1 HEFESTO (VULCANO) DEPARTAMENTO DE LATÍN IES RAFAEL ALBERTI DE CÁDIZ.
A Saga de Hefesto- Clinica Do Trabalho-_shirley_macedo
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UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO
PR-REITORIA ACADMICA - PRAC
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLNICA
LINHA DE PESQUISA PRTICAS PSICOLGICAS CLNICAS EM INSTITUIES
A SAGA DE HEFESTO:
HERMENUTICA COLABORATIVA COMO
POSSIBILIDADE DE AO HUMANISTA-FENOMENOLGICA EM
CLNICA DO TRABALHO
SHIRLEY MACDO VIEIRA DE MELO
Dezembro
2012
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SHIRLEY MACDO VIEIRA DE MELO
A SAGA DE HEFESTO:
HERMENUTICA COLABORATIVA COMO POSSIBILIDADE DE AO HUMANISTA-FENOMENOLGICA
EM CLNICA DO TRABALHO
Tese apresentada ao Programa de Doutorado
em Psicologia Clnica da Universidade
Catlica de Pernambuco, como requisito
parcial obteno do ttulo de Doutor em
Psicologia Clnica.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Tlio Caldas
Dezembro
2012
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SHIRLEY MACDO VIEIRA DE MELO
A SAGA DE HEFESTO:
HERMENUTICA COLABORATIVA COMO POSSIBILIDADE DE AO HUMANISTA-FENOMENOLGICA
EM CLNICA DO TRABALHO
Esta tese foi julgada adequada obteno do ttulo de Doutor em Psicologia Clnica e aprovada em sua forma final pelo Curso de Doutorado em Psicologia Clnica da Universidade Catlica de Pernambuco.
Recife, 03 de dezembro de 2012
______________________________________________________
Professor e Orientador Marcus Tlio Caldas, Dr.
Universidade Catlica de Pernambuco
______________________________________________________
Prof. Ana Maria Monte Coelho Frota, Dra.
Universidade Federal do Cear
______________________________________________________
Prof. Lucinda Maria da Rocha Macdo, Dra.
Universidade Federal de Pernambuco
______________________________________________________
Prof. Ana Lcia Francisco, Dra.
Universidade Catlica de Pernambuco
______________________________________________________
Prof. Albenise de Oliveira Lima, Dra.
Universidade Catlica de Pernambuco
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iii A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
Dedico este trabalho ao meu Painho, que, ao
tentar compreender minhas necessidades
profissionais, visualizou a juno daquilo que
parecia separado para mim e, apesar das
pernas mancas provocadas pela sua
fraqueza, desafiou o Olimpo e segurou seu
machado at o ltimo momento...
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iv A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
AGRADECIMENTOS
Falar de pessoas e de sua importncia em nossas vidas requer, antes de tudo, que
consigamos colocar em palavras o que nosso corao quer expressar. As palavras nos
somem, porque uma tarefa por deveras complexa: os sentimentos simplesmente existem,
sem nos exigir explicaes.
Mas hora de apontar, daqueles todos que passam ou passaram na minha vida, os
que, neste contexto de carreira profissional, constituem pilares para meu engrandecimento
como pessoa que busca, da melhor maneira que pode, cumprir sua misso neste mundo.
Ao Deus Supremo, que sempre esteve no meu caminho como uma lamparina que, aos
poucos e sem pressa, foi me iluminando e me fortalecendo a enfrentar os obstculos.
minha famlia primeira, Pai, Me, Irmos, Sobrinhos, Avs, Ti@s e Prim@s, pelos
carinhos recebidos, pelos embates permitidos, pelas dores e perdas compartilhadas e por
terem me permitido construir um lugar meu, diferente. Mesmo os que j se foram, continuam
presentes atravs de valores fortes, em cujas bases me sedimentei como pessoa.
Ao meu marido, grande homem, companheiro e pai que . Hilmar: estar com voc, ao
longo desses 21 anos, no tem preo. Obrigada, tambm, por ter custeado o ltimo ano do
curso.
Aos meus filhos Pedro e Sophia, cuja exploso de sentimentos me faz ir alm de mim
mesma e cujo ensinamento da arte de ser me me desafia 24 horas por dia como
trabalhadora. Filhos: vocs so o motivo de tudo aquilo que me faz ser a mulher que sou
hoje. Sei que foi difcil para ns trs esta caminhada... Eu tenho tanto para lhes falar, mas
com palavras no sei dizer como grande o meu amor por vocs...
minha sogra, que, no por acaso xar da minha av, Josefa. V: quanta amizade!
Quanta cumplicidade! Quanta ajuda! Quanto carinho voc vem me cedendo at hoje! Nos
momentos mais difceis destes ltimos doze anos, foi com voc que mais contei o tempo
todo. Obrigada!
minha irm Sarah, por ter sido os ouvidos das transcries, quando os meus falharam
para discriminar frequncias. Linda: agradeo todos os dias muito mais pela amiga,
companheira, torcedora e filha que voc para mim.
Aos meus tios Lucy e Joel Macdo, que sempre nas horas mais difceis estiveram
presentes dando fora s famlias Marinho e Macdo, sem pestanejar, dando incentivos
para que os machados de todos continuassem produzindo.
minha mezinha Zezinha que sempre orou por mim e, hoje, mesmo portando
Alzheimer, lembrou do seu lugar na minha vida, ou do meu lugar na sua, no sei. S sei
que, aps quase 12 anos, sorriu para mim com o corao cheio de afeto!
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v A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
Aos meus primos Valria e Omar, pelos espritos guerreiros que so, pelos amigos fiis
que perduram para alm da famlia...
Ao meu orientador, Marcus Tlio Caldas, pelo muito que representa para mim para alm
de um mestre. Pelo lugar que passou a ocupar na minha vida, para alm de sala de aula.
Marcus: voc hoje um amigo, um pai substituto e um porto seguro para uma escuta no
compartilhar aflies, objetivos de vida e conquistas.
Aos meus tantos e tantos amigos que me do fora para no deixar a peteca cair, nem
na vida pessoal nem na profissional, e brincam, choram, sorriem, cantam, farram, brindam e
comemoram minhas batalhas e sucessos. A vocs, cuja ordem dos fatores no altera o
produto: Ricardo Jorge e Shirley Vogeley, Ana Paula e Reginaldo Chaves, Patrcia e Tony,
Viviane Mendona, Luciana e Marcos Mendes, Lindair Arajo, Arabela Morais, Ftima
Santos, Darlindo Ferreira, Virginia Passos, Patrcia Carvalho, Rosa Canuto, Sylvia Raquel,
Benedito Medrado, Jorge Lyra, Mauro Amatuzzi, Alberto Brando, Rosana Pedrosa, Jorge
Gomes, Luciano Soares, Maria ngela Cassund, Lourdinha Dias, Mnica Osrio, Ana
Cristina Fonseca, ricka Martha Dias, ngela Neves, Antnio da Rocha Santos, Jacqueline
Menezes, Nomia Azevedo, Ricardo Matias, Lvia Werneck, Vera Nogueira, Laura Pedrosa,
Pe. Joo Carlos.
Aos meus ex e atuais alunos, marcantes que so / foram nesta lida do desafio de
ensinar-aprender, juntar-separar, crescer-escorregar, acertar-errar. Queridos filhos: vocs
sempre sero lembrados como pilares daquilo que preciso aprender mais a cada dia.
Ao Instituto Carl Rogers, nas pessoas de Guilherme Assuno, Isabel e Lvia Pedrosa,
Isadora Dias, Mamede e Mariana, que fizeram e fazem renascer a ACP no Estado de
Pernambuco.
s instituies FACHO e FIR, pelos incentivos pessoais e financeiros para que esta tese
tivesse seus primeiros passos e por todo apoio profissional recebido ao longo dos anos em
que estive ensinando, pesquisando e supervisionando estgios em suas dependncias.
Neste final de caminhada, UNIVASF, por ter sido o cho que precisei para parar, respirar e
concluir esta tese.
s instituies que cederam seus espaos para que a coleta de dados desta pesquisa
fosse realizada e aos terapeutas participantes.
Enfim, a todos aqueles que direta ou indiretamente me possibilitaram viver, sentir,
caminhar, fazer, acontecer e estar neste mundo trabalhando, colocando minha marca e me
constituindo como sujeito.
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vi A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
do caminho daquele menino,
Eu pus os meus ps no riacho.
E acho que nunca os tirei.
O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.
Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga.
A vida amiga da arte
a parte que o sol me ensinou.
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.
Por isso uma fora me leva a cantar,
Por isso essa fora estranha no ar.
Por isso que eu canto, no posso parar.
Por isso essa voz tamanha.
Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
o tempo no pra, no entanto ele nunca envelhece.
Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que so.
o sol, o tempo, a estrada, o p e o cho.
Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos.
Estive no fundo de cada vontade encoberta,
a coisa mais certa de todas as coisas.
No vale um caminho sob o sol.
o sol sobre a estrada, o sol sobre a estrada, o sol.
Por isso uma fora me leva a cantar,
Por isso essa fora estranha no ar.
Por isso que eu canto, no posso parar.
Por isso essa voz tamanha.
(Fora Estranha, Caetano Veloso).
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vii A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
S podemos aceitar a vida sob a condio de sermos grandes,
de nos sentirmos no nascedouro dos fenmenos,
ao menos de um certo nmero deles.
Se no tivermos poder para desabrochar, se no tivermos um certo
domnio das coisas, a vida indefensvel
(Artaud, 1984: p. 130)
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viii A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
RESUMO
Melo, S.M.V. (2012) A saga de Hefesto: hermenutica colaborativa como possibilidade de
ao humanista-fenomenolgica em clnica do trabalho. Tese de Doutorado. Laboratrio de
Prticas Psicolgicas Clnicas em Instituies. Universidade Catlica de Pernambuco.
Recife.
Este trabalho teve por objetivo geral descrever uma possibilidade de ao clnica humanista-
fenomenolgica diante de demandas de sofrimento humano no trabalho, a partir de uma
pesquisa com psicoterapeutas em que se buscou, especificamente, compreender suas
experincias clnicas, possibilidades de escuta e interveno, seus modelos de abordagem
subjetividade e suas condies de trabalho; assim como identificar desafios enfrentados
por eles, procedimentos e tcnicas utilizados; e apontar resultados alcanados. A
metodologia utilizada foi a pesquisa fenomenolgica de tendncia hermenutica.
Participaram do estudo 17 psicoterapeutas centrados na pessoa, incluindo a pesquisadora.
