Albert - A Fumaça Do Metal: História e representações do contato entre os Yanomami

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 A FUMAÇA DO METAL: HISTÓRIA E REPRESENTAÇÕES DO CONTATO ENTRE OS YANOMAMI BRUCE ALBERT ORSTOM e Universidade de Brasília Os antropólogos influenciados pelo estruturalismo deram pouca atenção à análise das representações do contato nas sociedades que estudaram, espe- cialmente no âmbito do americanismo tropical. Quando o fizeram, foi ger al- mente através das mesmas formas culturais: relatos míticos ou classificações de relações interétnicas; escolha reproduzida de autor para autor aparente- mente sem preocupação de justificar sua relevância4. Esta marginalização dos fenômenos de "incorporação histórica" (Guss 1981) ou restrição do horizonte etnográfico de sua abordagem devem se, parece me, mais à fideli- dade excessiva à letra da obra de Lévi Strauss do que a limitações imputá veis à análise estrutural3. As representações do contato abrem um campo privilegiado para a antropologia, por constituirem uma dimensão crucial da reprodução cultural das sociedades que as elaboram. O avanço da fronteira do "sistema mundial" submete a existência e a permanência das sociedades indígenas à resolução 4. Sobre milo e contato, com uma inspiração estruturalista mais ou menos precisa, ver Bido u 1986, Da Matta 1970, Drummond 1977, Gallois 1985, Guss 1981 e 1986, Jacopin 1977, Kracke 1986, Melatti 1985, Perrin 1986. Ver também as contribuições ao simpósio "From History to Myth in South Americ a”, AAA MeetingsDenver 1984 (Hill org. 19 88 ). Sobre classificação das relações interétnicas e contato, ver Cardoso de Oliveira 1976 e 1980. 5. Sobre as bases teóricas de uma "história estrutural" e a diferenc iação entre "pensamento mítico" e mito como gênero narrativo na obra de LéviStrauss, ver respectivamente Gabo riau 1963:591 e Smith 1980. An ui ri o Antropol ógico/89 Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992 151

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A proposta do autor é ilustrar como, através de uma mudança de perspectiva na análise das representações do contato, certos aspectos fundamentais de sua produção (dinâmica cognitiva, estratégia cultural e contextualidade histórica) podem ser melhor esclarecidos.

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  • A FUMAA DO METAL:HISTRIA E REPRESENTAES DO CONTATO ENTRE

    OS YANOMAMI

    BRUCE ALBERT ORSTOM e Universidade de Braslia

    Os antroplogos influenciados pelo estruturalismo deram pouca ateno anlise das representaes do contato nas sociedades que estudaram, especialmente no mbito do americanismo tropical. Quando o fizeram, foi geralmente atravs das mesmas formas culturais: relatos mticos ou classificaes de relaes intertnicas; escolha reproduzida de autor para autor aparentemente sem preocupao de justificar sua relevncia4. Esta marginalizao dos fenmenos de "incorporao histrica" (Guss 1981) ou restrio do horizonte etnogrfico de sua abordagem devem-se, parece-me, mais fidelidade excessiva letra da obra de Lvi-Strauss do que a limitaes imput- veis anlise estrutural3.

    As representaes do contato abrem um campo privilegiado para a antropologia, por constituirem uma dimenso crucial da reproduo cultural das sociedades que as elaboram. O avano da fronteira do "sistema mundial" submete a existncia e a permanncia das sociedades indgenas resoluo

    4. Sobre milo e contato, com uma inspirao estruturalista mais ou menos precisa, ver Bidou 1986, Da Matta 1970, Drummond 1977, Gallois 1985, Guss 1981 e 1986, Jacopin 1977, Kracke 1986, Melatti 1985, Perrin 1986. Ver tambm as contribuies ao simpsio "From History to Myth in South America, AAA Meetings-Denver 1984 (Hill org. 1988). Sobre classificao das relaes intertnicas e contato, ver Cardoso de Oliveira 1976 e 1980.

    5. Sobre as bases tericas de uma "histria estrutural" e a diferenciao entre "pensamento mtico" e mito como gnero narrativo na obra de Lvi-Strauss, ver respectivamente Gabo- riau 1963:591 e Smith 1980.

    Anui rio Antropolgico/89Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992

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    de enigmas metafsicos e transtornos sociais de uma magnitude indita. As extremas disparidades de sentido e de potncia que essa coliso histrica instaura abrem seus sistemas culturais para uma dinmica de reestruturao constantemente desafiada pelo desenvolvimento complexo das situaes do contato. Esse processo ilustra in statu nascendi o trabalho cognitivo de lgicas simblicas no cruzamento de conjunturas e perspectivas sociais crticas. Revela a hierarquizao estratgica de domnios e registros culturais escolhidas para o tratamento dos fenmenos de mudana. E, finalmente, evidencia a historicidade a partir da qual, e contra a qual, essa lgica de resistncia cultural opera. Assim, o "pensamento selvagem", geralmente reconstitudo enquanto arquitetura formal, recupera, nesse contexto e provavelmente em nenhum outro com tal intensidade toda a sua dimenso dinmica e pragmtica3.

    A imagem esttica e descontextualizada das representaes do contato que costuma emanar dos trabalhos de inspirao estruturalista deve-se essencialmente s propriedades cognitivas das formas culturais atravs das quais eles abordam essas representaes. A finalidade etiolgica e as regras mnemnicas do mito fazem dele um dispositivo cujo grau de seletividade, de abstrao e de inrcia relativa4, no predispe, por definio, a servir de quadro de anlise para os processos de mudana culturais. O problema das classificaes das relaes intertnicas semelhante. Por serem sistemas de categorias, remetem apenas ao "saber semntico" (Sperber 1974: 103-105) produzido pelo cruzamento dos traos diferenciais que lhes so subjacentes. Enquanto precipitado analtico da simbolizao das formas de alteridade submetidas reflexo indgena pelo contato, tampouco se prestam a servir de campo para uma apreenso complexa dos mecanismos de incorporao cultural.

    A partir dessas observaes, nossa proposta ilustrar como, atravs de uma mudana de perspectiva na anlise das representaes do contato, certos aspectos fundamentais de sua produo (dinmica cognitiva, estratgia cultural e contextualidade histrica) podem ser melhor esclarecidos. O exerccio

    3. Ver Dmmmond 1977: 843-846 e Sperber 1973: 114-116 quanto ao carter central do conceito de transformao para a anlise estrutural. Ver tambm Dmmmond 1977: 851, Sperber 1982: 114-115 e Piaget 1983: 121 sobre a oposio entre transformaes formais e transformaes genticas.

    4. Cf. Sperber 1973: 114-116, 1974: 90-92, 1982: 104 e 115, 1985: 85-86.

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    ter por quadro etnogrfico um conjunto de reflexes acerca da natureza das epidemias, da identidade dos brancos e do status dos objetos manufaturados, veiculadas pela histria oral dos Yanomam5 um dos quatro grupos territorialmente adjacentes que compem o conjunto cultural e lingstico yanoma- m i.

    Os Yanoman tm interpretado os fatos e efeitos do contato atravs do crivo simblico de sua teoria poltica dos poderes patognicos, qual subordinam a identificao dos brancos e dos objetos manufaturados7. Essa concepo etiolgica do contato foi vrias vezes remodelada ao longo dos ltimos cento e cinqenta anos, perodo que a histria social yanomam e um conjunto de fontes escritas nos permitem reconstruir. Nesse artigo, ser proposto um esboo da "histria estrutural" (Lvi-Strauss 1973: 26) dessas transformaes. Comearemos por situar seu contexto cultural, descrevendo as grandes linhas da organizao social e da teoria etiolgica yanomam8.

    O espao social yanomam

    Os Yanomam, sub-grupo yanomami mais representado no Brasil, contam com aproximadamente 5.21S pessoas, repartidas em 68 casas plurifami- liares de forma cnica ou em tronco de cone (yano) situadas, em sua maioria, no curso superior dos afluentes da margem direita do rio Branco, perto

    5. Forma simplificada do etnnimo ynomam thgb ou ynomae- ihb utilizado na regio estudada.

    6. Migliazza 1972. Os Yanomami esto localizados de ambos os lados da fronteira entre o Brasil (9.900 indivduos) e a Venezuela (12.600), e se dividem em aproximadamente 370 grupos locais (ver Albeit 1989: 637).

    7. Os Yanomam fazem uma associao entre objetos manufaturados e doenas brancas, assim como os Yanmami (Lizot 1976: 10-11, Biocca 1968: 287, Valero 1984: 38-39, 158, 169- 170, 470, 506), os Wakuenai (Hill 1983: 389-390), e os Yaminahua (Townsley 1984: 76- 77). Sobre o impacto dessas epidemias, ver Neel et al. 1970, Chagnon e Melancon 1984; sobre o modo como so vividas pelos ndios, ver Valero 1984, cap. XXI e XXXV; sobre as mudanas tecnolgicas, ver Peters 1973, Saffirio 1980 e Lizot 1984b, cap. X.

    8. Para mais preciso quanto aos elementos etnogrficos e etnohistricos evocados nas pginas seguintes, ver Albert 1985, cap. VII e X e cap. I e II. Nossos dados sobre as representaes do contato foram colhidos durante uma investigao sobre a histria do povoamento yanomam, realizada na regio do rio Catrimani (RR).

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    da fronteira com a Venezuela (ver CEDI/PETI 1990: 36-37, 89-90). So caadores-horticultores semi-nmades da floresta amaznica interfluvial, cuja disperso residencial varia de acordo com a regio: sua densidade demogrfica vai de 0,78 a 0,05 hab/km2 do centro periferia de seu territrio (Mi- gliazza 1972: 19-20)9.

    A morfologa social yanomam 6 caracterstica da regio das Gianas (cf. Rivire 1984). Cada casa coletiva se considera econmica e politicamente autnoma, constituindo uma parentela onde o "ns" cogntico

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    exerccio da autoridade poltica (nosiamu), cuja arena no ultrapassa a comunidade.

    Esse modelo indgena de atomismo sociolgico e poltico, que o etnlogo deve evitar reifcar ao partir de uma abordagem analtica focalizada no grupo local, se inscreve num espao scio-simblico intercomunitrio. Esse espao global se articula em funo de uma classificao das relaes polticas, que distingue cinco categorias principais:

    (0 ) yahitherib, "os habitantes da casa coletiva" ou kamitheriyamake, "ns, os co-residentes": o grupo local.

    (1) nohimotime theb, "as pessoas amigas ou hwama thb, "os hspedes, os visitantes": o conjunto inter-comunitrio dos aliados.

