7º Encontro Anual da ANDHEP - Direitos Humanos, Democracia e
Diversidade
23 a 25 de maio de 2012, UFPR, Curitiba (PR)
Grupo de Trabalho: Mundialização, Tensões e Direitos Humanos
MIGRAÇÕES AMBIENTAIS E DIREITOS HUMANOS: O DISCURSO
DA MÍDIA DE MASSA E OS HAITIANOS NA AMAZÔNIA
Augusto Cesar Salomão Mozine – Pontíficia Universidade Católica
de São Paulo / King’s College London
Tiago Miguel D’Ávila Martins de Freitas – King’s College London /
Universidade de São Paulo
Viviane Mozine Rodrigues – Pontíficia Universidade Católica de São
Paulo / Universidade de Lisboa
1 INTRODUÇÃO
Fato marcante da última década, as grandes catástrofes ambientais, como terremotos e
maremotos, ocorridas em áreas de grande povoamento tem levantado grandes discussões
de aspecto humanitário sobre o deslocamento forçado em função do meio ambiente. A estas
somam-se catástrofes ambientais de origem humana como as que são consequência da
mudança do clima, da degradação dos solos e da depleção de recursos hídricos.
Este ensaio considera catástrofes ambientais no seu sentido mais lato, incluindo as de
origem natural e as de origem humana, não só porque o Haiti é um caso paradigmático de
degradação ambiental provocando migrações, mesmo antes do terremoto de 2010, mas
também porque o Brasil poderá enfrentar no futuro outros fluxos migratórios à medida que
as catástrofes ambientais se tornam mais frequentes pela mudança do clima e degradação
ambiental.
Importante destacar, nesse contexto, o papel da mídia como motor da divulgação e
promoção do debate em torno desses eventos ambientais, como também como formadora
de opinião sobre os vários aspectos – socorro sanitário, ajuda humanitária, assentamento e
reconstrução de áreas afetadas – relacionados às populações envolvidas.
Os desafios humanitários impostos ao mundo de hoje demandam muito mais que ações
pontuais, o caso do Haiti é emblemático: além da pobreza que se arrasta há anos, o
terremoto acontecido em 2010 desabrigou milhares de haitianos. Diante deste quadro,
oferecer respostas rápidas e coordenadas a situações deste tipo são um desafio complexo.
O esforço em conjunto e a resolução aos casos de deslocamentos humanos motivados por
fatores ambientais exigem um imediatismo para o qual muitos governos não estão
preparados.
Não se deve confundir, contudo os regimes jurídicos e as políticas destinadas a cada tipo de
situação humanitária. Ao passo que os refugiados buscam fugir das perseguições e
violências há séculos, os haitianos que chegaram ao Brasil fugiram de uma catástrofe
ambiental. O que se observa é que o que mudou nos últimos tempos é o ambiente em que
se dá a circulação forçada de pessoas, marcado cada vez mais por catástrofes ambientais,
como os casos dos haitianos que chegaram ao Brasil.
Este ensaio tem por objetivo entender a relação entre informação e formação de opinião nos
discursos dos veículos de comunicação de massa e em que medida a notícia é capaz de
incorporar e transmitir discursos de poder balizadores da proteção dos Direitos Humanos de
grupos forçadamente deslocados por questões ambientais. Propõe-se, assim, a análise de
notícias publicadas a partir de janeiro de 2010 por três grandes mídias escritas de
publicação semanal – as revistas Veja, Época e Isto É – sobre o caso do terremoto no Haiti
e os imigrantes haitianos na Amazônia, deslocados em função dessa catástrofe ambiental.
Isso permitirá entender os discursos veiculados pela mídia de massas e a formação de
políticas nos seguintes aspectos: a) catástrofes ambientais e deslocamento de pessoas; b)
questão humanitária envolvendo os deslocados e a legalização de sua permanência nos
países acolhedores; c) o posicionamento oficial.
Como resultado, tem-se uma avaliação sobre como a opinião pública relativa a este caso se
formou, bem como a importância das notícias publicadas no período na formação de
discursos de maior ou menor abrangência. Assim, em um contexto de questões
humanitárias ambientais globais, pretende-se entender aspectos de como a mídia informa o
processo de formação do posicionamento do Governo Brasileiro em relação à concessão de
permanência – temporária ou permanente – aos imigrantes haitianos. Busca-se contribuir,
por fim, para o emergente debate sobre acolhimento de deslocados ambientais, levantando-
se questões referentes às visões induzidas no imaginário social sobre essa problemática.
Começando com uma introdução aos riscos ambientais atuais - globalizados, imprevisíveis e
difíceis de manejar pelos estados nação - este ensaio prossegue com uma apresentação
dos discursos de segurança ambiental que tipicamente têm ilustrado os problemas
ambientais globais como uma ameaça ao bem-estar das sociedades do ‘ocidente’. O ensaio
prossegue depois com algumas considerações sobre as razões da migração que, no caso
do Haiti, não se fundamentam apenas no episódio do terremoto mas também, e
principalmente, na degradação ambiental que historicamente tem acontecido naquele país e
levado a permanente instabilidade, tendo amplificado os efeitos migratórios do terremoto.
Em seguida fazem-se algumas considerações conceituais para uma melhor compreensão e
distinção entre migrantes, deslocados e refugiados e seus respetivos estatutos no sistema
político internacional e apresentam-se algumas informações sobre os migrantes haitianos no
Brasil. De seguida, é contextualizado o atual momento de edificação de fronteiras que,
apesar das forças da globalização, se consolida, nomeadamente na tentativa de estancar
fluxos humanos indesejáveis. Finalmente, exploram-se as representações midiáticas dos
refugiados haitianos no Brasil, sob um ponto de vista de geopolítica popular, explica-se a
metodologia do ensaio e apresentam-se as representações das revistas Veja, Isto É e
Época.
2 A GLOBALIZAÇÃO DOS RISCOS AMBIENTAIS: E OS DISCURSOS DE
SEGURANÇA AMBIENTAL
Contextualizados na desorientação pós-moderna (que resultou dos efeitos do fim da Guerra
Fria e das mudanças trazidas pela globalização na estrutura social do mundo), os riscos
ambientais globais apresentam um desafio à soberania dos estados nação e às sociedades
em geral (TUATHAIL, 1996). As consequências ecológicas e sociais da degradação
ambiental – como guerras e migrações em massa - tornam-se globais, fluem através de
fronteiras e escapam à capacidade dos estados nação soberanamente as controlarem.
Degradação ambiental num determinado local pode assim afetar todo o globo, o que exige
respostas globais, o exemplo paradigmático sendo o da mudança do clima.
Lidar com estes riscos num contexto de “sociedades de risco” (BECK,1992) não pode ser
unicamente feito pelo estado-nação, pedindo por isso uma abordagem mais abrangente, em
que a governança ambiental se torna “colaborativa” ou “pós-soberana” (KARKKAINEN
2004), pois a interdependência dos estados nação erode a noção “Westfaliana” tradicional
de soberania (BIERMANN; DINGWERTH, 2004) Assim, e devido à natureza essencialmente
transfronteiriça da mudança ambiental global, a capacidade dos estados-nação para
efetivamente realizar as suas funções sem a cooperação com outros estados (e atores não
estatais) diminui.
