Campus de Toledo NATÁLIA RAQUEL...
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Campus de Toledo
_____________________________________________________ NATÁLIA RAQUEL NIEDERMAYER
A LUTA PELOS DIREITOS INDÍGENAS: REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA
INDIGENISTA NO BRASIL E O MOVIMENTO REGIONALIZADO DO POVO
GUARANI
_____________________________________________________
TOLEDO - PR
2016
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NATÁLIA RAQUEL NIEDERMAYER
A LUTA PELOS DIREITOS INDÍGENAS: REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA
INDIGENISTA NO BRASIL E O MOVIMENTO REGIONALIZADO DO POVO
GUARANI
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao curso de Serviço Social, Centro de Ciências
Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE, como requisito
parcial à obtenção do grau de Bacharel em
Serviço Social.
Orientadora: Profa. Dra. Marli Renate von
Borstel Roesler.
TOLEDO-PR
2016
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NATÁLIA RAQUEL NIEDERMAYER
A LUTA PELOS DIREITOS INDÍGENAS: REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA
INDIGENISTA NO BRASIL E O MOVIMENTO REGIONALIZADO DO POVO
GUARANI
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao curso de Serviço Social, Centro de Ciências
Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE, como requisito
parcial à obtenção do grau de Bacharel em
Serviço Social.
Orientadora: Profa. Dra. Marli Renate von
Borstel Roesler.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Profa. Dra. Marli Renate von Borstel Roesler
(Orientadora)
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
__________________________________________
Profa. Ms. India Nara Smaha
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
__________________________________________
Profa. Ms. Jacqueline Parmigiani
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Toledo, 25 de fevereiro de 2016.
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Em memória de todos indígenas
que já morreram vítimas das injustiças.
E em respeito aos povos indígenas que
lutam pela garantia dos seus direitos.
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AGRADECIMENTOS
Viver novas experiências é sempre um privilégio e agradecer é sempre um gesto
de gentileza e sinceridade por quem ao nosso lado caminhou. Assim, agradeço
primeiramente a Deus, por ter sido a primeira representação do amor, abstrato e tão real.
Agradeço em especial pelo seu doce olhar mirando os meus todas as vezes que admiro,
em suspiros, as cores e os brilhos desse mundo, como o amor em aquarela, e que me faz
dizer sempre a mesma palavra “caramba!!!” Aqui o amor é simples e me faz feliz.
Agradeço à minha família por todas as vivências que me fizeram crescer e pelas
vezes em que o amor não foi medido, mas foi sincero e paciente.
À professora Marli, imensamente, porque todos os teus ensinamentos me
fizeram ser uma pessoa mais atenta com a realidade, olhar com mais indignação às
injustiças e ter mais coragem para lutar pela garantia dos direitos. Com toda certeza,
estar ao seu lado e aprender foi fantástico.
Às professoras do curso de Serviço Social, tão importantes na minha formação
profissional, guardo cada uma de vocês com muito carinho, de modo especial, às
professoras India Nara e Jacqueline Parmigiani, por terem aceitado meu convite para
participar da minha banca e compartilhar desse momento tão importante na minha vida.
Paulina, Ilson e toda comunidade da aldeia Tekohá Yhovy, agradeço vocês pelos
infinitos ensinamentos, coragem, sinceridade, alegria, pela oportunidade de poder
conhecer a realidade em que vivem, lutar e gritar pelos direitos dos povos indígenas
com vocês. Assumo esse compromisso para sempre e sem medo lutarei por esses
direitos.
Ao Hepteto fantástico, galerinha massa e colorida que durante esses quatro anos
de vivência acadêmica, e também, fora da academia, me fizeram ser muito feliz e me
encheram de coragem a cada dia. Vocês despertaram em mim a crença de que a vida é
sim generosa e gostosa de ser vivida. Giane, Sérgio, Fernanda, Lilian, Sandy e Isabel,
amo vocês e quero sempre celebrar a vida junto de vocês. Agradeço também toda turma
que me acolheu todos os dias da minha formação profissional, é muito bom estar com
vocês.
Àqueles amores e amizades que de tão perfeitos fazem muitas pessoas
duvidarem de suas existências (hehe). Manu, Bella, Ju, Fran, Giovani, Ana, Mi, Marcos,
Carla, Rê amo muito vocês.
Michelle, Fran e Rafa do Mundo das Cópias, obrigada pelo trabalho, dedicação e
amizade durante esses anos.
Às (os) companheiras (os) da Executiva Nacional dos (as) Estudantes de Serviço
Social (Jeni, Bruna, Vanessa, Cássio, Cézar, Jackson, Sidney) que juntas (os) na
Coordenação Regional RVI (Por todas as vozes) engrandeceram minha formação
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acadêmica e me ensinaram o valor da solidariedade dentro no Movimento Estudantil de
Serviço Social. Estar e militar junto com vocês, foi um privilégio, uma honra.
Às companheiras e companheiros do Movimento Estudantil de Serviço Social da
UNIOESTE, obrigada pela dedicação, construção coletiva, interesse e amor pela luta
contra todas as formas de opressão existentes nessa sociedade. Orgulho-me de caminhar
ao lado de vocês nessa estrada que ainda está longe de terminar.
“Da luta não me retiro, me atiro do alto e que me atirem no peito, da luta não me
retiro” (O Teatro Mágico)
À minha supervisora no campo de estágio, Inês Terezinha Pastório, você me
ensinou muito durante esse tempo de formação, obrigada por todos os ensinamentos,
pela paciência e pela prontidão diária.
E como diz Fernando Anitelli do grupo O Teatro Mágico:
“Se lembrar de celebrar muito mais”
Obrigada a todas e todos.
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“CHE” GUEVARA NÃO MORREU
Che Guevara não morreu
Não, não morreu, aleluia
Aleluia, aleluia, aleluia, aleluia
Che eu creio no teu canto
Como um manto em minha dor
E que todo desencanto
Seja ressuscitador
Vejo um mundo dividido
Contemplando o reviver
Da esperança que morria
No silêncio do teu ser
Che Guevara não morreu
Che eu creio seja eterna
Esta rosa agreste e branca
Brotada no teu sorriso
Que nem mesmo a morte arranca
E que segue tua estrada
Outro irmão com tua mão
Com teu fuzil retomado
Com teu risco e decisão
Che Guevara não morreu
Che eu creio na tua volta
Sem dar muita explicação
Como a folha vai no vento
Como chove no sertão
Ouço a América cantando
Novamente o canto teu
Espalhando pelos campos
A morte que não se deu
(Sérgio Ricardo)
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NIEDERMAYER, Natália Raquel. A luta pelos direitos indígenas: reflexões sobre a
política indigenista no Brasil e o movimento regionalizado de luta do Povo
Guarani. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Serviço Social). Centro de
Ciências Sociais Aplicadas. Universidade Estadual do Oeste do Paraná- Campus
Toledo-PR, 2016.
RESUMO
Esta pesquisa parte de indagações advindas da temática dos direitos dos povos
indígenas e, busca, a partir de conhecimentos sistematizados, embasamentos da teoria
social crítica de Marx, compreender como se expressa a luta histórica, política e cultural
dos direitos dos povos indígenas situadas no modo de produção capitalista e os
rebatimentos das violações na realidade desses povos, apresentando a realidade do povo
Guarani, através da aproximação pelo Projeto de Extensão: “Ações socioambientais em
defesa dos direitos dos povos indígenas na aldeia Tekohá Yhovy- município de Guaíra-
PR,” frente às condições de vulnerabilidades e constantes violações dos direitos à vida,
território, saúde, educação, alimentação, assistência, meio ambiente saudável e da
carência de políticas públicas para estes povos tradicionais, a pesquisa científica, de
abordagem qualitativa, formula como objetivos específicos, apresentar o resgate
histórico sobre o processo de colonização das terras brasileiras, identificando a gênese
das violações dos direitos originários dos povos indígenas; sistematizar conhecimentos
teóricos e documentais que identifiquem a dinâmica internacional e constitucional
nacional em defesa dos direitos dos povos indígenas; investigar avanços protetivos das
políticas públicas em defesa dos direitos dos povos indígenas, contribuir com a
sistematização de referencial teórico e empírico no tema de direitos aos povos indígenas
e formas de violação dos direitos humanos, como possibilidade de fortalecer a luta pelos
direitos desses povos, intervenções do Serviço Social e áreas afins. Para atingir os
propósitos do estudo, a proposta investigativa de caráter exploratório se fundamenta no
levantamento bibliográfico, na pesquisa documental, norteada pela abordagem
qualitativa dos dados apresentados, compreendendo a realidade através da totalidade
dos elementos apresentados, construídos dentro de um movimento histórico que não
pode ser negado; partindo das seguintes categorias de análise: formação socioeconômica
brasileira, direitos humanos, direitos dos povos indígenas, território, etnia guarani,
políticas sociais e emancipação humana.
PALAVRAS- CHAVE: Povos Indígenas, direitos humanos, política indigenista.
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LISTA DE GRÁFICOS E QUADROS
GRÁFICO 1. PERCEPÇÃO DO PRECONCEITO CONTRA INDÍGENAS.....................35
GRÁFICO 2. PERCEPÇÃO DO PRECONCEITO INTER-RACIAL NO BRASIL-
ÍNDIO/BRANCO.................................................................................................................36
GRÁFICO 3. NO BRASIL TEM MUITA TERRA PARA POUCO ÍNDIO.......................37
GRÁFICO 4. ÍNDIO BOM É ÍNDIO MORTO...................................................................37
GRÁFICO 5. CONHECIMENTO DO ESTATUTO DO ÍNDIO........................................39
GRÁFICO 6. QUANTIDADE DE POVOS INDÍGENAS EXISTENTES NO BRASIL
HOJE.....................................................................................................................................39
GRÁFICO 7. TAMANHO DA POPULAÇÃO INDÍGENA NO BRASIL.........................40
QUADRO 1. PROJETOS, PROPOSTA E PORTARIAS QUE AMEAÇAM DIREITOS
INÍGENAS...........................................................................................................................41
QUADRO 2. ALDEIAS LOCALIZADAS NO MUNICÍPIO DE GUAÍRA-PR................68
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LISTA DE SIGLAS
CEP- Código de Ética Profissional
CF- Constituição Federal
CIMI- Conselho Indigenista Missionário
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
CRAS- Centro de Referência da Assistência Social
FPA- Fundação Perseu Abramo
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
FUNASA - Fundação Nacional da Saúde
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ISA - Instituto Socioambiental
MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome
OIT - Organização Internacional do Trabalho
ONU - Organização das Nações Unidas
PEC - Projeto de Emenda Constitucional
PNAS - Política Nacional de Assistência Social
PNDH- Programa Nacional de Direitos Humanos
RSL- Instituto Rosa Luxemburgo
SPI - Serviço de Proteção ao Índio
STACS - Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social
UNIND - União das Nações Indígenas
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SUMÁRIO
RESUMO..........................................................................................................................8
LISTA DE GRÁFICOS E QUADROS..........................................................................9
LISTA DE SIGLAS.......................................................................................................10
INTRODUÇÃO.............................................................................................................12
1. ÍNDIOS INVADIDOS: ESTEREÓTIPOS EUROPEUS NAS RELAÇÕES
SOCIAIS E EXPLORAÇÃO DE TRABALHO E BENS..........................................17
1.1 A LUTA PELA TERRA, APROPRIAÇÃO E EXPLORAÇÃO DAS RIQUEZAS
NATURAIS: A FORMAÇÃO E DO TERRITÓRIO BRASILEIRO.............................17
1.2 POVO GUARANI: O GRANDE POVO..................................................................22
1.3 O POVO GUARANI NA COLONIZAÇÃO NO OESTE DO PARANÁ................25
1.4 A FORMAÇÃO DO ESPAÇO AGRÁRIO BRASILEIRO E OS CONFLITOS
FUNDIÁRIOS ENVOLVENDO POVOS INDÍGENAS................................................28
2. O DIREITO A TERRA COMO UM ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO DA
CULTURA E MODO DE VIDA DOS POVOS INDÍGENAS..................................32
2.1 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DOS POVOS ÍNDIGENAS: UMA DÍVIDA.....43
2.2 A PROTEÇÃO DO DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL..............47
3 O DESAFIO HISTÓRICO-POLÍTICO DE FORMULAR A POLÍTICA
INDIGENISTA COM A PARTICIPAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS:
CONTRIBUIÇÕES DO SERVIÇO SOCIAL.............................................................55
3.1 SERVIÇO SOCIAL DA UNIOESTE CAMPUS TOLEDO: A EXPERIÊNCIA DO
PROJETO DE EXTENSÃO - AÇÕES SOCIOAMBIENTAIS EM DEFESA DOS
DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA ALDEIA TEKOHÁ YHOVY NO
MUNICÍPIO DE GUAÍRA- PR......................................................................................66
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................74
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................77
ANEXOS.........................................................................................................................84
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INTRODUÇÃO
Frente à realidade vivenciada pelos povos indígenas no Brasil, e em específico o
povo Guarani na região oeste do estado paranaense, é necessário inclinar-se sobre essa
realidade a fim de identificar as demandas indígenas e dar respostas eficazes, através de
uma política indigenista que consiga compreender a totalidade e complexidade da
cultura desses povos, e que seja capaz de proteger a universalidade dos direitos dos
povos indígenas, garantindo a sobrevivência dessas comunidades tradicionais.
O despertar e o interesse pela temática desse trabalho de Conclusão de Curso, foi
construído desde o início da graduação, um despertar gradual, crítico e propositivo no
curso de Serviço Social constituído através da militância junto aos povos indígenas,
organização de encontros com o tema, construção e desenvolvimento do Projeto de
Extensão: Ações Socioambientais em defesa dos direitos dos povos indígenas na Aldeia
Tekohá Yhovy, no município de Guaíra, iniciado no ano de 2014, vinculado ao
Programa de Extensão: Ação socioambiental e formação em educação ambiental da
Sala de Estudos e Informações em Políticas Ambientais e Sustentabilidade – SEIPAS -
Unioeste/Toledo e ao Programa de Educação Tutorial- PET Serviço Social e, produção
de diversos trabalhos acadêmicos.
A proposta da pesquisa de campo inicialmente estabelecida, com
delimitação para estudo dentro da Aldeia Tekohá Yhovy, não pode ser materializada por
procedimentos e exigências formais e burocráticas exigidos pelo Comitê de
Ética/Fundação Nacional do Índio (FUNAI)/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
(CONEP) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Os inúmeros trâmites e instâncias decisórias afetaram a pesquisa científica em território
indígena, inviabilizaram o estudo de campo e participação dos próprios sujeitos da
pesquisa (lideranças indígenas, profissionais da saúde, educação, assistência social e
FUNAI, escritório de Guaíra) que interessados em contribuir para essa sistematização
de conhecimento não tiveram sua própria autonomia respeitada. O que nos faz
manifestar indignação sobre a centralidade de poderes decisórios sobre a autonomia dos
sujeitos da pesquisa.
Diante disso, não menos importante, foi realizada a pesquisa bibliográfica e
documental de abordagem qualitativa de caráter exploratória, compreendendo, de
acordo com Minayo (1994) o mais profundo das relações, dos processos da realidade.
Este trabalho foi construído através de importantes estudos de vários (as) autores,
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legislações no plano nacional e internacional e, consulta a materiais já produzidos sobre
essa temática e que se encontram na biblioteca da Unioeste.
Nesse sentido, esta pesquisa realizada, justifica-se pela atualidade da temática
indígena, sendo necessário o debate em torno das constantes vulnerabilidades vividas e
profundas violações dos direitos humanos fundamentais dos povos indígenas –
nominados também como povos tradicionais. Estes povos, que historicamente pautam
suas lutas sociais e ambientais, denunciando a prevalência do etnocentrismo no nosso
país, concomitante com o desvelar das contradições do capital e sua lógica produtiva
expropriadora e destrutiva.
A pesquisa estrutura-se desta forma, na perspectiva de fundamentação na teoria
social crítica de Marx para a compreensão do objeto e do tema voltado aos direitos dos
povos indígenas compreendendo que essa teoria, de acordo com Netto (2009) possibilita
uma visão global da dinâmica social concreta, indo além da aparência fenomênica,
imediata e empírica para apreender a essência do objeto que é histórico.
Desse modo, a pesquisa vinculada ao Trabalho de Conclusão do Curso de
Serviço Social-UNIOESTE-Toledo, tem como objetivo compreender como se expressa
a luta histórica, política e cultural dos direitos dos povos indígenas situadas no modo de
produção capitalista e os rebatimentos das violações na realidade desses povos,
apresentando a realidade do povo Guarani, através da aproximação pelo projeto de
extensão. Essas lutas e violações materializadas no difícil reconhecimento dos direitos à
vida, território, meio ambiente, saúde, educação, alimentação, assistência social, cultura
entre outros.
O estudo foi sistematizado de acordo com a cronologia da história, desde a
colonização, abordando a gênese das violações dos direitos dos povos indígenas. Assim,
o primeiro capítulo desse trabalho aborda estudos já realizados sobre o período da
colonização e invasão das terras brasileiras durante o período de expansão marítima e
econômica da Europa. Essa colonização das terras brasileiras significou o
subdesenvolvimento de um país, marcado pelo eurocentrismo, que viu seus povos
originários sendo exterminados, torturados e escravizados, viu o roubo das riquezas
naturais dessas ricas terras, “doadas” ao império português e espanhol através do
Tratado de Tordesilhas, enriquecendo impérios a troco de nada. A ideia do índio
preguiçoso, rebelde, adorador de crenças não cristãs, visto pelos olhos do europeu
recém-chegado, perpetua até os dias de hoje. São visões preconceituosas e limitadas
para a compreensão da totalidade da cultura dos povos indígenas.
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As violações sobre os direitos originários dos povos que sempre existiram aqui
se deram de todos os modos possíveis, invasão, expulsão, escravização, contágio de
doenças, assassinatos em massa, catequização pelos missionários. Todas essas
violências cometidas negaram e negam ainda hoje o direito originário desses povos
sobre essas terras, negando assim o direito da própria existência dos indígenas, tendo
em vista que existir, para eles, depende do território, lugar em que se preserva a cultura.
Nesse sentido, para compreender alguns elementos da cultura indígena, o
trabalho aprofundou- se na singularidade da cultura dos povos da etnia Guarani, tendo
em vista que já existe uma aproximação com essa cultura através do Projeto de
Extensão. Apresentar elementos do modo de vida da cultura Guarani significou uma
busca pelo conhecimento, o resgate histórico da ocupação territorial dos índios Guarani
em diversas partes da América, mais especificamente nos territórios hoje conhecidos
como Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai antes da chegada dos europeus. A
territorialidade para o Povo Guarani é demarcada historicamente de modo muito
particular e dinâmico, vivida, entendida e usada enquanto parte fundamental de sua rica
cultura sem que fosse compreendida pelos invasores.
A colonização significou a negação da territorialidade e da cultura do povo
guarani, muitos morreram pelas doenças trazidas pelos missionários ou morreram como
escravos, outros assassinados, alguns conseguiram fugir, embrenhando- se na mata.
