Anais Eletrônicos do VIII Encontro Internacional da ANPHLAC Vitória – 2008 ISBN - 978-85-61621-01-8
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Viva Zapata!, de Elia Kazan: um olhar norte-americano sobre a América Latina durante o período macartista
(1950-1954).
Andréa Helena Puydinger De Fazio1
Resumo
Proponho, na pesquisa de mestrado entitulada Viva Zapata!, de Elia Kazan: um olhar
norte-americano sobre a América Latina durante o período macartista (1950-1954), fazer
uma análise sobre as formas que os Estados Unidos vêem o México, e de forma mais
abrangente, a América Latina, através das visões, imagens e representações construídas pelo
filme Viva Zapata! (Viva Zapata!). Dirigido por Elia Kazan, escrito por John Steinbeck e
produzido por Darryl Zanuck em 1952, Viva Zapata!, que narra a trajetória de Emiliano
Zapata durante a Revolução Mexicana, trata-se de uma obra bastante significativa e
inteiramente vinculada ao seu contexto histórico. Assim, além de buscar as representações
que o diretor norte-americano faz do México, busco compreender as intenções dos produtores
com sua obra, suas mensagens implícitas e de que forma dialoga com o contexto em que foi
produzido.
Introdução
A década de 50 nos Estados Unidos caracteriza-se principalmente pela histeria
anticomunista, também conhecida como caça às bruxas ou macarthismo (alusão ao senador
Joseph McCarthy). A perseguição dos comunistas, acusados de atividades subversivas contra
o Governo, atingiu todos os setores da política e da sociedade norte-americanas, e a indústria
cinematográfica foi um dos principais alvos. Elia Kazan pode ser considerado um dos grandes
diretores do período, bastante polêmico devido à delação de ex-companheiros do Partido
Comunista. Os filmes por ele dirigidos sempre estão intimamente ligados aos problemas da
sociedade norte-americana, o que não é diferente em Viva Zapata!, que mesmo ambientado na
Revolução Mexicana não deixa de ser uma referência ao período em questão. Buscar as
intenções dos produtores e o significado deste filme são meus principais objetivos, assim
como as formas de representação do México e da Revolução.
1 Mestranda do programa de pós-graduação em História da UNESP - Universidade Estadual Paulista – Câmpus de Assis. Email: [email protected]
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Neste texto, me voltarei aos principais objetivos da pesquisa: o primeiro será entender
as intenções dos produtores com o filme, qual sua mensagem principal e como ele se
relaciona com o período em que foi produzido. Essas questões serão respondidas
principalmente a partir da análise do contexto político e cultural em que se deu a produção do
filme. Também o conhecimento das tendências e ideologias dos produtores, mais
especificamente de Elia Kazan e John Steinbeck, se torna necessária para que possamos
entender quais as principais temáticas de Viva Zapata!.
Ainda tenho como objetivo buscar as representações e visões do México e da América
Latina construídas pelo filme Viva Zapata!, busca que se dá principalmente a partir da análise
dos diálogos entre as personagens, de suas características físicas e psicológicas e das formas
com que são mostrados os ambientes. Acredito que as representações da América Latina
existentes no filme são mostradas de forma não intencional ou prioritária, e sim que essas
idéias já estariam intrínsecas ao pensamento de Kazan e Steinbeck. A partir dos métodos
adotados por Marc Ferro, um dos pioneiros no estudo entre as relações Cinema/História,
percebemos que a fonte fílmica é capaz de desvendar aspectos da sociedade de sua época,
assim como ideologias ou crenças dos produtores, que estes não tem intenção de mostrar.
Parto da premissa de que a análise de Viva Zapata! é uma forma privilegiada para
entender os Estados Unidos da época, já que as fontes fílmicas revelam muito sobre o
momento político, social e cultural em que são produzidas. Também acredito que os o filme
ajuda a construir uma imagem negativa da América Latina, como lugar do caos político,
revoltas, governos tiranos, em contraposição com os Estados Unidos, onde a democracia e
liberdade predominam.
Do filme
Viva Zapata! (título original Viva Zapata!) foi produzido em 1952 nos Estados
Unidos, pela Twentieth Century Fox Film Corporation, e teve seu roteiro baseado em uma
adaptação livre de Zapata the Unconquerable, de Edgcumb Pichon. Dirigido por Elia Kazan,
escrito por John Steinbeck e produzido por Darryl Zanuck, conta com a direção de arte de
Leland Fuller e Lyle Wheeler; fotografia de Joseph MacDonald e música de Alex North.
Estrelado pelos atores Marlon Brando, no papel de Emiliano Zapata, e Anthony Quinn, no
papel de Eufêmio Zapata, a produção ainda apresenta Alan Reed (Pancho Villa), Harold
Gordon (Francisco Madero), Frank Silvera (General Huerta), entre outros. Indicado ao Oscar
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de Melhor Ator (Marlon Brando), Melhor Direção de Arte, Melhor Trilha Sonora e Melhor
Ator Coadjuvante (Anthony Quinn), foi premiado nesta última categoria. No Festival de
Cannes ganhou o prêmio de Melhor Ator (Marlon Brando, que foi premiado ainda com o
BAFTA de Melhor Ator Estrangeiro, além de ter sido o filme indicado à categoria de Melhor
Filme).
O filme conta a história de Emiliano Zapata, que liderou a revolução dos lavradores
mexicanos contra a dominação dos grandes proprietários de terra, apoiados pelo presidente
Porfírio Diaz.
Contexto histórico
O contexto em que se deu a produção do filme foi o pós Segunda Guerra Mundial, em
1945. Em 5 de março de 1946, o ex-primeiro ministro britânico Winston Churchill fez o
discurso conhecido como discurso da cortina de ferro, por ter aplicado pela primeira vez essa
expressão à situação surgida no pós guerra. Assim, conclamava os Estados Unidos a uma
associação fraternal dos povos de língua inglesa para enfrentar o que Churchill considerava
uma crescente ameaça comunista.2 Aceito como uma espécie de certidão oficial de
nascimento da Guerra Fria, esse discurso foi o primeiro a retratar a Rússia como ameaça
vermelha à conquista do mundo, e desencadeou uma cruzada mundial para conter o
comunismo do mundo inteiro, em nome da democracia anglo-saxônica.
