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Carmo Neto Tinha o coração aos pulos. Amparávamos o passado a contar anedotas. Líamos do Jornal de Angola na época a vida de uma rainha europeia. A nossa imprensa nunca pro- duziu imagens sobre os tú- mulos da Rainha Ginga e Ngola Kiluanje. Falávamos do professor de matemática de passo len- to, fala mansa, do alto do púlpito arrastava os pés. Por cada prova numa turma apenas dois a cinco estu- dantes preenchiam notas positivas. Não o alcunha- mos, uma excepção, porque seu nome já era cómico. Nunca descobrimos a razão de os serviços notariais se terem distraído tanto e dei- xaram acontecer! Enquanto o avião baloi- çava, enchíamos o espaço com sonoras gargalhadas até que o David com a costa da mão a reduzir a sono- ridade do riso alertou-nos que iríamos aterrar. E acon- teceu. Mais surpresos fi- camos a caminho do local que nos alojaria. A cidade de Benguela surpreendia- nos. Parecia não ter sido visitada pela guerra, na- quele ano de mil novecen- tos e setenta e oito. O céu azul de Benguela recordava-nos os dias de paraíso na Lagoa Bar, em Malanje, ou sentados, na es- cola preparatória Marquês de Pombal. Pelas ruas da ci- A morte do sonho Não sei quanto aos meus colegas, finalistas da primeira oitava classe do Liceu Sagrada Esperança, aos catorze anos de idade quando deixávamos Malanje, sem pagamento de propina, por conta do Ministério da Educação, pela primeira vez num avião que baloiçava, a rasgar o céu EDIÇÕES NOVEMBRO CRÓNICA 15 Domingo 3 de Maio de 2020 dade sentíamos o acolhi- mento como em casa da tia Carolina, lá do bairro Riton- do, mãe de muitos filhos, gerados pelo seu ventre e dos outros que viviam de- baixo das nuvens sem tecto. Tinha um coração do tama- nho do mundo. Naquele tempo as mães eram tutoras de muitos filhos, dos seus e dos outros. Os bandos de pássaros aguçavam nossa imaginação com a fisga nas mãos. No interior do mini autocarro com a noite a cres- cer parecíamos engaiolados, característica do tempo das madrugadas cheias de sons proibidos, por causa do re- colher obrigatório. Lençóis da cor do algodão, quartos de banho perfuma- dos, cozinha com ementa. Fomos assim recebidos. Nos- so colega João, de mínimas falas, tecia elogiosos comen- tários sobre o Instituto Nor- mal de Educação do Lobito. De repente aquilo já não era um só a falar. Todos queriam opinar. Gerava-se um clima de alegria. Os colegas de Ma- lanje apresentavam-se aos outros do Huambo, de Ben- guela, do Moxico e outras províncias. Um surto de risos ouvia-se espontaneamente no local. O director do ins- tituto cedo percebeu que os colegas já faziam saltar os olhos sobre as meninas, quando encaminhou-nos para os quartos. Dos diferentes espaços da cidade do Lobito, a pas- telaria Áurea era o nosso local de frequência, durante os primeiros meses, sen- tados logo à entrada. No início não falávamos pra ninguém. Depois que o Lau travou conhecimento com os clientes habituais da Pas- telaria Áurea conheceu a Lola Kaloputu. Ai aquela gaja(já, meu Deus!...Lobi- tanga da Kaponte, nunca mais saiu de lá.E eu jamais esqueci Benguela, João do Moxico também até um dia nos terem anunciado a morte do Briffel. Excepcional estudante, foi embora pra outro mundo. Decidimos viajar pra Luan- da como estudantes internos do São José do Cluny com o guarda chuva do Minis- tério da Educação. Nada era subtraído dos bolsos dos nossos tutores. Lá conhecemos, algum tempo depois,um garboso comissário político em Luanda. Desenhava-nos no seu discurso a glória de sermos pilotos pra blin- dar a liberdade do ensino gratuito. Suas palavras desbravavam a vida como um lençol branco esten- dido sobre a cam. E a Eva não resistiu,mesmo com carnes quase a rasgarem suas roupas, de tão gorda que era, queria ingresso, pra aviação militar. Anos passados numa ma- nhã de sábado eu e o Timoteo cruzamos o mesmo caminho diante do São José do Cluny. Falamosa malta toda. O so- brinho que lhe acompanhava admirado questionou: - Afinal aquele governa- dor também esteve aqui no vosso tempo de estudante? Confirmamos a dúvida. Quis eu também saber do paradeiro da Xica,antiga namorada do Xavier? - Desde que o chefe rou- bou-lhe a namorada anda às apalpadelas pelas ruas da cidade. Ela está gorda.Cor- re às vezes na marginal, respondeu. - E o Sousa? -Depois de concluir o curso de medicina na Europa esteve cá.Foi embora. É di- rector de uma clínica lá. Quando o tio falava, o so- brinho espiava o rosto, a tentar descobrir algum facto e perguntou se havia cum- prido serviço militar obri- gatório. Disse-lhe que sim. Insistente quis saber se via- jávamos fora do país. Eu e o Timoteo respondemos ao mesmo tempo: - Sim. Com seiscentos dólares!... O rapaz explodiu com gargalhadas. - Também sonhávamos, acrescentei-Um colega nos- so quis ser astronauta. Fa- leceu durante o treino de voo num Mig. O sonho também morre O homem se fisgou com Mig mãe também se evaporou perdida na rosa-dos-ventos MAHEZU, ngana! “Decidimos viajar para Luanda como estudantes internos do São José de Cluny com o guarda chuva do Ministério da Educação. Nada era subtraído dos bolsos dos nossos tutores”

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Carmo Neto

Tinha o coração aos pulos.Amparávamos o passado acontar anedotas. Líamos doJornal de Angola na época avida de uma rainha europeia.A nossa imprensa nunca pro-duziu imagens sobre os tú-mulos da Rainha Ginga eNgola Kiluanje.

