UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
JLIO DE MESQUITA FILHO
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA
Paulo Celso Moura
VOZES PAULISTANAS:
as prticas do Canto Coral em So Paulo e suas relaes com polticas pblicas para cultura.
So Paulo
2012
Paulo Celso Moura
VOZES PAULISTANAS: as prticas do Canto Coral em So Paulo
e suas relaes com polticas pblicas para cultura.
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica do Instituto de Artes da Unesp, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Doutor em Msica.
Orientadora: Profa.Dra. Dorota Machado Kerr
So Paulo
2012
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Moura, Paulo Celso, 1964- Vozes paulistanas: as prticas do canto coral em So Paulo e suas
relaes com polticas pblicas para cultura / Paulo Celso Moura. - So Paulo, 2012.
189 f. ; il. + anexo Orientador: Prof Dr Dorota Machado Kerr Dissertao (Doutorado em Msica) Universidade Estadual Paulista,
Instituto de Artes, 2012. 1. Canto coral. 2. Cultura Aspectos polticos. I. Kerr, Dorota
Machado. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Ttulo
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Paulo Celso Moura
VOZES PAULISTANAS: as prticas do Canto Coral em So Paulo
e suas relaes com polticas pblicas para cultura.
Tese apresentada e aprovada pela Banca Examinadora:
Profa.Dra. Dorota Machado Kerr - orientadora
Profa.Dra. Dilma de Melo Silva
Prof.Dr. Alberto T. Ikeda
Prof.Dr.Carlos E.Kater
Prof.Dr. Herom Vargas Silva
So Paulo, 24 de Agosto de 2012
Agradecimentos
Em especial Profa.Dra.Dorota Machado Kerr, por uma orientao sempre na melhor acepo da palavra.
Ao Programa de Ps-Graduao em Msica do IA/UNESP, pela possibilidade de realizar este trabalho.
A Maurcio Stocco, responsvel pelo Museu do Teatro Municipal de So Paulo, pela abertura, ateno e disponibilidade.
Na figura de Naomi Munakata, aos colegas regentes pelo compartilhar de experincias e ideias.
A todos os coralistas com os quais trabalho e trabalhei, pela oportunidade que me ofereceram.
Para Rita e Beatriz,
e ao amigo mestre Samuel.
RESUMO
Neste trabalho aborda-se o contexto de algumas polticas para cultura no Brasil sob o ngulo dos circuitos culturais, locus privilegiado para sua realizao, contemplando suas interaes com as prticas do Canto Coral em So Paulo. Tem como principal objetivo caracterizar as diversas prticas do Canto Coral como um circuito cultural hbrido resultante de processos de construo e desconstruo de sentidos scio-culturais ao longo do sculo XX. A partir do retrospecto histrico apresentado, e baseando-se em conceitos de Brunner (1987), Canclini (1997), Teixeira Coelho (2004), Hall (2004), Vargas (2009) e Furtado (2012) reflete-se sobre os cenrios de realizao cultural hbrida e suas caractersticas na ps-modernidade. Esse processo permitiu enquadrar o objeto de estudo nessa categoria, e assim apresentar algumas consideraes sobre possveis mecanismos de apoio e incentivo a seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Canto Coral, Polticas Pblicas, Poltica Cultural, Hibridismos, Circuito Cultural
ABSTRACT
This work covers the context of government policies for Culture in Brazil under the views of Cultural Circuits, privileged locations for these events, covering the interactions with Chorale practices in So Paulo. Its main objective is to characterize the different Chorale practices as a hybrid circuit resulting from socio-cultural construction and deconstruction processes along the 20th Century. From the presented historical retrospect and based on concepts from Brunner (1987), Canclini (1997), Teixeira Coelho (2004), Hall (2004), Vargas (2009), and Furtado (2012), the work examines scenarios for the hybrid cultural realization and its characteristics in post modernity. This process allowed the object under analysis to be clarified and led to conclusions on mechanisms for support and incentives aiming its development.
Keywords: Choir, Public Policies, Cultural Policy, Hybridism, Cultural Circuit
SUMRIO
Introduo.....................................................................................................................09
Captulo I - Direitos culturais, polticas pblicas e polticas culturais.........................19
Captulo II - Circuitos culturais e o Canto Coral como circuito cultural.....................39
Captulo III - Retrospecto histrico das polticas pblicas para cultura......................56
III.1 A era Vargas e o Departamento de Cultura de So Paulo...................61
III.2 O intervalo democrtico: 1946/64.......................................................80
III.3 O perodo militar: 1964/85..................................................................82
III.4 A redemocratizao: 1985/94..............................................................94
III.5 Aps 1994............................................................................................97
Captulo IV Da identidade nacional diversidade cultural.....................................107
Captulo V Canto Coral como circuito cultural hbrido...........................................121
Consideraes Finais...................................................................................................139
Referncias..................................................................................................................148
Bibliografia.................................................................................................................153
reas de Conhecimento tabela CAPES...................................................................155
Anexos........................................................................................................................156
INTRODUO
Nas ltimas dcadas tem crescido o interesse pelo tema cultura e por sua articulao
junto s diversas dimenses de nossa sociedade. Assim, cultura e desenvolvimento, cultura e
cidadania, cultura e juventude, cultura e sade so algumas das temticas e processos cada
vez mais presentes como pauta oportuna e necessria em eventos acadmicos e em produes
cientficas, que visam resgatar sua histria, entender seus mecanismos e alinhavar novas
propostas que dialoguem mais consistentemente com nossa realidade. Para Silva (2007, p.01)
cultura tornou-se um conceito-chave nas reflexes sobre mudanas sociais do mundo de
hoje, enquanto reconfigurao de sociedades, representaes e modos de vida.
Esse processo reflete amplas e profundas tranformaes da sociedade, resultado da
consolidao de iderios que incidiram de forma desigual e assimtrica sobre alguns
importantes elementos de organizao e representao social: os direitos individuais e
coletivos; o papel e a funo social das realizaes culturais; o conceito de identidade
nacional; e a asceno valorativa da diversidade cultural, entre outros.
A partir de minhas experincias e vivncias pude contatar que, dentre as diversas
prticas musicais - e por conta de seu vis coletivo e coletivizante que lhe confere a
capacidade de articular demandas, potencialidades e expectativas individuais s coletivas - o
Canto Coral propicia espaos privilegiados de dilogo com essas questes, que perpassam as
dimenses de produo, difuso e recepo de bens culturais. Ainda, acredito que, de forma
recproca, ele pode tambm ser explicado e entendido a partir dessas transformaes. O
trabalho aqui apresentado nasceu dessa percepo.
Estudos sobre prticas corais tm vindo luz principalmente nas duas ltimas
dcadas, com enfoques em diversos aspectos de sua realizao. Alguns se dirigem ao seu
contexto interno como questes tcnicas de expresso vocal e regncia, formao de
repertrios e tendncias estticas em sua realizao (como em Ramos 1989, Junker 1999,
Oliveira 1999, Fernandes 2003, Camargo 2010, Camargo e Ricciardi 2011); outros s
variadas categorias de grupos, suas caractersticas e potencialidades em processos educativos
(Souza 2003, Fernandes et al 2006, Fucci Amato 2007/2008 entre outros), e o conjunto atesta
o crescente interesse em entender sua importncia e representatividade .
As prticas corais se fizeram presentes de forma constante no contexto das realizaes
culturais ao longo do sculo XX em So Paulo; da mesma forma foi observada, em muitas
delas, a atuao do Estado sob suas variadas representaes.
As aes estatais organizadas e sistematizadas visando incidir sobre demandas e
expectativas da sociedade so denominadas polticas pblicas. Para Furtado (2012) as
condies nas quais a populao de uma forma geral exerce suas potencialidades definem
claros limites e desigualdades, e cabe ao Estado interagir com a sociedade para enfrent-las;
assim, na poltica cultural, como a compreendemos, o Estado, longe de se substituir
sociedade, aplica-se em criar as condies que propiciam a plenitude das iniciativas surgidas
dessa sociedade (p.66). Implica ainda a participao ativa dos demais agentes sociais no
sentido de ampliar as condies de participao nos processos de criao, difuso e recepo
de bens culturais; nas palavras de Furtado, deve possibilitar populao alcanar a plenitude
de sua criatividade (p.94).
No sentido de entender os mecanismos e consequncias das aes pblicas junto s
prticas corais, algumas questes foram ento formuladas com o objetivo de esclarecer: qual a
abrangncia do conceito de poltica pblica e por extenso poltica cultural, e suas formas
de ao; se as prticas do Canto Coral em So Paulo poderiam ser estudadas a partir de uma
categorizao que contemplasse o conjunto de sua variedade; como se deram as relaes entre
as aes pblicas para cultura e as prticas corais, e se possvel identificar algum perfil que
as caracterize; finalmente, como considerar e estudar as tranformaes observadas nesse
processo ao longo do sculo XX.
Assim, o foco principal deste trabalho dirige-se ao estudo das relaes entre as
prticas do Canto Coral na cidade de So Paulo e as polticas pblicas para a rea da cultura.
Esta anlise se d pela configurao local, pois no creio ser possvel afirmar que as
dinmicas paulistanas tenham sido comuns s de outras cidades ou regies, e sua escolha deu-
se por conta de minha atuao nesse ambiente especfico.
- x -
Nesta pesquisa a utilizao do termo no plural como prticas corais, ou prticas do
Canto Coral prope contemplar suas muitas possibilidades de organizao, realizao,
difuso e interao entre o(s) grupo(s) e a sociedade na qual se insere(m). Dessa forma
busquei delimitar: a) uma categoria geral de referncia, Canto Coral, caracterizada pela ao
vocal coletiva. Apresenta diferentes graus de sistematizao e sofisticao das relaes entre
seus integrantes e pressupe um tipo de liderana na conduo do projeto, que normalmente
associada ao personagem tradicional do regente/maestro; e b) as suas mais diversas
expresses as prticas corais, estas particulares e caractersticas dessa categoria e de seus
elementos constitutivos.