As consequências das mudanças ambientais não são antecipáveis - a ‘reengenharia’ do
planeta não foi planejada, não havendo por isso uma clara indicação de como as diferentes
partes do alterado sistema terrestre vão se encaixar (DALBY, 2007). Os riscos globais como
degradação ambiental, mudança climática são então imprevisíveis e considerados como
indo além do controle de instituições, elites políticas e científicas. O resultado é uma
mudança dos sistemas naturais pela humanidade em uma escala tal que a humanidade
pode ter-se tornado uma nova força geológica na natureza, inaugurando uma nova era
geológica, o “Antropoceno” (DALBY, 2007). “Segurança antropocênica” então desafia o
pensamento dualista de ser humano versus (uma externa) natureza, quando as atividades
humanas estão cada vez interligadas com e afetando a biosfera (DALBY, 2009).
Saber e prever os riscos torna-se um assunto de importância maior (para não dizer
paranoia). O conhecimento científico ganha assim preponderância, nascendo então uma
“subpolítica” de expertise científico (em que o consenso político, por exemplo, o relacionado
com a mudança climática, faz esse assunto “apolítico” e moldado somente por expertos), de
que Beck (1992), Swyngedouw (2010) e Giddens (2011: 116-119) falam.
É neste contexto de riscos ambientais que se estabelece um discurso de segurança
ambiental oficial, apontando para distintas realidades – reflexos sobre países desenvolvidos
e subdesenvolvidos – e posicionamentos – acolhimento das populações afetas, ajuda
humanitária, contenção de migrações – que são frequentemente incorporados pelo
imaginário social e pelos estudos acadêmicos, balizando a formação de opinião e a
formulação de políticas nacionais e internacionais relacionadas a essa problemática.
Os discursos de segurança ambiental, presentes nas elites dirigentes do “ocidente”
(particularmente militares) agrupam as ameaças colocadas por problemas ambientais às
sociedades, mas as próprias definições de “ameaça” e de “segurança” são o foco de crítica
substancial, principalmente na literatura anglo-saxônica de geopolítica crítica (DALBY, 2009:
36-55). Riscos e ameaças são assim considerados inevitavelmente construções políticas
socialmente mediadas – a delimitação de quem ou o quê é ameaçado e o que está
ameaçando, é um recurso político poderoso que constrói identidades, representa relações
de poder e legitima determinados estilos de vida (GROVE, 2010).
O discurso securitário oficial argumenta que a degradação ambiental e as catástrofes
ambientais no Sul provocam desestabilização no Sul – colapso social e movimentos
transnacionais como tráfico de drogas e imigração ilegal – que inevitavelmente afetarão o
Norte (KAPLAN, 1994, 2009). Os mais críticos defendem, contudo, que, ao ignorar as
formas como outros fluxos transnacionais como o comércio internacional e os mercados
financeiros ajudam a produzir tanto a degradação ambiental como o colapso social, o
discurso dominante evita abordar a cumplicidade do “ocidente” na produção da
desestabilização no Sul (PATERSON, 2001: 22).
3 PARA ALÉM DO TERREMOTO: AS RAZÕES DA MIGRAÇÃO
No caso do Haiti, há um fator natural explícito que provocou a fuga em massa, o terremoto
de 2010. Mas o Haiti é também um caso paradigmático de degradação ambiental crónica
(DOLISCA et AL, 2007) que amplificou a situação dramática de 2010.
Às catástrofes naturais que desde sempre afetaram as populações humanas, como
terremotos, tsunamis e tempestades, somam-se assim as catástrofes de origem humana
bem atuais e cada vez mais relevantes, como as que são consequência da mudança do
clima ou da degradação ambiental. Segundo Myers (2002), há um grande potencial de
aumento dos refugiados ambientais, com um crescente número de pessoas empobrecidas
pressionando cada vez mais os ecossistemas já bastante explorados e, com a mudança
global do clima, o numero de deslocados poderá chegar aos 200 milhões.
Segundo Warner et al (2010), a mudança do clima terá um impacto cada vez maior em
sistemas sócio-económicos muito dependentes do ambiente, com potencial de causar
movimentos populacionais muito significativos. Os países menos desenvolvidos são
particularmente vulneráveis, dada a sua menor capacidade adaptativa e aqui as ameaças
incluem problemas ao nível da provisão de alimentos, saúde, declínio económico, inundação
de áreas costeiras e degradação de recursos hídricos e dos solos (REUVENY, 2007).
Vários autores se debruçaram sobre a questão da relação entre a mudança ambiental e
potenciais crises humanitárias (MCGREGOR, 1993; KIBREAB 1994 e 1997; MYERS 1993;
MYERS; KENT 1995; BLACK, 2001; LEE, 2001; CASTLES, 2002; MASSEY et al.; 2007).
Deste acumulado académico resulta, no entanto, uma indefinição relativa às interações
entre mudança ambiental e sistemas ecológicos, vulnerabilidade sócio-económica resultante
e potenciais desfechos em termos de movimento de populações ou migrações induzidas.
Estas interações têm sido pobremente conceitualizadas, com falta de investigação
sistemática e por vezes reduzem-se a explicações causais simplistas (WARNER et al.;
2010), negando o complexo processo com várias variáveis (econômicas, sociais,
ambientais) que é a causa da migração e/ou conflito induzido por mudanças ambientais.
A ligação entre catástrofes ambientais e fluxos migratórios pode ser, por exemplo, indireta,
como no caso dos fugitivos de guerras civis que advém de conflitos provocados pela
depleção de recursos naturais. A ligação da “guerra” – desde o seu uso discursivo até à
violência física organizada – ao controle e exploração de recursos tem sido um dos debates
mais acalorados em Geopolítica dos Recursos Naturais (LE BILLON, 2008; DALBY, 2009;
HOMER-DIXON, 1999). A este nível, uma das visões mais catastrofistas é a de Kaplan
(1994, 2009), que usa argumentos neo-malthusianos para explicar os conflitos
potencialmente geradores de uma anarquia global provocada por um crescimento
populacional no Sul.
A altamente contestada visão de Homer-Dixon (1999) vê também uma ligação entre
recursos naturais e guerra, mas de uma forma mais balanceada. “Escassez ambiental” é
descrita como a escassez de recursos renováveis como terra agrícola, água doce ou
florestas, causada pela degradação e depleção destes recursos, pelo aumento da demanda
por esses recursos, e/ou pela sua desigual distribuição, e pode contribuir para violência civil.