Falávamos do professorde matemática de passo len-to, fala mansa, do alto dopúlpito arrastava os pés. Porcada prova numa turmaapenas dois a cinco estu-dantes preenchiam notaspositivas. Não o alcunha-mos, uma excepção, porqueseu nome já era cómico.Nunca descobrimos a razãode os serviços notariais seterem distraído tanto e dei-xaram acontecer!

Enquanto o avião baloi-çava, enchíamos o espaçocom sonoras gargalhadasaté que o David com a costada mão a reduzir a sono-ridade do riso alertou-nosque iríamos aterrar. E acon-teceu. Mais surpresos fi-camos a caminho do local

que nos alojaria. A cidadede Benguela surpreendia-nos. Parecia não ter sidovisitada pela guerra, na-quele ano de mil novecen-tos e setenta e oito.

O céu azul de Benguelarecordava-nos os dias deparaíso na Lagoa Bar, emMalanje, ou sentados, na es-cola preparatória Marquêsde Pombal. Pelas ruas da ci-

A morte do sonhoNão sei quanto aos meus colegas, finalistas da primeira oitava classe do Liceu Sagrada Esperança,aos catorze anos de idade quando deixávamos Malanje, sem pagamento de propina, por conta do

Ministério da Educação, pela primeira vez num avião que baloiçava, a rasgar o céu

EDIÇÕES NOVEMBRO

CRÓNICA 15Domingo3 de Maio de 2020

dade sentíamos o acolhi-mento como em casa da tiaCarolina, lá do bairro Riton-do, mãe de muitos filhos,gerados pelo seu ventre edos outros que viviam de-baixo das nuvens sem tecto.Tinha um coração do tama-nho do mundo. Naqueletempo as mães eram tutorasde muitos filhos, dos seus edos outros. Os bandos depássaros aguçavam nossaimaginação com a fisga nasmãos. No interior do miniautocarro com a noite a cres-cer parecíamos engaiolados,característica do tempo dasmadrugadas cheias de sonsproibidos, por causa do re-colher obrigatório.

Lençóis da cor do algodão,quartos de banho perfuma-dos, cozinha com ementa.Fomos assim recebidos. Nos-so colega João, de mínimasfalas, tecia elogiosos comen-tários sobre o Instituto Nor-mal de Educação do Lobito.De repente aquilo já não eraum só a falar. Todos queriamopinar. Gerava-se um climade alegria. Os colegas de Ma-lanje apresentavam-se aosoutros do Huambo, de Ben-

guela, do Moxico e outrasprovíncias. Um surto de risosouvia-se espontaneamenteno local. O director do ins-tituto cedo percebeu que oscolegas já faziam saltar osolhos sobre as meninas,quando encaminhou-nospara os quartos.

Dos diferentes espaçosda cidade do Lobito, a pas-telaria Áurea era o nossolocal de frequência, duranteos primeiros meses, sen-tados logo à entrada. Noinício não falávamos praninguém. Depois que o Lautravou conhecimento comos clientes habituais da Pas-telaria Áurea conheceu aLola Kaloputu. Ai aquelagaja(já, meu Deus!...Lobi-tanga da Kaponte, nuncamais saiu de lá.E eu jamaisesqueci Benguela, João doMoxico também até um dianos terem anunciado amorte do Briffel.

Excepcional estudante,foi embora pra outro mundo.Decidimos viajar pra Luan-da como estudantes internosdo São José do Cluny como guarda chuva do Minis-tério da Educação. Nada era

subtraído dos bolsos dosnossos tutores.

Lá conhecemos, algumtempo depois,um garbosocomissário político emLuanda. Desenhava-nosno seu discurso a glóriade sermos pilotos pra blin-dar a liberdade do ensinogratuito. Suas palavrasdesbravavam a vida comoum lençol branco esten-dido sobre a cam. E a Evanão resistiu,mesmo comcarnes quase a rasgaremsuas roupas, de tão gordaque era, queria ingresso,pra aviação militar.

Anos passados numa ma-nhã de sábado eu e o Timoteocruzamos o mesmo caminhodiante do São José do Cluny.Falamosa malta toda. O so-brinho que lhe acompanhavaadmirado questionou:

- Afinal aquele governa-dor também esteve aqui novosso tempo de estudante?

Confirmamos a dúvida.Quis eu também saber

do paradeiro da Xica,antiganamorada do Xavier?

-Desde que o chefe rou-bou-lhe a namorada andaàs apalpadelas pelas ruas

da cidade. Ela está gorda.Cor-re às vezes na marginal,respondeu.

- E o Sousa?-Depois de concluir o

curso de medicina na Europaesteve cá.Foi embora. É di-rector de uma clínica lá.

Quando o tio falava, o so-brinho espiava o rosto, atentar descobrir algum factoe perguntou se havia cum-prido serviço militar obri-gatório. Disse-lhe que sim.Insistente quis saber se via-jávamos fora do país. Eu eo Timoteo respondemos aomesmo tempo:

- Sim. Com seiscentosdólares!...

O rapaz explodiu comgargalhadas.

- Também sonhávamos,acrescentei-Um colega nos-so quis ser astronauta. Fa-leceu durante o treino devoo num Mig.

O sonho também morreO homem se fisgou com Migmãe também se evaporouperdida na rosa-dos-ventos

MAHEZU, ngana!

“Decidimos viajarpara Luanda comoestudantes internos

do São Joséde Cluny como guarda chuvado Ministério

da Educação. Nadaera subtraídodos bolsos dosnossos tutores”

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ENSAIO16 Domingo3 de Maio de 2020

Ezequiel Bernardo |*

As tensões sociais influenciamo Estado a reagir, criando, dessemodo, muitas vezes, a culturado medo nas pessoas e provo-cando mudanças drásticas nocomportamento. Porém, muitasvezes,na tentativa de proteger-se de determinadas situações,os indivíduos adoptam umapostura defensiva, em reacçãoao que a sociedade impõe. Ce-nários desse tipo instalam ins-t a b i l i d a d e n o i n d iv í d u o ,acabando por afectar o seu com-portamento emocional, influen-ciando-o a um desequilíbrio noseu estado de espírito.