Além disso, a colonização foi o início do processo da formação do espaço
agrário brasileiro que constituiu- se de modo desigual através da distribuição de terras e
instituição da propriedade privada que deu origem à concentração fundiária no Brasil,
consolidação do agronegócio e à manutenção da pobreza como uma expressão desse
processo desigual. Atrelado a isso, os conflitos fundiários envolvendo povos indígenas
no Brasil estão inteiramente ligados a essa estrutura fundiária, isso porque, o principal
objetivo é a produção em larga escala que, por sua vez, necessita de extensas
propriedades de terra para a sua lucratividade. Desta forma, a crescente busca por terras
vem provocando a invasão de terras indígenas, uma vez que, por não estarem
demarcadas ficam à mercê de fazendeiros, que cada vez mais, vão se adentrando de
forma agressiva no território indígena. O resultado disso é o agravamento dos
confrontos entre comunidades indígenas e fazendeiros em todo o país. Isso tem gerado
uma reivindicação por parte dos povos indígenas pelas demarcações de suas terras,
como forma de impedir a perda de território para latifundiários.
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A luta pelos direitos dos povos indígenas é histórica e está pautada
principalmente na demarcação das terras ocupadas tradicionalmente. Diante de avanços
no campo jurídico, essa luta está respaldada em leis e declarações que asseguram a
garantia dos direitos dos povos originários ao território e junto a isso, a construção de
uma política indigenista que possa garantir a sobrevivência da cultura indígena. Não
basta apenas demarcar terras indígenas, é necessário que o estado atenda todas as
demandas, garantindo a universalidade dos direitos, abolindo todas as práticas
integracionistas e tutelares.
Deste modo, apresentamos no segundo capítulo, os avanços jurídicos no plano
internacional e nacional, no que se refere a proteção dos direitos dos povos indígenas,
avanços que materializam a resistência destes povos diante de tanto retrocesso e
negação dos direitos originários. Sabemos que escrever e aprovar leis não resolvem os
problemas, é preciso transformá-las em práticas eficazes, enfrentar outras práticas
conservadores e genocidas e, lutar por um novo projeto societário, livre da opressão e
discriminação.
No terceiro capítulo, serão apresentados elementos para compreender o desafio
histórico-político de formular a política indigenista com a participação dos povos
indígenas e o papel do Serviço Social frente este desafio. Construir uma política
indigenista com a participação desses povos significa ultrapassar todas as políticas já
construídas pelos não indígenas, uma elite política, branca, que, desde a colonização
ocupa os cargos políticos e exclui as minorias de direitos, não garantindo a participação
para formulação das leis e políticas que lhes afetam. Em grande medida, a CF 1988
mudou esse quadro, no entanto, o desafio ainda é enorme e reflete na realidade
vivenciada pelos indígenas.
Diante dessa realidade, pensar a intervenção profissional do assistente social
significa enfrentar enormes desafios estruturados no modo de produção capitalista, que
impõe uma visão naturalizada sobre as violências e opressões sofridas pelas minorias de
direitos. Significa desafiar o estado em suas práticas, que, negam direitos já
conquistados. Atuar na realidade dos povos indígenas é lutar por uma nova sociedade,
justa, livre da opressão e dominação de uma classe sobre a outra.
Nesse sentido, o objeto e tema deste estudo voltado aos direitos dos povos
indígenas tem extrema importância no debate contemporâneo, nas discussões e
fundamentações do Projeto Ético Político do Serviço Social, dos compromissos do
Estado e da Sociedade com a equidade dos direitos humanos fundamentais.
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A pesquisa proposta terá contribuições tanto na formação acadêmica para
futuros profissionais assistentes sociais, como meio para compreender, através deste
subsídio teórico, como se expressa a proteção e a violação dos direitos dos povos
indígenas e de cidadania. Também de apresentar provocações avaliativas e propositivas
a categoria profissional e áreas afins acerca da temática indígena, incitando o
compromisso para com estes povos, na defesa dos direitos das minorias exploradas e
marginalizadas, em tempos desafiadores da crescente e persistente naturalização das
violências intrínsecas do modo de produção capitalista.
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1 ÍNDIOS INVADIDOS: ESTERIÓTIPOS EUROPEUS NAS RELAÇÕES
SOCIAIS E EXPLORAÇÃO DE TRABALHO E BENS
A partir de referências teóricas, pretende-se aqui, realizar o resgate histórico
sobre a relação de índios e não-índios no período colonial, relação que deu-se através de
um estranhamento mútuo entre os sujeitos, com as visões equivocadas dos europeus
sobre o índio, de que era preguiçoso e de práticas anticristãs, além de ser “selvagem”
por não aceitar obedecer as regras dos colonizadores.
Em consequência desse encontro, ocorreu um verdadeiro genocídio contra os
povos originários, através da exploração, escravização, contágio de doenças, guerras
para dominar os territórios, tendo como objetivo a apropriação das enormes riquezas
naturais existentes nas terras brasileiras.
1.1 A LUTA PELA TERRA, APROPRIAÇÃO E EXPLORAÇÃO DOS BENS: A
FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO
Os primeiros contatos entre os indígenas e os recém-chegados foram marcados
por um estranhamento recíproco. Afinal, para ambos, o “outro” era o “estranho
diferente”. Os indígenas estranharam os rostos cobertos de barbas dos portugueses, seus
corpos cobertos de panos e sua fala incompreensível, assim como apresentados pelas
figuras que sempre vemos em todos os livros didáticos. Os portugueses também se
impressionaram com as “vergonhas” dos nativos, seus rostos desenhados e hábitos
totalmente diferenciados daqueles que os europeus conheciam e praticavam.
Descobrir as riquezas e a grande quantidade de mão-de-obra existente nessas
terras fez brilhar os olhos dos invasores. Os europeus se apropriaram das terras que até
então era ocupada pelos índios e também de sua mão de obra, tornando-os escravos e
desprovidos de suas terras. No início do século XVI, momento da história que marca o
contato dos europeus com o povo indígena que aqui vivia na Mata Atlântica, com
expressiva quantidade de árvores da espécie pau-brasil. Os indígenas conheciam suas
qualidades: usavam a madeira para fazer arcos e flechas e a resina para pintar penas de
aves, e seus corpos para atividades culturais.
Os europeus conheciam o pau-brasil asiático, muito apreciado na construção de
móveis e embarcações. Mas o que atribuía alto valor comercial ao pau-brasil do
Ocidente era o corante vermelho, usado para tingir tecidos. O desejo dos que aqui
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chegaram para expropriar desse recurso natural com tamanha avareza foi descrita por
Léry apud Darcy Ribeiro (1995, p. 46).
Os nossos tupinambás muito se admiraram dos franceses e outros
estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutan. Uma
vez um velho perguntou- me: Por que vinde vós outros, maírs e perôs
(franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer?
Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita,
mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos como ele
supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir [...] pois no nosso país
existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras,
espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles
compra todo o pau- brasil com que muitos navios voltam carregados
(LÉRY apud DARCY RIBEIRO, 1995, p.46).
Quando os portugueses chegaram ao litoral da América do Sul, encontraram
vastas matas de pau-brasil e logo passaram a explorá-las e a expropriar da madeira. As
tarefas de localizar as árvores, cortá-las e transportar as toras até as praias eram feitas
pelos indígenas. Atraídos pelos lucros oferecidos pelo comércio do pau-brasil, navios de
países europeus concorrentes de Portugal passaram a fazer diversas incursões ao atual
litoral brasileiro, aliando-se a tribos indígenas rivais daquelas que faziam escambo com
os portugueses. Caio Prado Júnior (1998) descreve:
Com ou sem direitos, o certo é que até quase meados do séc. XVI
encontraremos portugueses e franceses traficando ativamente na costa
brasileira com o pau- brasil. Era uma exploração rudimentar que não
deixou traços apreciáveis, a não ser na destruição impiedosa e em
larga escala das florestas nativas donde se extraía a preciosa madeira.
[...] É graças aliás à presença relativamente numerosa de tribos nativas
no litoral brasileiro que foi possível dar à indústria um
desenvolvimento apreciável. [...] Não foi difícil obter que os indígenas
trabalhassem: miçangas, tecidos e peças de vestuário, mais raramente
canivetes, facas e outros pequenos objetos, de valor ínfimo para os
traficantes, empregavam- se arduamente em servi- los. Para facilitar o
serviço e apressar o trabalho, também se presenteavam os índios com
ferramentas mais importantes e custosas: serras, machados (JÚNIOR,
1998, p.16).
No século XVI1, os Tupinambás aliaram-se aos franceses para combater seus
inimigos, os Tupiniquins, aliados dos portugueses. Com a vitória portuguesa, os
1 “Mesmo em face do novo inimigo todo poderoso vindo de além- mar, quando se estabeleceu o conflito
aberto, os Tupis só conseguiram estruturar efêmeras confederações regionais que logo desapareceram. A
mais importante delas, conhecida como Confederação dos Tamoios, foi ensejada pela aliança com os
franceses instalados na baía de Guanabara. Reuniu de 1563 a 1567, os Tupinambá do Rio de Janeiro e os
Carijó do Planalto Paulista [...] para fazerem a guerra aos portugueses e aos outros grupos indígenas que
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franceses foram expulsos e os Tupinambás, massacrados. Logo após a chegada dos
portugueses, o escambo garantiu a força de trabalho necessária para a exploração do
pau-brasil. Guimarães (1968) destaca que as guerras entre os índios eram arquitetadas
pelos invasores de modo a sucumbir indígenas e ganhar território.
Tribos inteiras foram jogadas contra outras tribos, para o que se
agravavam antigas discórdias e se fomentavam novas. Na arte de
intrigar os nativos, de despertar e acirrar ódio entre os mesmos, os
colonizadores portugueses aplicaram aqui sua grande perícia já
comprovada em outras áreas e repetida com toda perfeição, mais
tarde, na caça ais negros da Guiné. Desse modo o mercado de trabalho
iria rapidamente aumentar, ao suprimir também com os prisioneiros
feitos pelas tribos vitoriosas nas guerras que, para tal fim, os indígenas
eram empurrados (GUIMARÃES, 1968, p.14).
Contudo, com a instalação de colonos e a introdução de atividades agrícolas
(cana- de- açúcar principalmente), os colonizadores passaram a escravizar os indígenas,
e que segundo os mesmos, essa seria a única utilidade que esse povo nativo teria para
servir de escravo.
A escravização dos indígenas foi restringida pela Coroa desde a segunda metade
do século XVI. De acordo com uma lei de 1570, ela só era permitida nas guerras justas,
travadas contra grupos hostis que demonstravam resistência aos colonizadores. De
acordo com esse momento da história, Júnior (1998) afirma:
Para fazer frente a este estado de coisas, a metrópole procurará legislar
na matéria. Data de 1570 a primeira carta régia a respeito. Estabelece-
se nela o direito da escravidão dos índios, mas limitada aos
prisioneiros em “guerra justa”. Era entendida como tal aquela que
resultasse da agressão dos indígenas, ou que fosse promovida contra
tribos que recusavam submeter- se aos colonos a entrarem em
entendimento com eles. [...] Mas todas mantiveram em princípio a
escravidão dos índios, que somente será abolida inteiramente em
meados do séc. XVIII. Manter- se- à, aliás, mesmo depois, embora
maios ou menos disfarçada (JÚNIOR, 1998, p.35- 36).
A proibição da escravização indígena resultou, em parte, da pressão dos padres
jesuítas, que pretendiam converter os nativos ao cristianismo, instituindo (através da
cruz e da espada) novos ritos religiosos extinguindo assim, as “heresias” praticadas
pelos indígenas. Os jesuítas começaram a chegar ao Brasil em 1549. Eles fundaram
os apoiavam. [...] tanto os franceses como os portugueses combatiam com exércitos indígenas de milhares
de guerreiros. [...] E eles nem sabiam por que lutavam, simplesmente eram atiçados pelos europeus,
explorando sua agressividade recíproca.” (RIBEIRO, 1995, p. 33)
20
colégios próximos às aldeias indígenas, onde se dedicaram à catequese. Mais tarde,
dirigiram-se para o interior das matas, fundando aldeias cristãs que reuniam os
indígenas da região – as missões. Nessas reduções, os nativos eram catequizados
segundo a fé cristã, submetidos a uma rígida disciplina de orações e trabalho. O fato de
os padres utilizarem o trabalho dos indígenas nas missões, mas exigirem que a Coroa
proibisse sua escravização, causava frequentes confrontos com os colonos2.
Ao longo dos séculos XVI e XVII, ocorreu no Brasil uma grande redução das
populações nativas. Nações inteiras desapareceram vitimadas por doenças introduzidas
pelos europeus, como a varíola e o sarampo, para as quais os indígenas não tinham
resistência. Os relatos desse elemento letal para extermínio de milhares de indígenas
durante a colonização são espantosos.
[...] as grandes armas da conquista, responsáveis principais pela
depopulação do Brasil, foram as enfermidades desconhecidas dos
índios com que os invasores os contaminaram. [...] Cerca de 40 mil
índios reunidos insensatamente pelos jesuítas nas aldeias do
Recôncavo, em meados do século XVI, atacados de varíola, morreram
quase todos, deixando os 3 mil sobreviventes tão enfraquecidos que
foi impossível reconstituir a missão (RIBEIRO, 1995, p.52).
As torturas cometidas e duras condições do trabalho e de sobrevivência dos
escravos indígenas também foram responsáveis por numerosas mortes.
A ideia de que o indígena era preguiçoso persistiu no Brasil por muito tempo.
Historiadores do século XIX a utilizaram para explicar por que os portugueses
decidiram substituir o trabalho do indígena pelo do africano. A ideia do indígena
preguiçoso foi criada a partir da maneira como os europeus viam a América e seus
habitantes. De acordo com Júnior (1998): “Além da resistência que ofereceu ao
trabalho, o índio se mostrou mau trabalhador, de pouca resistência física e eficiência
mínima. Nunca teria sido capaz de dar conta de uma tarefa colonizadora levada em
grande escala. [...] Aqui será o negro africano que resolverá o problema do trabalho.”
(JÚNIOR, 1998, p. 36).
Em muitos textos escritos pelos viajantes do século XVI, o Novo Mundo era
associado ao Paraíso Bíblico. Nessa terra os nativos não precisariam se esforçar para
2Nesse período começou o conflito entre os jesuítas e os colonos espanhóis e portugueses. Os colonos
desejavam somente escravizar o indígena, afim de enriquecer e mesmo que muitos indígenas acabassem
morrendo pelas condições de trabalho, era necessário sacrificar esse povo afim de cumprir as ordens de
Deus e do império. A vontade do colono prevaleceu diante do trabalho dos jesuítas.
21
conseguir aquilo de que necessitavam, pois tudo estava à mão. A ideia sobre a preguiça
era reforçada pela diferença de costumes e valores entre os nativos e os europeus. Essa
visão sobre o indígena nessas terras é apresentada por Ribeiro (1995) e que nos mostra
os equívocos pela visão de quem aqui chegou.
Aos olhos dos recém-chegados, aquela indiada louçã, de encher os
olhos só pelo prazer de vê-los, aos homens e as mulheres, com seus
corpos em flor, tinham um defeito capital: eram vadios, vivendo uma
vida inútil e sem pertença. O que produziam? Nada. Que é que
amealhavam? Nada. Viviam suas vidas fúteis vidas fartas, como se
nesse mundo só lhes coubessem viver (RIBEIRO, 1995, p.45).
Na verdade, ao contrário do que pensava o europeu, o trabalho não só fazia parte
do modo de vida indígena, como também apresentava fundamental importância. Na
maior parte das sociedades ameríndias, a satisfação das necessidades da comunidade é
responsabilidade de todos.
Quando os portugueses passaram a exigir que os indígenas trabalhassem na
produção agrícola, os nativos se rebelaram. Como resposta, os europeus não hesitaram
em usar a violência para forçá-los a trabalhar, escravizando muitos povos. Segundo
Guimarães (1968)
Iria terminar, por esse motivo, a fase das relações pacíficas entre
ambos os povos, aproximando- se igualmente do fim do período em
que o escambo assegurara aos portugueses o caminho para o saque das
riquezas da região descoberta (GUIMARÃES, 1968, p.9).
Além disso, a ideia da acumulação não existe nas sociedades indígenas. A
grande maioria das comunidades indígenas só produz ou retira da natureza o
fundamental à sua sobrevivência. Para eles, não existe lógica em alguém ter mais do que
precisa. Portanto, não há razão para continuar trabalhando quando as necessidades do
grupo já foram satisfeitas. Como escreve Ribeiro (1995) para os indígenas, antes da
colonização, a vida era uma tranquila fruição da existência, num mundo dadivoso e
numa sociedade solidária.
Do contrário, a missão para quem aqui tinha chegado e já se instalado, era de
submeter esse povo ‘preguiçoso’ apropriando- se das suas terras e de seus ricos bens,
impondo sobre eles as visões trazidas do velho mundo para que pudessem ser dóceis
produzindo todas as riquezas para a metrópole na condição de escravos. Por muito
tempo continuou assim, o tratamento para os povos nativos, as mortes e a escravização
22
marcou as transformações do território, continuou as violentas expropriações das terras.
As plantações e os engenhos se tornaram cativeiros para os indígenas sobreviventes.
A luta pela apropriação da terra e exploração dos bens ainda segue de forma
violenta e cruel como no princípio, mas se dará através da utilização de outras
estratégias, não menos genocidas. Guimarães afirma que
A começar pelo século XIX, a propriedade privada continuará
impondo- se a ferro e fogo, mas o que ela destrói e esmaga pela força
é a própria ordem jurídica instituída pelo home civilizado. Sob o signo
da violência contra as populações nativas, cujo direito congênito à
propriedade da terra nunca foi respeitado e muito menos exercido, é
que nasce e se desenvolve o latifúndio no Brasil. Desse estigma de
legitimidade que é seu pecado original jamais ele se redimira
(GUIMARÃES, 1968, p. 15).
Com essa determinação é que o progresso seguiu em marcha durante todo o
processo de colonização do Brasil, deixando esse território marcado, pelos
colonizadores, com sangue indígena.
Antes da chegada dos colonizadores, essas terras brasileiras eram cultivadas por
povos indígenas de diversas etnias, dentre elas, um grande povo que se autodenominava
Avá. Essa etnia foi reconhecida como o Povo Guarani.
1.2 POVO GUARANI: O GRANDE POVO
O Povo Guarani ocupou diversas partes da América, mais especificamente nos
territórios hoje conhecidos como Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. A
territorialidade para o Povo Guarani é demarcada historicamente de modo muito
particular e dinâmico, vivida, entendida e usada enquanto parte fundamental de sua rica
cultura sem que fosse compreendida pelos invasores e por historiadores que dizem ter
identificado um vazio demográfico nas terras ocupadas pelo Povo Guarani. Como nos
apresenta Parmigiani (2015, p.145) essa concepção de territorialidade não pode ser
compreendida de modo estático, independente de todo processo histórico dentro da
própria cultura do Povo Guarani. Esse povo era livre dentro do seu vasto território e, a
partir da mobilidade, exercia também seu modo de vida. Nas palavras de Schallenberger
(2006)
23
A territorialidade guarani sugere o seu entendimento a partir da
espacialidade vivenciada e simbolicamente representada. Um espaço
integrado no modo de vida, ou seja, um conjunto de elementos
constitutivos da cultura, cuja dimensão é o horizonte possível da
circulação dos sujeitos que sempre estão em busca de parentes e da
mãe-terra generosa que sustenta a vida (SCHALLENBERGER, 2006,
p.33).
Clastres (1974) apresenta o povo Guarani do século XVI ocupando um território
vasto em que possuíam aldeias situadas a milhares de quilômetros uma das outras,
vivendo uma mesma organização a partir da unidade linguística, cultural e religiosa
como elemento determinante e unificador da cultura Guarani. Entre o Povo Guarani
existem vários grupos que falam a mesma língua, possuem cultura muito semelhante,
mas, se autodenominam de forma diferente, seguindo sua regionalidade e ramo familiar.
