A Saga de Hefesto- Clinica Do Trabalho-_shirley_macedo

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  • UNIVERSIDADE CATLICA DE PERNAMBUCO

    PR-REITORIA ACADMICA - PRAC

    DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLNICA

    LINHA DE PESQUISA PRTICAS PSICOLGICAS CLNICAS EM INSTITUIES

    A SAGA DE HEFESTO:

    HERMENUTICA COLABORATIVA COMO

    POSSIBILIDADE DE AO HUMANISTA-FENOMENOLGICA EM

    CLNICA DO TRABALHO

    SHIRLEY MACDO VIEIRA DE MELO

    Dezembro

    2012

  • SHIRLEY MACDO VIEIRA DE MELO

    A SAGA DE HEFESTO:

    HERMENUTICA COLABORATIVA COMO POSSIBILIDADE DE AO HUMANISTA-FENOMENOLGICA

    EM CLNICA DO TRABALHO

    Tese apresentada ao Programa de Doutorado

    em Psicologia Clnica da Universidade

    Catlica de Pernambuco, como requisito

    parcial obteno do ttulo de Doutor em

    Psicologia Clnica.

    Orientador: Prof. Dr. Marcus Tlio Caldas

    Dezembro

    2012

  • SHIRLEY MACDO VIEIRA DE MELO

    A SAGA DE HEFESTO:

    HERMENUTICA COLABORATIVA COMO POSSIBILIDADE DE AO HUMANISTA-FENOMENOLGICA

    EM CLNICA DO TRABALHO

    Esta tese foi julgada adequada obteno do ttulo de Doutor em Psicologia Clnica e aprovada em sua forma final pelo Curso de Doutorado em Psicologia Clnica da Universidade Catlica de Pernambuco.

    Recife, 03 de dezembro de 2012

    ______________________________________________________

    Professor e Orientador Marcus Tlio Caldas, Dr.

    Universidade Catlica de Pernambuco

    ______________________________________________________

    Prof. Ana Maria Monte Coelho Frota, Dra.

    Universidade Federal do Cear

    ______________________________________________________

    Prof. Lucinda Maria da Rocha Macdo, Dra.

    Universidade Federal de Pernambuco

    ______________________________________________________

    Prof. Ana Lcia Francisco, Dra.

    Universidade Catlica de Pernambuco

    ______________________________________________________

    Prof. Albenise de Oliveira Lima, Dra.

    Universidade Catlica de Pernambuco

  • iii A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Dedico este trabalho ao meu Painho, que, ao

    tentar compreender minhas necessidades

    profissionais, visualizou a juno daquilo que

    parecia separado para mim e, apesar das

    pernas mancas provocadas pela sua

    fraqueza, desafiou o Olimpo e segurou seu

    machado at o ltimo momento...

  • iv A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    AGRADECIMENTOS

    Falar de pessoas e de sua importncia em nossas vidas requer, antes de tudo, que

    consigamos colocar em palavras o que nosso corao quer expressar. As palavras nos

    somem, porque uma tarefa por deveras complexa: os sentimentos simplesmente existem,

    sem nos exigir explicaes.

    Mas hora de apontar, daqueles todos que passam ou passaram na minha vida, os

    que, neste contexto de carreira profissional, constituem pilares para meu engrandecimento

    como pessoa que busca, da melhor maneira que pode, cumprir sua misso neste mundo.

    Ao Deus Supremo, que sempre esteve no meu caminho como uma lamparina que, aos

    poucos e sem pressa, foi me iluminando e me fortalecendo a enfrentar os obstculos.

    minha famlia primeira, Pai, Me, Irmos, Sobrinhos, Avs, Ti@s e Prim@s, pelos

    carinhos recebidos, pelos embates permitidos, pelas dores e perdas compartilhadas e por

    terem me permitido construir um lugar meu, diferente. Mesmo os que j se foram, continuam

    presentes atravs de valores fortes, em cujas bases me sedimentei como pessoa.

    Ao meu marido, grande homem, companheiro e pai que . Hilmar: estar com voc, ao

    longo desses 21 anos, no tem preo. Obrigada, tambm, por ter custeado o ltimo ano do

    curso.

    Aos meus filhos Pedro e Sophia, cuja exploso de sentimentos me faz ir alm de mim

    mesma e cujo ensinamento da arte de ser me me desafia 24 horas por dia como

    trabalhadora. Filhos: vocs so o motivo de tudo aquilo que me faz ser a mulher que sou

    hoje. Sei que foi difcil para ns trs esta caminhada... Eu tenho tanto para lhes falar, mas

    com palavras no sei dizer como grande o meu amor por vocs...

    minha sogra, que, no por acaso xar da minha av, Josefa. V: quanta amizade!

    Quanta cumplicidade! Quanta ajuda! Quanto carinho voc vem me cedendo at hoje! Nos

    momentos mais difceis destes ltimos doze anos, foi com voc que mais contei o tempo

    todo. Obrigada!

    minha irm Sarah, por ter sido os ouvidos das transcries, quando os meus falharam

    para discriminar frequncias. Linda: agradeo todos os dias muito mais pela amiga,

    companheira, torcedora e filha que voc para mim.

    Aos meus tios Lucy e Joel Macdo, que sempre nas horas mais difceis estiveram

    presentes dando fora s famlias Marinho e Macdo, sem pestanejar, dando incentivos

    para que os machados de todos continuassem produzindo.

    minha mezinha Zezinha que sempre orou por mim e, hoje, mesmo portando

    Alzheimer, lembrou do seu lugar na minha vida, ou do meu lugar na sua, no sei. S sei

    que, aps quase 12 anos, sorriu para mim com o corao cheio de afeto!

  • v A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Aos meus primos Valria e Omar, pelos espritos guerreiros que so, pelos amigos fiis

    que perduram para alm da famlia...

    Ao meu orientador, Marcus Tlio Caldas, pelo muito que representa para mim para alm

    de um mestre. Pelo lugar que passou a ocupar na minha vida, para alm de sala de aula.

    Marcus: voc hoje um amigo, um pai substituto e um porto seguro para uma escuta no

    compartilhar aflies, objetivos de vida e conquistas.

    Aos meus tantos e tantos amigos que me do fora para no deixar a peteca cair, nem

    na vida pessoal nem na profissional, e brincam, choram, sorriem, cantam, farram, brindam e

    comemoram minhas batalhas e sucessos. A vocs, cuja ordem dos fatores no altera o

    produto: Ricardo Jorge e Shirley Vogeley, Ana Paula e Reginaldo Chaves, Patrcia e Tony,

    Viviane Mendona, Luciana e Marcos Mendes, Lindair Arajo, Arabela Morais, Ftima

    Santos, Darlindo Ferreira, Virginia Passos, Patrcia Carvalho, Rosa Canuto, Sylvia Raquel,

    Benedito Medrado, Jorge Lyra, Mauro Amatuzzi, Alberto Brando, Rosana Pedrosa, Jorge

    Gomes, Luciano Soares, Maria ngela Cassund, Lourdinha Dias, Mnica Osrio, Ana

    Cristina Fonseca, ricka Martha Dias, ngela Neves, Antnio da Rocha Santos, Jacqueline

    Menezes, Nomia Azevedo, Ricardo Matias, Lvia Werneck, Vera Nogueira, Laura Pedrosa,

    Pe. Joo Carlos.

    Aos meus ex e atuais alunos, marcantes que so / foram nesta lida do desafio de

    ensinar-aprender, juntar-separar, crescer-escorregar, acertar-errar. Queridos filhos: vocs

    sempre sero lembrados como pilares daquilo que preciso aprender mais a cada dia.

    Ao Instituto Carl Rogers, nas pessoas de Guilherme Assuno, Isabel e Lvia Pedrosa,

    Isadora Dias, Mamede e Mariana, que fizeram e fazem renascer a ACP no Estado de

    Pernambuco.

    s instituies FACHO e FIR, pelos incentivos pessoais e financeiros para que esta tese

    tivesse seus primeiros passos e por todo apoio profissional recebido ao longo dos anos em

    que estive ensinando, pesquisando e supervisionando estgios em suas dependncias.

    Neste final de caminhada, UNIVASF, por ter sido o cho que precisei para parar, respirar e

    concluir esta tese.

    s instituies que cederam seus espaos para que a coleta de dados desta pesquisa

    fosse realizada e aos terapeutas participantes.

    Enfim, a todos aqueles que direta ou indiretamente me possibilitaram viver, sentir,

    caminhar, fazer, acontecer e estar neste mundo trabalhando, colocando minha marca e me

    constituindo como sujeito.

  • vi A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Eu vi um menino correndo

    Eu vi o tempo brincando ao redor

    do caminho daquele menino,

    Eu pus os meus ps no riacho.

    E acho que nunca os tirei.

    O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei.

    Eu vi a mulher preparando outra pessoa

    O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga.

    A vida amiga da arte

    a parte que o sol me ensinou.

    O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.

    Por isso uma fora me leva a cantar,

    Por isso essa fora estranha no ar.

    Por isso que eu canto, no posso parar.

    Por isso essa voz tamanha.

    Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista

    o tempo no pra, no entanto ele nunca envelhece.

    Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que so.

    o sol, o tempo, a estrada, o p e o cho.

    Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos.

    Estive no fundo de cada vontade encoberta,

    a coisa mais certa de todas as coisas.

    No vale um caminho sob o sol.

    o sol sobre a estrada, o sol sobre a estrada, o sol.

    Por isso uma fora me leva a cantar,

    Por isso essa fora estranha no ar.

    Por isso que eu canto, no posso parar.

    Por isso essa voz tamanha.

    (Fora Estranha, Caetano Veloso).

  • vii A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    S podemos aceitar a vida sob a condio de sermos grandes,

    de nos sentirmos no nascedouro dos fenmenos,

    ao menos de um certo nmero deles.

    Se no tivermos poder para desabrochar, se no tivermos um certo

    domnio das coisas, a vida indefensvel

    (Artaud, 1984: p. 130)

  • viii A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    RESUMO

    Melo, S.M.V. (2012) A saga de Hefesto: hermenutica colaborativa como possibilidade de

    ao humanista-fenomenolgica em clnica do trabalho. Tese de Doutorado. Laboratrio de

    Prticas Psicolgicas Clnicas em Instituies. Universidade Catlica de Pernambuco.

    Recife.

    Este trabalho teve por objetivo geral descrever uma possibilidade de ao clnica humanista-

    fenomenolgica diante de demandas de sofrimento humano no trabalho, a partir de uma

    pesquisa com psicoterapeutas em que se buscou, especificamente, compreender suas

    experincias clnicas, possibilidades de escuta e interveno, seus modelos de abordagem

    subjetividade e suas condies de trabalho; assim como identificar desafios enfrentados

    por eles, procedimentos e tcnicas utilizados; e apontar resultados alcanados. A

    metodologia utilizada foi a pesquisa fenomenolgica de tendncia hermenutica.