Brito e Rarp (2008) abrem oresumo do seu artigo “Ambiva-lência e medo: faces dos riscosna modernidade” afirmando queuma das marcas do período mo-derno chega a ser a incerteza ea insegurança, lugares em queo medo se agrega. É notório quea sensação de medo nas socie-dades é motivada pelo percursohistórico dos países, o que in-

fluencia no surgimento de ummedo moderno que vem destruiro exercício da razão pelo homem.Essas característicasimpostaspelas sociedades contemporâ-neas motivam o surgimento deuma nova cultura.

O medo é um sentimento ge-neralizado a todo homem, nãohá quem diga não ter enfrentadoo medo em toda a sua vida, poiseste é resultado de influências,quer de factores sociais, culturaise de idade, quer de factores in-dividuais que podem ser enca-m i n h a d o s p a ra q u e s t õ e spatológicas. Por outra, os medospodem ser resultado de acçõesque o indivíduo sofre devido aimposição de determinados mo-delos sociais,nos quaisnão se re-ve j a . A cons t rução de umasociedadeé orientada através deum modelo que o Estado definee é este que os indivíduos são“obrigados” a seguir. O não cum-primento implica sanções. Essaposição do Estado pode ser vistacomo “uma relação de dominaçãodo homem sobre o homem,

apoiada na coação legítima, aqual só subsiste quando as pessoasdominadas têm que se submeterà autoridade invocada pelas quedominam, ou seja, o Estado éuma associação que pretende omonopólio do uso legítimo daviolência, e não pode ser definidode outra forma” (Weber, 1999apud Brandão, s/a, p.8).

Influência do EstadoQuero com isso dizer que o Es-tado exerce um papel de destaquena educação do indivíduo e podeter influência directa sobre algunsmedos que as sociedades con-temporâneas vivem, porque elejoga um papel preponderante naconstrução da personalidade dohomem. Em conformidade comSchoen e Vitalle (2012, p. 73) “omedo é uma reacção adaptativa,servindo a um propósito legítimoe útil: proteger os indivíduos desituações potencialmente peri-gosas, liberando um fluxo deenergia que pode ser empregadoem qualquer acção que se façanecessária, buscando estratégias

para enfrentar o perigo.” Cor-roborando com Shoen e Vitalle(2012), muitas vezes as acçõesdesenvolvidas, quer pelo Estadoquer pela família, obstruem acapacidade do indivíduo e re-primem o seu desenvolvimentopsicológico. Porém, os medosnas sociedades contemporâneassão costumeiros, colocam emquestão o quotidiano que as cir-cunda, motivando instabilidadenas relações sociais. Assim sen-do, “o medo, quando exageradoou no momento errado, é ruime paralisante, nos torna apavo-rados e covardes” (BOOG, s/a,p. 1). O autor reforça ainda que“o medo não deve ser derrotado,mas sim equilibrado com a co-ragem, para tirar sempre o me-lhor de cada situação.”

Sobre o mesmo assunto, de-terminados teóricos são apolo-gistas de que não se pode termedo dos medos sociais, isto é,o indivíduo precisa (des)perso-nalizar o medo de modo a tor-nar-se herói pelos seus feitos.Só para ilustrar, um dos medos

sociais que considero crónico éa impossibilidade que as escolastêm de permitir uma construçãoreflexiva e discursiva crítica doconhecimento, isto é, as provasdas escolas de vários níveis aca-démicos trazem sempre questõesobjectivas. Outro medo que po-demos destacar tem a ver coma impossibilidade do aluno cons-truir uma dissertação aceitável,pois a forma como as provas sãoelaboradas nas diversas escolasdos diferentes níveisfaz com queo indivíduo esteja muito limitado,como se estivesse dentro de umacaixa.Estando fora dela, ele nãoresiste. A nosso ver, esse tipode modelo escolar influencia nosilenciamento das capacidadescognitivas e reflexivas.

Medos no seio familiarUma outra ilustração do quantoas definições de política de umEstado podem ser vistas comopromotora dos medos é a questãodo assimilacionismo, que visouestratificar classes e segregaroutras. Já os medos no seio fa-

CAUSAS DO AUTO-SILENCIAMENTO

O medo nas sociedadescontemporâneas

Abordar as sociedades contemporâneas e a covardia do medo é como depararmo-nos com um território vasto, cujas esferas abrangem o mundo e sua amplitude existencial, lugar em que os conflitos provocados pelas mudanças sociais,políticas, culturais e ideológicas imperam. Tais mudanças, que afectam as estruturas sociais acabam por atingir o homem,

a sua forma de ser, estar e fazerDR

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ENSAIO 17Domingo3 de Maio de 2020

Diversas situações vivenciadas de for-ma sucessiva, motivadas por questõespolíticas, culturais, históricas e sociais,podem cultivar o medo numa deter-minada sociedade. As sociedades nãoficam estagnadas, elas vão sofrendomudanças em função das dinâmicasque se impõem, e os medos tambémse vão modernizandoa cada momento.A violência extrema, o excessodemortes, os desaparecimentos mis-teriosos, as rupturas nas relaçõesentre os indivíduos, isto é, as relaçõesEstado-cidadão, adultos-jovens, pro-fessor-aluno, entre outras, são cenáriosfrequentes em quese acaba por fragilizaro indivíduo e legitimar o medo, rom-pendo o paradigma de que o medoviria a ser provocado por questõesemocionais mediante uma situaçãode perigo; mas, sim,queé sustentadoe reforçado por questões relativas àestrutura social, económica e política,que motivam o excesso de zelo do in-divíduo, que acaba por silenciar-se(MACHADO, 2004).

