Post on 10-Jul-2015
O corpo humano possui um complexo funcionamento biológico, no entanto, mais
complexo ainda são as relações sociais a partir dele. Somos nosso veículo de comunicação, por
onde expressamos a nossa identidade. As expressões faciais, o ato de gesticular, falar e olhar são
elementos universais que caracterizam a personalidade em determinados momentos. Outro meio
de diálogo está presente na forma como nos vestimos, intensificando conotações positivas ou
negativas sobre si. É através destas representações que adentramos o imaginário cognitivo e
emocional dos círculos sociais. Conforme Shilder (1981) apud Galhordas e Lima (2004, p.38),
[...] O corpo tem uma série de funções, essenciais para a saúde emocional e para
a vida relacional, considerando o corpo um objeto de relação e comunicação da
pessoa com o mundo e consigo própria. Neste sentido, o corpo constitui uma via
para a impressão dos comportamentos sociais, dos sentimentos físicos e
emocionais. [...][Em sua obra Shilder] salienta a importância do rosto, a
principal parte do corpo aberta à comunicação, destacando também a
importância da marcha para a descoberta do mundo e para a autonomia e
independência do ser humano. [1]
A ausência de saúde é um indicativo de estranheza, beirando do desconforto a
compaixão. Não obstante, quem é detentor desta chaga, merecedores de tal castigo divino, como
costumam sugerir muitos religiosos que tem o prazer em visitar quartos hospitalares, a doença
não é somente uma condição, mas uma presença contínua que determina a fragilidade e
incapacidade. Neste contexto, não existe nada mais sublime que ser minuciosamente analisada
por uma criança em um ambiente público, alheia a qualquer tipo de etiqueta social ou norma
educativa. É clara a estranheza dela a partir dos seus olhos atentos aos resquícios de um
procedimento médico, como esparadrapos e gaze. Isto só é rompido quando, geralmente a mãe,
toma a decisão de suprimir o ato chamando a atenção da criança. Ainda que fosse mais cômodo
para ela reprimir, eu não me incomodaria em permanecer como objeto de uma análise sincera
perante aqueles olhos, longe da compaixão depreciativa que os seres humanos costumam
cultivar. Quem dera fossem os humanos seres que pudessem manter esse olhar sincero e curioso
sobre a vida e a sua naturalidade. Em Ética e Moral : A busca dos fundamentos, Boff (2003,
p.55) discorre sobre o ethos que compadece,
Mas precisamos, antes, fazer uma terapia da linguagem, pois compaixão possui,
na compreensão comum, conotações negativas que lhe roubam o conteúdo
altamente positivo. Consoante essa compreensão comum, ter compaixão
significa ter peninha do outro, sentimento que o rebaixa a condição de
desamparado, sem energia interior para erguer-se. Então nos com-padecemos
dele e nos com-doemos de sua situação. Assim, por exemplo, no faminto (e são
bilhões na sociedade) vê apenas a fome de pão. Não se vê que simultaneamente
existe nele a fome de beleza que grita por se realizar e que com nossa
solidariedade poderia ser saciada. [2]
Quando é dada a validação de uma enfermidade incurável, todos os elementos
básicos para a manutenção da vida passam a ser prioridade, aparecendo como um marcador, com
o poder de revogar qualquer precedente expressivo. Nascer com uma doença crônica, é a
condição de afirmar a ininterrupta luta pela existência, na busca por uma melhor adequação sobre
ser diferente ou estranho, e assim, na melhor das hipóteses transformar-se em alguém semelhante
e comum. É através das tentativas de executar os rituais sociais estabelecidos, que serão
fornecidos subsídios para a formação do indivíduo, no entanto, este é um processo doloroso e
continuamente repetitivo, pois este corpo nunca será compatível com um humano considerado
normal. A minha produtividade não é equivalente, não poderei gerar filhos sem o risco de
contaminá-los, de tal modo, devo provar a minha capacidade em dobro não importando as
inúmeras e ultrapassadas vezes que já a efetuai. Uma vez que minha identidade é transitória,
estou em plena transformação. Na série fotográfica, Composto Químico Deficiente (2012), cito
no artigo que escrevi um trecho pertinente a esta visão,
Naturalmente a deficiência faz parte da condição humana, em dado momento
todos serão descapacitados, ao tempo que reconhecer que grande parte da
população experimenta a deficiência, implica dizer que a incapacidade da
sociedade em se ajustar a diversidade resulta na exclusão de muitas pessoas da
vida social cotidiana. Por mais que haja a necessidade de admitir a deficiência
como parte integrante da transformação do sujeito, superando as idéias
hegemônicas relacionadas ao fardo, desvio, aberração ou anormalidade. [3]
O mais irônico é a forma precisa como muitas pessoas se referem a quem possui
uma doença deste nível como guerreiro, vencedor, herói e heroína, mas, as cobranças não são
anuladas ou minimizadas por estar habilitada com estes títulos. O processo de migração da
infância para a vida adulta constitui a luta consigo e a luta por espaço na sociedade. Sim, porque
socialmente sou uma pessoa que deveriam esta morta, dada a artificialidade de tratamentos
químicos e intervenções cirúrgicas como ingestão de medicamentos, hemodiálise e transplante
renal. Que não é cura! A finalidade de um transplante como terapia é adequar um melhoramento
expressivo na saúde do paciente, aumentando a sua produtividade, melhorando a sua autoestima,
fortalecendo em geral o seu nível de ajustamento e reduzindo a tensão na família.