A década de 1950 nos Estados Unidos caracteriza-se principalmente por uma euforia
anticomunista, também conhecida como caça às bruxas ou macarthismo (alusão ao senador
Joseph McCarthy). A influência anticomunista penetrava através dos diversos veículos de
comunicação; livros didáticos de história sofriam deformações, rendendo-se a estereótipos
macartistas; a Alfândega e os Correios entregaram-se igualmente à censura patriótica,
inclusive com violação e interceptação em larga escala de correspondências procedentes de
certos países. Também entidades profissionais de médicos, arquitetos, advogados e outras se
submeteram à pressão para adotar juramentos de lealdade aos Estados Unidos, também
impostos no serviço público.
Partindo da premissa de que, para os investigadores, todo membro do Partido
Comunista era agente de uma ideologia estrangeira, e estaria procurando substituir a forma de
2 FERREIRA, Argemiro. Caça às bruxas. Macartismo: Uma tragédia americana. Porto Alegre: L&PM, 1989, p.37.
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governo norte-americano pela sua, pode-se concluir que qualquer pessoa nessa condição,
empregada nos meios de entretenimento e de informação, utilizaria sua posição para atacar os
princípios nacionais e fazer propaganda dos princípios comunistas. Por conseguinte,
sustentavam os congressistas, a indústria cinematográfica deveria livrar-se de todo e qualquer
comunista que empregava. Os subversivos mais perigosos eram os escritores, já que sua
posição não ficaria tão clara como a dos atores. Nesse sentido, Robert Sklar afirma que,
primeiramente, os estúdios se recusavam a demitir funcionários somente devido a filiações ao
PC, propunham sim expulsar aqueles cuja lealdade fosse posta em dúvida. Porém,
convencidos pelo fato de que, se viesse à tona para o público que um ator ou diretor era
comunista, aquele poderia mostrar seu repúdio afastando-se do cinema, o que seria um
desastre econômico para a indústria. Pouco tempo depois, a Twentieth Century-Fox anunciou
que “dispensaria os serviços” de comunistas e de todas as outras pessoas que se recusavam a
responder perguntas sobre a filiação ao Partido Comunista. Ainda segundo Sklar, foi-se
aprimorando aos poucos um “sistema de esclarecimento”, em que um acusado satisfaria as
exigências dos acusadores. Para os não comunistas, o esclarecimento requeria repúdio de
todas as opiniões e associações liberais; dos ex-comunistas, se exigia um ritual público
humilhante de expiação, em que eles eram obrigados a dar os nomes de outros comunistas de
Hollywood.3
Como a indústria do cinema tornou-se um dos alvos prioritários dos investigadores,
seus produtos, estão, na avaliação de Argemiro Ferreira, entre os dados mais reveladores do
período. “A atividade do Partido Comunista em Hollywood nas décadas de 30 e 40 e os
efeitos da caça às bruxas a partir de 1947 refletem-se nos filmes que produziu e exportou”.
Ferreira cita alguns exemplos. O documentário Hollywood on trial, de David Helpern, foi
produzido em 1976, e reproduz imagens da época e apresenta depoimentos de personagens
envolvidos. A ficção cinematográfica também se ocupou várias vezes do tema, inclusive em
The front (Testa de ferro por acaso), de Wood Allen (1976); The way we were (Nosso amor de
ontem), de Sidney Pollack (1973); On the waterfront (Sindicato dos ladrões), de Elia Kazan
(1954); The view from the bridge (O Panorama visto da ponte), de Sidney Lumet (1962), My
son John (Não desonres o teu sangue), de Leo McCarey (1954), entre outros. Os filmes,
melhor do que qualquer outro documento reconstituiria o clima do macartismo, suas
3 SKLAR, Robert. História social do cinema americano. São Paulo: Editora Cultrix, 1975, p.311.
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cerimônias de degradação e seus rituais de delação, além dos efeitos diretos ou indiretos na
vida cotidiana de uma comunidade, nos dramas familiares e nos comportamentos individuais.4
Nos primeiros anos da década de 1950, entretanto, Hollywood estava em meio a uma
crise. Se as décadas de 30 e 40 foram marcadas pela dominação absoluta do cinema como
principal meio de entretenimento popular, agora esse lucrativo mercado estava ameaçado pelo
surgimento de outro meio que se popularizava cada vez mais: a televisão. Para os estúdios
cinematográficos a popularização desta representava uma ameaça real para o mercado. Em
1946 cerca de 90 milhões de norte-americanos freqüentavam semanalmente os cinemas norte-
americanos, em 1952 esse número havia caído para 51 milhões.
Não só a televisão era um meio muito mais acessível e barato de entretenimento, como
ela acabou abocanhando uma parcela de produções muito lucrativas para o cinema. Nessa
época roteiros de comédias e dramas que mostravam o cotidiano da classe média norte-
americana, foram facilmente adaptados para os seriados televisivos devido aos seus baixos
custos de produção. Por isso, os estúdios precisavam concentrar seus esforços em produções
que se diferenciavam das vistas na televisão. Para tanto, era necessário reformular não só o
conteúdo dos filmes, mas também reforçar o impacto visual das produções. Investiram
primeiramente na disseminação do cinema a cores, uma vez que agora as televisões já eram
coloridas. Assim as produções em Technicolor se tornaram padrão, e os filmes de romance,
espetáculo e reconstituição histórica foram os primeiros a ganhar cor. Outro novo
procedimento adotado foi o formato de tela gigante, que se diferenciava das telas comuns das
televisões.
Além da necessidade se superarem tecnicamente, os estúdios da época tiveram
também que contornar o problema da perseguição ideológica promovida pela política do
macartismo. Essa política por um lado estimulou os setores mais conservadores dentro do
cinema, não apenas se utilizando dele como arma de propaganda ideológica, mas também
incentivando as produções mais ingênuas e politicamente inofensivas que passavam a ilusão
da prosperidade daqueles anos. As comédias romances desse período também mostram certa
ingenuidade, sendo que lugar comum nesses enredos são a confiança no sonho americano e o
final feliz com o protagonista se casando e ascendendo socialmente. Por outro lado impôs
uma grande limitação à maneira de se abordar diversos temas dentro do cinema, que se
4 FERREIRA, Argemiro. Caça às bruxas. Macartismo: uma tragédia americana. Porto Alegre: L&PM, 1989, p.123.
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utilizaria de uma crítica muito mais sutil para extravasar o descontentamento que sentiam com
sua época.