O sentimento do medo influenciao indivíduo a reformular mecanismosde intervenção e a forma de organizaçãosocial onde os discursos e práticas le-gitimadas pelo Estado sejam (re)visi-tadas, permitindo o gozo da liberdadedo indivíduo face ao olhar totalitaristadas políticas definidas. Torna-se ne-cessária a construção e a definição depolíticas públicas que corroboremcom um sistema de inclusão e de plu-ralismo de ideias. As sociedades con-

temporâneas devem adoptar um mo-delo de ordem social que permita aconstrução de pluralidades de ideias,possibilitando a fluidez no exercícioda cidadania, o que, de certa forma,contribuiria para um processo de li-bertação onde a exclusão dos medossociais seria uma realidade. De acordocom Brito e Barp (2008, p. 45), teóricoscomo Beck, Giddens, Mattei e Bauman,com destaque para Habermas, sus-tentam que não se pode fugir da in-certeza, do perigo e de uma atmosferade medo; torna-se necessária a acei-tação de uma cultura política que per-mi ta enquadra r l i v remente osintegrantes de uma sociedade numoutro cenário social. Todavia, a socie-dade contemporânea deve abster-seda barbárie como um elemento chavedo seu momento, devendo deixar omedo da vida e da morte, da denúnciae da tortura, da censura, do que pen-samos e fazemos, do esquecimento,do sonho, do conhecimento, da cir-cuncisão do espírito, dos medrososnutridos de medos, dos medos delese nossos também (Chauí, 1987).

Para terminar este ensaio, passo atranscrever o extracto da música deLaton, com o título “Bajú ou Revú”:“(…) se eu elogiar vão dizer bajú, seeu criticar vão dizer revú, fico comoentão, fico como então, calado commedo sem opinião, nananana eu nãosou bajú, nananana eu não sou revúmas fico como então, calado com medosem opinião […].”

O indivíduo fragilizado pelo medo

miliar são motivados pelafalta de diálogo e de con-vívios mais abertos quecapacitem o indivíduo ainteragir com outrem. Porexemplo, nos inúmeroscasos de violações se-xuais, muitas vezes, asvítimas, geralmente me-nores, mantêm-se cala-dasdevido a falta de umaabertura comunicativa en-tre pais e filhos. Esse blo-queio instaura a culturado medo e, consequente-mente, dá asas a um si-lenciamento crónico emortífero do indivíduo.

Nessa perspectiva, Ta-vares e Barbosa (2014) rea-firmam que é a partir daaltura em que se percebeque o medo não se restringeaos fenómenos da natureza,que se compreendehaverum problema de cultura domedo, que atravessa asquestões políticas e sociais.

Com os cenários descri-tos, e de forma a compreen-dermos como se desenrolao medo nas sociedades con-temporâneas,levantamosasquestões que se seguem:(i) em que circunstânciasassumimos o medo?; (ii)em que medida o medo ditaos nossos actos?; (iii) porque razão a abordagem domedo e suas implicânciasnas sociedades contempo-râneas ainda tem sido umtabu?; (iv) quais são os maio-res sustentadores dos medosnas nossas sociedades e quaissão os mecanismos para oscontrapôr?; (v) será que omedo tem relaçõesintrín-secas com a covardia?

Osquestionamentos le-vantados não estão rela-

cionados com patologiase/ou fobias, mas com osmedos que chegam a levar-nos ao fracasso, ao insucessonas nossas realizações pes-soais, quando nos inibimosde os enfrentar, quando er-guemos os nossos rostos eos mascaramos. Pois, namedida em que o medosubsiste em nós, motivainúmeros problemas: de-pender do que é orientado,incapacidade de resolveros problemas com que nosdeparamos, dificuldade emassumir os nossos proble-mas, quer académicos, querfamiliares, quer sociais.

De acordo com Valêncio(2010 apud Tavares e Bar-bosa, 2014, p. 21) “medo edesesperança são algumasdas expressões subjetivasda vulnerabilidade de de-terminados sujeitos. De-correm, amiúde, da vivênciacotidiana de interações so-ciais verticalizadas que in-sinuam, frequentemente,a legitimidade de práticassociopolíticas supressorase opressoras de modos depensamento, hábitos, pre-ferências, lugares, vozes eidentidades que não estejamem conformidadecom aquiloque é convencionado, porpoucos, como sendo ‘ade-quado’, ‘de bom gosto’ e‘belo’. Significa dizer, nesseaspecto, que são estadosemocionais susceptíveis deserem flagrados em um sis-tema concreto e especiali-zado de trocas desiguais,cuja lógica organizativa nãoaceita refutação.”

* Linguista, ProfessorUniversitário

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ESPECTÁCULO18 Domingo3 de Maio de 2020

Pela terceira vez, o Showdo Mês não aconteceu noRoyal Plaza e a Brasom nãoserviu apenas para sala deensaios (campo de treinos),acolhendo, pela primeiravez, um “jogo oficial”, deacordo com a linguagemfutebolística.A actuação foiem campo à porta fecha-da,mas com o acompanha-men to do s s how i s t a s(família Show do Mês) e

uma audiência maior nasplataformas digitais You-tube, Instagram e Facebook.

Voltando à analogia como futebol, por acaso a pai-xão de muitos artistas, nes-t e c o n c e i t o mu s i c a ladaptado, o conjunto, oumelhor, a equipa,entrouem “campo” com um mistode consagrados e jovensque estão a despontar. Dosmais novos, Alexandre es-

PROJECTO MIGRA PARA A INTERNET

Show do Mês na versão Estado de Emergência

Em período de confinamento e isolamento social, a Nova Energia surgiu com mais uma edição do Show do Mês, destafeita dedicada à música produzida na década de 1970. O concerto, realizado sem plateia mas transmitido em directo

pela internet, ainda pode ser apreciado no Youtube

TUCUNARÉ

teve nos bongós, instru-mento que perdeu o seuúltimo grande executanteno ano passado, com amorte de Chico Montene-gro. Benny nos teclados,Yark Spin na viola-ritmoe a Raquel nos coros e nadikanza.Dos consagrados,Mias Galhetas segurou obaixo, enquanto João Di-loba esteve na bateria e Xi-co Santos nas tumbas, nesta

selecção de instrumentistasonde Teddy Nsingui foi ocapitão, numa tarde emque, mais umavez, Legalizee Mister Kim foram os es-colhidos para interpretaros sucessos dos anos 70.