De incio procurei estabelecer um quadro conceitual a partir do qual foram situadas as
referncias bsicas; a pesquisa voltou-se ao tema das polticas pblicas de uma forma geral, e
polticas culturais mais especificamente. Assim, o estudo de sua natureza, estrutura e das
transformaes ocorridas pde estabelecer os parmetros de amplitude, escopo e
potencialidade das polticas culturais. Disso resultou tambm o reconhecimento de um locus
especfico para a ao pblica na rea da cultura: o conceito de circuito cultural, apresentado
inicialmente por Brunner (1987) e atualizado por Teixeira Coelho (2004) e Meja (2009).
Desse ponto em diante foi possvel iniciar as correlaes entre as modelagens terico-
conceituais e exemplos de iniciativas corais reconhecendo e identificando sua presena em
determinadas categorias de circuitos culturais. O passo seguinte foi buscar estabelecer os
critrios para delimitao de uma categoria, o circuito do Canto Coral em So Paulo.
Com o intuito de desenhar um quadro representativo das propostas j realizadas no
mbito pblico, foi organizada uma narrativa histrica buscando salientar os alinhamentos
entre as diferentes manifestaes da atividade coral noo de poltica pblica para cultura1;
sobre este tema j h constitudo um corpus bibliogrfico considervel, e a partir dele foram
estabelecidas algumas fases cronolgico-conceituais para a caracterizao da ao estatal para
a cultura. Articuladas a elas, foram estudadas algumas das principais iniciativas e projetos
corais ao longo do sculo XX em So Paulo:
- as atividades do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de So Paulo na
gesto de Mrio de Andrade e alguns de seus frutos e desdobramentos como a criao
do Coral Paulistano (1935) entre outras;
- a criao do CoralUSP (Coral da Universidade de So Paulo) em 1967 e sua
importncia para o cenrio coral desde ento;
- as atividades do Movimento Coral do Estado entre 1979 e 1982 e alguns de seus
desdobramentos, especialmente a criao do Coral do Estado.
- a formao do Coro da OSESP criado na dcada de 1990 como Coral Sinfnico do
Estado de So Paulo e incorporado Fundao OSESP em 2001.
A nfase sobre essas iniciativas resultou de minha prpria vivncia como coralista e
regente e de pesquisa bibliogrfica realizada; e buscou articular os dados levantados aos
conceitos estudados (poltica cultural, ao pblica, circuito cultural).
De outra parte, pde ser tambm observada durante a segunda metade do sculo XX a
transio entre os conceitos de identidade e diversidade cultural como eixos estruturantes das
polticas pblicas para cultura. Isso me levou a pesquisar as relaes entre esse processo e as
transformaes observadas nas prticas corais, notadamente suas formas de construo de
sentido junto sociedade, influenciadas tambm pela dinmica complexa da ps-modernidade
e seus processos. Houve a insero cada vez mais intensa de elementos oriundos de novas
Na primeira metade do sculo XX este termo ainda no havia sido estabelecido; porm, estudos posteriores sobre as aes pblicas realizadas nessa poca as referem como modelos prototpicos de sistematizaes posteriores, e contemplam seu emprego.
relaes sociais, condies econmicas e tcnicas e demandas apresentadas por seus
participantes, que desestabilizaram os modelos tradicionais de produo e difuso.
Mesmo tendo em conta que o conceito de ps-modernidade constitui-se em objeto de
intensa discusso e que no alcanou ainda pleno reconhecimento, considero que pode ser til
no contexto deste trabalho, dada a dificuldade para abarcar as mais diversas manifestaes das
sociedades contemporneas.
As principais referncias para seu emprego foram:
1) de Zygmunt Bauman, O mal estar da ps-modernidade (1997); o autor aponta
quatro dimenses de incerteza provenientes do mundo ps-moderno. So: a) a nova desordem
do mundo advinda da desestabilizao dos blocos de poder - por um lado a desestruturao
dos plos leste/oeste, por outro a substituio da noo de primeiro, segundo e terceiro
mundos pela de centros e periferias (uma nova configurao presente em todos eles); b)
desregulamentao universal, na qual o ambiente corporativo comea a assumir cada vez mais
relevncia face capacidade cada vez menor de atuao do Estado; c) o esgaramento das
relaes pessoais, que configuravam uma rede de segurana s intempries e percalos, antes
enfrentados de forma coletiva; e d) a desestruturao das imagens monolticas, processo que
se dirige ao esfacelamento da viso de identidade slida e una (pp.32-37). Mais
especificamente sobre o possvel significado da arte nesse novo contexto, aponta que o
significado da obra de arte reside no espao entre o artista e o espectador (p.135), e no mais
nos elementos constitutivos da prpria obra como representao de contedos a serem
compreendidos como realidade. Dessa forma tambm a incerteza se instala, pois o
pressuposto da interao entre os plos produtor e receptor acaba mesmo por desfazer suas
identidades originais e ressaltar o evento nico, resultado de cada operao. Ainda que no
tenha sido aplicada na forma de referncias diretamente no texto, esta obra contribuiu para
uma aproximao ao conceito e contexto da ps-modernidade de maneira consistente.
2) Stuart Hall, com A identidade cultural na ps-modernidade (2004), apresenta
sinteticamente os processos de deslocamento e fragmentao das noes de identidade
nacional e identidade cultural. Segundo ele, as construes sociais no conferem mais a noo
esttica de fronteira entre naes e grupos, mas a possibilidade de se transitar entre eles. Esse
processo foi alavancado pela revoluo tecnolgica da comunicao, aliada aos processos da
indstria cultural e suas estratgias de disseminao de novos modelos de consumo que se
estenderam universalmente.
3) Nstor Canclini, em Culturas Hbridas (1997), apresenta importante texto sobre o
que denomina culturas de fronteiras geogrficas, sociais e culturais. Nelas, os campos
tradicionalmente reconhecidos de produo cultural (massivo, erudito, popular urbano) no se
encontram mais onde tradicionalmente eram identificados. Seus elementos representantes
deslocam-se e imbricam-se continuamente criando novos espaos de significao. Neste
estudo, o interesse por esse trabalho surge especialmente por sua abordagem que privilegia a
condio latinoamericana em relao aos processos e dinmicas apontadas pelos autores
precedentes.
De outra parte, outros autores foram tambm consultados para embasar as abordagens
aos conceitos de polticas pblicas e poltica cultural. Celso Furtado, em um conjunto de
textos organizado e publicado recentemente - Ensaios sobre Cultura e o Ministrio da
Cultura (2012) oferece uma viso privilegiada sobre o tema a partir de sua importante
trajetria como economista e, na dcada de 1980, como ministro da Cultura. A possibilidade
de articular pensamentos e reflexes entre os campos da economia e da cultura forneceu uma
viso abrangente dos processos histricos e seus desdobramentos e transbordamentos por
entre as dimenses sociais, culturais e econmicas.
O Dicionrio Crtico de Poltica Cultural, de Teixeira Coelho (2004), tambm se
constituiu como importante referncia. Os verbetes organizados de forma a apresentar,
relacionar e discutir os muitos temas e termos no mbito da discusso sobre poltica cultural
forneceram base conceitual que permitiu alcanar maior amplitude de estudo e avanar na
complementao do quadro terico, na medida em que apresentam tambm indicaes de
referncia para a elaborao de cada um deles.
De Canclini, alm do volume citado acima, outro mereceu especial ateno: Polticas
Culturales en America Latina (1987) foi marco importante na discusso do tema. Organizado
por Canclini, serviu como ponto de partida para o estudo dos assuntos relacionados a poltica
cultural j sob o vis da realidade latino-americana. Nele, o ensaio de Joaquim Brunner
Polticas culturales y democracia: hacia una teoria de las oportunidades - traz estudo sobre
os circuitos culturais como espaos estruturados socialmente nos quais as produes culturais
se organizam e se realizam. A partir dele, diversos outros autores debruaram-se sobre este
conceito de forma a desenvolver sua aplicabilidade e atualizao. O volume lanado em 2010
pelo IPEA2, por exemplo, tratando de avaliao de programa federal de incentivo cultura,
complementa essa abordagem privilegiando os circuitos culturais como locais sociais de
realizao cultural, portanto objeto de ao por excelncia das polticas pblicas.
Por fim, Estado e Cultura no Brasil (1984), organizado por Srgio Miceli, configura-
se como um dos primeiros conjuntos de textos tratando da relao entre as esferas pblicas e a
produo cultural da sociedade. Sua importncia reside na variedade de textos e abordagens
que contemplam retrospectos histricos e anlises estruturais, refletindo tambm o momento
singular de redemocratizao pelo qual atravessava o pas. Nele, as demandas da sociedade
em relao ao tema iniciavam seu processo de organizao e sistematizao.
Assim, a metodologia aplicada foi baseada em pesquisa bibliogrfica a partir de
levantamento de documentos, e se manteve no plano terico e histrico. Dessa forma
propiciou discutir conceitos e aplicar essa discusso ao carter histrico do trabalho. A opo
por destinar todo um captulo aos conceitos de polticas pblicas e poltica cultural se baseia
na compreenso de que essas noes precisam ser integradas base de nossas aes como
Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada, rgo ligado Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica. O volume foi organizado por Frederico Silva e Herton Arajo.
indivduos produtores de cultura, pois enseja outros tipos de relao com o Estado em outros
nveis de profissionalizao cada vez mais presentes e exigidos.
Uma de minhas buscas foi entender a realizao dos repertrios corais frente a esse
universo em transformao, uma vez que esta se configura como elemento definidor da
identidade de um grupo coral: o que se escolhe cantar, de que forma, em que situaes, para
quem. No se configura apenas como o resultado de um trabalho entre coralistas e regente,
mas definidor de seu perfil a partir de relaes, demandas e expectativas internas e externas.
A partir dessa observao, e visando transform-la em questo de estudo cientfico, busco
aqui entender como se deu a transformao dos repertrios tradicionalmente realizados, e os
mecanismos pelos quais tem se dado - ou no - sua aceitao em uma realidade mltipla e
complexa. Mais especificamente, interessou-me abordar a incluso das colees de canes
populares aos repertrios corais como causa e ao mesmo tempo reflexo de um possvel
afastamento da atividade imagem representativa da msica artstica. Esse fato tambm
poder determinar a pertinncia de reflexo sobre os novos desafios quanto implantao de
polticas pblicas para cultura nesse novo contexto.