A escassez ambiental não é suficiente, contudo para causar violência, por si só, e quando
contribui para a violência, fá-lo através de uma interação com outros fatores políticos,
económicos e sociais, como os mercados de commodities, divisões étnicas pré-existentes,
entre outros, de modo a gerar efeitos sociais severos que acabam favorecendo a violência
(HOMER-DIXON, 1999). Esta dependência de um conjunto muito mais abrangente de
variáveis também é frisada por Le Billon (2008), que sublinha que argumentos
convencionais ligando guerras e recursos geralmente propõe explicações simplistas ou não
têm em consideração as dimensões geográficas de conflitos relacionados com recursos.
4 MIGRANTES, DESLOCADOS E REFUGIADOS: CONSIDERAÇÕES
CONCEITUAIS
A relação entre meio ambiente, migrações e direitos humanos tem sido cada vez mais
discutida pela sociedade e cada vez mais presente na mídia. Para uma compreensão mais
ampla dessa relação é necessário uma visão multidisciplinar sobre o tema e ainda, todo um
arcabouço jurídico internacional e nacional para lidar com este desafio.
A primeira compreensão que se faz necessária acerca da temática, é de cunho conceitual,
neste artigo, conceituaremos portanto: o migrante; o migrante ambiental; o deslocado
interno; o refugiado e o refugiado ambiental.
O Migrante é, pois, toda a pessoa que se transfere de seu lugar habitual, de sua residência
comum para outro lugar, região ou país. É um termo frequentemente usado para definir as
migrações em geral, tanto de entrada quanto de saída de um país, região ou lugar, não
obstante existam termos específicos para a entrada de migrantes – Imigração – e para a
saída – Emigração. É comum, também, falar em “migrações internas", referindo-se aos
migrantes que se movem dentro do país, e "migrações internacionais", referindo-se aos
movimentos de migrantes entre países, além de suas fronteiras (IMDH, 2012).
Já os “migrantes ambientais” são conceituados pela Organização Internacional de
Migrações (IOM, 2012), como :
... pessoas ou grupos de pessoas que, por motivos de mudanças bruscas ou progressiva no ambiente que afetam negativamente as suas vidas ou condições de vida, são obrigados a ter que deixar suas casas habituais, ou optar por fazê-lo, temporária ou permanentemente , e que se deslocam, quer no seu território ou no estrangeiro.
Uma outra definição utilizada neste debate e adotada pelo Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR, 2012), são os deslocados internos, pessoas deslocadas
dentro de seu próprio país, e que muitas vezes são erroneamente chamadas de refugiadas.
Ao contrário dos refugiados, os deslocados internos não atravessaram uma fronteira
internacional para encontrar segurança, mas, permaneceram em seu país natal. Mesmo se
fugiram por razões semelhantes às dos refugiados (conflito armado, violência generalizada,
violações de direitos humanos), legalmente os deslocados internos permanecem sob a
proteção de seu próprio governo, ainda que este governo possa ser a causa da fuga. Como
cidadãos, elas mantêm todos os seus direitos e são protegidos pelo direito dos direitos
humanos e o direito internacional humanitário.
Cabe aqui então definir o que é um refugiado, de acordo com a Convenção de Genebra de
1951 :
refugiado é aquele que, possuído de um temor bem-fundado de ser perseguido por razões de raça, religião, nacionalidade, de ser integrante de um grupo social específico ou por suas opiniões políticas, encontra-se fora do país de sua nacionalidade, e está incapacitado ou possuído por tal temor, por não poder receber a proteção daquele país; ou quem, não tendo nacionalidade e estando fora do país de sua habitual residência, está incapacitado, ou possuído por tal temor, não tem a possibilidade de voltar para ele.
Assim, uma nova categoria se apresenta, a de “refugiado ambiental” :
Refere-se a pessoas que fugiram de suas casas por causa de mudanças ambientais que tornaram suas vidas ameaçadas ou insustentáveis. Em alguns casos, estas pessoas encontraram novos lugares para viver em seus próprios países. Em outros casos, elas devem mudar de um país para outro buscando refúgio. (Derani, 2012)
Entretanto, o termo “refugiado ambiental” não é reconhecido pelos Estados. A primeira
definição do termo foi cunhada por Lester Brown do World Watch Institute, na década de
1970, mas só foi popularizada com a publicação, em 1985, por Essam El- Hinnawi,
professor do Egyptian National Research Centre, Cairo.
Como se pode observar, não há uma definição uniformizada, e a mídia utiliza a expressão
“refugiado ambiental” para identificar tanto a pessoa que é forçada a deslocar-se
internamente como aquele que é obrigado a cruzar uma fronteira internacional por
mudanças ambientais. A utilização desse conceito acaba sendo problemática porque
mistura a noção de refugiado com a do deslocado interno.
5 O CASO DOS HAITIANOS NO BRASIL
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) reconhece como
deslocamento interno a situação no Haiti em um relatório elaborado oito meses depois da
catástrofe, que contabilizou cerca de 1,3 milhões de pessoas deslocadas internamente
vivendo em condições precárias nos 1.354 acampamentos e assentamentos na capital e
seu entorno. Cerca de 60% da infraestrutura governamental, administrativa e econômica foi
destruída. Mais de 180.000 casas desabaram ou foram danificadas e 105.000 foram
completamente destruídas. Por volta de 23% de todas as escolas no Haiti foram afetadas
pelo terremoto (4992 escolas), 80% das escolas em Porto Príncipe e 60% das escolas nos
estados Sul e Oeste foram destruídas ou danificadas (UNHCR, 2010).
No Brasil, estima-se que tenha vindo entre 6.000 e 6.500 haitianos após o terremoto
ocorrido em janeiro de 2010. O processo de deslocamento por via aérea inicia na República
Dominicana e tem como destino o Equador ou o Peru. Como estes países não exigiam visto
para haitianos (o Peru introduziu a exigência de visto em janeiro de 2012 e o Equador
mantém a não exigência de visto), estes migrantes não encontravam dificuldades na
entrada. A partir desses países, por trajeto terrestre ou fluvial, chegam à fronteira do Brasil,
em diferentes pontos. Tabatinga, Assis Brasil e Brasiléia são os principais pontos de entrada
(IMDH, 2012).
Ao passo que, há séculos, os migrantes considerados refugiados buscam fugir das
perseguições políticas e violências, os haitianos que chegaram ao Brasil fugiam de uma
catástrofe ambiental. Inicialmente eles poderiam ter sido considerados apenas como
imigrantes e que poderiam trabalhar regularmente no Brasil com base no Estatuto do
Estrangeiro; entretanto a motivação para mais de 6.000 haitianos entrar no Brasil não era
apenas econômica, mas também humanitária.
A seguir, buscou-se o enquadramento no status de refúgio e tiveram a sua solicitação
negada, pois, não são considerados refugiados por não se incluírem nos requisitos da
Convenção de Genebra de 1951 e também pela Lei brasileira 9474/97. Entretanto, outro
caminho foi apresentado: eles teriam que enviar seus pedidos ao Conselho Nacional de
Imigração (CNIg), que autorizou a concessão de residência permanente por motivos
humanitários, baseado na resolução normativa nº 97, de 12 de janeiro de 2012, que dispõe
sobre a concessão do visto permanente Previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto
de 1980, a nacionais do Haiti.
