e isto ser um processo vitamnico que libertar energias em ns. No temos que dizer que vamos fazer algo, mas sim fazer quando chegar a altura de mostrar. A postura do cantor Mrio del Mnaco exemplifica isto. Ele era bastante humilde ao anunciar o que ia cantar, tal como nas entrevistas era sempre humilde, nunca falando de si e apenas elogiava outros colegas, mas quando chegava a altura de cantar era uma demonstrao de fora avassaladora. Pode-se ver um exemplo disso num concerto que ele deu para a BBC: http://www.youtube.com/watch?v=9n1IE1HynssAaaa

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 23

    Aula 29 24/10/2009

    Sinopse: O objectivo central do COF a criao de inteligncias autnomas. A alta cultura de qualquer pas mantida por umas poucas centenas de inteligncias autnomas, das quais umas 5 ou 6 seis tm um grande nvel de criatividade. Coloca-se o problema de achar critrios de veracidade que impeam a procura de segurana atravs da aprovao grupal, e tais s podem ser encontrados num quadro de referncias universais. fundamental a abertura para o que de melhor se criou em todas as pocas e lugares. A concepo progressiva da Histria um grande entrave para a abertura para esta universalidade porque encerra o passado numa esfera mtica, negando a possibilidade de veracidade intrnseca nos conhecimentos antigos e medievais. A investigao moderna influenciada por Newton transferiu o foco das causas para o processo considerado em si mesmo. O mundo fsico, descrito por equaes matemticas, passou a ser o nico objectivo, e a Descartes nada mais restava do que apelar psique individual como nico plo de certeza. Kant levou isto ao extremo afirmando que a mente ordenava o mundo catico, estando nos antpodas de Hugo de So Vtor, que preconizava uma educao onde o aluno absorvia progressivamente a ordem divina, j pronta, atravs da leitura das grandes obras. Essa leitura devia ser feita no apenas com a imaginao mas com o corpo, lendo alto ou inaudivelmente mas como se recitando, de forma a absorver o contedo como realidade. Para absorvemos aquilo que de melhor a humanidade criou temos de fazer a suspenso da descrena de forma a captarmos a veracidade intrnseca das obras e descobrirmos a ordem csmica que a se revela. A educao moderna cr apenas numa ordem inventada ou sugerida pelo professor, encerrando o aluno num provincianismo que o impossibilitar de compreender os conhecimentos passados. Antes de tentarmos ser formadores de opinio devemos dominar a nossa matria e s nos submeter ao julgamento daqueles que sabem mais do que ns.

    A cultura superior e a inteligncia autnoma A cultura superior de qualquer pas mantida por algumas centenas de pessoas, no preciso mais que isto. Deste grupo, cinco ou seis indivduos so inteligncias autnomas dotadas de criatividade e as restantes, no tendo o mesmo nvel de criatividade, conseguem acompanhar o trabalho das primeiras e mantm o nvel de compreenso sobre as obras e espalham o efeito destas na sociedade. Quando a inteligncia autnoma hostilizada, como acontece, no Brasil, isto no afecta os indivduos criadores, que no buscam aprovao, mas vai criar um crculo de rejeio que impede a sociedade de receber o efeito vitamnico e hormonal que as ideias destes podiam exercer, e que naturalmente se deveriam espalhar virtualmente por toda a populao em crculos concntricos. No Brasil, as grandes obras ficam soterradas ou ento ocorre um fenmeno entrpico de utilizar as obras mais elevadas para fazer delas cpias infinitamente inferiores como se fossem caricaturas.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 24