A partir de uma pergunta disparadora, os sujeitos, subdivididos em quatro grupos de
discusso, narraram suas experincias de atendimentos a clientes cujas demandas eram de
sofrimento no trabalho. Os resultados apontaram, dentre outros, que embora os
profissionais investigados apresentassem uma coerncia de atuao com os princpios que
norteiam a Abordagem Centrada na Pessoa, no possuam arcabouo terico, conceitual e
tcnico suficientes para compreender a relao trabalho versus modos de subjetivao a fim
de ajudar clientes a construrem recursos sistemticos de enfrentamento do sofrimento no
trabalho. Defendeu-se, ento, uma ao clnica embasada na fenomenologia de Merleau-
Ponty e na hermenutica filosfica de Gadamer: a Hermenutica Colaborativa - um
processo conjunto de interpretao e construo de alternativas, pautado na
intersubjetividade, no confronto de tradies, e na retomada da conscincia histrica, a partir
do qual os sujeitos envolvidos constroem novos projetos para enfrentarem e re-significarem
o sofrimento diante da precariedade subjetiva e das adversidades enfrentadas no mundo do
trabalho.
Palavras-chave: Pesquisa Qualitativa, Psicologia Clnica, Psicoterapia, Sade Mental,
Trabalho.
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ix A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
ABSTRACT
Melo, S.M.V. (2012) The saga of Hephaestus; collaborative hermeneutics as possibilities of
humanistic phenomenological action in work clinics. PhD Thesis. Laboratory of Clinic
Psychological Practices in Institutions. Catholic University of Pernambuco. Recife.
This work has as general purpose to describe a possibility of a clinical humanistic
phenomenological action before human suffering demands at work , starting from a
research with psychotherapists, in which was sought to understand specifically their clinical
experiences, listening possibilities and intervention, their approach models to subjectivity and
their work conditions; as also identify challenges faced by them, as well procedures and
techniques used, and to point out achieved results. The methodology used was the
phenomenological research of hermeneutics trending. Seventeen (17) psychotherapists
participated in the study centered in the person, including the researcher. From a triggering
question, the subjects, subdivided into four discussion groups, narrated their visiting
experiences to clients whose demands were suffering at work. The results, pointed out
among others, were that although the professionals investigated showed a consistent
performance, according to the principles that guide the Approach Centered in the Person,
WKH\ GLGQW KDYH HQRXJK WKHRUHWical, conceptual and technical background to understand
properly the relationship between work versus modes of subjection, in order to help clients to
build systematic resources to face suffering at work. It was defended then, a clinical action,
based on the phenomenology of Merleau-Ponty and in GaGDPHUV SKLORVRSKLFDO
hermeneutics; a Collaborative Hermeneutics - a joining process of interpretation and
alternatives constructions based on inter-subjectivity, traditions confrontations and in the
retaking of historical awareness, from which, the subjects involved can build new projects to
face suffering and re-mean it, before the precariousness and adversities faced in the world of
work.
Keywords: Qualitative Research, Clinical Psychology, Mental Health, Work
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x A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
RESUMEN
Melo, S.M.V. (2012) La saga de Hefestos, las posibilidades de la hermenutica colaborativa
en la accin humanista - fenomenolgica en las clnicas do trabajo. Tesis doctoral.
Laboratorio de Prcticas de Clnica Psicolgica en Instituciones. Universidad Catlica de
Pernambuco. Recife.
Este trabajo tuvo como objetivo general describir la posibilidad de una accin clnico
humanista-fenomenolgico delante de las demandas del sufrimiento humano en el trabajo,
desde una bsqueda con psicoterapeutas, en la que se trat de comprender concretamente
sus experiencias clnicas, posibilidades de escucha e intervencin, y sus modelos de
acercamiento a la subjetividad y de sus condiciones de trabajo; como tambin identificar los
desafos que por ellos enfrentados, as como tambin los procedimientos y tcnicas de que
se utilizan, y a punto de lograr resultados. La metodologa utilizada fue la bsqueda
fenomenolgica de la hermenutica de tendencias. En el estudio, participaron 17
psicoterapeutas centrados en la persona, incluyendo el investigador. Desde una pregunta
disparadora, los sujetos, subdivididos en cuatro grupos de discusin narraron sus
experiencias de tratamiento a los clientes cuyas demandas eran de sufriendo en el trabajo.
Los resultados, seal entre otras cosas, que, aunque los profesionales investigados
mostraron un rendimiento constante, de acuerdo con los principios que guan el enfoque
centrado en la persona, no tenan antecedentes tericos, conceptuales y tcnicos de
referencia para comprender correctamente la relacin entre trabajo versus modos de
sometimiento, con el fin de ayudar a los clientes a integrar de una manera sistemtica los
recursos para afrontar el sufrimiento en el trabajo. Se hay defendido entonces, una accin
clnica, basada en la fenomenologa del Merleau-Ponty y en la hermenutica filosfica de
Gadamer: la hermenutica colaborativa - un proceso de unin de interpretacin y
construcciones de alternativas basadas en la intersubjetividad, enfrentamientos de
tradiciones y en la toma de conciencia histrica, desde la que, los sujetos involucrados
construyen nuevos proyectos para afrontar el y replantear el sufrimiento delante de la
precariedad subjetiva y ante de las adversidades sufridas en el mundo del trabajo.
Palabras-Llaves: Investigacin Cualitativa, Psicologa Clnica, Salud Mental, Trabajo.
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xiii A Saga de Hefesto
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SUMRIO
INTRODUO..........................................................................................................................1
1 O MUNDO DO TRABALHO CONTEMPORNEO..............................................................7
1.1 TRABALHO: REPERCUSSES SOBRE A VIDA HUMANA.............................................7
1.2 CULTURA CAPITALSTICA, MODOS DE SUBJETIVAO E SOFRIMENTO NO
TRABALHO CONTEMPORNEO............................................................................................17
1.3 MODOS DE GESTO QUE PODEM PROMOVER SOFRIMENTO E LEVAR AO
ADOEDIMENTO NO TRABALHO..........................................................................................23
2 PSICOLOGIA CLNICA E A COMPREENSO DA SUBJETIVIDADE DO HOMEM QUE
SOFRE PELO TRABALHO ...................................................................................................30
2.1 PSICOLOGIA CLNICA E SUBJETIVIDADE: DO INTRAPSQUICO AO PSICOSSOCIAL
PARA A COMPREENSO DO HOMEM TRABALHADOR....................................................30
2.2 A PSICOLOGIA CLNICA E A CLNICA DO TRABALHO...............................................36
3 ABORDAGENS EM SADE MENTAL E CLNICA DO TRABALHO...............................40
3.1 PSICODINMICA DO TRABALHO: PIONEIRISMO, POSSIBILIDADES E LIMITES DA
LEITURA CLNICA DO SOFRIMENTO DO TRABALHADOR................................................40
3.2 ABORDAGEM PSICOSSOCIAL: A ORGANIZAO COMO LUGAR DE
CONTRADIES E CONFLITOS..........................................................................................51
3.3 CLNICA DA ATIVIDADE: EMPODERAMENTO DO PODER DE AGIR..........................58
3.4 ERGOLOGIA: O USO E A GESTO DE SI....................................................................63
3.5 ABORDAGEM EPIDEMIOLGICA DO SOFRIMENTO HUMANO NO TRABALHO:
AVANOS NO BRASIL..........................................................................................................68
4 A PSICOTERAPIA CENTRADA NA PESSOA E SUAS POSSIBILIDADES DE UMA
LEITURA HUMANISTA DO SOFRIMENTO HUMANO NO TRABALHO .............................72
4.1 HISTRIA E PRESSUPOSTOS BSICOS DA ABORDAGEM E DA PSICOTERAPIA
CENTRADA NA PESSOA......................................................................................................72
4.2 AVANOS E DISSIDNCIAS NA ACP...........................................................................80
4.3 POR ONDE PASSA A CATEGORIA TRABALHO NAS PRODUES CIENTFICAS DA
ACP.........................................................................................................................................84
5 PERCURSO METODOLGICO.........................................................................................89
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xiv A Saga de Hefesto
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5.1 MAURICE MERLEAU - PONTY, A INTERSUBJETIVIDADE E A EPOCH
INCOMPLETA. .......................................................................................................................91
5.2 HANS-GEORG GADAMER, A TRADIO E A FUSO DE
HORIZONTES........................................................................................................................94
5.3 COLABORADORES.........................................................................................................97
5.4 INSTRUMENTOS............................................................................................................99
5.5 PROCEDIMENTOS.......................................................................................................101
6 ANLISE DOS RESULTADOS........................................................................................104
6.1 PROCEDIMENTOS DE ANLISE DOS DADOS...........................................................104
6.2 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA EXPERINCIA DO GRUPO 1.............................106
6.3 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA EXPERINCIA DO GRUPO 2.............................127
6.4 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA EXPERINCIA DO GRUPO 3.............................140
6.5 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA EXPERINCIA DO GRUPO 4.............................154
6.6 ANLISE DOS SIGNIFICADOS COMUNS PARA TODOS OS GRUPOS.....................167
7 DISCUSSO....................................................................................................................172
7.1 PERSCRUTANDO AS NARRATIVAS DAS EXPERINCIAS A PARTIR DAS
TEORIAS..............................................................................................................................172
7.2 COMENTANDO A METODOLOGIA DO ESTUDO........................................................180
7.3 PROPONDO UMA INSTRUMENTALIDADE PRTICA PARA A HERMENUTICA-
FILOSFICA E A EPOCH INCOMPLETA: A HERMENUTICA COLABORATIVA..........183
7.3.1 Quem j enveredou no Brasil por caminhos semelhantes...................................184
7.3.2 O novo que se mostra como possibilidade...........................................................187
7.3.2.1 Merleau-Ponty: os sujeitos que se abrem criao no lebenswelt..........................188
7.3.2.2 Gadamer: o confronto de tradies no jogo entre perguntar e responder................195
7.3.2.3 Merleau-Ponty e Gadamer: uma hermenutica colaborativa..................................205
CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................213
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................216
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xv A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 Transtornos mentais e comportamentais (F00-F99): Benefcios acidentrios
concedidos pelo Instituto Nacional de Seguro Social nos anos de 2006 a 2009. ................. 15
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xvi A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Dados scio-demogrficos dos psicoterapeutas colaboradores da pesquisa......98
Tabela 2 - Significados dos pseudnimos gregos atribudos aos psicoterapeutas................99 Tabela 3 - Distribuio dos psicoterapeutas por grupo de discusso, cidade e perodo da
coleta..................................................................................................................102
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1 A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
INTRODUO
Era uma tarde de uma quarta-feira do ano de 1988, quando, tendo j concludo o curso
de Administrao de Empresas h um ano, resolvi conversar com meu pai sobre um
vestibular para Psicologia. Ele no gostou muito da nova escolha, mas adiantou dizendo que
TXase ninJXm KoMe tem dXas forma}es e, depois, futuramente, voc pode juntar essas
coisas ai, fa]endo alJo diferente
Digamos que isto foi um tiro certeiro de um homem com viso estratgica o suficiente
para me motivar a vencer o desafio de abandonar um programa de trainee muito bom na
poca e enveredar pelo percurso universitrio novamente.