    Participaram do estudo 17 psicoterapeutas centrados na pessoa, incluindo a pesquisadora.

    A partir de uma pergunta disparadora, os sujeitos, subdivididos em quatro grupos de

    discusso, narraram suas experincias de atendimentos a clientes cujas demandas eram de

    sofrimento no trabalho. Os resultados apontaram, dentre outros, que embora os

    profissionais investigados apresentassem uma coerncia de atuao com os princpios que

    norteiam a Abordagem Centrada na Pessoa, no possuam arcabouo terico, conceitual e

    tcnico suficientes para compreender a relao trabalho versus modos de subjetivao a fim

    de ajudar clientes a construrem recursos sistemticos de enfrentamento do sofrimento no

    trabalho. Defendeu-se, ento, uma ao clnica embasada na fenomenologia de Merleau-

    Ponty e na hermenutica filosfica de Gadamer: a Hermenutica Colaborativa - um

    processo conjunto de interpretao e construo de alternativas, pautado na

    intersubjetividade, no confronto de tradies, e na retomada da conscincia histrica, a partir

    do qual os sujeitos envolvidos constroem novos projetos para enfrentarem e re-significarem

    o sofrimento diante da precariedade subjetiva e das adversidades enfrentadas no mundo do

    trabalho.

    Palavras-chave: Pesquisa Qualitativa, Psicologia Clnica, Psicoterapia, Sade Mental,

    Trabalho.

  • ix A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    ABSTRACT

    Melo, S.M.V. (2012) The saga of Hephaestus; collaborative hermeneutics as possibilities of

    humanistic phenomenological action in work clinics. PhD Thesis. Laboratory of Clinic

    Psychological Practices in Institutions. Catholic University of Pernambuco. Recife.

    This work has as general purpose to describe a possibility of a clinical humanistic

    phenomenological action before human suffering demands at work , starting from a

    research with psychotherapists, in which was sought to understand specifically their clinical

    experiences, listening possibilities and intervention, their approach models to subjectivity and

    their work conditions; as also identify challenges faced by them, as well procedures and

    techniques used, and to point out achieved results. The methodology used was the

    phenomenological research of hermeneutics trending. Seventeen (17) psychotherapists

    participated in the study centered in the person, including the researcher. From a triggering

    question, the subjects, subdivided into four discussion groups, narrated their visiting

    experiences to clients whose demands were suffering at work. The results, pointed out

    among others, were that although the professionals investigated showed a consistent

    performance, according to the principles that guide the Approach Centered in the Person,

    WKH\ GLGQW KDYH HQRXJK WKHRUHWical, conceptual and technical background to understand

    properly the relationship between work versus modes of subjection, in order to help clients to

    build systematic resources to face suffering at work. It was defended then, a clinical action,

    based on the phenomenology of Merleau-Ponty and in GaGDPHUV SKLORVRSKLFDO

    hermeneutics; a Collaborative Hermeneutics - a joining process of interpretation and

    alternatives constructions based on inter-subjectivity, traditions confrontations and in the

    retaking of historical awareness, from which, the subjects involved can build new projects to

    face suffering and re-mean it, before the precariousness and adversities faced in the world of

    work.

    Keywords: Qualitative Research, Clinical Psychology, Mental Health, Work

  • x A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    RESUMEN

    Melo, S.M.V. (2012) La saga de Hefestos, las posibilidades de la hermenutica colaborativa

    en la accin humanista - fenomenolgica en las clnicas do trabajo. Tesis doctoral.

    Laboratorio de Prcticas de Clnica Psicolgica en Instituciones. Universidad Catlica de

    Pernambuco. Recife.

    Este trabajo tuvo como objetivo general describir la posibilidad de una accin clnico

    humanista-fenomenolgico delante de las demandas del sufrimiento humano en el trabajo,

    desde una bsqueda con psicoterapeutas, en la que se trat de comprender concretamente

    sus experiencias clnicas, posibilidades de escucha e intervencin, y sus modelos de

    acercamiento a la subjetividad y de sus condiciones de trabajo; como tambin identificar los

    desafos que por ellos enfrentados, as como tambin los procedimientos y tcnicas de que

    se utilizan, y a punto de lograr resultados. La metodologa utilizada fue la bsqueda

    fenomenolgica de la hermenutica de tendencias. En el estudio, participaron 17

    psicoterapeutas centrados en la persona, incluyendo el investigador. Desde una pregunta

    disparadora, los sujetos, subdivididos en cuatro grupos de discusin narraron sus

    experiencias de tratamiento a los clientes cuyas demandas eran de sufriendo en el trabajo.

    Los resultados, seal entre otras cosas, que, aunque los profesionales investigados

    mostraron un rendimiento constante, de acuerdo con los principios que guan el enfoque

    centrado en la persona, no tenan antecedentes tericos, conceptuales y tcnicos de

    referencia para comprender correctamente la relacin entre trabajo versus modos de

    sometimiento, con el fin de ayudar a los clientes a integrar de una manera sistemtica los

    recursos para afrontar el sufrimiento en el trabajo. Se hay defendido entonces, una accin

    clnica, basada en la fenomenologa del Merleau-Ponty y en la hermenutica filosfica de

    Gadamer: la hermenutica colaborativa - un proceso de unin de interpretacin y

    construcciones de alternativas basadas en la intersubjetividad, enfrentamientos de

    tradiciones y en la toma de conciencia histrica, desde la que, los sujetos involucrados

    construyen nuevos proyectos para afrontar el y replantear el sufrimiento delante de la

    precariedad subjetiva y ante de las adversidades sufridas en el mundo del trabajo.

    Palabras-Llaves: Investigacin Cualitativa, Psicologa Clnica, Salud Mental, Trabajo.

  • xiii A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................................................1

    1 O MUNDO DO TRABALHO CONTEMPORNEO..............................................................7

    1.1 TRABALHO: REPERCUSSES SOBRE A VIDA HUMANA.............................................7

    1.2 CULTURA CAPITALSTICA, MODOS DE SUBJETIVAO E SOFRIMENTO NO

    TRABALHO CONTEMPORNEO............................................................................................17

    1.3 MODOS DE GESTO QUE PODEM PROMOVER SOFRIMENTO E LEVAR AO

    ADOEDIMENTO NO TRABALHO..........................................................................................23

    2 PSICOLOGIA CLNICA E A COMPREENSO DA SUBJETIVIDADE DO HOMEM QUE

    SOFRE PELO TRABALHO ...................................................................................................30

    2.1 PSICOLOGIA CLNICA E SUBJETIVIDADE: DO INTRAPSQUICO AO PSICOSSOCIAL

    PARA A COMPREENSO DO HOMEM TRABALHADOR....................................................30

    2.2 A PSICOLOGIA CLNICA E A CLNICA DO TRABALHO...............................................36

    3 ABORDAGENS EM SADE MENTAL E CLNICA DO TRABALHO...............................40

    3.1 PSICODINMICA DO TRABALHO: PIONEIRISMO, POSSIBILIDADES E LIMITES DA

    LEITURA CLNICA DO SOFRIMENTO DO TRABALHADOR................................................40

    3.2 ABORDAGEM PSICOSSOCIAL: A ORGANIZAO COMO LUGAR DE

    CONTRADIES E CONFLITOS..........................................................................................51

    3.3 CLNICA DA ATIVIDADE: EMPODERAMENTO DO PODER DE AGIR..........................58

    3.4 ERGOLOGIA: O USO E A GESTO DE SI....................................................................63

    3.5 ABORDAGEM EPIDEMIOLGICA DO SOFRIMENTO HUMANO NO TRABALHO:

    AVANOS NO BRASIL..........................................................................................................68

    4 A PSICOTERAPIA CENTRADA NA PESSOA E SUAS POSSIBILIDADES DE UMA

    LEITURA HUMANISTA DO SOFRIMENTO HUMANO NO TRABALHO .............................72

    4.1 HISTRIA E PRESSUPOSTOS BSICOS DA ABORDAGEM E DA PSICOTERAPIA

    CENTRADA NA PESSOA......................................................................................................72

    4.2 AVANOS E DISSIDNCIAS NA ACP...........................................................................80

    4.3 POR ONDE PASSA A CATEGORIA TRABALHO NAS PRODUES CIENTFICAS DA

    ACP.........................................................................................................................................84

    5 PERCURSO METODOLGICO.........................................................................................89

  • xiv A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    5.1 MAURICE MERLEAU - PONTY, A INTERSUBJETIVIDADE E A EPOCH

    INCOMPLETA. .......................................................................................................................91

    5.2 HANS-GEORG GADAMER, A TRADIO E A FUSO DE

    HORIZONTES........................................................................................................................94

    5.3 COLABORADORES.........................................................................................................97

    5.4 INSTRUMENTOS............................................................................................................99

    5.5 PROCEDIMENTOS.......................................................................................................101

    6 ANLISE DOS RESULTADOS........................................................................................104

    6.1 PROCEDIMENTOS DE ANLISE DOS DADOS...........................................................104

    6.2 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA EXPERINCIA DO GRUPO 1.............................106

    6.3 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA EXPERINCIA DO GRUPO 2.............................127

    6.4 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA EXPERINCIA DO GRUPO 3.............................140

    6.5 ELEMENTOS SIGNIFICATIVOS DA EXPERINCIA DO GRUPO 4.............................154

    6.6 ANLISE DOS SIGNIFICADOS COMUNS PARA TODOS OS GRUPOS.....................167

    7 DISCUSSO....................................................................................................................172

    7.1 PERSCRUTANDO AS NARRATIVAS DAS EXPERINCIAS A PARTIR DAS

    TEORIAS..............................................................................................................................172

    7.2 COMENTANDO A METODOLOGIA DO ESTUDO........................................................180

    7.3 PROPONDO UMA INSTRUMENTALIDADE PRTICA PARA A HERMENUTICA-

    FILOSFICA E A EPOCH INCOMPLETA: A HERMENUTICA COLABORATIVA..........183

    7.3.1 Quem j enveredou no Brasil por caminhos semelhantes...................................184

    7.3.2 O novo que se mostra como possibilidade...........................................................187

    7.3.2.1 Merleau-Ponty: os sujeitos que se abrem criao no lebenswelt..........................188

    7.3.2.2 Gadamer: o confronto de tradies no jogo entre perguntar e responder................195

    7.3.2.3 Merleau-Ponty e Gadamer: uma hermenutica colaborativa..................................205

    CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................213

    BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................216

  • xv A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1 Transtornos mentais e comportamentais (F00-F99): Benefcios acidentrios

    concedidos pelo Instituto Nacional de Seguro Social nos anos de 2006 a 2009. ................. 15

  • xvi A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Dados scio-demogrficos dos psicoterapeutas colaboradores da pesquisa......98

    Tabela 2 - Significados dos pseudnimos gregos atribudos aos psicoterapeutas................99 Tabela 3 - Distribuio dos psicoterapeutas por grupo de discusso, cidade e perodo da

    coleta..................................................................................................................102

  • 1 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    INTRODUO

    Era uma tarde de uma quarta-feira do ano de 1988, quando, tendo j concludo o curso

    de Administrao de Empresas h um ano, resolvi conversar com meu pai sobre um

    vestibular para Psicologia. Ele no gostou muito da nova escolha, mas adiantou dizendo que

    TXase ninJXm KoMe tem dXas forma}es e, depois, futuramente, voc pode juntar essas

    coisas ai, fa]endo alJo diferente

    Digamos que isto foi um tiro certeiro de um homem com viso estratgica o suficiente

    para me motivar a vencer o desafio de abandonar um programa de trainee muito bom na

    poca e enveredar pelo percurso universitrio novamente.