    Critrios de veracidade O desenvolvimento de uma inteligncia autnoma coloca o problema de achar um critrio de veracidade ou de segurana em relao quilo que se descobriu. Em geral, as pessoas no tm um critrio de normalidade para si mesmas e procuram segurana na concordncia do meio social, que d uma iluso de realidade quando aquilo apenas um delrio grupal. Mas esse teatro para os participantes a coisa mais persuasiva de todas, mais do que aquilo que eles vem com os prprios olhos. A perspectiva de ficar deslocado da viso colectiva vista como um risco de enlouquecer. Num ambiente que cada vez mais desprovido de alta cultura, at os debates que dizem nominalmente respeito aos assuntos mais elevados so resolvidos por critrios de aprovao colectiva. Mas todas as mais altas criaes do ser humano sempre foram produzidas por indivduos que, mesmo que no desprezassem a opinio da maioria, no contavam com a opinio colectiva. A segurana de estar completamente sozinho afirmando o contrrio do que toda a gente diz, sem temer a loucura, s pode vir da universalidade do quadro de referncias adoptado. A alta cultura, ao invs de ser um processo que nos afasta dos processos de socializao e humanizao, de que temos necessidade absoluta, , pelo contrrio, o modo mais poderoso e importante meio de realizar estes processos porque nos abre o dilogo para as inteligncias mais importantes de todas as pocas. Isto, que em antropologia se chama desaculturar, uma libertao das limitaes da nossa cultura e a forma de apreender o que a dimenso do ser humano em geral.

    A abertura para a universalidade Um dos elementos fundamentais da educao superior a libertao do provincianismo, que considera que tudo igual sua provncia e o que no representa a loucura ou nem sequer existe. O idiota acha sempre que todos so to idiotas como ele, mas o inteligente conta com a inteligncia dos outros mesmo se esta esteja ausente, como no caso do educador que fala para uma inteligncia potencial. Contudo, o educador no pode dar educao directamente mas apenas alguns instrumentos. Cabe aos alunos toc-los como se fossem instrumentos musicais com vista obteno da inteligncia autnoma, que no necessita da aprovao do meio. No Iluminismo falava-se de uma universalidade abstracta relativa a uma natureza humana fixa, idntica em toda a parte. Na educao superior procura-se uma universalidade real, que consiste numa abertura para as grandes conquistas do esprito humano de todas as pocas e civilizaes. Vamos apreender essas obras pelo mtodo da impregnao imaginativa, como no Exerccio de Leitura Lenta, mas como nem tudo o que imaginamos adequado ao texto, precisamos fazer uma compensao atravs de crtica histrica. Heidegger dizia que por vezes temos que pensar certas coisas que o autor no pensou para compreender o texto, e que s se tornaram pensveis para ns depois de o termos lido. Temos sempre de ver se as coisas que acrescentamos so coerentes com o texto, que frequentemente s pode ser compreendido com estes acrscimos.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 25

    Entraves para a abertura para a universalidade A forma como a mentalidade moderna encara a Histria um grande bice abertura para a universalidade. Existe uma concepo da Histria progressiva, que supe um progresso linear, que realmente no ocorreu. Ao invs de uma unidade linear, existiram vrios comeos independentes. Para conferir esta suposta continuidade na Histria, teramos de conseguir compreender as obras antigas to bem como as modernas, mas esta possibilidade negada por outro preceito da Histria progressiva, que diz que as teorias antigas foram superadas. Estas s podem ser compreendidas, segundo este preceito, como mitos ou lendas que j foram substitudas por verdades modernas. Quando Aristteles dizia que a pedra caa porque tinha tendncia para o repouso, os modernos acham que isto apenas uma concepo mtica que foi impugnada pelas teorias de Newton e assim torna-se incompreensvel para eles o conceito de desejo natural de Aristteles e dos escolsticos. Esta forma de compreenso, que encerra o passado numa esfera mtica ou mesmo de parania, ao mesmo tempo uma negao porque deixamos de ser capazes de ver ali alguma verdade e apenas tentamos compreender o porqu dos antigos pensarem assim. O princpio de falsibilidade de Popper, mantra dos progressistas, diz que no h teorias verdadeiras, apenas teorias adequadas ao actual estado de investigaes. Mas assim no podemos dizer que as teorias antigas eram falsas, porque elas estavam adequadas ao seu tempo e no podemos pedir que elas se adequassem a um futuro estado das investigaes.