    (2) nab theb, "as pessoas hostis": o conjunto dos inimigos prximos (atuais).

    (3) tanomai theb ou tamumawib, "as pessoas que no se v ou no se conhece": o conjunto dos inimigos antigos ou potenciais.

    (4) tanomai theb yay ou tamumimahiowib, "as pessoas que realmente no se conhece": o conjunto dos inimigos desconhecidos10.

    A projeo dessas categorias no espao forma um campo de circunscri- es concntricas no qual cada grupo local situa as comunidades que constituem o seu universo de conhecimento social direto ou indireto11. Toda comunidade de referncia mantm com suas homlogas, classificadas nessas diferentes esferas de alteridade, um conjunto graduado de relaes de reciprocidade matrimonial, econmica, poltica, ritual e simblica. A armao complexa dessas interrelaes institui e constitui como uma totalidade integrada a organizao e a filosofia social yanomam.

    10. Essa designao dos inimigos desconhecidos (4) deriva da dos inimigos antigos ou potenciais (3). Um outro uso deriva da denotao dos inimigos antigos ou potenciais (3) da dos inimigos atuais (2) (nab theb hwlhoho), enquanto tanomai-thb designa unicamente os inimigos desconhecidos (ver Albert 198S: 193).

    11. A dinmica de fisso/migrao da populao yanomami (ver Chagnon 1974, Colchester 1982: 83-103, Hames 1983 e Lizot 1984b) evidentemente toma bastante mutvel a composio emprica dessas circunscries scio-polticas.

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    Poderes patognicos e alteridade canibal

    A teoria das agresses sobrenaturais intercomunitrias um dos subsistemas fundamentais desse conjunto. De acordo com o sistema etiolgico yanomam, os membros de um grupo local imputam genericamente aos das comunidades de cada uma das circunscries polticas ao seu redor poderes patognicos especficos. Ao exerccio desses poderes so atribudos quase todos os casos de doena e de morte que ocorrem entre eles12. Essas acusaes constituem o registro simblico dominante atravs do qual se concebem, se exprimem e se medem quotidianamente as relaes polticas supra- locais. Elas constituem o pano de fundo cognitivo e pragmtico de todos os conflitos intercomunitrios yanomam.

    No seio da mnada local, universo ideal dos afins-cognatos e da reciprocidade/solidariedade generalizada, o entrelaamento introvertido das relaes matrimoniais garante a ausncia de agresses malficas. Para alm desse fascnio pela indiviso, e como obsesso especular, esto "os outros" (yayo thb), universo incerto onde, medida em que se atenua e se distende o domnio do parentesco, aumenta o reino da violncia efetiva ou simblica. "Ns", crculo do parentesco por excelncia, onde os perigos da afinidade so reabsorvidos num cognatismo modelo e no qual se funda e se restringe o exerccio da autoridade poltica. "Os outros", espao poltico acfalo onde se inscrevem e se gerenciam, segundo um complexo sistema ritual intercomunitrio, os poderes patognicos do parentesco ambguo ou ausente, de qualquer modo impotente para regular o movimento relativo das mnadas comunitrias.

    De modo bastante esquemtico, os poderes malficos de origem humana (ynomam theb uno) em questo aqui so os seguintes:

    (1) No seio do conjunto multicomunitrio dos aliados em geral quatro ou cinco grupos locais vizinhos ligados por intercasamentos e relaes cerimoniais (poltico-econmicas) regulares (reahumu) teme-se uma forma de feitiaria cujos efeitos, muitas vezes graves, podem no entanto ser reduzidos graas a uma cura xamnica apropriada. Essa "feitiaria comum"

    12. Num conjunto de 107 diagnsticos de doena, 73% remetem a agresses malficas de origem humana e 27% a agresses sobrenaturais no-humanas. Em 160 causas de morte (recentes e antigas), as propores so respectivamente 53% e 10% (Albert 1986: 711).

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    baseia-se na utilizao de uma vintena de substncias, geralmente vegetais, desidratadas e pulverizadas, para serem subrepticiamente aplicadas ou projetadas sobre uma vtima durante uma visita ou um ritual intercomunitrio (heria).

    (2) Entre inimigos atuais (prximos) entre os quais reina uma hostilidade institucional, que se manifesta de tempos em tempos em reides (wayu huu) e numa "reciprocidade negativa" matrimonial e econmica13 teme-se uma feitiaria cujas conseqncias so invariavelmente letais. Considerada como atributo dos "homens corajosos" (waitherim theb), essa "feitiaria guerreira" consiste numa incurso secreta contra uma comunidade inimiga (kara huu) durante a qual se sopram com a sarabatana setas carregadas de substncias malficas (horabrai) em pessoas que se afastaram de seus co- residentes14, ou se aproveita a escurido para despejar um veneno mgico nos alimentos de pessoas adormecidas (bashuwai)IS.

    (3) Aos inimigos antigos ou potenciais, cuja hostilidade j foi experimentada ou prevista, mas que, devido distncia, esto fora de alcance efetivo, atribui-se a prtica de um xamanismo agressivo (koiy), considerado responsvel, entre outros, por grande parte das mortes de crianas. Essas agresses so concebidas sob a forma de envio de espritos auxiliares malficos (n warib ihirubS a n shaburibi) que tm a aparncia de huma- nides em miniatura. Esses espritos, invisveis para os no-xams, vo munidos de armas e de objetos patognicos sobrenaturais, com os quais neutralizam suas vtimas antes de devor-las.

    (4) Da parte dos grupos situados nos confins de seu universo social, cuja existncia s conhecida atravs de vagos rumores intercomunitrios conjunto indefinido de comunidades hostis por definio , os membros

    13. Raptos de mulheres e pilhagem das comunidades inimigas constituem um benefcio apreciado, mas secundrio, dos reides yanomami. Isso fica claro no plano material (apesar de muitas das primeiras ferramentas de metal terem sido obtidas desse modo). Um estudo de Lizot (1988: 540-541) de 350 casamentos entre os Yanmam do Orinoco, avaliou em0,8% as unifies por captura, confirmando-o no plano matrimonial. Sobre os alicerces rituais da guerra yanomam, ver Albert 1985: cap. XII.

    14. O que deve fazer com que a vtima entre num estado de estupor que permita aos feiticeiros/guerreiros quebrar-lhe os ossos.

    15. Omitimos aqui, retendo apenas o essencial, uma forma de feitiaria atravs das pegadas, tcnica e sociologicamente intermediria entre feitiaria comum e feitiaria guerreira (ver Albert 1985: 268-282).

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    de um grupo local temem a caa de seus alter ego animais (rishi). Os Yanomam crem que cada ser humano possui um analogon animal que vive nos confins do espao social de sua comunidade. Esses duplos animais tm uma distribuio cruzada: os rishi da comunidade A vivem no territrio de "inimigos desconhecidos B, ao passo que os rishi de B vivem no de A. Os destinos do animal e da pessoa so indissociveis, a morte de um acarreta inevitavelmente a morte do outro.

    Finalmente, quando doenas e mortes no so atribudas a poderes patognicos humanos isto , quando no se deseja conferir-lhes uma dimenso poltica , so atribudas s inclinaes agressivas de seres sobrenaturais (yai theb uno). Entre eles, dominam os espritos malficos da floresta (n waribe), geralmente descritos como humanides ou insetos mos- truosos. Encarnao dos poderes agressivos da natureza, so especialmente associados a locais inspiros (mata fechada, lagos, colinas, beiras de rio...) e a fenmenos atmosfricos. Ogres sobrenaturais, acredita-se que vem os humanos como animais a serem caados e devorados assim que cruzam seus territrios16.

    Para completar o apanhado dessas concepes etiolgicas, devem ser evocados os prolongamentos simblicos do sistema das alteridades sociais e ontolgicas que elas delineiam na teoria patognica e no sistema ritual yanomam (ritos de homicdio e ritos funerrios). Cada uma das modalidades de agresso humana ou no-humana descritas se caracteriza por acionar princpios ou objetos patognicos sobrenaturais. Na feitiaria (comum ou guerreira) a forma essencial (heriri) da substncia malfica (hri) que afeta o princpio vital da vtima17. Na agresso dos espritos xamnicos e na dos espritos malficos, so as armas e objetos patognicos sobrenaturais dessas entidades1'. Na matana do duplo animal, as pontas de flechas que atingem

    16. Obtivemos descries de mais de cinqenta n waribe; 14% dos casos de doenas e 6% das mortes de nossa amostra lhe so atribudos. O restante das agresses no humanas atribudo aos poderes vindicativos do principio vital dos animais ou vegetais contra seus predadores humanos: 13% dos casos de doena, 4% das mortes.

    17. As substncias hri da feitiaria comum "queimam" o princpio vital, causando febre, alteraes da percepo, astenia...

    18. Espritos xamnicos e espritos malficos ferem o princpio vital com faces e pequenas flechas, amarram-no com fios de algodo ardente, prendem-no dentro de cestos; cada uma dessas metforas corresponde a um determinado sintoma (dor, febre, sufocao).

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    o corpo do animal so transportas de modo sobrenatural para o principio vital do ser humano. Todos esses objetos e armas patognicos so designados como m a tih ib e de seus detentores, termo que denota tambm os bens considerados preciosos, tais como ossadas humanas, adornos de penas e, atualmente, objetos manufaturados19.

    A agresso ao principio vital das vtimas visa afetar temporariamente sua integridade (feitiaria comum) ou permitir, com essa neutralizao, sua devorao sobrenatural (feitiaria guerreira, xamanismo agressivo, agresso ao duplo animal, predao dos espritos malficos). Os Yanomam associam estreitamente o "princpio vital" (n utubi noremi), motor da animatio corporal e das pulses agressivas, e o sangue (iy), considerado como elemento fundamental do corpo e agente do devir biolgico. A massa muscular chamada iyhik ("suporte do sangue") e as variaes da consistncia sangunea regem maturao e envelhecimento. O cadver, invlucro corporal (bei sike) cujo princpio vital foi devorado por um agressor de modo sobrenatural, designado o termo kanasi, que significa "sobras, restos de uma refeio". A simblica yanomam das agresses sobrenaturais, humanas ou no- humanas, baseia-se, portanto, numa dupla metfora canibal: a agresso ao princpio vital vista ao mesmo tempo no modo da predao ontolgica e no da devorao biolgica20.