Nesse contexto, dos mais de 5.200 pedidos de “refúgio” apresentados formalmente por
haitianos, já foram aprovados 2.307 processos, concedendo-lhes, como já referido,
residência permanente por motivos humanitários1. (IMDH, 2012)
Finalmente, essa é uma temática atual e que vem ganhando visibilidade midiática na medida
em que se aumentam as catástrofes ambientais e também que se consagra a concepção de
Direitos Humanos como universais. O que se observa é que o que mudou nos últimos
tempos é o ambiente em que se dá a circulação forçada de pessoas, marcado cada vez
mais por catástrofes naturais, como os casos dos haitianos que chegaram ao Brasil e
independente do termo que se dão a elas, é preciso encontrar novas soluções para este
novo desafio.
6 AS FRONTEIRAS NA GLOBALIZAÇÃO
A edificação de fronteiras e os aparatos geográficos correspondentes são necessários para
o controle territorial e para o estabelecimento e manutenção do estado-nação, funcionando
como um instrumento de contenção de vagas migratórias num contexto de segurança
ambiental.
Mais do que constituir barreiras ou obstáculos aos processos associados à globalização, as
práticas de construção de fronteiras devem ser entendidas como característica indissociável
do próprio processo de globalização.
De fato, a globalização, apesar de ter erodido as funções do estado-nação e o conceito
tradicional de fronteira, não significa que tenha tornado tudo líquido, fluido e des-
territorializado. As práticas de poder, tanto material como discursivamente, não perderam o
seu ordenamento territorial - apesar do aumento dos fluxos globais, a criação de ordem
territorial e de fronteiras não diminuiu. Anssi Paasi (2005), por exemplo, discorda da visão
de um mundo sem fronteiras, defendendo uma ideia menos universalizante em que
fronteiras são entendidas como elementos constitutivos importantes das práticas e
narrativas através das quais grupos sociais e as suas identidades são construídas e
governadas. Aqui, fronteiras devem ser vistas como uma crença, uma imaginação que cria e
molda o mundo, uma realidade social, em vez de um artefato material.
1 Para ver a relação dos nomes dos haitianos que tiveram deferidos seus pedidos de visto de residência
permanente, acessar o site: http://www.migrante.org.br/IMDH/
A globalização e os relacionados desenvolvimentos como o transnacionalismo e imigração
são cada vez mais percebidos como fluxos perigosos que ameaçam as terras protegidas da
soberania doméstica. Neste contexto, o controle e proteção de identidades locais foram
fortalecidos e restabelecidos nos últimos anos. A segurança é, pois, um problema de poder
simbólico e um assunto de culturas que clamam a sua preservação como a questão mais
importante (WILLIAMS, 2007). Esta re-territorialização do espaço deve ser entendida como
uma resposta, uma contra-força, às forças da pós-modernidade e vagas recentes da
globalização (BAUMAN, 2000).
A continua reprodução sócio-espacial de fronteiras no mundo de hoje demanda uma re-
ontogenização da “fronteira”: esta consiste em fazer “outros” através da fixação territorial da
ordem. A este nível, a UE, por exemplo, poderia ser vista como uma máquina global de
fronteira, que constrói mais e não menos “ilegalidade”, xenofobia e medo com a sua luta
contra os imigrantes ilegais (VAN HOUTUM, 2010).
No caso do Brasil, país em desenvolvimento, usualmente no outro lado da barricada mas
que recentemente tem vindo a ser cada vez mais um país de recepção, futuros riscos
ambientais, por exemplo causados pelos mudanças climáticas, poderão levar mais
imigrantes a atravessar as fronteiras brasileiras. As fronteiras Amazônicas apresentam a
este nível um particular desafio, uma vez que aí o controle do estado é incipiente, assim
como a integração com o resto do país, aliado a outros desafios cujas magnitude torna o
desafio ainda mais complicado: conflitos indígenas e fundiários, tráfico transnacional de
drogas, degradação ambiental em larga escala, pobreza e violência, fazendo da Amazônia
um complexo mosaico geopolítico (HALL, 1989; HECK AND COCKBURN, 1989), assim
como uma ‘fronteira discursiva’ em que se jogam as representações nacionais e
nacionalistas sobre este imenso espaço sob soberania Brasileira.
7 ANÁLISE DE MÍDIA: GEOPOLÍTICA POPULAR
A geopolítica popular estuda se e como o espaço público e as mídias apoiam e legitimam a
política externa num determinado país (MAMADOUH; DIJKINK, 2006) e se refere às
manifestações geopolíticas encontradas nos mídia visuais, revistas, radio, cinema,
telenovelas, quadrinhos ou na Internet (DITTMER; DODDS, 2008).
As mídias, em particular, podem ter um papel fulcral de estabelecimento de agenda
(histórias nas mídia podem ajudar a moldar as formas como eventos ou processos
particulares são representados e interpretados) ou sublinhar alguns
eventos/pessoas/processos em detrimento de outros (DODDS, 2005:75). As mídia também
enquadram eventos e processos e por isso contribuem para modos particulares de
interpretação ou estruturas de narrativa (DALBY, 1996; DODDS, 2005). Kim et al (2007), por
exemplo, exploraram a influência da geopolítica e política externa nas mídias Americanos e
Canadenses em relação ao conflito do Darfur, enquanto que Robison (2004) e McFarlane e
Hay (2003) estudaram a imprensa Britânica e Australiana em relação a, respectivamente,
representações da Guerra da Bósnia e dos protestos de Seattle. Steinburger-Elias (2005)
por seu lado, explorou o papel de visões ideológicas e institucionais nos discursos
geopolíticos nas mídias Latino-Americanos.
O estudo da geopolítica popular, para além da importância empírica de conhecer como
determinado assunto é visto no espaço público, é também relevante para melhor
compreender como as culturas públicas gerais, com seus contextos históricos e geográficos
específicos, moldam discursos e representações de identidade nacional e política global
(DITTMER; DODDS, 2008). Contribui assim para desvendar a “cultura geopolítica” de um
país – processos culturais e organizacionais que conceitualizam o Estado-nação, a sua
identidade e a sua posição no mundo, moldando por isso a forma como a política externa é
feita pelos estados (AGNEW et al.; 2003:10).
Dada a escassez de estudos sobre geopolítica popular no Brasil (ou que pelo menos usem
esse termo), o presente trabalho, ao focar a questão dos refugiados ambientais do Haiti
espera, na sua limitada contribuição à questão da cultura geopolítica do Brasil, contribuir
para o desenvolvimento deste tipo de pesquisa.
8 CATÁSTROFES NATURAIS E DESLOCAMENTO FORÇADO DE PESSOAS: REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS
O estudo da cobertura da mídia de massa sobre uma catástrofe humanitária é uma questão
simbólica que visa entender como determinadas ideias e conceitos podem ser infundidos no
meio social. A proposta deste ensaio de entender como os três principais veículos de
informação escrita brasileiros informaram a questão haitiana busca, assim, debater em que
medida os direitos humanos aparecem no discurso da notícia e são colocados com uma
responsabilidade individual e coletiva. Dessa maneira, conforme visto na discussão feita até
aqui, a análise das reportagens teve como parâmetro a problemática da ajuda humanitária
em caso de desastres naturais, com especial enfoque para a questão das migrações
forçadas.
