Angela Almeida - Estética do Sertão - imagens e poieses do nordeste do Brasil
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6 Congresso SOPCOM 3527
Esttica do Serto: imagens e poieses do nordeste do Brasil
Angela Almeida
Resumo
Este paper prope uma discusso sobre a esttica do serto brasileiro, pensada a partir das
expresses plsticas e literrias produzidas pelo homem comum da regio. Imagens fotogrficas,
vdeos e textos so alguns dos recursos adotados na anlise dessa poiesis. Como mtodo de
apreenso dessa singular cultura visual, adota-se o religar entre lugares, arte e pensamento.
A porta do serto aberta aqui mgica, festiva, potica, triste, rida, mtica;
construda com rimas, sonhos, cores, santos, demnios, pedras, morte e vida. Evoca a
msica que vem dos tambores, dos pfanos, das violas e das rabecas. Exibe trajes com
bordados coloridos, a chita, o couro trabalhado dos gibes, os mantos dos reis e as
composies bricoladas com retalhos e fitas coloridas. Esse serto apresentado ressalta a
riqueza excessiva de um imaginrio repleto de animais bizarros, anjos, demnios e
homens que sentam mesma mesa, numa espcie de confraria mgica.
Trata-se de um serto de uma paisagem com vegetao quase rasteira, formando
uma massa de cor ocre-terra, ocre-vegetao, que se estende e oprime os fios de espelhos
dgua que insistem em correr entre as terras secas. do contraste entre essa natureza
rida e o homem que a habita que nasce a esttica do serto, vista a partir das imagens
plsticas e poticas que ele ( o homem) cria como elementos que ora complementam ou
rivalizam com sua geografia.
Aqui assumo uma escrita como um fluxo esquizo (termo usado por Deleuze
falando da escrita de Guattari [Deleuze,1992-p.24]), onde vou misturando e dialogando
com obras plsticas, obras literrias, imagens, narrativas, histrias de vida, sussurros,
rimas, poticas do sertanejo, num tempo s vezes no-linear, ou at mesmo num tempo
mtico.
Apesar desse texto ser expresso em linhas, h nele muito de referncias no que
Viln Flusser (2007-p103/104) coloca como pensamento expresso em superfcies. Para
ele, ler as palavras indica codificar uma estrutura imposta, o prprio domnio dos cdigos
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de alfabetizao e que as imagens se colocam num campo de certo modo mais livre, no
campo do olhar. Flusser diz que: A epistemologia ocidental baseada na premissa
cartesiana de que pensar significa seguir a linha escrita, e isso no d crdito fotografia
( a imagem [crivo meu]) como uma maneira de pensar(2007-p.111).
Tento assim ir estabelecendo laos entre a cincia e a arte, entre o pensamento
racional e o intuitivo, porque como argumenta Merleau Ponty (2004-p.13): A cincia
manipula as coisas e renuncia habit-las.[...] Ela , sempre foi, esse pensamento
admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como
objeto em geral, isto , ao mesmo tempo como se ele nada fosse para ns e estivesse no
entanto predestinado aos nossos artifcios. Como diz Conceio Almeida (1997-p.25):
Manda quem pode, obedece quem tem juzo. Esse aforismo, cujo sentido
marcadamente autoritrio, pode ser metamorfoseado nos limites de um pensamento mais
libertrio.
E como no serto nada est totalmente organizado em estruturas de compndios
ou com etiquetas que decodificam, partida, o que o esttico, a narrativa aqui no se
estabelece como linear, racional, fora do ser humano. Ela incorpora as incertezas,
certezas, o delirante, o imaginrio. Assim o caminho se torna spero, bifurcado, diverso
e afinado com a complexidade do mundo, como a travessia descrita por Euclides da
Cunha sobre a caatinga: ...todas as variedades cristalinas, e os quartzitos speros, e os
filades e calcreos, revezando-se ou entrelaando-se, rejuntando duramente a cada passo,
mal cobertos por uma flora tolhia dispondo-se em cenrios em que ressalta,
predominante, o aspecto atormentado das paisagens (s/d-p.26).
O argumento central dessa narrativa se posiciona na relao de oposio e
complementaridade entre falta e excesso, padro e variao, contingncia e criao que
so elementos tambm da esttica do serto.
Assumir o desejo como elemento norteador desta narrativa ensastica de
compreenso do serto optar por um solo frgil/forte, caracterizado por certezas e
incertezas, ordens e desordens, determinismos e acasos, fixao e vertigem, serto e
mundo, vida e morte. Porque o serto paradoxal, antagnico. terra de ningum,
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glauberianamente deus e o diabo na terra do sol, contraindo a fatalidade e o acaso.
Terra de Lampio e Antnio Conselheiro, Padre Ccero e Corisco, de caatinga e estepe,
de pedras e cristais. Terra que bebe o sangue de santos, mrtires, beatos, profetas e do
homem comum que nela pisa.
Esse o Serto que emerge do meu olhar flneur e da relao de conhecimento
que tenho sobre ele. A pesquisa (como pensamento construdo), como ato intencional e
sistemtico de construo da realidade, vem aqui se acoplar as imagens de um serto
potico, lrico, imaginante.
certo que, na cincia, explicamos esse mundo, sobretudo por meio de palavras,
mas as palavras nunca podero desfazer o fato de estarmos imbricados pela expresso do
olhar. Por outro lado, a maneira como vemos as coisas afetada pelo que sabemos ou
pelo que acreditamos. O olhar antes de tudo um ato de padecimento do ser ou um ato
de escolha condicionado pela expresso, como quer Dietmar Kamper (apud.