Desde 2007, meu pai no est mais neste mundo, mas sempre esteve e estar na base
de todas as minhas decises na vida. Ele tinha um problema srio nas pernas devido
carncia de potssio pelo uso excessivo do lcool, resultado, dentre outros, do exerccio de
uma funo pblica que, apesar de muito bem paga, o deixava ocioso durante muitos dias
no ms.
Vindo de uma famlia simples e humilde, meu pai trabalhou durante sua adolescncia
como arteso de mveis de madeira ajudando meu av, um marceneiro do interior de
Pernambuco. Aps isso, foi cabo do exrcito, vendedor de foges no interior da Paraba, e,
enfrentando a dura realidade do desemprego j com duas filhas para criar, mesmo com
segundo grau completo (algo difcil nos anos 1960), foi vendedor ambulante de rolete de
cana numa praia do nosso Estado, at conseguir ser aprovado num concurso pblico para
auditor fiscal.
Durante muitos anos, vi esse homem fabricando, numa garagem no quintal da nossa
casa, brinquedos para eu e meus irmos. Este era realmente seu trabalho: na arte do cortar,
talhar, colar e formar brinquedos de madeira, aquele homem se realizava. Quem chegava
naquela garagem o veria sempre sorrindo. Nestes momentos, costumava falar para mim e
meus irmos da importncia dos estudos e do trabalho para sermos gente na vida. Apesar
da doena que o tornou cambaleante, nunca deixou sua famlia passar necessidades, sendo
um verdadeiro heri, a ponto de adotar mais duas crianas, alm dos quatro filhos biolgicos
que teve.
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2 A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
Ao iniciar a redao desta tese, escolhi usar o nome de Hefesto no ttulo. Por que?
sabido que os mitos ajudam a entender as relaes humanas e esto presentes da vida de
cada ser humano, pois somos todos deuses e heris da nossa prpria histria. Portanto,
Hefesto, para mim, representa uma homenagem a este guerreiro que foi meu pai,
trabalhador que experienciou vrias formas de sofrimento no trabalho, ao assumir funes
diferenciadas nos mbitos do trabalho assalariado, trabalho informal, desemprego, trabalho
pblico e aposentadoria, sobrevivendo a tudo isso sem esmorecer. Alm disso, a saga de
Hefesto, na minha compreenso, uma simbologia da minha caminhada como psicloga
humanista, considerando que tive que construir minhas prprias ferramentas para atuar,
muitas vezes criticada pela ousadia da diferena.
Em 1995, tendo concludo o curso de graduao em Psicologia, li o livro de Paul Tillich,
A coragem de ser (originalmente publicado em 1952), e vi nesta obra uma representao
exata do que fui conseguindo construir j no contexto da graduao como aluna, tendo
coragem de ser como uma parte, mas tambm ser como eu mesma.
Assim, fao minhas as palavras de Tillich (1976: 36):
Todo aquele que vive criadoramente em significaes, se afirma como participante nestas significaes. Afirma-se quando recebendo e transformando a realidade de modo criador. Ama-se a si prprio ao participar da vida espiritual e ao amar seu contedo. Ele o ama porque sua prpria realizao e porque ele se realiza atravs dele.
Mesmo que cambaleante nas inovaes, ao longo do tempo como psicloga,
psicoterapeuta, consultora, professora, supervisora e pesquisadora, eu venho tentando
favorecer a descoberta e a autoafirmao de diversas pessoas, especialmente clientes,
estudantes e psicoterapeutas iniciantes, acreditando que a melhor forma de trabalhar no
a mais adequada e que responda a um parmetro especfico de atuao, mas aquela que
construmos a partir da nossa prpria forma de andar, mesmo que a alguns parea manca e
coxa.
Alm disso, a saga de Hefesto tambm smbolo, para mim, da nossa misso como
psiclogos diante de algum que nos procura buscando ajuda ao enfrentar o sofrimento
laboral: colaborar na construo de ferramentas que o auxiliem a enfrentar a dura realidade
do mundo do trabalho.
Na mitologia grega, Hefesto era o deus do trabalho, do fogo, dos artesos, dos
escultores e da metalurgia. Era muito importante nas cidades gregas onde a prtica da
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3 A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
manufatura era intensa como, por exemplo, na cidade de Atenas. Era filho de Hera (deusa
do nascimento e do casamento) com Zeus. 1
De acordo com a mitologia, Hefesto nasceu feio, coxo e manco, e foi justamente sua
deformao fsica que fez com que sua me, uma bela deusa, no o aceitando, o jogasse
no mar, de onde ele foi salvo pela deusa dos oceanos, Ttis.
Hefesto, apesar das deformaes, tinha uma grande capacidade de criao. Andava
carregando vasos pintados e um basto. Aparece quase sempre trabalhando em uma
bigorna, suado e com a barba por fazer. Foi o ferreiro divino dos deuses e construtor de
seus palcios, armas e ferramentas. Dentre alguns apetrechos, foi ele quem construiu a
armadura para o heri Aquiles e fez o escudo de Zeus, usado na batalha contra os tits.
O mito de Hefesto recorda a dvida indestrutvel da aceitao incondicional que deve
haver entre os seres humanos. Muitas pessoas so rejeitadas por no corresponderem s
expectativas dos outros, por no lhes serem semelhantes, no terem os mesmos interesses
nem pensarem da mesma forma. No entanto, cada pessoa pode desenvolver a capacidade
de produzir grandes feitos com o prprio talento e acabar surpreendendo.
Alm das questes pessoais que me fizeram escolher este mito, denomino saga de
Hefesto, tambm, misso da psicologia humanista, abordagem que para se sedimentar
aps seu surgimento nos anos 1950, foi bombardeada de preconceitos no mundo da
cincia, por ser considerada romntica e sem fundamentao emprica. Humanistas como
Carl Rogers (1902-1987), Abraham Maslow (1908-1970) e Rollo May (1909-1994)
enfrentaram duras penas para fazerem valer suas concepes de homem, mundo e cincia.
Especificamente Carl Ransom Rogers, um dos homens que mais lutou pela psicologia como
cincia e profisso, foi largamente criticado nos meios cientficos e acadmicos.
Cientista srio como era, buscou na sedimentao metodolgica o caminho para
construir uma abordagem que, durante mais de 40 anos em que seu idealizador estava
frente de sua propagao, foi venerada e elogiada por muitos psiclogos no mundo,
principalmente no Brasil. No entanto, aps a morte de Rogers, diversos rumos foram
tomados pelos seus herdeiros, e, nestes percursos, muitos destes vieram a criticar
negativamente seus pressupostos, num movimento que resulta, hoje, em alguns casos,
numa averso em meios acadmicos, principalmente os nordestinos, aos conceitos e
postulados tericos da Abordagem Centrada na Pessoa. Interessante se faz lembrar que h
cerca de pouco mais de uma dcada atrs, estes contextos veneravam o saber fazer
proposto por Rogers.
1 De acordo com Homero, na Ilada, Zeus era pai de Hefesto.
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4 A Saga de Hefesto
Universidade Catlica de Pernambuco
Em contrapartida, surge uma oportunidade mpar para aqueles que ainda acreditam que
o que morreu no foi a ACP, mas o seu idealizador, e buscam novas formas de praticar e
ampliar os fundamentos desta abordagem, abrindo novos caminhos nas academias. Dentre
esses crdulos, estou eu que, ao longo do tempo foi aproximando, tal como previa meu pai,
caminhos aparentemente divergentes, mas que hoje se cruzam a partir do percurso que
caminhei para chegar at um doutorado em Psicologia Clnica. sobre este percurso que
falo abaixo.
O interesse em Clnica do Trabalho iniciou em 1999, ao lecionar a disciplina Psicologia
Organizacional, na Faculdade de Cincias Humanas de Olinda (FACHO). Na poca, tendo
recentemente concludo o Mestrado em Psicologia Clnica (1998), tive a oportunidade de
aproximar o olhar clnico sobre as questes inerentes a trabalho com a cincia da
Administrao, enfrentando o desafio de conciliar duas reas de atuao: Recursos
Humanos e Psicologia Clnica.
Os anos foram se passando e os estudos em abordagens em psicologia do trabalho
foram sendo aprofundados, at que veio a oportunidade, em 2003, de lecionar as disciplinas
Psicologia do Trabalho e Estgio Bsico III na Faculdade Integrada do Recife. Iniciei, ento,
um desenvolvimento de pesquisas, a fim de preparar melhor os alunos para uma
compreenso do sofrimento humano no trabalho.
No entanto, vivia um impasse. Como a concepo e a prtica clnica por mim adotadas
sempre foram respaldadas na psicologia humanista nos moldes da Abordagem Centrada na
Pessoa, deparei-me com uma carncia de embasamento, j que nas buscas incansveis
nas reas de Psicologia do Trabalho e Psicologia Clnica, no encontrava subsdios para
empreender um trabalho sistemtico de escuta humanista do sofrimento humano no
trabalho.
E as questes de trabalho foram aportando na minha prtica como psicloga clnica.
Inicialmente, nas salas de atendimentos do Servio de Psicologia da FIR, ao receber
pacientes da Clnica de Fisioterapia desta instituio, que, de alguma forma, tinham
interrompido suas atividades laborais por causa de comprometimento fsico. Depois, no
consultrio particular, ao atender clientes com demandas de sofrimento diante das situaes
de trabalho e no-trabalho.
Acredito que uma das tarefas a que o psiclogo clnico se prope o cuidado para com
aqueles indivduos acometidos de sofrimentos diversos, com a finalidade de tentar
restabelecer a sade mental destes. Tendo em vista este princpio, apenas escutava suas
narrativas e tentava ajudar na re-significao deste sofrimento e na transformao destes
sujeitos em pessoas mais conscientes de si, do seu mundo, mais aptas a fazer escolhas
construtivas e melhorar seus relacionamentos interpessoais.