Sem os habituais abraçose apertos de mão da equipade produção da Nova Ener-gia, o álcool-gel, luvas emáscaras preencheram ocenário na mesa onde Ki-

zua Gourgel, como mode-rador, Maneco Vieira Dias,Dikambú e Jair Rangel de-ram corpo ao concerto.Estafoi a quinta edição do con-certo temático “Angola70’s”, onde são revisitadostemas da chamada épocade ouro da música nacional.Nota de realce foi a ausên-cia dos veteranosJoãozinhoMorgado, Botto Trindade,Zeca Tirilene, Raúl Tollin-

gas, Didi da Mãe Preta eoutros sexagenários quefazem parte do grupo derisco da covid-19 e têm assuas impressões digitaisem muitos dos temas dadécada de 1970. Quem es-teve presente, e satisfeitopor voltar a fazer o quemais gosta, foi Carlos Cres-po, um dos mais experien-tes técnicos de som damúsica angolana.

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ESPECTÁCULO 19Domingo3 de Maio de 2020

Farrando nos KubikosNuma pequenabusca na pá-gina do facebook do Show doMês foi visível que a trans-missão on-line transformou-se numa autêntica farra emalgumas casas, quer em ter-ritório nacional como nas“estranjas”. Mais cedo doque as habituais21 horas,Teddy Nsingui fez, como noantigamente, a abertura dobaile com um tema instru-mental, omelódico “Pôr-do-Sol”, da autoria de Zé Kenoe Zé do Pau. Kizua Gourgel,em substituição de Salú Gon-çalves,deu as boas-vindas ecantou “Mundenge Uami“.Os artistas individuais Le-galize e Mister Kim conse-guiram cativar os internautascom os temas escolhidos.

Aparecendo em palco emvários momentos, MisterKim foi o primeiro a cantare o amor esteve presenteem “Candinha” e “Belita”.Noutro momento, a plateiavirtual pôde escutar “So-fredora” e “Choffer de Pra-ça”, tema este em que LuísVisconde faz uma bela cró-nica social dos estragos dachuva nos musseques luan-denses. Mister Kim, comosempre, foi simples a cantar,sem espalhafatos. Com Le-galize ele fez parelha em“Tia Sessa” e “Mabele”.

O homem que se es-treoucom um disco deReggae, onde “Rumba Ne-gro”, original de Urbanode Castro, ganhou novaversão, denominada“Reg-gae Negro”,estamos a falarde Legalize, na sua primeirapassagem em palco optoupor temas de David Zé. Su-cessos como“Rumba Za-tuk ina ” , “Kalumba” e“Namorado do Conjunto”fo-ram interpretadosnuma se-quência logo seguida por

“Belina”, de Artur Adriano,que suscitou alguma melan-colia num momento em queainda se chora a morte doguitarrista Ângelo Quental,que eternizou o solo destetema. O Rastaman do Sembaainda aqueceu o concertocom “Mukongo”, “Mariana”,“Bartolomeu”, “Mira Mira”,“Semba Avô”, e outros temas.

Os integrantes do con-junto não se ficaram pelaexecução dos instrumentos.Teddy Nsingui “pulou” o rioZaire e mostrou o seu po-tencial como cantor em “Ju-ju” e “Coco”, de Tabú LeyRoucheraux e do TP OK Jazzde Luambo Makiadi “Fran-có”, clássicos da Rumbacongolesa, muitopresentesno imaginário angolano. Xi-co Santos, um dos mais cria-tivos tamboristas angolanos,foi à lavra da família e can-tou“Kikola” e outros temasde Tony do Fumo, seu tio,e ainda teve tempo para in-terpretar “Ngongo”.É bomlembrar que Xico Santos foium dos principais vocalistasda Banda Maravilha.

Os instrumentaistiveramgrande incidência nos temasde Zé Keno, quer quando nosJovens do Prenda como nosMerengues: “Pôr-do-Sol”,“Farra na Madrugada”, “Rufoda Liberdade” e “Merengue5 de Julho”(vulgo “Camarada,pato-fora”),foram executadospor Teddy Nsingui. Ao gui-tarrista Yark Spin coube re-petir a proeza em “Ngola” deMarito dos Kiezos e “PlenaJato” de Constantino.

A viagem musical teveainda as contribuições deKizua Gourgel, quenão fezapenas perguntas massoltou“Ula Upé” e de Tonito For-tunato deu um toqueem“Mo-nangambé”. Quanto aos

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convidados, Maneco VieiraDias falou da sua experiênciacomo entusiasta e seguidordo movimento cultural. JairRangel,o mais novo do painel,recordou o seu Marçal e, emespecial, o percurso artísticodo seu tio, o declamador Giza,um grande animador das far-ras do antigamente. BernardoAntónio Dikambu, o realiza-dor do “Poeira no Quintal”da Rádio Nacional, programaque muito aposta neste pe-ríodo (décadas de 1960/1970)da música angolana, tambémcontou histórias, como o factodos cachets de um artistabem-sucedido permitiremcomprar uma casa de madeiraou motorizadas. Recordou otempo do Duo Marissol, com“Kibela“, uma canção de in-tervenção, numa época emque era conhecido por Luisitoe tinha como parceiros Pasitoe Ramos Filipe.

Depois do alinhamentomusical onde temas de DavidZé, Urbano de Castro, ArturAdriano, Os Jovens do Prenda,Luís Visconde, Artur Nunes,Águias Reais e Paulo 9 agi-taram as salas caseiras de es-pectáculo, o fecho foi umarapsódia com os temas maisacelerados dos Kiezos, ondepontificaram sucessos como“Milhoró”, “Comboio”, “RosaRosé” e “Princesa Rita”, comMister Kim no comando.

Depois deste concerto rea-lizadona Brasom, IlídioBrás,responsável do espaço, e YuriSimão, da Nova Energia, nãodescartaram a possibilidadede repetir a experiência.Masainda é cedo para os devidose necessários esclarecimentos.Importa salientar que há seisanos que o Show do Mêstransmite os seus concertoson-line e os temdisponíveisno Youtube.