Em relação às temáticas presentes nos filmes, diversos temas não muito comuns a
Hollywood começam a surgir, tais como a decadência das relações familiares, tanto do
casamento quanto a relação entre pais e filhos. O contexto da guerra-fria, entretanto, ocupava
a imaginação das pessoas, e abordagens positivas ao american way of life se tornaram
bastante comuns, fazendo apologia ao consumismo de bens e alimentos. A ameaça da bomba
atômica gera o consumismo de abrigos e roupas especiais, para serem usadas no caso de um
ataque. O gênero da ficção científica se fortalece muito, mostrando ameaças vidas de fora –
marcianos que querem destruir os Estados Unidos são uma referência à ameaça vermelha.
Filmes de espionagem também se destacam nesse período.
O fenômeno do star system tornou atrizes como Marylin Monroe, Grace Kelly, Doris
Day, Brigite Bardot grandes ícones, que mesclam ingenuidade e sensualidade para conseguir
alcançar seus objetivos: arrumar um bom casamento e constituir uma família. Grandes atores
como Marlon Brando e James Dean tem também ganham grande destaque, interpretando
jovens rebeldes, que rejeitam os valores tradicionalmente aceitos na sociedade, vão contra a
vida convencional e fútil que vivia toda a classe média da época, deslumbrada com as novas
possibilidades de conforto que o mercado de consumo produzia. Esses jovens, rotulados como
rebeldes sem causa, serão retratados em filmes como "O Selvagem" (1954), "Vidas Amargas"
(1955) e "Juventude Transviada" (1955).
Dos produtores
Elia Kazan, importante cineasta americano, e John Steinbeck, reconhecido roteirista,
desenvolveram parte de suas obras durante o período macartista. Formaram parcerias,
inclusive no filme Viva Zapata!, de 1952.
Elia Kazanjoglou nasceu em Istambul, Turquia, em 7 de setembro de 1909. Os pais de
origem grega: Athena Sismanoglou e Georges Kazanjoglou. Elia tinha quatro anos quando a
família mudou-se para a América. Os primeiros estudos foram feitos nas escolas públicas de
Nova York, mas foi na Yale’s Drama School que aconteceu a descoberta de sua vocação
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dramática. A estréia como diretor foi em 1931, com a peça The second man, de S. N.
Behrman, no Troy Theatre de Atlantic City. Elia então tinha 22 anos incompletos.5
Em 1932 foi trabalhar como aprendiz no Group Theatre. Fundado no ano anterior,
esse grupo formado por inconformistas - como Carlos Fonseca nomeia - do teatro e da
política, pretendia revolucionar o teatro americano, modificando suas bases clássicas por
outras mais atuantes e participantes nos problemas do homem. A estréia como ator foi em
1932, num pequeno papel (Louis, um barman) de Chysalis, peça de Rose Albert Porter.
Além do Group Theatre pertenceu ao Theatre of Action e ao League of Workers
Theatre, pequenos grupos formados também por inconformistas do teatro e da política. Anos
mais tarde, em 1947, Kazan criou com Cheryl Crawford o Actors’ Studio. “Não é uma
companhia teatral, não é um teatro, não é uma escola dramática para principiantes. É uma
oficina de trabalho para atores, profissionais, diretores, teatrólogos”6, dizia Kazan. Tempos
depois, com uma bagagem teatral vasta (12 peças como ator, 30 como diretor) Kazan declara
que não voltará mais ao teatro.
Como cineasta iniciou a carreira em 1934, dirigindo curtas-metragens e
documentários. Em 1944 Elia Kazan fez sua estréia em Hollywood com Laços humanos (A
tree grows in Brooklyn), que, com boa repercussão crítica, lhe proporcionou prestígio junto
aos produtores.
Com uma vasta carreira – participou como ator em 12 peças na Broadway e em dois
filmes de Hollywood7, escreveu três livros8 e dirigiu 18 filmes9 - Kazan é, na maioria das
vezes, classificado como ambíguo e paradoxal por estudiosos do cinema. Será lembrado e
citado não só por seus filmes ou livros, mas principalmente pela sua delação, ato cometido em
1952, quando denunciou ex-companheiros do Partido Comunista à HUAC - Kazan entrou
para o PC em 1934 e permaneceu membro por dois anos. 5 FONSECA, Carlos. Elia Kazan. Revista Filme Cultura, ano VII, n.23, p.37-52, Jan./Fev. 1973, p. 39. 6 Citado por FONSECA, Carlos. Op.cit. p.39. 7 City of conquest (Dois contra uma cidade inteira), de 1940, e Blues in the nigth (Uma canção para você), de 1941, ambos dirigidos por Anatole Litvak. 8 América, América; The arrangement; The assassin, sendo que os dois primeiros, posteriormente, seriam por ele dirigidos nos cinemas. 9 Entre os mais polêmicos, Gentleman’s agreement (A luz é para todos), considerado um filme corajoso, de 1947 que aborda a questão do anti-semitismo nos Estados Unidos; Pinky (O que a carne herda), de 1949, trata da questão racial no sul dos EUA; A streetcar named desire (Uma rua chamada pecado), 1950, considerado ruptura para uma nova fase, mais personalista, bastante atacado por suas características “teatrais”; On The waterfront (Sindicato dos ladrões), de 1954, décimo filme de Kazan, ganhou 8 Oscar, incluindo melhor diretor. Aborda o meio sindical americano, também considerado uma justificativa para sua delação; East of Eden (Vidas amargas),
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Sobre o episódio da delação, Sheila Schvarzman defende que Kazan não delatou seus
ex-companheiros devido a pressões externas, como outros delatores da época fizeram:
O fato é que se pode observar que a idéia de delação, ou a crença na necessidade do pleno esclarecimento como forma saneadora, amadurece em Kazan e manifesta-se em sua obra a partir do final dos anos 40, isto é, ao mesmo momento em que o realismo torna-se um aspecto central de seu cinema. É possível supor que, nesse momento de triunfo do macartismo, Kazan já se sentisse pressionado a denunciar seus ex-companheiros de PC. Mas, sobre isso, nunca se poderá ir além da conjectura. Ao contrário, a visão de seus filmes fornece inúmeros elementos para acreditar que Kazan preparou-se detidamente para a colaboração.10
Schvarzman afirma ainda que a hesitação de Kazan não se assemelha à de outras
pessoas que delataram naquele período, por saberem que o silêncio equivalia à ruína de suas
carreiras, ou mesmo de suas vidas. No caso de Kazan, foi um processo interior que se revelam
em filmes produzidos antes do episódio da delação.