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5 A Saga de Hefesto
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No entanto, sentia uma carncia nesta prtica exercida: quando se trata do sofrimento
humano no e por causa do trabalho, como proceder? Neste sentido, esta tese justifica-se
no s pela necessidade pessoal de aproximar duas reas de interesse ao longo da
formao e da prtica profissional - a psicologia do trabalho e a psicoterapia centrada na
pessoa -, mas, tambm, pela carncia epistemolgica para uma ao clnica diante de
demandas de sofrimento no trabalho que seja coerente com o modelo de abordagem
subjetividade da perspectiva humanista em psicologia.
Assim, o objetivo geral que inicialmente norteou esse estudo e a anlise dos dados foi
propor indicativos para uma sistematizao da clnica do trabalho numa perspectiva
humanista, a partir da compreenso de experincias clnicas de psicoterapeutas centrados
na pessoa diante de demandas de sofrimento humano no trabalho2.
No entanto, o caminhar da tese me levou a repensar o objetivo geral, visto que parece
deveras pretensioso sistematizar uma clnica do trabalho humanista. Neste sentido, optei
por, sem perder de vista os objetivos especficos, descrever uma possibilidade de ao
clnica humanista-fenomenolgica diante de demandas de sofrimento humano no trabalho.
Para organizar os passos que fui percorrendo para desenvolver o estudo, inicialmente
exporei, no tpico 1, uma leitura do mundo do trabalho contemporneo, tecendo
consideraes sobre o processo de alienao do trabalhador numa cultura capitalista, cujos
modos de subjetivao e de gesto podem levar ao sofrimento e consequente adoecimento
dos trabalhadores. No tpico 2, tratarei da temtica da psicologia clnica, dos seus limites e
possibilidades de compreenso da subjetividade do homem que sofre pelo trabalho,
apresentando a clnica do trabalho como um conjunto de abordagens que tm surgido a
partir da dcada de 1990 com o intuito de cuidar do trabalhador diante do quadro deletrio
das situaes de trabalho contemporneas. Tais abordagens sero expostas no tpico 3,
acrescidas da abordagem epidemiolgica que, no Brasil, apresenta considerveis produes
e prticas em sade mental e trabalho.
No tpico 4, apresentarei o percurso histrico da Abordagem Centrada na Pessoa,
apontando seus desenvolvimentos terico-prticos, dissidncias, assim como limites e
possibilidades desta corrente, quando, ao fundamentar a prtica em psicoterapia, parecer
no oferecer subsdios a uma compreenso em sade do trabalhador, abrindo espaos para
se pensar numa proposta psicoteraputica humanista que consiga realizar aes clnicas
diante de demandas de sofrimento no trabalho, temtica que ser o norte de toda a
pesquisa realizada.
2 Os objetivos especficos sero apresentados no tpico 5 Percurso Metodolgico.
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6 A Saga de Hefesto
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Aps essa viagem terica, ser o momento de apresentar, no tpico 5, o percurso
metodolgico da pesquisa, seguido do tpico 6 - anlise dos resultados encontrados -, que
levar em conta os elementos significativos das experincias com cada grupo de
psicoterapeutas humanistas investigados, assim como os elementos significativos em
comum encontrados em todos os grupos.
No tpico 7, realizarei discusses tericas e metodolgicas que levam a apresentar uma
proposta humanista-fenomenolgica em clnica do trabalho e delinerei, ao final,
consideraes que me levaram a defender, aqui, a tese de que para uma ao clnica
humanista-fenomenolgica diante de demandas de sofrimento humano no trabalho, o
psicoterapeuta humanista deva lanar mo de uma metodologia que articule fenomenologia
merleau-pontyana com hermenutica filosfica gadameriana, rompendo os limites de uma
clnica pautada apenas em atitudes facilitadoras, e, sem perder de vista seu lugar na histria
como trabalhador, deixando-se afetar por sua tradio, assumir seu papel de agente de
mudana na busca intersubjetiva da construo, junto ao cliente, de possibilidades de
enfrentamento do sofrimento e transformao de sua realidade de trabalho.
Essa ao, contudo, deve ir alm de princpios filosficos, pois uma ao cientfica e
profissional, sendo necessrio ao psiclogo o desenvolvimento de competncias para
enveredar pela construo conjunta de ferramentas prticas que permitam ao cliente mudar
sua realidade.
Assim, embora respeitando os pressupostos filosficos que esto subjacentes
hermenutica defendida por Hans-Georg Gadamer, denominei, mesmo que
provisoriamente, a ao clnica de Hermenutica Colaborativa, j que a operacionalidade da
hermenutica aqui apresentada mostrou-se inovadora, consistindo numa instrumentalidade
da hermenutica filosfica gadameriana e da fenomenologia na perspectiva de Merleau-
Ponty num contexto cientfico especfico, o da psicoterapia, respaldado numa interpretao
coletiva sistemtica, pautada em passos cientificamente embasados.
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7 A Saga de Hefesto
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1 O MUNDO DO TRABALHO CONTEMPORNEO
Diversas obras tm discutido a importncia e o sentido do trabalho na vida do
ser humano (p.e., Albornoz, 2002; Codo, Sampaio & Hitomi, 1992; Dejours,
Abdoucheli & Jayet, 1994; Dejours, 2000; Codo & Jacques, 2002; Dejours, 2003;
Codo, 2004; Codo, 2006; Antunes, 2009). Desta feita, no convm na presente tese
repetir estas ideias. Entretanto, neste captulo, pretende-se esboar como o
trabalho, ao longo da histria da humanidade, vem promovendo sofrimento, a fim de
adentrar no aspecto de como este sofrimento vivido pelo homem no contexto
scio-cultural de relaes de poder, representativas que so de modos de gesto, e
como os modos de gesto na contemporaneidade produzem modos de subjetivao
que favorecem o adoecimento, levando a se pensar no sofrimento no trabalho como
uma demanda emergente na psicologia clnica.
1.1. TRABALHO: REPERCUSSES SOBRE A VIDA HUMANA
Albornoz (2002) lembra que, na linguagem cotidiana, a palavra trabalho tem
variados significados, desde dor, tortura e suor no rosto, at a transformao de
elementos da natureza em objetos de cultura. O homem, para sobreviver e realizar-
se, trabalha. Originada do latim tripallium, instrumento de tortura, a palavra trabalho
lembra fardo, sofrimento e dor. No entanto, o trabalho o smbolo da liberdade
humana, atravs do qual o homem se diferencia do animal, pela habilidade de
transformar a natureza no s para satisfazer suas necessidades, mas para se
realizar.
Trabalhar mais que laborar, pois no apenas um esforo rotineiro e repetitivo
sem liberdade e de resultado consumvel. tambm uma realizao de uma obra
que expressa a subjetividade humana, que favorece o reconhecimento social e
permanece alm da vida do homem (Albornoz, 2002).
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8 A Saga de Hefesto
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Hannah Arendt, ao escrever A condio humana (1958/2009), j diferenciava
ODERU GH WUDEDOKR H GH DomR /DERU p D DWLYLGDGH TXH FRUresponde ao processo
ELROyJLFRGRFRUSRKXPDQR$FRQGLomRKXPDQDGRODERUpDSUySULDYLGDS2
WUDEDOKR p D DWLYLGDGH FRUUHVSRQGHQWH DR DUWLILFLDOLVPR GD H[LVWrQFLD KXPDQD [...]
produz um mundo artificial de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente
natural [...] D FRQGLomR KXPDQD GR WUDEDOKR p D PXQGDQLGDGH Arendt, 2009:15).
Ainda acrescenta:
O labor assegura no apenas a sobrevivncia do
indivduo, mas a vida da espcie. O trabalho e seu
produto, o artefato humano, emprestam certa
permanncia e durabilidade futilidade da vida mortal e
ao carter efmero do tempo humano. A ao, na
medida em que se empenha em fundar e preservar
corpos polticos, cria a condio para a lembrana, ou
seja, para a histria (Arendt, 2009: 16).
A mesma autora tambm destaca que o desejo da libertao da fadiga e penas do
trabalho sempre esteve presente na histria da humanidade. Esta faceta do trabalho foi
glorificada na era moderna que, produzindo teorias sobre este tema, resultou na
transformao da sociedade em sociedade operria. Acrescenta que a mundanidade,
condio humana, constituda pela ao dos homens que marca a histria pelo trabalho.
A presena do trabalho como categoria que permite a construo histrica do homem
em sociedade j estava presente, no entanto, no materialismo histrico-dialtico de Karl
Marx (1818-1883), que promoveu uma leitura das relaes sociais de produo, enfatizando
como centro destas relaes a alienao no trabalho.
Bernal (2010), ao descrever uma genealogia histrica sobre o trabalho, enfatiza que
como categoria homognea, o trabalho consolidou-se por volta do sculo XVIII. Sendo um
produto do capitalismo industrial, o trabalho na modernidade, diferentemente das
sociedades primitivas e sem Estado e da antiguidade clssica, passa a configurar a prpria
HVVrQFLDGDH[LVWrQFLDKXPDQDXPDIRUoDIXQGDPHQWDOFDSD]GHFULDUHDFUHVFHQWDUYDORU
GHL[DQGR GH VHU DOJR H[HFUiYHO H HQWHGLDQWH SDUD VHU XP SLODU GD ULTXH]D GDV QDo}HV
(p.23).
Borges & Yamamoto (2004) realizaram um importante levantamento sobre a histria e o
mundo do trabalho, e suas repercusses na subjetividade humana. Adotaram a concepo
de que o trabalho uma atividade central na vida do indivduo, e que o exerccio deste fazer
produtivo est permeado por umD LGHRORJLD FXMDV EDVHV GH SRGHU VXVWHQWDP-se na
propriedade, na concentrao do saber fazer e das possibilidades de conceder
UHFRPSHQVDVHSXQLomRQDVPmRVGHXPDPLQRULDS0DVHVWDFRQVWUXomRLGHROyJLFD
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9 A Saga de Hefesto
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no elimina as contradies, as insatisfaes e as reaes dos trabalhadores. Portanto, os
autores ressaltam que a histria do capitalismo tambm a histria da resistncia dos
trabalhadores.
Do fordismo (anos 1910) ao toyotismo (anos 1940), caminhou-se de um foco no
aumento da produo e do consumo de massa, no trabalho simplificado e fragmentado, sem
muito treinamento dos trabalhadores, a um foco nas contribuies cognitivas dos
trabalhadores, visando a competitividade das organizaes; a produo passa a ser
vinculada demanda, o trabalho passou a ser em equipe, aproveitando o tempo mximo de
produo, horizontalizao do processo produtivo, terceirizao, controle e gesto da
qualidade total.