    Desde 2007, meu pai no est mais neste mundo, mas sempre esteve e estar na base

    de todas as minhas decises na vida. Ele tinha um problema srio nas pernas devido

    carncia de potssio pelo uso excessivo do lcool, resultado, dentre outros, do exerccio de

    uma funo pblica que, apesar de muito bem paga, o deixava ocioso durante muitos dias

    no ms.

    Vindo de uma famlia simples e humilde, meu pai trabalhou durante sua adolescncia

    como arteso de mveis de madeira ajudando meu av, um marceneiro do interior de

    Pernambuco. Aps isso, foi cabo do exrcito, vendedor de foges no interior da Paraba, e,

    enfrentando a dura realidade do desemprego j com duas filhas para criar, mesmo com

    segundo grau completo (algo difcil nos anos 1960), foi vendedor ambulante de rolete de

    cana numa praia do nosso Estado, at conseguir ser aprovado num concurso pblico para

    auditor fiscal.

    Durante muitos anos, vi esse homem fabricando, numa garagem no quintal da nossa

    casa, brinquedos para eu e meus irmos. Este era realmente seu trabalho: na arte do cortar,

    talhar, colar e formar brinquedos de madeira, aquele homem se realizava. Quem chegava

    naquela garagem o veria sempre sorrindo. Nestes momentos, costumava falar para mim e

    meus irmos da importncia dos estudos e do trabalho para sermos gente na vida. Apesar

    da doena que o tornou cambaleante, nunca deixou sua famlia passar necessidades, sendo

    um verdadeiro heri, a ponto de adotar mais duas crianas, alm dos quatro filhos biolgicos

    que teve.

  • 2 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Ao iniciar a redao desta tese, escolhi usar o nome de Hefesto no ttulo. Por que?

    sabido que os mitos ajudam a entender as relaes humanas e esto presentes da vida de

    cada ser humano, pois somos todos deuses e heris da nossa prpria histria. Portanto,

    Hefesto, para mim, representa uma homenagem a este guerreiro que foi meu pai,

    trabalhador que experienciou vrias formas de sofrimento no trabalho, ao assumir funes

    diferenciadas nos mbitos do trabalho assalariado, trabalho informal, desemprego, trabalho

    pblico e aposentadoria, sobrevivendo a tudo isso sem esmorecer. Alm disso, a saga de

    Hefesto, na minha compreenso, uma simbologia da minha caminhada como psicloga

    humanista, considerando que tive que construir minhas prprias ferramentas para atuar,

    muitas vezes criticada pela ousadia da diferena.

    Em 1995, tendo concludo o curso de graduao em Psicologia, li o livro de Paul Tillich,

    A coragem de ser (originalmente publicado em 1952), e vi nesta obra uma representao

    exata do que fui conseguindo construir j no contexto da graduao como aluna, tendo

    coragem de ser como uma parte, mas tambm ser como eu mesma.

    Assim, fao minhas as palavras de Tillich (1976: 36):

    Todo aquele que vive criadoramente em significaes, se afirma como participante nestas significaes. Afirma-se quando recebendo e transformando a realidade de modo criador. Ama-se a si prprio ao participar da vida espiritual e ao amar seu contedo. Ele o ama porque sua prpria realizao e porque ele se realiza atravs dele.

    Mesmo que cambaleante nas inovaes, ao longo do tempo como psicloga,

    psicoterapeuta, consultora, professora, supervisora e pesquisadora, eu venho tentando

    favorecer a descoberta e a autoafirmao de diversas pessoas, especialmente clientes,

    estudantes e psicoterapeutas iniciantes, acreditando que a melhor forma de trabalhar no

    a mais adequada e que responda a um parmetro especfico de atuao, mas aquela que

    construmos a partir da nossa prpria forma de andar, mesmo que a alguns parea manca e

    coxa.

    Alm disso, a saga de Hefesto tambm smbolo, para mim, da nossa misso como

    psiclogos diante de algum que nos procura buscando ajuda ao enfrentar o sofrimento

    laboral: colaborar na construo de ferramentas que o auxiliem a enfrentar a dura realidade

    do mundo do trabalho.

    Na mitologia grega, Hefesto era o deus do trabalho, do fogo, dos artesos, dos

    escultores e da metalurgia. Era muito importante nas cidades gregas onde a prtica da

  • 3 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    manufatura era intensa como, por exemplo, na cidade de Atenas. Era filho de Hera (deusa

    do nascimento e do casamento) com Zeus. 1

    De acordo com a mitologia, Hefesto nasceu feio, coxo e manco, e foi justamente sua

    deformao fsica que fez com que sua me, uma bela deusa, no o aceitando, o jogasse

    no mar, de onde ele foi salvo pela deusa dos oceanos, Ttis.

    Hefesto, apesar das deformaes, tinha uma grande capacidade de criao. Andava

    carregando vasos pintados e um basto. Aparece quase sempre trabalhando em uma

    bigorna, suado e com a barba por fazer. Foi o ferreiro divino dos deuses e construtor de

    seus palcios, armas e ferramentas. Dentre alguns apetrechos, foi ele quem construiu a

    armadura para o heri Aquiles e fez o escudo de Zeus, usado na batalha contra os tits.

    O mito de Hefesto recorda a dvida indestrutvel da aceitao incondicional que deve

    haver entre os seres humanos. Muitas pessoas so rejeitadas por no corresponderem s

    expectativas dos outros, por no lhes serem semelhantes, no terem os mesmos interesses

    nem pensarem da mesma forma. No entanto, cada pessoa pode desenvolver a capacidade

    de produzir grandes feitos com o prprio talento e acabar surpreendendo.

    Alm das questes pessoais que me fizeram escolher este mito, denomino saga de

    Hefesto, tambm, misso da psicologia humanista, abordagem que para se sedimentar

    aps seu surgimento nos anos 1950, foi bombardeada de preconceitos no mundo da

    cincia, por ser considerada romntica e sem fundamentao emprica. Humanistas como

    Carl Rogers (1902-1987), Abraham Maslow (1908-1970) e Rollo May (1909-1994)

    enfrentaram duras penas para fazerem valer suas concepes de homem, mundo e cincia.

    Especificamente Carl Ransom Rogers, um dos homens que mais lutou pela psicologia como

    cincia e profisso, foi largamente criticado nos meios cientficos e acadmicos.

    Cientista srio como era, buscou na sedimentao metodolgica o caminho para

    construir uma abordagem que, durante mais de 40 anos em que seu idealizador estava

    frente de sua propagao, foi venerada e elogiada por muitos psiclogos no mundo,

    principalmente no Brasil. No entanto, aps a morte de Rogers, diversos rumos foram

    tomados pelos seus herdeiros, e, nestes percursos, muitos destes vieram a criticar

    negativamente seus pressupostos, num movimento que resulta, hoje, em alguns casos,

    numa averso em meios acadmicos, principalmente os nordestinos, aos conceitos e

    postulados tericos da Abordagem Centrada na Pessoa. Interessante se faz lembrar que h

    cerca de pouco mais de uma dcada atrs, estes contextos veneravam o saber fazer

    proposto por Rogers.

    1 De acordo com Homero, na Ilada, Zeus era pai de Hefesto.

  • 4 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Em contrapartida, surge uma oportunidade mpar para aqueles que ainda acreditam que

    o que morreu no foi a ACP, mas o seu idealizador, e buscam novas formas de praticar e

    ampliar os fundamentos desta abordagem, abrindo novos caminhos nas academias. Dentre

    esses crdulos, estou eu que, ao longo do tempo foi aproximando, tal como previa meu pai,

    caminhos aparentemente divergentes, mas que hoje se cruzam a partir do percurso que

    caminhei para chegar at um doutorado em Psicologia Clnica. sobre este percurso que

    falo abaixo.

    O interesse em Clnica do Trabalho iniciou em 1999, ao lecionar a disciplina Psicologia

    Organizacional, na Faculdade de Cincias Humanas de Olinda (FACHO). Na poca, tendo

    recentemente concludo o Mestrado em Psicologia Clnica (1998), tive a oportunidade de

    aproximar o olhar clnico sobre as questes inerentes a trabalho com a cincia da

    Administrao, enfrentando o desafio de conciliar duas reas de atuao: Recursos

    Humanos e Psicologia Clnica.

    Os anos foram se passando e os estudos em abordagens em psicologia do trabalho

    foram sendo aprofundados, at que veio a oportunidade, em 2003, de lecionar as disciplinas

    Psicologia do Trabalho e Estgio Bsico III na Faculdade Integrada do Recife. Iniciei, ento,

    um desenvolvimento de pesquisas, a fim de preparar melhor os alunos para uma

    compreenso do sofrimento humano no trabalho.

    No entanto, vivia um impasse. Como a concepo e a prtica clnica por mim adotadas

    sempre foram respaldadas na psicologia humanista nos moldes da Abordagem Centrada na

    Pessoa, deparei-me com uma carncia de embasamento, j que nas buscas incansveis

    nas reas de Psicologia do Trabalho e Psicologia Clnica, no encontrava subsdios para

    empreender um trabalho sistemtico de escuta humanista do sofrimento humano no

    trabalho.

    E as questes de trabalho foram aportando na minha prtica como psicloga clnica.

    Inicialmente, nas salas de atendimentos do Servio de Psicologia da FIR, ao receber

    pacientes da Clnica de Fisioterapia desta instituio, que, de alguma forma, tinham

    interrompido suas atividades laborais por causa de comprometimento fsico. Depois, no

    consultrio particular, ao atender clientes com demandas de sofrimento diante das situaes

    de trabalho e no-trabalho.

    Acredito que uma das tarefas a que o psiclogo clnico se prope o cuidado para com

    aqueles indivduos acometidos de sofrimentos diversos, com a finalidade de tentar

    restabelecer a sade mental destes. Tendo em vista este princpio, apenas escutava suas

    narrativas e tentava ajudar na re-significao deste sofrimento e na transformao destes

    sujeitos em pessoas mais conscientes de si, do seu mundo, mais aptas a fazer escolhas

    construtivas e melhorar seus relacionamentos interpessoais.