    A sociedade matematizada Quando Newton apresentou a Lei da Gravidade, ele no acrescentou nada ao que tinha dito Aristteles sobre a explicao causal e que apontava para o desejo da natureza. A Lei da Gravidade descreve certos movimentos mas no o seu porqu. A descrio matemtica nunca pode explicar causas, j que isso implica transpor um fenmeno especfico para um plano mais geral e elevado que contm a inteligibilidade do fenmeno. No existe o conceito matemtico de causa, que um conceito de ordem metafsica, baseado numa viso integral da estrutura da realidade e na hierarquia dos seus factores. A investigao cientfica moderna que se inspirou em Newton transferiu o foco do nvel das causas para o nvel do processo considerado em si mesmo. Fazer isto no mais acertado do que expor a teoria do desejo natural, como fez Aristteles, j que so planos distintos. Contudo, a mente moderna acostumou-se a considerar que tudo o que no descrito em termos matemticos produto cultural, mito ou simples erro. No h nada de objectivo que justifique isto, apenas a presso do grupo confere esta impresso. Einstein morreu sem compreender como era possvel a natureza comportar-se de forma matemtica porque no percebeu que a fsica no estuda a natureza mas precisamente partes desta seleccionadas por serem matematizveis. medida que apareceram novos instrumentos matemticos, foi possvel descrever coisas que antes eram indescritveis. Isto mostra que a diviso entre real matematizvel e irreal no matematizvel um simples produto cultural historicamente condicionado porque a fronteira entre o que descritvel no pode ser traada para o futuro. O problema da cincia de Newton foi ela ter criado uma cosmoviso falsa porque deixou de incluir o

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 26

    cosmos mas apenas sectores recortados de acordo com as possibilidades de uma cincia em particular. A imaginao moldada por este tipo de cosmoviso conduziu a ideias como as que desencadearam a Revoluo Francesa e que apontavam para a criao de uma sociedade perfeita moldada racionalmente. Um dos efeitos que isto provocou foi tornar incompreensvel para o estudante moderno boa parte do legado antigo e medieval. Quando Hugo de So Vtor diz para o estudante aprender as coisas com ordem isso percebido hoje como um incentivo a seguir uma ordem inventada ou proposta pelo professor, mas originalmente queria dizer que existe uma ordem natural que absorvida atravs da leitura, num processo em que a ordem csmica evoca a ordem divina e se impregnam na alma. O estudante moderno acha que atravs da leitura s possvel absorver a forma-mente do autor, na melhor das hipteses, e essa forma criao dele, desligada da realidade. Isso ignorar que o autor tem basicamente a mesma estrutura ontolgica que ns e ir perceber o mundo circundante da mesma forma que ns, por isso percebemos a mesma ordem que nos gerou e formou e no algo singular da mente do autor.

    Descartes e o legado de Newton O mundo estudado pela fsica tido como o nico objectivo, mas na verdade um mundo que nada tem de sensorial, uma construo matemtica a que se chega aps laboriosa abstraco. Mas quando as Leis de Newton passaram a determinar a forma geral da cultura, nada mais restava a Descartes a no ser apelar psique individual como nico plo de certeza. Para ele, s podemos acreditamos na nossa existncia e naquilo que se impuser como evidncia provada. O paroxismo desta loucura ocorre em Kant, que achava que a mente ordenava o caos do mundo exterior, quando o oposto. Qualquer idiota, desde que raciocine de acordo com as leis de Newton, transforma-se assim no padro de ordem universal. Hugo de So Vtor dizia o oposto, o aluno chega despreparado, ignorante e pela leitura das grandes obras que absorve a ordem universal, que vem pronta e no pode ser modificada. A estrutura do nosso crebro um dado real do mundo fsico e no um princpio ordenador criado por ns. No nascemos como uma folha em branco, como dizia Locke, mas sim com uma estrutura cerebral determinada que se amolda perfeitamente ao mundo exterior, e mesmo antes de nascermos j recebemos o impacto da realidade total que nos formou e transcende infinitamente aquilo que podemos perceber pelos sentidos. O objectivo da educao medieval era ter um vislumbre desta ordem e Hugo de S. Vtor escreveu sobre isto porque era um conhecimento que j estava em risco na altura. A ordem do mundo de Newton diz apenas respeito ao movimento s Leis da Gravidade. uma ordem que pode ser descrita matematicamente, mas a ordem total apenas pode ser expressa simbolicamente por via potica. Contudo, pode ser aceite e percebida.

