A Questão Da Diversidade e Da Política de Reconhecimento Das Diferenças _ Munanga _ Revista...

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 Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v. 4, n.1,  Dossiê: Relações Raciais e Diversidade Cultural  , jul. 2014. ISSN: 2237-0579 ARTIGO 34    R   e   v    i   s    t   a    d   e    C   u    l    t   u   r   a    P   o    l    í    t    i   c   a A QUESTÃO DA DIVERSIDADE E DA POLÍTICA DE RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS 1  Kabengele Munanga 2  Resumo: Este texto discute a importância do reconhecimento e respeito das diferenças na construção de uma verdadeira democracia. Aponta em consequência desse reconhecimento a implementação de políticas publicas afirmativas que visam a  promoção da igualdade de oportunidades entre os diferentes, combinada com uma educação multicultural e uma pedagogia antirracista no processo de formação da cidadania. Abstract:  This text discusses the importance of the acknowledg ement and respect to the differences in the building of a true democracy. It points the consequence of this acknowledgement and the implementation of affirmative public policies which address the promotion of social equality of opportunities between the different ones, combined with a multicultural education and antiracist pedagogy in the process of citizenship  building. Introdução A questão da diversidade e do reconhecimento das diferenças faz parte da pauta de discussão de todos os países do mundo, mesmo daqueles que antigamente se consideravam como monoculturais. As velhas migrações e o tráfico negreiro juntaram num mesmo território geográfico descendentes de povos, etnias e culturas diversas. Há cerca de meio século, os fenômenos pós-coloniais provocam novas ondas migratórias dos países pobres em desenvolvimento, principalmente africanos, em direção aos países ricos desenvolvidos da Europa e da América do Norte. Tanto as antigas migrações combinadas com o tráfico negreiro e a colonização dos territórios invadidos, quanto as novas migrações pós-coloniais combinadas com os efeitos econômicos perversos da 1  Texto original da aula inaugural proferida no Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em 24 de maio de 2013. Baseado no artigo: in.: Todos no Mesmo Barco http://diversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br/files/files/inTolerancia_ano1_vol1_n1_2010%20( 1).pdf. 2 Professor Titular aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo.  

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Artigo Munanga

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  • Crtica e Sociedade: revista de cultura poltica. v. 4, n.1,

    Dossi: Relaes Raciais e Diversidade Cultural, jul. 2014. ISSN: 2237-0579

    ARTIGO

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    A QUESTO DA DIVERSIDADE E DA POLTICA DE RECONHECIMENTO

    DAS DIFERENAS1

    Kabengele Munanga2

    Resumo: Este texto discute a importncia do reconhecimento e respeito das diferenas

    na construo de uma verdadeira democracia. Aponta em consequncia desse

    reconhecimento a implementao de polticas publicas afirmativas que visam a

    promoo da igualdade de oportunidades entre os diferentes, combinada com uma

    educao multicultural e uma pedagogia antirracista no processo de formao da

    cidadania.

    Abstract: This text discusses the importance of the acknowledgement and respect to the

    differences in the building of a true democracy. It points the consequence of this

    acknowledgement and the implementation of affirmative public policies which address

    the promotion of social equality of opportunities between the different ones, combined

    with a multicultural education and antiracist pedagogy in the process of citizenship

    building.

    Introduo

    A questo da diversidade e do reconhecimento das diferenas faz parte da pauta

    de discusso de todos os pases do mundo, mesmo daqueles que antigamente se

    consideravam como monoculturais. As velhas migraes e o trfico negreiro juntaram

    num mesmo territrio geogrfico descendentes de povos, etnias e culturas diversas. H

    cerca de meio sculo, os fenmenos ps-coloniais provocam novas ondas migratrias

    dos pases pobres em desenvolvimento, principalmente africanos, em direo aos pases

    ricos desenvolvidos da Europa e da Amrica do Norte. Tanto as antigas migraes

    combinadas com o trfico negreiro e a colonizao dos territrios invadidos, quanto as

    novas migraes ps-coloniais combinadas com os efeitos econmicos perversos da

    1 Texto original da aula inaugural proferida no Instituto de Cincias Sociais da Universidade Federal de

    Uberlndia (UFU) em 24 de maio de 2013. Baseado no artigo: in.: Todos no Mesmo Barco

    http://diversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br/files/files/inTolerancia_ano1_vol1_n1_2010%20(

    1).pdf. 2Professor Titular aposentado do Departamento de Antropologia da Universidade de So Paulo.