Foram consultados e pesquisados os seguintes acervos:
Arquivo Histrico Municipal
Arquivo Histrico do Estado de So Paulo
Biblioteca do Centro Cultural So Paulo
Biblioteca Municipal Mrio de Andrade
Museu do Teatro Municipal
Tambm foram acessados os seguintes portais eletrnicos, nos quais foram encontradas
informaes, documentos digitalizados e outros dados:
Dicionrio de Direitos Humanos, da Escola Superior do Ministrio Pblico da Unio
Portal da Presidncia da Repblica Federativa do Brasil
Portal do Ministrio da Cultura
Portal da Cmara Municipal de So Paulo / setor de legislao
Portal da Fundao OSESP (Orquestra Sinfnica do Estado de So Paulo)
Portal do Centro de Estudos em Cultura (Cult) da Universidade Federal da Bahia
Portal do CoralUSP (Coral da Universidade de So Paulo)
Portal do jornal O Estado de So Paulo acervo digitalizado
Portal do jornal Folha de So Paulo acervo digitalizado
Portal da Organizao das Naes Unidas para a educao, a cincia e a cultura
(UNESCO).
A pertinncia e possvel importncia deste trabalho coloca-se na medida em que se
oferece como contribuio para o entendimento das relaes entre as atividades corais em So
Paulo e as mais diversas instncias de ao pblica. Visa tambm subsidiar a compreenso de
suas possveis novas configuraes. Pretende valorizar, por fim, as potencialidades de nossas
aes e reflexes na condio de produtores de cultura, no sentido de alavancar o
desenvolvimento cultural como parte da busca pela construo, ainda que utpica, da
cidadania plena.
CAPTULO I
Direitos culturais, polticas pblicas e polticas culturais
Para alm dos direitos polticos e dos direitos sociais, nas ltimas dcadas uma nova
categoria vem se estabelecendo como importante conjunto de referncias legais: os direitos
culturais. Eles esto indicados, em nvel internacional, desde a Declarao Universal dos
Direitos Humanos de 1948 e do Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e
Culturais de 1966, e visam garantir a liberdade de expresso, criao e difuso de qualquer
expresso cultural; declaram tambm a necessidade de se garantir educao e formao de
qualidade respeitando a identidade cultural; e defendem a participao de todo indivduo na
vida cultural e a liberdade para o exerccio de suas prprias prticas (Castilho, 2006).
Inserem-se em processos que visam garantir o direito cultura (Meja, 2009) e incidem sobre
quatro fatores: a) possibilidade de participar na vida cultural da comunidade; b) fruio das
artes; c) desfrute dos benefcios do progresso cientfico e d) receber por parte do Estado
proteo jurdica sua criao regime do direito de autor (Meja, 2009, p.109, traduo
minha).
O reconhecimento da importncia desse conjunto de marcos legais, bem como os
processos de transformao poltica e social ocorridos em muitos pases - notadamente no
hemisfrio ocidental - concorreu para a busca de incorporao dos direitos culturais ao
conjunto dos direitos universais de todo ser humano.
Por outro lado, a transmutao de sinal aplicado diversidade cultural, a ser tratada no
Captulo IV, concorre para que novas demandas sejam colocadas visando contemplar o direito
expresso e produo cultural por parte de grupos das mais diversas origens e
representativos de distintos segmentos da sociedade; isso no tem ocorrido sem atritos e
querelas ao contrrio, em nvel mundial os discursos oficiais e as consideraes
diplomticas parecem cada vez menos capazes de estabelecer uma desejada realidade plural,
respeitosa e diversa. Ao mesmo tempo em que a UNESCO nos ltimos 20 anos tem
reconhecido a importncia e a necessidade de propor a discusso sobre o tema da diversidade
(presente em suas conferncias a partir da dcada de 1990) ela o faz em funo de novas
realidades polticas, sociais e culturais que por sua vez geram novos questionamentos,
enfrentamentos e demandas; como parte integrante dos resultados desse processo, publicou
em 2001 a Declaraes sobre Diversidade Cultural.
Em muitos pases, notadamente no hemisfrio norte, questes referentes presena
cada vez maior de contingentes de imigrantes vindos da periferia da Europa bem como do
continente africano, no caso europeu, e da Amrica Latina, em particular, no caso norte-
americano1, tm levado discusso sobre o reconhecimento dos direitos das minorias, e
enfrentam resistncias de importantes setores mais conservadores.
Alm disso, h que se considerar a aceitao do discurso da diversidade e a incluso
deste tema em iderios polticos que no enfrentam a questo em sua profundidade -
considerando seus pressupostos e desdobramentos, mas repetindo uma frmula de
esvaziamento de contedo e dirigindo-se s estratgias de marketing alinhadas a
posicionamentos como de responsabilidade social, cultural etc. e transformando-o
novamente em instrumento de propaganda ideolgica2.
Como se ver adiante, as interaes - e as tenses delas decorrentes - entre sociedade e
Estado tendem a determinar cada vez mais, em ambientes com caractersticas democrticas,
as prioridades e diretrizes que orientam a ao deste ltimo com objetivo de assegurar o
desenvolvimento da nao. Observe-se que o termo escolhido aqui foi nao e no pas,
ou mesmo povo; pois no se trata de propiciar desenvolvimento econmico (para o pas),
nem apenas de garantir melhorias nas condies de vida (do povo). Trata-se de considerar
Que, assim como Israel, j possui sua prpria verso, ao contrrio, do Muro de Berlim: as bizarras cercas impedindo a entrada respectivamente de rabes e latinos.
Exemplo desse processo de busca pela apropriao e utilizao do conceito de diversidade em seu potencial de agregar valor um vdeo institucional realizado por Fernando Meirelles como parte de campanha publicitria do Banco do Brasil. Com produo e roteiro primorosos, aborda justamente questes como a formao multitnica do povo brasileiro, a diversidade resultante desse processo e os desafios da incluso de parcelas expressivas da populao. Aps sete minutos de excelente produo audiovisual na qual o Brasil descrito como uma feira de mistura de raas, apresentada diretamente ao expectador uma questo candente: Quando voc olha para um outro brasileiro, assim bem diferente de voc... quem voc pensa que ele ?. Sintomaticamente a assinatura da pea desvenda a ainda presente diretriz homogeneizante e conciliadora: O Banco do Brasil acredita no valor da identidade (e no: O Banco do Brasil acredita no valor da diversidade). Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=yKG8no8OKDg (acessado em 02/04/2011).
que contingentes populacionais diversos habitam territrios contguos ou mesmo sobrepostos;
que desempenham atividades econmicas (de subsistncia ou no mbito empreendedor) e que
herdam, carregam, transformam e produzem bens simblicos resultantes de sua atuao no
mundo, constituindo-se em uma nao.
Teixeira Coelho apresenta algumas ideias sobre diversidade baseadas em texto
original de Claude Lvy-Strauss (Raa e Histria, encomendado pela UNESCO e publicado
em 1952) que possuem muita atualidade3: muito menos do que buscar garantir a existncia de
determinadas manifestaes culturais especficas de variados e diversos grupos, cabe ao
Estado - e por que no, tambm sociedade? agir para propiciar as condies de existncia
da diversidade, ela prpria; pois no se trata de buscar a preservao destas ou daquelas
manifestaes especficas como contedo da diferena - posto que dinmico e refratrio
preservao- mas de proteger e proporcionar as condies que favoream o surgimento das
mais diversas manifestaes sejam elas quais forem, afastando assim mecanismos ideolgicos
de priorizao e escolha (Teixeira Coelho 2007, p.15).
Dessa forma no cabe mais discutir direitos culturais como direitos individuais apenas
(direito identidade, direito de participar da vida cultural de sua comunidade); para alm
desses, as inmeras facetas da vivncia simblica no devem ser tratadas como guetos, com
resolues e diretrizes especficas a cada um dos inmeros grupos que coabitam determinados
territrios.
Para Meja (2009), o mais coerente abordar a questo do ponto de vista dos direitos
coletivos os direitos da cultura. Essa mudana envolve outra, salientada por Teixeira
Coelho, que diz respeito transformao de territrios culturais em espaos culturais. Os
territrios (concretos ou abstratos), delimitados pelas aes e interaes de determinado
grupo, tm como caracterstica a existncia clara e definida de seus limites, de suas fronteiras;
a partir disso o pertencimento ou no a ele se d tambm de forma clara e definida resultando Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cultura e a Cincia. O texto fazia parte, originalmente, da coleo La question raciale devant la science morderne publicada pela UNESCO em Paris,1952.
na determinao de identidades por processos de excluso: reconhecemo-nos como parte de
um grupo menos por nos reconhecer em seus elementos de organizao e simbolizao e mais
pelas diferenas entre estes e os de outros grupos. A identidade se constri pela diferena,
pela excluso. J os espaos culturais (tambm em verses fsicas ou abstratas) caracterizam-
se por serem abertos e permeveis, em que incidem as transversalidades caractersticas das
sociedades contemporneas articuladas por diversidades cada vez mais complexas.
Nessa perspectiva, a ao do Estado (em interao sempre desejada com a sociedade,
nunca demais repetir) se dirigiria criao de condies para um desenvolvimento muito
mais amplo, posto que contemplando o desenvolvimento humano como base para qualquer
tipo de desenvolvimento econmico e tomando partido da diversidade como seu principal
patrimnio. Desenvolvimento humano que, para ser considerado como tal, necessariamente se
dirige ao (ou mesmo, se pauta pelo) cultural (Teixeira Coelho, 2007).
Polticas pblicas constituem-se em instrumentos que sistematizam e operacionalizam
a ao organizada do Estado (em seus mais variados nveis e em suas mais diversas
representaes) junto a uma determinada realidade. So o resultado da interao entre o
Estado, que detm recursos (materiais e humanos) e legitimidade legal para determinar
prioridades em sua aplicao, e a sociedade civil - que busca influenciar, por meio de
articulaes polticas e sociais, essas decises (Rico, 1998).