    Ler com a imaginao e com o corpo O que se chama hoje de educao uma viagem entre duas irrealidades, uma, a do mundo fsico newtoniano, composto de frmulas matemticas, e outra que pura inveno cultural, o chamado mundo das ideias. Isto ocorre porque a leitura visa apenas a imaginao, mas a educao da Idade Mdia exigia que a leitura fosse feita

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 27

    no s com a imaginao mas tambm com o corpo. Por isso a leitura era feita em voz alta ou, quando inaudvel, lendo como quem recita. Os dramas presentes na obra so assim presentificados e, antes de saber se o que ali se encontra uma realidade imaginria criada por um ser humano ou a realidade efectiva criada por Deus, h que absorver o contedo como realidade, tal como se tentou recuperar mais tarde nas escolas de educao liberal. A educao moderna consiste num adestramento que no visa instalar o aluno na realidade mas apenas disciplin-lo. Quando este faz a aquisio das disciplinas, automaticamente fica impossibilitado de compreender tudo o que se encontra fora delas. Isto encaixilha o aluno mentalmente numa iluso tanto mais perigosa quanto vista como a realidade. Quando a educao se baseia no universo de conscincia dos tempos presentes, torna-se impossvel compreender o que veio antes. Cada perodo declara o anterior como insanidade. Mas isto assim torna-se a Histria de um hospcio, andando de loucura em loucura, ao mesmo tempo que contradiz a suposta continuidade histrica porque nega a possibilidade da sua compreenso. Para absorvermos o que de melhor a humanidade produziu, no s em literatura mas tambm em cincia ou filosofia, temos que fazer a suspenso da descrena com vista a captar a veracidade intrnseca nas obras e no procurar nelas a falsidade por comparao com o que algum disse depois. Se tivermos esta abertura para o conhecimento humano de todas as pocas e lugares, estamos nos abrindo tambm para a ordem csmica que a se revela parcialmente, e assim podemos adquirir uma segurana que nos permite descobrir sozinhos certas verdades e proclam-las sem esperar a aprovao de algum.

    As sociedades sem cultura superior da prpria natureza da cultura superior no ser compreendida pela maioria mas gravitar volta de umas poucas centenas de pessoas de inteligncia autnoma. esse pequeno ncleo que mantm a racionalidade nas discusses pblicas, pois sem este centro criador todos ficaro espera de confirmao mtua, acumulando trevas e ignorncia at culminar na impotncia total. No estado presente, as pessoas acostumaram-se a raciocinar a partir de frases que no querem dizer nada mas que funcionam como impresses compactas e hipnticas. Por exemplo, dizer que a sociedade cria o banditismo, ou achar que a poltica uma causa em si, quando as possibilidades polticas s podem se efectivar depois de terem passado pela esfera da alta cultura. Quase todos os debates pblicos giram em torno de lugares comuns, topoi, coisas que todos acreditam e so usados como premissas para provar algo. Mas so premissas falsas e por vezes at intrinsecamente absurdas. Se ns queremos j nos tornar em formadores de opinio antes de termos domnio da nossa matria e dos pontos de interseco entre ela e suas vizinhas, ento tambm estamos procura de aprovao e o pblico se tornar nosso juiz e nos rebaixar. Temos antes de aprender a viver sozinhos com as nossas ideias e sem precisar que as pessoas concordem connosco. Nunca estaremos acima de qualquer juzo, mas nunca temos de nos submeter ao julgamento dos que sabem menos que ns. No nosso senso de hierarquia o nosso chefe nunca pode estar acima de Plato.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 28

