A INFLUÊNCIA DA TECNOLOGIA PARA A SOCIALIZAÇÃO …
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Edição 19 – Junho 2020 1
A INFLUÊNCIA DA TECNOLOGIA PARA A SOCIALIZAÇÃO
INFANTIL: UM ESTUDO DE CASO.
SANTIAGO, Daniela Emilena1
FERREIRA,João Pedro2
RESUMO: Este trabalho, teve como objetivo identificar e analisar a influência da
utilização de novas tecnologias no cotidiano de uma criança, buscando mensurar em que
medida essa prática influencia na sua inserção social e familiar. Para analisar esse
fenômeno recorremos ao autor L.S. Vygotsky. Em sua obra Pensamento e Linguagem,
apoiado na corrente marxista, nos indicou que é por meio dos instrumentos e símbolos
que o ser humano vai conhecendo o mundo. Para essa pesquisa, utilizamos observações,
análises e entrevista semiestruturada abordando uma criança de 12 anos. Pressupomos
que essa pesquisa nos levou a aprofundar o conhecimento a respeito do
desenvolvimento infantil, considerando a influência dos fatores contemporâneos como a
utilização da tecnologia nesse processo. Além disso, a nosso ver, foi possível
compreender se a utilização das tecnologias, no espaço doméstico, influencia a inserção
social e familiar da criança.
Palavras-chave: Criança; tecnologia; Desenvolvimento infantil.
ABSTRACT: This work addressed the objective of identifying and analyzing the
influence of the use of new technologies in the daily life of a child, seeking to measure
the extent to which this practice influences its social and family insertion. To analyze
this phenomenon was resorted to the author L.S. Vygotsky. In his work, thought and
language, supported by the Marxist current, indicated that it is through the instruments
and symbols that the human being will know the world. For this research, we used
observations, analyses and semi-structured interviews addressing a 12-year-old child.
We assume that this research has led us to deepen knowledge about child development,
considering the influence of contemporary factors such as the use of technology in this
process. Moreover, in our view, it was possible to understand whether the use of
technologies in the
Keywords: Child; Technology; Child development.
1 Daniela Emilena Santiago é Assistente Social, docente dos cursos de Psicologia e Pedagogia da UNIP,
Mestre em Psicologia e História pela Unesp, Doutoranda em História pela Unesp. E-mail:
2 João Pedro Ferreira é Psicólogo, graduado em 2019 pela Unip de Assis-SP. E-mail:
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INTRODUÇÃO
A tecnologia vem evoluindo junto com a humanidade. Cada dia temos mais
recursos para nos auxiliar no dia-a-dia com diversos tipos de objetos tecnológicos
dentre os quais: videogames, relógios inteligentes, celulares de última geração,
computadores com sistemas independentes, realidade virtual entre outros. Conseguimos
utilizá-la não só para trabalho, relação social ou para diversão, mas podemos sim
utilizá-la para um bem maior: o conhecimento e benefício físico.
Para tanto, as tecnologias abarcam vários públicos, desde os adultos, jovens e
mesmo públicos infantis. Por isso, cada vez mais vemos que há um rol amplo de
produtos que são confeccionados e destinados para vários públicos. No universo infantil
os itens tecnológicos se popularizaram e tem se mostrado como uma atividade tanto
usada com finalidade educativa quanto com o objetivo de entretenimento. Porém, temos
visto que as tecnologias também têm comprometido a socialização infantil, uma vez que
sua utilização em excesso tem coibido momentos de vivência familiar e social,
sobretudo de crianças e também de adolescentes. Compreender em que medida a
recorrência a novas tecnologias interfere nos processos de socialização constitui o
objeto desse texto.
Inicialmente o interesse por esse tema surgiu partindo da observação de uma
criança, no processo de estágio curricular obrigatório de um dos autores enquanto
cursava Psicologia. Nessa circunstância observou que crianças, no momento do
intervalo escolar, rapidamente retiravam o celular da bolsa e muitas passavam o período
todo usando o aparelho. Observando crianças em vários cotidianos, além do espaço
escolar constatamos que é comum que crianças, cada vez com menor idade,
manipularem tablets, celulares e outros equipamentos dessa natureza. Via de regra,
nesses contextos, a criança ignora outras crianças ou adultos em detrimento dos
aparelhos tecnológicos.