Para Bacelar (2003), o Estado brasileiro apresentava, desde o incio do sculo XX at
a dcada de 1980, caractersticas de um Estado realizador, fazedor, muito mais do que um
Estado regulador. No primeiro modelo, de cunho autoritrio e centralizador, as decises
sobre prioridades e destinao de recursos no so fruto de negociao com a sociedade -
nesse contexto forjou-se uma mentalidade desenvolvimentista cujo principal objetivo seria
transformar o Brasil, de economia basicamente agrcola, em um pas industrializado. J no
modelo regulador as escolhas so fruto de negociao com a sociedade civil que, organizada
em suas diversas instncias, apresenta suas demandas e busca influenciar o processo; para a
autora, no temos tradio de Estado que regule, que negocie com a sociedade os espaos
polticos, o que s hoje estamos aprendendo a fazer. O Estado regulador requer o dilogo
entre governo e sociedade civil, e ns no temos tradio de fazer isso (p.02).4
De forma geral, atendem a demandas em setores ou reas circunscritas da sociedade
ao mesmo tempo em que se articulam tambm com objetivos mais amplos; estas duas
dimenses, presentes e consideradas em sua proposio, (idealmente) dialogam entre si.
Rubim (2005) aborda esta questo apresentando estudo das relaes entre atores sociais, redes
culturais e polticas culturais; as tenses e enfrentamentos, caractersticos das dinmicas
sociais, perpassam pelo campo da cultura em um processo por ele chamado de culturalizao
da poltica, ampliando o mbito desta em funo de sua interao cada vez mais presente
com elementos que, de forte significao cultural, tm se inserido no campo do debate
poltico. Para o autor:
Aos tradicionais temas da poltica moderna - tais como: Estado; governos (executivo, legislativo e judicirio); monoplio da violncia legal; direitos civis; liberalismo econmico etc. - a partir do sculo XX so agregadas novas demandas poltico-sociais, muitas delas de teor cultural [...] so temas incorporados ao dia-a-dia da poltica e passam a compor os programas dos partidos polticos e fazer parte das polticas governamentais, sendo, simultaneamente, reivindicados pelos movimentos sociais e pela sociedade civil (Rubim 2005, p.03) 5.
Por exemplo, os excelentes resultados e as novas possibilidades de modelagem de
programas e projetos presentes em experincias da rea de sade so, em ltima anlise,
advindos de uma transformao na percepo do papel e funo do Estado e na qualidade de
No mbito da Cultura, Teixeira Coelho, Isaura Botelho e Antonio Rubim abordam esta importante questo - que ser apresentada mais frente.
Um novo modelo possvel a poltica de sade estabelecida para combater a epidemia do vrus HIV: reconhecida mundialmente como um sucesso, envolveu no apenas as questes especficas de distribuio gratuita de medicamentos e atendimento especializado. Representou uma nova fase em nossas relaes internacionais devido s querelas que resultaram em quebra de patentes e outras tratativas de mbito diplomtico e econmico que se consubstanciaram no reconhecimento do direito de produzir no Brasil, em formato genrico, estes frmacos, com considervel reduo de preos; a par de uma eficiente mobilizao social que conseguiu instituir junto ao Estado as prioridades a serem contempladas, seu escopo abrange a garantia do direito sade (preveno e tratamento), mas tambm o enfrentamento a outras questes como preconceito de gnero e de orientao sexual, e ainda modelos de cooperao internacional a Organizao Mundial do Comrcio acatou, em 2001, proposta brasileira segundo a qual acordos internacionais de comrcio e de propriedade intelectual no podem impedir a implementao de polticas pblicas de sade Poltica Brasileira de AIDS 1994/2002 Principais Resultados e Avanos. Publicao da Biblioteca Virtual em Sade, do Ministrio da Sade. Disponvel em: http://www.bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_94_02.pdf , acessado em 28/06/2011.
suas relaes com a sociedade em toda sua diversidade e complexidade6. De forma geral, as
polticas pblicas levadas a cabo em nosso pas at a dcada de 1980 dirigiram-se, quase que
exclusivamente, no sentido do desenvolvimentismo, confundindo-se mesmo com poltica
econmica: O essencial das polticas pblicas estava voltado para promover o crescimento
econmico, acelerando o processo de industrializao, o que era pretendido pelo Estado
brasileiro, sem a transformao das relaes de propriedade na sociedade brasileira (Bacelar,
2003, p.02). Para a mesma autora,
em muito menor grau, o Estado brasileiro tambm facultou servios sociais, de segurana e justia. O Estado regulador, embora com uma face muito menor do que o Estado realizador, tambm se fazia presente, quando era imprescindvel a seu projeto. Por exemplo, na era Vargas, o Estado interveio para regular a relao trabalho-capital. Quer dizer, no momento em que a opo a industrializao, em que o operariado vai surgindo e em que necessrio definir as regras do jogo entre o trabalho e o capital, o Estado brasileiro aparece com fora (op.cit., p.03).
As transformaes que propiciaram contemplar cultura como objeto de poltica
pblica decorrem de processos externos ao nosso pas que aqui se refletiram e interagiram
com outros, estes internos (ao pas e rea da cultura) e que sero objeto de discusso no
Captulo III. oportuno ressaltar, entretanto, que na atualidade a noo de sua importncia e
necessidade encontra-se, ao menos em discurso oficial, solidamente estabelecida:
Os programas da rea cultural federal tm denominadores comuns relacionados com a garantia de direitos culturais e com a construo da democracia cultural. Em ltima anlise, os direitos culturais tm como objeto o processo de formao dos indivduos, o reconhecimento de suas formas de vida em suas dimenses simblicas e materiais, o enriquecimento de seu repertrio e a ampliao de sua capacidade de ao cultural sobre a realidade (Arajo; Silva, 2010, p.11).
Para Mrcio Pochmann (ex-presidente do IPEA Instituto de Pesquisa Econmica
Aplicada) e Juca Ferreira (ex-ministro da Cultura), nos ltimos anos as polticas culturais
brasileiras ganharam desenhos com contornos desafiadores [...] Atualmente, inegvel que a
cidadania cultural baseada na democracia cultural e nos direitos culturais representa um
dos pilares do Estado democrtico, e que este se apoia nos fortes dinamismos da sociedade
(op.cit, p.07). Ainda que em constante embate com dificuldades estruturais, limites oramentrios e a sempre presente soluo de continuidade por conta da troca de equipes, governos, mandatrios...
Em nvel internacional, um importante marco no sc.XX foi a iniciativa do governo
francs e, mais especificamente, do ento chefe de Estado General De Gaulle de criar em
1959 o Ministrio da Cultura e de convidar para a pasta o escritor Andr Maulraux. Para
Olivier Donnat, sua criao atendia a demandas muito especficas na Frana do perodo ps-
guerra:
Na sociedade do ps-guerra, dos anos 1950 e dos anos 1960, que era uma sociedade ainda muito marcada pela estratificao das classes sociais, a ideia de democratizao teve uma grande fora, pois remetia ao Estado, a essa concepo da cultura e a essa viso da sociedade. por isso que a sua fora foi to grande que ultrapassou, e muito, a distino poltica entre a esquerda e a direita tradicional, j que a gente se encontrava tambm em torno de pessoas com ideias de direita, como era Andr Malraux na poca, e de pessoas do partido comunista que seguiam essa mesma linha na questo da democratizao (Donnat, 2007, p.07).
O projeto foi fundamentado a partir de quatro caractersticas: a) reduo de
desigualdades territoriais, de forma a que residentes nos diversos centros regionais (os
prprios do interior) tivessem acesso a espetculos de msica, teatro e dana, numa viso
de organizao cultural do territrio e do equipamento cultural; b) direcionamento a um
determinado tipo de produo cultural, alinhado a uma viso caracterstica da dcada de 1960
extremamente hierarquizada e universal da cultura. O que importava democratizar, no incio,
era o que podia ser chamado de cultura erudita, cultura escolar, cultura legtima e as artes
maiores, o patrimnio da humanidade, primeiramente as obras da Frana, enfim, as grandes
obras do repertrio cultural universal. ; c) viso idealizada em direo a uma concepo
unitria do pblico, visto como um conjunto geral de indivduos que no procuramos
distinguir. Por trs da noo de pblico, como ela foi pensada nessa poca, est a noo de
povo, o que significa dividir, entre todos os indivduos, esses tesouros da humanidade, o que
representa a cultura; realmente uma viso universal do povo, sem distino dos indivduos
ou de classes; e d) a condio prpria de Malraux enquanto autodidata e apreciador da
experincia direta entre pblico e obra: O sentimento do Malraux era de que seria suficiente
organizar a confrontao do povo com as obras e a revelao iria acontecer. No havia
necessidade de aprendizagem, de educao, de pedagogia. Era suficiente colocar as pessoas
em contato com as obras de arte e assim elas seriam seduzidas, conquistadas, podendo
compreend-las (op.cit, p.08)7.
A partir da dcada de 1960 a UNESCO lanou alguns importantes documentos e
organizou sries de conferncias intergovernamentais:
- em 1966, a Declarao dos Princpios de Cooperao Cultural Internacional;
- em 1968, a Primeira Conferncia Internacional sobre Direitos Culturais;
- em 1970, a Primeira Conferncia Mundial de Polticas Culturais;
- em 1976, a Recomendao sobre a Participao e Contribuio Popular para a Vida
Cultural.
A partir de 1972, como decorrncia das deliberaes da Conferncia sobre Polticas
Culturais de 1970, uma srie de conferncias setoriais foi organizada visando aprofundar
discusses e preparar um novo documento no mbito dos direitos culturais, designados ento
como principal objeto das Polticas Culturais:
- em 1972, em Helsinque;
- em 1973, em Yogiakarta (Indonsia);
- em 1975, em Acra (Gana);
- em 1978, em Bogot (Colmbia);
Estas conferncias setoriais foram preparatrias para a Segunda Conferncia Mundial
sobre Polticas Culturais ocorrida em 1982 na Cidade do Mxico (a Mondiacult); como
resultado desta srie de conferncias, a principal diretriz foi o estabelecimento dos direitos
culturais baseados no direito identidade cultural (como visto na Introduo; mais frente,
sero apresentadas as conferncias realizadas posteriormente pela UNESCO redirecionando
seu objeto de apreciao e proteo).