  • 5 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    No entanto, sentia uma carncia nesta prtica exercida: quando se trata do sofrimento

    humano no e por causa do trabalho, como proceder? Neste sentido, esta tese justifica-se

    no s pela necessidade pessoal de aproximar duas reas de interesse ao longo da

    formao e da prtica profissional - a psicologia do trabalho e a psicoterapia centrada na

    pessoa -, mas, tambm, pela carncia epistemolgica para uma ao clnica diante de

    demandas de sofrimento no trabalho que seja coerente com o modelo de abordagem

    subjetividade da perspectiva humanista em psicologia.

    Assim, o objetivo geral que inicialmente norteou esse estudo e a anlise dos dados foi

    propor indicativos para uma sistematizao da clnica do trabalho numa perspectiva

    humanista, a partir da compreenso de experincias clnicas de psicoterapeutas centrados

    na pessoa diante de demandas de sofrimento humano no trabalho2.

    No entanto, o caminhar da tese me levou a repensar o objetivo geral, visto que parece

    deveras pretensioso sistematizar uma clnica do trabalho humanista. Neste sentido, optei

    por, sem perder de vista os objetivos especficos, descrever uma possibilidade de ao

    clnica humanista-fenomenolgica diante de demandas de sofrimento humano no trabalho.

    Para organizar os passos que fui percorrendo para desenvolver o estudo, inicialmente

    exporei, no tpico 1, uma leitura do mundo do trabalho contemporneo, tecendo

    consideraes sobre o processo de alienao do trabalhador numa cultura capitalista, cujos

    modos de subjetivao e de gesto podem levar ao sofrimento e consequente adoecimento

    dos trabalhadores. No tpico 2, tratarei da temtica da psicologia clnica, dos seus limites e

    possibilidades de compreenso da subjetividade do homem que sofre pelo trabalho,

    apresentando a clnica do trabalho como um conjunto de abordagens que tm surgido a

    partir da dcada de 1990 com o intuito de cuidar do trabalhador diante do quadro deletrio

    das situaes de trabalho contemporneas. Tais abordagens sero expostas no tpico 3,

    acrescidas da abordagem epidemiolgica que, no Brasil, apresenta considerveis produes

    e prticas em sade mental e trabalho.

    No tpico 4, apresentarei o percurso histrico da Abordagem Centrada na Pessoa,

    apontando seus desenvolvimentos terico-prticos, dissidncias, assim como limites e

    possibilidades desta corrente, quando, ao fundamentar a prtica em psicoterapia, parecer

    no oferecer subsdios a uma compreenso em sade do trabalhador, abrindo espaos para

    se pensar numa proposta psicoteraputica humanista que consiga realizar aes clnicas

    diante de demandas de sofrimento no trabalho, temtica que ser o norte de toda a

    pesquisa realizada.

    2 Os objetivos especficos sero apresentados no tpico 5 Percurso Metodolgico.

  • 6 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Aps essa viagem terica, ser o momento de apresentar, no tpico 5, o percurso

    metodolgico da pesquisa, seguido do tpico 6 - anlise dos resultados encontrados -, que

    levar em conta os elementos significativos das experincias com cada grupo de

    psicoterapeutas humanistas investigados, assim como os elementos significativos em

    comum encontrados em todos os grupos.

    No tpico 7, realizarei discusses tericas e metodolgicas que levam a apresentar uma

    proposta humanista-fenomenolgica em clnica do trabalho e delinerei, ao final,

    consideraes que me levaram a defender, aqui, a tese de que para uma ao clnica

    humanista-fenomenolgica diante de demandas de sofrimento humano no trabalho, o

    psicoterapeuta humanista deva lanar mo de uma metodologia que articule fenomenologia

    merleau-pontyana com hermenutica filosfica gadameriana, rompendo os limites de uma

    clnica pautada apenas em atitudes facilitadoras, e, sem perder de vista seu lugar na histria

    como trabalhador, deixando-se afetar por sua tradio, assumir seu papel de agente de

    mudana na busca intersubjetiva da construo, junto ao cliente, de possibilidades de

    enfrentamento do sofrimento e transformao de sua realidade de trabalho.

    Essa ao, contudo, deve ir alm de princpios filosficos, pois uma ao cientfica e

    profissional, sendo necessrio ao psiclogo o desenvolvimento de competncias para

    enveredar pela construo conjunta de ferramentas prticas que permitam ao cliente mudar

    sua realidade.

    Assim, embora respeitando os pressupostos filosficos que esto subjacentes

    hermenutica defendida por Hans-Georg Gadamer, denominei, mesmo que

    provisoriamente, a ao clnica de Hermenutica Colaborativa, j que a operacionalidade da

    hermenutica aqui apresentada mostrou-se inovadora, consistindo numa instrumentalidade

    da hermenutica filosfica gadameriana e da fenomenologia na perspectiva de Merleau-

    Ponty num contexto cientfico especfico, o da psicoterapia, respaldado numa interpretao

    coletiva sistemtica, pautada em passos cientificamente embasados.

  • 7 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    1 O MUNDO DO TRABALHO CONTEMPORNEO

    Diversas obras tm discutido a importncia e o sentido do trabalho na vida do

    ser humano (p.e., Albornoz, 2002; Codo, Sampaio & Hitomi, 1992; Dejours,

    Abdoucheli & Jayet, 1994; Dejours, 2000; Codo & Jacques, 2002; Dejours, 2003;

    Codo, 2004; Codo, 2006; Antunes, 2009). Desta feita, no convm na presente tese

    repetir estas ideias. Entretanto, neste captulo, pretende-se esboar como o

    trabalho, ao longo da histria da humanidade, vem promovendo sofrimento, a fim de

    adentrar no aspecto de como este sofrimento vivido pelo homem no contexto

    scio-cultural de relaes de poder, representativas que so de modos de gesto, e

    como os modos de gesto na contemporaneidade produzem modos de subjetivao

    que favorecem o adoecimento, levando a se pensar no sofrimento no trabalho como

    uma demanda emergente na psicologia clnica.

    1.1. TRABALHO: REPERCUSSES SOBRE A VIDA HUMANA

    Albornoz (2002) lembra que, na linguagem cotidiana, a palavra trabalho tem

    variados significados, desde dor, tortura e suor no rosto, at a transformao de

    elementos da natureza em objetos de cultura. O homem, para sobreviver e realizar-

    se, trabalha. Originada do latim tripallium, instrumento de tortura, a palavra trabalho

    lembra fardo, sofrimento e dor. No entanto, o trabalho o smbolo da liberdade

    humana, atravs do qual o homem se diferencia do animal, pela habilidade de

    transformar a natureza no s para satisfazer suas necessidades, mas para se

    realizar.

    Trabalhar mais que laborar, pois no apenas um esforo rotineiro e repetitivo

    sem liberdade e de resultado consumvel. tambm uma realizao de uma obra

    que expressa a subjetividade humana, que favorece o reconhecimento social e

    permanece alm da vida do homem (Albornoz, 2002).

  • 8 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Hannah Arendt, ao escrever A condio humana (1958/2009), j diferenciava

    ODERU GH WUDEDOKR H GH DomR /DERU p D DWLYLGDGH TXH FRUresponde ao processo

    ELROyJLFRGRFRUSRKXPDQR$FRQGLomRKXPDQDGRODERUpDSUySULDYLGDS2

    WUDEDOKR p D DWLYLGDGH FRUUHVSRQGHQWH DR DUWLILFLDOLVPR GD H[LVWrQFLD KXPDQD [...]

    produz um mundo artificial de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente

    natural [...] D FRQGLomR KXPDQD GR WUDEDOKR p D PXQGDQLGDGH Arendt, 2009:15).

    Ainda acrescenta:

    O labor assegura no apenas a sobrevivncia do

    indivduo, mas a vida da espcie. O trabalho e seu

    produto, o artefato humano, emprestam certa

    permanncia e durabilidade futilidade da vida mortal e

    ao carter efmero do tempo humano. A ao, na

    medida em que se empenha em fundar e preservar

    corpos polticos, cria a condio para a lembrana, ou

    seja, para a histria (Arendt, 2009: 16).

    A mesma autora tambm destaca que o desejo da libertao da fadiga e penas do

    trabalho sempre esteve presente na histria da humanidade. Esta faceta do trabalho foi

    glorificada na era moderna que, produzindo teorias sobre este tema, resultou na

    transformao da sociedade em sociedade operria. Acrescenta que a mundanidade,

    condio humana, constituda pela ao dos homens que marca a histria pelo trabalho.

    A presena do trabalho como categoria que permite a construo histrica do homem

    em sociedade j estava presente, no entanto, no materialismo histrico-dialtico de Karl

    Marx (1818-1883), que promoveu uma leitura das relaes sociais de produo, enfatizando

    como centro destas relaes a alienao no trabalho.

    Bernal (2010), ao descrever uma genealogia histrica sobre o trabalho, enfatiza que

    como categoria homognea, o trabalho consolidou-se por volta do sculo XVIII. Sendo um

    produto do capitalismo industrial, o trabalho na modernidade, diferentemente das

    sociedades primitivas e sem Estado e da antiguidade clssica, passa a configurar a prpria

    HVVrQFLDGDH[LVWrQFLDKXPDQDXPDIRUoDIXQGDPHQWDOFDSD]GHFULDUHDFUHVFHQWDUYDORU

    GHL[DQGR GH VHU DOJR H[HFUiYHO H HQWHGLDQWH SDUD VHU XP SLODU GD ULTXH]D GDV QDo}HV

    (p.23).

    Borges & Yamamoto (2004) realizaram um importante levantamento sobre a histria e o

    mundo do trabalho, e suas repercusses na subjetividade humana. Adotaram a concepo

    de que o trabalho uma atividade central na vida do indivduo, e que o exerccio deste fazer

    produtivo est permeado por umD LGHRORJLD FXMDV EDVHV GH SRGHU VXVWHQWDP-se na

    propriedade, na concentrao do saber fazer e das possibilidades de conceder

    UHFRPSHQVDVHSXQLomRQDVPmRVGHXPDPLQRULDS0DVHVWDFRQVWUXomRLGHROyJLFD

  • 9 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    no elimina as contradies, as insatisfaes e as reaes dos trabalhadores. Portanto, os

    autores ressaltam que a histria do capitalismo tambm a histria da resistncia dos

    trabalhadores.