Nesse sentido, temos cada vez mais a utilização pelas crianças de mídias e
dispositivos tecnológicos afins, porém, nesse contexto surge também o questionamento
social sobre até que ponto a tecnologia não comprometeria o desenvolvimento infantil,
e, mais, esse comprometimento não traria prejuízos ao desenvolvimento infantil? A
utilização dessas tecnologias poderia ser um dispositivo influente na segregação de
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crianças, em sua dificuldade de se relacionar com o outro, incluindo no seu contato e
aproximação familiar? Por conseguinte, cabe destacar que essas indagações nos
movimentaram na elaboração do presente projeto de pesquisa e, também são questões
que se mostram interessantes para toda uma sociedade contemporânea.
Além disso, entender o desenvolvimento infantil é vital e basal para a produção
de conhecimento. Dessa maneira podemos também justificar a realização desse artigo
ao considerarmos que estudar, conhecer os aspectos que influenciam o desenvolvimento
infantil é vital para várias áreas tais como a pedagógica, a psicológica, e outras afins.
Portanto, a produção de conhecimento nessa área, do desenvolvimento infantil, pode
iluminar outras áreas do saber e da intervenção profissional as quais tenham sua prática
orientada para a infância.
É necessário indicar que esse artigo decorre da pesquisa de iniciação científica
realizada pelos autores a qual ficou intitulada: “Socialização e Atividade Lúdica da
Criança e o Uso das Tecnologias: um estudo de caso” iniciada no ano de 2018 e
concluída no ano de 2019 pelos autores. O texto que segue descreve parte dos resultados
identificados pelos autores por meio dessa pesquisa. É importante salientar que a
pesquisa de campo foi desenvolvida somente após a aprovação do Comitê de Ética da
UNIP. Para a elaboração desse artigo optamos por apresentar incialmente considerações
sobre o desenvolvimento infantil, partindo da perspectiva de L.S. Vigotski e seus
colaboradores e na sequência apresentaremos a pesquisa, detalhando os métodos usados
para a construção dos dados aqui destacados.
1. O DESENVOLVIMENTO INFANTIL SEGUNDO L.S. VIGOTSKI
Pensar esse tema de estudos nos orientou essencialmente a refletir sobre a
questão do desenvolvimento infantil. Para compreender o desenvolvimento infantil
recorremos a perspectiva do psicólogo russo L.S.Vygotsky e dos seus colaboradores,
Luria e Leontiev.
Bem Vygotsky (1996) nos coloca que o desenvolvimento do ser humano se dá
através da relação que a criança, ainda bebê, estabelece com o mundo. Assim, para ele,
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a partir do momento em que nascemos somos colocados em mundo do qual precisamos
ter conhecimento. Para o autor russo, o conhecimento do ser humano, dessa criança que
nasceu acontece através da mediação. É a mediação que permite a criança interiorizar
conceitos que estão postos no mundo.
Para que a mediação aconteça, Vygotsky (1996), apoiado na corrente marxista,
nos indica que é por meio dos instrumentos e símbolos que o ser humano vai
conhecendo o mundo. Os instrumentos, objetos são basais nesse processo, uma vez que
por meio do contato alcançado com tais itens é que a criança constrói e reconstrói
conceitos, dialeticamente. Outro elemento basal no sentido de viabilizar a mediação de
conceitos é o adulto. Para Vygotsky (1996) o primeiro momento de socialização da
criança é a família e, depois é a escola, o espaço pedagógico.
Seria dessa forma que o ser humano vai se desenvolvendo, ou seja, se
apropriando e conhecendo a realidade. Esse processo, denominado assim por Vygotsky
como apropriação é o que consolida a subjetividade e permite que o ser humano possa
construir sentidos e significados. O sentido é um conceito que o ser humano constrói,
porém, o sentido vem carregado de conotação pessoal. O significado, por outro lado,
refere-se ao conteúdo de um determinado conceito.
No processo de desenvolvimento da subjetividade é que o ser humano consegue
desenvolver as funções psíquicas superiores, como a memória, o pensamento, a
percepção e a atenção voluntária. As funções psíquicas superiores colaboram para a
ampliação do desenvolvimento infantil, e, permitem à criança refletir, mentalmente,
antes de adotar alguma decisão e cometer algum ato específico. A função psíquica
superior permite ainda que a criança apresente uma fala orientada, porque, estará
articulada ao pensamento.