A minha existência só é possível porque estou enganando meu próprio corpo e
este permanece em uma infinda batalha na tentativa de sabotagem biológica, enquanto
socialmente estou habilitada como subcategoria. Em contrapartida a todas estas implicações, o
amadurecimento é o sumo dos tumultos gerados. É através deste enfrentamento diário, no âmbito
social e íntimo, que marco a minha presença e neutralizo aspectos negativos que cultivei a
medida que experimentei diferentes responsabilidades. Fazendo alusão ao texto, convém
observar sobre a ótica de Tavares (2004, p.769) a seguinte ponto de vista,
No fundo é a ideia de morte que não desaparece nunca. Ela veste roupagens
diferentes, mas aparece a cada etapa. [...]Isto faz da pessoa transplantada um
sobrevivente, tal como todos os que escaparam a uma morte prometida. Porém é
um sobrevivente particular. Para os sobreviventes em geral, o tempo que passa
afasta-os da ideia de morte, afasta-os do perigo que pertence cada vez mais ao
passado. Mas para a pessoa transplantada, a morte permanece possível a cada
etapa, fazendo dela um eterno sobrevivente [4]
A resignação é uma constante sobre a aceitação, existindo momentos de
insatisfação, tristeza e contestação, necessários para a reafirmação de si ao longo da vida, a
única forma de manter a própria essência. Embora seja um processo violento, é através dela que
existe o reconhecimento do prazer mais legitimo que se possa encontrar. Respirar, caminhar na
rua, ver o movimento da cidade, alimentar-se, tomar água e até mesmo constituir o domínio
sobre a própria mente é provar das necessidades básicas em busca de autonomia. O prazer em
manter-se vivo depende da estabilidade e independência sobre o corpo. Pouco engana ou só
engana a si, quem tece conselhos sobre “poderia ser pior” a quem menos precisa. Até porque,
sim, poderia ser pior e mesmo assim eu nunca deixaria de lutar se eu não pudesse andar ou
respirar por si. Este é um momento meu e uma vivência minha. Neste universo eu me reconheço,
portanto, se as regras e normas sociais não me favorecem nunca ou quase nunca, de fato eu não
tenho compromisso algum de ouvir suposições. A grande batalha encontra-se em estar em
contato contínuo com a morte, fazendo de si um eterno sobrevivente. Morte e vida estão
indissoluvelmente associadas no plano simbólico, ainda em sua pesquisa, Tavares (2004, p.769)
compõe,
[...] A grande alquimia, e por isso a mais difícil de construir, será a
transformação desse frágil existir, num sentimento pleno e profundo de direito à
vida, onde se deixam cair os marcadores do tempo, e onde interessa unicamente
a plenitude de cada dia. Cada dia será então uma vida. É a qualidade dessa vida,
[...]que fará a magia que transformará o sobrevivente num vivente pleno. [5]
Na tentativa de externar tais sentimentos, surgiu a série fotográfica “O Prazer
Afetivo Da Resignação”. Conceptualmente as imagens deste trabalho apresentam diferentes
representações em relação aos elementos atribuídos dentro a narrativa. A utilização dos rins
suínos é pautada na semelhança anatômica com os rins humanos, investindo em uma carga
dramática expressiva, como evidência do ponto de vista psicológico da personagem. A relação
entre o objeto de desejo expresso pelo órgão mantenedor da vida denota a necessidade de apego
a sobrevivência. Este desejo permanente é categórico na presença dos objetos, agulha e linha,
unindo rim e corpo como prova de seu manifesto. A atmosfera cenográfica e o figurino destacam
um conflito atribuído à cor branca, pois ao tempo que emana sentimentos de paz e tranquilidade,
considera ainda um padrão encontrado em instituições de saúde pelo seu caráter neutro e frio.
REFERÊNCIAS
[1] GALHORDAS, João Gonçalo; LIMA, Paula Alexandra Teixeira. Aspectos Psicológicos Na
Reabilitação. Portugal: nº 0, 2004. (Disponível em: http://migre.me/d9odE ) Acesso em: 30 jan. 2013.
[2] BOFF, Leonardo. Etica e Moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis – RJ: Vozes, 2003.
[3] BIRTH, Sarita. Composto Químico Deficiente. Joinville – SC, 2012.
(Disponível em: http://migre.me/d9og0 ) Acesso em: 30 jan. 2013.
[4] TAVARES, Edite. A vida depois da vida: Reabilitação psicológica e social na transplantação de órgãos.
Portugal: nº 04, 2004. (Disponível em: http://migre.me/d9oiu ) Acesso em: 30 jan. 2013.
[5] Id. Ibid., p. 769.
[6] COTTON, Charlotte. A Fotografia Como Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[7] ECO, Umberto. História Da Feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007.
––Sarita Birth vive na cidade de
Joinville-SC e concluiu a sua
graduação em Publicidade &
Propaganda no ano de 2011, onde
teve seus primeiros contatos com
a fotografia. Em março de 2009
iniciou seu estágio em
Comunicação & Marketing na
Fundação Pró-Rim.
Durante dois anos realizou
diferentes trabalhos na instituição,
destacando-se na fotografia de
eventos. Embora gostasse do
cargo sentia que poderia explorar
mais o seu potencial.
Ainda em 2008, Sarita Birth,
havia realizado seu transplante
renal. Este fato foi relevante para
a sua contratação dentro da organi-
zação e também para definir o seu futuro como fotógrafa. Em 2011 produziu seu pri -
meiro ensaio intitulado Domingo no Parque
Este trabalho foi um momento de ruptura, pois deixou de lado seus medos,
provenientes das suas características físicas e psicológicas, influenciados por uma
“Sarita pré -transplante”, que deveria ser extinta para libertar a sua capacidade
criativa.
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