Ainda hoje na Frana o debate e o questionamento sobre modelos de polticas culturais se apresenta no bojo da discusso sobre as diretrizes de ao do governo e do Estado (recentemente retomado pelo partido socialista) frente a novas e significativas demandas e dificuldades, como atesta a matria Quelle politique culturelle pour la France? veiculada em um dos mais importantes veculos de comunicao franceses. Sintomaticamente, o subttulo traz: Face ao crescimento da Internet e s falhas da democratizao, o modelo francs obrigado a se reinventar (traduo minha). Le Monde, 03/02/2012, pp.20-21.
Canclini afirma a importncia dessas conferncias terem contribudo para o
estabelecimento de uma percepo internacional sobre a impossibilidade de se medir o
crescimento dos pases apenas a partir de sua dimenso econmica; o desenvolvimento
cultural seria tambm tomado como medida de desenvolvimento de toda a sociedade, portanto
necessariamente deveria ser tambm considerado como objetivo a ser alcanado por meio de
polticas pblicas e no pode ser deixado como tarefa marginal de elites refinadas ou
liberado iniciativa empresarial de grandes consrcios comunicacionais (Canclini, 1987,
traduo minha).
Duas publicaes - uma brasileira, outra mexicana - realizadas na dcada de 1980
constituiram-se em importantes estudos sobre polticas pblicas para cultura no Brasil:
- Estado e Cultura no Brasil, a partir de Seminrio organizado por Srgio Miceli em
1982, traz a contribuio de diversos estudiosos e aborda trs questes: Polticas pblicas na
rea cultural; Mecanismos de estatizao da atividade cultural; e Mercados de bens culturais8;
especialmente importante a articulao entre os contedos e anlises presentes nos textos e o
momento poltico de sua produo os ltimos anos do perodo ditatorial que ensejavam,
claramente, expectativas de transformao e mudanas, ao mesmo tempo em que
reconheciam e preconizavam com muita propriedade vicissitudes at hoje presentes em nossa
realidade9.
- Polticas Culturales en America Latina, organizado por Nstor G.Canclini em 1987,
traz contribuies de diversos autores - entre os quais o prprio Canclini, o j citado Srgio
Miceli e tambm Jos Joaquim Brunner. Deste ltimo, cabe destacar a organizao do
Em sua quarta e ltima parte traz dois depoimentos muito interessantes, os de Jos Mindlin (empresrio que assumiu entre 1975 e 1976 a Secretaria de Cultura do Estado de So Paulo) e de Roberto Parreira (ex-diretor da FUNARTE e ento diretor-geral da Embrafilme).
Como exemplo candente, tome-se o texto intitulado Notas sobre poltica cultural no Brasil, de Mario Brockmann Machado; em sua parte final (agenda para debates) prope 16 importantes questes que dizem respeito participao da sociedade nos processos decisrios, melhores formas de fomento, equalizao da presso do eixo Rio-So Paulo sobre outras regies, melhores modelos institucionais para a rea, diretrizes para mecanismos de apoio e financiamento... passados praticamente 30 anos, permanecem absolutamente pertinentes se no por sua irresoluo ou inequao, por sua atualidade e oportunidade.
conceito de circuito cultural, importante formatao conceitual (e que ser apresentado mais
frente).
Nos ltimos 30 anos tem-se realizado, no Brasil, um nmero cada vez maior de
estudos sobre cultura e suas relaes com o Estado (seu papel, suas responsabilidades, suas
atribuies) e a sociedade, como reflexo no apenas da influncia desses eventos e de
documentos internacionais, mas principalmente de sua articulao com os processos sociais e
polticos que vem ocorrendo. Em publicao intitulada Bibliografia sobre Polticas
Culturais no Brasil, realizado em 2006, Rubim lista mais de trs centenas de trabalhos que
abordam o tema de forma central ou a ele fazendo referncia; o mais antigo data de 1963, e a
esmagadora maioria foi escrita a partir da dcada de 1980 (Rubim, 2006).
Se a partir dos anos 1960 a UNESCO dedicou-se identidade cultural como fator de
desenvolvimento e elemento indispensvel concretizao dos direitos culturais -
influenciando diretrizes para a realizao de estudos e para a implantao de polticas
pblicas ao redor do mundo, a partir da dcada de 1990 outro foco se estabeleceu em funo
de transformaes scio-poltico-culturais que propiciaram a incluso do tema da diversidade
em uma agenda mundial de discusses. Assim, em 2001 foi publicada a Declarao Universal
sobre Diversidade Cultural; em seus artigos iniciais ela traz:
Artigo 1 A diversidade cultural, patrimnio comum da humanidade. A cultura adquire formas diversas atravs do tempo e do espao. Esta diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade das identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compem a humanidade. Fonte de intercmbios, de inovao e de criatividade, a diversidade cultural to necessria para o gnero humano como a diversidade biolgica para os organismos vivos. Neste sentido, constitui o patrimnio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefcio das geraes presentes e futuras. Artigo 2 Da diversidade cultural ao pluralismo cultural. Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas torna-se indispensvel garantir uma interao harmoniosa e uma vontade de conviver de pessoas e grupos com identidades culturais ao mesmo tempo plurais, variadas e dinmicas. As polticas que favorecem a integrao e a participao de todos os didados garantem a coeso social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta poltica ao feito da diversidade cultural. Inseparvel de um contexto democrtico, o pluralismo cultural propcio aos intercmbios culturais e aos desenvolvimento das capacidades criadora que alimentam a vida pblica.
Artigo 3 - A diversidade cultural, fator de desenvolvimento A diversidade cultural amplia as possibilidade de escolha que se dirigem a todos; uma das fontes do desenvolvimento, entendido no somente em termos de crescimento econmico, como tambm como meio de acesso a uma existncia intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatria.
Como reflexo das dinmicas que culminaram com a inverso de sinal valorativo
aplicado diversidade cultural, esta Declarao amplia consideravelmente o espao de
incidncia das polticas pblicas e indica uma necessria reviso de diretrizes, alm de
reconhecer, tambm, que o desenvolvimento deve contemplar diversas outras dimenses alm
da econmica. Porm, uma leitura que considere tambm as entrelinhas chama a ateno para
a ordem em que estas dimenses so consideradas: ainda que agora tida como importante, a
dimenso cultural aparece no como imperativo para uma nova ordem de desenvolvimento,
mas como complementar a uma ordem ainda solidamente estabelecida: ... no somente em
termos de crescimento econmico, como tambm....
Dessa forma, os debates e reflexes sobre a importncia, a abrangncia, a pertinncia e
a eficcia de polticas culturais tm se intensificado e diversificado quanto aos temas e objetos
de anlise. Em 2004 foi publicado o Dicionrio Crtico de Poltica Cultural, de Teixeira
Coelho, importante obra que se dirigiu ao estabelecimento de marcos conceituais e referncias
terminolgicas, pois, para o autor,
...a terminologia da poltica cultural tem flutuado, acaso excessivamente, por cima de uma rede terica cujas malhas se mostram abertas demais e deriva de emprstimos ocasionais obtidos junto a diferentes disciplinas, como sociologia, economia, histria, psicologia, antropologia. Essa composio heterclita tem aspectos e conseqncias produtivos. Por outro lado, as ambivalncias e hesitaes semnticas provocam, s vezes, no tanto a errncia criativa, mas o impasse ou o retardamento terico. Esta situao mostrou contornos mais ntidos medida que a poltica cultural comeou a foraras portas no raro aferrolhadas da universidade e a surgir de maneira insistente em congressos, simpsios e seminrios. Quando se fala em cultura, em poltica cultural, de que exatamente se est falando? O modo como os artistas entendem a arte o mesmo com o qual trabalham os programas de poltica cultural? E um termo como pblico, por exemplo, tem em poltica cultural o mesmo sentido que assume nos estudos de histria ou nos clculos probabilsticos dos produtores cinematogrficos? O sistema de produo cultural guarda exatamente quais parentescos com o sistema de produo tal como a economia e a economia poltica o vem? As discordncias - e, antes mesmo, as hesitaes proliferaram (Teixeira Coelho, 2004, pp.09-10).
oportuno, portanto, discorrer sobre a amplitude e algumas aproximaes definio
do conceito de poltica cultural. Em seu Dicionrio10 Teixeira Coelho diz que
a poltica cultural entendida habitualmente como programa de intervenes realizadas pelo Estado, instituies civis, entidades privadas ou grupos comunitrios com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da populao e promover o desenvolvimento de suas representaes simblicas. Sob este entendimento imediato, a poltica cultural apresenta-se assim como o conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produo, a distribuio e o uso da cultura, a preservao e divulgao do patrimnio histrico e o ordenamento do aparelho burocrtico por elas responsvel. Essas intervenes assumem a forma de:
1. normas jurdicas, no caso do Estado, ou procedimentos tipificados, em relao aos demais agentes, que regem as relaes entre os diversos sujeitos e objetos culturais; e
2. intervenes diretas de ao cultural no processo cultural propriamente dito (construo de centros de cultura, apoio a manifestaes culturais especficas, etc.) (op.cit, p.293).
Ressalta, portanto, um aspecto muito importante presente tambm no texto de Canclini
(1987) e em diversos outros autores11: a participao na organizao e aplicao de polticas
culturais no - ou no deveria ser - competncia exclusiva do Estado.
Para Canclini, prevalecia (na segunda metade da dcada de 1980) uma tendncia de
concentrao da prtica poltica junto ao Estado, e os estudos sobre o tema concentravam-se
prioritariamente nas aes dos governos. Porm, a atuao crescente de grandes empresas
nacionais e estrangeiras no campo cultural, bem como a participao tambm crescente da
sociedade civil organizada nos processos de democratizao em vrios pases, mostram a
necessidade de estender a problemtica das polticas culturais ao conjunto de aes
desenvolvidas por grupos e instituies que intervm nesta rea (op.cit. p.19).