Almeida.1997-p.131).
Toda escrita incorpora uma forma de ver. O modo pelo qual as pessoas olham
uma obra de arte afetado por uma srie de premissas apreendidas anteriormente sobre
arte, suposies a respeito de beleza, verdade, civilizao, forma, perspectiva,
conhecimento da historia da arte, gosto, etc. Da mesma forma, quando vemos uma
paisagem, situamo-nos nela e, ao descrev-la, resgatamos um capital cognitivo cheio de
imagens e experincias vividas ou projetadas imaginariamente.
Assim, o conjunto de fragmentos que compe meu dizer/sentir sobre a esttica do
serto se assemelha a um objeto fractal de mltiplas faces simtricas, ainda que
descontnuas. Cada uma dessas faces existentes nela seja a vegetao, a estamparia, os
castelos, a escultura, a arquitetura primitiva, os mitos, os sonhos, a memria contm a
mesma e outra imagem do recndito do homo-sapiens-demens do serto. Cada um desses
recortes desse mundo sertanejo diz uma s e mesma coisa: a condio humana expressa
pelo homem do serto responde com exuberncia aridez, falta e ao infortnio da vida.
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6 Congresso SOPCOM 3530
Cho do Serto
Cada vivente tem o seu serto.
Para uns so as terras alm do
horizonte e, para outros,
o quintal perdido da infncia.
Oswaldo Lamartine
Pelo ngulo de um primeiro vo nas asas de um pssaro podemos observar a vasta
terra ocre que se confronta com a linha do horizonte, como num corte de navalha. Um
horizonte de um cu azul lmpido, claro, quase sem nuvens que contrasta com os tons
secos das terras esturricadas.
No entardecer, o sol que durante o dia foi claro, passa a derramar um vermelho fogo
claro sobre as pedras quentes, transformando o serto num mundo-ouro com cheiro de
enxofre envenenado. Diante de olhos desatentos pode surgir a ona Caetana, que
espreita e se mostra entre os espinhos. uma fera bela, hostil e feroz que despedaa os
homens com suas garras. um dos smbolos/mito da morte no serto.
Nesse serto de um cu azul lmpido e translcido podem tambm surgir os anjos
mensageiros invisveis, s vezes, visveis. Os anjos das tradies monotestas judaica,
crist e mulumana que aparecem e desaparecem, passam no silncio ou levantam vo
nessas terras estranhas banhadas de sol escaldante. Dois anjos um vestido de prpura e
o outro de jacinto sopram a beleza dos contrastes nessa terra do sem-fim, os desejos de
gua, os sonhos das guas dormentes, melanclicas, lentas ou calmas. Podem tambm
deslizar e passar nos sopros de ar ou de gua, trazendo as noites amenas para o serto.
Entretanto, sempre nesses contrastes que no serto os mitos se mostram.
O serto essa terra quente que arde no corao, que tem cheiros, cores e rudos
singulares. Expira e derrama imagens saturadas de repulsa e seduo, medo e paixo,
espinhos e flores silvestres. Tem gosto de riso e solido, gosto do acaso da vida, dos
enganos, do inesperado, da dor da terra esturricada e de toda morte desassossegada.
Nessa paisagem bela e desoladora do serto, h elementos formadores da visualidade
que passam a impresso que o homem habitante dessa natureza rida, numa nsia de
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modific-la, sente a necessidade de enxert-la de cores e formas excessivas nos espaos
vazios; isto , passa a reelaborar a sua natureza sob o prisma de multicores. Surge,
assim, uma esttica festiva e austera, risvel e pica, dramtica e lrica, espalhafatosa e
religiosa, monocromtica e colorida, cheia e vazia.
A Linha Exuberante
Quem me dera a dureza da aroeira,
a florao do pau-darco, a sombra da oiticica, o cheiro do cumaru isso
para no falar nos espinhentos.
Me bastava ser talvez uma umburana.
Oswaldo Lamartine
Enquanto os poetas fazem poemas com as palavras, as bordadeiras do serto
traam poemas com as linhas. So linhas multicoloridas que vo preenchendo superfcies
monocromticas como se fossem a terra seca do serto. As mulheres do serto bordam
sem alvoroo, com simplicidade. Repetem uma das tarefas mais arcaicas do universo
feminino, isto , a de cuidar da famlia, da vida domstica, do amor idealizado, do
casamento e da rotina materna. O ato de bordar um modo silencioso delas falarem
com a natureza.
Nos bordados predominam as imagens de flores, todas de um colorido intenso,
quase excessivo, exuberante como a paixo esse sentimento que dilacera almas. As
bordadeiras enterram as linhas ponto a ponto na trama do tecido, como cacos que cortam,
como sangue que preenche, ato prximo loucura das miudezas, da rotina das cozinhas.
A linha aqui o grande personagem, capaz de acessar, simular, reter e desafiar. Num
certo sentido, o bordado transgresso, resistncia e obedincia ao mesmo tempo. a
resposta da mulher terra que a maltrata, fere seus olhos, nega e a faz sofrer. Mas
tambm resistncia. Resistncia contaminada pelos mesmos ingredientes da obedincia,
da rotina, do inevitvel, da repetio.
As linhas atravessam a superfcie, vo e voltam, se contorcem, se espremem entre
os pontos fechados da trama dos tecidos, at que fazem emergir as imagens fortes,
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coloridas. Imagens de flores que contrastam com a natureza rida, ocre, seca. So
imagens que as bordadeiras constroem com suas linhas coloridas, imagens com flores de
vermelho-sangue, que fingem banhar a terra seca.