Kazan, em sua segunda aparição diante do Comitê de Investigação das Atividades
Antiamericanas11 confirma os argumentos de Sheila. Afirmou que o povo americano
precisava conhecer a verdade sobre os fatos e insistiu em dar os nomes de figuras do universo
teatral que conheceu no Partido Comunista. Justifica seu ingresso no PC com o argumento de
que naqueles anos não percebia uma clara oposição entre os interesses norte-americanos e
soviéticos.
Para mim nem sequer estava claro que o Partido Comunista recebesse suas ordens do Kremlin e atuasse como órgão soviético neste país. Pelo contrário, na época me parecia que o Partido adotava de coração a causa dos pobres e desempregados que eu via perambulando pelas ruas. Sentia que me inscrevendo poderia ajudá-los, combateria Hitler e, por estranho que hoje pareça, sentia que trabalhava pelo bem do povo norte-americano.12
Relatou as razões que o levaram a afastar-se da organização: 1955, primeiro filme de James Dean, e conta também com a parceria de John Steinbeck, trata sobre uma tragédia familiar; Viva Zapata! (de mesmo título original). 10 SCHVARZMAN, Sheila. O elogio da delação. Cinemais – Revista de Cinema e outras questões audiovisuais. N.16, p.137-158, Mar./Abr. 1999, p.141. 11 No primeiro depoimento, em 14 de janeiro de 1952, se recusou a citar nomes e a dar informações que permitissem identificar outras pessoas. Porém, ameaçado pelo desemprego, compareceu novamente diante o Comitê. 12 Citado por PEIXOTO, Fernando. Hollywood: Episódios da histeria anticomunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p.164.
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Em vez de trabalhar honestamente pelo bem do povo norte-americano, havia descoberto que me utilizavam para entregar o poder às mãos de pessoas pelas quais, individualmente e como grupo, não sentia mais que desprezo, e por cujas linhas de conduta experimentava autêntico horror.13
Sheila Schvarzman, no artigo Elia Kazan, um homem na corda bamba14 afirma que
Kazan deixa longe as certezas que fundaram o cinema americano clássico. Deixa longe
também a idéia de um mundo uno, inteligível, seja à esquerda, seja à direita. Apesar de ter
sido um delator do macartismo, o que poderia levar a filiá-lo como conservador, seus filmes
sempre causaram perplexidades nos dois campos. O Elia Kazan de Sheila Schvarzman tem
uma visão de mundo multifacetada, ambivalente; não mostra bons e maus, coloca a nu o
conflito no embate e engendramento destes termos; apresenta histórias elaboradas, que não se
encaminham para o “final feliz”, mas para o final possível. Seguindo a mesma linha, o Elia
Kazan de Carlos Fonseca é:
Dono de uma estética própria, é o criador de um universo próprio, onde vivem criaturas que são do nosso mundo, que sofrem as nossas mesmas angústias, vibram com nossos mesmos prazeres, mas são sobretudo de Kazan. Pode parecer um paradoxo que um universo tão geral também seja particular, que um universo de gente tão verdadeira seja o universo sob a visão essencial de um só homem.15
Humberto Pereira da Silva16 vê o cinema como meio para que Kazan purgasse alguns
de seus demônios e acertasse as contas com sua origem grego-turca:
Para os americanos, ele passou por um rito de passagem: protegeu a América pela delação. Da mesma forma ele se americanizou na medida em que realizou filmes com temáticas tão obsessivamente americanas.17
13 Citado por PEIXOTO, Fernando. Op.cit. p.164. 14 SCHVARZMAN, Sheila. Elia Kazan, um homem na corda bamba. Esse artigo faz parte de sua dissertação de mestrado “Como o cinema escreve a história: Elia Kazan e a América”, defendida no Departamento de História da IFCH – Unicamp. 15 FONSECA, Carlos. FONSECA, Carlos. Elia Kazan. Revista Filme Cultura, ano VII, n.23, p.37-52, Jan./Fev. 1973 p.37. 16 SILVA, Humberto Pereira. Dossiê Elia Kazan. Revista de Cinema. Editora Krahô, V 2, n.20, p.24-29, Dez. 2001. 17 SILVA, Humberto Pereira. Op.cit. p.29.
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Kazan, segundo Glauber Rocha, conseguiu, a despeito das dificuldades, conquistar o
público e popularizar-se ao nível de um ator, fenômeno raro em Hollywood.18 Deixa claro,
porém, sua antipatia pelo cineasta, que conserva a maldição de ser um “dedo-duro”. Sobre sua
estética, acredita: “naturalismo de segunda classe disfarçado em realismo moderno”.19
John Steinbeck (27/02/1902 – 20/12/1968), roteirista de Viva Zapata!, nasceu na
cidade de Salinas, Califórnia. Único filho homem de John Ernst e Olive Steinbeck. Segundo
seu biógrafo Jay Parini, o pai era um comerciante fracassado, que se tornou funcionário
público estadual, e cedo se afastou do filho. Steinbeck terminou o curso secundário na Salinas
High School. No ano seguinte, ingressou na Universidade de Stanford, exercendo várias
profissões para custear os estudos. Entretanto, não chegou a ser formar. O motivo, nas
palavras de Parini: “bebia demais e lia os livros errados”.20 Em 1925 empregou-se no Jornal
American de Nova York. Estreou na literatura com A Taça de Ouro (1929), biografia de
Henry Morgan.