J na dcada de 1980, os processos polticos e econmicos do neoliberalismo e da
globalizao encontram-se instalados com a paralela deteriorao das condies dos
empregos. Enfraquecem-se as possibilidades de distribuio de renda mais equilibrada,
fazendo aumentar o nmero de competidores por emprego nos anos 1990 e incio do sculo
XXI. Em muitos segmentos aumenta a demanda por qualificao, novos arranjos
organizacionais so arquitetados em busca de estruturas mais flexveis, fazendo surgir as
organizaes em rede. A terceirizao passa a se disseminar; trabalhadores autnomos
como consultores aumentam em nmero considervel, os postos de trabalho se tornam
mais fluidos e menos definidos, os indivduos so pressionados a dominarem uma ampla
gama de tarefas e desenvolverem competncias mltiplas; novos modelos de gesto so
construdos e cada vez mais se torna necessrio alinhar objetivos e valores organizacionais
a objetivos e valores individuais, o que se configura numa parceria indivduo-organizao
para se agregar valor ao negcio.
No campo social mais amplo, o que se percebe uma sociedade cada vez mais
individualista e narcsica. Todas essas mudanas foram fortalecendo ao longo dos tempos
os desgastes fsico e psicolgico do trabalhador. Enquanto os gestores so cobrados a
obterem qualidade nos produtos numa cultura que cada vez mais obedece ao lema R
FOLHQWHWHPUD]mRHEXVFD-se atender as expectativas dos acionistas, os trabalhadores so
compelidos a um esquema de trabalho pautado na qualidade e no conhecimento, envoltos
em relaes perversas de trabalho, expostos ao assdio moral e s violncias no ambiente
de trabalho.
Neste contexto, a busca pela excelncia organizacional precisa ser alimentada pela
participao ativa dos trabalhadores nos processos de gesto, caso contrrio a
desmotivao dos talentosos pe em risco a competitividade organizacional. Outro srio
problema que pode ser enfrentado a competitividade interna, j que esta pode favorecer
um coletivo de trabalho desintegrado, o que anda na contramo da formao de times de
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10 A Saga de Hefesto
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elevado desempenho. Melhor dizendo: se a organizao no investe em seus talentos, ter
comprometidos o processo de gesto de pessoas, as relaes interpessoais no ambiente de
trabalho e seus produtos e servios.
A parte disso, enquanto na era industrial o trabalho era institucionalizado em ntima
simbiose com a vida familiar e social, hoje a dicotomia entre trabalho e famlia requer um
profissional de comportamento humano que se lance ao desafio de conciliar estas duas
esferas to significativas constituio subjetiva humana. As atividades de trabalho so
consideradas como fundamentais na construo das interaes humanas, e as suas
transformaes ao longo do sculo acarretaram diferentes modos de subjetivao e de
constituio dos agrupamentos humanos e da sociedade como um todo. Hoje, as pessoas
so afetadas em seus valores, auto-estima e projetos de vida.
preciso lembrar aqui que o sujeito no busca mais apenas emprego no mercado de
trabalho nem depende das organizaes para alavancar suas carreiras. Hoje ele no busca
mais cultivar laos de longa durao com a organizao, pois ambos podem se decepcionar
com os vnculos estabelecidos. Fala-se em carreira proteana (Hall, 1996) e nesta nova fase
em que o homem auto-administra seu sucesso profissional, adaptando-se s adversidades e
compelido a enfrentar desafios (Balassiano, Ventura & Fontes, 2004), fazendo com que o
contrato psicolgico3 entre ele e a organizao passe por profundas transformaes, a
comear por um trabalhador que busca mais qualidade de vida no trabalho que sucesso
financeiro, mais satisfao e sucesso profissional que estabilidade no emprego e/ou alar
cargos hierarquicamente superiores.
Este homem contemporneo que invade o mercado de trabalho constitui a denominada
gerao Y (Cecchettini, 2011): uma gerao com maior nvel de formao, mais decidida no
que diz respeito a seus projetos de vida, mais esperanosa em virtude desta capacitao,
impacientes; uma gerao de resultados, no de processos, filhos dos tempos ps-
modernos.
Ao escrever sobre alguns fenmenos envolvidos na relao contempornea que o
homem estabelece com o trabalho, Bendassolli (2007) enfatiza que na ps-modernidade o
elo entre trabalho e identidade enfraquecido. Para justificar seus argumentos, estabelece
cinco narrativas pblicas (ao que ele denomina de ethos) acerca do sentido e do valor do
trabalho na atualidade: ethos moral-disciplinar, romntico-expressivo, liberal, consumista e
gerencialista. Acrescenta que a sobreposio destas narrativas pblicas pode levar
emergncia de uma insegurana ontolgica no homem, caracterizada por um
3 Denomina-se contrato psicolgico a XPFRQMXQWRGHH[SHFWDWLYDVLQGLYLGXDLVUHFtSURFDVUHODWLYDVjVREULJDo}HVRTXHRHPSUHJDGRGHYHHDRVGLUHLWRVRTXHRHPSUHJDGRUGHYH(VVHFRQFHLWREDVHLD-se na teoria social,
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11 A Saga de Hefesto
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enfraquecimento institucional e pela presso para que os indivduos ajam sem qualquer
assistncia pessoal, estando os mesmos fadados a uma ao que dependa exclusivamente
deles mesmos. Denomina insegurana ontolgica a
Um fenmeno correlato ao fim das certezas metafsicas HjFULVHGDLQGLYLGXDOLGDGHPRGHUQDGDQRomRGHHXmoderna, com sua correspondente forma identitria), bem como ao enfraquecimento do trabalho como uma GLPHQVmR REMHWLYD H VHJXUD GD H[LVWrQFLD KXPDQDtendo o sujeito que viver s voltas com o risco, o abandono ou no UHFRQKHFLPHQWR GR RXWUR(Bendassolli, 2007: 27).
Para o autor, o ethos moral-disciplinar caracterizado pelo dever de trabalhar, onde so
realados os aspectos normativos do trabalho, o carter reprodutivo e o sentido social do
trabalho. O trabalhador, reproduzindo valores sociais internalizados de geraes anteriores,
deve cumprir diligentemente seu dever, obedecer regras de procedimento, respeitar a
hierarquia organizacional. Nele os valores grupais se sobrepem aos valores individuais, o
que promove uma separao entre prazer e trabalho. As tarefas so realizadas porque
assim deve ser, independentemente da satisfao que elas possam promover ao homem.
O ethos romntico-expressivo reala a natureza expressiva do trabalho: uma obra que
o homem domina e executa com maestria. A nfase no trabalho como fim em si mesmo,
visto como criao e promotor de prazer, pois este trabalhador-artista consome sua prpria
obra e o reconhecimento dos outros menos importante.
O ethos instrumental enfatiza a caracterstica do trabalho como emprego, submetido
lgica do capital, eficincia e produtividade. Neste ethos, o trabalho depende do sucesso
do negcio; de variveis externas do mercado; das competncias do indivduo; de
processos, estruturas e tecnologias organizacionais. Este trabalho tem como caracterstica a
instabilidade e a no valorizao das caractersticas subjetivas e da identidade do
trabalhador. O que aqui est em questo o valor social do trabalho, sua capacidade
produtiva.
O ethos consumista caracterizado pelo trabalho como meio para obteno de
VDWLVIDomRSHVVRDO2GHVHPSHQKRHDSURGXWLYLGDGHGHSHQGHPGDVDWLVIDomR $ UHJUDp
PD[LPL]DU R SUD]HU HPLQLPL]DU R GHVFRQIRUWR %HQGDVVROOL 6). No conta neste
ethos o ideal coletivo, e sim o prazer individual. A preocupao do indivduo com o nvel
de renda e o aumento do seu poder aquisitivo para que lhe seja permitido o acesso aos
bens de consumo. O trabalho aqui um meio de satisfao diante da possibilidade de
consumo destes bens.
a qual argumenta que pessoas estabelecem relacionamentos para dar e receber coisas valiosas .LGGHU Buchholtz, 2002: 562).
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12 A Saga de Hefesto
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Por fim, Bendassolli (2007) descreve o ethos gerencialista, promovido, dentre outros,
por crenas disseminadas por consultores, empreendedores, gestores de RH, gurus
empresarias e literatura sobre gesto de pessoas. Fala-se em cultura de negcios, modelos
hegemnicos de empresas e organizaes, culto da excelncia e da performance. O que
est em jogo a cultura do management, do empreendedorismo, e nela se veicula o
discurso de um sujeito dono de seu prprio nHJyFLR QmR GHSHQGHQWH GH HPSUHJRV 1R
lugar da estabilidade, a incerteza; no lugar da carteira assinada, a empregabilidade [...] O
conceito de emprego substitutGRSHORGHSURMHWRLEGHP 251/252). Constri-se, assim, a
crena do Indivduo Voc S.a., expresso que o autor usa para referendar o indivduo que
compelido a se ver como empresa, um profissional que DVVXPD integralmente o controle de
sua prpria vida, sabendo claramente qual o tipo de trabalho que lhe d prazer, onde ele
deseja trabalhar, com quem quer se relacionar no trabalho LEGHP . Para isso esse
sujeito deve se autoconhecer; saber de suas aspiraes mais ntimas; identificar seus
talentos e seus parmetros de auto-realizao; e assumir os riscos inerentes ao mercado de
trabalho.
Bendassolli (2007), baseando-se em Robert Laing e Antony Giddens, argumenta que a
sobreposio e a contradio desses vrios ethos, ou narrativas do mundo do trabalho na
atualidade:
Pode levar parcela importante de indivduos, a um estado de insegurana ontolgica [...] Um processo social que dificulta o senso de segurana pessoal na experincia subjetiva com o trabalho [...] um tipo de falha na descrio de si mesmo, no porque algo essencial esteja sendo perdido, mas porque o indivduo no est sendo capaz de encontrar uma narrativa FRHUHQWH XP FHQWUR GH JUDYLGDGH SDUD SRGHU VHreconhecer e justificar suas aes, em particular em relao ao seu trabalho [...] Podem ento surgir estados marcados por ansiedade, depresso, medo e, no limite, bloqueio da capacidade de ao (263-266).