Entre as denominações do Povo Guarani estão: Pãi-Tavyterã ou Kaiowá, Mbyá, Aché
ou Guayakí, Avá Katu, Avá Guarani ou Ñhandeva ou Chiripá, Guarani Ocidentais do
Chaco e Gwarayu.
Não existe um senso total capaz que tenha contabilizado de modo exato a
população Guarani na América do Sul. No entanto, Clastres (1974) em seu livro A
sociedade contra o Estado, apresenta um estudo sobre a demografia ameríndia capaz de
contabilizar aproximadamente a população Guarani:
[...] Pode- se avaliar em 360 mil km² a superfície do território guarani.
[...] Felizmente encontramos nos cronistas informações que nos fazem
progredir; e, particularmente, uma indicação muito precisa de Staden.
Este, durante os nove meses que esteve prisioneiro dos Tupinambás,
levado de grupo em grupo, teve todo o tempo de observar a vida dos
senhores. Ele anota que as aldeias distavam em geral, de 9 a 12 km
uma das outras, o que daria cerca de 150 km² de espaço por grupo
local. Guardemos este número e suponhamos que o mesmo acontecia
junto aso Guarani. É, possível, a partir daí, conhecer o número-
hipotético e estatístico- de grupos locais. Ele seria de 350 mil
divididos por 150: 2.340, aproximadamente. Aceitamos como
verossímil o número de seiscentas pessoas em média por unidade.
Teremos então: 2.340x600= 1.404.000 habitantes. Logo, cerca de um
milhão e meio de índios Guarani antes da chegada dos brancos. [...] os
150 mil índios de 1730 eram dez vezes mais numerosos dois séculos
antes: eles eram um milhão e meio (CLASTRES, 1974, p. 109- 113).
24
Atualmente, é no Brasil que se encontra a terceira maior população do Povo
Guarani3. De acordo com o Instituto Socioambiental (2008) a partir de estimativas da
Fundação Nacional da Saúde (FUNASA e FUNAI), existem aproximadamente 51.000
indígenas guaranis, sendo 31.000 Kaiowa, 13.000 Ñandeva e 7.000 Mbya, localizados
principalmente na região centro oeste e sul. (ISA, 2008)
Para o Povo Guarani, o território é mais do que um simples espaço ocupado ou
fonte de sustento, a terra para o Guarani é lugar onde se produz toda a sua cultura, é o
lugar de ser Guarani. A terra tradicional ocupada por esse povo é chamada de Tekoha,
que significa modo de ser. Parmigiani (2015) descreve que
A imposição de uma noção ocidental de território obrigou os Guaranis
elaborarem a noção de tekoha como forma de opor a ideia que os
brancos têm de “aldeia” como lugar fechado, circunscrito, lugar de
confinamento, de reduções. A palavra tekoha, uma junção semântica
do termo teko (modo de ser) com o sufixo verbal há (causa, fim, lugar
etc), pode ser traduzida como: o lugar de moradia das leis, dos
costumes, o lugar onde se realiza o modo de ser Guarani. A terra para
os Guaranis não é terra para plantar, comercializar ou lucrar, mas é
lugar de ser Guarani, lugar onde a cultura pode se realizar
(PARMIGIANI, 2015, p.147).
A Tekoha é constituída por uma família extensa que é um ente sócio-político,
econômico e territorial autônomo, a estrutura basilar da sociedade Guarani. Segundo
Parmigiani (2015), cada pessoa é parte de uma família extensa e se identifica com ela. A
família extensa é um grupo de pessoas relacionadas entre si por laços de parentesco
consanguíneo e que geralmente é conduzida por um casal mais velho.
O conceito de propriedade para o Povo Guarani é totalmente diferente do que se
entende pela nossa sociedade capitalista. O povo Guarani não se considera dono da
terra, nem daquilo que vive nela. Entendem que tudo é dado por Deus e o usufruto da
terra deve ser feito de forma equilibrada e com total respeito, e tudo o que fazem é
vigiado pelos deuses e pelos outros guaranis. No ano de 2007, Wilson Changary,
presidente da Assembleia do Povo Guarani da Bolívia, reafirma esse modo de vida do
Grande Povo, descrita na revista Campanha Guarani.
Esta terra livre, independente e soberana tem que se basear nos
princípios fundamentais indígenas. Princípios que superam os
3 A maior população Guarani vive na Bolívia, cerca de 150 mil indígenas, em seguida está o Paraguai,
onde vivem cerca de 53. 500 indígenas Guarani e a quarta maior população vive na Argentina, cerca de
42 mil indígenas. (Campanha Guarani, 2007)
25
interesses pessoais e transcendem e abraçam as esferas social,
econômica, cultural e político. Estes princípios são a essência
fundamental do ser Guarani, como a busca incessante da Terra Sem
Males e da Liberdade. Mas, quem me responde? ... Nem Deus me
responde quando vou ser livre...!!! Nossa essência é de ser sem dono”
...o Deus nosso é a Natureza e não a Lei...”. Princípios que impregnam
o ser social, como a Mboroaiu, Mborerekua, Yoparareko,esse amor,
estima, carinho, solidariedade, expressada em sentimento ao próximo,
que permite superar e desprender- se do ser mesquinho e
individualista (CHANGARY, 2007, p.5).
Na economia do modo de vida do Povo Guarani, o princípio da reciprocidade
não se expressa através do trabalho coletivo, no sentido de todos trabalharem e serem
donos de tudo, o que se pratica é a obrigação de sempre ajudar o outro que necessitar,
de receber ajuda quando for necessário e de participar sempre com alegria no trabalho
do outro Guarani. Essa reciprocidade e disposição existente entre o Povo Guarani é
chamada de Japói, conceito que se diferencia totalmente do individualismo e
mesquinhez presente na nossa sociedade inscrita no modo de produção capitalista
(Campanha Guarani, s/d). Para Schallenberger (2009)
A terra, que em seu seio gera a vida, sustenta as plantas e por elas é
sustentada, acolhe os animais, protege os rios, fértil e generosa,
possibilita a dádiva e que, na partilha da vida, se transforma em dom.
O dom é um elemento de grande significado na cultura tribal guarani,
uma vez que ela se reflete nas práticas culturais e na dinâmica social
(SCHALLENBERGER, 2009, p.33).
Existe na cultura guarani um compromisso com a reciprocidade com os demais,
o respeito à natureza e todos os seus elementos, entendidos como partes da cultura e que
sustentam a religiosidade praticada e conservada por esse povo.
1.3 O POVO GUARANI NA COLONIZAÇÃO NO OESTE DO PARANÁ
No início do século XVI, o Povo Guarani, até então livre, vivendo seu próprio
modo de vida, torna-se objeto disputado pela coroa espanhola e portuguesa. No ano de
1494, é assinado o Tratado de Tordesilhas entre essas duas coroas. Esse tratado
simbolizou o ato de traçar uma linha imaginária que cortava a América em duas partes.
A partir desse tratado, passou a pertencer a coroa espanhola “todas as terras descobertas
a ocidente de uma linha tirada de polo a polo, trezentas e setenta léguas a oeste das ilhas
de Cabo Verde; e a Portugal as descobertas a leste da mesma linha” (Carvalho, 2013.p.
26
267). Com essa divisão, o atual estado do Paraná ficou sob o domínio da coroa
espanhola, apenas uma faixa do litoral ficou para Portugal.
Com isso, os espanhóis se estabeleceram no interior dessa região do território e
começaram a fundar as cidades como, por exemplo, a Ciudad Real del Guairá em 1556.
Em seus estudos, José Luiz de Carvalho (2009) afirma que em toda essa região era
denominada pelos espanhóis de Província do Guairá4 e com a chegada da Companhia de
Jesus da Europa, iniciou-se, através dos jesuítas, a fundação de missões no Guairá,
tendo como objetivo, a catequização dos indígenas. A Companhia de Jesus instalou
cerca de quinze missões nessa região, que foram construídas às margens dos rios Tibagi,
Ivaí, Piquiri e Paranapanema. (Carvalho, 2009) Os caminhos construídos através desses
rios pelos indígenas foram fundamentais para a penetração e invasão dos colonizadores
europeus na região.
No início de 1628, os bandeirantes5 destruíram as missões jesuíticas e as cidades
espanholas construídas nessa região. As entradas desses bandeirantes tinham como
objetivo, capturar os indígenas para fazer deles escravos, e assim estendiam o território
português sobre o espanhol. Carvalho (2009) aponta que entre os anos de 1631 e 1632,
as missões e as cidades construídas estavam praticamente destruídas e abandonadas
pelos espanhóis. Milhares de índios foram levados para as vilas portuguesas para serem
vendidos como escravos.
A escravidão, no entanto, não era só praticada nas vilas portuguesas,
mesmo antes da fundação de missões no território do Paraguai os
índios eram constantemente escravizados no cultivo da erva-mate.
Eram as encomiedas, sistema de produção da erva-mate usado nas
províncias espanholas, que tinhas como única mão-de-obra os braços
escravos indígenas, e que estava em plena atividade nesse período das
missões (CARVALHO, 2009, p.20).
Parellada (2009) aponta que os bandeirantes paulistas já praticavam a captura de
índios Guarani na metade do século XVI, e eram vendidos para cumprir trabalhos
domésticos e agrícolas. Entre 1628 e 1630, cerca de 50 mil índios que viviam na
4O Guairá compreendia a região localizada entre o rio Paraná na vertente oeste, rio Paranapanema ao
norte, o Iguaçú ao sul e, a leste, as escarpas do argentino Furnas, região de governança do Paraguai, de
colonização espanhola. (SBRAVATI, 2009,p.27) 5 As bandeiras eram organizadas por iniciativa de particulares, os bandeirantes, e compostas
hierarquicamente por um chefe branco ou mameluco (filho de índio com branco), que comandava os
outros integrantes, como religiosos, escravos e indígenas. Os principais objetivos das bandeiras eram: 1º
Combater os invasores estrangeiros; indígenas inimigos e escravos quilombolas; 2º desbravar os sertões e descobrir ouro e pedras preciosas; 3º aprisionar mão-de-obra indígena. (ARANTES, 2009, p.81)
27
Província do Guairá foram levados a São Paulo, formando as bases das vilas paulistas.
Segundo Schallenberger (2006, p.76) “resultou daí uma progressiva destruição do
território simbólico do povo Guarani e a inviabilidade da sua reconstrução a partir da
organização do espaço missioneiro”.
Já ultrapassado o período colonial, a esfoliação sobre os indígenas continua
marcando o processo de formação e consolidação do território brasileiro. Citamos aqui,
em específico, no estado do Paraná, final do século XIX a apropriação de 5.000.000
hectares pela empresa de erva mate, sob a responsabilidade de Tomás Laranjeiras. É
sensato afirmar que essa área era ocupada por indígenas, sobre isto, Parmigiani (2015)
afirma:
É preciso ter claro que o ciclo da exploração da erva-mate, mesmo não
desapropriando os grupos indígenas de suas terras, fez uso da mão de
obra indígena que foi explorada em condições sub-humanas e com
extrema violência que obrigou as comunidades indígenas, em vários
momentos, a abandonarem seus territórios (PARMIGIANI, 2015,
p.149).
O Parque Nacional do Iguaçu também carrega uma dívida histórica, desde o ano
de 1939, quando removeu comunidades inteiras próximas do rio Iguaçu, comunidades
que viviam longe, umas das outras, como já mencionado anteriormente, não
reconhecendo a territorialidade desse povo. A retirada dos indígenas não foi pacífica,
podemos assegurar esse episódio, a partir de relatos de indígenas sobreviventes, que
diante da situação de violência procuravam se esconder mato adentro. Um desses relatos
pode ser encontrado na tese de doutorado da antropóloga Maria Lúcia Brant Carvalho.
No relato de uma indígena de 90 anos de idade decorre o seguinte:
Nasci no Oco’y Jakutinga em 1924. Fui morar na aldeia Guarani em
1934, Morei ali até 1943. Moravam 50 famílias na aldeia Guarani,
perto do rio Iguaçu, lá onde hoje é o Parque Nacional do Iguaçu. Teve
guerra com os índios para tirar os Guaranis da terra: eu vi, eu vi!
Mataram tudo! Jogavam os índios nas Cataratas, abriam a barriga com
facão e jogavam depois nas Cataratas! Era para o corpo não boiar, pra
afundar! O cacique da aldeia Guarani (Téve) e a mulher dele (Aispis)
foram tudo morto, e jogado nas cataratas. Nesse massacre, tinha
quatro padres: dois era amigo dos índios e dois era contra os índios,
um de cada lado, que era “irmãos”, brigaram muito e se mataram ali.
A catarata é cemitério de guarani (CARVALHO, 2005, p.330).
28
As críticas atingem a própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI)6 que através
de documentos oficiais ignoram a territorialidade, modo de vida e cultura do povo
Guarani que viviam nessa região, tomando decisões propositadas e prejudiciais. Esses
procedimentos refletem ainda hoje na realidade dos povos indígenas na luta pelo
território.
A primeira dessas evidências é o Relatório de Viagem de um
representante da FUNAI de 1976, no qual o autor identifica 12
famílias Guaranis que residem as margens do rio Paraná a 31 Km da
cidade de São Miguel do Iguaçu e decide pala aplicação do art..33 do
capítulo IV da Lei 6001/73, o qual tratar a área como terra de domínio
indígena, sem, entretanto, reconhece- lá como “propriedade coletiva”,
o que tornaria possível a concessão de títulos de propriedade
individual às famílias encontradas. A metodologia adotada pelo
representante da FUNAI ignora a territorialidade Guarani e acaba
tratando as comunidades indígenas como se fossem famílias
remanescentes de algum antigo aldeamento que não existia mais,
podendo então, serem removidas (PARMIGIANI, 2015, p. 152).
A presença dos indígenas nesse território sempre incomodou quem aqui chegou,
agindo de modo a satisfazer interesses próprios, e interesses econômicos coletivos. Por
isso, expulsar os indígenas ou exterminá-los fez parte do projeto de desenvolvimento
arquitetado nessas terras, desenvolvimento que só seria possível sem a presença
incomoda dos povos originários.
1.4 O ESPAÇO AGRÁRIO BRASILEIRO E OS CONFLITOS FUNDIÁRIOS
ENVOLVENDO POVOS INDÍGENAS
O processo de formação do espaço agrário brasileiro está atrelado a três
momentos históricos que remontam ao início da colonização do nosso território:
Capitanias Hereditárias; Primeira Lei de Terras; modernização da Agricultura. Tais
momentos nos ajudam a compreender o processo desigual de distribuição de terras, que
deram origem à concentração fundiária no Brasil e à manutenção da pobreza como uma
expressão desse processo desigual. O modelo de concentração fundiária brasileira:
6 Nesse período, a FUNAI recebia duras críticas da sociedade civil, tendo em vista que (sob a direção de
militares) intensificou as ações de exploração do patrimônio e trabalho indígena durante o regime militar,
agindo nas frentes de atração da mesma forma que agia o Serviço de Proteção do Índio (SPI- extinto no
ano de 1967, pelos militares, com o argumento de ter se tornado um órgão corrupto e mal gerenciado). (
MEIRA, 2013, p.104)
29
estrutura injusta da propriedade de terras no Brasil e os conflitos envolvendo povos
indígenas
Com o objetivo de ocupação de terras, a Coroa Portuguesa instituiu o modelo de
Capitanias Hereditárias, que consistia na divisão do território em extensões de terra e
concedê-las a particulares que adquiriam o direito de explorar. De acordo com
Guimarães (1989), “Estruturavam- se, assim, tanto a propriedade como o Estado, sob os
mesmos moldes e princípios que regiam os domínios feudais: grandes extensões
territoriais entregues a senhores dotados de poderes absolutos sobre as pessoas e as
coisas”. (GUIMARÃES, 1968, p.46).
Outro momento significativo em relação a concentração fundiária brasileira
refere-se a Primeira Lei de Terras – Lei nº 601, de 1850 – que teve como principal
característica a implantação da propriedade privada das terras. De acordo com Stédile
(2005, p.6) o que levou à sanção dessa lei foi a pressão por parte dos ingleses pela
substituição da mão-de-obra escrava pela assalariada, tendo em vista, a abolição da
escravatura. Desta forma, essa lei significou o impedimento do acesso de escravos
libertos à propriedade privada. Neste momento, a terra passa a ser mercadoria,
expressando uma relação de compra e venda.
Segundo Stédile (2005, p.6), “A Lei nº 601, de 1850, foi então o batistério do
latifúndio no Brasil. Ela regulamentou e consolidou o modelo da grande propriedade
rural, que é base legal, até os dias atuais, para a estrutura injusta da propriedade de
terras no Brasil”. (STÉDILE, 2005, p.6).
Com sua estrutura fundiária consolidada, em 1970 acentua-se no Brasil o
processo de transformação da produção e organização da agricultura, configurando-se
na sua modernização. Esta se justifica pela substituição do modelo de agricultura
pautada nas formas tradicionais de produção por novas técnicas e a utilização de
insumos industriais modernos, o que significou nas palavras de Silva (1980) a inserção
e o desenvolvimento do modo de produção capitalista nas relações de produção do
campo.
A agricultura enquadra-se à lógica industrial, respondendo aos ditames impostos
por esta. O Estado passa a incentivar por meio de políticas de credito a produção de
commodities – produtos estimulados pelo Estado e destinados à exportação. Neste
contexto, excluem-se os pequenos proprietários de terra que não puderam adequar-se ao
processo de modernização. Exclui-se também desse processo toda a população
originária do território brasileiro, que por não atribuírem à terra um valor de mercadoria
30
e objetivo de lucratividade, foram expulsos e/ou exterminados, perdendo assim grande
parte de seu território.
Os conflitos fundiários envolvendo povos indígenas no Brasil estão inteiramente
ligados ao crescimento do agronegócio, isso porque, o principal foco do agronegócio é a
produção de commodities em larga escala que, por sua vez, necessita de extensas
propriedades de terra para a sua lucratividade. Desta forma, a crescente busca por terras
vem provocando a invasão de terras indígenas, uma vez que, por não estarem
demarcadas ficam à mercê de fazendeiros, que cada vez mais, vão se adentrando de
forma agressiva no território indígena. O resultado disso é o agravamento dos
confrontos entre comunidades indígenas e fazendeiros em todo o país. Isso tem gerado
uma reivindicação por parte dos povos indígenas pelas demarcações de suas terras,
como forma de impedir a perda de território para latifundiários.
Os dados numéricos de quantos índios habitam o Brasil são imprecisos, pois,
nunca se realizou um censo indígena em âmbito nacional. Os dados que o Instituto
Socioambiental (ISA, 2014) nos traz é de que são 280 mil índios aldeados, ou ainda,
segundo dados da FUNAI, 320 mil. Imprecisos ou não, essa população representa cerca
de 2% da população brasileira, muito pouco para preocupar o governo e se efetivar suas
políticas, além do que a distribuição geográfica dificulta qualquer tentativa.
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), com base em 2013, o ritmo de
demarcações tem diminuído com o decorrer dos anos, em boa parte por conta da
influência cada vez maior do agronegócio sobre as terras. No governo de José Sarney,
Fernando Collor de Melo e Itamar Franco, foi homologado, 195 Terras Indígenas no
Brasil. No governo de Fernando Henrique Cardoso foram 145; no Governo Lula, 87 e,
com a atual presidenta Dilma, apenas 11. (ISA, 2013).