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REPORTAGEM20 Domingo3 de Maio de 2020

António Capitão | Cuango

A equipa de reportagem doJornal de Angoladecidiu en-veredar por uma viagem paraa comuna do Cuango, a sededo Reino dos Bayakas, deque fazem parte populações-dos municípios do Kimbele,província do Uíge, em An-gola, e da comuna de Ka-songo-Lunda, município doBandundu, província doBaixo Congo, na RDC. Dototal de 401quilómetros,apenas 259 são feitos emestrada asfaltada. Com mui-tas ravinas.Orestante per-curso é constituído porpicadas e rastos de animais,em pleno matagal.Depois de chegarmos à

vila do Kimbele,restava-nosaindapercorrer todo um per-curso que exige muita co-ragem a t é a v i l a d oCuango.Partimos da rege-doria de Kibocolo numaquarta-feira, quando eram6horas e 30 minutos. Apenasàs 10 horas de segunda-fei-rachegámos à sede comunaldo Cuango.

A ponte de paus sobre orio Zaza, o de maior caudale extensão no percurso, de-sabou em 2017, por não su-portar o excesso de lotaçãode um camião.Daí que ascrianças de três e quatroanos das aldeias,num raiode cerca de 40 quilómetros,não sabem o que é uma via-tura.Arepentina presençade várias viaturas,que en-frentaram e superaram obs-táculos melindrosos, pareciaa essas crianças um verda-deiro sonho.Na aldeia Kixiri, várias

crianças assustaram-se como roncar dos motores e per-guntavam aos adultos seeram aqueles os carros deque sempre ouviram falarnas conversas dos pais e dosirmãos maisvelhos.“Pensava que nunca mais

voltaria a ver uma viatura.Estou velhinho e debilitadofísicamentee já me conten-tava a morrer sem voltar aver um carro passar na minhaaldeia. Para não esquecer asimagens que andavam gra-vadas na minha memória,

decidi contar os momentosem que andávamos de car-ro aos meus netos”, expli-cou o ancião João Pedro,da aldeia Kinonó.

Crianças não estudamCom excepção das que vivemna sede comunal do Cuango,ascrianças, comidades com-preendidas entre os cinco eos 13 anos, das aldeias e bair-ros que ficam a mais de cincoquilómetros da mesma, nãoestudam.Nessas aldeias ebairros não existem escolas,muito menos professores.Para muitos habitantes dessasaldeias alíngua portuguesaé como se fosse uma línguaestrangeira, pois desde a nas-cença falam apenas o ki-kongo. Enuma idade maisadulta aprendem o lingala.Os meninos de até 10

anos passam o dia a brin-car, enquanto os mais cres-cidos se vêem obrigados aacompanhar a mãe à lavra,a dedicarem-se às tarefasdomésticas, a acarretar águados rios situados a cerca detrês quilómetros e a recolher

larvas comestíveis como ma-kaba, massendeguedia, ma-koko e nkwati, visto que éneste período do ano queelas aparecem.André Ikombo, 18 anos,

está a frequentar apenas a6ª classe. Vive na regedoriaSwa Ipopo, cerca de 40 qui-lómetros da sede comunaldo Cuango. Aos domingoscaminha durante seis horaspara se hospedar na casa dotio, na regedoria Madioko,distante seis quilómetros davila do Cuango, para aqui,durante a semana, frequentaras aulas num colégio.“Até aos 12 anos não es-

tudava, na minha aldeia nãotem escola. Depois de com-pletar os 13 anos os meuspais decidiram que deveriaviver com o meu tio na al-deia mais próxima da escola,para poder estudar. Há doisanos, como já me sentiamais crescido, preferi co-meçar a passar os finais-de-semana com os meuspais e, no final de domingo,regressar a Madioko”, referiuAndré Ikombo.

MUNICÍPIO DO KIMBELE

Falta quase tudo na comuna do Cuango

A viagem da cidade do Uíge para o município do Kimbele é um martírio, de tal modo que para a fazer é precisopensar duas vezes.Desde 2015 que a estrada, com umtotal de 401 quilómetros, tem 259 quilómetros do seu troçoasfaltado. Mas as picadas para as comunas nunca conheceram nenhum tipo de intervenção. De tal modo que não

podem ganhar o estatuto de estrada

Com a palavrao administrador

O administradorcomunal doCuango disse ao Jornal de Angolaque a rede escolar é composta por 14 escolas primárias,umcolégio e um liceu, todos instalados em estruturas feitas depaus e cobertas de capim. Além da escola primária da sedecomunal, todas estão, praticamente, desactivadas por faltade professores.Mbuia Nteba sublinhou que aconstrução de uma escola

primária,com seis salas de aulas, se encontra paralisada hámais de cinco anos e defendeu a sua conclusão, além da cons-trução de mais infra-estruturas escolares.Para o ano lectivo de 2020, suspenso por causa da covid-

19, foram matriculados 4.825 alunos no ensino primário, 685no colégio e 1.312 no liceu. Pelo menos 755 adolescentes ejovens estão matriculados na comuna de Kasongo-Lunda, naRDC, alguns dos quais inscritos no ensino superior. O númerode crianças fora do sistema de ensino é, oficialmente, estimadoem 967, mas acredita-se que pode ser muito mais.“Até ao dia 12 do mês de Março as aulas no colégio e no

liceu não tinham iniciado porque os professores não se faziampresentes na comuna. O único presente era o subdirector pe-dagógico do liceu, que procurava transmitir alguns conteúdosaos alunos que apareciam”, disse o administrador comunal.

Assistència médica na RDCO centro de saúde da comuna funciona numa casa de pau-a-pique, porque o antigo centro de saúde, em escombrosdesde o tempo colonial, nunca foi reabilitado. Não existemédico na comuna do Cuango. Apenas três enfermeiros as-seguram a assistência sanitária às populações. Os fármacosessenciais, para acudir os enfermos de malária, doençasdiarreicas simples e do fórum respiratório, são fornecidos empequenas quantidades pela Direcção Municipal da Saúde.Mbuia Ntemba disse que,nos casos mais graves, e que

exigem uma intervençãomédica de especialidade, os pacientesvão à busca de assistência na regedoria do Zinamukete, naregião de Kasongo-Lunda, na RDC, cerca de seis quilómetros,tendo que fazer a travessia da fronteira fluvial no rio Cuango.Lá encontram um hospital em condições, com médicos devárias especialidades.“O sector da saúde funciona com muitas dificuldades. Não

há médicos e existem apenas três enfermeiros contratados,que estão há muito tempo sem os seus subsídios e que podemabandonar a comuna a qualquer momento. A população so-corre-sedos 14 postos de saúde privados, cuja qualidade dosserviçosé questionável. Daí a preferência pelos hospitais daRDC”, sublinhou Mbuia Ntemba.“Fica-nos mais fácil nos deslocarmos ao território congolês

para tratamento médico, por ser mais próximo, ao invés depercorrermos mais de 180 quilómetros para transportarmosos doentes em tipóias até ao hospital municipal de Kimbele,quetem insuficiência de médicos especializados”, disse MaluampangaFerrão, residente na aldeia Madiko.