Durante o período macartista, Steinbeck foi considerado pela direita conservadora
como antiamericano devido à publicação de As vinhas da Ira, provavelmente sua obra mais
conhecida pelo grande público. Soubera da delação de Kazan através do mesmo, e, talvez pela
amizade que cultivavam, solidarizou-se. Ainda o considerava um “homem bom e honesto”, e
dizia esperar que os “comunistas e medíocres não o fizessem em pedaços”.21 Assim como
apoiou a decisão de Kazan, defendeu publicamente as atitudes da teatróloga Lillian Hellman e
Arthur Miller, quando ambos foram chamados para depor no comitê, e se recusaram a falar.
Por volta de 1948, Kazan ofereceu-lhe o filme Viva Zapata!, trabalho que Steinbeck
realizou, segundo Jay Parini, com muita dedicação. Durante semanas viajou pelo México
pesquisando e tomando notas sobre a vida e a época de Emiliano Zapata. O projeto absorveu-
o inteiramente. Kazan e o roteirista chegaram a viajar juntos pelo México, ainda realizando
pesquisas para o filme. Os dois eram grandes amigos. E o México era um dos lugares
preferidos de Steinbeck, sendo o cenário também de uma novela, A pérola. Após muitas
visitas ao México, Viva Zapata! foi lançado em 1952, e rendeu mais de três milhões de
dólares em menos de um mês. Esse sucesso comercial levou a outra parceria, em Vidas
amargas, de 1955.
18 ROCHA, Glauber. O século do Cinema. São Paulo: Cosac & Naify. 2006, p.89. 19 ROCHA, Glauber. Op.cit. p.92. 20 PARINI, Jay. John Steinbeck, uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1998. 21 Citado por PARINI, Jay. John Steinbeck, uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1998, p.405.
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O anticomunismo e as representações do México em Viva Zapata!
Na produção em preto e branco predominam os ambientes externos, caracterizados
pelas montanhas, desertos e pouca vegetação. A trilha sonora é usada principalmente nos
momentos de tensão ou suspense, dando maior dramaticidade às cenas. Os filmes dirigidos
por Elia Kazan sempre estão intimamente ligados aos problemas da sociedade norte-
americana, o que não é diferente em Viva Zapata!, que mesmo ambientado na Revolução
Mexicana – o que faz deste um filme peculiar de Kazan, também por se tratar de uma
reconstituição histórica --, faz referência ao período em questão.
Durante o filme todo, apesar de ser bastante julgado pelos homens mais conservadores
como um bandido, Zapata é visto pelo povo como um líder, um herói, e em momento algum
apresenta características negativas. Pelo contrário, é mostrado como um homem bom, justo e
ético, que não se deixa deslumbrar pelas vantagens do poder e nem o usa para proveito
próprio. Por isso pune seu irmão, que usou o poder de forma imprópria, e foi contra os ideais
de sua luta. Em relação à representação de Zapata, o filme não parece estar contaminado com
o preconceito que existe em relação ao movimento Zapatista, formado basicamente por índios
e mestiços, vistos pela imprensa e pela sociedade da época através dos estereótipos, que os
consideravam pouco organizados e dedicados ao banditismo e depredação.
Kazan conta com Marlon Brando interpretando Zapata, ator de bastante destaque na
época, com quem realizou outras parcerias, como em A streetcar named desire (Uma rua
chamada pecado), de 1950 e On The waterfront (Sindicato dos ladrões), de 1954. É também
uma produção da Twentieth Century Fox Film Corporation, um dos grandes estúdios no
período. Entretanto, percebemos que não é possível inserir seu filme somente nos fenômenos
que caracterizam o cinema da época, sua abordagem é muito mais complexa do que as
produções dos grandes estúdios que buscam somente o sucesso nas bilheterias através do uso
de rostos conhecidos, vencendo assim a guerra contra a televisão. Após sua análise,
percebemos a presença de duas temáticas fortes: a forma de representação dos mexicanos e a
questão da Revolução.
Em relação à primeira, sabemos que o interesse do cinema norte-americano pela
América Latina é usualmente associado à “política de boa vizinhança” empreendida pelos
Estados Unidos na década de 1940. Desse momento data a inserção das temáticas latinas nos
filmes, dentro de um esforço de integração ao mercado. Em 1945, por exemplo, a produção
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Hollywoodiana dividiu-se em 96 filmes sobre a guerra, 38 sobre o american way of life, e 84
sobre a América Latina. Tal situação conjugava-se aos estrondosos sucessos de Carmen
Miranda e dos desenhos de Walt Disney.22
Porém esses filmes ajudam a construir uma imagem geralmente estereotipada da
América Latina, como lugar do caos político, revoltas, tiranos, em contraposição com os
Estados Unidos, local onde a democracia e liberdade predominam. Segundo João Feres Jr., os
Estados Unidos são o pólo de comparação puramente positivo, ao passo que a América Latina
é sempre apresentada como o contrário daqueles. Feres defende que a atribuição de
características pejorativas aos latinos é uma forma que os americanos utilizam para reforçar
sua própria identidade em detrimento das populações das Américas Central e do Sul, e
difundir seus princípios de vida.23 A partir da implantação da Política de boa vizinhança, deu-
se início ao plano de “americanização” dos países latino americanos, “processo de
implementação das ideologias norte americanas nas culturas débeis da América Latina”.24
Em The Latin Image in American Films, Allen Woll 25 aponta para a violência que é
comum a todos os estereótipos dos homens latinos – o bandido, o revolucionário, o toureiro.
As mulheres, por outro lado, remetem ao calor e à salsa. Arthur G. Pettit, em Images of the
Mexican American in Fiction and Film26 argumenta que o mexicano já e definido
negativamente, em termos de qualidades diretamente opostas às do protótipo do anglo-saxão.