    Essa patogenia antropofgica concebida sob divesas modalidades, que opem as esferas de alteridade sociolgica e ontolgica, s quais so associadas de acordo com um "tringulo culinrio" canibal. Assim, do lado do cru, temos a omofagia selvagem dos espritos malficos (no-humanos), que devoram como predadores os humanos considerados como caa; do lado do podre, a omofagia ritualizada dos inimigos (no-parentes), que devoram simbolicamente a carne em putrefao de suas vtimas no mbito do rito homicida unokaimu; finalmente, do lado do cozido, a osteofagia "culinria"

    19. O interesse dos Yanomami pelos objetos manufaturados, exticos e profusos, baseia-se, mais do que na utilidade produtiva de alguns (Colchester 1982: 332-345), no valor de troca superlativo de todos (ver Saffirio 1980: 51-52 sobre a variedade dos objetos trocas, Chag- non 1983: 61 sobre sua quantidade e Sahlins 1980: 188-204 sobre o etnocentrismo da noo de valor de uso).

    20. Para os Yanomam, todos os homicidios, mgicos ou fsicos, constituem formas de predao simblica que exigem a realizao do mesmo rito de digesto canibal figurada, unokaimu. Nas agresses fsicas, ao contrrio das agresses mgicas, a devorao metafrica do corpo leva do principio vital (ver Albert 1985, cap. XI).

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    e cerimonial dos aliados (afins potenciais), que, embora excluidos das acusaes de agresso letal, so integrados ao modelo das alteridades canibais ao serem convidados a consumir ritual mente as cinzas dos ossos dos mortos de seus anfitries (cognatos enlutados) durante as cerimnias funerrias inter- comunitras (reahu)*'. Assim, a teoria yanomam das agresses/predaes gradua em termos de naturalidade relativa o canibalismo metafrico, postulado entre as esferas concntricas de alteridade que ela distingue. Os aliados se opem aos inimigos assim como a cozinha omofagia. Ambos se opem tanto aos espritos malficos, tal como o canibalismo institucional se ope ao canibalismo selvagem, como aos cognatos, tal como a alimentao comum se ope ao canibalismo ritualizado. Portanto, "como se" essa filosofia scio-ontolgica da alteridade s se desenvolvesse no registro do canibalismo simblico para melhor se opor, de dentro, ao canibalismo "real", esse outro canibalismo selvagem , que s pode ser o canibalismo dos outros, canibalismo da alteridade absoluta, o dos ogres humanides da floresta (mas tambm dos ancestrais pr-culturais e das etnias longnquas). A alteridade relativa dos aliados e dos inimigos remete, por sua vez, a um canibalismo cultural que define os seres humanos e o estado de sociedade enquanto tais. Essa lgica da alteridade canibal, que estrutura um espao poltico-onto- lgico global, de onde se deduz a mnada local como paradigma da identidade e da humanidade, constitui o eixo fundamental da filosofia social yanomam. Ou melhor, essa lgica constitui e institui indissociavelmente a sociedade yanomam atravs do sistema de interpretao das mortes e do tratamento cerimonial dos cadveres que ela sustenta: pela operao desse dispositivo etiolgico-cultural que tomam sentido e, literalmente, tomam corpo por meio da morte e dos mortos a organizao e a representao do espao social yanomam.

    21. Consumo figurado quando se trata das cinzas dos ossos de adultos, efetiva para as cinzas dos ossos de crianas.

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    Uma teoria etiolgica do contato

    No dever surpreender, dada a ligao entre surgimento dos brancos, aquisio dos objetos manufaturados e epidemias, o fato dos Yanomam terem feito de sua teoria etiolgica um dispositivo dominante de interpretao dos fatos e efeitos do contato. As epidemias (shawara) foram espontaneamente associadas a poderes patognicos, que diferem daqueles que se costumava atribuir s diversas figuras da alteridade social e ontolgica apenas na intensidade. Serviram, desse modo, como fio condutor para a identificao dos brancos e de seus bens, imediatamente includos na classe de agentes etiolgicos e objetos patognicos, respectivamente As modalidades dessa caracterizao variaram, em cada fase do contato, em funo das informaes disponveis sobre o processo de contaminao. Os sucessivos estgios dessas representaes da ligao entre epidemias, objetos manufaturados e brancos formam um sistema de transformaes que explora sistematicamente as configuraes permitidas pela teoria etiolgica yanomam. Analisemos agora essas "variantes patolgicas" do contato, esforando-nos por situ-las no contexto histrico e prtico que suscitou sua produo.

    As formas mais antigas dessas representaes podero ser reconstituidas atravs das lembranas diretas e indiretas narradas por nossos informantes mais velhos e, em relao a certos aspectos, pelo que conhecemos acerca da situao atual dos grupos yanomami mais isolados (Good 1981; Lizot 1984b, cap. 1). Esse procedimento de reconstruo simblica se justifica especialmente pelas propriedades cognitivas do registro yanomam da experincia histrica. Referimo-nos aqui capacidade de remanncia de certas interpretaes antigas que, embora em desuso, se mantm associadas, na memria coletiva, aos acontecimentos histricos que explicaram. Certos episdios marcantes da histria do contato as epidemias em particular so sempre evocados no presente segundo a sua interpretao "de poca", mesmo que acontecimentos contemporneos similares recebam uma interpretao diferente. provvel que esse

    22. Os ancies contam a crnica histrica dos locais em que viveram, ou a de comunidades contemporneas que lhes foi relatada, durante falas formais (hereamu) ao cair da tarde ou ao amanhecer. Nelas transmitem tambm, ainda que mais raramente, relatos que herdaram dos discursos de seus ascendentes.

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    fenmeno de inrcia cognitiva se deva a um efeito secundrio do mtodo yanomam de memorizao dos acontecimentos histricos, a partir de sua associao aos nomes dos lugares ocupados quando ocorreram. possvel conceber que uma memria histrica assim construda, na forma de clulas narrativas articuladas entre si unicamente por um "exo-esqueleto" toponmico23 (os stios de um trajeto migratrio) constitua um obstculo cognitivo s interpretaes retrospectivas, a descontinuidade dos acontecimentos acarretando a de suas interpretaes. Daremos exemplos desse fenmeno.

    Contato indireto: feitiaria guerreira

    O "grau zero" das representaes yanomam da presena branca tomou forma durante o perodo de estabelecimento e intensificao dos contatos entre a frente de expanso de incio colonial e em seguida nacional e as vrias etnias que circundam os Yanomami, na vasta regio compreendida entre a margem direita do rio Branco e a margem esquerda do rio Negro (de 1730 a 1930 aproximadamente). Durante esse perodo de contato indireto, essas "etnias-tampo constituem progressivamente para os Yanomam atravs de saque ou de troca24 uma fonte de fragmentos de ferramentas de metal e de novos gneros de cultivo, que modificam seu sistema produtivo e, desse modo, provavelmente favorecem seu crescimento demogrfico. Essa expanso ser reforada pela abertura de vastos territrios, que vo se esvaziando devido dizimao progressiva das etnias circunvizinhas25. Durante esse perodo, os Yanomam j so indiretamente contaminados por epidemias ocasionais de doenas infecciosas. provvel, contudo, que o efeito de quarentena das viagens de retomo aps longas expedies de guerra ou de comrcio tenha contribudo para limitar o alcance do contgio. A histria oral dos Yanomam do sudeste narra alguns casos de epidemias que, segundo nossos dados histricos e genealgicos para essas comunidades

    23. Ver Albert 1985: 121-126 e, para outros casos, Rosaldo 1980: 55-56 e Seeger 1981: 75-7924. Algumas fontes relatam relaes de guerra ou de comrcio entre os Yanomami e pelo

    menos seis etnias vizinhas no sculo XIX (ver Albert 1985: 40-41).25. Os Yanomam do Catrimani provm, por fisses sucessivas, de comunidades que estavam

    localizadas na Serra Parima no final do sculo XIX. Os Pauxiana (caribes) que ocupavam o curso superior do Catrimani no sculo XVII (Nimuendaj 1981) eram aproximadamente 250 no final do sculo XIX (Coudreau 1887: 255) e 10 em 1932 (Holdridge 1933: 374).

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    permitem deduzir, teriam ocorrido entre o final do sculo XIX e o incio do XX.

    Essas epidemias espordicas so atribudas feitiaria guerreira yanomam. Feiticeiros inimigos so acusados de conduzir incurses secretas (ka- ra huu), para lanar, em fogos acesos nas proximidades das casas visadas, substncias malficas, cuja combusto solta uma fumaa patognica (shawa- ra wakshi, "epidemia-fumaa") capaz de causar a morte da maior parte de seus ocupantes. As epidemias que nos foram relatadas, e que podemos datar entre 1850 e 1920, so invariavelmente interpretadas de acordo com esse esquema, geralmente no relato das revanches guerreiras que suscitaram. Nessa interpretao anterior ao contato, cruzam-se referncias a duas prticas tradicionais. De um lado, o uso agressivo de fumaas deletrias, como por exemplo a utilizao de fumaa de pimenta na guerra (Albert 1985: 764). Do outro, o emprego de substncias malficas durante incurses secretas, tal como definido na feitiaria entre inimigos. Tem-se aqui, portanto, uma simples extenso da teoria da feitiaria guerreira, para dar conta do fato novo que representa a propagao das primeiras epidemias por contaminao indireta26.

    Durante essa poca, os Yanomam no concebem a existncia de outros grupos humanos alm das etnias amerndias que os circundam. Eles se auto- designam ynomam, os "seres humanos", e chamam esses grupos de ynomam theb nab, os "seres humanos estrangeiros"27. A origem desses estrangeiros, que atesta sua humanidade de segunda classe, contada num mito que descreve sua criao por Remori28, demiurgo de linguagem inarticulada que mora nas plancies arenosas dos confins do mundo. Essa criao realizada a partir da espuma do sangue de Yanomam devorados por vrios

    26. Os Yanomam do Catrimani tiveram pouco contato direto com etnias circunvizinhas. Outros Yanomami que tiveram maior contato com esses grupos interpretaram de modo diverso as epidemias desse perodo; os Sanima (Yanomami do norte), por exemplo, introduziram em sua etiologa entidades malficas s quais atribuem a aparncia de seus vizinhos Yekuana (Colchester 1982: 528, Colchester, org. 1985: 56).

    27. nab significa "estrangeiro" e "inimigo", e se aplica genericamente a todos os tipos de inimigos (atuais, antigos, potenciais) e estrangeiros (ndios ou brancos). Pode tambm significar "Yanomami de outra rea dialetal", "Yanomami aculturado" ou at mesmo "esprito malfico".