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REPORTAGEM 21Domingo3 de Maio de 2020

Comércio transfronteiriçoA actividade comercial nacomuna do Cuango é inci-piente. A permuta é a prin-cipal forma de aquisiçãode bens.O avançado estadode degradação da estradanão permite que viaturaslevem para as comunidadesquantidades consideráveisde mercadorias.Algumaspessoas percorrem 182 qui-lómetros a pé, com peque-n a s q u a n t i d a d e s d eprodutos agrícolas à cabe-ça, nomeadamente gingu-ba, pevide e gergelim, paravenderem no mercado mu-nicipal do Kimbele.E nessemercado adquirem tam-bém pequenas quantidadesde açúcar, sal, fósforo, sa-bão, peixeseco, roupa ecalçados, que, nas locali-dades de origem, são usa-dos como meios de troca.

Às quartas-feiras e aossábados, a partir das 13horase 30 minutos,cidadãos con-

A reconstruçãoda ponte metálica sobre o rio Zaza, distante cerca de 154 quilómetros da vila do Kimbelee 38 da sede comunal do Cuango, renova a esperança em dias melhorespara os mais de 20 mil habitantesdo Cuango.O acesso à sede da comuna já foi restabelecido, embora apenas para viaturas com tracçãotodo-o-terreno.

O soba Badila Mulopo acredita que, com a reposição da ponte, os agricultores vão poder aumentare escoar a produção para os principais centros comerciais domunicípio, da província e do país. Até antesda reposição da ponte eram obrigados a realizar uma agricultura de subsistência,por falta de vias deescoamento dos produtos.

“Este ano agrícola vamos produzir além do necessário para comermos. Vamos deixar de depender daspermutas e passar a usar o dinheiro para as nossas trocas comerciais no meio rural e nos centros urbanos,onde vamos poder vender os nossos produtos e adquirir outros, manufacturados”, disse o soba.

O administrador Mbuia Nteba informou que a região possui uma vasta bacia hidrográfica e solosférteis, o que a torna numa potência em termos de produção de citrinos, ginguba, banana, mandioca,abacate, abacaxi, feijão, batata rena e doce, pevide, gergelim e madeira.

“Para garantir uma melhor circulação de pessoas e bens, é necessário que a estrada que liga a comunaà sede municipal, numa extensão de cerca de 182 quilómetros, seja reabilitada, além da construção depontes e pontecos sobre os rios Nsafungu, Mbutila, Mpemba, Kitiki, Saco, Futa e Wamba”, referiu.

Ponte sobre o Zazatraz esperança

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goleses atravessam os cercade 400 metros do rio Cuangoem dongos (pequenas em-barcações feitas com tron-cos de árvores de médioporte) carregados com rou-pas, cosméticos, cartõesSIM das operadoras de te-lefonia móvel Vodacom eCeltel, da RDC, e outrosprodutos, para um encontrocomercial transfronteiriçona margem angolana.

Os angolanos levam aopequeno mercado sal, açú-car, arroz, massa e óleo ali-mentar, bebidas alcóolicas(Cuca e whisky Best), refri-gerantes, peixeseco, fósforose produtos do campo, comrealce para as pevide, ger-gelim e gindungo. Naqueleespaço comercial a moedade troca predominante é ofranco congolês, cuja taxade câmbio em relação aokwanza é estipulada na or-dem dos 300 por cento, ou

seja, 1000 kwanzas equivalema 3000francos congoleses.

“A actividade comercial temmaior impacto no mercado infor-mal, o que cria imensas dificuldadesna organização, controlo e fisca-lização da mesma, para podermosarrecadar receitas locais. O principalponto comercial acontece duranteas quartas-feiras e aos sábados, nanossa margem do rio, onde ango-lanos e congoleses se encontram

para venderem e comprarem al-guma coisa”, referiu o administradorMbuia Nteba.

Faltam infra-estruturasÀ primeira vista, a imagem arqui-tectónica da sede comunal do Cuangoé desoladora. Das antigas infra-es-truturas coloniaisapenas restam es-combros, entre eles o centro de saúdee o antigo posto policial.

A única infra-estrutura projec-

tada no período pós-inde-pendência, cujasobras estãoparalisadas há muitos anos,é a da futura escola primáriade seis salas de aulas. Paramelhorar a imagem da cir-cunscrição e o próprio fun-cionamento das instituições,o administrador Mbuia Nte-ba defende a construçãode escolas, postos e centrosde saúde, edifícios admi-nistrativos, esquadra po-licial e a melhoria das viasde comunicação.

“É necessário que sejamconstruídas escolas nas lo-calidades commaior con-centraçãopopulacional, alémda extensão da rede sanitária,para reduzir a mortalidadematerno-infantil e as des-locações à RDC. É tambémnecessária a reposição doedifício da administraçãocomunal e do sistema decaptação e abastecimentode água”, disse.

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ACTIVIDADE22 Domingo3 de Maio de 2020

| EDIÇÕES NOVEMBRO

Francisco Quiteculo e maistrês jovens, Edlásio de Vas-concelos e Wilma Midosi Qui-teculo, do município de Belas,e Rosa de Sousa, do KilambaKiaxi, uniram-se e criaramuma frente solidária, com opensamento de que “Angolaé de todos e, se repartirmoso peso, a carga tornar-se-ámais leve”. Actualmente, sãoo garante de famílias vulne-ráveis na localidade de BomJesus, com o apoio de amigoscomo a Associação UPAM etrabalhadores de uma em-presa petrolíferaO núcleo criou vários pontosde recolha para a recepçãodas ajudas em bens alimen-tares. Para o jovem FranciscoQuiteculo, ajudar famíliasnecessitadas “é um cumpri-mento do dever, que se ali-cerça no princípio de que‘aos seus filhos a Pátria nãopede, ordena’”. Foi com Fran-cisco Quiteculo que o Jornalde Angola estabeleceu o bre-ve diálogo, que, a seguir, setranscreve.