Importante destacar, nesse contexto, a necessidade de se problematizar a utilização da
terminologia “refugiados ambientais”. Conforme visto na segunda seção deste ensaio,
embora o termo careça de embasamento legal, criando uma grande confusão no
entendimento da condição jurídica desses migrantes forçados, seu uso é indiscriminado nos
meios de comunicação, o que acarreta um problema de formação da opinião pública. Não
se defende aqui, contudo, que as discussões que promovam uma futura regularização de
uma “condição de refugiado ambiental” sejam negligenciadas, porém é importante ressaltar
que sua utilização na mídia de formação de opinião deva ocorrer de forma clara e
identificando os pormenores desse debate.
Assim, algumas considerações metodológicas complementares devem ser feitas com elação
à análise das reportagens. Inicialmente previu-se o levantamento das notícias veiculadas
nas revistas Veja, da editora Abril; Isto É, da editora 3 e Época, da editora Globo,
especificamente em sua versão impressa semanal compreendendo o período de janeiro de
2010 a dezembro de 2011. Contudo, durante a coleta de dados observou-se que neste
período inicial e caracterizando-se a questão das migrações forçadas e do “refúgio
ambiental”, apenas a revista Época (2012g), em fevereiro de 2011, trouxe uma reportagem
que abria o debate da questão dos haitianos na Amazônia, precedida pela revista Veja
(TEIXEIRA, 2012) que já mencionara, em fevereiro de 2010, outra problemática relacionada
à migrações forçadas relacionada ao tráfico de crianças órfãs. Dessa forma, verificou-se que
o a porção relevante do debate na mídia impressa de massa brasileira sobre migrantes
haitianos na Amazônia iniciou-se em fins de dezembro de 2011, com apelos do Governo do
Acre por uma iniciativa do Governo Federal para regularização e ajuda financeira aos
haitianos, (ÉPOCA, 2012h; ISTO É, 2012e) sendo que as notícias vieram a público por meio
desses meios de comunicação nas edições semanais de janeiro de 2012, o que motivou a
extensão do período de coleta de dados para até o mês de março de 2012.
Redefinido o período da coleta de dados, foi realizada uma busca inicial de reportagens que
se referissem ao terremoto ocorrido no Haiti em 12 de janeiro de 2010. Para tanto, adotou-
se o seguinte critério: a) a reportagem deveria conter, no mínimo, os termos “Haiti” e
“Terremoto” relacionando-os com “contexto internacional”, “ajuda humanitária”, “situação
política interna” ou “Brasil”. b) o foco da notícia deveria ser exatamente uma questão
haitiana vinculada às questões políticas e sociais nacionais, internacionais ou externas
envolvendo o Terremoto e seus reflexos para o país caribenho. Esses critérios permitiram
uma seleção de 33 notícias – compreendidas entre reportagens de capa, editoriais,
entrevistas e notas – divididas da seguinte maneira: 12 referências em Veja; 9 referências
em Isto É; e 12 referências em Época. Foram excluídas da análise as reportagens que
fizessem mero uso exemplificativo da situação haitiana em comparação com os terremotos
do Japão e do Chile em 2011, sem aprofundar qualquer dos termos do critério “b”, bem
como artigos de opinião dos “colunistas” dessas revistas.
Com isso, passa-se à análise da cobertura de cada uma das revistas mencionadas ao
Terremoto do Haiti de 2010. Em um primeiro momento, prioriza-se a exposição do discurso
individual de cada um dos veículos de informação, relacionando suas particularidades de
acordo com os parâmetros traçados na metodologia mais geral exposta na introdução deste
ensaio. Em seguida, apresenta-se uma comparação entre a forma como essas revistas
inseriram as temáticas deste trabalho nos debates de opinião pública para, por fim,
apresentar algumas considerações sobre o resultado da análise do discurso empregado na
questão Haitiana e sua relação com o Brasil.
8.1 REVISTA VEJA
A cobertura da Revista Veja ao terremoto de 12 de janeiro de 2010 começa em sua edição
de número 2148 do dia 16 daquele mês. Ricas em imagens da catástrofe, as quatro
reportagens quatro reportagens que compõem o dossiê sobre o Haiti vão se utilizar de uma
perspectiva alegórica para explicar os acontecimentos. A primeira notícia, intitulada “O dia
em que o Mundo Acabou” (VEJA, 2012a:62-73) inicia-se com uma fotografia ocupando duas
páginas inteira e mostrando o palácio presidencial haitiano divido o meio pelo terremoto.
Interessante destacar a terminologia utilizada para referir-se ao evento; termos como “força
sobrenatural”, “holocausto” e “Porto de Hiroshima”, aparecem em destaque para explicar o
resultado de um número de mortos até então indefinido e do completo esfacelamento dos
prédios do centro urbano da capital Porto Príncipe. A notícia se inicia da seguinte maneira:
Quando o Mundo acabou no Haiti à 4 e 53 da tarde de terça-feira, o mais terrível foi que, por algum tempo, os mortos viveram. Com a força infernal de trinta bombas atômicas, o terremoto aconteceu no pior lugar possível. Seu coração de terrível poder, o epicentro, praticamente coincidiu com as ruas encostas esquálidas de Porto Príncipe, a capital (VEJA, 2012a:65).
Como se vê, a revista apresenta, para se referir ao desastre natural, uma “poética” etérea e
política que, em princípio, pouco contribui para o entendimento dos fatos. Seguida de uma
série de imagens de crianças mortas e feridas e de corpos empilhados, a reportagem
apresenta, ainda, um infográfico sobre como acontecem, se medem e se explicam
“cientificamente” os terremotos. A essa “Anatomia da Destruição”, seguem três outras
reportagens que dão conta, respectivamente, da narrativa de um repórter de Veja sobre os
acontecimentos; do “drama heroico” dos soldados brasileiros da força de paz da ONU
vitimados pela “catástrofe”; e, por fim, uma exaltação biográfica da “santidade” e “martírio”
de Zilda Arns, médica e missionária fundadora da Pastoral da Criança no Brasil, que visitava
o Haiti em missão humanitária e faleceu no desastre.
Interessante destacar no contexto do dossiê o fato de que, diferentemente dos demais
veículos de comunicação, essa primeira abordagem de Veja sobre o terremoto negligencia
aspectos políticos e históricos do Haiti, refere-se pouco às especificidades da questão
humanitária e adota um discurso messiânico e, em certo ponto, sensacionalista que pouco
infere os aspectos sociais e internacionais dos trabalhos humanitário. As referências ao
Brasil limitaram-se às perdas humanas de 18 pessoas entre civis e militares, sem grande
enfoque ao papel desempenhado pelo país na história recente do Haiti. Sem pretender que
um veículo de informação e massa adote um discurso essencialmente científico-acadêmico,
pode-se dizer que essa cobertura do desastre pouco permitiu para criação de um debate
que considerasse os aspectos políticos globais e o potencial risco humano que surgia com
uma catástrofe ambiental.