Em documento do IPEA12 publicado em 201013, na apresentao dos conceitos e
critrios envolvidos para a avaliao de um programa realizado pelo MinC, afirma-se:
10 Declaradamente crtico, pois: Para faz-lo percorreu-se trs universos bibliogrficos distintos: primeiro, o da literatura que trata especificamente do tema (relatrios tcnicos de organismos culturais, leis, atas de congressos, ensaios e teses de especialistas); depois, a esfera de uma literatura imediatamente conexa (ensaios de sociologia da cultura, tratados de antropologia cultural, compndios de histria da cultura); e, finalmente, um ltimo crculo mais vasto que poderia ser denominado "de irrigao" (tratados de semitica, filosofia, psicanlise). O trajeto pelo primeiro universo garante um acompanhamento prximo do domnio concreto e palpvel (para no dizer objetivo) da poltica cultural. Mas est claro que a partir do segundo crculo tratou-se de uma opo cada vez mais singular, menos evidente, medida que se caminha para a esfera exterior No possvel ser de outro modo, neste campo. Possvel talvez seja, ao preo porm de ocultar-se a particularidade do enfoque ou de deixar-se obnubilar por uma falsa conscincia. Preferiu-se adotar aqui, explicitamente, o vis inevitvel em poltica cultural que tomar partido (p.11) 11 Miceli (1984), Ortiz (1985), Botelho (2001), Rubim (2005), Meja (2009).
Em primeiro lugar, deve-se responder a uma questo bsica: o que fazer poltica cultural? No se trata de pergunta retrica, e respond-la, pelo menos em parte, permite delimitar especificidades do desenho e dos dinamismos singulares deste tipo de poltica comparativamente a outras, cujos objetos e objetivos so mais padronizados, homogneos e claramente definidos... Em geral, verificam-se confuses a respeito da cultura como objeto de poltica. Ainda comum se dizer ou ouvir que a cultura no deve e no pode ser administrada, que a interveno ou planejamento so impossveis... De fato, a confuso tem uma razo, que decorre da fluidez dos processos culturais e da ideia de que a cultura deve ter autonomia em relao ao campo administrativo, aos mercados e ao cotidiano das comunidades, em geral tradicionais e pouco permeveis criatividade (Arajo; Silva, 2010, p.12).
Apesar da destacada fluidez dos processos culturais, o mesmo documento prope
que as unidades de anlise das polticas culturais devem se relacionar capacidade de
incentivar, multiplicar, consolidar e reconhecer circuitos culturais14, articulando-os e
coordenando-os em diferentes escalas (op.cit, p.12). Tratando-se de um documento de
avaliao de um programa federal de apoio e incentivo a prticas culturais, o escopo de sua
conceituao naturalmente de dirige mais especificamente s aes empreendidas no mbito
estatal o que no invalida sua percepo da complexidade e dinamismo das vrias realidades
brasileiras bem como o cuidado devido ao tratamento dessa questo.
Botelho contribui para a discusso, abordando algumas caractersticas importantes
para o estabelecimento de modelos e parmetros de organizao de polticas pblicas para
cultura:
Sabe-se que uma poltica pblica consequente no se confunde com ocorrncias aleatrias, motivadas por presses especficas ou conjunturais; no se confunde tambm com aes isoladas, carregadas de boas intenes, mas que no tm consequencia exatamente por no serem pensadas no contexto dos elos da cadeia criao, formao, difuso e consumo. Ou seja, uma poltica pblica exige de seus gestores a capacidade de saber antecipar problemas para poder prever mecanismos para solucion-los. Ter um planejamento de interveno num determinado setor significa dar importncia a ele, e no, como parecem acreditar alguns, cometer uma ingerncia nos contedos da produo. Significa, isto sim, o reconhecimento, por parte dos governantes, do papel estratgico que a rea tem no conjunto das necessidades da nao (Botelho, 2001, p.15).
Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada, fundao pblica vinculada Secretaria de Assuntos Estratgicos das Presidncia da Repblica. Tem por objetivos fornecer suporte tcnico e institucional s aes governamentais e disponibilizar, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados.
Araujo; Silva (org). Cultura Viva avaliao do programa Arte, Educao e Cidadania. Braslia, IPEA, 2010.
Principal referncia conceitual deste volume, o termo Circuito Cultural - como proposto por Brunner ser apresentado de detalhado mais frente.
A autora apresenta tambm uma anlise da aplicao de polticas culturais
considerando as duas dimenses da cultura segundo Brunner antropolgica e sociolgica,
que determinam abordagens distintas sobre a funo e o modelo de poltica pblica a ser
implementada. A dimenso sociolgica diz respeito s atividades organizadas socialmente e
reconhecidas como artsticas e organizadas em sistemas de produo, difuso e recepo bem
definidos; a dimenso antropolgica se refere s construes (individuais e coletivas) que
formam referncias mais amplas (valores, costumes, tradies que propiciam identidades,
territrios e bens simblicos compartilhados) perpassa todas as experincias que o
indivduo, enquanto unidade e tambm integrante de determinados coletivos, vivencia, e que
propiciam as referncias a partir das quais se dar sua relao com o mundo.
Para ela o estabelecimento de polticas culturais abrangentes e de maior potencial
transformador enfrenta alguns desafios: ao ampliar o escopo de sua ao, dirigindo-se ao plo
antropolgico das dinmicas culturais, deparam-se com a necessidade de articulao com
outros campos educao e sade, por exemplo, o que por um lado dificulta a conceituao
de seus limites e espaos de interao e por outro expe a fragilidade das relaes entre as
diversas reas de atuao do Estado (leia-se, aqui, tambm governo, como entidade
personalizada que o representa), nas quais a disputa por fatias do oramento total se
sobrepem, correntemente, a iniciativas de articulao. H que se lembrar tambm a
inexistncia de uma tradio de abordagens sistmicas, pois mesmo quando termos como
multi/inter/transdisciplinaridade so utilizados, referem-se quase sempre a especialidades
dentro de um mesmo campo15.
Dessa forma, retorna-se s colocaes iniciais deste captulo: a conceituao e
implantao de polticas pblicas devem contemplar, cada vez mais, as transformaes pelas
quais vem passando as relaes entre Estado e Sociedade, e particularmente aquelas ocorridas
15 Olivier Dannat (2007) relata problemas semelhantes que, em sua opinio, ainda ocorrem na Frana: Acredito que esse um problema que podemos encontrar em outros lugares. O Ministrio da Cultura francs foi criado em desacordo com o Ministrio da Educao Nacional. Ento, sempre houve uma relao difcil entre os dois ministrios, o que explica que todos os planos de Educao Artstica e Cultural na escola tiveram muita dificuldade para serem instaurados com os crditos necessrios e sua eficcia ainda no foi verificada.
em seu seio. Ainda, estas transformaes - alterando a percepo da funo da cultura junto s
realidades cada vez mais profundamente caracterizadas pela diversidade e transversalidade -,
ensejam abordagens que correspondam a estes novos contextos, plenos de novas expectativas.
Por conta disso, consolida-se uma percepo da necessidade de contemplar estas
novas demandas, resultantes dos processos acima citados. Teixeira Coelho aponta a
oportunidade (e ressalta a necessidade) de novas aproximaes que possibilitem atualizar
conceitos e prticas:
No campo das Humanidades, as idias por vezes andam depressa demais e, no raro, muito devagar. O que era bom, conveniente, pertinente ou eficaz num determinado momento e sculo no raro continua a ser considerado bom, conveniente, pertinente ou eficaz um sculo depois, quando as condies de vida no mundo j se alteraram e por vezes enormemente. As necessidades, os desejos, os imaginrios so outros no entanto, as idias que deveriam responder a umas e outros seguem muito frequentemente sendo as mesmas, em muitas partes do mundo. Isso verdadeiro quando o tema poltica cultural (Teixeira Coelho, 2007, p.09).
Essa nova percepo se estrutura em trs eixos:
- a centralidade da cultura como conceito-chave (Silva, 2007) para o entendimento de
nossas novas realidades em suas constantes transformaes e reconfiguraes; o
reconhecimento de que a antiga frmula pela qual o desenvolvimento econmico-
social levaria a um desenvolvimento cultural j no satisfaz sociedade, como bem
observou Teixeira Coelho. Na verdade, o pensamento oposto parece muito mais
pertinente: s se poder atingir um desenvolvimento econmico sustentvel a partir do
desenvolvimento humano, no qual Cultura surge como seu principal elemento (ver
Introduo).
- no bojo do processo chamado por Rubim de culturalizao da poltica a sociedade
no apenas apresenta e valida novas demandas como tambm busca participar
ativamente na conceituao e estruturao de aes pelas quais se busca atend-las; e,
num passo alm, participa ativamente dessas aes em direo apropriao de
contedos e processos que at h pouco tempo encontravam-se exclusivamente sob a
gide do poder pblico.
- a considerao da diversidade cultural como realidade e como patrimnio. Por um
lado reconhecendo as mltiplas manifestaes oriundas dos campos eruditos,
tradicionais e populares massivos como igualmente vlidas e expressivas de contedos
simblicos que perpassam fronteiras anteriormente confortveis e estveis; e por outro
tratando-a como repositria de nosso mais importante potencial de desenvolvimento
cultural.
Cabe aqui lembrar algumas das importantes consideraes de Lvi-Strauss feitas em
1952 sobre o papel e a funo da diversidade cultural para nosso mundo. Em primeiro lugar,
critica de forma premonitria a noo de civilizao mundial que poca iniciava sua
trajetria de insero no imaginrio de diversas culturas e que hoje se encontra instalada sob o
prisma da globalizao; para Lvy-Strauss ela no gozava do mesmo coeficiente de
realidade, pois no se referia a um grupo determinado ou a uma poca precisa: utilizamos
uma noo abstrata, a que atribumos um valor moral ou lgico. As contribuies das
diversas culturas no poderiam ser homogeneizadas em favor de uma forma vazia, pois isso
equivaleria a empobrec-las singularmente, esvazi-las da sua substncia e conservar delas
apenas um corpo descarnado (Lvy-Strauss, 1976, p.90). Em segundo defende a extrema
importncia do processo de coligao entre culturas (que em seu entendimento se distingue
drasticamente da noo homogeneizante de civilizao mundial) para o progresso cultural
da humanidade; e que esse processo expressa um contraditrio para ele insolvel: para
progredir, necessrio que os homens colaborem; e no decurso desta colaborao eles vem
gradualmente identificarem-se os contributos cuja diversidade inicial era precisamente o que
tornava a sua colaborao fecunda e necessria (p.92). Ainda assim acredita na importncia
de um processo que possa tanto respeitar as particularidades de cada cultura como garantir
que nenhuma delas estenda sua influncia sobre todas as outras, e que uma humanidade
confundida num gnero de vida nico inconcebvel, porque seria uma humanidade
petrificada (p.93).