    Aula 30 31/10/2009

    Sinopse: O ambiente mental, tal como um veneno espalhado pela atmosfera, penetra em ns por todos os poros e nos contamina. Temos que observar estes efeitos ao mesmo tempo em ns e na sociedade em torno. Esse ambiente est dominado no Brasil pela logica brasiliensis, um conjunto de modelos de argumentao baseados em erros de leitura, confuses entre palavras e coisas, falta de senso das propores, utilizao errada de nveis de predicao, misturas de gnero, etc. Este estado de coisas revela uma queda formidvel da inteligncia brasileira desde os anos 60, em parte documentada no livro O imbecil coletivo. Tratou-se de um processo conduzido pelo Partido Comunista, que usou a estratgia gramsciana da ocupao de espaos e da procura da hegemonia, em que a cultura e as artes passaram a ser instrumentais para atingir o poder. A retrica passou a ser vista como uma forma elegante de mentir, uma erstica, que j no parte das verdadeiras crenas pblicas mas de outras implcitas que se querem impingir ao auditrio sem este perceber. fundamental restaurar a lngua primeiro em ns e s depois tentando fazer algo na sociedade em geral. Devemos aprender a escrever, em primeiro lugar, com os autores da gerao anterior quando ainda existia alta cultura. Mas tambm devemos averiguar em ns os factores de degradao moral que contribuem para a perda de capacidades da lngua. Hugo de So Vtor ensina-nos com quase mil anos de antecedncia, se o soubermos ler de forma cheia, que quando algum diz no h verdades absolutas, essa pessoa revela que se desiludiu na busca de verdades universais e, ento, desiste das verdades mais prximas de si que j conhece. Mas para fazer isso tem que falsear a sua posio existencial, pelo que se trata tambm de uma posio que mascara a impotncia e o desprezo que o indivduo tem por si mesmo com uma simulao de importncia ao defender para si o direito mentira.

    Logica Brasiliensis A logica brasiliensis aquilo que o professor Olavo designa como o conjunto de modelos de argumentao em voga na mdia brasileira, constitudos de puras confuses mentais, muito piores do que os sofismas da lgica clssica ou do que os esquemas da argumentao erstica que Schopenhauer enumerou em Como vencer um debate sem ter razo, que ainda so artifcios que necessitam de uma destreza mental que exige leitura dos clssicos. A credibilidade dos argumentos da logica brasiliensis deve-se apenas sua repetio obsessiva. Estes modelos foram gradualmente se espalhando por toda sociedade, com a ajuda do vcio pela discusso. A sua disseminao partiu dos formadores de opinio para os estudantes, e foi criando novos e cada vez mais baixos padres de confiabilidade aparente at se gerar um clima geral de falta de inteligibilidade. A logica brasiliensis constituda de erros de leitura, confuses entre palavras e coisas, deficiente senso das propores, utilizao precria de nveis de predicao, misturas de gnero e outras deficincias afins. Antes de revelarem desonestidade premeditada, so uma deficincia adquirida por via educacional que embota o prprio instinto lgico elementar que at os iletrados possuem. A utilizao destes mecanismos

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 29

    tornou-se praticamente obrigatria e, apesar da sua total falta de credibilidade, so para a maioria dos opinadores meios de prova altamente persuasivos e respeitveis. Ler mais sobre este assunto no artigo do Dirio do Comrcio O erro organizado: http://www.olavodecarvalho.org/semana/091117dc.html