Um posicionamento mais política e socialmente centrado de Veja pode ser visto nas edições
de número 2149 e 2150 que se seguem. Na primeira edição, tem-se novamente um dossiê
de três reportagens que simbolizam aspectos distintos do desastre. Em primeiro lugar,
aparece o “Caos depois do Desastre”, noticiando a completa falta de estrutura de ajuda
humanitária e sanitária e de contenção da criminalidade que se seguiu ao terremoto. Em
seguida, noticia-se o envio e 20 mil soldados dos Estados Unidos da América – EUA – para
atuar no trabalho humanitário, destacando o seguinte juízo de que “Só o poderio militar
americano para desatar o nó logístico e abri caminho para ajuda humanitário no Haiti”,
finalizando o argumento com: “Houve atrasos inexplicáveis e outras complicações
desesperadora, mas, se alguém estiver no meio de um desastre épico e puder escolher
quem irá ajudar, vai preferir Barack Obama ou Hugo Chávez”? (VEJA, 2012b:79).
A edição de número 2149 segue com uma terceira reportagem intitulada “O País que Nunca
foi” enfatizando a histórica ausência de instituições capazes de manter uma estrutura social
básica para o país e como a Força de Paz da ONU – sem mencionar a liderança do Brasil
em sua condução – foi responsável por uma precária manutenção de uma estrutura básica
de reconstrução do Haiti a partir de 2004. A edição de número 2150, por sua vez, limita-se a
enfatizar a incapacidade das organizações internacionais de ajuda humanitária, em especial
o Programa Mundial de Alimentação, em fornecer a ajuda necessária para minimizar a
“tragédia humana”. Como se vê, o debate que se segue prioriza um discurso de
minimização de um ambiente multilateral de reconstrução de Estados Falidos, em
detrimento de um protagonismo hegemônico dos EUA. Pode-se inferir, com isso, que as
questões internacionais ligadas a desastres ambientais estão vinculadas, ainda, dada a
cobertura de Veja, às questões tradicionais de geopolítica e são minimamente abordadas
como um aspecto de responsabilidade e cooperação global ou regional, o que limita o
âmbito de ampliação desse debate no espaço público brasileiro.
Dando sequência à análise, a primeira referência direta encontrada na Revista Veja sobre a
questão do deslocamento forçado de pessoas refere-se a um caso específico de tráfico
internacional de crianças para adoção. Sob o argumento de que “A prisão de seus captores
Americanos pouco significa para o bem-estar das 33 crianças que seriam ofertadas
ilegalmente para adoção” o veículo de comunicação emprega um discurso finalístico e de
crítica a atuação de um “grupo missionário” que pretendia levar as crianças para uma
espécie de “abrigo infantil” no país vizinho, a República Dominicana (TEIXEIRA, 2012:60).
O restante da cobertura de Veja em suas edições semanais limita-se a uma referência à
volta do ex-ditador Jean-Claude Duvalier, conhecido como Baby Doc, à cena política do país
para tentar desestabilizar o governo do novo presidente eleito no em fins de 2010 (PIOR...
2012). A cobertura desse veículo de comunicação se restringiria a isso, não fosse a
possibilidade de pesquisa no “portal” online que, ressalte-se, não compõe a edição escrita
da revista, mas que mencionou, em duas reportagens de janeiro de 2012, a questão dos
imigrantes ilegais na Amazônia. Dessa maneira, permite-se um pequeno desvio
metodológico com a finalidade de entender como a questão é colocada nesse sistema
editorial.
Nessa perspectiva, as notícias veiculadas pelo portal de Veja informam a criação de uma
política restritiva à entrada e pessoas especialmente para os Haitianos, que passarão a ter
um tratamento diferenciado na concessão de sua entrada em território brasileiro
(MARQUES, 2012; HAITI... 2012). Do discurso empregado em ambas as reportagens,
depreende-se o emprego da terminologia “imigração ilegal” para referir-se a todo o grupo de
haitianos no Brasil, mesmo aos que ingressaram no país como turistas e pleitearam a
alteração de visto. O foco está na questão da restrição de entrada desses estrangeiros e no
recrudescimento das fronteiras dos estados do Acre e do Amazonas, bem como um
aprofundamento da política regional de controle da Amazônia.
8.2 REVISTA ISTO É
Ao se analisar a cobertura da revista Isto É ao Terremoto do Haiti, percebe-se uma leve
alteração do padrão de informação. Dotada de uma postura mais voltada para o debate
político, este veículo de informação utiliza um discurso mais realista e, em certa medida,
sensato. Sua primeira edição a tratar do assunto foi a de número 2097 de 20 de janeiro de
2010, que trouxe três reportagens sobre o desastre natural. As notícias informam a morte de
Zilda Arns, como um destaque da tragédia brasileira; a tragédia em si, realçando a
dimensão dos estragos, as limitações infraestruturais e o perigo humanitário. Seu enfoque,
mais centrado, resume-se a:
No país sem infraestrutura, os já precários sistemas de energia, de comunicação e de abastecimento de água entraram em colapso. Como o Haiti não tem Defesa Civil, os esforços iniciais de resgate foram feitos por funcionários da ONU, militares e cidadãos comuns, a maioria desesperada em busca de familiares desaparecidos. (ISTO É, 2012a).
Por fim, apresentam um relato de um jornalista que esteve no Haiti anos antes do terremoto
sob a observação/manchete “Nenhuma Ajuda humanitária será suficiente”, enfatizando a
precariedade das instituições do país e a dificuldade das organizações multilaterais e,
mesmo, de outros países em atuar na região.
Nesse contexto, a edição seguinte de Isto É, com número 2098, traz em seu editorial e em
uma reportagem as informações referentes à rápida ocupação do Haiti pelos EUA. Em um
tom crítico à ocupação, a direção editorial da revista expões que:
Os mesmos que estabeleceram um embargo comercial capaz de estrangular a economia local. Os mesmos que por décadas patrocinaram ditaduras haitianas acusadas de cometer toda sorte de desmandos, massacres, crimes que, tanto como o terremoto, ajudaram a destruir o Haiti. Para um povo privado do sentimento de cidadania, da sensação de nação, da percepção de existência de um Estado operando serviços públicos essenciais, qualquer ajuda é bemvinda. Mas o esforço multilateral deveria se concentrar no pronto restabelecimento de sua dignidade. (ISTO É, 2012b).
Nessa esteira, a reportagem contida na mesma edição e intitulada “Reconstrução ou Caos”
reforça o ativismo do governo brasileiro no processo de pacificação do Haiti e a necessidade
de que o protagonismo na reconstrução do país se dê pelas agências multilaterais. Assim,
em uma clara referência às questões do ativismo global na reparação de áreas de desastres
naturais, esse veículo midiático opta, também pela adoção de discurso de autoridades
políticas e acadêmicas, em forma e reportagem, para poder fundamentar a argumentação
do discurso que é apresentado à opinião pública. Discurso esse, que faz clara referência
positiva ao protagonismo brasileiro na região.