Disso resultam mudanas em pressupostos que orientam a concepo, formatao e
aplicao de polticas culturais que possam se articular e interagir com essas novas dinmicas.
Assim, faz sentido considerar que a sociedade deve no apenas participar na articulao e
determinao de prioridades e escolhas, mas tambm cabe a ela -em suas mais diversas
representaes, nos campos da criao, produo e difuso- satisfazer as necessidades
culturais da populao e promover o desenvolvimento de suas representaes simblicas,
nas palavras de Teixeira Coelho (2004, p.293).
Os espaos privilegiados nos quais as dinmicas culturais ocorrem, e a partir dos quais
podem ser organizadas as Polticas Culturais, so os Circuitos Culturais - assim nomeados por
J. Brunner (1987) em trabalho publicado no volume Polticas Culturales en America Latina
(organizado por N.Canclini e j citado acima). Neles, o autor busca identificar quais seriam os
agentes, sujeitos das aes culturais, e as diversas instituies que articulam essas aes. Os
circuitos culturais so o locus privilegiado no qual ocorrem os processos de criao, difuso e
fruio de contedos simblicos.
Essas noes, entre outras, orientaram a organizao do Frum Universal das
Culturas, realizado pela primeira vez na cidade de Barcelona em 200416. A partir de iniciativa
de diversas instituies locais em articulao com a Fundao Frum Universal das Culturas,
com apoio da UNESCO e muitas outras entidades e mesmo grandes corporaes17, durou
mais de trs meses e recebeu mais de trs milhes de visitantes. Consolidou-se como espao
de discusso e encaminhamento de importantes pautas em suas edies j realizadas em
Monterrey (Mxico) em 2007 e Valparaso (Chile) em 2010; a primeira edio teve como um
de seus resultados a divulgao da Agenda 21(Barcelona 2004) Cidades e Governos locais O stio oficial do evento traz as informaes: El 27 de mayo de 1999 se constituy el Consorcio Organizador del Frum Universal de las Culturas Barcelona 2004, entidad que se encarga de la preparacin, gestin y organizacin de los actos del ao 2004. Integrado a partes iguales por el Ayuntamiento de Barcelona, la Generalitat de Catalunya y la Administracin General del Estado, el Consorcio se rige mediante tres rganos de gobierno la Asamblea General, el Consejo de Administracin y la Comisin Permanente, constituidos de forma paritaria por representantes de las tres administraciones. ; disponvel em http://www.barcelona2004.org/www.barcelona2004.org/esp/quees/organizacion.htm , acessado em 08/07/2011.
Toyota, Grupo Telefonica, El Corte Ingles etc.
como importantes agentes de articulao de polticas culturais18. Com participao de
representantes de todo mundo, o documento afirma em seus princpios que A diversidade
cultural o principal patrimnio da humanidade, e constitui um dos elementos essenciais de
transformao da realidade urbana e social.
Sintomaticamente, alguns dos princpios reafirmam o papel do universo da cultura
como importante articulador de processos de desenvolvimento agora, sustentvel; como
promotor, por meio da diversidade e tolerncia, de condies para a paz, agregando ainda
mais (e certamente, antigas) demandas sua aparente infindvel capacidade de processar e
transformar dinmicas e sociais. Desse novo contexto decorrem - ao menos, e no mbito dos
objetivos deste trabalho - duas questes:
- o papel e o lugar das polticas pblicas levadas a cabo pelos poderes locais, mais
diretamente ligadas vida cotidiana das populaes; e
- a reafirmao do processo de inverso de sinal valorativo aplicado diversidade
cultural presentes nos espaos culturais e cada vez menos nos territrios culturais.
Enquanto estes delimitam a circunscrio de ao de determinados contedos e
expresses caractersticos de um grupo (portanto, dirigindo-se ao plo das
identidades), aqueles caracterizam as transversalidades que incidem, das mais variadas
direes, sobre um mesmo espao cruzando-o simultaneamente e criando a
possibilidade de interferncias mtuas portanto, dirigindo-se ao plo da diversidade.
Sobre a primeira, mantm-se os pressupostos aqui j apresentados: participao da
sociedade em estratgias de articulao, apresentao e certificao de demandas, somando-se
a essas a possibilidade sempre desejada de participao efetiva em aes que, buscando
garantir as condies no apenas para o exerccio individual dos direitos culturais, como
tambm na direo dos direitos coletivos representados basicamente pelo direito
manuteno de identidades coletivas e de sua interao sempre dinmica junto a outras
Disponvel em http://blogs.cultura.gov.br/cnc/agenda-21/ , acessado em 08/07/2011.
culturas e tradies, possam refletir com cada vez menos atraso (na viso de Teixeira Coelho)
as transformaes da sociedade.
Quanto segunda, novos desafios tambm se colocam: como encarar a crescente
importncia dada diversidade cultural sem cair no esvaziamento de seu verdadeiro carter,
como salientou Lvi-Strauss, culminando em sua utilizao pragmtico-ideolgica (vinda de
que direo for); como lidar com a constatao de que os liames sociais tornam-se cada vez
mais esgarados - com a economia e a religio j no oferecendo mais condies para mant-
los entrelaados, e que cultura, via diversidade cultural, so atribudas novas e complexas
solicitaes (Teixeira Coelho, 2008) 19.
Essa constatao foi muito bem estabelecida em seu texto A Cultura e seu Contrrio: ...E, como j se torna frequente dizer, quando nada mais funciona como cimento da vida poltica (a polis) ou da vida civil (a civitas), recorre-se cultura em desespero de causa. o que acontece agora: espera-se que a cultura mantenha o tecido social, a (rala) trama ideolgica restante... e a (dbil) costura econmica (pp.09-10).
CAPTULO II
Circuitos Culturais, e o Canto Coral como um Circuito Cultural
Conforme exposto no primeiro captulo, os Circuitos Culturais constituem-se no locus
de organizao e realizao das prticas culturais, sendo o objeto por excelncia das polticas
pblicas para cultura. Teixeira Coelho identifica circuito cultural como universo em que
circula determinado modo cultural (2004 p.92); por sua vez, considera modo cultural como
forma particular de manifestao de uma cultura. Modo designa o tipo de uma manifestao cultural: o cinema um modo cultural, assim como o teatro, a pintura, a dana, uma manifestao folclrica, o livro, a arquitetura, etc. em outras palavras, modo a disposio particular da expresso cultural num meio determinado (op.cit.p.260).
A relao entre modo e circuito tal que estes podem estar circunscritos a um
determinado territrio ou segmento cultural, ou mesmo perpassar diversos deles (no caso da
difuso generalizada proveniente da comunicao de massa, por exemplo); dessa forma, a
noo de circuito busca identificar os caminhos pelos quais uma determinada manifestao se
constitui, se realiza, difundida e recebida/consumida.
Pode tambm ser entendido como
um conjunto compreendendo agentes produtores, meios de produo (tecnologia, recursos econmicos), produtos culturais, agentes distribuidores, dispositivo de troca e pblico, alm de instncias organizacionais relativas a todos ou maior parte desses componentes (agncias financiadoras, produtores privados, rgos pblicos de controle e estmulo, escolas de formao, etc.) (op.cit. p.260).
Nesse sentido as diversas prticas do Canto Coral podem ser consideradas na categoria
de modo cultural; e as aes decorrentes das condies de sua realizao e difuso, bem como
as caractersticas de atuao e interao dos diversos agentes envolvidos constituem-se nas
bases de funcionamento de um Circuito Cultural que agrega e articula todas elas.
A adoo deste conceito (circuito cultural) para abordar as diversas manifestaes
expressivas e a forma de funcionamento das prticas corais baseia-se nos seguintes fatores:
- como exposto acima, alinha-se bibliografia existente sobre poltica pblica
para cultura, que o reconhece como estrutura de organizao a partir do qual
se d a criao de sentido de determinada manifestao cultural;
- ele permite agregar a noo de direcionalidade (pelos espaos em que circulam
os contedos e bens simblicos), encaminhando a orientao dos processos
de criao de sentido a partir das aes dos diversos agentes produtores e
bem assim como das instncias organizativas;
- articula, junto a si, a noo de modo cultural que possibilita abranger duas
dimenses interdependentes: da manifestao em si (o Canto Coral) e de suas
possibilidades de realizao (as prticas corais), como modo; e das
estratgias, ferramentas, espaos e processos utilizados em sua produo,
difuso e recepo como circuito; dessa forma articula os plos de
produo e recepo, permitindo analisar a circulao de contedos entre
eles;
- refere-se em sua constituio e aplicao dimenso sociolgica da cultura
conforme apresentada por Brunner e Botelho (2001), contemplando assim
aquelas manifestaes culturais sistematizadas e organizadas a partir do
pressuposto de circulao de contedos simblicos junto a um pblico
determinado e com determinado resultado esttico preparado especificamente
para isso.
Dessa forma, o arcabouo conceitual empregado neste trabalho engloba
instncias de realizao em sua natureza intrnseca (modo cultural); os espaos, modos,
ferramentas e estratgicas de realizao e difuso (circuito cultural); e a natureza de sua
dimenso cultural (dimenso sociolgica).
Outros conceitos podem ser empregados para estudo e anlise de processos e
fenmenos culturais; dentre eles o conceito de campo cultural desenvolvido por Pierre
Bourdieu, que alcanou grande interesse entre diversos estudiosos. Ocorre que, apesar de sua
validade como instrumento de abordagem e anlise, direciona sua ateno s relaes de
poder e influncia entre os diversos agentes de um determinado campo, assim determinado
verdadeiramente como uma arena em que se do os embates entre os diversos integrantes (do
campo). Em que pese a importncia desse tipo de anlise, o fato de estudarmos aqui no
exatamente uma nica manifestao, mas diversas de suas variantes que se entrecruzam em
processos de interdependncia e influncias cruzadas, aliado ao fato de partir do ponto de
vista da ao do Estado sobre uma determinada realidade cultural - a poltica cultural, que se
baseia em sua interveno em universos j denominados circuitos culturais, como detalhado
acima, determinaram a escolha entre os dois conceitos.