    28. Zango, de remoremoreashi, Centris sp.; os Yanomam comparam as lnguas estrangeiras ao seu zumbido.

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    predadores aquticos, aps um dilvio provocado pela desobedincia a um rito de recluso da puberdade. A existncia dos brancos parece transparecer unicamente em rumores espordicos (que s vezes ainda so lembrados pelos velhos que evocam essa epca) de encontros entre Yanomami, na floresta, nos confins da terra, e espectros carecas e esbranquiados, vindos das "costas do cu" e subindo os rios em busca de seus familiares ainda vivos29.

    No final de longos circuitos de troca inter- e intra-tnicos, os Yanomam acabam adquirindo fragmentos de metal, que so incorporados a ferramentas tradicionais, e principalmente a uma espcie de machadinha (haowatim boo a), cuja lmina de pedra amarrada a um cabo de madeira substituem por uma lmina metlica30. Trata-se aqui simplesmente de integrao de um elemento novo num sistema tcnico tradicional. O uso de fragmentos metlicos aparentemente no objeto de nenhuma elaborao simblica que os diferencie de outros elementos da cultura material indgena, emprestadas ou no durante esse perodo: atribuido ao demiurgo yanomam, Omame.

    Epidemias, identificao dos brancos e objetos metlicos, de certo modo "filtrados" pelas etnias que cercam os Yanomam, so, portanto, absorvidos sem inter-relaes simblicas entre eles em sistemas culturais distintos: teora etiolgica, cosmologa e tecnologia. So integrados sob a forma de incluses que no requerem nenhum reajuste estrutural de seus sistemas de recepo. Nada na realidade emprica do contato indireto obriga, ainda, elaborao de uma articulao simblica entre essas trs ordens de realidade. A reflexo, nesse momento, concentra-se na origem e existncia das etnias circunvizinhas, cuja diferena, sobre um fundo tecno-cultural compatvel, se encontra sancionada por um discurso mitolgico centrado no carter degenerativo da alteridade tnica.

    29. As "costas do cu", morada dos mortos, um dos quatro nveis do universo yanomam. Essa associao indireta dos brancos com fantasmas reaparecer sob a forma de uma associao direta quando dos primeiros contatos. A volta dos fantasmas um tema insistente do sistema mitolgico e ritual yanomam (ver Albert 1985: 740-744 e cap. XIV).

    30. Possumos uma lmina de machadinha de pedra yanomami recentemente utilizada, proveniente do alto Apia (1975). Sobre os machados com lmina de feno, ver Zerries 1974, fig. XXIV, n. 138-149, Smole 1976: 112, Colchester 1982: 89 e Lizot 1984b: 16. Sobre outras ferramentas "sincrticas" com o mesmo princpio, ver Lizot 1984b: 16 e Jovita 1948: 86.

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    Primeiros contatos: a fumaa do metal

    Durante as primeiras dcadas do sculo XX, desaparecem os ltimos sobreviventes das etnias que circundavam os Yanomam. Estes tm, ento, seus primeiros contatos diretos entre os anos 10 e 40, dependendo do grupo com coletores de produtos da floresta, exploradores estrangeiros ou membros da Comisso Brasileira de Demarcao de Limites (CBDL) e do Servio de Proteo aos ndios (SPI) (caso dos Yanomam do rio Catrimani, Roraima, que evocaremos mais especificamente a seguir).

    Esses primeiros contatos so invariavelmente precedidos de perodos de observao. Os Yanomam seguem e espiam os intrusos durante dias, e os mantm a distncia, lanando varas de madeira atravs da vegetao assim que estes se aproximam, ou amarrando galhos para que desistam de utilizar suas picadas. O primeiro encontro finalmente acontece: os Yanomam invadem repentinamente o acampamento dos brancos, exibindo enfeites cerimoniais prprios dos visitantes. H insegurana de ambos os lados. Os expedicionrios, aplicando seu manual de pacificao, afogam os ndios em presentes, com um zelo febril. Os Yanomam, logo que os recebem guardando apenas ferramentas de metal e rolos de pano vermelho , correm nervosamente para entreg-los s crianas escondidas na floresta. Sem demora, essa primeira troca se transforma no primeiro mal-entendido. Os brancos, pacificadores apressados, tentam desajeitadamente retirar as armas dos ndios, abraando-os numa grotesca dana de confraternizao. Sentindo-se ameaados, os Yanomam resistem. Alguns imobilizam seus parceiros, para permitir aos outros fugir levando do acampamento tudo o que puderem, outros reagem com socos e pedradas. Mas o efeito da estranheza ameaadora dos brancos nunca to intenso como quando surpreendem os Yanomam em suas casas. A maior parte deles, amedrontada, foge imediatamente para as roas ou para a floresta, e apenas alguns homens ousam encarar os invasores, discursando agitadamente, super-excitados pelo medo, antes de se deixar agarrar, tremendo, por seus "pacificadores"31.

    31. Ver SPI - 1* IR: "Relatrio referente ao exerccio de 1941": 160-161 e 165; "Relatrio de viagem ao Demini, S.M. Xerez, 1941: 6; CBDL - 1' Divisio 1944: 212 e Jovita 1948: 64, 69, 109, 112, 316. Para relatos dos primeiros contatos na Venezuela, ver Lizot 1976: 10-12 e 1984b: U-12, 20-21.

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    A apreenso, ou medo, dos Yanomam diante dessa irrupo dos brancos em seu territrio estava ligada a uma hesitao, em sua caracterizao ontolgica, entre duas categorias de inumanidade. Inumanidade manifesta em sua aparncia repugnante e sua origem indeterminvel. Sua lngua inarticulada32, o fato de terem subido os rios em territrio yanomam, a palidez e a calvcie de alguns faziam pensar, seguindo os rumores do contato indireto, em fantasmas que teriam fugido das "costas do cu", naquele local em que a sua curvatura o aproxima do disco terrestre, nos confins do mundo. Nossos informantes mais velhos contam que essa foi a primeira interpretao que ocorreu a seus pais. Mas os traos estranhos dessas criaturas, como sua horrvel pilosidade, suas andanas pela mata fechada, sua ausncia de dedos nos ps (sapatos), sua capacidade de sair facilmente da prpria pele (roupas) e suas posses extraordinrias33 sugeriam a possibilidade de se tratar de espritos malficos (n warib) provenientes dos confins das florestas yanomam.

    Epidemias no demoraram a se espalhar aps esses primeiros contatos. A contaminao ocorria sistematicamente aps as expedies aos acampamentos brancos para conseguir objetos manufaturados. Os Yanomam elaboraram uma nova teoria epidemiolgica em funo dessa "co-incidncia". Atriburam um princpio patognico (wayu) s posses dos seres estrangeiros que tinham irrompido em seu territrio, e chamaram as epidemias de boob waksh, "fumaas das ferramentas, fumaa do metal":

    Quando os brancos abriam as caixas nas quais guardavam seus bens, saa uma fumaa (poeira) cheirosa. O perfume era terrivelmente forte, e havia todos aqueles faces; ficvamos intrigados: "ser que o perfume era dos faces? Os brancos diziam: "venha cunhado" e ns respirvamos aquele cheiro. Era na verdade a fumaa das ferramentas. A fumaa saa dos faces. Depois de pegar os objetos que os brancos me deram, sa imediatamente do acampamento deles e vomitei. Estava com medo, meu peito estava fraco. Ento nos reunimos, para lavar os objetos que tnhamos conseguido num riacho prximo. Esfregamos tudo com lama

    32. Pronunciar sons incompreensveis, ser mudo ou no falar yanomam falar uma "lngua de fantasma".

    33. Os xams atribuem aos espritos malficos uma superabundncia de bens materiais extraordinrios.

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    e com areia54. A fumaa era doce e enjoativa como a que escapa dos motores de avio. Deixvamos os objetos mergulhados na gua dos riachos. S os pegvamos bem mais tarde. Quando eram levados sem precaues, a pessoa logo adoecia. A fumaa entrava em ns, aquela fumaa cheirosa do metal que estava dentro das caixas de faces. Ela ficava na parte de cima, dentro de um pacote de papel grosso, e impregnava o contedo das caixas. Quando era liberada, causava a nossa morte. Tnhamos febre. Nossa pele comeava a cair. Era horrvel. Os velhos se perguntavam: "o que fizemos ns para que nos matem?" E diziam "no vo se vingar dos brancos!". Ns, os mais jovens, queramos flech-los, mas os velhos insistiam: "no os flechem, eles tambm so 'gente da espingarda', vo nos atacar com suas espingardas (Severiano, yanomam originrio do alto Catrimani, entrevistado em Toototobi, 1981).

    Os acontecimentos e conseqncias desses primeiros contatos se enquadravam em concepes tradicionais, cuja coerncia e convergncia s podiam orientar a reflexo para a tese da "fumaa do metal". A polissemia do termo matihib ("bem precioso" e "objeto patognico"), a inquietante estranheza dos brancos, sua manipulao compulsiva de objetos de troca e a relao recorrente entre contgio e aquisio dos objetos manufaturados, todos eram indcios prprios para favorecer a associao dos brancos com espritos malficos. Os Yanomam identificam, como vimos, os pertences dessas entidades com objetos patognicos. O forte cheiro doce exalado pelas caixas dos brancos35 confirmava, alm do mais, o carter deletrio dos objetos que continham. Os Yanomam atribuem tradicionalmente aos perfumes fortes (riyeri) propriedades perigosas36, e, como vimos, j representavam a propagao das epidemias sob a forma de fumaa patognica. Alm disso, as ferramentas de metal e peas de algodo vermelho (tokokik), "coisas da tosse"), nicos objetos brancos culturalmente inteligveis logo nos primeiros contatos, foram apreendidos como prottipos sobrenaturais de seus equivalentes indgenas (facas de bambu, faces de madeira de palmeira e machadinhas com lminas de pedra ou de pedaos de metal; enfeites de algodo

    34. Crevaux (1983: 539) relata que os Mac do Ventuari (antigamente vizinhos dos Yanomami) pegavam os colares dados pelos brancos com uma folha e esfregavam-nos na areia para se prevenir da tosse e da febre.

    35. Esse cheiro provinha provavelmente do papel oleado em volta dos faces, das barras de sabo e dos tecidos de algodo, que tambm eram guardados nessas caixas.

    36. riyeri um cheiro forte e adocicado, associado ao princpio ativo dos alucingenos e dos objetos patognicos.

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    tingidos de vermelho). Essa relao de "afinidade superlativa", origem do fascnio exclusivo que exerciam esses objetos de troca, permitia igualmente sua associao s posses extraordinrias dos espritos malficos da floresta.