    Do fordismo (anos 1910) ao toyotismo (anos 1940), caminhou-se de um foco no

    aumento da produo e do consumo de massa, no trabalho simplificado e fragmentado, sem

    muito treinamento dos trabalhadores, a um foco nas contribuies cognitivas dos

    trabalhadores, visando a competitividade das organizaes; a produo passa a ser

    vinculada demanda, o trabalho passou a ser em equipe, aproveitando o tempo mximo de

    produo, horizontalizao do processo produtivo, terceirizao, controle e gesto da

    qualidade total.

    J na dcada de 1980, os processos polticos e econmicos do neoliberalismo e da

    globalizao encontram-se instalados com a paralela deteriorao das condies dos

    empregos. Enfraquecem-se as possibilidades de distribuio de renda mais equilibrada,

    fazendo aumentar o nmero de competidores por emprego nos anos 1990 e incio do sculo

    XXI. Em muitos segmentos aumenta a demanda por qualificao, novos arranjos

    organizacionais so arquitetados em busca de estruturas mais flexveis, fazendo surgir as

    organizaes em rede. A terceirizao passa a se disseminar; trabalhadores autnomos

    como consultores aumentam em nmero considervel, os postos de trabalho se tornam

    mais fluidos e menos definidos, os indivduos so pressionados a dominarem uma ampla

    gama de tarefas e desenvolverem competncias mltiplas; novos modelos de gesto so

    construdos e cada vez mais se torna necessrio alinhar objetivos e valores organizacionais

    a objetivos e valores individuais, o que se configura numa parceria indivduo-organizao

    para se agregar valor ao negcio.

    No campo social mais amplo, o que se percebe uma sociedade cada vez mais

    individualista e narcsica. Todas essas mudanas foram fortalecendo ao longo dos tempos

    os desgastes fsico e psicolgico do trabalhador. Enquanto os gestores so cobrados a

    obterem qualidade nos produtos numa cultura que cada vez mais obedece ao lema R

    FOLHQWHWHPUD]mRHEXVFD-se atender as expectativas dos acionistas, os trabalhadores so

    compelidos a um esquema de trabalho pautado na qualidade e no conhecimento, envoltos

    em relaes perversas de trabalho, expostos ao assdio moral e s violncias no ambiente

    de trabalho.

    Neste contexto, a busca pela excelncia organizacional precisa ser alimentada pela

    participao ativa dos trabalhadores nos processos de gesto, caso contrrio a

    desmotivao dos talentosos pe em risco a competitividade organizacional. Outro srio

    problema que pode ser enfrentado a competitividade interna, j que esta pode favorecer

    um coletivo de trabalho desintegrado, o que anda na contramo da formao de times de

  • 10 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    elevado desempenho. Melhor dizendo: se a organizao no investe em seus talentos, ter

    comprometidos o processo de gesto de pessoas, as relaes interpessoais no ambiente de

    trabalho e seus produtos e servios.

    A parte disso, enquanto na era industrial o trabalho era institucionalizado em ntima

    simbiose com a vida familiar e social, hoje a dicotomia entre trabalho e famlia requer um

    profissional de comportamento humano que se lance ao desafio de conciliar estas duas

    esferas to significativas constituio subjetiva humana. As atividades de trabalho so

    consideradas como fundamentais na construo das interaes humanas, e as suas

    transformaes ao longo do sculo acarretaram diferentes modos de subjetivao e de

    constituio dos agrupamentos humanos e da sociedade como um todo. Hoje, as pessoas

    so afetadas em seus valores, auto-estima e projetos de vida.

    preciso lembrar aqui que o sujeito no busca mais apenas emprego no mercado de

    trabalho nem depende das organizaes para alavancar suas carreiras. Hoje ele no busca

    mais cultivar laos de longa durao com a organizao, pois ambos podem se decepcionar

    com os vnculos estabelecidos. Fala-se em carreira proteana (Hall, 1996) e nesta nova fase

    em que o homem auto-administra seu sucesso profissional, adaptando-se s adversidades e

    compelido a enfrentar desafios (Balassiano, Ventura & Fontes, 2004), fazendo com que o

    contrato psicolgico3 entre ele e a organizao passe por profundas transformaes, a

    comear por um trabalhador que busca mais qualidade de vida no trabalho que sucesso

    financeiro, mais satisfao e sucesso profissional que estabilidade no emprego e/ou alar

    cargos hierarquicamente superiores.

    Este homem contemporneo que invade o mercado de trabalho constitui a denominada

    gerao Y (Cecchettini, 2011): uma gerao com maior nvel de formao, mais decidida no

    que diz respeito a seus projetos de vida, mais esperanosa em virtude desta capacitao,

    impacientes; uma gerao de resultados, no de processos, filhos dos tempos ps-

    modernos.

    Ao escrever sobre alguns fenmenos envolvidos na relao contempornea que o

    homem estabelece com o trabalho, Bendassolli (2007) enfatiza que na ps-modernidade o

    elo entre trabalho e identidade enfraquecido. Para justificar seus argumentos, estabelece

    cinco narrativas pblicas (ao que ele denomina de ethos) acerca do sentido e do valor do

    trabalho na atualidade: ethos moral-disciplinar, romntico-expressivo, liberal, consumista e

    gerencialista. Acrescenta que a sobreposio destas narrativas pblicas pode levar

    emergncia de uma insegurana ontolgica no homem, caracterizada por um

    3 Denomina-se contrato psicolgico a XPFRQMXQWRGHH[SHFWDWLYDVLQGLYLGXDLVUHFtSURFDVUHODWLYDVjVREULJDo}HVRTXHRHPSUHJDGRGHYHHDRVGLUHLWRVRTXHRHPSUHJDGRUGHYH(VVHFRQFHLWREDVHLD-se na teoria social,

  • 11 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    enfraquecimento institucional e pela presso para que os indivduos ajam sem qualquer

    assistncia pessoal, estando os mesmos fadados a uma ao que dependa exclusivamente

    deles mesmos. Denomina insegurana ontolgica a

    Um fenmeno correlato ao fim das certezas metafsicas HjFULVHGDLQGLYLGXDOLGDGHPRGHUQDGDQRomRGHHXmoderna, com sua correspondente forma identitria), bem como ao enfraquecimento do trabalho como uma GLPHQVmR REMHWLYD H VHJXUD GD H[LVWrQFLD KXPDQDtendo o sujeito que viver s voltas com o risco, o abandono ou no UHFRQKHFLPHQWR GR RXWUR(Bendassolli, 2007: 27).

    Para o autor, o ethos moral-disciplinar caracterizado pelo dever de trabalhar, onde so

    realados os aspectos normativos do trabalho, o carter reprodutivo e o sentido social do

    trabalho. O trabalhador, reproduzindo valores sociais internalizados de geraes anteriores,

    deve cumprir diligentemente seu dever, obedecer regras de procedimento, respeitar a

    hierarquia organizacional. Nele os valores grupais se sobrepem aos valores individuais, o

    que promove uma separao entre prazer e trabalho. As tarefas so realizadas porque

    assim deve ser, independentemente da satisfao que elas possam promover ao homem.

    O ethos romntico-expressivo reala a natureza expressiva do trabalho: uma obra que

    o homem domina e executa com maestria. A nfase no trabalho como fim em si mesmo,

    visto como criao e promotor de prazer, pois este trabalhador-artista consome sua prpria

    obra e o reconhecimento dos outros menos importante.

    O ethos instrumental enfatiza a caracterstica do trabalho como emprego, submetido

    lgica do capital, eficincia e produtividade. Neste ethos, o trabalho depende do sucesso

    do negcio; de variveis externas do mercado; das competncias do indivduo; de

    processos, estruturas e tecnologias organizacionais. Este trabalho tem como caracterstica a

    instabilidade e a no valorizao das caractersticas subjetivas e da identidade do

    trabalhador. O que aqui est em questo o valor social do trabalho, sua capacidade

    produtiva.

    O ethos consumista caracterizado pelo trabalho como meio para obteno de

    VDWLVIDomRSHVVRDO2GHVHPSHQKRHDSURGXWLYLGDGHGHSHQGHPGDVDWLVIDomR $ UHJUDp

    PD[LPL]DU R SUD]HU HPLQLPL]DU R GHVFRQIRUWR %HQGDVVROOL 6). No conta neste

    ethos o ideal coletivo, e sim o prazer individual. A preocupao do indivduo com o nvel

    de renda e o aumento do seu poder aquisitivo para que lhe seja permitido o acesso aos

    bens de consumo. O trabalho aqui um meio de satisfao diante da possibilidade de

    consumo destes bens.

    a qual argumenta que pessoas estabelecem relacionamentos para dar e receber coisas valiosas .LGGHU Buchholtz, 2002: 562).

  • 12 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Por fim, Bendassolli (2007) descreve o ethos gerencialista, promovido, dentre outros,

    por crenas disseminadas por consultores, empreendedores, gestores de RH, gurus

    empresarias e literatura sobre gesto de pessoas. Fala-se em cultura de negcios, modelos

    hegemnicos de empresas e organizaes, culto da excelncia e da performance. O que

    est em jogo a cultura do management, do empreendedorismo, e nela se veicula o

    discurso de um sujeito dono de seu prprio nHJyFLR QmR GHSHQGHQWH GH HPSUHJRV 1R

    lugar da estabilidade, a incerteza; no lugar da carteira assinada, a empregabilidade [...] O

    conceito de emprego substitutGRSHORGHSURMHWRLEGHP 251/252). Constri-se, assim, a

    crena do Indivduo Voc S.a., expresso que o autor usa para referendar o indivduo que

    compelido a se ver como empresa, um profissional que DVVXPD integralmente o controle de

    sua prpria vida, sabendo claramente qual o tipo de trabalho que lhe d prazer, onde ele

    deseja trabalhar, com quem quer se relacionar no trabalho LEGHP . Para isso esse

    sujeito deve se autoconhecer; saber de suas aspiraes mais ntimas; identificar seus

    talentos e seus parmetros de auto-realizao; e assumir os riscos inerentes ao mercado de

    trabalho.

    Bendassolli (2007), baseando-se em Robert Laing e Antony Giddens, argumenta que a

    sobreposio e a contradio desses vrios ethos, ou narrativas do mundo do trabalho na

    atualidade:

    Pode levar parcela importante de indivduos, a um estado de insegurana ontolgica [...] Um processo social que dificulta o senso de segurana pessoal na experincia subjetiva com o trabalho [...] um tipo de falha na descrio de si mesmo, no porque algo essencial esteja sendo perdido, mas porque o indivduo no est sendo capaz de encontrar uma narrativa FRHUHQWH XP FHQWUR GH JUDYLGDGH SDUD SRGHU VHreconhecer e justificar suas aes, em particular em relao ao seu trabalho [...] Podem ento surgir estados marcados por ansiedade, depresso, medo e, no limite, bloqueio da capacidade de ao (263-266).