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    globalizao criam problemas na convivncia pacfica entre os diversos e os diferentes.

    Entre esses problemas tm-se as prticas racistas, a xenofobia e todos os tipos de

    intolerncia, notadamente religiosa. As consequncias de tudo isso so as desigualdades

    que se caracterizam como violao dos direitos humanos, principalmente o direito de

    ser ao mesmo tempo igual e diferente. Da a importncia e a urgncia, em todos os

    pases do mundo, em implementar polticas que visem ao respeito e ao reconhecimento

    da diferena, centradas na formao de uma nova cidadania atravs de uma pedagogia

    multicultural. Acredite-se que essa nova pedagogia possa contribuir para a construo

    de uma cultura de paz e para o fim das guerras entre deuses, religies e culturas.

    Teoricamente a equao parece bem simples. A liberdade de expresso, de

    movimento, de ir e voltar terica quando se trata de grupos humanos. As mercadorias,

    incluindo as armas letais, tm mais direitos de circulao apesar das barreiras

    alfandegrias e as polticas protecionistas, enquanto as polticas de imigrao de todos

    os pases regulam drasticamente essa liberdade de movimento, de ir e voltar.

    Em vez de opor igualdade e diferena, preciso combin-las para poder

    construir a democracia. nessa preocupao que se coloca a questo do

    multiculturalismo, definido como encontro de culturas, ou seja, a existncia de

    conjuntos culturais fortemente constitudos, cuja identidade, especificidade e lgica

    interna devem ser reconhecidas, mas que no so inteiramente estranhas umas s outras,

    embora diferentes entre si.

    No plano poltico, o reconhecimento da diversidade cultural conduz proteo

    das culturas minoradas. Por exemplo: as culturas indgenas da Amaznia e de outras

    partes do continente americano, que esto sendo destrudas, seja pelas invases de seus

    territrios, seja ainda pela criao das reservas onde se acelera a deteriorao das

    sociedades e dos indivduos. Nos pases da dispora africana se coloca a mesma questo

    poltica do reconhecimento da identidade dos afrodescendentes.

    O multiculturalismo no poderia reduzir-se a um pluralismo sem limites; deve

    ser definido, pelo contrrio, como a busca de uma comunicao e de uma integrao

    parcial entre os conjuntos culturais no reconhecidos na formao da cidadania. A vida

    de uma sociedade cultural organiza-se em torno de um duplo movimento de

    emancipao e comunicao. Sem o reconhecimento da diversidade das culturas, a ideia

    de recomposio do mundo arrisca-se a cair na armadilha de um novo universalismo.

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    Mas sem essa busca de recomposio, a diversidade cultural s pode levar guerra das

    culturas.

    No plano jurdico, o reconhecimento das identidades particulares no contexto

    nacional se configura como uma questo de justia social e de direitos coletivos e

    considerado como um dos aspectos das polticas de ao afirmativa.

    Na contramo da globalizao neoliberal homogeneizante que quer arrastar

    todos os povos para o mesmo fosso, corre paralelamente, em todo o mundo, o debate

    sobre a preservao da diversidade como uma das riquezas da humanidade. A questo

    fundamental que se coloca em toda parte como combinar sem conflitos a liberdade

    individual com o reconhecimento das diferenas culturais e as garantias constitucionais

    que protegem essa liberdade e essa diferena. Essa questo leva a uma reflexo

    complexa que abarca notadamente o poltico, o jurdico e a educao.

    essa questo que est no mago das polmicas maniquestas do bem e do mal

    que envolvem o debate sobre a ao afirmativa e a obrigatoriedade do multiculturalismo

    na educao brasileira. a partir dessa interminvel polmica que pretendo me colocar

    para mostrar que a defesa da diversidade e da diferena uma questo vital no processo

    de construo de uma cidadania duradoura e verdadeira, por um lado, sem, portanto,

    abrir mo da defesa de nossas semelhanas e nossa identidade humana genrica, por

    outro lado.