Segundo Márcio Santilli (2000) “a afirmação de direitos de minorias é uma
questão delicada. Em princípio, esses direitos significam limites e constrangimentos aos
direitos da maioria. E é ela quem faz as leis.” (SANTILLI, 2000, p. 64).
Neste sentido é um equívoco pensar que a questão indígena se resume apenas a
um conflito entre povos indígenas e latifundiários. O que está em disputa é um projeto
de sociedade, no qual esteja assegurado em lei o direito de existência, social e cultural,
dos povos indígenas em seus territórios historicamente ocupados, o que nos remonta
novamente ao processo de colonização onde comunidades inteiras foram dizimadas
pelos interesses políticos e econômicos e em nome da lei de Deus.
31
Como destaca o antropólogo Gersem Baniwa, em uma entrevista para o site
EBC Cidadania:
Um plano indigenista para o Brasil passa pela existência de um
Projeto de Nação do Brasil. Quando observamos a difícil situação de
vida dos povos indígenas, pelas permanentes violações de seus
direitos básicos, como o direito ao território e à saúde, podemos
acreditar que ou o país ainda não definiu seu projeto de nação; ou já
definiu e neste projeto não há lugar para os povos indígenas
(BANIWA, 2013, s.p).
Frente ao direcionamento histórico e do fortalecimento em defesa dos direitos
dos povos indígenas, dentre eles, o direito a demarcação das terras indígenas, que
segundo Relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI, 2006-2007) um dos
principais argumentos utilizados para explicar a morosidade nos procedimentos para
demarcação das terras indígenas, é a falta de recursos financeiros. Isso implica
profundamente na precariedade dos serviços de assistência prestados a essa população,
na falta de atendimento, falta de equipamentos e remédios, demora no repasse de
recurso e dificuldades no transporte e remoção de doentes.
Com base no Censo Demográfico 2000, pesquisadores do IBGE constataram que
para cada mil crianças indígenas nascidas vivas, 51,4 morreram antes de completar um
ano de vida, enquanto no mesmo período, a população não indígena apresentou taxa de
mortalidade de 22,9 crianças por cada mil. Portanto, a taxa de mortalidade entre índios e
não índios registrou uma diferença de 124%. (IBGE, 2000).
O número de crianças indígenas que morrem vítimas de doenças facilmente
tratáveis, como por exemplo, diarreia aguda e vômito têm crescido de modo alarmante a
cada ano. Segundo o Relatório de Violência contra os Povos Indígena no Brasil do ano
de 2010, foram registradas 92 mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos. O Relatório
do ano de 2014 apresenta o alarmante número de 785 crianças que morreram vítimas de
doenças facilmente tratáveis. (CIMI, 2010-2012)
Segundo o Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil (2012) o
número de assassinatos de indígenas é crescente a cada ano. Em 2012 foram registradas
60 vítimas, contra os 51 casos de assassinato em 2011. Também cresceu o número de
assassinatos em Mato Grosso do Sul, com o registro de 37 vítimas, contra os 32 casos
registrados em 2011. O estado continua à frente no número de casos no país, com mais
de 60% das ocorrências. A grande maioria das mortes ocorreu entre indígenas do povo
32
Guarani-Kaiowá, com 34 pessoas assassinadas. Também ouve mortes entre o povo
Terena (2) e Guarani Nhandeva (1). (CIMI, 2012, p.138).
O suicídio e a tentativa de suicídio também são preocupantes e mais uma vez
expressam a difícil realidade dos povos indígenas no nosso país, podemos afirmar que a
quantidade de casos, é reflexo, da omissão do poder público, e tal omissão é violenta.
Em 2012 voltou a subir os casos de suicídios entre os Guarani-Kaiowá, com 56 vítimas.
Os dados são do próprio Ministério da Saúde (DIASI/DSEI) que indicam 611 casos de
suicídios nos últimos 13 anos (2000-2012). Os dados referentes aos suicídios apontam
para uma realidade de genocídio silencioso no estado do Mato Grosso do Sul e a faixa
etária mais atingida está entre os jovens de 15 a 29 anos.
Diante destas informações, é possível perceber que o aumento das mortes e da
violência contra os povos indígenas é reflexo destas políticas que se omitem, negando
os direitos destes povos. É importante destacar a necessidade urgente para a demarcação
do território indígena e mais do que isso, é fundamental construiu uma política
indigenista que torne efetiva a proteção dos direitos e a promoção da dignidade desses
povos.
33
2 O DIREITO A TERRA COMO UM ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO DA
CULTURA E MODO DE VIDA DOS POVOS INDÍGENAS
Sabemos que uma das principais demandas dos povos indígenas é o direito à
terra, demanda que historicamente é pautada denunciando as constantes violações dos
direitos desses povos, violações cometidas por meio de interesses arraigados no
etnocentrismo europeu que incumbe um valor de mercado sobre as terras, causando
consequentemente o confinamento desses povos em minúsculas áreas já não mais
produtivas, provocando a escassez dos recursos naturais.
Oposto a esse pensamento mercadológico da sociedade capitalista está o
pensamento dos povos indígenas que compreendem seu território como um espaço de
preservação da sua cultura em todas as suas dimensões, o modo de vida de seu povo.
Como destaca Martins (1986)
A insuficiência decorrente do cercamento territorial aparece como
específica insuficiência para continuar sendo índio, pois a condição de
ser índio está inteiramente vinculada à definição do território.
Continuar a ser índio depende de [...] soluções que permitam a
sobrevivência num espaço que se tornou culturalmente limitado e se
tornou, num certo sentido, branco. [...] Na perspectiva que aparece nos
depoimentos indígenas, a terra não é simplesmente um instrumento
econômico. Ela aparece em primeiro lugar como condição da vida,
como meio de reprodução social (MARTINS, 1986, p.36- 37).
A história do nosso país é marcada pela invasão dos colonizadores, expulsando
os indígenas dos seus territórios, expulsão que ocorre até hoje, à luz dos nossos olhos,
com objetivo de promover a valorização dos imóveis rurais e o crescimento das
fronteiras do agronegócio o que acaba por confinar os indígenas em seus territórios
reivindicados e provocar a morte de tantos outros.
De acordo com dados do ISA (2012), 7os indígenas hoje possuem 678 territórios
demarcados, em todo o território brasileiro, uma área de aproximadamente 112.703.122
hectares². Na região da Amazônia Legal estão localizadas 414 dessas terras demarcadas,
totalizando 110.970. 489 hectares, ocupando 21,73 % do território brasileiro. Isso
significa que 98,6% da área demarcada para os povos indígenas, estão na Amazônia
Legal e os outros 1,4% se encontra em todas as outras regiões do território brasileiro.
7 Disponível em< http://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/situacao-juridica-das-tis-hoje > acesso em 11
nov./ 2015.
34
O mais recente censo sobre a população nacional, realizada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado no ano de 2010 mostra que mais
da metade dos 896, 9 mil indígenas não moram na Amazônia Legal, estão espalhados
em todo o restante do território brasileiro, dividindo 1,4% de territórios demarcados, um
número quase imperceptível se comparado aos territórios demarcados somente na região
da Amazônia legal.
Diante dessa realidade Spensy Pimentel (2013) argumenta que “À luz desses
dados, a falácia do argumento de que há muita terra para poucos índios se desfaz
facilmente, portanto. Não é preciso buscar muito para perceber quais interesses estão
por trás da divulgação enviesada dos dados referentes à distribuição das terras indígenas
no país.” (PIMENTEL, 2013, p.87).
A partir da realidade do estado do Mato Grosso do Sul é possível visualizar
melhor a realidade vivenciada pelos indígenas. Ainda de acordo com os dados do IBGE
(2010) o estado do Mato Grosso do Sul, possui a segunda maior população indígena no
Brasil, 77.025 pessoas, ficando atrás do Amazonas apenas. Desse total de indígenas, 70
mil são dos dois grupos mais numerosos, os Guarani- Kaiowa e os Terena,
sobrevivendo com cerca de 70 mil hectares, e são justamente esses dois grupos que não
estão na Amazônia Legal, em territórios demarcados.
Podemos perceber aqui que existe um problema sério no acesso à informação
sobre a situação das terras indígenas no território brasileiro, e que infelizmente, acaba
sendo uma verdade difundida pela mídia mentirosa e por grupos ruralistas que
constroem laudos falsos e provocam terrorismos na população8, o que acaba por
acentuar ainda mais os conflitos e preconceitos existentes contra os povos indígenas.
Uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo (FPA) em parceria com o
Instituo Rosa Luxemburgo (RSL) intitulada – A pesquisa Indígena no Brasil Demandas
dos Povos e Percepções da Opinião Pública9- retratam também esse panorama da
desinformação e preconceito em relação aos povos indígenas.
8 Caso recente sobre laudo falso divulgado na região oeste do Paraná. Disponível em:
http://oindigenista.com/2015/07/03/universidade-do-parana-investiga-ilegalidades-de-professor-e-
antropologo-que-assessora-ruralistas-contra-indigenas/. 9 A pesquisa foi realizada no ano de 2010, tendo como amostra no módulo I 2.006 entrevistas, divididos
em duas subamostras espelhadas, de 1.000(A) e 1.006(B) entrevistas. No módulo II e III as entrevistas
foram realizadas com lideranças dos povos indígenas no Brasil e com indígenas não aldeados e urbanos,
essa última realizada no ano de 2011.
Disponível em: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/Pesquisa_Completa.pdf
35
O Gráfico um (1) responde a pergunta feita em relação ao preconceito contra
indígenas e, é possível perceber que o maior índice se concentra na região sul e norte do
país, mas todos os outros índices apresentados mostram uma diferença ínfima em
relação às demais regiões do país.
GRÁFICO 1
FONTE: Fundação Perseu Abramo/ Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2013.
Outro gráfico apresentado e que responde essa mesma pergunta retrata a triste
realidade do preconceito que existe contra indígenas, quando 79% dos entrevistados
respondem que existe sim preconceito contra esses povos no Brasil.
GRÁFICO 2
36
FONTE: Fundação Perseu Abramo/ Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2013.
O preconceito em maior índice apresentado pelo quadro diz respeito aos brancos
em relação aos indígenas. O ranço do colonialismo europeu ainda faz parte da nossa
cultura quando podemos visualizar um número tão expressivo de 79% na pesquisa.
Outros dois gráficos respondem a duas perguntas realizadas, a primeira pergunta
refere- se à expressão “no Brasil tem muita terra pra pouco índio” e a outra refere- se a
expressão “índio bom é índio morto”. Os índices de desinformação e preconceito contra
os indígenas nesses dois quadros são desanimadores e revelam a difícil situação
enfrentada por esses povos quando nos deparamos com essa realidade.
GRÁFICO 3
37
FONTE: Fundação Perseu Abramo/ Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2013.
GRÁFICO 4
FONTE: Fundação Perseu Abramo/ Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2013.
38
Diante dos gráficos (1, 2, 3 e 4) apresentados e dos indicadores apontados, é
possível perceber que as regiões em que existem os maiores índices de preconceito
contra os povos indígenas são as regiões que mais possuem ocorrências de invasão de
terras, assassinatos e tentativas contra eles.
Segundo o CIMI, no ano de 2014, as regiões que mais tiveram registros em
relação aos conflitos territoriais, envolvendo invasão das terras indígenas formam as
regiões norte, com 49 casos registrados, região nordeste com 28 casos registrados e a
região centro- oeste com 21 casos. Em relação as mais diversas violências registradas
contra os indígenas (ameaças, assassinatos, homicídio doloso, lesões corporais, racismo,
tentativa de assassinato, violência sexual) os maiores índices foram registrados nas
regiões centro- oeste com 77 casos, (50 mortes), na região norte com 64 casos de
violência, na região nordeste, 56 casos, na região sul, 43 registos e na região sudeste, 9
casos registrados. (CIMI, 2014, p. 75-101)
Se compararmos a pesquisa da Fundação Perseu Abramo, realizada em parceria
com o Instituto Rosa Luxemburgo com o Relatório do CIMI, podemos afirmar que a
violência contra os povos indígenas é consequente do preconceito enraizado na nossa
sociedade capitalista.
No 3º gráfico, sobre os indicadores apresentados em relação à expressão “no
Brasil tem muita terra para pouco índio”, podemos observar que o maior índice de
concordância com essa expressão é na região nordeste, onde 38% dos entrevistados
concordam totalmente e 22 % concordam em parte. Segundo dados do CIMI, na região
nordeste ocorreram 28 registros de conflitos territoriais e invasão das terras indígenas.
Na região norte, 37% concordam totalmente e 25% concordam em parte, e de acordo
com o relatório do CIMI, foi à região que mais registrou casos de conflitos territoriais,
49 casos no total. Na região centro-oeste, 22% concordam totalmente e 21% concordam
em parte e, segundo o mesmo relatório, foram registrados 21 casos de conflitos
territoriais.
Se observarmos o 4º gráfico e seus indicadores que respondem a afirmação
“índio bom é índio morto”, percebemos que a região com maior concordância com a
expressão, é a centro- oeste, onde 6% concordam plenamente e 2% concordam em
parte. E de acordo com o Relatório do CIMI, é a região que mais registrou casos de
violência contra indígenas, um total de 77 casos. A segunda região que mais concordou
com a afirmação, é a norte, com 5% dos entrevistados que concordam totalmente e 4%
concordam em parte. Segundo o relatório do CIMI, a região norte é a segunda região
39
que mais registrou casos de violência contra os indígenas, um total de 64 casos. Na
região sul, 3% dos entrevistados concordam totalmente com a afirmação e outros 3%
concordam em parte. O número dos casos de violência registrado nessa região soma um
total de 43 registros. Na região do nordeste, 2% concordam totalmente e 2% concordam
em partes. O número de caos registrados sobre a violência contra indígenas no nordeste
é de 56 casos.
Atrelado a discriminação e violência contra os indígenas está a falta de
conhecimento sobre esses povos. A falta de informação correta sobre a realidade dos
indígenas é sempre uma porta aberta para a veiculação de informações mentirosas,
preconceituosas e, que, acaba por aprofundar ainda mais todas as formas de violências
cometidas. A pesquisa da Fundação Perseu Abramo também abordou essa problemática
e os índices apresentados demonstram que existe sim um desconhecimento enorme
sobre esses povos. E ainda, expressam a necessidade de tornar a realidade desses povos
visível à sociedade.
GRÁFICO5
FONTE: Fundação Perseu Abramo/ Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2013.
GRÁFICO 6
40
FONTE: Fundação Perseu Abramo/ Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2013.
GRÁFICO 7
FONTE: Fundação Perseu Abramo/ Instituto Rosa Luxemburg Stiftung, 2013.
41
Diante dos gráficos apresentados (5,6 e 7), é possível perceber que a falta de
informação e do acesso a elas em relação aos indígenas no nosso país é enorme, e isso
implica profundamente em visões e ideias equivocadas, sobre a realidade desses povos,
reafirmando ainda mais os preconceitos existentes. De acordo com Castilho e Lima
(2013)
Os dados da pesquisa mostram que ainda é correto reafirmar, no
liminar do século XXI, a permanência e a intensidade inaceitável de
diversos estereótipos sobre os povos indígenas no Brasil, o que
demonstra antes de tudo uma grande desinformação e a força do
preconceito. [...] está embutida a prevalência das visões impostas pela
hegemonia das elites rurais e do empreendedorismo industrial, bem
como a enorme lacuna de informação deixada pelo sistema de ensino
[...] funcionam como quadros de pensamentos do cidadão comum,
estão orientados não apenas pelo passivo de significações oriundos do
período colonial, pela ignorância de nossas elites, mas também,
sobretudo, pelos efeitos das conquistas de direitos que permitiu
recolocar a presença indígena em outros patamares (CASTILHO e
LIMA, 2013, p. 68-69).
Outras grandes problemáticas que ameaçam as terras indígenas no Brasil 10são
os Projetos de leis e emendas Constitucionais que tramitam no Congresso. Trata-se de
uma ofensiva promovida por deputados ligados ao agronegócio, com o objetivo de
impedir a demarcação de terras, fazendo crescer ainda mais os latifúndios e a produção
em larga escala.
A PEC 215/2000 apresentada o deputado federal Almir Moraes de Sá, do Partido
da República (PR-RR) propõe que as demarcações de terras indígenas, a titulação dos
territórios quilombolas e a criação de unidades de conservação ambiental passem a ser
uma responsabilidade do Congresso Nacional, ou seja, uma atribuição dos deputados
federais e senadores (bancada ruralista), e não mais do poder Executivo, e ainda
estabelece a revisão das terras indígenas já demarcadas, tornando legal a invasão e posse
dessas terras. (CIMI, 2015)
Existem outros projetos que representam grandes ameaças ao direito do
reconhecimento das terras indígenas.
QUADRO 1
PROJETOS
/PRPOSTAS
AUTOR EMENTA
10http://www.cimi.org.br/pec2015/cartilha.pdf
42
/PORTARIAS
PL 1610/1996 Romero Jucá -
PFL/RR
Dispõe sobre a mineração em terra indígena,
considerando que “qualquer interessado” pode
requerer autorização de lavra em terra indígena.
O projeto não contempla satisfatoriamente o
direito de consulta aos que serão afetados pela
atividade minerária - a “consulta pública”
prevista no PL não dá às comunidades afetadas a
possibilidade de rejeitar a exploração mineral.
Portaria
419/2011
Ministros de
Meio Ambiente,
Justiça, Cultura
Saúde.
Regulamenta prazos para o trabalho e
manifestação da FUNAI e demais órgãos
incumbidos de elaborar pareceres em processos
de licenciamento ambiental. Essa portaria visa
agilizar a liberação de obras de infraestrutura em
terras indígenas, incluindo grandes
empreendimentos como hidrelétricas e abertura
de estradas.
Portaria
303/2012
Luís Inácio
Adams—
AGU—
Advocacia Geral
da União
Fixa uma interpretação sobre as condicionantes
estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) no julgamento do caso Raposa Serra do
Sol, estendendo a aplicação delas à todas as
terras indígenas do país. A portaria determina
que os procedimentos de demarcação já
“finalizados” sejam “revistos e adequados”.
PLP 227—
2012
Homero Pereira -
PSD/MT,
Reinaldo
Azambuja -
PSDB/MS,
Carlos Magno -
PP/RO e outros
Regulamenta o § 6º do art. 231, da Constituição
Federal de 1988 definindo os bens de relevante
interesse público da União para fins de
demarcação de Terras Indígenas, que legaliza
latifúndios e assentamentos dentro dos territórios
indígenas.
PEC 237/2013 Nelson Padovani
- PSC/PR
Acrescente-se o art. 176-A no texto
Constitucional para tornar possível a posse
indireta de terras indígenas à produtores rurais na
forma de concessão. (CIMI, 2015)
43
O que vem acontecendo no nosso país em especifico, nos espaços políticos, de
decisão, é uma política intencional de massacre, violência, negação e silênciamento dos
direitos indígenas, uma verdadeira ditadura contra os povos originários. No entanto, os
indígenas tem se mostrado resistentes e articulados entre si e com os seus aliados. É
através das mobilizações e resistências contra seus inimigos conservadores e
reacionários que os povos indígenas tornam visíveis essa realidade para as mais diversas
organizações internacionais que atuam em defesa dos direitos humanos, como por
exemplo, a ONU11, que tem se manifestado diante das situações de violência. Outras
mudanças importantes ocorreram como a criação da Comissão Nacional da Verdade
no ano de 2015 e a Comissão Indígena da Verdade e Justiça como sinais de avanços,
apesar de ser muito pouco ainda.