Elas (as sertanejas) tambm bordam a solido. A solido das vivas, das moas
que esperam um marido, que desejam amores, que vm ou choram paixes que vo. A
solido da terra seca que no gera vida. A solido da espera de guas correntes. A solido
das cinzas de um passado. A solido de um corpo com fome. Alimentando assim essas
solides de alegria, cores, paixes, atravs de imagens multicoloridas. Como a cultura da
frica ou da ndia, onde os humanos se mostram envoltos com tecidos coloridos,
exuberantes, contrastando com seus olhares de fome.
Mas elas (as bordadeiras do serto) tambm brincam de bordar numa espcie de
textura dura, como as pedras, pois os bastidores so usados para esticar o tecido e deix-
lo rgido. As agulhas, esses delicados instrumentos de perfurao, extirpam imagens que
complementam esse serto desolador. Perfuram o tecido como verdades partidas em mil
pedaos, como repeties necessrias.
As bordadeiras percorrem com o olhar fixo e amoroso as flores que vo surgindo.
Prisioneiras das pedras brutas e do sol escaldante, essas flores se libertam das rochas para
proporcionar nas mulheres a vertigem do vo. Elas permitem que essas imagens
carreguem os pssaros, as flores ou abelhas para pernoitarem na doura do sereno. O
mistrio da luz aquece no sol a pino as imagens bordadas que sobrevivem na repetio
dos gestos, estilhaam-se no brilho do meio-dia e fogem. Porm, retornam, no cair da
noite, porque, no serto, a noite fria e as flores so possveis.
Possveis como o silncio que acompanha o ato de bordar. O silncio que permite
as lembranas que persistem. Lembranas dos amigos que partiram para sempre, dos
filhos que j no so crianas, do amor que j envelheceu, das paixes abortadas, dos
desejos que ficaram abandonados nas paredes dos quartos. Ao bordar, as mulheres
mergulham nesse tempo mtico-lrico que preenche a beleza interior das coisas e
constroem um mundo multicolorido repleto de flores, bem longe da realidade.
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6 Congresso SOPCOM 3533
Os traos e cores dos bordados so como a apoteose do artifcio e, enquanto
exagero, complementao e resposta natureza rida. As flores no so de uma s cor,
so sempre multicoloridas, antecipando o espao dos bordados carnavalizantes. Bordados
esses que vo ocupando espaos e trilhando trajetrias entre corpos e objetos,
permanecendo um estilo singular.
Merleau-Ponty (2002-p.85) argumenta que, quando o estilo est operando, o
artista nada sabe da anttese entre o homem e o mundo, entre a significao e o absurdo,
j que o homem e a significao se desenharo sobre o fundo do mundo justamente pela
operao do estilo. O estilo, portanto, no pode ser tomado como objeto, j que ainda no
nada e s ser visvel na obra. Assim, podemos dizer que o estilo exuberante, excessivo
e barroco dos bordados do serto a sntese da esttica e opera como
complementaridade entre o homem e a sua natureza.
Esses objetos (os bordados) revelam um caminho de conotaes estticas, na
medida em que o homem necessita inferir na paisagem. A beleza dos bordados traduz
uma percepo de algo que ultrapassa o real. Algo como uma segunda realidade, nos
elementos da natureza circundante. Por isso possvel sonhar em estender todos os
bordados pela terra de cascalho, plana e seca, atravessar a caatinga, errar pelos caminhos
entre pedras, tatear na claridade ofuscante da estrela solar, colorir os vestgios e os sinais
perdidos entre cactos, espalhar pelos galhos secos e oferecer natureza todas as cores,
todas as formas, todas as flores, como um corpo que se entrega ao amor.
O serto de ontem e o serto de hoje so povoados de artistas primitivos,
singulares, de uma obra abissal, encanada pelo pr-do-sol da caatinga, lavrada pela pele
da Caetana ou eternizada pelas pedras-lispes despencadas do cu. Um corpo em festa,
animado pelo riso, cores e paixes que habitam no homem e, no entanto, se singularizam
no serto.
Vale a pena lembrar o que disse Mikel Dufrenne (2004-p.23) em relao s
primeiras imagens: Antes de construir conceitos ou mquinas, enquanto fabricava as
primeiras ferramentas, o homem criou mitos e pintou imagens. necessrio
compreender que a arte espontnea desde sempre exprime o liame do homem com a
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6 Congresso SOPCOM 3534
natureza. Indo mais alm, Lvi-Strauss argumenta ( se referindo ao homem neoltico)
que ele elaborou tcnicas como transformar gros ou razes txicas ( entre tantas outras
tcnicas) em alimentos ou at mesmo utilizou essa toxicidade para a caa, a guerra ou o
ritual, ... no duvidemos de que foi necessrio uma atitude de esprito verdadeiramente
cientfico, uma curiosidade assdua e sempre alerta (1989-p.30). Lvi-Strauss nos mostra
que esse homem foi, sim, herdeiro de uma longa tradio cientfica, o que justifica e
explica que temos dois modos diferentes de pensamento cientfico, ...dois nveis
estratgicos em que a natureza se deixa abordar pelo conhecimento cientfico um
aproximadamente ajustado ao da percepo e ao da imaginao, e outro deslocado; como
se as relaes necessrias, objeto de toda cincia, neoltica ou moderna, pudessem ser
atingidas por dois caminhos diferentes: um muito prximo da intuio sensvel e outro
mais distanciado (1989 p.30).