Quais foram as motivaçõespara a criação do projecto?Fomos motivados pela de-claração do Estado de Emer-g ê n c i a , q u e impõ e oisolamento social. Em con-versa com a minha esposa, esabendo que isso seria quaseimpossível, surgiu-nos o de-sejo de ajudar parte do pessoalque integra os grupos de riscoa manterem-se em casa, afim de evitar um possível con-tágio na procura de alimentosnos mercados, considerandoo elevado número de pessoasque nele interagem.

Como é que vocês adquirem

os produtos para a cesta básica?Obtemos as cestas básicaspor meio de doações. Algu-mas pessoas que confiam emnós fazem transferências mo-netárias para a minha contabancária e, em seguida, com-pramos a grosso e retalhamosos produtos para formar ascestas. Isso é possível apli-cando o marketing digital eo “boca aboca”, divulgandoa mensagem entre as pessoasque conhecemos e atravésdas redes sociais.

Quem são os principais be-neficiários?São as pessoas da terceiraidade, visto que fazem partedo grupo de risco e, por sinal,são os que têm o sistema dedefesa já em declínio ou, namaioria dos casos, altamentedebilitado.

Como é que vocês fazem aselecção dos beneficiários?A selecção dos beneficiáriosé feita através de dados ob-tidos pela coordenação dosbairros. E aqui devo felicitara comissão do bairro BomJesus Um pelo nível de or-ganização e confiança quenos transmitiram, e consta-tamos inloco, no dia da en-trega. Adoptamos a entregaporta-a-porta afim de evitaraglomerações e o risco depossível contágio.

Em que situação vocês en-contram essas pessoas?Encontramo-las em estadolastimável, desde as condiçõesde habitabilidade (casas dechapa ou de adobe em zonade risco), sem acesso aos ser-viços básicos, saúde debilitadae muitos velhos choram por-

que os filhos crescem, saemdo bairro e não lhes dão a mí-nima assistência. Ainda as-sim,há idosos que estãorealmente conscientes do pe-rigo da pandemia da Covid-19. Mesmo estando numacasa de chapa, extremamentequente, não ficavam na rua.Mas notamos também um nú-mero elevado de outras pes-soas que se mantinham narua. A comissão de moradorescontinua a passar a mensagempara ficarem em casa.

Por que escolheram a loca-lidade do Bom Jesus?A escolha do Bom Jesus foifeita porque conhecemos obairro, isto devido ao factoda Wilma Quiteculo ser médicade uma das fábricas nessa lo-calidade e conhecer bem asua realidade. Mas devemosrealçar que, por agora, é oBom Jesus, mas não pensa-mos em ficar por aqui. Que-remos alcançar outros bairrosperiféricos com reais neces-sidades de apoio, por exemplo,os bairros África do Sul, noBenfica, o Sossego e outros.

Frente solidária apoia carenciados no Bom JesusGrupo liderado por Francisco Quiteculo

Em momentos de crise, como o vivido actualmente porcausa da Covid-19, a juventude desperta e dá o seu melhor

em prol dos que mais necessitam

António Capapa

Viúva, a cuidar dos netos ede um irmão de 70 anos in-capacitado por uma trom-bose, Lemba João não secontinha de alegria, razãoporque rendia, efusivamente,graças aos jovens que lheestavam a arrancar da misériaque já pairava em casa.

“Não contava com isso.Meu irmão já vai comer. Istoé uma maravilha”, diziaLemba João, nos seus 66 anosde idade, com a força res-taurada para carregar umasacola contendo bens de pri-meira necessidade: o arroz,a fuba, o óleo, o feijão, oaçúcar, e, ainda, produtosde higiene como a lixívia eo sabão azul, nos dias dehoje tão importantescomoo é opão nosso de cada dia,pois se tornaramnuma armapara matar um inimigo in-visível, traiçoeiro e letal,considerando os imensurá-veis prejuízos, quer sejamhumanos ou económicos,para a humanidade.

“Deus os abençoe, meusfilhos, Deus os abençoe”,repetia a mais-velha Lemba,como que rodopiando sobreocorpo pequeno, com umbrilho nos olhos que denotavaestar vencida a tristeza de

quem já não sabia como ali-mentar os seus.

A sexagenária estava mui-to grata pela surpresa quelhe foi feita por um núcleode jovens do bairro AdrianoMoreira, distrito urbano do

Hoji-ya-Henda, municípiodo Cazenga, que, como contaSetilsonNguvulo, decidiramjuntar esforços “para ajudarfamílias carenciadas”.

O estado de quase indi-gência de algumas famíliasdo Adriano Moreira motivouos jovens a criar um projectosolidário, por entenderem“que não deve ser apenasresponsabilidade do Execu-tivo olhar para as famíliasvulneráveis”.

Para Setilson Nguvulo,faz todo o sentido “partilharo que se tem com quempassa necessidade”, razãoporque 70 por cento dosprodutos com que criam ascestas básicas saem mesmoda comunidade. “Os mu-nícipes do bairro AdrianoMoreira são muito solidá-rios, conseguem pensar noseu próximo”.

António Delgado, outrojovem envolvido no projectosolidário, realça o facto dainiciativa “restaurar ale-grias” e “levar a esperançaa pessoas que passam pormuitas necessidades”.

Noventa famílias já bene-ficiaram do gesto solidário.A sua selecção começa pelaidentificação da área de re-sidênciae o cadastramento éfeito de acordo com a situaçãodas mesmas, segundo escla-rece António Delgado.

JUVENTUDE E SOLIDARIEDADE

Corrente de apoio no bairro Adriano Moreira