    A essa sobreposio de narrativas pblicas que assolam o trabalhador, pode-se

    acrescentar o processo de precarizao das condies de trabalho, que designa a excluso

    social e a explorao laboral do trabalhador, resultante das profundas transformaes

    sociais, polticas e econmicas ocorridas ao longo dos ltimos anos, que se do no contexto

    das organizaes ou fora dele. Esse processo gerou o trabalhador precrio, e como

    consequncias: a exacerbao do individualismo possessivo e o silenciamento sobre o

    prprio sofrimento; o autoritarismo empresarial revestido de novas formas de dominao e

    explorao dos trabalhadores; a persistncia de vrias formas de discriminao, dentre elas

    a violncia no trabalho e o Assdio Moral; as mudanas nas relaes sindicais e o

  • 13 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    enfraquecimento na luta coletiva contra o sofrimento no trabalho; alm da pauperizao

    frequente de uma significativa parcela de trabalhadores.

    O processo de precarizao das condies de trabalho favoreceu e vem sendo

    fortalecido pela crise da sociedade que vive do trabalho, crise caracterizada pela

    reestruturao das organizaes, downsising (achatamento das estruturas organizacionais),

    perspectiva do fim da sociedade do trabalho (ou do emprego? Codo, 2006), pela

    superqualificao de trabalhadores em alguns segmentos e sub-proletarizao da grande

    maioria. Ao falar deste processo, Antunes (2009) adverte que o mesmo gerado por outro

    processo: a destruio da concorrncia e a busca de produtividade que desemprega ou

    compromete a vida de mais de 1 bilho de pessoas no mundo, melhor identificando, um

    tero da fora humana mundial que trabalha.

    Dados recentes4 da OIT, da OMS e do INSS informam, entre outros, que: a segunda

    causa de afastamento do trabalho a doena ocupacional; as doenas relacionadas ao

    trabalho matam por ano mais de 300 mil pessoas na Europa; o trabalho mata por ano mais

    de 2.000.000 de pessoas nos pases industrializados; 270 milhes de trabalhadores

    assalariados so vtimas de acidentes de trabalho; a maior causa de acidentes e doenas

    no trabalho o stress; 160 milhes de trabalhadores contraem doenas do trabalho todos os

    anos. O Brasil tem 410 mil acidentes de trabalho por ano, que matam trs mil brasileiros,

    isso sem contabilizar os 40 milhes de brasileiros da economia informal. No mundo, os

    prejuzos viabilizam consumos da ordem de 4% da mdia do PIB mundial. No Brasil este

    consumo da ordem de 12% do PIB nacional. So gastos mais de U$ 1.400.000,00 em

    tratamento de doenas do trabalho no mundo, enquanto no Brasil os gastos so da ordem

    de R$ 32 bilhes.

    Em 2009 foram registrados 723.452 acidentes e doenas do trabalho, entre os trabalhadores assegurados da Previdncia Social. Observem que este nmero, que j alarmante, no inclui os trabalhadores autnomos (contribuintes individuais) e as empregadas domsticas. Estes eventos provocam enorme impacto social, econmico e sobre a sade pblica no Brasil. Entre esses registros contabilizou-se 17.693 doenas relacionadas ao trabalho, e parte destes acidentes e doenas tiveram como conseqncia o afastamento das atividades de 623.026 trabalhadores devido incapacidade temporria (302.648 at 15 dias e 320.378 com tempo de afastamento superior a 15 dias), 13.047 trabalhadores por incapacidade permanente, e o bito de 2.496 cidados. Para termos uma noo da importncia do tema sade e segurana ocupacional basta observar que no Brasil, em 2009, ocorreu cerca de 1 morte a cada 3,5 horas, motivada pelo risco decorrente dos fatores ambientais

    4 Consultar site www.previdencia.gov.br.

  • 14 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    do trabalho e ainda cerca de 83 acidentes e doenas do trabalho reconhecidos a cada 1 hora na jornada diria. Em 2009 observamos uma mdia de 43 trabalhadores/dia que no mais retornaram ao trabalho devido a invalidez ou morte. Se considerarmos exclusivamente o pagamento, pelo INSS, dos benefcios devido a acidentes e doenas do trabalho somado ao pagamento das aposentadorias especiais decorrentes das condies ambientais do trabalho em 2009, encontraremos um valor da ordem de R$ 14,20 bilhes/ano. Se adicionarmos despesas como o custo operacional do INSS mais as despesas na rea da sade e afins o custo - Brasil atinge valor da ordem de R$ 56,80 bilhes (Fonte: Previso MPS). A dimenso dessas cifras apresenta a premncia na adoo de polticas pblicas voltadas preveno e proteo contra os riscos relativos s atividades laborais. Muito alm dos valores pagos, a quantidade de casos, assim como a gravidade geralmente apresentada como conseqncia dos acidentes do trabalho e doenas profissionais, ratificam a necessidade emergencial de construo de polticas pblicas e implementao de aes para alterar esse cenrio. (http://www.previdencia.gov.br/conteudoDinamico.php?id=39).

    O INSS realiza mensalmente mais de 800 mil percias mdicas. Os auxlios-doena j custam mais de R$ 1 bilho por ms aos cofres pblicos. Nos Regimes Prprios de Previdncia dos Servidores, a aposentadoria por invalidez tem um peso exacerbado no total de benefcios concedidos somente no RPPS da Unio, a invalidez a causa de um quarto das aposentadorias concedidas em anos recentes (Schwarzer, 2010:7).

    Os dados do grfico 1 mais adiante so mostrados por Seligmann-Silva, Bernardo,

    Maeno & Kato (2010) em artigo recentemente publicado. Nota-se que, de acordo com todos

    esses indicadores, o trabalho atualmente no Brasil passa a ser uma questo de sade

    pblica, requerendo urgentemente que profissionais de diversas reas de saber se

    envolvam com a causa de promoo da sade e da qualidade de vida de pessoas e

    instituies.

    O certo que, diante do processo de precarizao do trabalho e, consequentemente, da

    sade, diversas lutas tm sido empreendidas na contemporaneidade pelos trabalhadores de

    variadas profisses no sentido de regulamentar e melhorar suas condies de trabalho.

    Borges e Yamamoto (2004) salientam, no entanto, que o que existe hoje so tempos de

    desordem do trabalho, caracterizados por dificuldades dos trabalhadores vislumbrarem

    perspectivas de superao da crise e pela substituio da tica da ao coletiva, presente

    em toda histria da luta dos trabalhadores, por aes individuais.

  • 15 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Grfico 1 - Transtornos mentais e comportamentais (F00 F99): benefcios acidentrios concedidos pelo Instituto Nacional de Seguro Social nos anos de 2006 a 2009.

    Fonte: Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno & Kato (2010). O mundo contemporneo do trabalho e a sade mental do trabalhador [Verso Eletrnica]. Revista Brasileira de Sade, 35 (122), pp. 187-191.

    Atenta-se, porm, que no contexto contemporneo as lutas que se travam esto mais

    focadas nas questes subjetivas que nas condies materiais de trabalho, realidade

    presente na poca da revoluo industrial, enfatizada por Karl Marx. O foco hoje caminha da

    organizao formal do trabalho para todas aquelas temticas relacionadas subjetividade

    do trabalhador: sade mental, prazer, sofrimento, carga psquica no trabalho, emancipao,

    servido e assdio moral.

    Nos ltimos anos, as inmeras transformaes do trabalho so resultantes,

    principalmente, do fenmeno da globalizao, da revoluo tecnolgica e da adoo de

    novos modelos de gesto nas organizaes. A isto, junta-se o processo de reestruturao

    produtiva, que surge como mecanismo de enfrentamento da crise de acumulao flexvel do

    capital. Antunes (2009) lembra que a transnacionalizao do capital impe ao mundo do

    trabalho contemporneo desafios tambm transnacionais, embora o trabalhador ainda se

    mantenha numa estruturao nacional, o que um limite enorme para uma ao dos

    trabalhadores.

  • 16 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    As novas tecnologias criam novos postos de trabalho. Surgem novos empregos,

    especialmente no setor de servios. O trabalho est se transformando cada dia mais em

    bem escasso, ao mesmo tempo em que est adquirindo mais valor. No entanto, as atuais

    condies de trabalho impostas pela gesto neoliberal da globalizao tornam difcil aos

    trabalhadores se sentirem valorizados de forma positiva como eram nas dcadas de

    1970/1980 (Bernal, 2010).

    Foi justamente a partir da dcada de 1980, que comearam a surgir abordagens

    tericas em psicologia que se preocupam em entender como o homem se constri

    subjetivamente e socialmente atravs do trabalho. Estudiosos e pesquisadores passaram a

    atentar para o fazer produtivo do homem atravs do trabalho, com as nuanas ticas deste

    fazer, compreendendo o trabalho humano como um processo histrico, favorecedor de

    sade e/ou de doena, dependendo do contexto social onde realizado, e da histria de

    vida do sujeito que o vivencia.

    Com o advento da globalizao, a psicologia precisa adentrar a realidade atual deste

    fazer produtivo. Questes como competitividade, qualificao profissional, adaptabilidade,

    desemprego, desigualdade social, as atuais formas de organizao de trabalho, qualidade

    de vida e doenas ocupacionais so os focos das pesquisas de hoje, pois

    o que vem sendo testemunhado uma superexplorao da fora de trabalho, atravs da reduo ou eliminao do trabalho improdutivo e da consequente extino dos postos de trabalho [...] o desemprego parece culminar em depresso, angstia, sentimentos de impotncia e de culpa, perda de autoestima, alcoolismo, tabagismo, uso de drogas em geral, suicdio, incerteza quanto ao futuro, conflitos conjugais e familiares e isolamento social (Goulart & Guimares, 2002: 28-29).

    A globalizao impe, ento, um novo tipo de organizao de trabalho atrelado

    capacidade do trabalhador em demonstrar flexibilidade e se ajustar a estes novos

    parmetros. Ele deve ter capacidade de assumir tarefas variadas e submeter-se

    permanentemente a treinamentos, capacitaes e reciclagens, para se tornar

    cotidianamente mais qualificado (Kon, 1998), pois cada vez mais o trabalho est regido pela

    lgica da eficcia (Bernal, 2010).

    Bernal (2010) defende que nas ltimas dcadas produziu-se um triplo fenmeno em

    todo mundo ocidental que converteu as estruturas das organizaes em algo obsoleto:

    elevao do nvel de instruo e formao dos trabalhadores, que torna o modelo taylorista

    de gesto absurdo e ineficaz; elevao do nvel instrucional da populao em geral, que

    resulta numa clientela cada dia mais exigente e inflexvel, tendo que as organizaes

    responderem a parmetros exorbitantes de qualidade total, mas tambm que a obriga a

    atender s exigncias de satisfao de seus colaboradores; e novos modos de gesto que

  • 17 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    submetem o trabalhador ao estresse ocupacional e ao assdio psicolgico no trabalho. O

    autor acrescenta que tanto o estresse ocupacional quanto o assdio psicolgico (mobbing)

    no trabalho, apesar de no serem fenmenos novos, foram fortemente incrementados pelas

    condies e exigncias da globalizao neoliberal.