Enfim, para Vygotsky (1996) é basal o papel da mediação do adulto e também
das instituições, dos instrumentos na construção do ser humano. A escola, para ele seria
um importante ator na construção da criança, sobretudo em relação a aprendizagem.
Mas, o autor enfatiza e discute com muita procedência a importância da atividade lúdica
no desenvolvimento da criança, aliás, destacando que a brincadeira é fundamental,
sobretudo a brincadeira de faz-de-conta posto que essa estimula a memória e a
imaginação.
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Por conseguinte, derivando dessa perspectiva, que, aqui resumimos por tratar-se
de um projeto de pesquisa, é que começamos a refletir sobre o desenvolvimento da
criança na sociedade contemporânea. Assim vejamos, obvio que Vygotsky (1996)
escreveu e se tornou extremamente popular no século XX, ou seja, apesar de seus
trabalhos apresentarem grande quantidade de pesquisas de campo, o autor pensou uma
criança do seu tempo. Atualmente, temos uma criança diferente, que, além de uma série
de aspectos afins, provém de uma sociedade em que temos grande influência do
desenvolvimento tecnológico.
Assim, grande parte dos processos de interação nos quais a criança
convencionalmente estaria inserida acabam sendo suprimidos, na atualidade. Nos
grandes centros vemos que muitas famílias, em virtude de evitem a exposição das
crianças acabam as mantendo segregadas no interior das casas e com acesso a um rol
amplo de equipamentos tecnológicos. Nos centros de menor porte, o medo das famílias
também se mostra latente e adotam, também como medida, a segregação. Associada a
isso temos também uma precarização da vida como um todo o que obriga os familiares,
em sua maioria, a trabalharem por longos períodos, fazendo com que os aparelhos
eletrônicos sejam disponibilizados para a criança como um meio de mantê-la ocupada.
Esses e outros fatores afins acabaram mudando substancialmente o cotidiano das
crianças, resultando assim em uma alteração de como a criança se apropria do mundo,
como a criança estabelece a mediação e como ela funda a sua subjetividade, o seu
desenvolvimento. Portanto, nosso desejo foi o de olhar para um dos aspectos que pode
ter sido alterado na dinâmica da criança e que pode provocar alterações no seu
desenvolvimento uma vez que diminui a sua socialização, sua relação com os pares. Na
sequência apresentaremos a pesquisa realizada onde pudemos analisar, partindo do
estudo de caso, a influência da tecnologia na socialização infantil.
2. TECNOLOGIA E SOCIALIZAÇÃO INFANTIL: um estudo de caso
Para a realização dessa pesquisa partimos do entendimento de Minayo (1999)
acerca da pesquisa qualitativa uma vez que a mesma a compreende como uma
modalidade de produção de conhecimento que está assentada na construção de sentidos,
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de significados de um dado fenômeno estudado. Portanto, como desejamos identificar a
influência da utilização de mídias afins na socialização de crianças, compreendemos que
estamos construindo sentidos, significados sobre esse conceito e não apenas estamos
quantificando ou delimitando percentuais envoltos no fenômeno estudado.
Já no que concerne, especificamente, ao método usado para a realização da
pesquisa, recorrendo as delimitações de Gunther (2006), definimos por utilizar pesquisa
de campo, na qual usamos várias metodologias para a apreensão do objeto. Uma dessas
metodologias foi a entrevista semi-estruturada, uma vez que delimitamos eixos que
abordamos com a criança sujeito da pesquisa.
Nesse sentido, cabe ainda destacar que definimos por realizar a pesquisa com
uma criança, na idade de 12 anos, que frequentava a rede municipal de ensino do
município de Assis. A diretora da unidade de ensino em questão nos indicou o sujeito
da pesquisa. Fizemos a pesquisa após contato com os responsáveis pela criança, e após
submissão e a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unip. Consideramos a
delimitação pertinente uma vez que residimos na cidade, o que tornaria a realização da
pesquisa mais acessível. Para tanto, idealizamos o desenvolvimento da pesquisa na
escola Leny Barros da Silva porque foi nesse espaço que um dos autores desenvolveu o
estágio curricular obrigatório vinculado à área educacional.