Sendo assim, não basta saber que a imagem implica construção, temos que buscar entender
construção para quem e em conjunção com quais ideologias e discursos. No caso do filme
Viva Zapata!, a questão de produção de estereótipos mais visível se dá em relação à política,
pois representa o México como lugar onde o caos político predomina, onde o povo não tem
voz e os governantes são ditadores tiranos. Essas idéias ficam claras quando nos deparamos
com os diálogos acima descritos sobre a situação do México no contexto da Revolução,
sempre contrária a dos seus vizinhos norte-americanos, que vivem muito bem com sua
democracia e justiça. As imagens de bandido (mais no que diz respeito aos políticos) e
revolucionário permanecem. Emiliano Zapata é muito bem representado, conforme dito 22 MENEGUELLO, Cristina. Poeira de estrelas: o cinema Hollywoodiano na mídia brasileira das décadas de 40 e 50. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996, p.11-12. 23 FERES Jr., João. A história do conceito de “Latin América” nos Estados Unidos. Bauru: Edusc, 2005. 24 TOTA, Antônio Pedro. O Imperialismo Sedutor: A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p.19. 25 Citado por SHOHAT, Ella e STAN, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. 26 Citado por SHOHAT, Ella e STAN, Robert. Op.cit.
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acima, como homem justo e honesto, apaixonado e romântico, bastante parecido com os
moçinhos hollywoodianos, crente na conquista da democracia através da luta contra as
injustiças sociais.
Para possibilitar a discussão acerca das representações presentes no filme, apresento
uma rápida discussão sobre como os norte-americanos vêem a sim mesmos e aos outros. É
bastante presente na bibliografia que trata das relações entre os Estados Unidos e América
Latina a idéia de que, seguindo a mentalidade do Destino Manifesto, os norte-americanos se
auto-representam como um povo de raça e cultura superiores, principalmente quando
comparados aos mestiços católicos que habitam o sul do Rio Grande. Essa visão seria muito
forte na sociedade norte-americana, pois os colonos que ali se instalaram formaram sua idéia
de nação baseados na teoria de que eram únicos e superiores aos europeus, também
acreditavam que a incorporação aos Estados Unidos de todas as regiões adjacentes constituía
a realização de uma missão moral assinalada à nação, com o intuito de civilizar as populações
indígenas que viviam no interior.
Os Estados Unidos, desde sua Independência, estabeleceram diferenças e
distanciamento entre o mundo protestante ao norte, e o mundo católico dos espanhóis ao
Sul.27 Desde os primórdios, a América Latina era vista como fanática, ignorante,
supersticiosa, onde havia princípios diferentes e impossibilidade de instalação de uma
democracia ao modelo norte-americano. “Eles são vagabundos, sujos, grosseiros e, em suma,
eu posso compará-los a nada mais do que um bando de porcos”, acreditava John Quincy
Adams (Secretário de Estado do governo norte-americano de 1817 a 1825, e Presidente de
1825 a 1829), que precisou de uma ordem direta do Presidente Monroe para que reconhecesse
como legítimas as recém independentes nações da América Latina. John Quincy Adams
criticava ainda o catolicismo:
Pobres criaturas, são devoradas pelos padres. Perto de três quartos do que ganham vai para o clero e com o quarto restante devem viver como puderem. Assim é este reino inteiro enganado e iludido pela sua religião. Dou graças a Deus Todo-Poderoso por eu ter nascido num país onde qualquer um pode viver bem se quiser.28
27 JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande – imaginando a América Latina em Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000, p.13. 28 SCHOULTS, Lars. Estados Unidos: poder e submissão: uma história da política norte-americana em relação à América Latina. Bauru: EDUSC, 2000, p.21.
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O fato de os latino-americanos serem hispânicos influenciava muito a visão dos norte-
americanos. A crença em sua inferioridade se estabeleceu antes do conhecimento efetivo dos
países, partindo do princípio de que não eram protestantes, brancos e anglo-saxãos. Assim, a
separação entre América Latina e anglo-saxã existe desde seus primórdios. “São construções
marcadas pelos estereótipos e imagens negativas que freqüentemente são recuperadas,
reconstruídas e reforçadas”.29
O contraste estabelecido era, então, de um mundo civilizado, protestante e anglo-saxão
ao Norte, e outro primitivo, católico e hispânico ao sul. Logo após suas lutas pela
independência, os latino-americanos eram vistos como “vinte milhões de pessoas espalhadas
sobre um continente sem rumo, separadas umas das outras por imensas porções de região
desabitada, sem concordância, sem recursos, e totalmente ignorantes no que se refere aos
princípios de um governo civil”.30
A historiadora Mary Anne Junqueira, em Ao sul do Rio Grande – imaginando a
América Latina em Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970), analisa as visões,
imagens, representações sobre a América Latina construídas pela revista Seleções. Mostra
uma comparação entre o mito da conquista do oeste norte-americano e a América Latina,
ambos tidos como ambientes hostis, que precisavam ser dominados e civilizados pelo homem
branco. O expansionismo para o oeste se baseava na idéia de que os norte-americanos eram
um povo eleito por Deus, apossando-se da terra prometida. Freqüentemente desqualificado, o
interior era caracterizado como caipira e rude, em contraposição ao Leste aristocrático e
influenciado pela cultura refinada européia. Também a América Latina é vista como um
território rico em recursos naturais, porém política e economicamente subdesenvolvidas, que
constituem um mercado para os produtos norte-americanos, espaço de um mercado
consumidor crescente, e onde o norte-americano empreendedor poderia ser novamente o
“pioneiro” qualificado para levar o progresso, como já havia feito no oeste.
Citando palavras de Mary Anne, ao voltar-se para a América Latina,
Seleções tratava de tudo aquilo que estava abaixo do Rio Grande, a fronteira natural entre os Estados Unidos e México, sem a percepção das diferenças culturais existentes na região. A distinção ressaltada era de um mundo civilizado – espiritual, cultural e moralmente avançado ao Norte e um mundo ao Sul, com territórios primitivos e natureza
29 JUNQUEIRA, Mary Anne. Op.cit. p.14. 30 SCHOULTS, Lars. Op.cit. p.18.
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selvagem, habitado por gente, também primitiva, que vivia de forma instintiva e emocional.31
No contexto da Guerra Fria, foi publicado na revista Seleções um artigo ressaltando os
Estados Unidos como centro do mundo ocidental, bastante significativo para a compreensão
do pensamento norte-americano. Entitulado O Grande Desafio da História à Nossa Cultura, o
artigo citado no livro Ao sul do Rio Grande, publicado na Seleções de maio/1959, pg. 52-53,
afirma: A maior civilização anterior à nossa foi a grega. Também os gregos viveram num mundo perigoso. Eram um povo pouco numeroso e altamente civilizado, cercado por tribos bárbaras e continuamente ameaçados pela maior potência asiática, a Pérsia. Em Maratona e em Salamina, as imensas cortes dos persas foram derrotadas por pequenos contingentes gregos. Provou-se ali que o homem livre é superior a muitos homens submissamente obedientes a um tirano.32
Assim, o artigo mostra que os Estados Unidos se vêem como herdeiros diretos da
civilização grega, o que os posiciona como “uma ilha de prosperidade e liberdade em meio
aos comunistas e aos bárbaros”. A Pérsia é claramente uma referência à União Soviética, e as
“tribos bárbaras” seriam os países da América Latina.