Merecem destaque ainda, observados os parâmetros metodológicos traçados, duas
reportagens veiculadas em março de 2010 e janeiro de 2011, respectivamente sobre a
utilização de “forças armadas privadas” e sobre o retorno do ex-ditador “Baby Doc” ao Haiti.
A primeira notícia, veiculada na edição de número 2104 de Isto É sob o título de
“Mercenários do século XXI” alerta para a problemática, do ponto de vista da segurança
internacional e da reconstrução de Estados Falidos, da utilização de exércitos privados,
fornecidos por empresas, para patrulhamento e segurança de população civil e as questões
de ordem político-militar que isso pode causar (ISTO É, 2012c). Já edição de número 2150,
de janeiro de 2011, assim como ocorre com a revista Veja, apresenta preocupação pela
volta do ex-ditador Jean-Claude Duvalier ao país e sua tentativa de invalidar o processo
eleitoral recente. Neste caso, contudo, o enfoque do meio de comunicação foi em mostrar
como essa situação é vista pela coordenação do Processo de Paz e reconstrução do Haiti,
liderado pelo Brasil e sob os auspícios da ONU (ISTO É, 2012d).
Por fim, a cobertura de Isto É à questão haitiana se dá com duas reportagens de janeiro de
2012, contidas nas edições de número 2200 e 2201. No primeiro caso, tem-se uma pequena
nota chamando atenção sobre o caso dos imigrantes haitianos no Acre:
Urgente ajuda humanitária faz-se necessária à pequena cidade de Brasileia, no Acre: nela já estão vivendo em condições precárias cerca de 1.200 refugiados haitianos, 550 desembarcados nas duas últimas semanas. Eles buscam o recomeço da vida em terras brasileiras, já que tudo perderam em seu país – o Haiti ainda não conseguiu se recuperar do terremoto que fez aproximadamente 200 mil vítimas em 2010. Planos, os refugiados têm muitos: a maioria deles é jovem (menos de 30 anos) e carrega diploma universitário. Depois de passarem por todo tipo de violência na Bolívia e no Peru, agora enfrentam a falta de dinheiro e de documentos. O governo do Acre vem oferecendo abrigo e comida, mas os recursos são escassos e a ajuda do governo federal, verdadeiro responsável pelos refugiados, se limitou a poucas toneladas de alimentos. (ISTO É, 2012e. grifo nosso).
Destaca-se, no caso, a reiterada utilização do termo “refugiados” para tratar da questão
desses imigrantes, algo que, dada a dimensão do problema devido a quantidade de pessoas
e às questões jurídicas mencionadas anteriormente traz ao público de massa uma
informação que carece de coesão com a realidade. O mesmo não corre com a segunda
reportagem, intitulada “Solução Tardia”, que apresenta uma crítica à inação do governo
federal, que resultou no fechamento emergencial da fronteira norte-amazônica e transferiu
parte do problema humanitário para os estados do Acre e Amazonas, dando enfoque à
questão da imigração de um modo geral à legalização dos haitianos no Brasil como parte de
uma política migratória incipiente (ISTO É, 2012f).
Nessa perspectiva, como se vê, o discurso impresso pela revista Isto É buscou apresentar
um maior apego à questão política haitiana, relacionando-a as questões multilaterais e ao
ativismo de países como os EUA e o Brasil que têm papeis importantes nos processos
internacionais relacionados ao Haiti. Aquele, pelo histórico de conflito com o país caribenho
e este pelo ativismo iniciado com a Missão de Paz das Nações Unidas e culminado com a
problemática migratória. De uma forma geral, é relevante o fato de que este veículo de
informação ter buscado, em grande parte de suas notícias, apresentar pontos de vistas
acadêmicos e técnicos com forma de legitimação do discurso apresentado em cada
reportagem.
8.3 REVISTA ÉPOCA
Ao analisar a cobertura de Época ao terremoto no Haiti é possível perceber a manutenção e
um padrão na veiculação de determinados fatos que se repete em outros veículos de mídia
impressa estudados. Em primeiro lugar, há a informação da tragédia humanitária, com maior
ou menor enfoque sobre a atuação do Brasil como país líder da Força de Paz. Em
sequência, aparece a intervenção dos EUA na gestão da reconstrução, como força paralela
à missão da ONU. Um terceiro ponto de destaque é a questão das eleições de 2011 no Haiti
e, por fim, uma abordagem da questão da imigração haitiana na Amazônia.
Nesse sentido, até o momento, os veículos de difusão de mídia impressa de massa
apresentaram enfoques díspares com relação à exposição da informação, dos pontos de
legitimação do discurso e do aspecto simbólico de busca do reconhecimento do leitor
(BOURDIEU, 2007). Dessa maneira, a análise da cobertura da Revista Época tem, neste
ensaio, uma função de pendão metodológico que permite balizar o direcionamento do
discurso apresentado à opinião pública brasileira sobre a questão haitiana. Não se busca,
com isso, inferir que o posicionamento desse meio de informação seja intermediário aos já
apresentados, mas apenas sustentar em que medida ele reforça determinados
posicionamentos encontrados ora em Veja, ora em Isto É.
Nesse contexto, tem-se que o início da cobertura de Época ao terremoto ocorre na edição
de número 609 de 15 de janeiro de 2010, com a apresentação de um dossiê de três
reportagens sobre a catástrofe. As duas primeiras reportagens, intituladas “Um país inteiro
para reconstruir” e “Como ocorreu o terremoto” têm como foco a questão da necessidade de
ajuda humanitária e como isso foi internacionalmente percebido. É paradigmático o treco da
segunda reportagem que diz que:
Ainda que as ofertas sejam rápidas, o Haiti demanda muito mais. Numa emergência assim, a miséria haitiana multiplica a catástrofe. O país não tem hospitais suficientes (e alguns ainda foram demolidos pelos tremores), não tem máquinas para ajudar no resgate, não tem gente treinada. O envio de ajuda é prejudicado pela destruição dos portos e das estradas que levam à capital. Mais de dois dias após o tremor principal, grupos de haitianos tentavam ajudar vizinhos, familiares e desconhecidos cavucando nos escombros das casas. Sem ferramentas, sem água nem remédios, conseguiram salvar algumas pessoas. Mas não muitas. É pouco provável que, quando as equipes profissionais estiverem prontas para atuar, ainda haja muitos sobreviventes debaixo das pedras e vigas das casas destruídas. (ÉPOCA, 2012a)
Este relato é seguido e reforçado pela reportagem “Um catálogo de desgraças” que
apresenta uma perspectiva histórica dos diversos eventos políticos, sociais e naturais –
golpes militares, enchentes, devastação do solo agricultável – que culminaram em uma
maior precarização do Estado haitiano e na ineficiência de suas instituições em lidar com
qualquer problema de grandes dimensões como o Terremoto de 2010.