    Duas anedotas comprovam a remanncia dessas representaes histricas. Durante uma visita aos Watoriktheri (regio Catrimani-Demini), em 1985, abri, a pedido de meus anfitries, uma caixa contendo presentes para eles. Um velho xam, fazendo um inventrio, brincou imediatamente sobre o cheiro "perigoso exalado pela caixa e explicou que foi assim que os primeiros brancos dizimaram os antepassados do grupo. Em 1984, uma equipe de televiso que fazia uma reportagem na mesma comunidade ofereceu uma pea de algodo vermelho, presente tpico dos primeiros contatos. Os ancies, temendo uma epidemia, exigiram que fosse imediatamente embalado e enviado de volta. Em ambos os casos, uma sensao ou um objeto associados a um passado remoto bastaram para fazer aflorar repentinamente, em forma de brincadeira ou de apreenso, uma teoria etiolgica abandonada havia meio sculo.

    Contato intermitente:visitantes feiticeiros e xams citadinos

    Aps seus encontros com os brancos, os Yanomam do rio Catrimani mantm contatos espordicos com um posto do SPI e diversos representantes da fronteira regional, e assim, entre 1920 e 1965, passam por um perodo de contato intermitente. Nesse momento, adquirem diretamente produtos manufaturados em troca de produtos da floresta ou agrcolas e de trabalhos avulsos ou sazonais (coleta, carregamentos, desmatamentos). Suas redes de aliana poltica, orientadas para os Yanomam do norte, de quem obtinham fragmentos de metal provenientes dos Yekuana (caribes), so progressivamente abandonadas. Sua trajetria migratria orienta-se mais em direo ao sul, em busca de alianas com grupos yanomam em contato regular com os brancos, ou de locais mais prximos daqueles ocupados ou freqentados por estes ltimos. O preo dessa busca de um acesso mais direto s ferramentas de metal so graves perdas demogrficas, causadas pelas epidemias de doenas infecciosas e malria, invariavelmente contradas aps os contatos com os regionais. Entre o final dos anos 20 e meados dos anos 60, pelo menos cinco epidemias assolam as comunidades do rio Catrimani.

    Alguns ancies mais prudentes, diante da experincia das primeiras contaminaes, pensaram em fazer meia volta em direo s terras altas,

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    mais salubres. Tentaram convencer os seus, sem sucesso; o avano migratrio dos inimigos deixados pelo caminho obrigava a prosseguir na aventura do contato. Os Yanomam comearam a fornecer servios e produtos mais regularmente aos brancos, recebendo em pagamento cada vez mais objetos de troca. No mbito dessas interaes mais freqentes, a teoria da "fumaa do metal" e a identificao dos intrusos com espritos malficos tiveram de perder o crdito, ao passo que a associao entre brancos e epidemias se reforava. Uma reinterpretao das relaes entre identidade dos brancos, objetos manufaturados e epidemias tomava-se indispensvel para entender e dominar os desenvolvimentos da situao de contato, e tomou forma a partir da seleo de novos fatos significativos37.

    Muito afastados de suas bases, pouco numerosos e cercados por ndios desconhecidos, os brancos, que procuravam atrair os Yanomam para seus estabelecimentos, faziam-lhes apenas breves visitas. Os motivos de conflito, contudo, logo se multiplicaram. Os Yanomami suportavam mal a avareza, o autoritarismo arrogante e os modos detestveis dos intrusos. Os brancos se irritavam com as dificuldades de arregimentar os ndios para seus empreendimentos econmicos, com sua constante demanda de produtos manufaturados, e com o fato de se recusarem a colocar mulheres sua disposio. Esse clima de hostilidade reforava a tendncia dos Yanomam a considerar esses visitantes, a quem mal se atribura o carter humano, mais como estrangeiros, isto , inimigos em potencial, do que como aliados. Comearam ento a surrupiar seus bens e trat-los com menos amenidade do que tinham feito ao chegarem, quando se sujeitavam aos usos rituais de acolhida.

    As epidemias provocadas por essas visitas surgiram, portanto, para os Yanomam, num contexto de conflitos econmicos e "matrimoniais" com visitantes estrangeiros. Alm disso, seu incio muitas vezes coincidia com a partida mais ou menos precipitada dos brancos, que encurtavam sua visita temendo o resultado dessas tenses, ou a reao dos ndios diante da epidemia cujos efeitos comeavam a se manifestar. Como a propagao das epidemias era diretamente ligada a essas visitas conflituosas, as mortes que provocavam s podia ser atribuda pelos ndios vingana dos brancos,

    37. Sintetizamos aqui vrios relatos yanomam (regies do Catnmani e do Demini) e brancos (Anjuivos do SPI - 1* IR/Posto Ajuricaba).

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    considerados visitantes-inimigos, que, alis, se traam ao fugirem3*. Tudo isso remeta a uma configurao das interaes- polticas tradicionais: os encontros entre grupos desconhecidos ou inimigos numa tentativa de aliana ou reconciliao, chamados remimu (ver Albert 1985: 212-214).

    Essa situao de contato deu origem a uma nova translao do tringulo epidemias/brancos/objetos manufaturados no mbito da teoria etiolgica yanomam. As epidemias provocadas pelos brancos, inimigos em visita, foram culturalmente registradas como uma forma de feitiaria guerreira. A feitiaria guerreira tradicionalmente atribuda a inimigos yanomam na interpretao de mortes individuais. Durante o perodo do contato indireto, a competncia atribuida aos guerreiros-feiticeiros (okab), tinha sido estendida, como vimos, para explicar as primeiras epidemias. Assim, a teoria da feitiaria guerreira tinha sido adaptada uma primeira vez para explicar experincias de contaminao indireta. Havia ocorrido uma derivao da concepo de uma feitiaria de efeitos coletivos por propagao (fumaa patognica) a partir da concepo de uma feitiaria por projeo (substncias/venenos mgicos) de efeito individual. As epidemias por contaminao direta do perodo de contato intermitente obrigaram os Yanomam a conceber uma nova tcnica de feitiaria imputada aos brancos e adaptada aos contextos de interao que se supunha serem aqueles em que exerciam sua malevolncia. Pensou-se ento que, para se vingarem dos roubos e da recusa das mulheres, eles se isolavam nas proximidades da casa visitada, como feiticeiros inimigos, para espalhar uma fumaa patognica. Fumaa que sairia de uma caixa metlica (contendo papis cobertos de inscries), da fuso de materiais explosivos no solo ou nos ares39, ou da queima de pedaos de objetos industriais40 (shawara yaai). Temos aqui igualmente uma transformao da teoria dos objetos manufaturados patognicos. No se atribui mais s ferramentas e peas de algodo exala

    38. Acredita-se que todo matador foge para realizar o rito de digestio canibal figurada unokaimu.

    39. O SPI utilizava nessa poca foguetes para sinalizao ou intimidao (SPI - 1' IR: Normas para atrao e pacificao, 1943).

    40. Sobre uma teona yandmami semelhante (epidemias provocadas pela queima de cacos de ganafas, espelhos e pedaos de pano), ver Valero 1984: 38-39, 158, 169-170, 506. Sobre o medo das "fumaas" produzidas pelos brancos, ver Lizot 1976: 11 (coco do ltex), Colchester 1982: 408-409 (pulverizao de inseticida), Valero 1984: 205 (escapamento de motor).

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    es deletrias, mas outros bens ou fragmentos de bens dos brancos, no associados s trocas, adquirem o status de substncias malficas de sua feitiaria guerreira. O tema da fumaa mortfera varia de modo correlato, passando do status de emanao perfumada para o de produto de combusto.

    Os exemplos de remanncia dessas concepes, ainda hoje em vigor nas comunidades isoladas, so onipresentes na histria oral dos grupos de maior contato, que, no entanto, atualmente as abandonaram para interpretar epidemias. Uma manifestao suplementar desse fenmeno pode ser encontrada no fato de os Yanomam continuarem temendo a combusto de papel, de plstico e de todos os produtos dos brancos, mesmo que no acreditem mais em sua feitiaria.

    Esse modelo epidemiolgico do contato intermitente deixava, contudo, de dar conta da persistncia das epidemias transmitidas de grupo em grupo a partir de situaes e de pontos de contato afastados, e, portanto, sem interveno aparente dos brancos. A teoria etiolgica tradicional ofereceu um recurso para interpretar essas situaes de contgio indireto: o xamanismo de agresso. Assim, as epidemias que no podiam ser associadas a encontros com os brancos foram associadas aos efeitos de sua malevolncia exercida distncia, como se dispusessem de poderes xamnicos. Os espritos auxiliares malficos dos xams brancos foram chamados de tokorib, "espritos da tosse. Os Yanomam conceberam suas armas/objetos patognicos (matihib) sob a forma de faces sobrenaturais que cortam a garganta de suas vtimas e de peas de algodo vermelho cobertas de inscries perfumadas, que lhes apertam o peito para sufoc-las, provocando uma febre violenta. Esses espritos xamnicos tokorib, sedentos de carne humana, viriam pelos ares, das cidades para as comunidades yanomam, em vos materializados pela propagao de fumaas translcidas.

    Essa nova extenso e transformao do status etiolgico e patognico dos brancos originou a formao de um sistema no seio do qual eles passavam a se distinguir, por projeo da classificao scio-poltica yanomam, em inimigos prximos (atuais) e afastados (potenciais), praticantes, respectivamente, de formas derivadas de feitiaria guerreira e de xamanismo agressivo. Esse remanejamento.veio acompanhado de mais um deslocamento simblico do tema dos objetos manufaturados patognicos, que se transformaram em armas sobrenaturais de espritos xamnicos brancos, enquanto a fumaa deletria associada a seu cheiro tomou-se, numa mutao paralela, a manifestao material de seu vo agressivo.

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    As duas reinterpretaes dos poderes patognicos dos brancos elaboradas durante o perodo do contato intermitente impunha uma reviso do status ontolgico e classificatrio de seus detentores. Os Yanomam tiveram de adaptar seu mito de origem dos estrangeiros, para integrar a nele a criao dos brancos. Seu episdio inicial relata como um grupo de ancestrais foi varrido por uma torrente surgida do fundo da terra, em conseqncia de uma infrao ritual, e em seguida devorado por predadores aquticos. O segundo descreve como Remori deu novamente a vida espuma sangrenta que resultou dessa predao para criar os estrangeiros, considerados, assim, como Yanomam metamorfoseados ou, mais literalmente, "degenerados" (shiiwari- rayuwi). Os rearranjos do mito ocorreram nesse segundo episdio. Em termos gerais, opem a gnese dos brancos dos ndios no yanomam, postulando entre elas uma distncia no tempo (antes/depois) ou, em outras verses, de espao (rio acima/rio abaixo), ou, ainda, a partir de variaes de procedimento (recipiente aberto/fechado) ou de "matria prima" (espuma escura/clara), sendo que essas vrias configuraes podem ser combinadas. Assim, o que temos aqui no tanto uma transformao mtica, seno hipteses em experincia, variantes exploratrias que tratam de reconciliar o reconhecimento de uma humanidade comum e a constatao de diferenas culturais e fsicas radicais.