No filme Viva Zapata! é bastante clara essa divisão entre povos desenvolvidos no
Norte e primitivos no Sul. A forma de governo democrático, com um presidente que obedece
à voz do povo, onde há liberdade política e de pensamento, como são representados os
Estados Unidos, se mostra totalmente contrária à situação de ditadura e opressão em que se
encontrava o México durante o governo de Porfírio Diaz.
Percebemos que, além da referência de inferioridade racial, cultural e religiosa que os
norte-americanos fazem dos latino-americanos, é muito forte a concepção de que o caos
político, governantes corruptos e ditadores reforçam o subdesenvolvimento dessa região. A
população ignorante e inferior, por sua vez, não consegue alcançar a liberdade e democracia,
características da sociedade ideal norte-americana.
Essa forma de ver os latino-americanos se reflete nas produções culturais, inclusive se
torna um tema muito recorrente no cinema. Desde o começo do cinema nos Estados Unidos, é
bastante forte o tema do velho oeste, em que o cowboy valente deve derrotar a ameaça dos
índios e dos mexicanos na fronteira. A figura do mexicano ameaçador e hostil, que combina o 31 JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao sul do Rio Grande – imaginando a América Latina em Seleções: oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000, p.96.
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aspecto selvagem dos índios com a inferioridade cultural e religiosa dos hispânicos, acabou se
transformando na figura principal do imaginário norte-americano. A Revolução Mexicana,
que chamou muito a atenção dos cineastas da época, reforçou os clichês de hollywood sobre o
México, terra do caos político e da violência revolucionária, geralmente atribuída ao homem,
mostrado como bandido, bruto, violento, caracterizado pelos bigodes e sombreros, e com uma
garrafa de tequila na mão. Às mulheres mestiças estava reservado o que era considerado
normal nas latinas: sensualidade, promiscuidade, prostituição. Quando existia algum tipo de
relação entre mulheres latinas e homens brancos anglo-saxãos, elas geralmente eram
representadas por atrizes de pele mais clara, com certa cultura, vindas de famílias nobres e
tradicionais.
O cinema apresenta um retrato de uma América Latina corrupta e decadente, cujas
ditaduras repressivas se apresentam como uma ameaça externa e interna para os EUA.
Também os filmes reforçam os problemas econômicos e desemprego causados pela entrada
desses latinos nos EUA.
Ainda é importante lembrar que o México e a América Latina em geral, raramente são
representados como tema central dos filmes de hollywood. Ainda que tenham sido feitos
muitos filmes que incluem o México e a América Latina, foram produzidos pouquíssimos
sobre estes temas. Além do cinema tratar o México como realidade histórica e cultural a partir
de seus próprios termos, com muita freqüência o usa como metáfora, apenas um cenário
usado para se trabalharem problemas norte-americanas. Mesmo que os roteiros tomem
inúmeras formas, a mensagem subjacente é uma reafirmação explícita e implícita da
superioridade anglo-americana: superioridade mental, física e moral.
Carlos Cortés33, que trabalha com as representações das diferentes etnias no cinema
hollywoodiano, vê em Viva Zapata! uma das descrições mais positivas do México na história
do cinema norte-americano. Ainda que mostre vilões cruéis e sem piedade (Victoriano
Huerta), governantes fracos (Francisco Madero) e corruptos (Porfírio Diaz), também mostra
uma classe camponesa decente e valente, com valores positivos; um Emiliano Zapata heróico,
humano e dedicado, que corresponde aos ideais norte-americanos.
Acredito que Viva Zapata!, ao representar o México, reforça os estereótipos comuns
aos homens latinos – o bandido, revolucionário, mulherengo. Apresenta também o México 32 Artigo citado por JUNQUEIRA, Mary Anne. Op.cit. p.207-208.
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como local onde os governantes são ditadores e corruptos, e não há democracia ou justiça.
Emiliano Zapata está livre destes estereótipos já que seus valores são propositadamente
adequados aos ideais norte-americanos. A intenção de Kazan é formar uma oposição entre
Zapata, representante da bondade e da luta honesta, e Fernando Aguirre, traidor e
manipulador. Assim, estaria formada a oposição entre os ideais democráticos dos Estados
Unidos e o comunismo soviético. O ideal libertário de Zapata permanece vivo nos corações
dos camponeses mesmo após sua morte, o que representa a força de suas idéias, ou a força dos
ideais norte-americanos. Josefa, ao contrário das outras mulheres mostradas no filme, é uma
mulher branca, educada, de família nobre e tradicional. Sendo Emiliano Zapata um
representante dos ideais norte-americanos, não seria adequado que uma mestiça tomasse o
lugar de sua esposa, esse papel deve ser dado a uma branca, uma igual.