No ano de 1968 as denúncias das violências e dos massacres e do extermínio de
etnias inteiras (a exemplo do massacre do Paralelo 11, em que todos os indígenas da
etnia Cinta Larga forma envenenados e assassinados) tornaram- se um manifesto no
mundo todo, registradas em mais de sete mil páginas do Relatório Figueiredo12 e, é
nesse momento que essas situações começaram a ser mais fortemente denunciada nas
mais diversas Comissões Parlamentares de Inquérito instauradas (CPIs).
2.1 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DOS POVOS ÍNDIGENAS: UMA DÍVIDA
A proteção dos povos indígenas no plano internacional sobreveio no século XX,
mesmo comportando um caráter que objetivava a integração e tutela dos povos
indígenas com a sociedade não indígena. A Convenção 107 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) adotada no ano de 1957 previa a integração e proteção
dos povos indígenas e tribais. Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil em 1966
através do decreto 58.824 e logo no seu primeiro artigo é possível compreender o
caráter integracionista proposto para ser cumprido pelo governo. (OIT, 1966)
Art. 1º. A presente Convenção se aplica:
a) aos membros das populações tribais ou semitribais em países
independentes, cujas condições sociais e econômicas correspondem a
um estágio menos adiantado que o atingido pelos outros setores da
11Disponível em <http://política.estadao.com.br/noticias/geral,relatorio-da-onu-critica-politicas-
indigenistas-do-brasil,421234 >acesso em 21 dez 2015. 12 Disponível em< https://idejust.files.wordpress.com/2012/12/povos-indc3adgenas-e-ditadura-militar-
relatc3b3rio-parcial-30_11_2012.pdf > acesso em 23 nov 2015.
44
comunidade nacional e que sejam regidas, total ou parcialmente, por
costumes e tradições que lhes sejam peculiares por uma legislação
especial;
b) aos membros das populações tribais ou semitribais de países
independentes que sejam consideradas como indígenas pelo fato de
descenderem das populações que habitavam o país, ou uma região
geográfica a que pertença tal país, na época da conquista ou da
colonização e que, qualquer que seja seu estatuto jurídico, levem uma
vida mais conforme às instituições sociais, econômicas e culturais
daquela época do que às instituições peculiares à nação a que
pertencem.
2. Para os fins da presente convenção, o termo “semitribal” abrange os
grupos e as pessoas que, embora prestes a perderem suas
características tribais, não se achem ainda integrados na comunidade
nacional (OIT, 1966, p.1-2).
Diante desse panorama ainda que equivocado em relação aos direitos dos povos
indígenas podemos dizer que o avanço mais significativo sucedeu–se à partir da
Convenção 169 da OIT sobre os povos indígenas e tribais de 1989, da qual do Brasil é
signatário e ratificada apenas no ano de 2002 pelo decreto 5.051, estabelece de forma
definitiva, nos artigos 8º, 9º, 10º e 12º que a diversidade étnica-cultural dos indígenas e
seus povos têm que ser respeitadas em todos os seus aspectos, e de obrigar a seus
governos a assumirem a responsabilidade de desenvolverem ações coordenadas e
sistemáticas de proteção dos direitos dos povos indígenas, e garantia de respeito pela
sua integralidade, com pleno gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais
(OIT, 1989).
A Convenção dedica uma especial atenção à relação dos povos indígenas e
tribais com a terra ou território que ocupam ou utilizam de alguma forma,
principalmente aos aspectos coletivos dessa relação. É nesse enfoque que a Convenção
reconhece o direito de posse e propriedade desses povos e preceitua medidas a serem
tomadas para salvaguardar esses direitos, inclusive sobre terras que, como observado
em determinados casos, não sejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais
tenham, tradicionalmente, tido acesso para suas atividades e subsistência. Em seus
artigos 13º e 14º, a Convenção estabelece aos governos o respeito à importância
especial para as culturas e valores espirituais dos povos interessados, sua relação com as
terras ou territórios, na qual os direitos de propriedade e posse de terras
tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados deverão ser reconhecidos. (OIT,
1989)
45
Os avanços no campo jurídico sobre os direitos dos povos indígenas foram
demarcados com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos dos Povos
Indígenas, no ano de 2007. Não se trata de um movimento que se seguiu de forma
tranquila e simples, o que demandou intensos enfrentamentos no plano internacional. As
discussões afetas a construção dos direitos dos povos indígenas torna- se fundamental
quando se abriu espaço para a participação dos próprios indígenas, definindo o
protagonismo desses sujeitos. Esse momento que definiu a participação e reinvindicação
dos povos indígenas é apresentado por Santos (2013) quando em 1977 foi realizada a
primeira Conferência Internacional de Organizações Não- Governamentais tendo como
proposta discutir:
[...] sobre a discriminação dos povos indígenas, na qual, pela primeira
vez, os grupos indígenas conseguiram ser ouvidos na reinvindicação
de serem designados como povos, e não mais como minoria étnica.
Com isso se intensificou o movimento pelo reconhecimento dos povos
indígenas pelo direito internacional, principalmente a partir de 1980,
quando se acentua a noção de “povos indígenas” como conceito
analítico e como categoria de identidade de titularidade de direito
(SANTOS, 2013, p.43).
A Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas insere-se em um
contexto de resistência e por esse motivo, no ano de 1995 deu- se o inicio da Primeira
década Internacional dos Povos Indígenas do Mundo, até o ano de 2004. Durante esse
período, através de um grupo de trabalho criado pela Comissão de Direitos Humanos foi
discutida a proposta da Declaração. Em 2007 a Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas foi aprovada 13com 143 votos a favor, 4 votos contrários,
Canadá, Estados Unidos e Austrália, e 11 abstenções. As justificativas mais levantadas
dos votos contrários à Declaração são lembradas por Santos (2013)
[...] falta de uma definição clara do termo “indígena”; as referências e
construções potencialmente impróprias ao direito de
autodeterminação; as discordâncias referentes aos direitos à terra, aos
territórios e aos recursos naturais; e o entendimento de que as leis
comunitárias infringem a universalidade constitucional (SANTOS,
2013, p.45-46).
13Nações Unidas Rio de Janeiro, publicada em 2008. Disponível em<
http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf> acesso em 11 out. 2015.
46
A Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas em seus artigos iniciais parte do
princípio de que os povos e indivíduos indígenas são livres e iguais a todos os demais
povos, sendo proibida toda forma de discriminação, afirmação demarcada no artigo 2.
Uma das passagens mais polêmicas da Declaração é a que está nos artigos 3 e 4, em que
os povos indígenas têm direito à autodeterminação14, e ao autogoverno15. Essa menção
ao direito de autodeterminação, podendo decidir livremente sua condição política16 foi
um dos motivos alegados pelos países que votaram contra a Declaração. Em seu artigo
26, a Declaração faz menção à proteção do território indígena e a responsabilização do
Estado na garantia desse direito.
Art 2: Os povos e pessoas indígenas são livres e iguais a todos os
demais povos e indivíduos e têm o direito de não serem submetidos a
nenhuma forma de discriminação no exercício de seus direitos, que
esteja fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena.
Art 3: Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude
desse direito determinam livremente sua condição política e buscam
livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
Art 4: Os povos indígenas, no exercício do seu direito à
autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas
questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a
disporem dos meios para financiar suas funções autônomas.
Art. 26: 1. Os povos indígenas têm direito às terras, territórios e
recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de
outra forma utilizado ou adquirido.
2. Os povos indígenas têm o direito de possuir, utilizar, desenvolver e
controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da
propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou
de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham
adquirido.
14 De acordo com Bottomore, no Dicionário do Pensamento Marxista (2001, p.123) “o próprio marxismo
é herdeiro de uma concepção mais rica e mais ampla de liberdade como autodeterminação.” Os marxistas
e o próprio Marx em seus estudos compreenderam a liberdade como sendo a eliminação dos obstáculos
que impedem a emancipação humana, que impedem o desenvolvimento das possibilidades humanas e que
impedem formas de criar uma condição digna para a vida humana. 15 Os estudos marxistas também abordaram a sociedade tribal e seu significado. Desse modo, como é
descrito no Dicionário do Pensamento Marxista (2001, p.358) “o termo ‘tribo’ também tem associações
com o termo ‘povo’ [...] a imagem de uma sociedade sectária, ligada pelo parentesco, que cresce de fora
para dentro e é ferozmente autoprotetora, resultou dos contatos entre civilizações ‘avançadas’, dotadas de
escrita, e culturas sem escrita, presumivelmente menos sofisticadas e tecnologicamente ‘inferiores’. Esses
critério etnocêntricos tendem a obscurecer a distinção entre os Estados tribais e sociedades tribais sem
Estado” 16 Diante da intencionalidade construída pelos governos, prevendo a integração e tutela dos povos
indígenas e tribais, podemos identificar elementos da organização desses povos que se contrapõem aos
interesses da sociedade não indígena, e que acabou resultando na aversão ao termo autogoverno,
organização e condição política das sociedades indígenas e tribais. Trata- se de uma “sociedade sem
classes, funciona através de associação de parentesco ou quase- parentesco, não tem estrutura civil nem
autoridade civil. As aldeias que a constituem são autônomas mas vinculadas entre si; assim como mantêm
um igualitarismo interno, também se relacionam com outras aldeias em um quadro de não exploração”
(BOTTOMORE, 2001, p. 359)
47
3. Os Estados assegurarão reconhecimento e proteção jurídicos a essas
terras, territórios e recursos. Tal reconhecimento respeitará
adequadamente os costumes, as tradições e os regimes de posse da
terra dos povos indígenas a que se refiram (ONU, 2008, p.6-8).
Embora não tenhamos a partir dessa declaração a universalidade dos direitos dos
povos indígenas cobertos, torna- se fundamental demarcar que esta declaração é um
marco importante por ter sido produto de longos debates no plano internacional,
possibilitando uma reflexão sobre a necessidade do reconhecimento dos direitos
universais dos povos indígenas, trazendo em sua reflexão o resgate histórico e atual das
mais diversas opressões sofridas e por consequência a conscientização sobre a
necessidade de propostas que sejam capazes de promover o enfrentamento e a garantia
dos direitos.
2.2 A PROTEÇÃO DO DIREITO DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL
Mesmo que os povos indígenas estejam contemplados como sujeitos de direitos
nos marcos jurídicos brasileiros, é importante lembrar que esses povos sempre foram
considerados como um obstáculo ao processo de desenvolvimento e progresso do nosso
país, portanto, é necessária a instituição de uma tutela a esses “sujeitos incapazes de
contribuírem com esse progresso”. Essa visão completamente equivocada sobre os
povos das terras brasileiras foi determinada pelo etnocentrismo do homem branco, o
europeu colonizador que aqui instituiu seu modo de vida, de dominação e exploração
sobre os indígenas.
É necessário pensar a proteção dos direitos dos povos indígenas, reconhecer que
nas terras brasileira houve um genocídio indígena e que por consequência assumimos
uma dívida histórica e moral, o que nos obriga a tomar e responder essas demandas, que
desde a colonização permanecem e que a passos lentos é alcançada pelo poder público,
não sendo capaz de promover mudanças profundas e significativas no cenário das
violações dos direitos dos povos indígenas.
Desde a independência do Brasil, as constituições, exceto a Constituição do ano
de 1891, afiançaram aos índios seus direitos, porém, não em sua universalidade. As
constituições de 1824, 1934, 1937, 1946 e 196717, proclamam debilmente o direito ao
17 Disponível em <www4.planalto.gov.br/legislação/legislação-historica/constituições-anteriores-1>
Acesso em 27/10/2015.
48
território indígena e, apresentando o caráter integracionista e tutelar das legislações
afetas aos indígenas. A Constituição de 1824 não dedica Titulo, Capitulo ou Secção aos
Índios. Mas, eles são considerados, pelo artigo 6º, cidadãos brasileiros.
Artigo 6º − São cidadãos brasileiros:
I − Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos,
ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por
serviço de sua Nação. (BRASIL, 1824, s.p)
Constituição de 1934:
Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se
achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado
aliená-las. (BRASIL, 1934, s.p)
Constituição de 1937:
Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se
achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada
a alienação das mesmas. (BRASIL, 1937, s.p)
Constituição de 1946:
Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se
achem permanentemente localizados, com a condição de não a
transferirem. (BRASIL, 1946, s.p)
Constituição de 1967:
Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras
que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos
recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes (BRASIL,
1967, s.p c).
Em 1973, momento de intensos conflitos que atingiram os povos indígenas, a
legislação brasileira dá um grande passo no que se refere ao direito indígena, com a
promulgação da lei 6.101, conhecida como o Estatuto do Índio, tendo como finalidade
a regulação da situação jurídica dos índios, ou silvícolas, e das comunidades indígenas,
conforme estabelece o artigo 1º. No entanto, esse Estatuto veio confirmar-se com a
concepção que acaba por remeter o período colonial, quando propõe “integrá- los,
progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.” (BRASIL, 1973). Conforme
destaca Bonin e Stefanello (2013):
O Estatuto do Índio de 1973 traz consigo esse “ranço” do pensamento
dos homens da história, permitindo que a condição de tutelados
cerceie- além de reduzir a capacidade civil dos índios, a autogestão de
suas terras e a projeção de seu futuro como povos- sua livre expressão
política e acesso aos serviços públicos [...] (BONIN e STEFANELLO,
2013, p. 122).
A Constituição Federal (CF) de 1988 é considerada um marco histórico no que
diz respeito aos direitos dos povos indígenas, pois é a partir desse momento que o
49
Estado assume uma relação mais participante diante da realidade desses povos,
sobrepondo- se as diversas concepções integracionistas contempladas em outras
legislações, que afirmavam sobre a cultura indígena como inferior, garantindo assim, o
direito de ser índio. Nesse sentido, a CF dedica, um capítulo específico, ao direito
indígena. (Capitulo VIII, "Dos Índios"). Neste Capitulo:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-
las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes
legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do
processo. (BRASIL, 2010, p.97).
A CF também destaca a importância do território para os povos indígenas
conforme descrito no parágrafo primeiro, segundo e quarto do artigo 231.
§1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis a preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§2º [...] cabendo- lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos
rios e dos lagos nelas existentes.
§4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e
os direitos sobre elas, imprescritíveis. (BRASIL, 2010, p.97).
O reconhecimento sobre os avanços jurídicos da CF após muitos anos revelam a
necessidade de um novo olhar sobre a realidade dos povos indígenas, como destacam
Gonçalves e Liberato (2013).
O direito de continuar a ser índio vagarosamente vem sendo adquirido
pelas tribos indígenas, encerrando mais de quinhentos anos de
integração forçada através das Políticas Integracionistas. As normas
constitucionais devem ser analisadas de acordo com a realidade. A
Constituição vigente encampam os direitos humanos [...] (Gonçalves e
Liberato, 2013.p, 104).
É necessário que, diante de todo esse aparato jurídico o Estado esteja presente e
acompanhe os reclames dos povos indígenas, cumprindo com seu papel de proteção e
promoção dos direitos já garantidos.
50
Diante desse cenário que demonstra os avanços jurídicos, a CF de 1988 abriu
espaço para várias discussões em torno de outras legislações, como por exemplo, o
próprio Estatuto do Índio, e a partir do ano de 1990 surgem novas proposições para a
reestruturação do Estatuto. Como observam Bonin e Stefanello (2013)
Um dos resultados da mobilização e articulação dos povos indígenas é
o Projeto de Estatuto dos Povos Indígenas apresentado pelo Ministério
da Justiça à Câmara dos Deputados em 2009, possuindo cerca de 250
artigos, enquanto o Estatuto do Índio de 1973 possui apenas 68.
Enquanto a Lei 6.001 de 19 de dezembro de 1973 tinha como intuito
regular a “situação jurídica dos silvícolas” com o propósito de integrá-
los progressivamente à sociedade, o Novo Projeto de Estatuto dos
Povos Indígenas tem como princípio regular a situação jurídica dos
indígenas, suas comunidades e povos, fazendo respeitar sua
organização social, cultura, terras que ocupam e seus bens (BONIN e
STEFANELLO, 2013, p.123).
Sabemos que esse Projeto não apresenta um ideal universalizador sobre os
diretos indígenas, uma vez que, todas as políticas indigenistas são construídas pelos
brancos dentro de uma sociedade que em sua lógica ocidental desconhece as relações
grupais e solidárias em que se sustentam as relações desses povos. Ainda nas palavras
de Bonin e Stefanello (2013, p. 123) “[...] ainda que o novo Estatuto contenha
importantes mudanças, o mesmo não deixa de ser reflexo da política indigenista
produzida pela sociedade dominante e excludente que impera nas relações de poder,
seja no Congresso Nacional ou em diversos tribunais.”
Todavia é importante destacar os avanços do Projeto de Estatuto dos Direitos
dos Povos Indígenas em relação ao Estatuto de 1973.
Art. 6º. A política de proteção dos povos indígenas e promoção dos
direitos indígenas terá como finalidades:
I - garantir aos indígenas o acesso aos conhecimentos da sociedade
brasileira e sobre o seu funcionamento;
II - garantir meios para sua auto-sustentação, respeitadas as suas
diferenças culturais;
III - assegurar a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida
e de subsistência;
IV - assegurar o seu reconhecimento como grupos etnicamente
diferenciados, respeitando suas organizações sociais, usos, costumes,
línguas e tradições, seus modos de viver, criar e fazer, seus valores
culturais e artísticos e demais formas de expressão;
V - garantir a posse e a permanência nas suas terras e o usufruto
exclusivo das riquezas dos solos, rios e lagos nelas existentes;
VI - garantir o pleno exercício dos direitos civis e políticos;
51
VII - proteger os bens de valor artístico, histórico e cultural, os sítios
arqueológicos e as demais formas de referência à identidade, à ação e
à história dos povos ou comunidades indígenas;
VIII – proteger os povos em risco de extinção, em situação de
isolamento voluntário ou não contatados (BRASIL, 2009, p.2).
Em meio aos avanços apresentados pelo Projeto de Estatuto dos Direitos dos
Povos Indígenas, Bonin e Stefanello destacam o respeito e a não restrição dos indígenas
em todos os espaços públicos por motivo dos trajes e pinturas, assegurando assim a
manifestação cultural desses povos. O Projeto também propõe definições para Povos
Indígenas que são definidos como coletividades de origem pré-colombiana,
apresentando particularidades culturais, tendo uma identidade e organização social
própria. Para a definição de Comunidade, entende- se como um grupo humano local
com um ou mais povos tendo uma organização própria, e como Indígena, é aquele que
se considera pertencente a um povo ou comunidade e que é reconhecido como tal por
seu povo, enquanto o Estatuto de 1973 apresenta as definições de Índios ou Silvícolas e
como Comunidade Indígena ou Tribal, classificando- os como isolados, em vias de
integração ou integrados (Bonin e Stefanello 2013). Nesse sentido, é respeitável
reconhecer os progressos apresentados pelo Projeto.
O governo brasileiro recentemente aprovou em 2010 o Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH III), com o intuito do Estado brasileiro, assumir os direitos
humanos em sua universalidade, interdependência e indivisibilidade como política
pública. Ele expressa avanços na efetivação dos compromissos constitucionais e
internacionais com direitos humanos e resultou de amplo debate na sociedade e no
governo. Tal programa dedica um capítulo específico para os povos indígenas.
O Decreto n° 7.037 de 21 dez 2009, atualizado pelo Decreto nº 7.177 de 12 de
maio de 2010, elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, define o Programa Nacional dos Direitos Humanos – PNDH 3. No eixo
orientador III: Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdades, Diretriz 9.