    O tempo sem trabalho ocupa um espao cada vez mais central na vida humana. preciso, ento, reprojetar a famlia, a escola, a vida, em funo no s do trabalho, mas tambm do tempo livre, de modo que ele no degenere em dissipao e agressividade, mas se resolva em convivncia pacfica e cio criativo. preciso criar uma nova condio existencial em que estudo, trabalho, tempo livre e atividades voluntrias cada vez mais se entrelacem e se potencializem reciprocamente. Uma reprojeo similar envolve a cultura ideal, material e social. Requer por isso um ambicioso plano de reeducao e um amplo pacto social que objetive a redistribuio mais justa do trabalho, da riqueza, do saber e do poder (p.25).

    1.2 CULTURA CAPITALSTICA, MODOS DE SUBJETIVAO E SOFRIMENTO NO

    TRABALHO CONTEMPORNEO

    Como esta tese se insere no bojo da psicologia clnica, necessrio se faz relacionar

    cultura, trabalho e subjetividade, atentando para os modos de subjetivao que so

    produzidos e produzem a cultura no contexto do capital. Isto porque falar da psicologia

    clnica e de suas possibilidades de compreenso do sofrimento humano no trabalho remete

    a uma compreenso dos modos de subjetivao no trabalho, para se enfatizar como estes

    modos so comunicados na clnica pelo sujeito que busca ajuda para aliviar seu sofrimento.

    Pags (1987) alertou para o fato de a lgica capitalista separar o trabalho dos valores

    individuais e coletivos, substituindo o valor concreto do trabalho pelo valor abstrato do

    dinheiro, o qual tenta subordinar os valores do indivduo e da coletividade. Para ele, o

    territrio de trocas simblicas esfacelado e cria-se um novo territrio de trocas

    indiferenciadas, reguladas pelo dinheiro. De um campo pluridimensional no hierarquizado

    chega-se a um campo monodimensional hierarquizado, onde se afirma o primado do

    econmico. Parece, ento, haver, no contexto scio-econmico do capital, um

    esfacelamento da dimenso coletiva da subjetividade humana e, j que o fazer coletivo

    sustentaria os modos de subjetivao no trabalho, tem-se um sujeito que, grosso modo,

    necessita produzir sozinho uma dimenso que, em essncia, seria construda em grupo: a

    cultura.

  • 18 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Vale salientar aqui que se considera que no h cultura sem uma cartografia subjetiva,

    nem h subjetividade sem uma cartografia cultural que a sustente (Guattari & Rolnik, 1993).

    A cultura e a subjetividade formam uma equao que se manifesta na sociedade: o sujeito

    produto e produtor da sociedade qual pertence, tendo a capacidade de transform-la e,

    como bem frisa Laraia (2009), represent-la por meio da linguagem.

    Compreender a cultura e seu entrelaamento com a subjetividade requer uma profunda

    reflexo da realidade. Requer tambm que se pense a cultura tendo como pano de fundo

    uma cartografia, j que a mesma fluida, em constante mutao. Neste sentido, vale

    indagar: como os modos de subjetivao no trabalho contemporneo se apresentam?

    Considera-se que, para responder esta questo, preciso se conceber que a construo da

    subjetividade dialtica.

    O processo de tornar-se humano depende da cultura, ou seja, o homem tem uma

    natureza predominantemente cultural. A aquisio cultural o campo do simblico, a partir

    dela o homem adquire linguagem e, pela linguagem, o homem a transforma. Esse processo

    continuamente inacabado, existindo campos de foras de diferentes nveis envolvidos na

    construo da subjetividade. Tais campos de foras ou processos de subjetivao podem se

    expressar nos modos de sentir, pensar, agir, desejar e estar no mundo. Os campos de

    foras constituintes das subjetividades so tanto extrapessoais (sistemas econmicos, de

    mdia, tecnolgicos) como intrapessoais (sistemas de afeto, percepes, valores).

    Neste processo, a construo da subjetividade um acontecimento histrico (Ferreira,

    2004). Portanto, quando se est referindo ao contexto scio-histrico-cultural no qual vem

    se desenvolvendo o trabalho humano e para a compreenso da paisagem subjetiva do

    trabalho na contemporaneidade, parece necessrio enfatizar a relao trabalho e

    subjetividade, a fim de compreender como se pode abordar os processos de subjetivao

    dominantes, indissociveis que so da cultura que emergem.

    Segundo Jacques (2003), os estudos e pesquisas em subjetividade e trabalho buscam

    analisar o sujeito trabalhador definido a partir de suas experincias e vivncias adquiridas no

    mundo do trabalho, norteando-se por uma viso do trabalho para alm de seu carter

    tcnico e econmico. O trabalho perpassaria, portanto, a estrutura scio-econmica, a

    cultura, os valores e a subjetividade dos trabalhadores.

    A autora ainda acrescenta que nestes estudos h uma nfase nas vivncias, no

    cotidiano e nos modos de ser do sujeito e em suas experincias de si no trabalho, e no em

    diagnsticos psicopatolgicos. Observa-se, ento, uma concepo de subjetividade que no

    se restringe apenas ao que as pessoas pensam ou conhecem, se expressando, tambm,

    em hbitos e costumes.

  • 19 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Ao se considerar o pensamento desta autora, pode-se citar como exemplo Ricardo

    Antunes que escreve a obra Os sentidos do trabalho no ano de 1999 e reedita-o 10 anos

    depois, buscando acompanhar as fortes transformaes ocorridas no mundo do trabalho e

    suas consequncias para a subjetividade humana. Conclui que o trabalho, no incio do

    sculo XXI, ainda uma questo decisivamente vital para o homem e que a categoria

    WUDEDOKRVHFRQVWLWXLFRPRIRQWHRULJLQiULDSULPiULDGHUHDOL]DomRGRVHUVRFLDOSODWDIRUPD

    da atividade humana, fundamento ontolgico bsico da omnilateralidade humana5

    (Antunes, 2009: 165).

    Est-se, neste sentido, diante da concepo de um trabalho que expressa modos de

    subjetivao humana: ser, pensar, agir e sentir diante do mundo. Tais processos so

    delineados por Blanch e Cantera (2008), que consideram o trabalho como sendo a principal

    fonte de estruturao psicolgica, social e cultural da humanidade. Na contemporaneidade,

    no entanto, a ordem produtiva regida pela economia da incerteza e da insegurana, que

    promove uma realidade scio-laboral mais fluida, frgil e instvel, e, consequentemente,

    uma experincia individual e coletiva mais imprevisvel, incontrolvel e no confortvel.

    De acordo com estes autores, cada modo de produo conserva um modo prprio de

    subjetivao: sujeitao ou a-sujeitao. No modo de produo contemporneo, eles

    parecem indicar que cada trabalhador, para ser sujeito de seu trabalho, ou seja, para se

    sujeitar, est obrigado, individualmente, a administrar seus riscos e assumir as

    consequncias de suas escolhas, fadado que est ao que Bauman (2009FKDPRXGHYLGD

    OtTXLGD RQGH SURMHWRV H[SHULrQFLDV H UHODo}HV SHVVRDLV H WUDEDOKLVWDV HIrPHUDV

    passageiras, de curto prazo dominam, fazendo com que o sujeito oriente-se e mova-se num

    entorno flutuante, ambguo, inseguro e incerto. Ao mesmo tempo em que se sujeita nesta

    realidade, corre o risco de se a-sujeitar, ou seja, no apropriar-se de sua singularidade, pois

    j no pode contar com um contexto de responsabilidade social compartilhada e sim com

    fontes de individualismo de diversas ordens: filosfica, econmica, teolgica, moral,

    sociolgica e laboral.

    Bauman (2007) adverte que a passagem da modernidade slida para a lquida

    favoreceu com que as organizaes no mais consigam manter sua forma por muito tempo,

    pois se decompem e se dissolvem mais rpido. Na mesma medida, os projetos de vida dos

    indivduos no mais partem de uma estratgia coesa e consistente, nem tampouco so

    compartilhados no espao do coletivo ou podem contar com as organizaes ou com o

    Estado para tal.

    5 Omnilateralidade o termo utilizado por Karl Marx para se referir realizao/emancipao do homem atravs

    do trabalho.

  • 20 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    Os laos inter-humanos, que antes teciam uma rede de segurana digna de um amplo e contnuo investimento de tempo e esforo, e valiam o sacrifcio de interesses individuais imediatos (ou do que poderia ser visto como sendo do interesse de um indivduo), se tornam cada vez mais frgeis e reconhecidamente temporrios. A exposio dos indivduos aos caprichos dos mercados de mo-de-obra e de mercadorias inspira e promove a diviso e no a unidade. Incentiva as atitudes competitivas, ao mesmo tempo em que rebaixa a colaborao e o trabalho em equipe condio de estratagemas temporrios que precisam ser suspensos ou concludos nos momentos em que se esgotarem seus benefcios [...]. A responsabilidade em resolver os dilemas gerados por circunstncias volteis e constantemente instveis jogada sobre os ombros dos indivduos dos quais se espera que sejam free-cKoosers e suportem plenamente as consequncias de suas escolhas (Bauman, 2007: 9-10).

    Neste nterim, surgem relaes competitivas alimentadas pela cultura da competncia.

    Compreende-se que a competitividade desenfreada do mundo contemporneo do trabalho,

    permeada que est pelas relaes de poder vigentes, produz mais e mais sofrimento. Seja

    qual for a realidade trabalhista, o fenmeno do poder do mais forte, mais rico, com mais

    conhecimento, com mais regalias e favoritismos aquilo que impera.

    Isto pode caracterizar o que Mendes (2008) chama de negociao nas relaes de

    trabalho. Para ela, todos adoram o poder porque so perversos polimorfos6 e, no ambiente

    de trabalho criam relaes de rivalidade que so estimuladas, provocadas e legitimadas

    pelos modos de gesto nas organizaes. Estes jogos de poder levam ao sofrimento e

    dificultam sua transformao, restando apenas uma sada para se ter possibilidade de re-

    significar este sofrimento, obter prazer e vislumbrar sade: o reconhecimento.

    Mas o reconhecimento no tem sido evidenciado no mundo do trabalho. As

    organizaes exigem a volatilidade de competncias do sujeito, em decorrncia de um

    mercado hiperflexvel, que demanda conhecimentos hiperflexveis, mas, no entanto, no

    possuem polticas de reconhecimento que sejam percebidas pelos trabalhadores enquanto

    tais. Aliado a isto, estas exigncias organizacionais resultam num processo de excluso

    social de milhares de pessoas que, impossibilitadas de desenvolverem competncias, caem

    na malha do esquecimento e da sensao de vazio existencial por no poder se incluir neste

    mercado altamente competitivo.