Viva Zapata!, à primeira vista um filme sobre a Revolução Mexicana, transforma-se
assim, após a análise de seu contexto e de seus produtores, em uma obra que faz referência
direta ao contexto de sua produção. Kazan se utiliza da Revolução Mexicana para expor suas
idéias e críticas sobre o conturbado momento político que caracteriza os anos cinqüenta nos
EUA. Fica claro que Kazan personifica em Emiliano Zapata sua própria postura
anticomunista. Mostra na personagem os bons ideais do americanismo, possuidor de grande
pureza democrática e de justiça, que luta somente pelos ideais dos camponeses e não se
aproveita das vantagens da posição de líder para próprio proveito. Se Zapata é o guerreiro da
guerra fria de Kazan, o comunismo é representado por Fernando Aguirre, oportunista e
subversivo, que contraria os ideais justos da Revolução, e a utiliza para alcançar o poder,
atingir seus interesses. Para isso troca de lado, já que no começo do filme apoia Zapata, trai
amigos e princípios. Fernando aparece durante todo o filme, acompanha Zapata quando sua
luta se mostra vitoriosa, mas o abandona e trai quando deixa o governo. È Fernando quem
orienta o General Huerta para que o matem, para assim sepultar a idéia libertária que ele
carrega. Segundo Kazan ele é a expressão do que é um comunista:
Ele tipifica o homem que usa as justas reivindicações do povo para seus próprios fins, que modela e muda o curso, trai qualquer amigo ou princípio ou promete atingir o poder e o mantém.34
33 CORTÉS, Carlos. Como ver al vecíno. In COATSWORTH, John H.; RICO, Carlos (orgs.). Imágenes de México en Estados Unidos. México: Fondo de Cultura Económica, 1989. 34 Citado por SCHVARZMAN, Sheila. Como o cinema escreve a história: Elia Kazan e a América. Mestrado em História. 1994. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
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Outra evidência sobre a maneira de pensar de Kazan pode ser encontrada nas relações
entre Emiliano e seu irmão Eufêmio. Quando Emiliano Zapata se torna presidente, torna-se
detentor de um poder simbólico, que para se tornar concreto exigia dele a adequação aos
moldes do governo, e a renúncia aos ideais puros que o moveram até ali. Eufemio Zapata
consente a esses moldes, torna-se um traidor da causa de Emiliano, e é morto.
Viva Zapata! então nos revela mais sobre a história dos EUA do que sobre a própria
Revolução, já que os personagens e situações são moldados a partir das intenções dos
produtores. Assim, Viva Zapata! é uma crítica ao comunismo que Elia Kazan conheceu, nos
anos em que foi membro do Partido Comunista. Kazan, quando prestou depoimento perante o
Comitê, afirmou que este “é um filme anticomunista”, demonstra que não existe coincidência
entre a revolta popular e os objetivos do poder revolucionário.
Considerações finais
Outros filmes de Kazan refletem essa tendência anticomunista, assim como fazem
referência aos episódios do macartismo. Segundo Sheila Schvarzman, essa mensagem está
presente também em Pânico nas ruas, de 1950, um filme policial, que mostra a perseguição a
homens que estiveram em contato com um estrangeiro contaminado pela peste bubônica, que
entrara ilegalmente no país. A investigação deve ocorrer de forma velada, pois se for
divulgada criará pânico, a fuga dos homens procurados, e em decorrência, a disseminação do
mal por todo o país. O agente federal de saúde que procura localizar os infectados, Dr. Clinton
Reed, depara-se com uma comunidade que não quer colaborar, que esconde o que sabe, e que,
ao negar às autoridades as informações de que necessita, só contribui para que o mal se
espalhe. Os já contaminados, aos esconderem os seus laços com o estrangeiro, por temerem as
conseqüências com a polícia, acabem morrendo.
Para a historiadora, Pânico nas Ruas é ainda mais claro do que Viva Zapata! em
relação ao problema do comunismo. Em vista de um quadro epidêmico, onde a doença pode
se disseminar é preciso detectar de onde vem o mal. Para tanto, o único instrumento de que
dispõem as autoridades é a “colaboração” da população. Para Schvarzman é inquestionável
que Elia Kazan admite, nesse momento, a delação como meio de defesa da sociedade contra
alguma ameaça externa.
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Esses filmes, ao mesmo tempo em que sinalizam uma nova escrita cinematográfica
pelo diretor, acumulam inúmeros indícios de uma nova inflexão em seu pensamento e na
maneira como encara os novos tempos. Daí a afirmação de Sheila, de que a delação foi um
processo interior de que esses filmes dão conta.
Feito dois anos depois de sua delação, Sindicato dos Ladrões (On the waterfront,
1954) é visto como uma justificativa aos seus atos. O filme aborda a injustiça e opressão a que
eram submetidos os portuários de Nova York e Nova Jersey desde os anos 30, e que se
intensificara depois do fim da Segunda Guerra. Terry Malloy (Marlon Brando), um elemento
marginal do sindicato dos portuários, serve de isca para o assassinato de um estivador que
colaborara com a Comissão Criminal do Cais, instituição governamental que procura provas e
depoimentos para demonstrar a situação irregular do sindicato. Terry é um ex-boxeador que
recebe “trabalhos especiais” por parte dos chefes da gangue, e recebe propina e proteção em
troca. Há, entretanto, uma tomada de consciência e necessidade de mudar, o que leva Terry a
denunciar a gangue. Interessante notar que também o roteirista do filme, Budd Schulberg, e
um dos atores principais, Lee J. Cobb, também haviam colaborado com os macartistas. 35
No filme Os visitantes (The visitors, 1972), a questão da delação retorna. No primeiro
filme americano sobre a Guerra do Vietnã, a personagem Bill delata três companheiros a uma
comissão militar de investigação pelos estupros cometidos durante a invasão a uma aldeia do
Vietnã do Sul, ocasião em que foram cometidas atrocidades a civis pelos soldados americanos
(trata-se de uma alusão ao episódio de Mi-Lai, em 1968).36 Segundo Sheila, o filme não se
trata de uma gangue que oprime trabalhadores, ou de comunistas infiltrados que poriam em
risco a integridade do país, mas de soldados americanos que cometem atrocidades numa
guerra onde eles estão presentes como “libertadores”.
Torna-se clara a influência que a delação teve em sua obra, porém não devemos
entendê-la somente como justificativa para seu ato. Viva Zapata!, assim como os outros
citados acima, apresentam questões complexas, além daquelas de cunho político. Simplificar
seria minimizar sua obra a um aspecto somente, sem buscar entender suas visões de mundo e
suas interpretações da sociedade e dos indivíduos que os cercam.
35 SCHVARZMAN, Sheila. Como o cinema escreve a história: Elia Kazan e a América. Mestrado em História. 1994. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. 36 SCHVARZMAN, Sheila. Como o cinema escreve a história: Elia Kazan e a América. Mestrado em História. 1994. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
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