Combate às desigualdades estruturais, encontramos o objetivo estratégico II: Garantia
aos povos indígenas da manutenção e resgate das condições de reprodução, assegurando
seus modos de vida. Algumas ações programáticas previstas para tal eixo são:
a) Assegurar a integridade das terras indígenas para proteger e
promover o modo de vida dos povos indígenas. Responsável:
Ministério da Justiça; Parceiro: Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
c) Aplicar os saberes dos povos indígenas e das comunidades
52
tradicionais na elaboração de políticas públicas, respeitando a
Convenção n° 169 da OIT. Responsável: Ministério da Justiça.
Parceiro: Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
l) Adotar medidas de proteção dos direitos das crianças indígenas nas
redes de ensino, saúde e assistência social, em consonância com a
promoção dos seus modos de vida. Responsáveis: Ministério da
Educação; Ministério da Saúde; Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome; Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República. Parceiro: Fundação Nacional do Índio
(FUNAI). (BRASIL, 2009, p. 88-90).
Também, destacamos o compromisso coletivo assumido por nações,
organizações nacionais e internacionais e sociedade civil, durante a Conferência das
Nações Unida para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, no Rio de janeiro,
na construção da Agenda 21 Global, que em seu capítulo 26, apresenta reconhecimento
e fortalecimento do papel das populações indígenas e suas comunidades, para subsidiar
áreas de programas e base para a ação:
As populações indígenas e suas comunidades devem desfrutar a
plenitude dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, sem
impedimentos ou discriminações. Sua capacidade de participar
plenamente das práticas de desenvolvimento sustentável em suas
terras tendeu a ser limitada, em consequência de fatores de natureza
econômica, social e histórica. Tendo em vista a interrelação entre o
meio natural e seu desenvolvimento sustentável e o bem estar cultural,
social, econômico e físico das populações indígenas, os esforços
nacionais e internacionais de implementação de um desenvolvimento
ambientalmente saudável e sustentável devem reconhecer, acomodar,
promover e fortalecer o papel das populações indígenas e suas
comunidades (AGENDA 21, 1992, p.373).
Outro elemento importante sobre a construção dos direitos indígenas que deve
ser lembrado, diz respeito aos movimentos indigenistas e suas resistências diante das
lutas travadas nos mais diversos espaços.
Segundo escritos de Terena (2013) o registro do primeiro movimento indígena
no Brasil surgiu no final da década de 1970 e início de 198018, chamado de União das
Nações Indígenas (UNIND). Esse movimento era construído por 15 jovens indígenas e
tinha como “propósito somar com as autoridades tradicionais na busca do bem comum
como a demarcação das terras e as iniciativas na defesa de Povos que sempre tiveram
18Outras entidades desse período: Comissão Pró- Índio de SP, Rio, Bahia e Paraná, Conselho Indigenista
Missionário (CIMI); Centro de Documentação Indigenista (CEDI), além da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que tinha um caráter mais amplo na sua
participação, na defesa dos direitos humanos. (TERENA, 2013. p. 53)
53
um interlocutor, um especialista que falava por eles nas relações interculturais sob o
risco de falsos diálogos ou da manipulação quando os interesses estatais se faziam
presentes” (TERENA, 2013, p.53).
Terena, nos esclarece que a UNIND não nasceu como um movimento ou
organização indígena consolidada, mas se tratava de um grupo de estudantes indígenas
que faziam intercâmbios em Brasília, nos espaços educacionais (colégios e
universidades). Esse grupo se tornou um movimento de resistência indígena no
momento em que o governo militar percebeu que esses jovens, nos espaços de
intercâmbio, traziam em seu discurso uma ameaça aos dogmas e formas de ação
indigenista, desenvolvidas por esse mesmo governo.
É nesse momento de desconfiança, que os militares dirigentes da FUNAI, a
mandos do Conselho de Segurança Nacional decidem desocupar Brasília desses jovens
indígenas, com o argumento de que Brasília seria um lugar atípico para a presença de
indígenas. Diante disso, os 15 jovens indígenas, inteligentes e ‘indisciplinados’
manifestam- se publicamente, em defesa dos direitos humanos, do livre- arbítrio e do
direito poder estudar e morar em Brasília. (TERENA, 2013)
Nesse sentido, é fundamental buscar a garantia do protagonismo indígena dentro
dos movimentos sociais indigenistas que encampam a luta pelos direitos desses povos e
pensar que o primeiro movimento foi protagonizado por jovens indígenas nos espaços
educacionais reafirma a necessidade da participação desses sujeitos nos movimentos de
resistência.
Nos anos de ditadura militar, de cerceamento de toda forma de expressão que
proclamava aversão à ordem, da liberdade e de luta, foram anos de movimentação dos
indígenas e das entidades de apoio. Com o processo da abertura democrática tem- se
também um grande marco para os povos indígenas, A CF de 1988 através da garantia de
um Capítulo específico que demarca os direitos desses povos mostrou o resultado das
organizações das lideranças tradicionais, das entidades e dos aliados na luta pela
garantia dos direitos indígenas, como uma importante conquista.
No decorrer da década de 1980 e 1990 foram surgindo associações e
organizações indígenas com representações regionais e nacionais, dando assim, maior
visibilidade às lutas desses povos. Algumas delas citadas por Terena (2013):
A própria UNIND foi transformada em UNI, nascendo dela o Núcleo
de Cultura Indígena em São Paulo, o Núcleo de Direitos Indígenas em
54
Brasília e o Centro de Estudo e Formação Indígena em Goiânia. Na
região amazônica a Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB), A Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (FORIN), a UNI- Acre, a Coordenação dos
Povos Indígenas de Rondônia (CONPIR) e a Coordenação Indígena
de Roraima (CIR) entre outras, e mais recentemente as Articulações
Indígenas do Nordeste, Pantanal, Sul e Leste, o ITC- Comitê
Intertribal, o Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade
Intelectual (INBRAPI), além do Conselho Nacional da Mulher
Indígena (CONAMI) junto com o grupo de Mulheres Indígenas
(GRUMIN), totalizando mais de 100 organizações indígenas
brasileiras. [...] Todos esses movimentos e organizações são
conhecidas e convidadas para debate e negociações, mas nenhuma
delas ocupa um assento nas instâncias de decisão (TERENA, 2013,
p.54-55).
Diante disso, é fundamental que os movimentos e organizações se solidifiquem
cada vez mais, assumindo novos diálogos com o Poder Público, exigindo espaços nas
instâncias de decisão, cobrando do governo políticas mais universais e eficazes,
garantindo a representatividade indígena, a participação democrática e a efetivação dos
direitos.
55
3 O DESAFIO HISTÓRICO-POLÍTICO DE FORMULAR A POLÍTICA
INDIGENISTA COM A PARTICIPAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS: O
POSICIONAMENTO DO SERVIÇO SOCIAL
Diante dos avanços constitucionais jurídicos apresentados, é importante refletir
sobre a participação dos indígenas nesses espaços e os desafios encontrados para
efetiva-la, entendendo que a participação desses sujeitos é fundamental para não
construir ações cegas e até mesmo de caráter autoritário, não respeitando a autonomia e
particularidades de cada povo.
Pensar em política indigenista é entender que a garantia do direito dar-se-á
primeiramente através do reconhecimento e demarcação das terras19. É buscar saber
quem são os Povos Indígenas, em quais espaços se encontram, é identificar seus
costumes e tradições, compreender e respeitar as formas de organizações econômicas,
sociais, territoriais, ambientais e sua estrutura social para buscar o desenvolvimento de
uma visão complexa e universal sobre os direitos coletivos desses povos. É preciso
identificar as suas vulnerabilidades e ouvir suas demandas, respeitando a
autodeterminação de cada povo e os específicos modos de vida. Além disso, é
fundamental que esses povos indígenas sejam partícipes em todos os processos de
formulação dessas políticas. Segundo Terena (2013)
A política indigenista não pode ser uma demanda imediata a pressões
ou demandas indígenas pontuais como o Dia do Índio, Dia do Meio
Ambiente, bolsas de estudo, nomeação de um assessor sem autonomia
e poder de decisão, uma fundação sem poder político, pois são
demandas parciais e que não correspondem aos direitos humanos mais
amplos e está contextualizado a um determinado aspecto. [...] Uma
política indigenista deve reconhecer a participação indígena [...]
(TERENA, 2013, p. 58-59).
O Estado brasileiro começou a dar respostas a essas demandas somente no ano
de 1910, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio. O SPI foi um órgão
administrado pelo governo federal em um momento que ainda predominavam antigas
ideias evolucionistas sobre a humanidade e o seu desenvolvimento por estágios, tendo
19“É importante ressaltar que a demarcação é um ato secundário. Ainda que a terra indígena não esteja
demarcada, o fato de existir ocupação tradicional é já é suficiente para que as terras sejam protegidas pela
União” (MARÉS, 2013, p.174)
“A terra indígena se define não pela demarcação, mas pela ocupação indígena, como dispõe a
Constituição. [...] A Constituição ordenou à União que demarque as terras indígenas com a finalidade de
proteger e respeitar os bens de cada povo. Está claro que o direito sobre as terras independe desta
demarcação, que é mero ato administrativo de natureza declaratória” (MARÉS, 2013, p.24)
56
como base uma ideologia etnocêntrica e nas teorias raciais que marcaram o século XIX
até o início do século XX. Em meio a isso, o ordenamento jurídico vigente nesse
período, considerava os índios como indivíduos incapazes, estabelecendo assim, uma
figura jurídica com o objetivo de tutela e incorporando a assimilação forçada desses
povos a sociedade nacional, não respeitando a garantia da reprodução física e cultural
dos povos indígenas. (BRASIL, Política Indigenista no Brasil s/d)
Com a extinção do SPI, devido denúncias de corrupção foi criada a Fundação
Nacional do Índio no ano de 1967. No entanto, a política indigenista do estado
brasileiro continuou a ser conduzida através da tutela e da integração dos indígenas à
sociedade dominante. Esse caráter da política indigenista assumida pelo Estado
reforçava a ideia paternalista, mantendo os povos indígenas submissos e profundamente
dependentes. (BRASIL, Política Indigenista no Brasil, s.d)
Na década de 1980, com o processo de redemocratização do Estado brasileiro e
posteriormente, com o advento da CF 1988, a política indigenista sofreu mudanças
conceituais (como por exemplo, o termo autodeterminação) e jurídicas através da
ampliação dos espaços de formulação dessas políticas, garantindo a participação do
povo indígena na auto-organização política. Nesse sentido, buscou- se extinguir o
caráter de tutela das políticas para a afirmação da autonomia dos povos e a necessidade
de respostas mais efetivas do Estado. Diante desse processo de redemocratização,
Terena aponta que:
A Política Indigenista deve estar gabaritada a partir de novos
parâmetros de desenvolvimento de médio e longo prazo, executada e
concentrada numa agência politicamente forte, com status de
Ministério, capaz de responder as demandas dentro de um plano de
metas com objetivos, prazos e resultados compatíveis (TERENA,
2013, p.62).
Nesse período de mudanças, a própria FUNAI, em sua gestão e atuação, sofreu
uma reestruturação pela necessidade de planejar e construir ações mais eficientes de
acordo com as reais reinvindicações dos povos indígenas.
No ano de 2009, ocorreu a reestruturação da FUNAI a partir do Decreto 7.056,
anunciando mudanças na gestão do Órgão, dividindo as responsabilidades presidenciais.
No entanto, esse decreto gerou graves conflitos com os indígenas por ser um decreto
construído de forma arbitrária sem consulta prévia aos povos indígenas que seriam
diretamente afetados, já que o próprio decreto prevê o fechamento de 24 das cerca de 50
57
administrações regionais do órgão indigenista e de todos os postos indígenas no país,
ocorrendo um grande distanciamento entre a FUNAI e os povos indígenas. (BRASIL,
2007, s.p)
Em entrevista ao Jornal do Senado, o líder indigenista, Carlos Pankararu
afirmou que o decreto "é mal intencionado, uma vez que foi editado no último dia do
ano passado, quando o Congresso Nacional estava em recesso e sem consultar a
população indígena, não respeitando o que estabelece a Convenção 169 da OIT”. O
presidente da FUNAI desse período, Márcio Meira foi alvo de duras críticas vindas
dos povos indígenas, e segundo eles, todo esse processo mostrou ter um caráter de
ditadura. (JORNAL DO SENADO, 2010).
Como resultado de toda problemática gerada em torno deste decreto e das
reinvindicações dos povos indígenas, foram realizadas várias reuniões e, no ano de 2012
foi aprovado o novo decreto Nº 7.778, de 27 de Julho de 201220, revogando o anterior,
garantindo a participação de representações indígenas na decisão. A partir desse
momento ocorreram intensivas cobranças sobre a atuação da FUNAI e sobre as políticas
indigenistas por ela desenvolvidas.
O Estatuto21 da FUNAI, no artigo 2º prevê, entre outros, a garantia e promoção
dos direitos sociais aos povos indígenas, através da participação desses povos e de suas
representações nos espaços que definem suas políticas públicas.
Art. 2o A FUNAI tem por finalidade:
I – proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da
União;
II - formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento
da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes
princípios:
a) reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições dos povos indígenas;
b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações;
c) garantia ao direito originário, à inalienabilidade e à
indisponibilidade das terras que tradicionalmente ocupam e ao
usufruto exclusivo das riquezas nelas existentes;
d) garantia aos povos indígenas isolados do exercício de sua liberdade
e de suas atividades tradicionais sem a obrigatoriedade de contatá-los;
e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras
indígenas;
f) garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos
povos indígenas; e
20Disponível em< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7778.htm>
acesso em 29 dez 2015. 21 Lei no 5.371, de 5 de dezembro de 1967
58
g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações
em instâncias do Estado que definam políticas públicas que lhes
digam respeito; (FUNAI, 1967. Grifo nosso d).
Diante do que prevê o Estatuto, a atuação da FUNAI22 firma-se no entendimento
de que as políticas sociais devem necessariamente prever ações indigenistas que
assegurem em suas ações o respeito e a promoção das especificidades socioculturais e
territoriais dos povos indígenas, por meio do controle social e da participação indígena,
de modo a garantir intervenções nos espaços institucionais de diálogo entre os diversos
sujeitos que atuam no campo do indigenismo e nos processos de formulação das
políticas públicas. (FUNAI, 2013)
Nesse sentido, tendo em vista o que prevê o Estatuto da FUNAI em específico
no art.2 que garante a participação dos povos indígenas em todos os espaços que lhe
afetam, é certo afirmar que ainda existe um longo caminho a ser percorrido a exemplo
da formulação do Decreto 7.056 que consistiu em um processo arbitrário e relações
hierárquicas de poder, desrespeitando assim, direitos já conquistados e garantidos em lei
pelos povos indígenas.
É necessário que exista um diálogo muito amplo com diversos órgãos e setores
municipais, estaduais e federais para o desenvolvimento da política indigenista. Diante
disso, como apresentado pela FUNAI, as ações que buscam promover a garantia aos
direitos sociais dos Povos Indígenas através do diálogo com os diversos órgãos visam à:
Qualificação da política de transferência de renda, em parceria com o
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS),
notadamente o Programa Bolsa Família;
Monitoramento e acompanhamento das ações de saúde executadas
pelo Ministério da Saúde (MS);
Promoção da acessibilidade dos povos indígenas à política
previdenciária, em parceria com o Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS);
Promoção da acessibilidade dos povos indígenas à documentação civil
básica, em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República (SDH/PR);
Acesso ao Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI);
Promoção da acessibilidade à energia elétrica, em parceria com o
Ministério de Minas e Energia (MME);
Distribuição emergencial de alimentos aos povos indígenas em
situação de insegurança alimentar e nutricional, em parceria com o
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a
22 Disponível em< http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/direitos-sociais > acesso em 29 dez
2015
59
Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB/MAPA) e com a
Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai);
Realização de obras de moradia e infraestrutura comunitária, em
parceria com o Ministério das Cidades (FUNAI, 2013, s.p).
Com o objetivo de estruturar e garantir espaços de decisão que promovam a
participação indígena foi criado o Conselho Nacional de Política Indigenista23pelo
Decreto nº 8.593, de 17 de dezembro de 2015, no âmbito do Ministério da Justiça. Esse
novo Conselho garante maior representatividade de órgãos do poder executivo federal,
representantes de povos e organizações indígenas em todas as regiões (de 20 para 28
representantes), sendo responsáveis pela elaboração, acompanhamento e implementação
de políticas públicas, voltadas aos povos indígenas. (FUNAI, 2015, S.P)
A construção e realização da 1º Conferência Nacional de Política Indigenista
realizada nos dias 17 a 20 de novembro de 2015 em Brasília, com o tem A relação do
Estado Brasileiro com os Povos Indígenas no Brasil sob o paradigma da
Constituição de 198824, também representou um grande avanço em relação à
participação dos povos indígenas. Às 866 propostas construídas em etapas locais e
regionais, aprovadas na Conferência demonstra mais uma vez, a necessidade de
políticas mais efetivas e um posicionamento mais sério e comprometido do Estado
brasileiro. De qualquer modo, construir uma Conferência sobre Políticas Indigenistas na
atual conjuntura demonstra sinais de avanços e apresenta-se mais uma vez, como uma
forma de resistência dos povos indígenas na busca pela proteção dos seus direitos.
A criação do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e
a Política Nacional de Assistência Social (PNAS)25, em 2004, foram os pontos de
partida para o governo federal desenvolver ações direcionadas para os indígenas
visando combater a extrema pobreza. No ano 2005, esse tema foi discutido na V
Conferência Nacional de Assistência Social, em uma Oficina específica, que abordou a
discussão sobre a organização da Proteção Social Básica 26em comunidades indígenas e
23Disponível em < http://www.funai.gov.br/> acesso em 29 dez 2015. 24 Disponível em < www.conferenciaindigenista.funai.gov.br> acesso em 29 dez 2015. 25 A Política de Assistência Social é direito do cidadão e dever do Estado. Deve prover os mínimos
sociais e é realizada através de um conjunto integrado de iniciativa pública e da sociedade através de
Serviços, Programas, Projetos e Benefícios. É ofertada a quem dela necessitar, de forma gratuita e
articulada às demais Políticas Públicas na garantia e acesso a direitos sociais. A Política, a partir de 2004,
estabelece o Sistema Único de Assistência Social- SUAS, para atendimento à população através dos
níveis de Proteção Social Básica e Proteção Social de Média e Alta Complexidade. A Assistência Social é
organizada de forma descentralizada e participativa, financiada e gerenciada pelos três entes federados:
União, Estados, Distrito Federal e Municípios. ( SMAS, 2012) 26 A Proteção Social Básica tem como objetivo prevenir situações de riscos por meio do desenvolvimento
de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina- se à
60
quilombolas. No ano seguinte, com objetivo de dar sequência à essa discussão, o
Conselho Nacional de Assistência Social criou um Grupo de Trabalho para discutir o
tema “comunidades indígenas e quilombolas”. (BRASIL, 2007, s.p)
Diante disso, através da política social, o governo federal vem buscando incluir
os povos indígenas nos programas de transferência de renda, como o Programa Bolsa
Família, o Fome Zero através da distribuição de cestas básicas através de ações de
caráter emergencial e investimentos em produção sustentável de alimentos, através do
Programa Carteira Indígena, desenvolvido em parceria com o Ministério do Meio
Ambiente.