Cabe ressaltar que Canclini, em seu livro Culturas Hbridas, faz referncia ao
conceito de campo quando deseja ressaltar os estudos sobre a independncia alcanada na
modernidade pelo campo da cultura, momento no qual conseguiu se estabelecer como
espao autnomo dentro da estrutura social (1997, p. 35) dessa forma, permeia a
circunscrio das manifestaes culturais e mesmo que no diretamente auxilia a definir um
certo olhar espacial na figura do campo; de outra parte, Canclini tambm enfatiza as
limitaes desse conceito quando de sua aplicao reestruturao que sofrem as formas
clssicas do culto (as belas-artes) e dos bens populares ao serem redimensionados dentro da
lgica comunicacional estabelecida pelas indstrias culturais (op.cit., p.42).
O aprofundamento da categorizao dos circuitos culturais segue abaixo, e a discusso
sobre a validade para sua aplicao ampliada s prticas corais como um circuito cultural
hbrido ou aberto - encontra-se no Captulo V. Brunner (1987, p.178) prope uma tipologia
dos circuitos culturais em funo dos agentes envolvidos e das instncias organizativas das
aes. Os agentes so classificados em: produtores profissionais, empresas privadas, agncias
pblicas e associaes voluntrias; as instncias organizativas so divididas entre mercado,
administrao pblica e comunidade, gerando o seguinte quadro:
Produtores
profissionais Empresas Privadas
Agncias Pblicas
Associaes Voluntrias
Mercado 1.1 2.1 3.1 4.1
Administrao Pblica
1.2 2.2 3.2 4.2
Comunidade 1.3 2.3 3.3 4.3
1.1 Circuitos de Produtores Profissionais para o Mercado: este tipo de circuito
considera os agentes culturais que, individualmente ou integrados a um grupo, produzam bens
culturais de forma independente, em relao com alguma instncia do mercado.
1.2 Circuitos de Produtores Profissionais no mbito da Administrao Pblica: a
produo deve estar a cargo de instncias e organizaes estatais, que tm em seus quadros os
profissionais criadores e realizadores. Aqui se concentram os corpos artsticos (considerados)
estveis das administraes pblicas, como em So Paulo o Coral Paulistano, o Coro da
OSESP, o Corpo de Baile Municipal etc.
1.3 Circuitos de Produtores Profissionais em instituies comunitrias: poca da
realizao do texto (segunda metade da dcada de 1980) este tipo de circuito foi caracterizado
por Brunner como espordicos, intermitentes, pois o produtor profissional no pode
organizar estvel e continuadamente sua ao com base um uma prtica inspirada em valores
e regulada solidariamente (op.cit., p.184). Hoje, no entanto, a realidade se apresenta
modificada: a constituio, no seio da sociedade, de instncias organizativas cada vez mais
slidas e disseminadas (associaes, instituies e demais organizaes do chamado terceiro
setor) conferem capacidade de ao regular por parte dos produtores profissionais1,
contemplando tambm diversos modelos de prticas corais.
2.1 Circuitos privados organizados pelo Mercado: talvez o mais caracterstico dos
circuitos culturais, que compreende a indstria cultural em suas mais variadas ramificaes;
2.2 Circuitos privados organizados pelo Estado: aqui se configuram as realizaes
de empresas privadas de comunicao destinadas ao Estado (campanhas institucionais e
mesmo produes audiovisuais)2.
Como por exemplo a atuao de regentes corais frente de grupos formados nesses tipos de organizaes. Eu prprio, por mais de dois anos, atuei junto ao CORA (Centro Oncolgico de Recuperao e Apoio).
Um exemplo a produo, pela O2 (produtora paulista que tem como scio o diretor Fernando Meirelles), de programa encomendado pelo Banco do Brasil tratando do tema da identidade cultural e citado no Captulo I.
2.3 Circuitos privados organizados comunitariamente: novamente aqui Brunner
reconhecia, poca, espaos pouco definidos ou incidentes, segundo ele marginal dentro das
operaes regulares de uma empresa (p.184). Nos ltimos anos, porm, novas articulaes
entre o ambiente corporativo e a sociedade foram sistematizadas (Ita Cultural e os editais
culturais da Natura, por exemplo), extrapolando a dimenso da distribuio (Espao Unibanco
de Cinema) e construindo espaos de discusso, reflexo e incentivo produo. Neste caso
podem tambm ser inscritos os grupos corais de empresas nos mais diversos ramos de
atuao: a maioria das corporaes no dispe de recursos humanos capacitados a lidar com
questes de produo e difuso cultural (afora aquelas cuja rea de ao seja inerente a elas) e
a atividade normalmente vista como um benefcio aos funcionrios, de carter voluntrio.
Assim, quase sempre os grupos corais formados nesse mbito tm uma relativa liberdade de
organizao interna (propostas de repertrio, agendas de apresentao, organizao interna
das atividades).
3.1 Circuitos de administrao pblica voltados ao mercado: alguns casos de
editoras oficiais que, apesar da ateno a reas de interesse nem sempre cobertas pelas
editoras privadas, tm entre suas prticas a observncia s condies de mercado.
3.2 Circuitos pblicos de produo organizados pela administrao pblica: a
produo regulada, organizada e muitas vezes mesmo encomendada ou realizada por
agentes pblicos. Iniciativas de produo cultural destinadas especificamente difuso
subsidiada e no diretamente afeita s condies do mercado aqui, esporadicamente
observa-se a presena de prticas corais (por meio de editais e outros processos de escolha
pblica para programaes em espaos oficiais).
3.3 Circuitos pblicos de produo organizada comunitariamente: Brunner
reconhece a pequena representatividade desta subcategoria, situada especialmente em casos
de grande concentrao de poder poltico ou de estados no laicos, por exemplo.
4.1 Circuitos de associaes comunitrias/voluntrias que operam para o mercado:
compostos por agentes coletivos, normalmente no profissionais que buscam atender s
demandas e condies do mercado visando seu sustento, ou mesmo a ampliao da
distribuio de seu produto/servio.
4.2 Circuitos de associaes comunitrias/voluntrias organizadas por agncias
pblicas de administrao: aqui cabem as aes oficiais de apoio a atividades realizadas pelas
comunidades no que diz respeito sua organizao, sistematizao e mesmo distribuio
como no caso da vasta produo cultural resultante do programa Cultura Viva levado a cabo
pelo MinC entre 2003-2010, que contemplou algumas iniciativas corais.
4.3 Circuitos de associaes comunitrias/voluntrias organizados
comunitariamente: outro caso muito caracterstico, tpico dos grupos artsticos populares que
atuam localmente, operando fora das condies de mercado e sem a presena de aes oficiais
de fomento.
Brunner reconhece trs desses circuitos como puros:
- Circuitos privados de produo industrial para o mercado;
- Circuitos pblicos de produo organizada pela administrao pblica;
- Circuitos de associao voluntria organizados comunitariamente.
Seriam o resultado de processos e contextos sistematizados no mbito do Mercado, do
Estado e da Sociedade Civil, e poderiam ser alinhados a conjuntos de referncias e valores
prximos queles presentes em cada um deles, j tratados anteriormente: a) todo o conjunto
de produtos culturais caractersticos da lgica da indstria cultural, portanto voltado
conquista de mercados; b) um segundo conjunto de contedos e referncias culturais
certificados oficialmente como aqueles que devem ter sua presena preservada e at a
dcada de 1970, portadores das caractersticas identitrias da cultura oficial; e c) modos
culturais de representao simblica caractersticos das tradies populares.
No caso das prticas corais, observa-se variedade significativa em suas formas de
organizao, manuteno, produo e difuso, perpassando alguns dos modelos prescritos por
Brunner conforme anotado acima. Cabe ressaltar, entretanto, que no mbito das instncias
organizativas sua presena junto instncia representada pelo sistema de mercado
praticamente nula. A realizao coral, em que pese sua grande capacidade de aglutinar aes e
participaes coletivas (e quem sabe, talvez por conta mesmo disso), no tem espao de
representao junto instncia que articula uma certificao valorativa das mais significativas
em nossa sociedade. No se equipara s prticas artsticas baseadas na lgica da indstria
cultural, no se reveste de caractersticas que lhe permitam acessar espaos de distribuio e
difuso mais amplos por meio dos mecanismos normalmente utilizados por ela.
Considerando as caractersticas das interaes entre agentes e instncias organizativas
e entre estes e as funes de produo, difuso e consumo em cada tipo de circuito, pode-se
chegar a uma anlise das necessidades a serem contempladas e das abordagens utilizadas para
enfrent-las. Como pontos de partida para a organizao de polticas culturais e no(s) qual(is)
se espera incidir, os componentes constitutivos dos circuitos culturais so apresentados da
seguinte forma:
- agentes; - meios de produo: a) base tecnolgica;
b) propriedade dos meios; e c) organizao agente/meio.
- canal de comunicao: a) condicionamento tecnolgico; b) acesso de agentes; e c) acesso de pblicos. - pblicos; - instncias institucionais de organizao (op.cit., p.188).
As polticas pblicas para cultura, uma vez tendo por atribuio a ao junto aos circuitos
culturais (IPEA, 2010, pp.16-17)3, podem incidir:
"Os circuitos culturais referem-se a processos de diferentes naturezas (poltica, social, econmica) e coordenao de aes, quando objeto de poltica" e so caracterizados "pela capilaridade, mobilidade, descentralizao e multiplicidade em suas articulaes e interdependncias" (p.16). ...
a) sobre a dimenso dos agentes culturais: outorga de licenas, apoios e subsdios
visando o fortalecimento ou um relativo equilbrio na atuao dos diversos agentes;
b) sobre a dimenso das instncias organizativas: que se direcionem noo de
empoderamento por parte das instncias associativas/comunitrias; que busque regular
a ao das empresas privadas; ou ainda no sentido de introduzir formas de
representao e participao social nas esferas de ao oficial (como por exemplo o
recente processo de instalao de Conselhos Municipais das mais diversas reas,
notadamente os Conselhos Municipais de Poltica Cult
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