    A humanidade relativa dos brancos s se manifestava ento empirica- mente em alguns traos de seu comportamento, destacando-se, entre eles, o uso vindicativo dos poderes patognicos humanos que lhes era atribudo. Os mais velhos lembram deste perodo o discurso de seus pais para convencer os mais desconfiados de que os brancos no eram espritos malficos, mas Yanomam metamorfoseados. Nessa perspectiva, a classificao das relaes intertnicas se viu igualmente remanejada para responder s conseqncias dessa humanizao. Os intrusos foram chamados de nab kraiwab, "estrangeiros brancos", por oposio a ynomam thb nab, "humangp (ndios) estrangeiros41.

    A derivao semntica da designao dos estrangeiros a partir da dos inimigos (nab thb) induz, entre a classificao das relaes

    41. Sobre a incorporao mtica dos brancos nos vrios sub-gmpos yanomami, ver Albert 1985: 750-754, Colchester 1981: 67-70 e Lizot 1975: 35-36; sobre a sua integrao taxinmica, Albert 1985: 191, Colchester 1982: 381-382, Lizot 1976: 9, Ramos 1985 e Ramos et td. 1985: 8

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    intercomunitrias e a classificao das relaes intertnicas, uma superposio que subordina logicamente a segunda primeira e, ontologicamente, os primeiros aos segundos. Assim, no sistema social yanomam, os no-Yanomam so sempre inimigos antes de serem estrangeiros e s so estrangeiros (e no espritos) porque so inimigos. O que explica por que os brancos s puderam atingir a humanidade aps lhes terem sido atribudos poderes patognicos caractersticos dos inimigos. Uma vez inimigos, era possvel colocar sua alteridade do lado da humanidade dos estrangeiros Yanomam metamorfoseados e dissoci-la do campo da sobrenatureza dos espritos malficos qual tinha sido inicialmente ligada.

    Esses esforos de diferenciao mitolgica e classificatria no seio da categoria dos inimigos-estrangeiros se mantiveram, entretanto, no estado embrionrio, simplesmente porque, pelo menos na regio estudada, o perodo do contato intermitente foi tambm o do desaparecimento dos ltimos sobreviventes das etnias vizinhas. A relativa frouxido das informaes disponveis acerca dessas elaboraes, principalmente na mitologia, um indcio certo de que esse trabalho interpretativo, que foi repentinamente privado de objeto, deve ter ficado inacabado. Entre o contato indireto e o contato intermitente, o mito de origem dos ndios no yanomam foi progressivamente se transformando no mito de origem dos brancos, enquanto a categoria de estrangeiros (nabi0 acabou por design-los exclusivamente42.

    Contato permanente:rfos inofensivos e duplos canibais

    O fim dos anos 50, incio dos 60, marca o estabelecimento permanente, em territrio yanomam, de uma rede de postos missionrios (uma misso catlica no rio Catrimani, em 1965), que sedentarizam os grupos locais perifricos, interrompendo definitivamente a expanso territorial da etnia. As comunidades mais prximas da misso se arrogam o monoplio regional sobre os objetos manufaturados, obtidos em grandes quantidades, atravs da prestao de servios regulares de manuteno e ampliao desses estabele-

    42. Os Sanima, ao contrrio, reservam o termo nabi para os Yekuana, com os quais mantiveram contatos quase exclusivos at recentemente (ver Ramos 1985:99-100, Colchester 1982: 381-382). Devido sua participao no movimento indgena regional e nacional, os Yanomam comeam a chamar os outros ndios, que ressurgiram na sua atualidade poltica, de nabtbt yay, os verdadeiros estrangeiros".

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    cimentos, ou trocando-os por caa e artesanato. So elas as principais beneficirias da assistncia mdica missionria e da proteo contra os imprevistos da poltica intercomunitria, que lhes assegurada pela presena dissuasiva, no imaginrio dos grupos mais isolados, desses brancos com seus poderes mortferos sobrenaturais43. As "comunidades de misso" tratam de monopolizar e manipular em seu prprio proveito, dentro do jogo poltico intercomunitrio, os benefcios materiais e imateriais provenientes da presena desses postos em seu territrio. As vantagens dessa absoro prtica e simblica do poder missionrio, explicitamente reconhecidas pelos Yanomam, so aparentemente consideradas como uma compensao suficiente para os inconvenientes do sedentarismo, da docilidade e da dependncia.

    As redes de aliana intercomunitrias se polarizam e se tomam progressivamente mais densas em tomo dessas comunidades de misso, com as quais os grupos locais vizinhos tratam de contrair o mximo de alianas matrimoniais possveis, para, com isso, atravs de suas relaes afins, obterem um acesso regular aos remdios e s riquezas dos missionrios (direito de visita e estada prolongada na misso para trocas ou trabalho; exigncia de prestaes pr-maritais em objetos manufaturados)44. A populao dos grupos de misso tende a crescer mais rapidamente do que a das comunidades mais isoladas, tanto em virtude dos cuidados de sade quanto da alta taxa de imigrantes vindos de grupos aliados vizinhos4'.

    Contatos irregulares so mantidos, principalmente pelos grupos mais afastados da misso, com alguns representantes da fronteira extrativista regional, que foi se tomando residual. A presena dos missionrios exerce um efeito dissuasivo sobre a penetrao de outros brancos na zona de sua influncia. O monoplio sobre os bens e poderes dos "seus brancos" que os

    43. Os Yanomam "de missio" s vezes invocam a ameaa dos poderes patognicos de "seus brancos" em suas contendas polticas com os grupos afastados. O fato de estes ltimos serem geralmente mais afetados pelas epidemias do que eles basta para dar crdito a essas manobras de intimidao.

    44. As visitas de comrcio ou de trabalho de no-cognatos ou no-afins so mal recebidas pelos grupos de misso. Quando se prolongam demais, originam inevitavelmente acusaes de feitiaria ou conflitos abertos.

    45. O grupo Wakathautheri (Misso Catrimani) tinha 32 habitantes em 1967 e 85 em 1984, 23 habitantes de grupos vizinhos mudaram-se para l durante esse perodo.

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    Yanomam "da misso" pretendem conservar dissuade as comunidades do interior de visitar regularmente ou demoradamente esses estabelecimentos. Epidemias espordicas (gripe, coqueluche, sarampo...) continuam afetando gravemente os grupos situados fora da esfera missionria, mais expostos e sem assistncia para-mdica, enquanto os grupos nela includos escapam com mais freqncia contaminao ou, pelo menos, recebem tratamento rpido que reduz seus efeitos letais. Duas epidemais graves se espalharam desse modo pela regio do rio Catrimani (1967 e 1973) durante esse perodo de contato missionrio quasse exclusivo.

    As primeiras visitas dos padres (batereb) ao rio Catrimani (1960- 1965) no incio no se diferenciaram, para os Yanomam, das experincias anteriores de contato, mesmo porque eles utilizavam como guias antigos balateiros conhecidos na regio. Suas instalaes permaneceram precrias por muito tempo, e sua presena s se estabilizou realmente aps alguns anos (1965-1968). Seus empregados, recrutados entre a populao regional, causavam os mesmos problemas de contaminao (uma epidemia em 1967) e de coabitao (o rapto de uma mulher yanomam por exemplo). As relaes econmicas entre missionrios e ndios que os primeiros queriam "ensinar a trabalhar tambm no eram muito diferentes: recrutamento para limpeza de pista de pouso e de roas, troca de objetos manufaturados por caa e produtos agrcolas...46.

    As representaes epidemiolgicas yanomam elaboradas durante o perodo do contato intermitente puderam assim ser mantidas durante a fase de implantao dos missionrios. Com o passar dos anos, contudo, os indcios de suas boas intenes e a permannica de seu estabelecimento47 obrigaram a uma nova adaptao na teoria indgena. J no podia se tratar de inimigos visitantes suspeitos de feitiaria guerreira (interpretao ainda aplicada na epidemia de 1967, batere a shawara, "epidemia do padre"). Os Yanomam "da misso" comearam ento a absorver os missionrios em seu espao poltico e simblico. As expresses que denotam a relao implcita nessa integrao so eloqentes. Um lder de aldeia, por exemplo, dir deles "meus brancos" (iba nabb), "que tenho aos meus cuidados" (ya ka thabu-

    46. Sobre o que precede, ver CCPY 1982: 32-35, Diniz 1969: 6 e Shoumatoff 1978: 141-142, 159.

    47. Construes durveis, melhor controle dos empregados, assistncia mdica, provises regulares de bens de troca, celibato...

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    wi). O verbo thabu ("ter aos cuidados") geralmente se aplica aos rfos e refugiados4*.

    Essa incorporao-adoo social tambm se baseia fundamentalmente numa deduo etiolgica. Esses estrangeiros s podiam ser associados ao grupo local quando fosse possvel livr-los de toda e qualquer suspeita de agresso mgica letal. Dois aspectos da presena missionria, assistncia e co-residncia, que encontraram eco na lgica diagnstica yanomam, permitiram o reconhecimento cultural dessa neutralidade etiolgica. Um xam que beneficia com suas curas os doentes de uma aldeia qual no pertence (visita, rito intercomunitrio) prova com isso a sua inocncia, e a do seu grupo, na etiologa dos casos de que trata. Alm disso, as mortes sempre so atribudas pelos Yanomam, quando uma responsabilidade humana invocada, visita recente de inimigos ( de aliados para uma doena). Nesse caso, tanto nas visitas de pacificao remimu49 (inimigos antigos ou potenciais) como nas "visitas" ocultas de agresso kara huu (inimigos atuais), a partida de inimigos sempre interpretada como uma "fuga em estado ritual de homicida (unokai tokuu). Os missionrios co-residentes, que no fugiam nem antes nem durante as epidemias e que providenciavam auxlio para-mdico para suas vtimas, j no podiam ser, contrariamente aos brancos que os precederam, considerados como feiticeiros inimigos50.