Podemos argumentar que em princpio toda classificao uma etapa em direo
a uma ordem racional. E que historicamente fomos classificando, (no caso dos saberes
intuitivos), desclassificando-os e dando a eles adjetivos como ingnuos, populares,
ilustrativos, primitivos, ou at mesmo exticos. Assim, esses conhecimentos mais
intuitivos (tambm longamente observveis), como interpretaes da fauna e flora,
observaes dos fenmenos naturais, as expresses estticas (plsticas, orais, literrias...)
foram ao longo do tempo construindo seus nichos de sobrevivncia em oposio aos
conhecimentos cientficos e racionalmente comprovados.
Casas do Serto
das casas-de-fazenda
clareadas a querosene. Serto onde
se cozinha em panelas de barro,
fogo a lenha e se bebia de jarras
de Cantareira.
Oswaldo Lamartine
As casas dos arruados no serto incorporam imagens to ldicas quanto as
melodias de Luiz Gonzaga e lembram a geometria das imagens (bandeirinhas) do artista
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plstico Alfredo Volpi. So imagens poticas e genuinamente intuitivas. As linhas so
retas. Porm, como se sente uma linha reta? Talvez como um pensamento montono que
se estende infinitamente. Mas essas casas no so feitas apenas de uma linha reta, h
muitas linhas retas e curvas, que se tornam atraentes ao olhar. Elas so s vezes
profundas, ora rasas, quebradas ou alongadas. H repentinos recomeos e pausas a partir
do fronto. Suas cores so primrias e no misturadas.
As casas dos arruados so achatadas, estreitas e baixas, meio mouras, coladas
umas nas outras, desafiando a esttica formal da arquitetura. A beleza singela, diferindo
da esttica urbana.
Como diz Bachelard (1993-p.24), a casa o nosso canto no mundo1. E como o
serto por natureza contraditrio, ele nos oferece imagens reais e ldicas; secas ou
repletas de cores; fragmentadas ou unidas. Narram histrias tristes ou alegres, se expem
pelos ngulos das ruas, das esquinas, becos ou meias portas. Por janelas estreitas onde
pode surgir um rosto arredio. Por paredes com sombras impalpveis ou grossos muros
por onde a luz no ultrapassa ou por flores artificiais ou flores-de-monturo. Esse ser se
estabelece no campo da liberdade de imaginar, como tambm argumenta Bachelard:
Livre da preocupao de significar, ele descobre todas as possibilidades de imaginar. O
ser que vivencia suas imagens em sua fora primordial sente bem que nenhuma imagem
ocasional... (2001-p.57).
O aspecto belo das casas do serto est no fato delas se harmonizarem com a
paisagem, sendo mesmo uma continuao da paisagem. No h na base da arquitetura a
pretenso de se destacar do conjunto, nem pela escala. A beleza uma necessidade
natural. E elas so belas por esse dilogo com a sua paisagem.
Cada casa tem sua prpria voz, seu cheiro, suas cores e formas. Mas os cheiros
comuns so mais fortes. A casa no serto, concordando com Oswaldo Lamartine (Apud.
Campos -2001-p.10), ...tem o cheiro da terra seca, da lenha queimada, da flor do
mandacaru, do curral, da gua de chuva. Tem o rudo do vento solto na vegetao
rasteira, nos estalos dos galhos secos e no ranger dos armadores velhos. Tem as
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6 Congresso SOPCOM 3536
estampas dos bordados. Tem as formas geomtricas e curvas dos frontes. Tem a dor e
alegria, a chegada e a partida, tem Deus e o diabo, tem vida e a morte Caetana.
As casas so construdas numa espacialidade particular. Numa harmonia entre
elas e a natureza ao redor, formando uma paisagem singular. Elas so construdas juntas
uma das outras, formando a rua, e lembram as bandeirinhas de Volpi, e as bandeirinhas
de Volpi lembram elas. Tanto as bandeirinhas (pinturas) quanto as casas parecem no se
sustentarem na superfcie, elas parecem flutuar num espao imaginrio de quem as v. E
justamente essa flutuao que determina uma caracterstica da esttica singular qual
estamos nos referindo, isto , a esttica do serto.
Esttica do Cangao
Os rudos dos ventos, das goteiras,
do armador das redes, o balido das ovelhas, o canto
do galo, o estalo do chicote dos matutos, o ganido
dos cachorros em noite de lua,
os tetus, o dueto das casacas de couro, os gritos
do soc a martelar silncios, os aboios, o bater
dos chocalhos, o mugido do gado e
tantos outros que ferem nas ouas da saudade...
Oswaldo Lamartine
O corpo entra rasgando a vegetao espinhosa da caatinga. Tudo muito rpido.
necessrio matar e sobreviver na corrida mato adentro. As folhas urticantes vo
rasgando as roupas mais finas. O sangue vai manchando a camisa. No h tempo para
pensar. preciso atravessar lguas e lguas entre os gravetos estalados em lanas. So
dois corpos agonizando, o da natureza e o do homem, a um s tempo. Destinos
amalgamados. O homem precisa provar que "macho" e sobreviver morte; a natureza,
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6 Congresso SOPCOM 3537
sobreviver falta de gua. O homem se joga banalidade de seu destino, que nunca
banal. Em sua alma sobressai o arqutipo do irredentismo, da rebeldia. Sua luta um
combate com a verdade e a justia, com a vida e a morte. Suas mos se sujam com o
sangue do outro (que ele assassina).