A edição seguinte, de número 610, apresenta um foco em dois pontos distintos. O primeiro,
representado no título da reportagem “Como adotar um país” refere-se à problemática da
adoção de crianças e à ampliação desse fluxo em países como Estados Unidos, França e
Holanda e menciona, sem maiores aprofundamentos, a questão da existência de
“refugiados”. O outro refere-se ao questionamento da participação brasileira no processo de
pacificação do Haiti e em como isso foi colocado em oposição à rápida intervenção dos EUA
após o terremoto. Assim enfatizou-se:
A ambição do Brasil de mostrar protagonismo no Haiti foi exibida também na reação do governo Lula à entrada de 7 mil soldados americanos no país depois do terremoto. A intervenção americana, autorizada pelo presidente do Haiti, René Préval, foi motivo de uma tensão política entre os EUA e o Brasil. Os ministros Celso Amorim e Nelson Jobim (Defesa) fizeram reclamações públicas contra a “ocupação americana”. O principal motivo de divergência foi a tomada do controle de tráfego aéreo do Haiti pelos militares americanos. As regras para pouso e decolagem de aviões impostas pelos EUA, após a catástrofe, irritaram as autoridades brasileiras, assim como grupos de ajuda humanitária (ÉPOCA, 2012b).
Em seguida, pode-se destacar um grupo de quatro reportagens distribuídas entre 2010 e
2011 – nas edições 639 (ÉPOCA, 2012c); 653 (ÉPOCA, 2012d); 662 (ÉPOCA, 2012e); 379
(ÉPOCA, 2012f) – que vão dar conta de uma questão mas extensa sobre o processo
eleitoral, iniciado com o anúncio da candidatura de um rapper haitiano radicado nos Estados
Unidos à presidência do país; passando para um enfoque sobre a realização das
campanhas eleitorais que, movidas para chamar a atenção dos emigrados do país,
responsáveis pelo envio de divisas internacionais, foram realizadas mais no exterior do que
em próprio território haitiano. Cabe destaque, também, a associação desse processo
eleitoral com o enfraquecimento da confiança nas forças de paz internacionais, movidas
pelo acirramento de uma epidemia de cólera, culminando com a notícia, recorrente nos meio
de comunicação, de retorno do ditador “Baby Doc” ao país como fator de desestabilização
do novo presidente.
Em sequência, a última das edições mencionadas apresenta um relato biográfico do
presidente eleito, caracterizando-o como um político anti-sistema e dotado de um carisma
capaz de assegurar alguma unidade nacional. Como se vê, o retrato do processo eleitoral,
nesse veículo de informação, é apresentado de uma forma mais ampla, relacionando os
pormenores geopolíticos ao fatores internos e externos capazes de afetar as tentativas de
reestabilização do país (ÉPOCA, 2012f).
Por fim, há que se mencionar uma segunda série de três reportagens que dão conta da
problemática dos migrantes haitianos no Brasil. Nesse ponto, merece destaque a
reportagem veiculada da edição 664 de fevereiro de 2011 – aproximadamente um ano antes
de ela realmente se colocar como questão humanitária na Amazônia – intitulada “O que
fazer com os imigrantes haitianos?” que aponta toda a problemática discutida anteriormente
sobre a impossibilidade de se conceder o status de refugiados aos imigrantes haitianos e
enfocando a situação da carência de uma política brasileira para tratar um fluxo migratório
inesperado em uma região de difícil acesso, carência de equipamentos públicos e que pode
representar perigo tanto para a população local como para a imigrada devido a falta de
infraestrutura (ÉPOCA, 2012g).
Essa questão é retomada pela revista em reportagem de dois de janeiro de 2012 (ÉPOCA,
2012h), que resgata a situação demonstrada anteriormente e destaca sua ampliação com a
entrada de novos imigrantes haitianos no Brasil. Por fim, em artigo veiculado em 30 de
janeiro e 2012 (ÉPOCA, 2012i), Época apresenta a solução tomada pelo governo federal
brasileiro, no sentido de prestar ajuda humanitária às cidades que receberam imigrantes
haitianos e na questão da regularização da permanência das famílias haitianas no Brasil.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este ensaio é um primeiro contributo para entender como a opinião pública relativa aos
haitianos na Amazônia se formou. O enfoque dado pelas três revistas à descrição da
tragédia haitiana, apesar de poder ser conotado de sensionalismo, é um fator importante
para a percepção da gravidade do problema pela sociedade Brasileira e para a urgência de
uma solução.
Em um contexto de questões humanitárias ambientais globais, o processo de formação do
posicionamento do Governo Brasileiro em relação à concessão de permanência –
temporária ou permanente – aos imigrantes haitianos pode assim ser melhor enquadrado
através dos mídia que se veicula a discussão pública sobre o tema dos haitianos no Brasil.
Este ensaio contribui assim para o emergente debate sobre acolhimento de deslocados
ambientais, levantando-se questões referentes às visões induzidas no imaginário social
sobre essa problemática. Contribuiu, por isso, no âmbito da geopolítica popular, para o
entendimento de como as questões das migrações, cada vez mais relevantes no Brasil (à
medida que o país atrai cada vez mais imigrantes e que catástrofes ambientais se tornam
mais frequentes e por isso aumentando a possibilidade de entrada de outros fluxos
migratórios), são representadas pelas mídias, o que em última análise permite perceber um
pouco da cultura geopolítica do país e de como o pais de posiciona no mundo num contexto
de fluxos migratórios crescentes por motivos pelo meio ambiente.
Assim, como se vê, o debate não só é pautado, como é exposto ao público de massa sob
um ponto de vista que privilegia aspectos da geopolítica e enfoca as responsabilidades e
conflitos que emergem ao se definir os moldes da ajuda humanitária. Importante destacar
que essa ajuda, em muitos casos, é vista como mero apoio em termos de segurança e
nutrição, no local do desastre ambiental, às vítimas, negligenciando, em grande parte, os
aspectos relacionados ao movimento migratório, forçado ou voluntário, e como isso se
insere no processo de garantia dos direitos humanos. Isso fica patente no fato de haver
grande confusão em se denominar, em um primeiro momento, esses migrantes como
“refugiados”, dando a possível impressão de que sua situação jurídica internacional esteja
garantida quando, na verdade, se oculta um problema de caráter multilateral que a
sociedade internacional tem que enfrentar nos próximos anos.
O enfoque dado à importância do Brasil no Haiti acaba por deixar pouco detalhe e
profundidade à analise das condições que levaram haitianos a migrar. Deixa também muito
pouco debate sobre a nova condição do Brasil como pais recebedor de migrantes e dos
problemas de efetividade e controle das fronteiras brasileiras. Restam ainda dúvidas de
como o discurso securitário brasileiro se articula (os três mídia, neste aspeto, evidenciam
nuances entre a utilização dos termos “refugiado” e “imigrante ilegal”) e como se apresenta
face ao discursos de segurança ambiental mais restritivos veiculados por alguns países do
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