A essa sobreposio de narrativas pblicas que assolam o trabalhador, pode-se
acrescentar o processo de precarizao das condies de trabalho, que designa a excluso
social e a explorao laboral do trabalhador, resultante das profundas transformaes
sociais, polticas e econmicas ocorridas ao longo dos ltimos anos, que se do no contexto
das organizaes ou fora dele. Esse processo gerou o trabalhador precrio, e como
consequncias: a exacerbao do individualismo possessivo e o silenciamento sobre o
prprio sofrimento; o autoritarismo empresarial revestido de novas formas de dominao e
explorao dos trabalhadores; a persistncia de vrias formas de discriminao, dentre elas
a violncia no trabalho e o Assdio Moral; as mudanas nas relaes sindicais e o
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13 A Saga de Hefesto
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enfraquecimento na luta coletiva contra o sofrimento no trabalho; alm da pauperizao
frequente de uma significativa parcela de trabalhadores.
O processo de precarizao das condies de trabalho favoreceu e vem sendo
fortalecido pela crise da sociedade que vive do trabalho, crise caracterizada pela
reestruturao das organizaes, downsising (achatamento das estruturas organizacionais),
perspectiva do fim da sociedade do trabalho (ou do emprego? Codo, 2006), pela
superqualificao de trabalhadores em alguns segmentos e sub-proletarizao da grande
maioria. Ao falar deste processo, Antunes (2009) adverte que o mesmo gerado por outro
processo: a destruio da concorrncia e a busca de produtividade que desemprega ou
compromete a vida de mais de 1 bilho de pessoas no mundo, melhor identificando, um
tero da fora humana mundial que trabalha.
Dados recentes4 da OIT, da OMS e do INSS informam, entre outros, que: a segunda
causa de afastamento do trabalho a doena ocupacional; as doenas relacionadas ao
trabalho matam por ano mais de 300 mil pessoas na Europa; o trabalho mata por ano mais
de 2.000.000 de pessoas nos pases industrializados; 270 milhes de trabalhadores
assalariados so vtimas de acidentes de trabalho; a maior causa de acidentes e doenas
no trabalho o stress; 160 milhes de trabalhadores contraem doenas do trabalho todos os
anos. O Brasil tem 410 mil acidentes de trabalho por ano, que matam trs mil brasileiros,
isso sem contabilizar os 40 milhes de brasileiros da economia informal. No mundo, os
prejuzos viabilizam consumos da ordem de 4% da mdia do PIB mundial. No Brasil este
consumo da ordem de 12% do PIB nacional. So gastos mais de U$ 1.400.000,00 em
tratamento de doenas do trabalho no mundo, enquanto no Brasil os gastos so da ordem
de R$ 32 bilhes.
Em 2009 foram registrados 723.452 acidentes e doenas do trabalho, entre os trabalhadores assegurados da Previdncia Social. Observem que este nmero, que j alarmante, no inclui os trabalhadores autnomos (contribuintes individuais) e as empregadas domsticas. Estes eventos provocam enorme impacto social, econmico e sobre a sade pblica no Brasil. Entre esses registros contabilizou-se 17.693 doenas relacionadas ao trabalho, e parte destes acidentes e doenas tiveram como conseqncia o afastamento das atividades de 623.026 trabalhadores devido incapacidade temporria (302.648 at 15 dias e 320.378 com tempo de afastamento superior a 15 dias), 13.047 trabalhadores por incapacidade permanente, e o bito de 2.496 cidados. Para termos uma noo da importncia do tema sade e segurana ocupacional basta observar que no Brasil, em 2009, ocorreu cerca de 1 morte a cada 3,5 horas, motivada pelo risco decorrente dos fatores ambientais
4 Consultar site www.previdencia.gov.br.
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14 A Saga de Hefesto
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do trabalho e ainda cerca de 83 acidentes e doenas do trabalho reconhecidos a cada 1 hora na jornada diria. Em 2009 observamos uma mdia de 43 trabalhadores/dia que no mais retornaram ao trabalho devido a invalidez ou morte. Se considerarmos exclusivamente o pagamento, pelo INSS, dos benefcios devido a acidentes e doenas do trabalho somado ao pagamento das aposentadorias especiais decorrentes das condies ambientais do trabalho em 2009, encontraremos um valor da ordem de R$ 14,20 bilhes/ano. Se adicionarmos despesas como o custo operacional do INSS mais as despesas na rea da sade e afins o custo - Brasil atinge valor da ordem de R$ 56,80 bilhes (Fonte: Previso MPS). A dimenso dessas cifras apresenta a premncia na adoo de polticas pblicas voltadas preveno e proteo contra os riscos relativos s atividades laborais. Muito alm dos valores pagos, a quantidade de casos, assim como a gravidade geralmente apresentada como conseqncia dos acidentes do trabalho e doenas profissionais, ratificam a necessidade emergencial de construo de polticas pblicas e implementao de aes para alterar esse cenrio. (http://www.previdencia.gov.br/conteudoDinamico.php?id=39).
O INSS realiza mensalmente mais de 800 mil percias mdicas. Os auxlios-doena j custam mais de R$ 1 bilho por ms aos cofres pblicos. Nos Regimes Prprios de Previdncia dos Servidores, a aposentadoria por invalidez tem um peso exacerbado no total de benefcios concedidos somente no RPPS da Unio, a invalidez a causa de um quarto das aposentadorias concedidas em anos recentes (Schwarzer, 2010:7).
Os dados do grfico 1 mais adiante so mostrados por Seligmann-Silva, Bernardo,
Maeno & Kato (2010) em artigo recentemente publicado. Nota-se que, de acordo com todos
esses indicadores, o trabalho atualmente no Brasil passa a ser uma questo de sade
pblica, requerendo urgentemente que profissionais de diversas reas de saber se
envolvam com a causa de promoo da sade e da qualidade de vida de pessoas e
instituies.
O certo que, diante do processo de precarizao do trabalho e, consequentemente, da
sade, diversas lutas tm sido empreendidas na contemporaneidade pelos trabalhadores de
variadas profisses no sentido de regulamentar e melhorar suas condies de trabalho.
Borges e Yamamoto (2004) salientam, no entanto, que o que existe hoje so tempos de
desordem do trabalho, caracterizados por dificuldades dos trabalhadores vislumbrarem
perspectivas de superao da crise e pela substituio da tica da ao coletiva, presente
em toda histria da luta dos trabalhadores, por aes individuais.
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15 A Saga de Hefesto
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Grfico 1 - Transtornos mentais e comportamentais (F00 F99): benefcios acidentrios concedidos pelo Instituto Nacional de Seguro Social nos anos de 2006 a 2009.
Fonte: Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno & Kato (2010). O mundo contemporneo do trabalho e a sade mental do trabalhador [Verso Eletrnica]. Revista Brasileira de Sade, 35 (122), pp. 187-191.
Atenta-se, porm, que no contexto contemporneo as lutas que se travam esto mais
focadas nas questes subjetivas que nas condies materiais de trabalho, realidade
presente na poca da revoluo industrial, enfatizada por Karl Marx. O foco hoje caminha da
organizao formal do trabalho para todas aquelas temticas relacionadas subjetividade
do trabalhador: sade mental, prazer, sofrimento, carga psquica no trabalho, emancipao,
servido e assdio moral.
Nos ltimos anos, as inmeras transformaes do trabalho so resultantes,
principalmente, do fenmeno da globalizao, da revoluo tecnolgica e da adoo de
novos modelos de gesto nas organizaes. A isto, junta-se o processo de reestruturao
produtiva, que surge como mecanismo de enfrentamento da crise de acumulao flexvel do
capital. Antunes (2009) lembra que a transnacionalizao do capital impe ao mundo do
trabalho contemporneo desafios tambm transnacionais, embora o trabalhador ainda se
mantenha numa estruturao nacional, o que um limite enorme para uma ao dos
trabalhadores.
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16 A Saga de Hefesto
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As novas tecnologias criam novos postos de trabalho. Surgem novos empregos,
especialmente no setor de servios. O trabalho est se transformando cada dia mais em
bem escasso, ao mesmo tempo em que est adquirindo mais valor. No entanto, as atuais
condies de trabalho impostas pela gesto neoliberal da globalizao tornam difcil aos
trabalhadores se sentirem valorizados de forma positiva como eram nas dcadas de
1970/1980 (Bernal, 2010).
Foi justamente a partir da dcada de 1980, que comearam a surgir abordagens
tericas em psicologia que se preocupam em entender como o homem se constri
subjetivamente e socialmente atravs do trabalho. Estudiosos e pesquisadores passaram a
atentar para o fazer produtivo do homem atravs do trabalho, com as nuanas ticas deste
fazer, compreendendo o trabalho humano como um processo histrico, favorecedor de
sade e/ou de doena, dependendo do contexto social onde realizado, e da histria de
vida do sujeito que o vivencia.
Com o advento da globalizao, a psicologia precisa adentrar a realidade atual deste
fazer produtivo. Questes como competitividade, qualificao profissional, adaptabilidade,
desemprego, desigualdade social, as atuais formas de organizao de trabalho, qualidade
de vida e doenas ocupacionais so os focos das pesquisas de hoje, pois
o que vem sendo testemunhado uma superexplorao da fora de trabalho, atravs da reduo ou eliminao do trabalho improdutivo e da consequente extino dos postos de trabalho [...] o desemprego parece culminar em depresso, angstia, sentimentos de impotncia e de culpa, perda de autoestima, alcoolismo, tabagismo, uso de drogas em geral, suicdio, incerteza quanto ao futuro, conflitos conjugais e familiares e isolamento social (Goulart & Guimares, 2002: 28-29).
A globalizao impe, ento, um novo tipo de organizao de trabalho atrelado
capacidade do trabalhador em demonstrar flexibilidade e se ajustar a estes novos
parmetros. Ele deve ter capacidade de assumir tarefas variadas e submeter-se
permanentemente a treinamentos, capacitaes e reciclagens, para se tornar
cotidianamente mais qualificado (Kon, 1998), pois cada vez mais o trabalho est regido pela
lgica da eficcia (Bernal, 2010).
Bernal (2010) defende que nas ltimas dcadas produziu-se um triplo fenmeno em
todo mundo ocidental que converteu as estruturas das organizaes em algo obsoleto:
elevao do nvel de instruo e formao dos trabalhadores, que torna o modelo taylorista
de gesto absurdo e ineficaz; elevao do nvel instrucional da populao em geral, que
resulta numa clientela cada dia mais exigente e inflexvel, tendo que as organizaes
responderem a parmetros exorbitantes de qualidade total, mas tambm que a obriga a
atender s exigncias de satisfao de seus colaboradores; e novos modos de gesto que
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submetem o trabalhador ao estresse ocupacional e ao assdio psicolgico no trabalho. O
autor acrescenta que tanto o estresse ocupacional quanto o assdio psicolgico (mobbing)
no trabalho, apesar de no serem fenmenos novos, foram fortemente incrementados pelas
condies e exigncias da globalizao neoliberal.