    A degradao da inteligncia brasileira As pessoas no tm hoje noo da riqueza da alta cultura que existia no Brasil nos anos 50 e princpio da dcada de 60, no s em termos de personalidade individuais, como lvaro Lins, Jlio Mesquita Filho, Otto Maria Carpeaux, Gustavo Coro ou Jos Guilherme Merquior, mas olhando para o panorama inteiro. Como ningum conhece mais isto, tambm ningum sente falta. Os padres de aceitao e at de excelncia que so dados gerao actual esto infinitamente abaixo daqueles que existiam h umas dcadas atrs. A par da Histria do conhecimento est por escrever uma Histria do esquecimento para se perceber que o conhecimento no tem progredido linearmente. O esquecimento uma fora histrica fundamental. As pessoas no s deixam de saber fazer algo mas passam a ignorar que um dia algum soube fazer aquilo. Como se deu o processo de queda da cultura brasileira, desde o padro altssimo dos anos 50 e 60 at presente logica brasiliensis? No uma queda natural, j que naturalmente o ser humano est mais na verdade do que no erro, tal como mais natural estar saudvel do que doente. Teve que ocorrer aqui uma interferncia humana premeditada ou ento que visava outros fins mas teve estes efeitos impremeditados. NO Imbecil Coletivo feito o recenseamento da situao, onde se elabora um mostrurio a partir de vrias amostras colhidas de forma a documentar a degradao da inteligncia brasileira. Daqui se retiram certas constantes, certos giros de linguagem que ganharam poder persuasivo e se tornaram de uso comum. uma espcie de cincia retrica invertida.

    Da retrica erstica A prpria palavra retrica j tem uma utilizao viciada, considerando-se vulgarmente que a argumentao retrica pode ser usada para o que se quiser, sem ter em considerao a matria em causa ou os factos, o que impossvel. A argumentao retrica toma sempre como premissas as crenas vigentes e, sem as questionar, segue para a prova que se pretende. Mas se queremos questionar as crenas vigentes no o podemos fazer por vias retricas mas sim pela anlise dialctica (ou atravs de uma campanha de propaganda), confrontando a ideia vigente com outra que ser revela melhor nas suas virtudes intrnsecas e no apenas por ser compartilhada por todos. Tambm se costuma erradamente incluir na retrica a repetio de certas palavras para gerar determinados efeitos emocionais, sem referir a coisa que a palavra designa. As pessoas habituaram-se a encarar a retrica como uma forma elegante de mentir, uma erstica, que consiste em vender ao pblico certas concluses a partir de premissas que ele no compartilha mas naquele momento consegue-se que as pessoas pensem

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 30

    acreditar naquilo. A premissa a ser vendida vai ter que ser expressa como se fosse uma verdadeira crena pblica. A erstica a base de muitas campanhas de propaganda, que j no se baseiam nas verdadeiras crenas pblicas, como acontece na retrica, mas em crenas que se tentam impingir como se j tivessem sido demonstradas, quando nunca o foram. A logica brasiliensis segue directamente a erstica na utilizao macia de palavras pela reaco emocional que desencadeiam, sem nunca olhar para a distncia entre a palavra e a coisa referida. H autores que escrevem textos inteiros desta forma, sem nunca se referirem ao universo real, apostando apenas em provocar uma sequncia de emoes atravs das palavras que as provocam devido ao seu uso repetido. Mas muitas vezes a logica brasiliensis fica aqum da erstica, por exemplo, quando recorre simples inverso de frases, provocando um efeito hipntico que infantiliza as pessoas, as torna impotentes e facilmente aterrorizveis.