Em novembro de 2005, haviam 28.914 famílias indígenas inscritas no
Cadastro Único do Governo Federal, sendo que destas, 19.091
estavam recebendo benefícios do Programa Bolsa Família. Ainda em
2005, foram distribuídas 277.176cestas de alimentos beneficiando
38.162 famílias em 20 estados. [...] o Programa Carteira Indígena de
execução direta pelas comunidades indígenas em produção sustentável
de alimentos aplicou em 2005 um total de R$ 7.771.102,92, em 203
projetos aprovados e beneficiando 11. 579 famílias (BRASIL, 2007,
s.p).
Além disso, a Assistência Social atua através do Programa de Atenção Integral à
Família (PAIF), Benefício de Prestação Continuada (BPC), Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil (PETI), todos esses programas são desenvolvidos pelo Centro de
Referência da Assistência Social (CRAS)27.
O MDS deu início a implantação dos CRAS nas comunidades indígenas (terras
regularizadas) - CRAS Indígena – com o objetivo tornar a oferta de serviços da proteção
social básica mais próxima aos indígenas como prevê o art.4º da Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS, 1993)28 “IV - igualdade de direitos no acesso ao
atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às
populações urbanas e rurais;”
população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação (ausência de
renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos) e, ou, fragilizações de vínculos afetivos- relacionais
e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiência, dentre outras). A
Proteção Social Básica se materializa através de Serviços, Programas, Projetos e Benefícios. (SMAS,
2012) 27 É uma unidade pública estatal responsável pela oferta de serviços continuados de proteção social básica
de assistência social às famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade social. Constituiu a unidade
efetivadora da referências e contra referência do usuário na rede sócio assistencial do Sistema Único de
Assistência Social- SUAS e de referência para os serviços das demais política públicas. 28www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm
61
Cabe destacar que os indígenas em maior vulnerabilidade social não se
encontram em terras demarcadas, mas fora delas. Os indígenas que vivem em áreas não
demarcadas estão diariamente mais expostos a todas as formas de violência e possuem
maior dificuldade de acesso aos programas e serviços ofertados pelos órgãos do Estado.
Nesse sentido, é fundamental que a instalação dos CRAS indígenas, não se limite a
áreas já demarcadas, buscando assim, maior aproximação com suas demandas.
De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a
Fome (MDS)29, em todo o estado do Paraná, existem doze (12) CRAS indígena, (em
anexo I) todos em terras já regularizadas. Isso significa que existe um grau de
desassistência enorme nas terras indígenas não demarcadas e a pobreza acomete
milhares de indígenas. Segundo Yazbek (2009. p.13) “chama atenção à presença de
indígenas, apesar de representarem, comparativamente, uma pequena parcela da
população em situação extrema pobreza. Os indígenas totalizam 817.963 pessoas no
país, sendo que 326.375 se encontram em extrema pobreza, representando praticamente
quatro em cada dez indígenas (39,9%)”.
Diante da busca pela consolidação da política de assistência social para os povos
indígenas é necessário que se construa um permanente diálogo com esses usuários. É
preciso compreender as especificidades das comunidades indígenas através das suas
diferentes formas de organização social, o que implica em ter que qualificar melhor a
equipe técnica (incluindo profissionais de antropologia nas equipes) para uma melhor
intervenção com esses grupos, buscando sempre promover a inclusão através do
conhecimento, sem fragilizar seus valores éticos e culturais de grande complexidade,
como descrito no Relatório do GT Indígena:
O cuidado no sentido de promover o respeito a valores culturais e a
práticas sociais distintas, evitando intervenções que fragilizem a
regulação social tradicional destas comunidades, exige um amplo
trabalho de qualificação técnica da intervenção, assim como uma
adequada capacitação e composição técnica (BRASIL, 2007, s.p).
Todas as ações delineadas devem ser fruto do diálogo com esses povos, é
necessário que haja respeito a autonomia das comunidades indígenas e consulta às suas
demandas, garantindo assim que a política da assistência social seja eficaz para os povos
indígenas. Como destaca Felipe Brisuela (2002) Líder Mbyá- Guarani da aldeia de
29 Disponível em <http://www.mds.gov.br/suas/guia_protecao/cras-centros-de-referencia-da-assistencia-
social/cras_pr.pdf> acesso em 28 nov 2015.
62
Riozinho- RS, apresentado pela Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social
(STCAS) do estado do Rio Grande do Sul.
O que acaba com o povo indígena? O que acaba com os indígenas é
que o branco, que estudou, muitas vezes quer fazer tudo sozinho. É
isso que acaba com nós Guarani hoje. Porque, se não planeja junto
com a comunidade, a comunidade diz: não é isso que nós queria. Aí,
o que se faz fica tudo perdido. O trabalho fica perdido. Mas quem é
que perde? Quem perde somos nós. Porque o trabalho de vocês está
garantido. No fim do mês, o salário vem. Mas na comunidade
indígena não é bem assim (STACS, 2002, p.18).
O líder indígena segue em sua fala fazendo apontamentos sobre a política da
assistência social atentando para a necessidade do profissional assistente social e equipe,
defender a garantia do território além da garantia de programas e benefícios.
A assistência social tem a oportunidade de melhorar, mas como o
nosso povo quer. Branco escreve. Mas o Guarani vai adiante. Vocês
só acompanham. Vocês que fizeram as leis e não o índio. Por isso
vocês precisam explicar a lei, que a comunidade fica sabendo. A
comunidade precisa saber. Também precisa falar com as famílias. [...]
A assistência social não tem que dar o remédio e o alimento. É
importante que entenda o que é vida para o Guarani. Será que é
comida? Onde se prepara os alimentos? O alimento é a alegria, a
felicidade, a paz, a energia do povo. Os povos indígenas sabem como
agir. Não se pode fazer uma política sozinho, mas frente a frente. Mas
também é necessário pedir o principal, que é a demarcação das terras
(STACS, 2002, p.18).
Para o profissional Assistente Social que atua diretamente com as demandas
apresentadas pelos povos indígenas, lutar pela demarcação das terras indígenas, além
das ações imediatas e emergenciais, além dos programas, projetos e benefícios
assistenciais faz referência à luta e defesa por um novo projeto societário, tendo em
vista que, demarcar todas as terras indígenas reivindicadas pelos indígenas hoje é
utópico dentro do nosso atual modo de produção capitalista. Esse modo de produção
hoje vigente exclui os povos indígenas e proclama o latifundiário como dono das terras
brasileiras.
De acordo com o Ministério da Educação (MEC) e da Organização das Nações
Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) “os programas assistenciais não
são suficientes para resolver um problema que é estrutural e que reflete a necessidade de
solucionar os problemas de terra e de autos-sustentação econômica” (MEC/Unesco,
2006, s.p).
63
Além da atuação dos profissionais, é necessário que a Política Nacional de
Assistência Social construa programas com ações diferenciadas para essa demanda na
(concessão e aplicação) garantia dos benefícios assistenciais. É um equívoco, por
exemplo, utilizar o critério de renda per capita nas comunidades indígenas, tendo em
vista que as relações familiares e de parentesco dos povos indígenas diferencia-se da
família nuclear não indígena. Para universalizar direitos é necessário que se construa
uma lógica de respeito às especificidades dos usuários.
A atuação do profissional assistente social (em conjunto com equipe
multidisciplinar) precisa distinguir- se de todas as outras práticas autoritárias e
clientelistas desenvolvidas e direcionadas aos povos indígenas. Nesse sentido Yazbek
(2009) destaca a contribuição dos (as) profissionais.
Os assistentes sociais vêm, e muito, contribuindo, nas últimas
décadas, para a construção de uma cultura do direito e da cidadania,
resistindo ao conservadorismo e considerando as políticas sociais
como possibilidades concretas de construção de direitos e iniciativas
de “contra-desmanche” nessa ordem social injusta e desigual
(YAZBEK, 2009, p.161).
A relação do Serviço Social, da prática do (a) profissional direcionada às
demandas indígenas precisa estar embasada nos princípios do Código de Ética do/a
Assistente Social.
Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das
demandas políticas a ela inerentes - autonomia, emancipação e plena
expansão dos indivíduos sociais; a defesa intransigente dos direitos
humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo e o empenho na
eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito
à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à
discussão das diferenças; construção de uma nova ordem societária,
sem dominação exploração de classe, etnia e gênero (CEP, 1993).
São os princípios do Código de Ética Profissional do Assistente Social que
direcionam as ações desses profissionais e determina o direcionamento da prática
através projeto ético-político, construído coletivamente pela categoria profissional.
Pensar a prática desse profissional dentro de uma sociedade dividida por classe revela
seu direcionamento político e seus interesses para a construção de um novo projeto
societário ou a manutenção do atual projeto.
De acordo com Braz e Teixeira (2009):
64
Não há dúvidas de que o projeto ético-político do Serviço Social
brasileiro está vinculado a um projeto de transformação da sociedade.
Essa vinculação se dá pela própria exigência que a dimensão política
da intervenção profissional põe. Ao atuarmos no movimento
contraditório das classes, acabamos por imprimir uma direção social
às nossas ações profissionais que favorecem a um ou a outro projeto
societário (BRAZ e TEIXEIRA, 2009, p.189).
O Serviço Social ao atuar na garantia dos direitos da classe trabalhadora, das
populações tradicionais, se posiciona contrário ao atual projeto de sociedade desigual e
a todas as práticas que retiram os direitos já conquistados por esses sujeitos. No
entanto, esse profissional encontra desafios e limites na sua atuação. Como aponta
Behring e Santos (2009):
É necessário compreender, portanto, que, apesar dos avanços
democráticos e da organização de inúmeros sujeitos coletivos e suas
lutas reivindicando direitos, temos que considerar a relação de
determinação posta pela totalidade da vida social. As respostas dadas
aos sujeitos em suas lutas são permeadas por interesses de classes. Em
cada conjuntura, as conquistas e/ou regressão de direitos resultam
embates políticos e, nesse front, os interesses do capital têm
prevalecido. Longe de negar ou desvalorizar as lutas memoráveis pela
realização dos direitos, o que está em jogo é a capacidade de o
segmento do trabalho construir um projeto político emancipatório
frente ao capital, ou seja, lutar por direitos, mas ir além deles
(BEHRING e SANTOS, 2009, p.280).
Diante dessa realidade, de um estado transgressor dos direitos já conquistados
pela classe trabalhadora, encontra-se um enorme desafio para uma atuação
emancipatória dos sujeitos, aqui em específico, dos povos indígenas, o que limita a
atuação prática do profissional assistente social. Esse desafio da prática profissional é
materializado pela desresponsabilização do Estado em relação às políticas sociais
universais, através da redução de gastos sociais, terceirização dos serviços públicos,
subcontratação de profissionais nos postos governamentais o que acaba por consolidar
retrocessos e estagnação das conquistas dos diretos sociais proclamados na CF 1988.
De acordo com Raichelis (2009, p.383) “trata-se de uma dinâmica societária que
atinge as diferentes profissões, e também o Serviço Social, que tem nas políticas sociais
seu campo de intervenção privilegiado”. Nesse sentido, a autora destaca a necessidade
de recuperar o trabalho de base junto à população, na busca da consolidação
democrática dos direitos:
65
O Serviço Social tem uma rica trajetória de trabalho direito com a
população e proximidade com seu modo de vida cotidiano. [...] Sem
abandonar os espaços institucionais como Conselhos e Conferências, é
preciso extrapolá- los e combiná-los com outros mecanismos de ação
coletiva, capazes de impulsionar a participação popular em múltiplos
espaços onde possam manifestar suas visões, expectativas,
necessidades e reivindicações (RAICHELIS, 2009, p. 389-390).
Assim, na atuação direta com os povos indígenas, é necessário incluir o debate
sobre a diversidade cultural dos povos e a participação indígena na formulação das
políticas a eles aplicadas, valorizando-os como sujeitos autônomos neste processo,
viabilizando ao Serviço Social, identificar as reais necessidades indígenas e construir
uma atuação mais condizente para a emancipação desses povos.
Referindo-se a realidade indígena, o grande desafio para os profissionais,
consiste em praticar, de modo permanente, o método da reflexão, vivência,
compreensão, para acompanhar e apreender a totalidade das relações complexas e as
vinculações do movimento histórico vivenciado pelas diversas etnias. É necessário
avaliaras ações desenvolvidas, os determinantes sociais, culturais, econômicos e
políticos que poderão afetar a organização e o modo de vida dos povos indígenas.
Afinal, esses sujeitos lutam para assegurar um modo de vida com outra temporalidade,
identificados pelas tradições culturais e pelas forças da natureza que demarcam práticas
e crenças. Netto (2009) destaca a importância de buscar permanentemente o
conhecimento existente no espaço que o (a) profissional ocupa:
Ao profissional cabe apropriar- se criticamente do conhecimento
existente sobre o problema específico com o qual ele se ocupa. É
necessário dominar a bibliografia teórica (em suas diversas tendências
e correntes, e as suas principais polêmicas), a documentação legal, a
sistematização das experiências, as modalidades das intervenções
institucionais e instituintes, as formas e organização de controle
social, o papel e os interesses dos usuários e dos sujeitos coletivos
envolvidos etc. Também é importante, neste passo, ampliar o
conhecimento sobre a instituição/organização na qual o próprio
profissional se insere (NETTO, 2009, p.668-700).
Diante disso, a formação profissional necessita ser um processo permanente para
a qualificação da prática profissional e que será percebido na leitura das particularidades
das várias etnias, na apreensão das singularidades e dos movimentos que compõe a
66
totalidade de cada território/espaço e que constituem campos de intervenção das (os)
profissionais assistentes sociais.
Nesse sentido, a formação permanente será fundamental para a construção de
novos conceitos e novos modelos de intervenção que tenham como suporte os
fundamentos de uma dada realidade. Como um modelo de intervenção pode-se destacar
o projeto de extensão “Ações socioambientais em defesa dos direitos dos povos
indígenas na Aldeia Tekohá Yhovy- município de Guaíra, PR”, que será descrito no
item a seguir:
3.1 SERVIÇO SOCIAL DA UNIOESTE CAMPUS TOLEDO: A EXPERIÊNCIA DO
PROJETO DE EXTENSÃO - AÇÕES SOCIOAMBIENTAIS EM DEFESA DOS
DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NA ALDEIA TEKOHÁ YHOVY NO
MUNICÍPIO DE GUAÍRA- PR
Pensar o espaço de formação do Serviço Social e seu projeto pedagógico
significa conceber a educação e a sociedade norteada pela construção de um novo
projeto societário, livre da dominação, exploração e opressão de classe, etnia e gênero.
Como afirma Kokie (2009):
Portadoras de uma direção intelectual e ideopolítica, componente
imperativo do projeto profissional, as diretrizes curriculares, base para
os projetos pedagógicos dos cursos de graduação em Serviço Social,
estão pautadas em princípios que na presente quadra histórica indicam
os fundamentos para uma formação profissional desenvolvida com
flexibilidade; rigor teórico, histórico e metodológico [...] apropriação
dos princípios éticos; empenho teórico prático à aproximação aos
carecimentos das classes trabalhadoras (KOKIE, 2009, p. 213).
A formação profissional embasada na teoria social crítica, compreendida através
da relação teoria e prática, aliada ao espaço formativo de interdisciplinaridade e
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão é responsável pela qualificação
crítica e apresenta- se como um espaço de resistência e fortalecimento do projeto ético-
político da profissão.
Nesse sentido, é preciso construir saberes e práticas que buscam a transformação
da realidade na sociedade, pulverizar resultados e investigar novas intervenções. O
espaço da formação profissional possibilita uma aproximação com as demandas
apresentadas fora do espaço formativo, mas que também refletem dentro das instituições
de ensino. É importante demarcar, que essas instituições, dentro da lógica contraditória
67
das relações sociais e dos interesses de classe, por vezes fragilizam e engessam, pelos
processos burocráticos e formais, inúmeras ações planejadas (pesquisa/extensão) que
podem agregar benefícios à sociedade. Diante desse cenário de interesses, pensar dentro
de uma instituição de ensino superior e estabelecer ações fora dela, voltadas à um
determinado grupo, a exemplo dos povos indígenas, demonstra resistência e o
direcionamento político dos sujeitos envolvidos.
Diante do exposto, destaca-se o Projeto de Extensão Ações Socioambientais em
defesa dos direitos dos povos indígenas na Aldeia Tekohá Yhovy- (em anexo II) no
município de Guaíra30, desenvolvido conjuntamente pelo Programa de Educação
Tutorial (PET)31 do curso de Serviço Social e colaboradores durante o ano de 2014 e
2015, que demonstrou ser um novo espaço de fortalecimento, luta e resistência na
defesa de um novo projeto societário.
Contextualizando brevemente o Programa de Educação Tutorial do Curso de
Serviço Social- PET SS, destacamos que, por apresentar o diferencial de ser um
programa temático (Meio ambiente e uso sustentável dos recursos naturais) tem como
objetivo desenvolver novas atividades e experiências pedagógicas interdisciplinares no
âmbito do curso, através da atuação dos bolsistas como agentes multiplicadores de
saberes e de novas práticas, orientados pelo princípio da indissociabilidade entre ensino,
pesquisa e extensão.
Através do desenvolvimento das diversas atividades busca-se uma formação
culta, posição crítica e de participação ativa frente às questões socioambientais. Um
formador e multiplicador de opiniões e de atitudes que promovam o bem estar dos
cidadãos com prudência no trato do meio ambiente, como sendo um lugar de interação
30O município de Guaíra (que significa ‘lugar de difícil acesso’ na língua guarani) situa- se no oeste do
Estado do Paraná, as margens do Rio Paraná e desde os primórdios foi um território pertencente aos
povos indígenas, da etnia Guarani, povos estes, que foram catequizados pelos jesuítas espanhóis e
posteriormente dizimados e escravizados pelos portugueses. Hoje, segundo dados do IBGE (2014) a
população do município de Guaíra é de 32.394 habitantes no território de 560.485 km², tendo uma
economia girando em torno do setor de serviços, comércio e turismo. De acordo com o senso indígena do
IBGE (2010) a população indígena no município de Guaíra é de 454 índios, no entanto, segundo dados
dos Relatórios de Visita Técnica do Ministério Público Federal (2013) já são mais de 1000 indígenas em 8
aldeamentos no município de Guaíra. 31 Foi criado em 1979 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- CAPES, com
o nome Programa Especial de Treinamento- PET, foi transferido no final de 1999 para a Secretaria de
Educação Superior. Em 2004, o PET passou a ser identificado como Programa de Educação Tutorial.
Regulamentado pela Lei n° 11.180, de 23 de setembro de 2005, e pelas Portarias MEC nº 3.385, de 29 de
setembro de 2005 e, nº 1.632 de 25 setembro 2005. Tem como objetivo promover a formação ampla e de
qualidade acadêmica dos (as) alunos (as) de graduação envolvidos (as) direta ou indiretamente como
programa, estimulando a fixação de valores que favorecem a cidadania e a consciência social de todos
(as) os (as) participantes e a melhoria dos cursos de graduação, através do desenvolvimento de atividades
buscando promover a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. (PET, 2008)
68
entre aspectos naturais e sociais. Procura-se, com respaldo na legislação ambiental
atingir as propostas estabelecidas pelo Programa de Educação Tutorial – PET
relacionando suas ações com o curso de Serviço Social atingindo uma sustentabilidade
em âmbito local para de forma gradual avançar para uma sustentabilidade global. (PET
SS, 2008)
O projeto de extensão universitário tem contribuído de modo significativo para a
formação das (os) estudantes e professores envolvidos, tornando- se assim, num
diferencial dentro do processo formativo. Desta forma, através das atividades de
extensão, o programa insere-se nas mais diversas realidades e, em relação ao projeto já
referido, insere-se numa realidade difícil e delicada para os povos indígenas.