O tempo sem trabalho ocupa um espao cada vez mais central na vida humana. preciso, ento, reprojetar a famlia, a escola, a vida, em funo no s do trabalho, mas tambm do tempo livre, de modo que ele no degenere em dissipao e agressividade, mas se resolva em convivncia pacfica e cio criativo. preciso criar uma nova condio existencial em que estudo, trabalho, tempo livre e atividades voluntrias cada vez mais se entrelacem e se potencializem reciprocamente. Uma reprojeo similar envolve a cultura ideal, material e social. Requer por isso um ambicioso plano de reeducao e um amplo pacto social que objetive a redistribuio mais justa do trabalho, da riqueza, do saber e do poder (p.25).
1.2 CULTURA CAPITALSTICA, MODOS DE SUBJETIVAO E SOFRIMENTO NO
TRABALHO CONTEMPORNEO
Como esta tese se insere no bojo da psicologia clnica, necessrio se faz relacionar
cultura, trabalho e subjetividade, atentando para os modos de subjetivao que so
produzidos e produzem a cultura no contexto do capital. Isto porque falar da psicologia
clnica e de suas possibilidades de compreenso do sofrimento humano no trabalho remete
a uma compreenso dos modos de subjetivao no trabalho, para se enfatizar como estes
modos so comunicados na clnica pelo sujeito que busca ajuda para aliviar seu sofrimento.
Pags (1987) alertou para o fato de a lgica capitalista separar o trabalho dos valores
individuais e coletivos, substituindo o valor concreto do trabalho pelo valor abstrato do
dinheiro, o qual tenta subordinar os valores do indivduo e da coletividade. Para ele, o
territrio de trocas simblicas esfacelado e cria-se um novo territrio de trocas
indiferenciadas, reguladas pelo dinheiro. De um campo pluridimensional no hierarquizado
chega-se a um campo monodimensional hierarquizado, onde se afirma o primado do
econmico. Parece, ento, haver, no contexto scio-econmico do capital, um
esfacelamento da dimenso coletiva da subjetividade humana e, j que o fazer coletivo
sustentaria os modos de subjetivao no trabalho, tem-se um sujeito que, grosso modo,
necessita produzir sozinho uma dimenso que, em essncia, seria construda em grupo: a
cultura.
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Vale salientar aqui que se considera que no h cultura sem uma cartografia subjetiva,
nem h subjetividade sem uma cartografia cultural que a sustente (Guattari & Rolnik, 1993).
A cultura e a subjetividade formam uma equao que se manifesta na sociedade: o sujeito
produto e produtor da sociedade qual pertence, tendo a capacidade de transform-la e,
como bem frisa Laraia (2009), represent-la por meio da linguagem.
Compreender a cultura e seu entrelaamento com a subjetividade requer uma profunda
reflexo da realidade. Requer tambm que se pense a cultura tendo como pano de fundo
uma cartografia, j que a mesma fluida, em constante mutao. Neste sentido, vale
indagar: como os modos de subjetivao no trabalho contemporneo se apresentam?
Considera-se que, para responder esta questo, preciso se conceber que a construo da
subjetividade dialtica.
O processo de tornar-se humano depende da cultura, ou seja, o homem tem uma
natureza predominantemente cultural. A aquisio cultural o campo do simblico, a partir
dela o homem adquire linguagem e, pela linguagem, o homem a transforma. Esse processo
continuamente inacabado, existindo campos de foras de diferentes nveis envolvidos na
construo da subjetividade. Tais campos de foras ou processos de subjetivao podem se
expressar nos modos de sentir, pensar, agir, desejar e estar no mundo. Os campos de
foras constituintes das subjetividades so tanto extrapessoais (sistemas econmicos, de
mdia, tecnolgicos) como intrapessoais (sistemas de afeto, percepes, valores).
Neste processo, a construo da subjetividade um acontecimento histrico (Ferreira,
2004). Portanto, quando se est referindo ao contexto scio-histrico-cultural no qual vem
se desenvolvendo o trabalho humano e para a compreenso da paisagem subjetiva do
trabalho na contemporaneidade, parece necessrio enfatizar a relao trabalho e
subjetividade, a fim de compreender como se pode abordar os processos de subjetivao
dominantes, indissociveis que so da cultura que emergem.
Segundo Jacques (2003), os estudos e pesquisas em subjetividade e trabalho buscam
analisar o sujeito trabalhador definido a partir de suas experincias e vivncias adquiridas no
mundo do trabalho, norteando-se por uma viso do trabalho para alm de seu carter
tcnico e econmico. O trabalho perpassaria, portanto, a estrutura scio-econmica, a
cultura, os valores e a subjetividade dos trabalhadores.
A autora ainda acrescenta que nestes estudos h uma nfase nas vivncias, no
cotidiano e nos modos de ser do sujeito e em suas experincias de si no trabalho, e no em
diagnsticos psicopatolgicos. Observa-se, ento, uma concepo de subjetividade que no
se restringe apenas ao que as pessoas pensam ou conhecem, se expressando, tambm,
em hbitos e costumes.
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Ao se considerar o pensamento desta autora, pode-se citar como exemplo Ricardo
Antunes que escreve a obra Os sentidos do trabalho no ano de 1999 e reedita-o 10 anos
depois, buscando acompanhar as fortes transformaes ocorridas no mundo do trabalho e
suas consequncias para a subjetividade humana. Conclui que o trabalho, no incio do
sculo XXI, ainda uma questo decisivamente vital para o homem e que a categoria
WUDEDOKRVHFRQVWLWXLFRPRIRQWHRULJLQiULDSULPiULDGHUHDOL]DomRGRVHUVRFLDOSODWDIRUPD
da atividade humana, fundamento ontolgico bsico da omnilateralidade humana5
(Antunes, 2009: 165).
Est-se, neste sentido, diante da concepo de um trabalho que expressa modos de
subjetivao humana: ser, pensar, agir e sentir diante do mundo. Tais processos so
delineados por Blanch e Cantera (2008), que consideram o trabalho como sendo a principal
fonte de estruturao psicolgica, social e cultural da humanidade. Na contemporaneidade,
no entanto, a ordem produtiva regida pela economia da incerteza e da insegurana, que
promove uma realidade scio-laboral mais fluida, frgil e instvel, e, consequentemente,
uma experincia individual e coletiva mais imprevisvel, incontrolvel e no confortvel.
De acordo com estes autores, cada modo de produo conserva um modo prprio de
subjetivao: sujeitao ou a-sujeitao. No modo de produo contemporneo, eles
parecem indicar que cada trabalhador, para ser sujeito de seu trabalho, ou seja, para se
sujeitar, est obrigado, individualmente, a administrar seus riscos e assumir as
consequncias de suas escolhas, fadado que est ao que Bauman (2009FKDPRXGHYLGD
OtTXLGD RQGH SURMHWRV H[SHULrQFLDV H UHODo}HV SHVVRDLV H WUDEDOKLVWDV HIrPHUDV
passageiras, de curto prazo dominam, fazendo com que o sujeito oriente-se e mova-se num
entorno flutuante, ambguo, inseguro e incerto. Ao mesmo tempo em que se sujeita nesta
realidade, corre o risco de se a-sujeitar, ou seja, no apropriar-se de sua singularidade, pois
j no pode contar com um contexto de responsabilidade social compartilhada e sim com
fontes de individualismo de diversas ordens: filosfica, econmica, teolgica, moral,
sociolgica e laboral.
Bauman (2007) adverte que a passagem da modernidade slida para a lquida
favoreceu com que as organizaes no mais consigam manter sua forma por muito tempo,
pois se decompem e se dissolvem mais rpido. Na mesma medida, os projetos de vida dos
indivduos no mais partem de uma estratgia coesa e consistente, nem tampouco so
compartilhados no espao do coletivo ou podem contar com as organizaes ou com o
Estado para tal.
5 Omnilateralidade o termo utilizado por Karl Marx para se referir realizao/emancipao do homem atravs
do trabalho.
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Os laos inter-humanos, que antes teciam uma rede de segurana digna de um amplo e contnuo investimento de tempo e esforo, e valiam o sacrifcio de interesses individuais imediatos (ou do que poderia ser visto como sendo do interesse de um indivduo), se tornam cada vez mais frgeis e reconhecidamente temporrios. A exposio dos indivduos aos caprichos dos mercados de mo-de-obra e de mercadorias inspira e promove a diviso e no a unidade. Incentiva as atitudes competitivas, ao mesmo tempo em que rebaixa a colaborao e o trabalho em equipe condio de estratagemas temporrios que precisam ser suspensos ou concludos nos momentos em que se esgotarem seus benefcios [...]. A responsabilidade em resolver os dilemas gerados por circunstncias volteis e constantemente instveis jogada sobre os ombros dos indivduos dos quais se espera que sejam free-cKoosers e suportem plenamente as consequncias de suas escolhas (Bauman, 2007: 9-10).
Neste nterim, surgem relaes competitivas alimentadas pela cultura da competncia.
Compreende-se que a competitividade desenfreada do mundo contemporneo do trabalho,
permeada que est pelas relaes de poder vigentes, produz mais e mais sofrimento. Seja
qual for a realidade trabalhista, o fenmeno do poder do mais forte, mais rico, com mais
conhecimento, com mais regalias e favoritismos aquilo que impera.
Isto pode caracterizar o que Mendes (2008) chama de negociao nas relaes de
trabalho. Para ela, todos adoram o poder porque so perversos polimorfos6 e, no ambiente
de trabalho criam relaes de rivalidade que so estimuladas, provocadas e legitimadas
pelos modos de gesto nas organizaes. Estes jogos de poder levam ao sofrimento e
dificultam sua transformao, restando apenas uma sada para se ter possibilidade de re-
significar este sofrimento, obter prazer e vislumbrar sade: o reconhecimento.