Junto à criança inicialmente pensamos nas seguintes questões: qual o nome,
idade, série escolar e há quanto tempo estuda nessa escola; quais são as matérias que
mais gosta e porquê; o que faz no intervalo da escola; você sabe no que seus pais
trabalham?;quais são os meios de lazer que usa no fim de semana; quais equipamentos
eletrônicos que possui; quais e quantas atividades participa em família; recebe amigos
para brincar e brinca do quê? Partindo dessas questões a análise será construída
considerando-se os eixos: identificação geral da criança; atividades que a criança realiza
na escola e fora dela; a presença ou a ausência de mídias eletrônicas no cotidiano das
crianças interfere ou não em sua socialização?.
A escolha por uma criança definiu-se pelo fato de que na pesquisa qualitativa
não é necessária uma grande quantidade de números, uma vez que uma criança é
representativa. Nesse sentido, declinando uma vez mais das colocações de Gunther
(2006) escolhemos por realizar uma pesquisa na modalidade estudo de caso afinal
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vamos observar, analisar e estudar um aspecto de um fenômeno maior, amplo
considerando-o como uma possível expressão de uma realidade maior, ampla. Nesse
ínterim é mister indicar que compreendemos esse estudo de caso considerando-o
relacionado a uma realidade social, econômica, específica, na qual o desenvolvimento
tecnológico tem grande influência e importância. Por conseguinte, olhamos para um
fenômeno específico, mas não isolamos esse fenômeno da realidade em que vivemos e
na qual pesquisamos.
Tendo tais colocações arroladas, passamos a apresentação do caso em questão. O
sujeito desse estudo é V., doze anos de idade, que cursava em 2019 o sétimo ano do
ensino fundamental da instituição de ensino onde frequenta a um ano e oito meses.
Dessa forma, como indicamos na metodologia do projeto que seria realizada uma
entrevista apenas e consideramos que os resultados propostos para a pesquisa foram
alcançados de forma satisfatória. Além disso, a entrevista que realizamos mostrou-se
suficiente ao passo que nos permitiu apreender aspectos sobre a socialização da criança
entrevistada.
Para a realização da entrevista usamos o questionário composto pelas seguintes
questões: Qual é o seu nome?; Quantos anos você tem?; Você estuda em que ano da
escola V.?; A quanto tempo você estuda nesta escola?; Quais são as matérias que você
mais gosta?; Porque?; E o que você faz na escola na hora do recreio?; Você tem alguma
atividade que você mais gosta?; Você sabe onde seus pais trabalham?; Você sabe me
dizer o que eles fazem?; O seu pai trabalha em que?; E a sua mãe?; O que você gosta de
fazer no final de semana? Como lazer na sua casa?; Quais atividades que você gosta de
fazer quando você está na sua casa?; Você tem algum jogo em específico?; Mas jogo de
que, você diz?; E quais equipamentos eletrônicos você possui?; Você sabe quais
atividades você participa em família?; O que você faz com a sua família no final de
semana no lazer?; Você recebe amigos para brincar com você na sua casa?; E vocês
brincam do que quando estão lá?; E você gosta?; E você que chama os amigos para
brincar nesses equipamentos eletrônicos? Ou eles são eles que pedem”, E tem outra
atividade que você gosta sem ser equipamentos eletrônicos? Jogar no videogame?
Mexer no computador...; Mas você trocaria as atividades de videogame para brincar de
bola ou algo do tipo? E tem outra atividade que você gosta além destas que você falou
pra gente?; Só pra gente finalizar então V. quando você está no intervalo, no recreio da
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escola, você pode mexer em celular, tablete ou alguma coisa do tipo?; Mas tem alguma
restrição?; Tem um tempo para você brincar no celular?; E nas aulas, você pode
mexer?; E ela deixa quando?. E ainda tem alguma outra coisa que você deseje falar?.
As três primeiras questões: “Qual é o seu nome?; Quantos anos você tem?; Você
estuda em que ano da escola V.? E há quanto tempo você estuda nesta escola?”, foram
usadas para que fosse possível conhecer um pouco mais sobre o sujeito que participaria
da entrevista. Após a realização da entrevista foi possível identificar o nome da criança,
mas aqui a chamaremos apenas por V. tendo em vista a necessidade de preservação de
sua identidade. V. também nos informou que tem 12 anos, está no sétimo ano e estuda
na escola em questão há cerca de dois anos.