No cho da caatinga, esse homem carrega no corpo, alm da valentia e da
coragem, a sua prpria arte. A arte que est nos bornais com bordados em padro floral;
nas cartucheiras com ilhs; nos chapus de abas enormes de couro cru e aplicaes de
medalhas e estrelas (como o signo de Salomo); nos anis que cobrem todos os dedos, no
uso de vrios cordes de ouro; nos lenos de seda coloridos no pescoo e nos vestidos de
chita das mulheres, que contrastam com o uso de jias de origem europia (fruto de
saques feitos pelo bando); nos punhais e faces fabricados por cutileiros, com
incrustaes de peas de marfim e at rubis.
Esse homem vestido assim um dia viveu no serto, e andou em bando e causou
com certeza um grande impacto esttico.
Seus passos largos (dos cangaceiros) no mato adentro, fugindo ou escapando de balas,
tm ritmos ao compasso de voluptuosos passos de dana. Uma viagem em abismo, sob o
signo do corpo e do desejo de viver. Movimentos fulvos, velados, escorrendo entre o ocre
da vegetao e a luz vermelha do pr-do-sol. A qualquer momento, a ona Caetana pode
espreitar e a morte se apoderar do seu corpo. necessrio um esprito sagaz para enganar
a ona. Os traos rpidos das aes no podem ser interrompidos, preciso a vida, a
busca de um mgico elo de um lao com uma totalidade estilhaada. E, se for preciso
matar, deve ser cruel, sanguinrio. Deve empurrar o faco at espirrar sangue e esperar o
ltimo suspiro. Deve ser uma morte que se adapte terra quente, esturricada, e banhe de
sangue a paisagem.
No serto, esses homens foram conhecidos, por quase cinco sculos, como cangaceiros.
Diz Cmara Cascudo que (1975-p.42): "O cangaceiro no um elemento do
serto. No vem da seca, da justia local, da mestiagem, da educao, do uso das armas.
Existe em todos os pases e regies mais diversas. Na inspita Mauritnia e na alagada
China, nas montanhas da Crsega e nos plainos de Frana, onde viveu e reinou Mandrim,
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6 Congresso SOPCOM 3538
em So Paulo, com Dioguinho, e em Portugal, com Jos do Telhado, nas cidades
tentaculares e nas povoaes minsculas, repontam esses tipos de inadaptaes, soma de
todos os fatores, vrtices para onde convergem as grandezas das taras, tendncias,
ineducaes e impulsos.
Se concordarmos com Cascudo, pode-se dizer que o esprito do cangao aflora em vrias
culturas; porm, foi no serto, especificamente no bando de Lampio, que o cangao
mostrou/exibiu sua esttica prpria, singular.
O cangaceiro viveu sob o risco da morte, matou sem piedade, alastrou crimes,
vinganas, estupros, infortnios nessa natureza (serto) bravia, mas obsessivamente crua
e bela; mas tambm exibiu e criou uma esttica singular, genuna e extica. Ele cravou
no seu corpo o texto de sua prpria cultura.
A cultura que o empurrou entre a caatinga como voam os pssaros; a soltar a
imaginao, como o vento; a arder nos ferimentos, como o fogo; a ser nmade, como os
rios; a ter ciclos no corpo, como a natureza; a resistir, como as pedras; a vestir roupas
coloridas e enfeites, como a diversidade da natureza; a fechar o corpo aos males
humanos; a sonhar e criar uma esttica prpria de identificao como bando; enfim, ser
capaz de se sobressair no seu meio cultural com o lema de vida de seus antepassados, os
ndios, que diziam: sem rei e sem lei, mas feliz (Apud. Frederico Pernambuco- vdeo).
Tolstoi (2002-p.32), citando o professor russo Kralik, argumenta que as artes do
vesturio, do gosto e do tato so reconhecidas como arte2. Para Clement Greenberg
(2002-p.87) ...toda experincia esttica deveria ser considerada arte. H uma
multiplicidade de experincias pelas quais as pessoas passam e que so estticas, embora
no saibam not-las como uma experincia esttica. Provavelmente, no caso do bando de
Lampio, no havia conscincia dessa experincia como esttica.
Encantaria da Pedra
Serto onde noitinha, depois da
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ceia de coalhada, se armava redes
nos alpendres para ouvir dos mais
velhos a crnica do passado.
Oswaldo Lamartine
Os castelos podem nos levar s pedras e essas nos lembram o conceito circular,
segundo o qual as coisas no tm princpio nem fim. Os castelos so como as sociedades
nas quais prevalecem as narrativas mticas, lugar onde o tempo pode no ser linear, no
h a idia de progresso, tudo pode voltar; a cada vez, o tempo retornar ao zero, e os
caminhos recomearem. Os astros e a terra fazem seu percurso e retornam. Retornamos
assim aqui pedra, encantaria da pedra, s primeiras marcas do homem na histria.
Para os arquelogos, os lugares no serto que foram habitados pelos primeiros
homens foram os brejos, porque esses tm solos mais frteis, com filetes dgua, sendo
possvel a sobrevivncia face aridez das terras vizinhas. exatamente nos brejos onde
hoje se encontram os stios arqueolgicos com pinturas as rupestres mais significativas.
Os homens que chegaram ao Nordeste brasileiro pertenciam a grupos
mongolides como todos os habitantes das Amricas, anteriores colonizao europia.
Arquelogos admitem que os ndios brasileiros habitantes da regio Nordeste so os
descendentes de levas arcaicas que atravessaram, h milhares de anos, o estreito de
Bering. Para Gabriela Martin, foi precisamente nos sertes nordestinos do Brasil, onde
a natureza particularmente hostil ocupao humana, onde se desenvolveu uma arte
rupestre pr-histrica das mais ricas e expressivas do mundo (1999-p.251).