Mas o reconhecimento no tem sido evidenciado no mundo do trabalho. As
organizaes exigem a volatilidade de competncias do sujeito, em decorrncia de um
mercado hiperflexvel, que demanda conhecimentos hiperflexveis, mas, no entanto, no
possuem polticas de reconhecimento que sejam percebidas pelos trabalhadores enquanto
tais. Aliado a isto, estas exigncias organizacionais resultam num processo de excluso
social de milhares de pessoas que, impossibilitadas de desenvolverem competncias, caem
na malha do esquecimento e da sensao de vazio existencial por no poder se incluir neste
mercado altamente competitivo.
O sujeito, diante deste mercado, busca desenfreadamente desenvolver competncias,
das quais os conhecimentos so os mais prementes, como forma de preencher o vazio
6 O perverso polimorfo o indivduo que extrai prazer de diversas reas da sua pessoa, da sua individualidade, e
ainda se apresenta sedento de prazer. A disposiRSHUYHUVDSROLPRUIDVHFRQVWLWXLGHGHWHUPLQDGRVQ~PHURVde instintos parciais que, independentes uns dos outros, buscam a obteno de prazer, em parte do prprio FRUSRGRLQGLYtGXRHHPSDUWHGHXPREMHWRH[WHUQR (Freud, 1916-1917/2006: 321).
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instaurado entre sua realidade cognitiva e um ideal de eu buscado a todo custo. Assim, a
instncia psquica que prevalece a do ideal do eu, que controla aquilo que o sujeito
gostaria de ser, o que, na verdade, uma produo cultural do que os outros dizem que ele
pode ser.
possvel se constatar, a partir disso, que o sofrimento que vivenciado pelo sujeito
o de no atender a um perfil homogeneizado, fabricado pela cultura, robotizado. Mesmo que
os termos cunhados se refiram a caractersticas as mais subjetivas possveis (habilidades
de liderana, de saber trabalhar em equipe, humildade, sensibilidade, intuio e viso de
futuro), a forma como se constroem os perfis de competncia termina por caracterizar um
mecanismo de controle a partir de uma configurao subjetiva qual o sujeito tem que se
submeter.
Evidentemente que isto caracteriza o que Guattari & Rolnik (1993) chamam de modos
GH SURGXomR FDSLWDOtVWLFRV TXH IXQFLRQDP SDUD FRQWURODU D VXEMHWLYLGDGH SHOD FXOWXUD GD
HTXLYDOrQFLD - uma espcie de cultura de massa que alimenta a sujeio a uma
necessidade criada, ilusria, culturalmente alimentada, pois o sujeito passa a desenvolver
uma necessidade de fazer parte e pertencer a esta cultura.
Essa cultura de massa produz, exatamente, indivduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierrquicos, sistemas de valores, sistemas de submisso no sistemas de submisso visveis e explcitos, como na etologia animal, ou nas sociedades arcaicas ou pr-capitalistas, mas sistemas de submisso muito mais dissimulados (Guattari & Rolnik, 1993: 16).
O resultado deste processo a produo de subjetividades capitalsticas, nas quais se
produzem indivduos assujeitados. Usando uma expresso de Debord (apud Viana, 2008),
QHVWD VRFLHGDGH GR HVSHWiFXOR DV exresses da vez so capital intelectual, marketing
pessoal, agregar valor ao negcio. Ao que isso leva? A um sujeito que se referenda pelos
conhecimentos adquiridos, pela aparncia de autocontrole, pelo tanto de valor que ele
consegue atrair para a organizao. Assim, a ordem da vez parece se caracterizar como
uma embalagem (preferem-se a imagem, a representao e a aparncia), em detrimento do
produto que nela est inserido (as reais caractersticas subjetivas).
Percebe-se que em toda a histria da alienao pelo trabalho, caracterstica das
relaes sociais de produo no sistema capitalista, o trabalhador esteve engendrado em
processos de enfrentamento do sofrimento que o exerccio do trabalho lhe impe. Sendo o
trabalho estruturante para a sociedade e para o indivduo, est-se diante de uma trama de
relaes de poder onde o trabalhador busca lutar contra e superar a ideologia dominante
para se fazer presente no mundo e construir sua histria pelo trabalho.
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No restam dvidas de que o mundo do trabalho caracteriza-se como um dispositivo de
controle e regulao sobre o homem. Neste sentido, pode-se caracterizar o processo de
subjetivao do homem pelo trabalho contemporneo constitudo por um campo de foras
que, de um lado, conduz o sujeito a um contnuo processo de tecnologizao de seu saber,
seu saber fazer e seu saber conviver, j que ele cobrado em suas potencialidades, o que o
faz exaurir-se em suas foras fsicas e psquicas; de outro, a busca desenfreada pelo
conhecimento, pela metacompetncia (termo cunhado por Mussak, 2003). A nsia de
satisfazer as exigncias do mercado de trabalho faz com que o sujeito se lance numa luta
ferrenha contra seus prprios limites.
Ao tentar compreender esta dinmica na contemporaneidade, pode-se arriscar dizer
que hoje o homem se encontra num corpo que no tem tempo nem espao para se situar. A
plasticidade das relaes de trabalho caractersticas dos modos de subjetivao
contemporneos permite revelar um corpo que se volatiliza, mas ao mesmo tempo se
esfora para se firmar, para se configurar como elemento realizador da histria e formador
de cultura. Apesar de toda dinmica de sofrimento humano no trabalho, o homem habita um
corpo que tenta transformar este sofrimento e conduzir-se pelo mundo.
No se pode descaracterizar todos estes processos como emergncia para a cincia da
psicologia, compromissada com a qualidade de vida do ser humano. O sofrimento no
trabalho, portanto, passa, nos dias atuais, a convidar psiclogos e profissionais de sade
mental para aes preventivas e interventivas visando um futuro mais saudvel para a
nossa sociedade. Alm disso, o trabalho , na contemporaneidade, um terreno frtil para o
desenvolvimento de pesquisas, principalmente quando se trata da sua relao com a sade.
Compartilha-se com os escritos de Heloani e Lancman (2004), ao lembrarem autores como
Yves Clot e Franois Daniellou, quando afirmam:
O incremento de pesquisas na rea de Sade e Trabalho s pode se dar a partir da congregao de esforos e da combinao de diferentes teorias e metodologias. Essa busca um desafio interdisciplinar, que requer esforos mltiplos para entender a nova realidade, propor abordagens inovadoras que possam contempl-la em sua complexidade, alm de contribuir no desenvolvimento de propostas de interveno e transformao do trabalho (Heloani & Lancman, 2004: 79).
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1.3 MODOS DE GESTO QUE PROMOVEM SOFRIMENTO E PODEM LEVAR AO
ADOECIMENTO NO TRABALHO
O sofrimento no trabalho est associado a variveis referentes subjetividade do
homem, profisso que ele exerce e s suas condies de trabalho. Dentre as variveis
externas das condies de trabalho, inserem-se os modos de gesto, que, como se viu ao
longo deste tpico, nos dias atuais impem ao sujeito um intenso ritmo e uma excessiva
responsabilizao pelos processos de trabalho.
Estas exigncias, aliadas s cobranas por metas quantitativas extrapola o setor
privado e invade o servio pblico (Spilki, Jacques, Scopel & Oliveira, 2009), levando os
trabalhadores a experimentarem um processo que Linhart (2009) denomina de precariedade
subjetiva: um sentimento de no dominar seu trabalho e de precisar permanentemente
desenvolver esforos para se adaptar e para cumprir objetivos. um sentimento, tambm,
de isolamento e abandono, pois o trabalhador no pode contar com a ajuda nem dos
superiores nem dos colegas de trabalho. Tal processo altera a vida do sujeito dentro e fora
da organizao.
Interessante indagar, aqui: ele poder contar com quem? Lembra-se que a instncia
coletiva do trabalho frisada por muitos autores (a exemplo de Dejours, 1982; 2004) como
fundamental ao enfrentamento do sofrimento no trabalho. Se so esfaceladas as dimenses
do coletivo, o que restaria ao homem trabalhador? Questo a se pensar...
Diante disto, acredita-se que um profissional de psicologia que busca compreender a
relao homem X trabalho no pode se abster de conhecer temticas como esta. No
entanto, o que o mbito acadmico mostra que a formao graduada em psicologia no
prepara o educando nem para conhecer a cincia da administrao nem para ser gestor
(Zanelli & Bastos, 2004), o que termina comprometendo sua eficcia como profissional de
gesto de pessoas.
No que diz respeito especificamente s prticas em sade mental e segurana no
trabalho no Brasil, Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno & Kato (2010) lembram que, apesar
das polticas de gerenciamento desconsiderarem os limites fsicos e psquicos do
trabalhador e repercutirem sobre a subjetividade deste, muitas vezes anulando-a para que a
produo no seja prejudicada, os processos econmicos e organizacionais, assim como os
psicossociais envolvidos nestas polticas so minimizados ou mesmo ignorados nas reas
de medicina do trabalho, sade ocupacional e psicologia, denotando um desconhecimento
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da necessidade de articulao destes aspectos com os processos sade-doena no
trabalho.
Na prtica da psicoterapia, por sua vez, a temtica modos de gesto parece estar longe
da realidade de atuao profissional do psiclogo. No se defende, aqui, que um psiclogo
clnico deva dominar conhecimentos da cincia da administrao, mas, se as demandas de
sofrimento no trabalho passam a ser emergentes na psicologia clnica, de se esperar que,
eticamente comprometido com a sade do seu cliente, este psiclogo se abra para estudar
modos de gesto e como essas prticas promovem sofrimento e podem levar ao
adoecimento do trabalhador.
Neste sentido, para compreender o que sejam modos de gesto e a forma como os
diversos modelos foram se estruturando, far-se- um breve esboo histrico de como estas
prticas ao longo dos anos foram afetando sobremaneira a integridade fsica e psquica dos
sujeitos trabalhadores. Para tanto, partir-se- do conceito de gesto proposto por Chanlat
(2007: FRQMXQWR GH SUiWLFDV DGPLQLVWUDWLYDV FRORFDGDV HP H[HFXomR SHOD GLUHomR GH
XPDHPSUHVDSDUDDWLQJLURVREMHWLYRVTXHHODWHQKDVHIL[DGR
J nos sculos XVIII e XIX, nos contextos das Revolues Industrial e Francesa,
decorrentes do capitalismo, os ditames da produo se impuseram ao homem atravs de
um controle acirrado para que o resultado organizacional fosse alcanado: aumento da
produtividade. Este contexto scio-econmico e cultural permitiu surgir propostas cientficas
e o desenvolvimento de teorias que vislumbravam a organizao do trabalho com vistas ao
avano econmico das organizaes e do Estado.
Taylor, por exemplo, ao sistematizar a administrao cientfica, propunha