As outras questões: “Quais são as matérias que você mais gosta? ” e “Porque?”,
buscavam identificar informações sobre a interação da criança na escola, e, servir
também como uma forma de aproximação entre entrevistador e entrevistado. A essas
questões a criança respondeu que a matéria que mais gosta é matemática, tendo em vista
que é mais fácil a ela. A questão: “E o que você faz na escola na hora do recreio?”,
buscava identificar aspectos relacionados a interação da criança em sua atividade
escolar, ao que o sujeito entrevistado respondeu: “Fico brincando com os meus
amigos”, demonstrando assim que a criança tem momentos de interação com outras
crianças, mesmo tendo a opção da utilização de equipamentos eletrônicos ou
tecnológicos nos intervalos. Na sequência ainda foi perguntado a criança: “Você tem
alguma atividade que você mais gosta?”, buscando identificar qual seria a brincadeira
preferida da criança na escola, ao que a criança respondeu: “Não”, ou seja, não há
clareza da criança em afirmar sobre o que mais gosta de fazer no intervalo com os
amigos.
Abordando sobre as perguntas de seus responsáveis como: “Você sabe onde seus
pais trabalham? ” e respondendo: “Sim” mas não descreveu o que os familiares faziam
como inserção laboral. Sendo assim, a necessidade da pergunta: “Você sabe me dizer o
que eles fazem? ” nos trouxe a informação: “Eles ficam trabalhando, vai pra casa, come
em casa e volta pro trabalho”. Para saber mais sobre essas pessoas que foi questionado
para V., “O seu pai trabalhar em que? ” com o apontamento: “Caminhões. ”. E também
foi realizada a pergunta: “E sua mãe? ” em: “Roupas, vendas.”. Entretanto essas
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informações foram de grande importância para que pudéssemos conhecer um pouco
sobre a dinâmica familiar da criança. No entanto, as respostas foram evasivas
considerando a faixa etária da criança.
A questão: “O que você gosta de fazer no final de semana? Como é o lazer na
sua casa? ”, buscava identificar questões relacionadas ao lazer fora do espaço da escola.
A criança, no entanto, não entendeu a pergunta e por conta disso reformulamos da
seguinte forma: “Quais atividades que você gosta de fazer quando você está na sua
casa?”. O sujeito entrevistado inicialmente disse que gosta de jogar destacando assim a
suposição de inúmeros jogos que pode ser descrito na categoria. Mesmo ao trazer a
pergunta: “Você tem algum jogo em específico? ” as respostas continuaram sendo
genéricas. Entretanto ao questioná-lo: “Mas jogo de que, você diz? ” nos trouxe a
compreensão que se tratava de jogos eletrônicos com a resposta: “De tiro, de rpg. ”.
Pedindo para informar: “E quais equipamentos eletrônicos você possui? ” afirmou V.:
“Celular e pc e Xbox. ”
Nesse sentido, podemos observar que a criança, ao ser questionada a respeito das
atividades do fim-de-semana apenas citou atividades ligadas a aparelhos tecnológicos.
Paiva;Costa (2015) nos indicam que esse tipo de verbalização é comum quando a
criança está mais habituada em utilizar esses dispositivos em seu cotidiano. De certa
forma, sabemos que a criança “expressa” aquilo que vivencia. No caso em pauta, apesar
de em outros questionamentos a criança indica que “prefere” brincadeiras tradicionais
vemos que ao relacionar as atividades que desenvolve nos finais de semana a criança
nem cita brincadeiras tradicionais.
Com a pergunta: “O que você faz com a sua família no final de semana no
lazer?” demandou que entrássemos um pouco mais afundo nessa questão em prol de
informações, pois a criança entrou em reflexão ao ser questionada respondendo apenas:
“Ah... ” e ficando em silêncio por um minuto. Reformulada a pergunta: “O que você faz
com a sua família no final de semana? ”, responde que: “Ah, fico conversando, fico
brincando... ”. Desse modo a pergunta subsequente: “Você sabe dizer quantas vezes
você faz isso no final de semana? ”, a criança destaca que são muitas as vezes na qual
conversa e brinca, portanto, na questão: “Quantas atividades você faz? ” há
controvérsias na conclusão desse assunto nos informando que: “Ah, faço bem pouco
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com a minha família.”. Baseado em seus relatos, pudemos verificar que a relação entre
ela com mediadores adultos se torna mínima tendo em vista que a frequência em seus
objetos eletrônicos aos finais de semana se mostrou mais presente.