Essa riqueza da arte rupestre foi registrada no comeo do sculo XX tambm de
forma expressiva por Jos de Azevedo Dantas (1994-s/n), arquelogo intuitivo e artista
que transcendeu seu tempo realizando uma pesquisa singular das pinturas rupestres do
Rio Grande do Norte. Ele desenhou fielmente cada pintura achada nos vrios rochedos
da regio do serto por ele visitado: ... visitei o citado rochedo que se achava encravado
na encosta da serra, e depois de umas tantas observaes consegui copiar a lpis em
tamanho minsculo alguns desenhos que ali se achavam gravados.
Dantas comeou, assim, escavando a memria pr-histrica do serto e a cultura
dos nossos ancestrais. A deusa Mnemosyne, a musa da memria e das artes da Histria,
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6 Congresso SOPCOM 3540
provavelmente, garantiu a ele o poder de retorno, de volta ao passado para fazer
perpetuar a lembrana dos mortais: ... vi-me forado a procurar o isolamento nas selvas,
nesse mesmo isolamento devo continuar com o resultado do meu trabalho (1994-s/n).
Isolamento e solido que lembram tambm a vida de Z dos Montes, preso em seus
castelos.
H outro detalhe importante como referncia esttica do serto que a
policromia das pinturas rupestres. Esse elemento tem ressonncia na vida do sertanejo e
serve para repor em sua obra as cores, como resposta sua natureza quase
monocromtica.
No Mirador, em Parelhas/RN, encontra-se registrada uma revoada de tucanos de
bicos vermelhos e penas amarelas, descrita por Gabriela Martin (1999-p.251) assim: ...
emas correndo, que apresentam trs tonalidades de ocre nas asas. Um veado de cor
branca destaca-se no meio de figuras humanas pintadas com tinta vermelha; grafismos
puros de cuidadosos desenhos formam linhas paralelas de duas outras trs cores.
Desenhos
Estas reprodues foram desenhadas por Dantas em 1924, e esto reproduzidas
em seu livro Indcios de uma Civilizao Antiqssima, editado pela Unio
Editora/Paraba em 1994.
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6 Congresso SOPCOM 3541
Nesse desenho, as figuras/animais aparecem em fila como que voando, e h um
homem a tang-las. Depois, elas j esto no cho e, num terceiro momento, h a
expressividade de um movimento.
Aqui se v uma mulher (cabelos longos) agachada. Prximas, h duas figuras
sentadas conversando, uma tem como enfeite dois rabos e estende o brao ao
companheiro. Mais embaixo, figuras com instrumentos nas mos, prontas para um
ataque.
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6 Congresso SOPCOM 3542
As pinturas rupestres do homem pr-histrico que
viveu um dia no serto fazem parte de uma matriz
esttica singular, tanto em relao s pinturas rupestres
do mundo, quanto pela influncia at hoje na produo
esttica do homem do serto.
A pedra, os signos, as formas esto na matriz das regras estticas que se
transformam numa verdadeira arte potica desde o homem pr-histrico at hoje,
passando por diversas civilizaes e culturas. A sensao que se tem a de que existe um
fio, simultaneamente tnue e forte, que resiste e persiste atravessando tempos e culturas
como uma travessia que se transforma/desdobra e se abre numa passagem
fantstica/mtica e utpica. Assim, a Abissnia, o imprio inca, a China, a Grcia ou o
serto so tambm espaos metafsicos capazes de superar e ultrapassar a mera realidade,
e espalhar os fios agregadores de universalidade e permanncia da imaginao humana.
Esttica da Morte
Os ventos do boqueiro da Serra do Bico sopravam
pelas suas folhas e, daquele alto,
ele assistiu mudana de mandos da monarquia repblica. Agitaes e marasmos. Muitas secas
e alguns invernos. Casais que se aninhavam.
Risos e lgrimas. Berros de dor e gritos
de alegria dos que chegavam para
a vida. Enterros que saam.
Oswaldo Lamartine
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6 Congresso SOPCOM 3543
Abro uma porta de gua to vasta quanto a morte. Abro uma porta de luz to
intensa quanto a vida. Sou demens e sapiens. Sou antagnico e complementar. Perteno
ao campo da loucura, dos pecadores e dos provedores de barbrie. Sou vida, sou morte.
Sou o corpo (mulher) em inmeras linhas de desencontro que diluem os sonhos; sou o
corpo (homem) encharcado de desejo que fatalmente se entrega. Sou a pulso que
desenha a morte, como ato de eternizar a dor. Sou o rosto (da me) que eu no quero
esquecer. Sou vida antes que a morte erga a parede intransponvel. Sou linha dos desejos
ou lmina que separa e corta o corpo contaminado de dor. Sou corpo num arco de pedra,
sou um corpo Caetana, sou um corpo de morte de Anta fmea. Sou um sapiens-demens
em sua verso sertaneja.
Essa morte no serto a morte repentina, quando se morre de bala ou doena. a
morte ldica, sensual, quando se entrega a Caetana. A morte entra no corpo, que levado
numa rede, sua ltima viagem. A morte esfria repentinamente o corao do sertanejo e
nada mais. Mas ele sonha (seu ltimo sonho) com o paraso, um campo com borboletas
brancas, um rio discreto, o canto do sabi... Um repouso claro e ali seus velhos beijos,
lunares, ribeiros, sonoros do eco se abriro muito longe. Um adeus ao amor carcomido,
tranquilo e maternal de qualquer Maria.