    A implementao da logica brasiliensis At aos anos 60, o ambiente de alta cultura era povoado por pessoas com divergncias polticas e ideolgicas, mas essas divergncias no eram motivo para afastamento, havendo discusses elevadas em revistas e clubes de debate. Contudo, o Partido Comunista j operava por baixo operaes de pura difamao com o fim de obter o poder. A alta cultura era utilizada de forma instrumental e apesar das pessoas de alta cultura terem rejeitado estas operaes, mesmo alguns intelectuais comunistas, o seu efeito propagou-se nos estudantes e no povo, em especial a partir dos anos 60 quando comeam a circular as obras de Antnio Gramsci. O pessoal comunista comeou a ser treinado para conquistar a hegemonia atravs da ocupao de espaos, e aos poucos foram mesmo ocupando todos os locais de cultura e na mdia. A alta cultura tornou-se ento impossvel, no s porque as pessoas de alta cultura foram afastadas e os lugares ocupados por militantes, mas tambm porque a alta cultura requer um mnimo de sinceridade e respeito pelos valores a ela inerentes e a estratgia gramsciana abole isto porque se baseia na mentira e na camuflagem. Para Gramsci, toda a cultura tem que ser instrumentalizada pelos intelectuais, cuja nica funo passa a ser a conquista da hegemonia de forma a ajudar o Partido Comunista a conquistar o poder. Gramsci parece mais democrtico do que outros dirigentes comunistas mais dogmticos e ditatoriais, mas a longo prazo os efeitos da sua estratgia so bem mais perniciosos. Na estratgia gramsciana no se fica 40 anos pregando o comunismo mas utiliza-se esse tempo para destruir os meios de alta cultura e at a prpria linguagem, que se torna num instrumento para produzir efeitos por si mesma, sem referncia realidade. Desta forma, corrompem toda a gente, no apenas o pessoal de esquerda. Mesmo os seus supostos adversrios liberais e conservadores usam esquemas lgicos e lingusticos delineados por Antnio Gramsci. O recenseamento do conjunto de cacoetes mentais que daqui resultaram fundamental para no sermos vtimas deles, mesmo quando tentamos expressar ideologias opostas s dos esquerdistas, sem perceber que a nossa forma de raciocnio no se distingue daquela que eles utilizam.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 31

    Restaurao da lngua preciso restaurar as verdadeiras capacidades do idioma, comeando por reconhecer a nossa situao histrica especfica, que dominada por uma degradao moral e lingustica fora do comum. Em termos dos aspectos morais que afectam a linguagem, devemos averiguar, por exemplo, se temos a tendncia de considerar qualquer opinador como um agente poltico, como fazem os gramscianos. natural acharmos ser verdadeiro tudo aquilo que pensamos contra algum que no gostamos. Devemos averiguar tambm se, na tentativa de vencer uma discusso, no alegamos factos contra hipteses ou se fazemos uso automtico de estruturas lgicas como defesa contra a conscincia. Para evidenciarmos as camuflagens lgicas dos maus sentimentos temos de usar a dialctica tradicional. Desta forma conseguimos descobrir as premissas ocultas, muitas vezes absurdas, que tivemos de usar como base para acreditar ou provar algo. Depois, iremos perceber que essas premissas absurdas tm uma utilizao macia e so tidas como um mandamento divino invisvel ou imperativo categrico. A utilizao de premissas implcitas, j esquecidas, em si um mecanismo neurtico e temos de nos livrar de esquemas como estes ante de entrarmos em discusses pblicas. A investigao de premissas ocultas comea com o Exerccio de Leitura Lenta. Este trabalho imagintivo revela camadas de significado mais profundas que esto embutidas no texto, e tambm servir para evidenciar outras significaes quando aplicado aos nossos pensamentos. Quando ganharmos distncia para analisarmos as coisas com iseno, no nos podemos iludir de vir a ser compreendidos porque a incompreenso hoje inevitvel. Nem mesmo o pblico mais letrado nos poder compreender porque a linguagem, que o grande instrumento de percepo, est mutilada e deturpada, mas as pessoas no percebem isso porque a lngua que recebem da escola e da sociedade ir sempre parecer-lhes normal. Vamos aprender a escrever com os autores do perodo histrico anterior, no s com romancistas e escritores de fico mas tambm com autores que exprimiam ideias, como lvaro Lins e Otto Maria Carpeaux. Num perodo de formao, deve ser dada primazia aos autores da gerao anterior, e os autores internacionais podem ficar para depois. A leitura tambm uma tradio e faz parte do seu aprendizado captar a linha de desenvolvimento at ao seu estado actual, tentando sempre perceber as aluses que toda a obra literria contm. Neste processo, til decorar textos e poemas. Isto vai nos ajudar ao prprio processo de memorizao, assim como a captar estruturas e a formar analogias. nossa obrigao restaurar a lngua em ns mesmos antes de o tentarmos fazer na sociedade. Isto fundamental para os debates pblicos e mais ainda para os textos filosficos, que tm uma compactao alucinante. A filosofia uma reflexo sobre a cultura que existe e a que existiu. Pressupe leitores que tenham uma viso geral dessa cultura. A alta cultura condensa, de certa forma, toda a experincia humana o verdadeiro objecto da reflexo filosfica mas ns s temos possibilidade de nos debruar sobre alguns pontos. Devemos escolher aqueles que so representativos, ou seja, que condensam preocupaes gerais.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 32