    O debate sobre o multiculturalismo e as aes afirmativas

    De acordo com Alain Touraine, nenhuma sociedade moderna aberta s trocas e

    s mudanas tem unidade cultural completa, as culturas so construes que se

    transformam constantemente ao interpretar experincias novas, o que torna artificial a

    busca de uma essncia ou de uma alma nacional ou, ainda, a reduo de uma cultura a

    um cdigo de condutas. Nesse sentido, a ideia de que uma sociedade deve ter uma

    unidade cultural, seja esta da razo, da religio ou tnica, no se sustenta mais

    (TOURAINE, 1997, p. 209).

    O Brasil, um pas que justamente nasceu do encontro das culturas e civilizaes,

    no pode se ausentar desse debate. O melhor caminho, a meu ver, o da dinmica da

    sociedade atravs das reivindicaes de suas comunidades e no aquele que se abre para

    uma abordagem superada da mistura racial que, por dezenas de anos, congelou o debate

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    sobre a diversidade cultural e racial no Brasil, que era vista apenas como cultura, e

    como identidade mestia.

    Como a sociedade brasileira lida na atualidade com essa complexa questo que

    envolve, ao mesmo tempo, a defesa dos direitos humanos, a justia distributiva, o

    direito de ser ao mesmo tempo igual e diferente, a construo da cidadania, da

    identidade e da conscincia nacional?

    At o ano de 2001, marcado pela organizao da 3 Conferncia Mundial da

    ONU contra o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e a Intolerncia Correlata,

    essa questo no tinha eco na grande imprensa, nos setores do governo e na populao

    em geral, salvo entre os raros estudiosos e pesquisadores que se dedicam ao tema nos

    meios acadmicos e intelectuais. Os responsveis do pas pareciam viver com

    conscincia tranquila, de acordo com o ideal do mito de democracia racial que apresenta

    o Brasil como um paraso racial, isto , um pas sem preconceito e discriminao

    raciais. Em funo desse ideal, o Brasil conviveu muito tempo sem leis protecionistas

    dos direitos humanos dos no brancos, justamente porque no eram necessrias, em

    vista da ausncia dos preconceitos e da discriminao racial. Enquanto permanecia essa

    conscincia tranquila dos dirigentes e da sociedade civil organizada, inmeras injustias

    e violaes dos direitos humanos foram cometidas contra negros e indgenas, como

    demonstrados pelas pesquisas quantitativas que o IBGE e o IPEA vm realizando nos

    ltimos dez anos.

    Depois da Conferncia de Durban, o Brasil oficial se engajou, como no se via

    antes, na busca dos caminhos para a execuo da Declarao dessa Conferncia da qual

    foi um dos pases signatrios. A declarao previa a implementao das polticas de

    ao afirmativa, inclusive as cotas, em benefcio dos negros, ndios e outras chamadas

    minorias. As polmicas e controvrsias a respeito dessas polticas so indicadores das

    realidades de uma sociedade que ainda vive entre o mito e os fatos, ou melhor, que

    confunde o mito e os fatos, ou seja, onde o mito funciona como verdadeira realidade.

    Para uma parcela significativa da sociedade, parcela infelizmente no mensurada

    por falta de estatsticas, mas com reflexo na mdia, na academia, nos setores do governo

    e at vagamente na sociedade civil organizada, a resoluo da 3 Conferncia Mundial

    da ONU no condiz com as realidades da sociedade brasileira, uma sociedade de

    mistura de sangue altamente mestiada, onde os indcios da discriminao devem ser

    buscados nas diferenas socioeconmicas e no nas diferenas raciais, pois, como

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    acreditam muitos, no h mais raas no Brasil. No somos racistas, um livro de Ali

    Kamel bastante vendido, prefaciado por uma antroploga conceituada, representaria

    essa parcela da populao.