    Essa primeira experincia do contato permanente desembocou, portanto, numa extenso do modelo epidemiolgico yanomam no prolongamento direto de suas reelaboraes precedentes. A diversificao poltico-etiolgica dos brancos aumentou, chegando quasse a coincidir com o sistema de distncias sociais e de agresses malficas yanomam. Foi reconhecida, aps a existncia dos brancos inimigos afastados que utilizam xamanismo agressivo ou inimigos prximos que utilizam feitiaria guerreira, a existncia de brancos co-residentes, desprovidos de poderes patognicos.

    Os anos 70 foram marcados pela abertura, no oeste de Roraima, da estrada Perimetral Norte (1973-1974) e pela instalao de projetos de colonizao agrcola (1978-1979). A estrada, cuja construo foi abandonada em

    48. Os Yanomam dizem, em compensao, que os brancos os "possuem" (bou).49. Esses inimigos visitantes so geralmente acusados de formas de feitiaria atribudas aos

    aliados malevolentes (tomada de pegadas) ou aos inimigos (envenenamento mgico).50. Os Yanomam mais isolados continuaram, entretanto, atribuindo algumas epidemias feiti

    aria de missionrios em visita.

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    1976, corta em 220 km o territrio yanomam, e a frente pioneira, em expanso crescente desde 1980, est agora a uns 60 km das primeiras aldeias yanomam. Dois postos da FUNAI tambm foram instalados na regio (1974, 1976). O projeto Radambrasil (1975) revelou, ainda, a existncia de jazidas minerais nas terras yanomami. Embora as prospeces in loco tenham se revelado, na poca, economicamente pouco encorajadoras para as empresas mineradoras (Docegeo 1977-1978), essa notcia atraiu para a regio uma invaso de garimpeiros que aumentou de modo desastroso ao longo dos anos oitenta. A partir de 1980, um garimpo de ouro explorado por vrias centenas de homens foi aberto no alto Catrimani (Apia Velho, Rio Novo).

    A partir de 1974, os Yanomam dessa regio passaram, assim, bruscamente, da exclusividade de um contato regular ou permanente com uma misso para uma pluralidade de contatos espordicos com vrios representantes da fronteira econmica regional (principalmente colonos e garimpeiros). Embora a fronteira protecionista (misso e postos da FUNAI) ainda seja dominante na regio, a articulao entre a sociedade yanomam e a frente de expanso local se toma rapidamente mais complexa. H duas situaes que prolongam certas caractersticas do perodo anterior, num contexto totalmente diferente: grupos sedentarizados junto a misses ou postos da FUNAI, com os quais identificam seu destino, e grupos independentes que mantm contatos mais regulares com colonos ou garimpeiros, dos quais costumam aproximar seus locais de habitao. Os grupos na primeira situao esto geralmente em melhor situao econmica e sanitria do que os outros. A relativa estanqueidade territorial que reinava anteriormente entre esses dois tipos de grupos tende, contudo, a desaparecer, j que a circulao de pessoas e, portanto, de bens e doenas cada vez mais generalizada e intensa entre os vrios polos de contato na regio. Essa circulao se d em funo da intensificao das trocas intercomunitrias, ligada abundncia de bens manufaturados disponveis (cf. nota 19), sua disponibilidade relativa segundo os polos de contato51, rpida multiplicao desses polos e ao sistema de transporte (areo, rodovirio) que liga uns aos outros, diretamente ou por intermdio de cidades da regio (Caracara, Boa Vista). Com o desenvolvimento dessas relaes econmicas multipolares (trabalho e troca), a quantidade e a diversidade dos objetos que os Yanomam adquirem desde

    51. Comparvel para os Yanomam &s especializaes locais que articulam seus sistemas de troca intercomunitrios (ver Albert 1985: 212).

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    1974 e dos quais so dependentes so cada vez mais importantes (ver Saffirio 1980). A ampliao da contaminao devida a essa intensificao do contato, adicionada aos problemas sanitrios provocados pela sedentarizao, aceleram dramaticamente a degradao da situao de sade yanomam (ver CCPY 1982).

    O avano dos projetos de desenvolvimento no seu territrio fez com que o Yanomam do Catrimani fossem expostos a presses sociais e epidemiolgicas de tal magnitude que subverteram completamente as bases de seu modelo de representao do contato. Foi-se tomando impossvel, assim, manter a associao entre epidemias e malevolncia dos brancos (visitantes ou citadinos) e entre ausncia de contaminao e presena missionria. Os trabalhadores das obras de estradas no contratavam os ndios para explorarem os recursos locais nem dependiam deles para a sua subsistncia. A empresa a que pertenciam tinha dado ordens de satisfazer todas as exigncias materiais dos Yanomam, para evitar qualquer conflito52. Os membros de certas comunidades viveram mais de um ano na dependncia dos canteiros de obras, alimentados nas cantinas, vestidos e equipados graas a uma espcie de mendicncia organizada ao longo da estrada. Alm disso, afluram regio numerosos turistas ocasionais oriundos das pequenas cidades prximas. Eram militares, executivos da empresa e membros da sociedade local, passando um fim-de-semana com a famlia, ou ento meros curiosos que lotavam caminhes para "ver os ndios nus" e, num ambiente de quermesse, tirar fotos, retribudas com os presentes mais heterclitos, como desodorantes, culos escuros, camisetas eleitorais e ventiladores a pilha. Cercados de objetos manufaturados de todos os tipos, dados por brancos vindos de toda parte, aparentemente bem-intencionados e amigveis, os Yanomam viam, porm, sua situao sanitria degradando-se num ritmo vertiginoso55. Enquanto isso, o sistema missionrio de assistncia entrou num crculo vicioso epidemiolgico. O processo de contaminao acelerada o obrigava a recorrer a internaes cada vez mais freqentes nos hospitais da capital regional (Boa Vista). Os ndios, depois de terminados os tratamentos, retomavam muitas vezes trazendo outras doenas, contradas no hospital. Essas doenas acaba-

    52. Essas caractersticas vaJem menos para a fase inicial de desmatamento do traado da estrada utilizando mo-de-obra no-qualificada e dificilmente controlvel.

    53. Duas epidemais de sarampo, em 1974 e 1977; 2.485 tratamentos efetuados pela misso entre 1971 e 1974, 12.529 entre 1974 e 1977 (Arquivos da Misso Catrimani).

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    vam se espalhando por toda a regio. Assim, em 1977, uma epidemia de sarampo propagou-se a partir da misso e dizimou metade da populao do alto Catrimani (ver CCPY 1982: 34).

    Esses contatos simultneos e caticos com brancos de todas as origens, circulando por seu territrio, e uma contaminao generalizada, desligada de qualquer situao de conflito, provocaram uma nova transformao do modelo etiolgico yanomam, que colhemos, em 1984, da boca de um xam dos Wakathautherib (Misso Catrimani). Nessa verso, a atribuio de formas de feitiaria guerreira ou de xamanismo agressivo especfico aos brancos desapareceu, e foi igualmente abolida a sua distino em co-residentes adotivos benevolentes e visitantes ou citadinos malevolentes. A diferenciao poltico-espacial e etiolgica dos brancos em padres/visitantes ribeirinhs/citadinos de longe54, elaborada durante o perodo de contato intermitente e de contato missionrio, entrou em crise com a irrupo da estrada e da contaminao generalizada. Novamente indiferenciados e desterritorializados, os brancos podiam apenas ser remetidos radicalidade inumana de sua alteridade predadora. O modelo epidemiolgico yanomam teve de voltar, assim, a trabalhar a partir de sua equao inicial entre brancos e espritos malficos.

    Assim, todos os brancos (nabb), independentemente de sua benevolncia ou malevolncia, e de sua situao geogrfica, so, nessa verso, associados a duplos sobrenaturais malficos, os nabrib. Esses espritos, criados por Remori, assim como todos os estrangeiros e o que lhes pertence, vagariam pelo territrio dos brancos (nabb urihi) do mesmo modo que os espritos malficos n warib andam pela mata para devorar os Yanomam. Os n warib costumam ser associados a stios naturais inspitos e floresta no-habitada, na qual erram livremente, ao passo que os nabrib esto ligados s casas e coisas dos brancos, e seguem seus veculos quando se deslocam. Assim eles entram no territrio yanomam, dizimando as comunidades que encontram, para satisfazer seu canibalismo insacivel. Esses espritos malficos se dividem em quatro classes principais, correspondentes s doenas epidmicas letais que atingiram com mais fora a populao yanomam. So elas: seraborib, "espritos do sarampo", hurarib, "espritos da

    54. Respectivamente batereb (de "padre")/mulheribe ("habitantes dos os")/manashotherib ("habitantes de Manaus").

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    malria", shuurib, "espritos da diarria" e tokorib, "espritos da tosse". Todos eles, antes de devorarem o princpio vital de suas vtimas, atacariam- no com armas, objetos ou substncias patognicas (nabrib a n matihibi), simbolicamente associados aos motores dos veculos dos brancos95, ou a seus bens de troca: fumaa de gasolina para os "espritos do sarampo", gs e gua do escapamento de motores de popa para os "espritos da malria", leo de motor e emanaes de sua decomposio para os "espritos da diarria e, de modo mais clssico, faces e tecidos perfumados para os "espritos da tosse"56.

    Portanto, a mutao brutal da situao do contato, materializando uma fora demogrfica, tecnolgica e patognica jamais vista, parece ter obrigado a lgica cultural yanomam a retomar seu trabalho de incorporao simblica dos brancos desde o incio. Como se o surgimento traumtico da frente de expanso do desenvolvimento amaznico do final dos anos 70 tivesse tido um efeito de ruptura que reproduzisse o dos primeiros contatos. Contudo, essa volta representao inicial dos brancos no se faz de modo circular: originariamente identificados a espritos malficos, agora so associados a duplos que, eles, so espritos malficos. A volta da associao entre brancos e espritos malficos feita, assim, em espiral; os termos continuam os mesmos, mas sua relao se encontra agora deslocada de um grau na identificao simblica. O tema dos objetos manufaturados patognicos retoma tambm, num deslocamento simblico similar. Objetos e produtos industriais j no so diretamente deletrios, mas constituem, na forma de suas imagens essenciais (utub), as armas e objetos utilizados pelos espritos malficos nabrib. E, finalmente, reencontramos tambm a imagem da "fumaa do metal" no escapamento dos motores, emanaes de combustveis e cheiro dos objetos de troca.