Aqui temos outro destaque importante. A família é segundo nossos estudos em
Vigotski (1996) um dos principais elementos de socialização da criança. Ela é, antes da
inserção escolar o principal responsável pela socialização infantil. Assim, se a família
não dispõe de momentos de lazer junto à criança é natural que ela busque outros apoios.
Além disso é comum também que muitos familiares, por um grande número de fatores
afins, acabem “terceirizando” a educação dos filhos para equipamentos eletrônicos.
Apesar de a tecnologia poder ser usada como um apoio e que pode potencializar o
desenvolvimento da criança, também acaba enfraquecendo os laços entre pais e filhos.
Assim, o excesso de tecnologia compromete até mesmo os relacionamentos familiares.
O uso indiscriminado da tecnologia descontrói o vínculo afetivo entre
os membros da família, nesse sentido, a ausência de referência de
natureza emocional dificulta as crianças a desenvolverem sua
cognição no âmbito escolar, pois, a falta de equilíbrio entre o aspecto
cognitivo e afetivo compromete o desempenho escolar dos alunos.
(PAIVA; COSTA,2015, p.5)
Além disso o excesso de utilização de tecnologia compromete o
desenvolvimento cognitivo da criança, e, pode também resultar em prejuízos para o
desenvolvimento de sua aprendizagem. No caso da criança em pauta, segundo a direção
da escola, não observou-se dificuldade de aprendizagem mas dificuldade na
socialização com outras crianças.
Ainda sobre seus momentos de lazer trazendo as perguntas: “Você recebe
amigos para brincar com você na sua casa? ”, “E vocês brincam do que quando estão lá?
” nos afirma que mesmo com a socialização com outra criança neste ambiente familiar
os objetos eletrônicos permanecem como principais informa V.: “A gente fica brincando
de futebol, depois a gente fica jogando no pc ou no celular. ”. Na sequência a pergunta:
“E você gosta? ”, ao que a criança respondeu: “Gosto! ”. Como questionamento
subsequente: “E você que chama os amigos para brincar nesses equipamentos
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eletrônicos? Ou eles é que pedem”, acaba sendo respondida como ambas as partes que
possuem interesse pelos aparelhos eletrônicos, ou seja, tanto o sujeito entrevistado
quanto seus amigos demonstram também gostar de aparelhos eletrônicos.
Na verdade isso é algo muito cultural, uma vez que o brincar, assim como os
jogos usados e os brinquedos vão mudando ao longo dos anos. Atualmente observamos
que o aporte à tecnologia não é algo que acontece isoladamente, mas afeta várias
crianças da sociedade contemporânea. (CARNEIRO, 2013). Assim, a criança
participante da pesquisa apenas representa uma realidade que afeta várias outras
crianças.
Para sabermos mais sobre outras atividades, com a questão: “E tem outra
atividade que você gosta sem ser equipamentos eletrônicos?, o entrevistado relata que:
“Ah, eu gosto de jogar futebol quando eu...ou fico correndo. ” e mesmo questionado:
“Mas você trocaria as atividades de videogame para brincar de bola ou algo do tipo? ”,
V. aborda que: “Sim! ”. Com o fechamento neste contexto a questão: “E tem outra
atividade que você gosta além destas que você falou pra gente? ”, V. informa somente
estas atividades de sua preferência. Vemos que a criança cita o futebol, porém, nada
além dessa atividade. Ou seja, o escopo das brincadeiras é restrito.
Com o objetivo de sabermos mais fundo entre tecnologia e ambiente escolar a
questão: “Só pra gente finalizar então V., quando você está no intervalo, no recreio da
escola, você pode mexer em celular, tablete, ou alguma coisa do tipo? ”, “Mas tem
alguma restrição? ”, “Tem um tempo para você brincar no celular? ”, “E nas aulas, você
pode mexer? ”, e ao que detalhou V. que a aceitação de manuseio de objetos
tecnológicos é vista de forma tranquila, não havendo nenhuma restrição em seu uso,
porém há um tempo para a utilização desse aparato que só pode acontecer no intervalo.