    O sujeito, diante deste mercado, busca desenfreadamente desenvolver competncias,

    das quais os conhecimentos so os mais prementes, como forma de preencher o vazio

    6 O perverso polimorfo o indivduo que extrai prazer de diversas reas da sua pessoa, da sua individualidade, e

    ainda se apresenta sedento de prazer. A disposiRSHUYHUVDSROLPRUIDVHFRQVWLWXLGHGHWHUPLQDGRVQ~PHURVde instintos parciais que, independentes uns dos outros, buscam a obteno de prazer, em parte do prprio FRUSRGRLQGLYtGXRHHPSDUWHGHXPREMHWRH[WHUQR (Freud, 1916-1917/2006: 321).

  • 21 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    instaurado entre sua realidade cognitiva e um ideal de eu buscado a todo custo. Assim, a

    instncia psquica que prevalece a do ideal do eu, que controla aquilo que o sujeito

    gostaria de ser, o que, na verdade, uma produo cultural do que os outros dizem que ele

    pode ser.

    possvel se constatar, a partir disso, que o sofrimento que vivenciado pelo sujeito

    o de no atender a um perfil homogeneizado, fabricado pela cultura, robotizado. Mesmo que

    os termos cunhados se refiram a caractersticas as mais subjetivas possveis (habilidades

    de liderana, de saber trabalhar em equipe, humildade, sensibilidade, intuio e viso de

    futuro), a forma como se constroem os perfis de competncia termina por caracterizar um

    mecanismo de controle a partir de uma configurao subjetiva qual o sujeito tem que se

    submeter.

    Evidentemente que isto caracteriza o que Guattari & Rolnik (1993) chamam de modos

    GH SURGXomR FDSLWDOtVWLFRV TXH IXQFLRQDP SDUD FRQWURODU D VXEMHWLYLGDGH SHOD FXOWXUD GD

    HTXLYDOrQFLD - uma espcie de cultura de massa que alimenta a sujeio a uma

    necessidade criada, ilusria, culturalmente alimentada, pois o sujeito passa a desenvolver

    uma necessidade de fazer parte e pertencer a esta cultura.

    Essa cultura de massa produz, exatamente, indivduos normalizados, articulados uns aos outros segundo sistemas hierrquicos, sistemas de valores, sistemas de submisso no sistemas de submisso visveis e explcitos, como na etologia animal, ou nas sociedades arcaicas ou pr-capitalistas, mas sistemas de submisso muito mais dissimulados (Guattari & Rolnik, 1993: 16).

    O resultado deste processo a produo de subjetividades capitalsticas, nas quais se

    produzem indivduos assujeitados. Usando uma expresso de Debord (apud Viana, 2008),

    QHVWD VRFLHGDGH GR HVSHWiFXOR DV exresses da vez so capital intelectual, marketing

    pessoal, agregar valor ao negcio. Ao que isso leva? A um sujeito que se referenda pelos

    conhecimentos adquiridos, pela aparncia de autocontrole, pelo tanto de valor que ele

    consegue atrair para a organizao. Assim, a ordem da vez parece se caracterizar como

    uma embalagem (preferem-se a imagem, a representao e a aparncia), em detrimento do

    produto que nela est inserido (as reais caractersticas subjetivas).

    Percebe-se que em toda a histria da alienao pelo trabalho, caracterstica das

    relaes sociais de produo no sistema capitalista, o trabalhador esteve engendrado em

    processos de enfrentamento do sofrimento que o exerccio do trabalho lhe impe. Sendo o

    trabalho estruturante para a sociedade e para o indivduo, est-se diante de uma trama de

    relaes de poder onde o trabalhador busca lutar contra e superar a ideologia dominante

    para se fazer presente no mundo e construir sua histria pelo trabalho.

  • 22 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    No restam dvidas de que o mundo do trabalho caracteriza-se como um dispositivo de

    controle e regulao sobre o homem. Neste sentido, pode-se caracterizar o processo de

    subjetivao do homem pelo trabalho contemporneo constitudo por um campo de foras

    que, de um lado, conduz o sujeito a um contnuo processo de tecnologizao de seu saber,

    seu saber fazer e seu saber conviver, j que ele cobrado em suas potencialidades, o que o

    faz exaurir-se em suas foras fsicas e psquicas; de outro, a busca desenfreada pelo

    conhecimento, pela metacompetncia (termo cunhado por Mussak, 2003). A nsia de

    satisfazer as exigncias do mercado de trabalho faz com que o sujeito se lance numa luta

    ferrenha contra seus prprios limites.

    Ao tentar compreender esta dinmica na contemporaneidade, pode-se arriscar dizer

    que hoje o homem se encontra num corpo que no tem tempo nem espao para se situar. A

    plasticidade das relaes de trabalho caractersticas dos modos de subjetivao

    contemporneos permite revelar um corpo que se volatiliza, mas ao mesmo tempo se

    esfora para se firmar, para se configurar como elemento realizador da histria e formador

    de cultura. Apesar de toda dinmica de sofrimento humano no trabalho, o homem habita um

    corpo que tenta transformar este sofrimento e conduzir-se pelo mundo.

    No se pode descaracterizar todos estes processos como emergncia para a cincia da

    psicologia, compromissada com a qualidade de vida do ser humano. O sofrimento no

    trabalho, portanto, passa, nos dias atuais, a convidar psiclogos e profissionais de sade

    mental para aes preventivas e interventivas visando um futuro mais saudvel para a

    nossa sociedade. Alm disso, o trabalho , na contemporaneidade, um terreno frtil para o

    desenvolvimento de pesquisas, principalmente quando se trata da sua relao com a sade.

    Compartilha-se com os escritos de Heloani e Lancman (2004), ao lembrarem autores como

    Yves Clot e Franois Daniellou, quando afirmam:

    O incremento de pesquisas na rea de Sade e Trabalho s pode se dar a partir da congregao de esforos e da combinao de diferentes teorias e metodologias. Essa busca um desafio interdisciplinar, que requer esforos mltiplos para entender a nova realidade, propor abordagens inovadoras que possam contempl-la em sua complexidade, alm de contribuir no desenvolvimento de propostas de interveno e transformao do trabalho (Heloani & Lancman, 2004: 79).

  • 23 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    1.3 MODOS DE GESTO QUE PROMOVEM SOFRIMENTO E PODEM LEVAR AO

    ADOECIMENTO NO TRABALHO

    O sofrimento no trabalho est associado a variveis referentes subjetividade do

    homem, profisso que ele exerce e s suas condies de trabalho. Dentre as variveis

    externas das condies de trabalho, inserem-se os modos de gesto, que, como se viu ao

    longo deste tpico, nos dias atuais impem ao sujeito um intenso ritmo e uma excessiva

    responsabilizao pelos processos de trabalho.

    Estas exigncias, aliadas s cobranas por metas quantitativas extrapola o setor

    privado e invade o servio pblico (Spilki, Jacques, Scopel & Oliveira, 2009), levando os

    trabalhadores a experimentarem um processo que Linhart (2009) denomina de precariedade

    subjetiva: um sentimento de no dominar seu trabalho e de precisar permanentemente

    desenvolver esforos para se adaptar e para cumprir objetivos. um sentimento, tambm,

    de isolamento e abandono, pois o trabalhador no pode contar com a ajuda nem dos

    superiores nem dos colegas de trabalho. Tal processo altera a vida do sujeito dentro e fora

    da organizao.

    Interessante indagar, aqui: ele poder contar com quem? Lembra-se que a instncia

    coletiva do trabalho frisada por muitos autores (a exemplo de Dejours, 1982; 2004) como

    fundamental ao enfrentamento do sofrimento no trabalho. Se so esfaceladas as dimenses

    do coletivo, o que restaria ao homem trabalhador? Questo a se pensar...

    Diante disto, acredita-se que um profissional de psicologia que busca compreender a

    relao homem X trabalho no pode se abster de conhecer temticas como esta. No

    entanto, o que o mbito acadmico mostra que a formao graduada em psicologia no

    prepara o educando nem para conhecer a cincia da administrao nem para ser gestor

    (Zanelli & Bastos, 2004), o que termina comprometendo sua eficcia como profissional de

    gesto de pessoas.

    No que diz respeito especificamente s prticas em sade mental e segurana no

    trabalho no Brasil, Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno & Kato (2010) lembram que, apesar

    das polticas de gerenciamento desconsiderarem os limites fsicos e psquicos do

    trabalhador e repercutirem sobre a subjetividade deste, muitas vezes anulando-a para que a

    produo no seja prejudicada, os processos econmicos e organizacionais, assim como os

    psicossociais envolvidos nestas polticas so minimizados ou mesmo ignorados nas reas

    de medicina do trabalho, sade ocupacional e psicologia, denotando um desconhecimento

  • 24 A Saga de Hefesto

    Universidade Catlica de Pernambuco

    da necessidade de articulao destes aspectos com os processos sade-doena no

    trabalho.

    Na prtica da psicoterapia, por sua vez, a temtica modos de gesto parece estar longe

    da realidade de atuao profissional do psiclogo. No se defende, aqui, que um psiclogo

    clnico deva dominar conhecimentos da cincia da administrao, mas, se as demandas de

    sofrimento no trabalho passam a ser emergentes na psicologia clnica, de se esperar que,

    eticamente comprometido com a sade do seu cliente, este psiclogo se abra para estudar

    modos de gesto e como essas prticas promovem sofrimento e podem levar ao

    adoecimento do trabalhador.

    Neste sentido, para compreender o que sejam modos de gesto e a forma como os

    diversos modelos foram se estruturando, far-se- um breve esboo histrico de como estas

    prticas ao longo dos anos foram afetando sobremaneira a integridade fsica e psquica dos

    sujeitos trabalhadores. Para tanto, partir-se- do conceito de gesto proposto por Chanlat

    (2007: FRQMXQWR GH SUiWLFDV DGPLQLVWUDWLYDV FRORFDGDV HP H[HFXomR SHOD GLUHomR GH

    XPDHPSUHVDSDUDDWLQJLURVREMHWLYRVTXHHODWHQKDVHIL[DGR

    J nos sculos XVIII e XIX, nos contextos das Revolues Industrial e Francesa,

    decorrentes do capitalismo, os ditames da produo se impuseram ao homem atravs de

    um controle acirrado para que o resultado organizacional fosse alcanado: aumento da

    produtividade. Este contexto scio-econmico e cultural permitiu surgir propostas cientficas

    e o desenvolvimento de teorias que vislumbravam a organizao do trabalho com vistas ao

    avano econmico das organizaes e do Estado.

    Taylor, por exemplo, ao sistematizar a administrao cientfica, propunha