No município de Guaíra PR, existem 8 aldeamentos e todos eles encontram
inúmeras dificuldades de sobrevivência devido as péssimas condições de vida. Essas
condições são apresentadas nos Relatórios do Ministério Público Federal, quando no
ano de 2013 realizou visitas em todos os aldeamentos no município. A tabela abaixo
apresenta as aldeias e um breve relato da realidade vivenciada pelos povos indígenas.
QUADRO 2
Tekoha
Guarani
1 ano e 5 meses de ocupação. Encontra-se em situação de litígio. 58
moradores. Relatam que não conseguem emprego, nem como boia-fria.
Não tem acesso à água, luz, moradia e área para plantio. Aldeia tem
péssimas condições de vida. Há ainda o suposto envenenamento e notícia
de vários índios adoecidos. Os materiais de construção são coletados em
lixões. Não conseguem criar animais por falta de água. Como já foi
noticiado pela FUNAI há uma suposta ameaça de morte contra o cacique
Tekohá
Jevy
230 moradores. Encontra-se em situação de litígio. Proprietários:
Eugewerner Durks, Rubens da Silva e outro. Foi determinada a
reintegração, mas houve recurso. Não tem acesso à água e saneamento
básico, a luz foi recentemente instalada e as crianças tem aula em
condições precária dentro da aldeia. Plantam alimentos, mas são
insuficientes assim como a distribuição de cestas básicas.
Tekohá
Karumbe'y
83 moradores. Não se encontra em situação de litígio, no entanto
apresenta péssimas condições de vida para os indígenas. Algumas
residências possuem água fornecida através da SANEPAR, mas o custo
de manutenção inviabiliza que todos tenham acesso à água tratada. Não
existe escola dentro da aldeia.
Tekohá
Marangatu
A ocupação existe há 9 anos e está em processo judicial por ser área da
ITAIPU. Apenas 400 moradores da aldeia, e apenas pequena parcela tem
acesso à agua e luz. Não tem saneamento básico e as condições de ensino
69
dentro da aldeia são péssimas.
Tekohá
Mirim
70 pessoas que ocupam a área desde 2006, e que também se encontra em
situação de litígio, por ser uma área da ITAIPU e de outros dois
proprietários. As condições de vida são péssimas, não tem acesso à luz,
água e saneamento. As crianças não têm escola dentro da aldeia e por isso
as aulas acontecem na casa de reza
Tekohá
Porã
A ocupação existe há 25 anos, sendo que a área foi doada para os
indígenas, mas não possuem documentação.
240 pessoas moram na aldeia. Algumas casas tem acesso a agua e
energia. Existe uma escola com duas professoras na aldeia.
Tekohá
Taturi
33 pessoas ocupam a área que se encontra em situação de litígio por ser
área da ITAIPU e mineradora Andreis. As condições de vida são
péssimas. Não tem acesso á água, luz, saneamento e não possuem escola
dentro da aldeia.
Tekohá
Yhovy
Ocupam a área desde 2009, que se encontra em situação de litígio,
resistindo à reintegração de posse. Hoje são mais de 300 pessoas que
moram na aldeia. Uma escola com melhores condições está na fase final
de construção. Poucas casas têm acesso à luz e água. Saneamento básico
não existe. (MPF, 2013).
A aproximação aos dados apresentados pelo Ministério Público Federal de
Guaíra, diagnosticando a realidade dos indígenas e, através do projeto de extensão, com
a comunidade Tekohá Yhovy em específico, possibilitou maior apreensão da realidade e
das inúmeras dificuldades encontradas pelos indígenas. Além do relato acima, os
indígenas encontram sérias dificuldades no acesso aos serviços públicos, programas e
benefícios. As cestas básicas distribuídas a cada dois meses através do Programa Brasil
sem Miséria sofre constantes atrasos na entrega (de até três meses), isso acaba
provocando graves consequências, como por exemplo, desnutrição. O próprio
município não faz a devida distribuição de cestas básicas através da assistência social,
quando apenas 12 famílias das 48 que hoje moram na aldeia, recebem cestas mensais.
O Programa Bolsa Família, benefício garantido à maioria das famílias, auxilia
diante dessa realidade, mas acaba sendo insuficiente quando as cestas atrasam, quando a
maioria dos indígenas não consegue emprego na cidade, quando precisam comprar
material escolar para as crianças. As próprias condicionalidades exigidas por esses
programas dificultam o acesso dos indígenas, rotatividade das famílias, falta de
70
documentação, permanência na escola, enquanto não existe nenhum incentivo e
investimento do poder público para a educação dentro da própria aldeia a fim de
preservar a língua materna.
Além de não existir incentivo para a educação dentro da aldeia, existem
situações de racismo sofridas pelas crianças e jovens indígenas que frequentam as
escolas da rede municipal e estadual. Não é difícil entender o porquê de existir evasão
escolar nessas situações.
É diante dessa realidade desafiadora que o projeto de extensão se insere e, uma
das ações iniciadas pelo projeto e a mais significativa na avaliação das lideranças
indígenas do referido aldeamento, é a construção da nova escola da comunidade
indígena, sua estrutura física, social e pedagógica. Pensar esse espaço dentro da aldeia,
para a formação das crianças indígenas, significa posicionar-se politicamente, em favor
da preservação dos saberes tradicionais da cultura indígena, significa alinhar- se ao
posicionamento da categoria profissional manifestas pelos conselhos (federal/estadual).
O projeto também avançou em 2015, no aprofundamento de estudos sobre
direitos humanos dos povos indígenas e do movimento regionalizado de luta do povo
guarani por seus direitos de acesso á terra, cultura e organização social. Ao longo do
desenvolvimento das atividades, foi alcançada uma ótima participação dos membros da
comunidade indígena nas atividades e também da participação discente nas atividades
agendadas e, destacamos a participação interdisciplinar de acadêmicos e docentes
envolvidos com cursos de graduação e pós-graduação de diferentes áreas.
Muitas foram às dificuldades encontradas para desenvolver as atividades, como
por exemplo, recurso para materiais, mantimentos, transporte e apoio dos órgãos
responsáveis. Essas dificuldades demonstram a fragilidade da estrutura e dos
investimentos na educação e muitas vezes acabam refletindo nas ações desenvolvidas.
No entanto, sabemos que a responsabilidade é grande, diante da omissão do Estado, das
constantes violações de direitos que acometem esses povos, o projeto de extensão
desenvolvido torna-se um diferencial na realidade desses indígenas. Como afirmam as
lideranças indígenas da Aldeia Tekohá Yhovy e, que fundamenta a proposição
extencionista da UNIOESTE, é preciso lutar e resistir diante de tanto retrocesso e
desinteresse no nosso país.
[...]Nós caciques não lutamos pela terra pra nós. São para as crianças
que futuramente crescerão e futuramente precisarão de um espaço.
71
Nosso principal objetivo por querer a terra é a gente não perder a
nossa cultura. A cultura é uma única coisa que sobrou pra nós, o resto
já foi tirado de nós. Está se tentando tirar mais ainda que é a cultura
que a gente ainda tem. Muitas vezes a gente é julgado como um povo
que não conhece mais a cultura, mas talvez a culpa seja da falta de um
espaço, da falta de uma aldeia demarcada, pra gente ter a nossa
própria autonomia. Porque se a gente se misturar com os brancos, que
são a sociedade de vocês, se a gente se misturar, sair, ter que viver na
cidade, aí o nosso povo vai sumindo pouco a pouco. A nossa língua
vai se perdendo. Não tem como a gente ir lá no meio da rua e dançar e
fumar o cachimbo... os brancos vão dizer que nós estamos todos
bêbados, por isso nós estamos dançando. A gente precisa de um
espaço onde a gente possa ser guarani. Do jeito que a gente é. Nosso
motivo é bem simples, a gente não quer que a nossa cultura, o nosso
ser, se perca (MPF, 2013, p. 2).
Para os povos indígenas, também é preciso buscar estratégias para continuar
sobrevivendo nessas terras brasileiras e a religião tem sido o grande alicerce na luta
diária. O relato da vice-cacique e professora da aldeia Tekohá Yhovy, participante do
projeto de extensão em 2014 e 2015, constante no relatório das atividades de 2016, faz a
avaliação das dificuldades vivenciadas e em contrapartida, a resistência que a cultura
indígena sempre tem demonstrado.
A religião, a cultura sempre foi uma estratégia sem duvida nenhuma,
desde muito tempo atrás até hoje, por mais que nessa região a gente é
visto como se nós não fossemos indígenas, nós somos vistos de forma
que a gente não sabe mais, não conhecemos mais a nossa religião, a
nossa cultura, e, internamente dentro da aldeia é essa estratégia que a
gente usa, a gente mantém o nosso cântico, nosso canto, rituais, não
somente pra usar como resistência, mas sim é um ritual em favor do
planeta terra, porque nós Povo Guarani, não é por querer
simplesmente brigar, não simplesmente por querem tirar terra que hoje
se diz que é dos brancos, dos fazendeiros, mas nos sabemos que a
América Latina inteira era dos povos indígenas, e de certa forma a
gente mantém nosso ritual que é pra além da nossa luta, além de
preservar ela é a favor do mundo que nós povo guarani nos
preocupamos com o futuro do planeta terra. A cultura e a religião é
uma estratégia ao qual os brancos por mais que façam pesquisas e
outros meios de procurar desvendar a religião e a cultura indígenas
eles nunca vão conseguir, porque nos somos da terra, nos fomos feitos
da terra, nosso corpo é terra, não é que a terra seja nossa, mas os
brancos não tem como tirar a gente, não tem como tirar os povos
indígenas da terra, porque nos pertencemos a ela (UNIOESTE, 2015,
s.p).
A vice-cacique segue seu relato avaliativo, apontando as dificuldades
enfrentadas quando pensa sobre os direitos e o modo de vida do seu povo.
72
Os brancos destruíram, os brancos destruíram até os parentes, nossos
irmãos que Deus deixou com o corpo de uma árvore, de um animal, os
tigres eles são rezadores, os leões são rezadores e isso dói quando a
gente pensa nos direitos, quando a gente pensa em terra, em uma
demarcação, tudo isso dói na gente, eles destruíram muito de nós já, o
nosso sangue está espalhado, está misturado a essa terra e por isso que
eu digo que os brancos nunca vão entender a mente, o pensamento,
eles nunca vão entender o ser indígena, o porque que os indígenas
vivem desse jeito, porque os indígenas não trabalham pra ganhar
dinheiro, eles não trabalham pra lucrar, eles não economizam
dinheiro, todas essas coisas os brancos nunca vão entender, somente
nós enquanto indígenas nos sabemos e entendemos por que nos temos
que viver assim, porque não podemos explorar o meio ambiente pra
lucrar em cima, porque ai a gente vai tá destruindo o nosso próprio
parente (UNIOESTE, 2015).
A luta continua, os povos indígenas querem paz, respeito e dignidade. E essa
realidade só vai mudar quando a sociedade se transformar, por isso, precisamos lutar
por uma nova sociedade, justa e libertária que respeite o modo de vida desses povos.
A terra que a gente reivindica hoje não é pra nos lucrar em cima, não é
pra fazer grandes lavouras e depois começar a comercializar não é pra
isso que a gente quer terra, a gente quer terra pra cuidar, pra recuperar
o meio ambiente que foram perdidos e pra que meio ambiente seja
recuperado não é difícil, é só você deixar ela abandonada, por mais
que os brancos vão nos julgar dizendo que esses índios são
vagabundos, não trabalham, mas eles, talvez pros fazendeiros, pros
ruralistas o meio ambiente não seja o mais importante pra eles, mas
pra gente é, então é pra isso que a gente quer a terra, pra recuperar um
pouco das árvores que já foram mortas, das bilhões e bilhões de
arvores que já foram destruídos, que foram mortas e que de certa
forma a mãe natureza ela possa ter um pouquinho de paz, que desde o
dia que nos fomos perseguidos eles também estão sendo perseguidos,
então a gente busca paz pra aqueles que já se foram, dos humanos
indígenas que já se foram, que por aqui forma mortos a muito tempo e
também a gente procura paz pra mãe natureza que também vem
sofrendo da mesma forma que a gente tá sofrendo e eles vão sofrendo
até que os povos indígenas sejam perseguidos e a mãe natureza só vai
descansar no dia em que os indígenas não forem mais perseguidos,
não forem mais feitos de escravos, não forem mais mortos,
injustiçados , porque os indígenas que forma mortos é como uma
árvore que é cortada , simplesmente corta, arrebenta a raiz e acaba por
isso e pessoas indígenas que são mortos pelos brancos também é
assim, é igualzinho a arvore que é arrancada do chão, porque nada é
feito quando os índios são mortos, acaba por isso mesmo , ninguém
faz nada, finge que não aconteceu nada, finge que foi uma coisa atoa
por ai e tentam escondem várias coisas e escondem mesmo , por mais
que a gente procure correr atrás a gente corre atrás e nada é feito e
uma das estratégias que a gente pensa é que se essa PEC 215 for
aprovada nós mesmos faria a demarcação da nossa terra com as nossas
próprias mãos, não ia ser matando alguém, mas fazendo limite,
delimitação com a construção de casas da onde a gente queria que
73
fosse a nossa terra a gente ia fazendo cerca com as nossas próprias
casas e dessa forma que a gente ia fazer nossa própria demarcação
(UNIOESTE, 2015, s.p).
Esse relato demarca a posição do povo guarani, um povo que não recua, mas luta
e permanece reivindicando seus direitos. É preciso ouvir essa demanda, assumir o
compromisso e junto a eles, lutar por um novo projeto societário. No entanto,
afirmamos que a maior responsabilidade em dar respostas a esses sujeitos é do estado,
compreendendo que esse próprio estado é o maior violador dos direitos da classe
trabalhadora e dos grupos tradicionais.
Diante disso, devemos também, enquanto sujeitos dessa história, construir
valores que tenham por objetivo a emancipação humana e assim alcançar uma nova
sociabilidade. Segundo Tonet (2005, p.144) “este objetivo, a emancipação humana, é
sinônimo de liberdade plena e porque, neste momento histórico, é não só uma
possibilidade real, mas também uma necessidade imperiosa para a humanidade”.
A partir do projeto de extensão da Unioeste, tendo-se como princípio a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, e do arcabouço teórico apreendido
durante a formação no curso de Serviço Social foi possível conhecer e refletir mais
profundamente sobre a realidade desse grande povo e, assumir o compromisso para que
de fato os direitos sejam respeitados em sua universalidade.
74
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Lembrem- se que a revolução é importante e que cada um de nós,
sozinho, não vale nada. Sobretudo, sejam capazes de sentir, no mais
profundo, qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em
qualquer parte do mundo. É a qualidade mais linda de um
revolucionário” (CHE).
Deparar- se com a realidade dos povos indígenas, e encontrar nela, diante de
tanta violência expressa sem medida em suas várias formas, tamanha resistência e luta
pela garantia da sobrevivência da sua cultura, seu modo de vida opondo- se as
exigências do atual modo de produção capitalista é acreditar na revolução, na
construção de uma nova sociedade, na terra sem males. Como diz Galeano, é a utopia
que nos permite seguir andando com vistas a um novo horizonte, justo e plenamente
livre.
É diante dessa realidade desafiadora, contraditória e complexa que se impõe a
necessidade de assumir um direcionamento social capaz de transformar a realidade
desses sujeitos, através de um olhar crítico para compreender a totalidade e as
particularidades das relações e determinações culturais, componentes do modo de vida
de cada etnia, neste trabalho em específico, do povo guarani.
Através deste estudo afirmamos que a maior demanda apresentada pelos povos
indígenas é a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas e, isso requer do (a)
profissional que atua nesse campo, práticas que possam reafirmar a necessidade da
garantia desse direito originário para que se consiga garantir a universalidade dos
direitos desses povos.
Diante do resgate histórico realizado nesse estudo, é possível perceber a
dimensão do desafio que se apresenta frente às dificuldades e obstáculos que tem suas
origens na formação e consolidação política e econômica do nosso país, na estrutura
fundiária do espaço agrário, que possui seus pilares afundados em estruturas
eurocêntricas e imperialistas de economias desenvolvidas e que, acabam por ditar regras
em nossas terras. Em consequência, essas influências refletem na realidade dos povos
indígenas do nosso país quando, práticas (institucionais ou não) conservadoras de ranço
colonialista são direcionadas às demandas apresentadas pelos povos indígenas, não
respeitando modo de vida, territorialidade, autonomia, espiritualidade e particularidades
de cada etnia que hoje ainda sobrevive e resiste.
75
Esse também é um grande desafio para a construção de uma política indigenista
eficaz no nosso país, primeiro porque não existe política indigenista que atenda a
universalidade dos direitos desses povos sem antes respeitar a territorialidade e
demarcar todas as terras indígenas, segundo pelo fato de que, para construir uma
política eficaz é necessário garantir a participação dos povos indígenas na sua
formulação, inclusive, esse direito está garantido constitucionalmente. Nesse sentido, o
desafio é pratica-lo.
Não é possível negar os avanços conquistados pelos indígenas e movimentos
indigenistas de resistência sobre a proteção dos seus direitos, tanto no plano
internacional como nacional, conforme apresentado no segundo capítulo deste estudo.
No entanto, são avanços que apontam a necessidade do fortalecimento de políticas e
práticas direcionadas a esses povos, tendo em vista que, frente à atual conjuntura, são
insuficientes para resolver os problemas enfrentados pelos povos indígenas, que são
estruturais desse modo de produção capitalista.
Destacamos a importância do trabalho realizado pelos (as) profissionais
assistentes sociais diante dessa realidade, enfatizando o compromisso assumido pela
categoria profissional com a defesa intransigente aos direitos das minorias exploradas e
marginalizadas, compreendendo que a questão indígena tem extrema importância nas
discussões e debates inseridos na mesma. Assim como na busca de efetiva realização
dos princípios norteadores dos direitos dos povos indígenas, configurados como
cidadãos brasileiros detentores de direitos, garantidos, como já expomos, em vários
documentos, leis e decretos. Devemos assim, como categoria, assumindo nosso
compromisso ético político, reafirmar nosso dever com esses povos, na luta por uma
sociedade mais igualitária e menos excludente, livre de todas as formas de opressão e
exploração.
É importante lembrar que este trabalho e seus resultados serão potencializados
através da relação interdisciplinar, agregando experiências com outros profissionais de
outras áreas que atuam nesse campo, garantindo maior efetividade das políticas
indigenistas desenvolvidas, tendo sempre em vista que o horizonte a ser alcançado é a
demarcação das terras indígenas. Para isso, é essencial a utilização de métodos que
realmente garantam a participação ativa dos povos indígenas. É através dessa
participação que, as lutas desses povos pelos seus direitos devem alcançar maior
visibilidade, transformando olhares e ações, desmentindo falácias sobre as condições de
vida dos indígenas.
76
Diante dessas considerações, finalizo essa etapa do estudo, sinalizando que é
somente o início de muitos outros trabalhos que sempre irão buscar a valorização e o
respeito à cultura de todos os povos indígenas. Afirmo que este trabalho não se resume
ao que está escrito, mas significa em todos os sentidos à dedicação pela luta com desejo
revolucionário, buscando a garantia dos direitos indígenas através da vivência.
HASTA LA VICTORIA, SIEMPRE. (CHE)
77
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