    A segunda parcela representada por todos aqueles que acreditam na existncia

    do racismo brasileira, no entanto se dividem em dois grupos retoricamente opostos em

    relao abordagem. O primeiro grupo compreende todos aqueles acadmicos,

    miditicos, polticos e ativistas que se inscrevem na abordagem essencialista, ou seja, na

    convico de que a humanidade uma natureza ou uma essncia e como tal possui uma

    identidade especfica ou genrica que faz do ser humano um animal racional diferente

    dos demais animais. Eles afirmam que existe uma natureza comum a todos os seres

    humanos em virtude da qual eles tm os mesmos direitos, independentemente de suas

    diferenas de idade, sexo, raa, etnia, cultura, religio, etc. Trata-se de uma defesa clara

    do universalismo ou do humanismo abstrato concebido como democrtico, muito bem

    ilustrado pelo princpio constitucional perante a lei somos todos iguais. Considerando

    a categoria raa como uma fico inventada para oprimir os negros, advogam o

    abandono desse conceito e sua substituio pelos conceitos mais cmodos, como o de

    etnia, por exemplo. De fato, eles se opem ao reconhecimento pblico das diferenas

    entre brancos e no-brancos. Aqui temos um antirracismo de igualdade entre todos os

    seres humanos, que defende argumentos opostos ao antirracismo de diferena. As

    melhores polticas pblicas julgam-se capazes de resolver as mazelas e desigualdades da

    sociedade brasileira, que devem ser somente macrossociais, ou melhor, universalistas.

    Qualquer proposta de ao afirmativa vinda do Estado que introduza a diferena

    biolgica para lutar contra as desigualdades considerada, nessa abordagem, como um

    reconhecimento oficial das raas e, consequentemente, como uma racializao de um

    pas cuja caracterstica dominante a mestiagem. As propostas de reconhecimento das

    diferenas raciais implicariam, segundo eles, em mudana de paradigmas capaz de

    hipotecar a paz e o equilbrio social solidamente construdo pelo ideal de democracia

    racial brasileira. De outro modo, indagam se as polticas de reconhecimento das

    identidades raciais, em especial da identidade negra, podero ameaar a unidade ou a

    identidade nacional, por um lado, e reforar a exaltao da conscincia racial, por outro.

    Em outras palavras, que tais polticas poderiam ter um efeito bumerangue, criando

    conflitos raciais que, segundo dizem, no existem na sociedade brasileira. dentro

    dessa preocupao que as crticas vm sendo dirigidas contra as polticas de cotas,

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    consideradas como ameaa mistura racial, como estmulo e fortalecimento da crena

    em raas (FRY, 2005, p. 335-347).

    Contraponho-me a alguns aspectos dessa argumentao. Em primeiro lugar,

    todos os brancos e negros no Brasil acreditam na mistura racial como fundante da

    sociedade brasileira, geneticamente falando. A pesquisa do geneticista Sergio Danilo

    Pena mostra que todos os brasileiros, mesmo aqueles que aparentam fenotpica

    europeia, tm em porcentagens variadas marcadores genticos africanos ou amerndios,

    confirmando o princpio j conhecido da inexistncia de raas puras. No vejo como, a

    no ser recorrendo a uma imaginao criativa, a ao afirmativa possa desfazer a

    mistura racial, desafiando as leis da gentica humana e a ao voluntarista dos

    homens e das mulheres que continuaro a manter os intercursos sexuais inter-raciais. Se

    as leis e barreiras raciais contra relaes sexuais inter-raciais nos Estados Unidos e na

    frica do Sul (apartheid) no conseguiram desfazer a mistura racial, como que isso

    possa ser possvel somente no Brasil, por causa das cotas? Isso seria atribuir ao

    afirmativa um poder mgico que na realidade ela no possui.