    Essa ltima verso da representao yanomam das relaes entre epidemias, objetos manufaturados e brancos na regio do rio Catrimani pode ser apenas uma hiptese idiosincrtica, ou remeter experincia de um nico grupo local. Entretanto, sua lgica demonstra novamente a continuidade e a

    55. Ver Townsley (1984: 76-77) sobre a importncia dos veculos e dos combustveis nos cantos de cura yaminahua.

    56. Aqui reciclados a partir da teoria obsoleta do xamanismo branco.

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    criatividade do quadro simblico que os Yanomam impem a suas tentativas de domnio simblico das mutaes do contato.

    Concluso

    Tentamos esclarecer, atravs da anlise de representaes etiolgicas provenientes da histria yanomam do contato, certos aspectos fundamentais dos fenmenos de incorporao cultural que escapam abordagem mitolgica ou taxonmica: sua dinmica cognitiva, sua contextualidade histrica e sua estratgia cultural.

    Em primeiro lugar, consideramos sua dinmica cognitiva. Abordamos a lgica de um processo interpretativo, e no mais apenas as estruturas formais de um sistema simblico. Essa perspectiva permite chegar aos procedimentos de seleo e associao dos eventos e mudanas, a partir dos quais se constri a relevncia cultural das situaes de contato. Permite ver os processos de desestabilizao cognitiva subjacentes a suas sucessivas reinterpretaes. Revela, finalmente, o desenvolvimento lgico dessas verses no campo dos estados combinatrios autorizados pela estrutura de seu quadro simblico de referncia e de que modo, uma vez esgotadas essas combinaes, o movimento interpretativo pode prosseguir em espiral, atravs de deslocamentos sucessivos em relao ao seu registro inicial.

    O aspecto considerado em seguida foi o da contextualidade histrica. Analisamos a histria do contato e suas representaes de maneira indissocivel. Essa abordagem chama a ateno para os efeitos, tanto das formas de articulao do grupo fronteira branca, quanto da lgica interna do desenvolvimento desta ltima, sobre a configurao e encadeamento das interpretaes indgenas das situaes de contato.

    Finalmente, no que se refere estratgia cultural, mostramos que escolhas simblicas manifestadas no tratamento dos fenmenos scio-histricos se inscrevem num projeto de resistncia cultural subjacente. Essa tica evidencia operaes de seleo e de valorizao temtica que delimitam um campo interpretativo dominante e apontam para preocupaes simblicas fundamentais. Deixa ver, assim, para alm de uma mera "representao" do contato, uma estratgia de reproduo, sob tenso histrica, das dimenses

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    culturais preeminentes de uma organizao e filosofia social trabalhando sobre si mesma.

    As interpretaes do contato manifestam essas propriedades com uma acuidade que varia em funo da mobilidade e finalidade cognitivas das formas culturais em que se efetivam. A literatura etnogrfica consagrada s terras baixas sul-americanas revela que essas formas variam muito de acordo com as sociedades57. Na verdade, essa multiplicidade dos modos de tratar as mudanas histricas existe no seio de cada sociedade, articulada de acordo com um sistema complexo de complementaridade e hierarquizao cujo estudo est por ser desenvolvido58. Mitos e classificaes das relaes inte- rtnicas fazem parte desses domnios tanto quanto a histria oral59 ou, por exemplo, os discursos polticos indgenas (Ramos 1988; Turner 1988). Cada um deles impe limitaes especficas anlise dos processos de incorporao cultural. Evocamos as da abordagem mtica ou taxonmica. As limitaes da histria oral indgena podem ser inversas: seu enfoque centrado nos eventos pode fazer perder em "simbolicidade" o que se ganha em historci- dade. Outros sistemas de representao, dotados de propriedades e orientaes diversas, podem abrir diferentes perspectivas sobre a interpretao do contato. Assim, pelo vis das concepes yanomam relativas etiologa das epidemias, tentamos juntar as vantagens de uma abordagem simblica s de uma tica histrica. Com efeito, por sua dinmica pragmtica (procedimento diagnstico) e sua arquitetura cultural (teoria da alteridade), a lgica subjacente dessas concepes se inscreve ao mesmo tempo no campo da crnica histrica e no da filosofia social.

    Os mecanismos de "incorporao histrica" que descrevemos parecem ser representativos dos esforos que fazem certas sociedades, que Lvi- Strauss qualificou de "frias"60, na tentativa de reproduzir culturalmente even

    57. Ver Carneiro da Cunha 1973 (messianismo canela), Farage 1985 (guerra caribe), Gregor 1984 (sonhos mehinaku). Hill 1986 (ritos wakuenai). Ramos 1979 (boatos sanima), Townsiey 1984 (xamanismo yaminahua), Turner 1988 (discursos polticos kayap).

    58. Ver Smith 1980: 79-80 sobre o efeito de coerncia cultural desta circulao de um tema simblico atravs de vrios sistemas de representaes.

    59. Sobre histria oral e contato, ver Guss 1981 (Yekuana), Lopes da Silva 1984 (Xavante), Melatti 1974 (Krah), Wright e Hill 1986 (Wakuenai), e Hill 1988 para outros exemplos (Waur, Canelos Quichua, Kayap...).

    60. Ver Charbonnier 1969: 38-39, 44-48; Lvi-Strauss 1962: 309-310; 1973: 40-41 e 1983: 1218, 1225. A histria oral yanomam est culturalmente desvinculada do sistema de repro-

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    tos e mudanas enquanto atualizaes de um modelo pr-existente, absorvendo-os no movimento aparente de um ciclo de transformaes lgicas. Isso no significa que essas sociedades sejam incapazes de levar adiante uma luta contra a desestruturao fora do plano especulativo, nem que todas as sociedades sem escrita sejam "sociedades contra a histria" (Gauchet 1975).

    A resistncia ao contato costuma tomar duas vias, afora a da guerra, que podem alternar-se, suceder-se ou at coexistir (ver Rappaport 1980). Uma a do messianismo, no mais tentanto reproduzir a estrutura cultural por simples reabsoro do evento, mas esforando-se por remodelar a sociedade de acordo com um modelo ritual de reapropriao poltico-simblica das mudanas impostas (ver Carneiro da Cunha 1973, Writh e Hill 1986). A outra a da luta poltica que se apropria das categorias jurdicas brancas de apreenso dos povos indgenas para utiliz-las como armas num projeto de reivindicao territorial, exigindo da sociedade dominante o respeito s suas prprias normas (ver Seeger e Viveiros de Castro 1979). Ritos messinicos e lutas polticas no excluem o trabalho de incorporao simblica do contato, ao contrrio, se inscrevem em seu prolongamento, justamente para superar aquilo que lhe escapa. no limiar da desestruturao social e econmica, e para preveni-la, que a lgica de incorporao simblica da mudana comea a ser acompanhada por essas formas de resistncia ativa61. Por outro lado, a passagem alm desse ponto de ruptura desemboca, a longo prazo, na reconstruo de uma identidade tnica especfica a partir da retomada de fragmentos culturais antigos, rearticulados numa nova estrutura estabelecida em sua oposio sociedade branca (ver Carneiro da Cunha 1979)62.

    Sahlins (1981) props uma teoria da "reavaliao funcional" das categorias culturais na praxis do contato. Essa teoria, modelo de uma transio progressiva entre reiterao e mutao estrutural dos esquemas simblicos indgenas, parecia tomar caduca a noo de "sociedade fria", que o tipo de

    duio simblica do socius (ver Lederman 1986: 5, 22 e 24). Nesse sentido, trata-se de uma "sociedade fra"; o que no quer dizer sociedade sem histria (Wolf 1982: 385), nem sociedade sem representaes histricas (Rosaldo 1980: 26-27).

    61. Sobre limiar de desestruturao e graus de contato, ver Ribeiro 1982. Sobre a continuidade entre cosmologa, messianismo e lutas polticas, ver Carneiro da Cunha 1973, Rappaport 1985, Turner 1988, Whitten 1978, Wright e Hill 1986.

    62. Sobre a passagem, via ruptura scio-cultural, da incorporao simblica do contato para a reestruturao tnica, veja-se o exemplo dos Wakuenai em Hill 1983, cap. X.

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    mudana cultural traumtica que acabamos de evocar, ao contrrio, corrobora. Redefinindo mais tarde o alcance de seus conceitos, Sahlins acabou rein- troduzindo, contudo, a distino lvi-straussiana entre "sociedades frias" e "sociedades quentes", sob a forma de uma oposio entre sociedades "pres- critivas e sociedades "performativas" (Sahlins 1985: xi-xiii e 26-31). Assim, ope s sociedades em que "...all is execution and repetition as in the classic Pense Sauvage" (como as sociedades australianas) sociedades em que "Responding to the shifting conditions of its existence [...] the cultural order reproduces itself in and as change" (como o antigo Hava). O prprio Lvi- Strauss (1983) j tinha precisado nesse sentido sua oposio clssica, demonstrando que seus termos caracterizam atitudes culturais de abertura e fechamento histria cuja distino no homloga a uma oposio entre sociedades "primitivas" e sociedades "complexas". As sociedades de tipo yanomam podem, portanto, ser efetivamente definidas, segundo a terminologia de Sahlins, como sociedades de "modo prescritivo de produo simblica", o que no impede que outras como, por exemplo, os antigos Tupinamb (ver Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro 1985), para ficarmos nas terras baixas sul-americanas sejam classificadas entre as sociedades "performativas".

    O estudo que acabamos de propor preocupou-se em descrever os mecanismos de resistncia simblica que a sociedade yanomam, ainda relativamente autnoma, ope irrupo da historicidade exgena induzida por sua articulao progressiva fronteira branca. Verdadeiro fio condutor, o motivo da "fumaa do metal" atravessa todas as representaes oriundas desse processo de resistncia, como se tentasse exorcizar, numa metfora sempre recomeada, o trgico double bind que o aparecimento dos brancos prope reflexo e ao destino yanomam: a insero num sistema de troca em que o poder de fascinao dos bens adquiridos s pode ser retribudo atravs de uma predao impiedosa. Obsesso por uma figura extrema da alteridade em que o excesso do poder material remete ao excesso dos poderes canibais. A "fumaa do metal": espelho negro yanomam da sociedade de consumo.

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    Agradecimentos

    Este artigo a verso revista e aumentada de uma comunicao ao SimpsioCosmologa, Valores e Transformao, realizado em maio de 1986 na Universidade de Brasilia.Agradeo a D. Buchillet, M. Carneiro da Cunha, P. Menget, M. Perrin, J. Pouillon, E. Viveirosde Castro e A. Ramos por seus comentrios durante a sua exposio ou sua leitura crtica desuas verses anteriores. Uma versSo francesa deste texto foi publicada em L'Homme 106/107:87-119 (1988).

    Tradutora: Beatriz Perrone-Moiss

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