Já em sala de aula, o uso só é permitido após a aprovação da professora, mas somente
quando as finalizações das atividades forem concluídas. Apesar de haver certo controle,
a possibilidade de uso na escola, onde geralmente a utilização é restrita, também pode
ser um estimulador para ampliar o uso de equipamentos eletrônicos pela criança.
Partindo no entanto da pesquisa que realizamos pudemos observar que a criança
apresentou muitas dificuldades com perguntas básicas como a ocupação dos familiares,
o que a criança gosta de fazer aos finais de semana sendo que tivemos que reformular
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muitas perguntas no momento da entrevista. Isso pode decorrer de dificuldades
intelectivas apresentadas pela criança e que mereceriam uma dedicação maior por parte
da pesquisa, porém, o diretor da escola onde a pesquisa ocorreu não indicou qualquer
tipo de dificuldade intelectiva por parte da criança. Nesse sentido a nosso ver grande
parte da dificuldade da criança pode estar associada a ausência de repertório para
responder às questões, até porque é uma criança com idade de doze anos ou seja poderia
argumentar melhor em suas colocações.
Essa ausência de conhecimento da profissão dos pais e também a falta de
conhecimento de outras brincadeiras para além do futebol representam um fenômeno
típico do brincar nas sociedades contemporâneas, conforme nos indica Carneiro (2012).
A autora até nos diz que nas sociedades modernas o uso em excesso de tecnologias
converte o brincar partilhado em um brincar individualizado. Ou seja, a criança muda a
forma de brincar e isso provoca alterações na maneira com que se relaciona com outras
crianças e também com os adultos. A ótica individualizada produz resultados negativos
para a socialização da criança e para a sua subjetividade e segundo a autora pode
prejudicar também o seu desenvolvimento futuro em diversas áreas como no trabalho,
na constituição familiar e nos estudos. De tal forma, a criança cresce alienada de si
mesmo e dos outros. E, em nossa pesquisa observamos que a criança sujeito da
entrevista demonstra alguns traços desse tipo de comportamento como narramos acima.
Por conseguinte, para esse caso em específico podemos inferir que a utilização da
tecnologia comprometeu a socialização da criança com outras crianças e com seus
familiares.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De fato, o desenvolvimento da criança no século XXI encontra-se em rápida
mutação, e vem fortemente influenciado pelo aporte a questão da tecnologia. Nesse
sentido, a tecnologia integra o nosso cotidiano e também faz parte do dia-a-dia das
crianças. Essa influência traz muitos aspectos positivos, porém, também pode trazer
resultados negativos para o desenvolvimento infantil. Dentre esses aspectos podemos
citar a questão da socialização, fortemente influenciada pelo excesso de utilização dos
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aparelhos tecnológicos. As crianças tendem a optar por dispositivos eletrônicos que
pressupõe uma recreação e uma ludicidade individualizada rompendo assim com a
característica coletiva que comumente estava presente no brincar anteriormente.
Partindo do caso que estudamos observamos que uma criança já com doze anos
de idade apresenta dificuldades em relação a identificar a profissão dos pais, em
descrever quais atividades desenvolve no fim de semana. Vimos ainda que a criança não
possui um repertório amplo de brincadeiras para relatar, ao menos no concerne as
brincadeiras tradicionais. Nesse sentido observamos que a criança apresenta
dificuldades de socialização até mesmo com sua família, e que isso pode em grande
medida decorrer do processo de individualização da criança a partir do excesso da
utilização da tecnologia com função lúdica. Da mesma medida observamos que a
apresentação pela criança de tipos de jogos eletrônicos apresenta maior variedade,
indicando assim que a criança de fato utiliza bem mais equipamentos eletrônicos do que
brinquedos tradicionais.
Futuramente não sabemos que gerações serão constituídas e como serão os
relacionamentos e aspectos relacionados a vínculos, afetividade, por exemplo. No
entanto, podemos supor que o excesso de utilização das tecnologias pelas crianças hoje
poderá trazer resultados negativos para a sua socialização tanto atualmente quanto
futuramente.
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