    Em segundo lugar, sabemos todos que o contedo da raa social e poltico. Se

    para o bilogo molecular ou o geneticista humano a raa no existe, ela existe na

    cabea dos racistas e de suas vtimas. Seria muito difcil convencer Peter Botha e um

    zulu da frica do Sul que a raa negra e a raa branca no existem, pois existe um fosso

    scio-histrico que a gentica no preenche automaticamente. Os mestios dos Estados

    Unidos so definidos como negros pela lei baseada numa nica gota de sangue. Eles

    aceitaram e assumiram essa identidade racial que os une e os mobiliza politicamente em

    torno da luta comum para conquistar seus diretos civis na sociedade americana, embora

    conscientes da mistura que corre em seu sangue e tambm da negritude em razo da

    qual so discriminados.

    Consciente de que a discriminao da qual negros e mestios so vtimas apesar

    da mistura do sangue, no apenas uma questo econmica que atinge todos os

    pobres da sociedade, mas sim resultante de uma discriminao racial camuflada durante

    muitos anos. O Movimento Negro vem tentando conscientizar e mobilizar negros e

    mestios em torno da mesma identidade atravs do conceito Negro inspirado no

    Black norte-americano. Trata-se, sem dvida, de uma definio poltica embasada na

    diviso birracial ou bipolar norte-americana, e no biolgica. Esta diviso uma

    tentativa que j tem cerca de trinta anos e remonta fundao do Movimento Negro

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    Unificado, que tem uma proposta poltica clara de construir a solidariedade e a

    identidade dos excludos pelo racismo brasileira. Ela anterior discusso sobre as

    cotas ou ao afirmativa que tem apenas uma dezena de anos. Mais do que isso, ela

    correu paralelamente classificao popular cromtica baseada justamente na

    multiplicidade de tons e nuanas da pele dos brasileiros, resultante de sculos de

    miscigenao. Afirmar que a definio bipolar dos brasileiros em raas negra e branca

    nasce das polticas de ao afirmativa, ainda em debate, ignorar a histria do

    Movimento Negro Brasileiro. Pensar que o Brasil sofre presses internacionais ou

    multilaterais para impor as polticas de cotas minimizar a prpria soberania nacional e

    ignorar as reivindicaes passadas e presentes do Movimento Negro que, mesmo sem

    utilizar as palavras cota e ao afirmativa, sempre reivindicou polticas especficas que

    pudessem reduzir as desigualdades e colocar o negro no mesmo p de igualdade que o

    branco.

    O problema fundamental no est na raa, que uma classificao

    pseudocientfica rejeitada pelos prprios cientistas da rea biolgica. O n do problema

    est no racismo que hierarquiza, desumaniza e justifica a discriminao existente. H

    cerca de meio sculo, que os geneticistas e bilogos moleculares afirmaram que as raas

    puras no existem cientificamente (Cfr. Jean Hiernaux, J. Ruffie, A. Jacquard, F. Jacob,

    etc.). Chegaram at a preconizar a eliminao do conceito de raa dos dicionrios,

    enciclopdias e livros cientficos como medida de combate ao racismo. No demoraram

    a concluir que essa proposta era uma ingenuidade cientfica, dando-se conta de que a

    ideologia racista no precisava do conceito de raa para se refazer e se reproduzir. Da

    mesma maneira que o Brasil criou seu racismo com base na negao do mesmo, os

    racismos contemporneos no precisam mais do conceito de raa. A maioria dos pases

    ocidentais pratica o racismo antinegro e antirabe, sem mais recorrer aos conceitos de

    raas superiores e inferiores, servindo-se apenas dos conceitos de diferenas culturais e

    identitrias.

    As propostas de combate ao racismo no esto mais no abandono ou na

    erradicao da raa, que apenas um conceito e no uma realidade, nem no uso dos

    lxicos cmodos como os de etnia, de identidade ou de diversidade cultural, pois o

    racismo uma ideologia capaz de parasitar por todos os conceitos. Benjamin Isaac, num

    livro recente baseado numa pesquisa de aproximadamente 15 anos, sustenta a existncia

    do proto-racismo entre os antigos gregos e romanos. Porm, os antigos no usavam o

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    conceito moderno de raa. Eles usavam os conceitos de ethnos ou natio, que no so

    sinnimos de raa3. A lei da pureza de sangue vigente em Portugal e na Espanha dos

    sculos XIV-XV que deu origem ao antissemitismo, que uma modalidade do racismo,

    no precisou da raa no sentido moderno da palavra. No entanto, a lei da pureza de

    sangue na pennsula ibrica no era to diferente das leis de Nuremberg, durante o

    regime nazista.