    Uma lio para o presente de Hugo de So Vtor Podemos ler no Didascalicon:

    H muitas pessoas que a prpria natureza deixou to desprovidas de capacidades que tm dificuldade at para entenderem as coisas fceis. E destas pessoas parecem haver dois tipos: h alguns que mesmo no ignorando os seus prprios limites buscam o saber com tal afinco e insistem to obstinadamente no estudo que merecem obter por obra da vontade aquilo que no obteriam pela eficcia do estudo em si. Mas h outros, os quais sentindo que nunca poderiam compreender as coisas altssimas, desprezam tambm as coisas mnimas e, como que repousando em seu prprio torpor, tanto mais perdem a luz da verdade nas coisas sumas quanto mais fogem das coisas mnimas que poderiam aprender.

    Atravs da leitura lenta, percebemos que, de uma forma muito simples e compacta, Hugo de So Vtor antecipou a actual situao em que se espalhou a ideia de que no h verdades absolutas pelo mundo editorial, estudantil, acadmico, etc. Trata-se de uma frase oca mas que tem uma expresso sentimental muito forte. Hugo de So Vtor explica que algumas pessoas tentam encontrar a verdade nas coisas mais universais, altas e difceis, mas como no a encontram, ento desistem das verdades que elas j tinham referentes a um plano mais modesto. Em termos metodolgicos, devamos fazer o oposto, uma ascenso das verdades mais modestas para as mais elevadas, comeando por aprender a aceitao de verdades e o mtodo da confisso. A sinceridade fulcral aqui, mas se comeamos por falsificar a nossa situao existencial, dizendo que no h verdades absolutas em geral, ento nem sequer podemos confessar os nossos pensamentos. Hugo de So Vtor fala de coisas modestas no se pretendendo referir apenas a banalidades do cotidiano mas engloba tambm as verdades mais prximas de ns porque se referem ao que fizemos, pensamos, desejamos ou sentimos. Se no conseguimos nos orientar neste domnio prximo, muito menos podemos nos orientar nos domnios das grandes questes filosficas. Se no percebermos estas coisas no texto de Hugo de So Vtor, ento estaremos a cometer o mesmo erro que ele aponta. Uma verdade absoluta simplesmente uma verdade que no contraditada por nenhuma outra, algo verdadeiro no seu prprio plano, mas as pessoas procuram logo verdades universais, que so muito mais difceis de encontrar. Mas se depois da nossa desiluso na busca de verdades universais tentamos renegar as verdades absolutas que conhecemos, vamos ter que falsear a nossa histria. Como percebemos bem a diferena entre uma histria verdadeira e outra falsa, quando dizemos que no h verdades absolutas, no fundo queremos dizer que podemos mentir e tambm que queremos afirmar o nosso direito a poder fazer isso. uma forma de mascarar o desprezo que temos por ns mesmos, fazendo uma simulao de que somos importantes.

  • Curso Online de Filosofia Resumos de aulas (Vol. VI) 33

    este tipo de evocaes que nos devem provocar os livros de filosofia. Inserimo-nos numa tradio ao permitir que o nosso esprito seja fecundado pelas grandes mentes do passado.