O homem do serto prepara-se para fechar os olhos e deixar escorrer a convulso
oleosa das lgrimas (j ralas) e das coisas tristes esquecidas. Nesse instante, ele v todos
que partiram antes dele: o pai, a me e o tio que aparecem para lev-lo. Cobrem seu
corpo com um pano ardido do tempo e ocre do sangue derramado. Caetana cega seus
olhos com a luz do alm. Seu corao esfria e nada mais. Agora s silncio profundo
da vida na terra. Caetana chegou.
Assim, esses corpos que se entregam a Caetana se transformam em pedras, que
iluminam o cu e levam marcas inconfundveis de vida. Corpos que levam desejos
recolhidos, beijos sonhados, noites de estrelas cadentes, dias de sol escaldante, terras
esturricadas, fome, sede, sonhos de gua, silncio de morte, fala de vida.
E, ao som da rabeca, ou dos cantos das incelenas, o corpo se deixa levar pelo
carrossel do destino, isto , para a morte, j que existiu vida.
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6 Congresso SOPCOM 3544
Segundo Morin (1970-p.13): ...a espcie humana a nica para a qual a morte
est presente durante a vida, a nica que faz acompanhar a morte de ritos fnebres, a
nica que cr na sobrevivncia ou no renascimento dos mortos. A morte, em qualquer
cultura, , primeira vista, uma espcie de vida, que prolonga, de uma forma ou de
outra, a vida individual. Assim, no uma idia, mas sim, uma imagem, como Caetana,
ou como diz Bachelard, uma metfora da vida.
A esttica que preside o ltimo encontro do sertanejo com seus familiares e
amigos comporta um script polifnico que agrega, ao som do canto, o barulho discreto
dos copos de cachaa, a tagarelice das crianas, o acerto do trabalho no roado no dia
seguinte, o tero tirado pela beata e respondido por todos ao redor do defunto. Morin
(1970-p.25) declara que no existe praticamente qualquer grupo arcaico, por muito
primitivo que seja, que abandone os seus mortos ou que os abandone sem ritos.
Essa esttica do mltiplo, expressa no ritual da morte, ritualiza a vida como ela :
mltipla, canto e trabalho, criana e velho, fim e comeo, repetio do trgico, recomeo
do novo. A esttica da morte est nas paredes das casas simples: sempre que pode, a
famlia fotografa o defunto. L est ele no retrato da parede, com o padrinho Ccero, frei
Damio, o Corao de Jesus. Est tambm na cruz da beira da estrada, fixada no cume de
uma casa em miniatura, ou mesmo apenas fixada entre pedras: as mesmas pedras que
racharam os calcanhares do velho sertanejo. Est tambm na regra das cores escolhidas
para os caixes: anjo (criana inocente) e moa virgem se enterram em caixo azul claro,
celeste, da cor do cu; os tons terra para os mais velhos.
A esttica da morte no serto tem, alm da figura de Caetana, todas essas imagens
e sonoridades impregnadas de vida. Passa-nos a impresso que ela carrega a vida em sua
plenitude, que parte natural da natureza, apenas uma transcendncia da vida.
Contraria o sentido irremedivel de que morte separao.
Essa experincia esttica do sertanejo com a morte a experincia em estado
mais bruto (primeiro/original) e abrangente. prximo do conceito da potica clssica
o thaumastn aristotlico, que significa o arrebatamento que provoca o choque de
surpresa, que cliva a percepo, num momento de estagnao e assombro. Wittgenstein
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6 Congresso SOPCOM 3545
tambm reflete sobre o enigma do impacto simultaneamente sensvel e cognitivo de
certas percepes. O sertanejo transforma esse estado de espanto numa imagem lrica,
paradoxalmente bela e cruel. Pode ser comparada tambm com a surpresa maravilhada e
inquietante que os gregos chamavam de deins (levar o pensamento a se surpreender).
Nesse estado, as imagens criadas miticamente se revelam, o mito exprime virtualidades
humanas que chegam a realizaes fantsticas. Por isso a Caetana pode ser animal e ser
humano, mulher e homem.
Norval Baitello nos diz que: Smbolos so grandes snteses sociais, resultantes
da elaborao de grandes complexos de imagens e vivncias de todos os tipos. Por isso
as imagens evocam os smbolos, e ao evoc-los, os ritualizam e os atualizam (2005-
p.17). Assim, os smbolos e rituais da morte prolongam a nossa prpria vida
simbolicamente. E essas imagens resgatam representaes do subconsciente, das
profundezas arqueolgicas que se manifestam pelas riquezas e significados das imagens.
Os mitos/as imagens mitolgicas implicam o antropomorfismo, nos quais
animais, plantas e coisas podem ter sentimentos humanos, se comportam como humanos
e exprimem desejos humanos, como o inverso tambm verdadeiro. O homem tambm
toma corpo animal e instinto animal. Por intermdio do mito, h um movimento de
apropriao do mundo, de reduo do universo a dados inteligveis pelo homem. O
desejo da apropriao cria o desejo da imitao dos heris ou dos deuses.
Para Lvi-Strauss, a misso da cultura desembaraar-se dos mitos, realizando-
os, porque a cultura que vem no corpo no morre. Na cultura no existe a morte, existe
cumulatividade. A criao do mito uma vitria sobre a morte, vitria simblica
claro! de natureza cultural, que est presente desde que o homem homem. A cultura
no nasce quando o homem comea a fabricar, produzir arte ou as primeiras ferramentas,
mas com o prprio homem.