    A sada, no meu entender, no est na erradicao da palavra raa e dos

    processos de construo da identidade racial, mas sim numa educao e numa

    socializao que enfatizem a coexistncia ou a convivncia igualitria das diferenas e

    das identidades particulares. Olhando desta tica, penso que implantar polticas de ao

    afirmativa no apenas no sistema educativo superior, mas em todos os setores da vida

    nacional onde o negro excludo, no significa destruir a identidade nacional nem a

    mistura racial, como pensam os crticos das polticas de cotas, que eles mesmos

    rotulam como cotas raciais, expresso que no brotou da boca do Movimento Negro

    brasileiro. Sem construir a sua identidade racial ou tnica, alienada no universo racista

    brasileiro, o negro no poder participar do processo de construo da democracia e da

    identidade nacional plural em p de igualdade com seus compatriotas de outras

    ascendncias.

    O segundo grupo compreende todos aqueles estudiosos, intelectuais, miditicos,

    polticos e ativistas que se colocam na abordagem nominalista ou construcionista. Eles

    entendem o racismo como uma produo do imaginrio destinado a ser considerado

    como uma realidade a partir de uma dupla viso do outro diferente, isto , do seu corpo

    mistificado e de sua cultura tambm mistificada. O outro existe antes de tudo por seu

    corpo, antes de se tornar uma realidade social. Nesse sentido, se a raa no existe

    biologicamente, histrica e socialmente ela existe, pois, no passado e no presente, ela

    produz e produziu vtimas. Apesar do racismo no ter mais fundamento cientfico, como

    no sculo XIX, e de no poder se prevalecer hoje de nenhuma legitimidade racional,

    essa realidade social da raa, que continua a passar pela geografia dos corpos das

    pessoas, no pode ser ignorada. Visto nessa tica, o reconhecimento pblico das

    diferenas raciais o melhor caminho para se pensarem as polticas pblicas que

    3 Conf.: ISAAC, Benjamin, The invention of Racism in Classical Antiquity. Princeton University Press,

    2004.

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    possam contemplar as vtimas presentes e futuras do racismo, advogam os defensores

    dessa abordagem.

    A primeira fonte de diversidade a coexistncia no interior de um dado Estado

    de diversas naes. Cada uma dessas naes corresponde a uma comunidade histrica

    ocupando um dado territrio e partilhando, nesse territrio, uma lngua e uma cultura

    distintas. Um pas que compreende mais de uma nao no um Estado-Nao, mas

    sim um estado multinacional onde as pequenas comunidades formam as minorias

    nacionais. Neste sentido, a maioria das democracias ocidentais multinacional.

    A segunda fonte de diversidade cultural se origina na imigrao e na escravido,

    quando escravizados e emigrados e os descendentes de ambos conservaram certa

    dimenso de particularidade tnico-cultural, como o caso do Brasil, de muitos pases

    da Amrica do Sul, dos Estados Unidos, que podemos considerar como pases de velhas

    imigraes. Muitos pases da Europa Ocidental se tornaram, desde os anos 60, pases de

    novas imigraes e constituem, desde ento, suas minorias tnico-culturais.

    As duas abordagens - o antirracismo de igualdade defendida pelos essencialistas,

    e o antirracismo de diferena defendido pelos nominalistas ou construcionistas - pregam

    posies maniquestas do Bem e do Mal, que de fato, refletem a prpria estrutura

    opressora do racismo, porquanto a sociedade se sente forada a escolher entre a negao

    e a afirmao da diferena a todo o momento. Apesar da coerncia dos argumentos

    defendidos, as duas abordagens so problemticas. A melhor abordagem seria aquela

    que combina a aceitao da identidade humana genrica com a aceitao da identidade

    de diferena. A cegueira para a cor uma estratgia falha para se lidar com a opresso

    racista, pois no permite a autodefinio dos oprimidos e institui os valores do grupo

    dominante e consequentemente, ignora a realidade da discriminao cotidiana. A

    estratgia que obriga a tornar as diferenas salientes, em todas as circunstncias, obriga

    a negar as semelhanas e, impem expectativas restringentes. A diferena em si se torna

    uma nova virtude capaz de criar novas armadilhas ideolgicas. Essas armadilhas esto

    no mago da crtica dirigida ao filsofo Will Kymlicka, defensor das reivindicaes

    multiculturais, por uma das grandes figuras da teoria poltica feminista, Susan Moller

    Okin. A crtica a de que aceitar sem restrio o slogan viva a diferena cultural

    poderia promover as culturas que estimulam a desigualdade entre os gneros e violam

    os direitos polticos das mulheres. O que fazer quando as reivindicaes culturais ou

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    religiosas de algumas minorias tnicas se chocam com as normas de igualdade entre

    sexos num Estado de Direito? (FASSIN et.al, 2006, p. 243-246).

    Universalismo e reconhecimento das diferenas na educao

    A questo fundamental que permanece colocada como combinar a igualdade e

    a diferena para podermos viver harmoniosamente juntos? Emprestando os argumentos

    de Alain Tourraine (op.cit., p.371), no vejo outro caminho a no ser a associao da

    democracia poltica com a diversidade cultural baseadas na liberdade do sujeito.

    Finalmente, de que temos realmente medo? Das diferenas ou das semelhanas

    escondidas atrs das diferenas? O ego e o alter esto sempre juntos, numa relao

    dialgica. No h uma sociedade multicultural possvel sem o recurso a um princpio

    universalista que permite a comunicao entre indivduos e grupos social e

    culturalmente diferentes. Mas tambm no h uma sociedade universal possvel se este

    princpio universalista comanda uma concepo de organizao social e de vida pessoal

    que leve alguns a se julgar superior aos outros. Deve-se criticar a identificao dos

    direitos do homem com certas formas de organizao social, em particular com o

    liberalismo econmico, mas tambm importante afirmar o direito liberdade e

    igualdade de todos os indivduos nos limites que no devem franquear nenhum governo,

    nenhum cdigo jurdico, e salvaguardando-se ao mesmo tempo os direitos culturais e os

    direitos polticos como a liberdade de expresso e de escolha.

    Se a questo fundamental como combinar a semelhana com a diferena para

    podermos viver harmoniosamente, sendo iguais e diferentes, por que no podemos

    tambm combinar as polticas universalistas com as polticas diferencialistas? Diante do

    abismo em matria de educao superior, entre brancos e negros, brancos e ndios, e

    levando-se em conta outros indicadores socioeconmicos provenientes dos estudos

    estatsticos do IBGE e do IPEA e os demais ndices do Desenvolvimento Humanos

    provenientes dos estudos do PNUD, as polticas de ao afirmativa se impem com

    urgncia, sem que se abra mo das polticas macrossociais.

    No conheo nenhum defensor das cotas que se oponha melhoria do ensino

    pblico. Pelo contrrio, os que criticam as cotas e as polticas diferencialistas se opem

    categoricamente a qualquer poltica de diferena por consider-las a favor da

    racializao do Brasil. As leis para a regularizao dos territrios e das terras das

  • Kabengele Munanga

    44

    Rev

    ista

    de

    Cu

    ltu

    ra P

    ol

    tica

    comunidades quilombolas, de acordo com o artigo 68 da Constituio e as leis 10639/03

    e 11645/08 que tornam obrigatrio o ensino da histria da frica, do negro no Brasil e

    dos povos indgenas; as polticas de sade para doenas especficas da populao negra

    como a anemia falciforme, etc., tudo isso considerado como racializao do Brasil e

    virou at motivo de piada.