Esse homem classificado por Morin no somente Homo sapiens, como afirmou
a cincia racionalista durante muito tempo, mas tambm Homo demens. Seu lado sapiens
o lado da sociedade, o seu lado demens o lado da cultura.
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6 Congresso SOPCOM 3546
O sertanejo em seu mito da morte se deixa dominar pelo Homo demens, e a morte
no morre, cria imagens vivas, ldicas, coloridas, imaginrias. Como as imagens criadas
por Michel Serres: Voc acredita em Anjos? Anjos de ao levam Anjos de carne
que lanam Anjos de sinais sobre Anjos de ondas (SERRES, 1995, p. 7-8).
No serto, esses anjos serrianos podem se transformar em corpos de mulheres,
metade mulher, metade animal, bela e cruel. Anjos/ona que levam corpos vivo-mortos
aos campos de energia. O corpo vivo-morto descrito por Serres tambm cria uma
imagem de vislumbre no momento da morte: A menos que, pelo contrrio, na morte
natural acontea um vislumbre repentino, um instante de suprema intuio, da beleza
sobrenatural do outro mundo, prometido (SERRES, 1995, p.21). Imagens como essas
nascem e renascem do esprito humano em todos os tempos e em qualquer cultura.
Serres fecha esse argumento quando diz:
Amanh os amores viro queles que nunca amaram, amanh os que amaram voltaro a
amores renascentes, amanh os que sofreram de amor ainda sofrero por ele ou por ela,
amanh os que acreditaram morrer de amor morrero outra vez de um outro ou do
mesmo, amanh voc acha que o amor desaparecer? (SERRES, 1955, p. 245)
Perguntas que a literatura, a cincia, a arte fazem constantemente. Talvez, para
responder, em parte, escrevemos como ato de no morrer, pintamos, como ato de no
morrer, compomos, como ato de no morrer. Toda arte no apenas arte. Toda arte traz
em si o fugaz desejo de no morrer. Toda arte uma tatuagem cognitiva ou no, com
traos definitivos ou no, com significados ou no, trazendo em si o lacunar, o
inacabado, a incompletude, o sapiens e demens, o homem, a mulher, o feminino e o
macho, o poder de gerar vida ou prover morte.
A Caetana, essa imagem lrica da morte, por outro lado, tambm magia, se tal
entendida como crena na onipotncia das idias. Uma magia que se apropria de um
comportamento em que as coisas acontecem tal como so pensadas ou desejadas. Uma
espcie de poder fascinador. Nesse campo de bipolaridade, o homem sente o seu prprio
ciclo de vida e morte e, para Morin, ele vai conhecer-se como realidade corporal e
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6 Congresso SOPCOM 3547
mental (objetiva e subjetiva) irredutvel, autnoma e absoluta, por meio do seu duplo.
(MORIN, 1970, p.94).
O homem atribui ao seu duplo toda a fora potencial da sua afirmao individual.
o duplo que detm o poder mgico e que imortal. Assim que o homem se reconhece
como duplo, logo se conhece obedecendo a um ciclo de nascimento e morte. O duplo,
segundo Morin,
[] efetivamente, essa imagem fundamental do homem, anterior a intima conscincia de si prprio, imagem reconhecida no reflexo ou na sombra, projetada no sonho, na
alucinao,assim como na representao pintada ou esculpida, imagem fetichizada e
magnificada nas crenas duma outra vida, nos cultos e nas religies. (MORIN, 1997, p.
44)
A esttica da morte no serto impregnada de imagens e sonoridades repletas de
vida. parte natural da natureza, apenas uma transcendncia da vida. Contraria o
sentido irremedivel de que morte separao. Como o prprio sentido mtico do amor,
um no existe sem o outro. Excluir essa unio anul-los. A vida a morte, a morte a
vida.
Para Norval Baitello, a morte :
[] como complexo de fim e comeo, portanto, como smbolo e como texto cultural desempenha um papel extremamente importante na conservao dos sistemas sociais e
culturais, pois ela comprova a sobrevivncia simblica que confere ao sistema a
credibilidade de que ele no pode prescindir. (BAITELLO, 1999, p. 106)
As imagens da morte no serto arcaico so lricas, fortes, como a prpria ona
Caetana. A morte tambm ronda as histrias infantis no serto. Eu mesma cresci ouvindo
do meu pai histrias de morte. Ele mesmo vinha de uma famlia com disputas de morte.
No fui criada com histrias de fadas, e sim de morte. Talvez, por isso, at hoje, elas so
para mim, simultaneamente, comuns, ntimas, estranhas, como o prprio serto, lugar
onde nunca vivi.
Entretanto, perceber e pesquisar a esttica do serto embrenhar-se nesses
mltiplos campos abordados aqui, alm de outros. Gosto tambm de pensar essa esttica
pelo veio que Aby Warburg (sites/Google) pensou a histria da arte, isto , pelas
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6 Congresso SOPCOM 3548
imagens e suas aproximaes num tempo; ou mtodo que ele chamou de Denkraum, isto
, espao de reflexo ou de pensamento, numa distncia entre o eu e o mundo. Para ele
h uma espcie de energia de memria coletiva/cultural expressa pelas imagens (no caso,
ele estudou as imagens da arte) que anula o abismo entre passado e presente ou o
pensamento lgico da sucesso do tempo. Como se, para observarmos a histria das
imagens, precisssemos de um outro tempo; talvez o tempo dos mitos levistraussianos.
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