    Os autores4 do livro Divises Perigosas vem nas leis referidas uma ameaa

    unidade nacional, enquanto os defensores das mesmas veem no multiculturalismo um

    caminho para a incluso. Sem dvida, a defesa de multiculturalismo e das identidades

    culturais particulares, em alguns pases da Europa (Espanha, Blgica, pases Blcs,

    entre outros) e no Canad, tem um contedo separatista, contrariamente ao Brasil onde a

    reivindicao da identidade negra e da indgena busca a incluso e no a separao.

    Nesse sentido, ensinar a histria do negro e dos povos indgenas na escola brasileira

    romper com a viso eurocntrica que exclui outras razes culturais formadoras do Brasil

    como povo e nao. A diversidade nossa riqueza coletiva. Ela tem uma histria que

    devemos inventariar e conhecer para enfim ensin-la s geraes presentes e futuras. No

    entanto, por questo ideolgica, a diversidade foi manipulada e transformada em

    problemas para as sociedades. Os diferentes foram classificados e hierarquizados em

    superiores e inferiores, com base nas teorias racialistas desenvolvidas na Europa entre

    os sculos XVIII e XX. Sua cultura, isto , religies, artes, filosofias, vises do mundo,

    sistemas sociais... foi, consequentemente, excluda do sistema educacional nacional cuja

    referncia ainda eurocntrica.

    Aqui est o n do problema que se pretende solucionar atravs de uma educao

    e de uma pedagogia multiculturais. Mas antes de buscar solues para um problema da

    sociedade, devemos, primeiramente descrev-lo, analis-lo para melhor compreend-lo

    a fim de explic-lo para a sociedade. Este o nosso papel principal como

    pesquisadores/as e estudiosos/as. S depois que podemos, quando interpelados pela

    sociedade, apontar alguns caminhos de mudanas e transformaes de acordo com os

    resultados de nossas pesquisas. Infelizmente, alguns deixam de cumprir devidamente

    essa funo para se transformar em ativistas polticos improvisados. Isso ns vimos

    durante o debate nacional sobre polticas afirmativas e cotas para negros e indgenas.

    Muitos assinaram as peties ou abaixo-assinados contra ou favor numa atitude

    4 FRY, Peter et ali. Divises perigosas. Polticas raciais no Brasil contemporneo. Rio de Janeiro: 2007

  • A questo da diversidade e da poltica de reconhecimento das diferenas

    45

    Crtic

    a e S

    ocie

    dad

    e

    maniquesta do bem e mal, fazendo confuso entre a Histria do Problema e o Problema

    da Histria. essa histria e seu problema que devemos conhecer antes de tomar

    qualquer posio. Muitas vezes ficamos presos nos lugares comuns dos meios de

    comunicao de massa, o que no adequado para os futuros pesquisadores, estudiosos

    e intelectuais que vocs representam.

    Referncias Bibliogrficas

    FASSIN, Didier & Fassin, Eric. De la question sociale la question raciale? Paris: La

    Dcouverte, 2006, p. 243-246.

    FRY, Peter; MAGGIE, Yvonne; CHOR MAIO, Marcos; MONTEIRO, Simone;

    VENTURA, Ricardo (orgs). Divises Perigosas: Polticas raciais no Brasil

    Contemporneo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007.

    FRY, Peter. A persistncia da raa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005, p. 335-

    347.

    ISSAC, Benjamin. The invention of Racism in Classical Antiquity. Princeton University

    Press, 2004.

    KYMLIKA,W. Dmoratie Librale et Droits des Cultures Minoritaires. In.: GAGON,F.; MC ANDREW; PAG, M. (ed.). Pluralisme, Citoyennet et Education.

    Paris: LHarmattan, Col.Ethik, 1996, Appud MESUE, S.; RENAUT, A. Alter Ego: Les paradoxes de lidentit dmocratique. Paris: Aubier, 1999.

    LACORNE, D. La crise de lididentit amricaine. Du Melting Pot ao Multiculturalisme. Paris: Fayard, 1977.

    TOURAINE, Alain. Pouvons-nous vivre ensemble? gaux et diffrents. Paris: Fayard,

    1997, p. 209.

    Recebido em Maio de 2014/ Aprovado em Junho de 2014